O Largo da Palma – Adonias Filho

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PRIMEIRO EPISÓDIO: A MOÇA DOS PÃEZINHOS
DE QUEIJO

O narrador descreve o Largo da Palma, a igreja, os antigos casarões
para localizar, na esquina, onde a ladeira começa a “casa dos
pãezinhos de queijo”. A casa fica num alto sobrado, em que moram
muitas famílias, por isso cobertas estão nas janelas, a gritaria
dos rádios se une ao pregão dos vendedores de frutas.

Quem faz o pão é Joana, viúva, e quem os vende é
sua filha Célia. A descrição marcante da moça
é o riso alegre e a voz “tão macia quanto os pãezinhos
de queijo”. “Doce e macia, ao lado do riso alegre, a voz da moça
é música melhor de ouvir-se, nas manhãs de domingo que
o próprio órgão da igreja”

Gustavo escuta essa voz pela primeira vez, quando a pedido da avó
vai comprar os “famosos” pãezinhos do Largo da Palma. E
essa voz vai ficar em sua mente durante todo o resto do dia e da noite. Não
lembra direito o rosto da moça, mas a voz, essa ecoa em seus pensamentos.
No dia seguinte vai comprar pãezinhos, por conta própria. Fica
no fim da fila olhando para a moça, ouve uma cliente chamá-la
de Célia. Quando chega sua vez, ela lhe pergunta, quantos pães?
O rosto de Gustavo fica congestionado, e ela, com sua sensibilidade, conclui
que ele é mudo.

Gustavo tira um bloco e um lápis do bolso e escreve “Quero
meia dúzia da pãezinhos de queijo”. Célia fica
em dúvida, será ele surdo também? Então fala baixinho,
e a voz dela, assim de perto é mesmo bela. Gustavo esclarece: “Não
sou surdo e, porque, ouvi, sei que se chama Célia”.

Gustavo tem uma coleção de caixas de música, presente
da mãe, que um dia foi para o hospital “doente da cabeça”,
desaparecendo no quinto aniversário do menino. A música o acalma.

Ele tão bonito, ela “fascinada pelo rapaz que não fala
e que de rosto faz lembrar um dos anjos da igreja”. Célia, com
a voz tão doce, macia, embeleza a casa de pãezinhos. Marcam
um encontro na frente da igreja. Ambos se sentem felizes, com olhos brilhantes.

O rapaz, em lugar de voltar logo para casa, vai passear no Jardim de Nazaré.
Quando chega, mais tarde do que costuma, a irmã, que estuda engenharia
na faculdade, fica apreensiva, e ele escreve, no bloco que tem uma namorada.

Gustavo era mudo, mas a família tinha esgotado todas as possibilidades
de tratamento: nada era poupado para tratar o rapaz. O pai, dono de uma fábrica
de pregos, tem receios quanto ao futuro do filho.

Mas nada impede que Célia e Gustavo se encontrem. Ele lhe pede para
irem ao Jardim de Nazaré, e por uma semana sentam no mesmo banco, sentindo
que mais se gostam. Um dia ela lhe pede que não escreva mais. Ela lhe
diz “Quero que você fale”. As lágrimas escorrem do
rosto dele e ela, amorosamente, as enxuga. Daquele momento em diante, ele
não escreve mais, dizia por sinais, o que desejava.

Naquele dia, ele está ofegante, e quer lhe pedir algo. Ela entende
que ele lhe pede que, no dia seguinte, lhe traga pãezinhos de queijo.
“Trarei, amanhã, os seus pãezinhos – ela diz –
Eu mesma os farei com o melhor queijo da Bahia”.

Cedinho, ela acende o fogo e começa o trabalho:

A massa, o queijo, o sal, o fogo. E veio fazendo os pãezinhos de queijo,
um a um, tendo-os nas mãos como se fosse comê-los. Doce o cheiro
no ar, mistura de trigo e açúcar, muito doce mesmo. Sentiu o
coração alegre enquanto durou o trabalho e foi essa alegria
do coração que a fez inventar uma canção que cantou,
baixinho, para si mesma. “É preciso querer e querer muito para
alcançar”. Repetiu muitas vezes a pensar em Gustavo que, de tão
bom, também merecia ter alegria no coração. (p.25)

De noite, os namorados se encontram. Sentam-se no banco de sempre. Ela lhe
dá um pãozinho e diz: – “Quando o fiz, Gustavo, pensei
colocar nele o meu próprio sangue” Ele come lentamente, saboreando,
e Célia sussurra: “Agora você pode falar” Um beijo,
Gustavo ouve e sente que o amor e o beijo de Célia podem fazer um milagre.
“Tudo nele é angústia e dor, os lábios tremem,
suor no rosto, vontade de gritar”. E como mum parto, a voz está
nascendo.

E ele, a rir e a chorar ao mesmo tempo, exclama em tom ainda fraco, mas
exclama: – Amor!

COMENTÁRIO

O pão traz a idéia do divino, do maravilhoso. O milagre do
pão, a multiplicação, o fazer o pão tem o efeito
de sentido de recuperar, de salvação. O fermento simbolicamente
representa transformação, com a noção de pureza
e de sacrifício.

O menino que ficou mudo pela perda da mãe, embora rico, acarinhado
pela família, recupera a voz através do amor, isto é
evidente pela primeira palavra que consegue pronunciar.

A moça através de seu amor, de seu trabalho, devolve a fala
do namorado, traz o mistério que os sentimentos podem operar.

O Jardim de Nazaré embora seja um espaço físico, nesse
episódio, ganha a conotação de Jardim do Éden,
o lugar do milagre, a voz que nasce, pode ser relacionada com o Menino que
nasceu em Belém, mas que viveu humildemente em Nazaré.

2º EPISÓDIO: O LARGO DE BRANCO

 

Eliane, “cabelos brancos”, sozinha, morando num quarto muito
pobre e pequeno na rua Bângala, vai a um encontro. Ela foi abandonada
por seu companheiro, Geraldo, depois de 30 anos, ficando sem recursos. Na
verdade “ele jogara o dinheiro na cama e, como se estivesse a pagar
a vida quase inteira em comum, saíra a bater a porta com estupidez”.

Ela vai encontrar-se com Odilon, seu primeiro marido de quem ela tinha se
separado há trinta anos. Ele estava voltando a Salvador e queria um
encontro, “naquele dia mesmo, ao meio dia, no Largo da Palma. Em frente,
bem em frente da igreja”

Na carta ele lhe dizia que soubera de sua situação e queria
vê-la. Quando chega “o Largo da Palma, em junho, sempre espera
o sol para vencer o frio que sobre da noite”. Ela chegou cedo. As pedras,
no chão, deviam ter séculos.

O narrador faz uma volta ao passado de Eliane para narrar a infância
dela, o nascimento da irmãzinha, Joanita, a alegria da mãe,
sempre a sorrir, o pai calado, cada vez mais calado. Depois, o tempo em que
o pai chega bêbado, até o dia em que cai, deitado de bruços,
como um morto.

A ambulância chega, vem o médico e um estudante, que Eliane
ouve o médico chamar de Odilon. O pai é levado, e Odilon vai
todo dia dar notícias, até o dia em que o pai volta, doente
para casa, sem poder mais trabalhar. Em três meses Odilon será
médico, e tudo nele respira bondade, calma e boa vontade. Ela conclui
que Odilon não é um homem comum. A casa fica triste, a mãe
perde o riso, a família está na miséria. A morte do pai
foi um alívio. Todos viam que Odilon estava apaixonado por Eliane.
Eles ficam noivos, casam. Ela entende, então que o marido era “um
homem inteiramente desligado do mundo” Só o que interessava a
ele eram os doentes, o hospital, o ambulatório, chegando ao ponto de
comprar remédios para os doentes, mesmo sabendo que a mãe e
a irmã precisavam muito de dinheiro.

Ele era feio, desajeitado e desligado do mundo, mas a tratava com o maior
carinho. A dor maior aconteceu quando ela ficou sabendo que não poderia
ter filhos. O choque que sofreu foi tão grande que Odilon se afastou
do hospital por três dias. Mas mesmo todo o amor que o marido dedicava
não era suficiente, pois ela se sentia cada vez mais separada dele.
Algumas vezes, irritada, zangada, dirigia-se a ele ofendendo-o, dizendo palavrões.
Ele era incapaz de zangar-se. No último dia o agrediu aos gritos, saiu
batendo a porta. Foi para um hotelzinho, à beira da praia, e foi lá
que viu Geraldo, o homem mais bonito que tinha conhecido. Quando ele se aproximou,
olhou-a, não teve coragem de se afastar.

Agora, depois de trinta anos, Odilon voltava, sabendo do abandono, queria
vê-la. Ela sentiu fome e lembrou que, talvez “A Casa dos Pãezinhos
de Queijo” estivesse aberta.

Mas ela se aproxima da igreja, e vê Odilon.

Está de pé, o paletó chegando aos joelhos, a calça
frouxa sobre as pernas, o laço da gravata quase no peito, velho e sujo
o chapéu de feltro. E, talvez, por causa do buquê de rosas vermelhas
que tem na mão, parece um palhaço de circo. É ele, Odilon,
não há dúvida. Os cabelos grisalhos, bastante envelhecido,
mas o mesmo homem de sempre. (…) E como se nada houvesse acontecido naqueles
trinta anos, desde que se separaram, ele apenas diz: – Vamos, Eliane, vamos
para casa.(…) E Eliane, não tem dúvida de que o seu velho
largo, como num dia de festa está vestido de branco. (p.47)

COMENTÁRIO

Novamente o espaço do Largo da Palma é testemunha de uma história
humana. O largo fica de branco, festivo para dar alegria e alívio a
uma velha mulher desiludida e triste. Uma história de amor transparece
nas entrelinhas, feita de fidelidade, persistência, resistindo ao tempo
e ao abandono.

O “branco” é uma cor simbólica, representando
uma mudança de condição. Recebe todas as cores, por isso
tem um valor limite de cor de passagem, da qual se esperam mutações
do ser. É a cor da revelação e da graça; desperta
o entendimento, a consciência desabrochada.

O texto é construído lentamente, despertando o interesse em
relação ao desfecho, e lá está o Largo da Palma,
antigo, firme, fiel a seu destino, iluminado pelo sol, com o céu muito
azul, veste-se de branco, trazendo para Eliane a certeza de que haverá
uma transformação em sua vida, sua consciência desperta
para valores que, quando jovem, não soube avaliar devidamente.

TERCEIRO EPISÓDIO: UM AVÔ MUITO VELHO

A narrativa inicia-se anunciando que algo aconteceu ao avô Loio, muito
velho. Morava no Gravatá a poucos passos do Largo da Palma aonde chegava
sem pressa, sentindo o cheiro do incenso que vinha da igreja se misturando
com o aroma dos pãezinhos de queijo.

A neta Pintinha é a alegria do avô.

A pretinha viva e esperta, a mostrar os dentinhos no riso alegre, a falar
pelos cotovelos na língua embrulhada, era a grande alegria do pai,
Chico Timóteo, da mãe Maria Eponina, e dele próprio,
o velho negro Loio

Desde os primeiros passos ela anda com ele; ele a leva à escola,
depois ela vai com as amigas e, finalmente, chega o dia em que Pintinha recebe
o diploma de professora.

O velho Loio era tocador de sanfona. Num retrocesso temporal ficamos sabendo
do passado do velho negro Loio. Seu pai era pescador, perdeu uma perna no
mar, dizia que na guerra com os tubarões. Vendera o saveiro, e, comprando
uma porta vende charutos, dá sorte e compra uma loja no Mercado Modelo.
Loio apaixonou-se por Aparecida, aos dezoito anos, e aquela mulher era tudo
para ele: mãe, amiga e amante, uma sanfoneira como ele,

Negra como ele, mais velha que ele doze anos, de tantas coisas entendia
que a sabedoria em pessoa. Sanfoneira, jogadora de baralho e dados, cantora
nas ruas do cais, puta aos sábados, cartomante e rezadeira, mulher
sem pouso certo que apenas tinha de seu o maior coração da Bahia.

Numa ocasião, Aparecida põe as cartas e lhe diz que viu que
há uma morte nas mãos dele. Um dia a polícia chegou e
ele foi reconhecer Aparecida no chão, morta, numa poça do próprio
sangue. A partir daí Loio vai trabalhar no mercado com o pai até
o dia em que morreu com dores no peito, tendo deixado “como herança
a birosca, um bocado de dinheiro e um terreno no Rio Vermelho”. Comprou
outra porta no mercado e tornou-se comerciante remediado.

Continuou a tocar a sanfona, mas nunca aceitou convites para tocar nas festas.
Só comparecia a circos e foi lá que conheceu Verinha. Vendeu
o terreno, comprou uma casa no Gravatá, e dizia que o Largo da Palma
era tanto de Verinha quanto da Santa.

Quando os negócios prosperaram precisou contratar um ajudante. Depois
de duas tentativas Maria Ecléa, vendedora de rendas do Ceará
ofereceu o filho, Chico Timóteo. A confiança cresce entre eles,
quando a mãe de Chico falece, Loio o convida para almoçar na
casa dele. Assim começa o namoro, vem o noivado e o casamento de Chico
Timóteo com Maria Eponina. Loio oferece sua casa para o casal e vai
morar nos quarto dos fundos.

Andando pelo Largo da Lapa, o velho negro Loio vai relembrando o passado.

Vem a recordação do dia em que Pintinha é professora
nomeada, e vai ensinar na Amaralina. Encanta-se com a dedicação
da neta com os alunos, filhos de pescadores.

Mas naquela noite, Pintinha não voltou das aulas. O desespero e a
loucura tomam conta de Maria Eponina e de Chico Timóteo. A polícia
veio dizer que Pintinha foi agredida, bateram, violentaram e atiraram nela
e agora está entre a vida e a morte.

Três meses de dor, de sofrimento. Duas operações depois
voltou para casa. Tão doente, com tantas dores, não reconhecia
ninguém. O velho negro Loio buscava paz no Largo da Palma.

Um dia vai falar com o médico, Dr. Eulálio Sá, e soube
que as operações só prolongaram um pouco a vida, mas
que as dores seriam insuportáveis. Quando foi ver a neta, doeu muito
seu coração de velho e saiu de cabeça baixa para o Largo
da Palma.

Procurou o farmacêutico, pediu um veneno para matar um cachorro que
estava velho e doente. Ao chegar em casa, dissolve o veneno na água
e dá para Pintinha. Lavou o copo muito bem, depois e ficou na sala.
Agora ele tem uma morte nas mãos.

A filha veio do quarto, “indiferente, sem lágrimas e quase
sem voz: Traga uma vela, pai, Pintinha acaba de morrer.”

COMENTÁRIO

Nesse episódio, a eutanásia é o tema em torno do qual
se desenvolve a narrativa. Embora ela só apareça no final, durante
todo o conto há signos de morte e de tragédia. A delicadeza
com que o narrador descreve a forte ligação entre o avô
e a neta, a dedicação extrema que há entre eles é
tecida ao longo da narrativa.

Com uma síntese brilhante tomamos conhecimento da vida desse velho
avô, que só procurou a paz, o amor e que por amor no fim da vida
realiza o ato anunciado nas primeiras linhas “O velho, quando aquilo
aconteceu, trancou-se em si mesmo”.

Apenas o Largo da Palma é capaz de trazer a paz, talvez que todos
o esqueçam, mas “Todos sabem em Salvador da Bahia que, apesar
da idade, antigo de muitos séculos, o Largo da Palma tem boa memória.
Como esquecer o velho negro Loio, nas manhãs de sol ou de chuva, a
levar a neta para as aulas?”

QUARTO EPISÓDIO: UM CORPO SEM NOME

É o único episódio narrado na primeira pessoa. “A
tarde se acaba, é verdade, mas a noite ainda não chegou. E por
que me encontro aqui, quem sou, isto não importa. O que importa é
que estou na esquina do Bângala, de pé e a fumar, buscando trazer
a paz do largo para mim mesmo”.

O enredo é simples: o narrador vê uma mulher que chega cambaleando
e morre nos degraus da escadaria da igreja no Largo da Palma. Como testemunha,
tendo a mulher morrido em seus braços vai até à delegacia,
curioso para saber de quem se trata. A morta tem o rosto magro, “as
órbitas fundas, os cabelos grisalhos, a boca murcha com três
cacos de dentes. Os braços tão secos quanto os seios e as pernas.
O vestido imundo, frouxo na cintura e descosido nas mangas”, sintomas
de fome e cansaço.

Essa imagem faz com que ele rememore um fato com uma mulher assim quando
fez dezoito anos.

Nos pertences da mulher estão um pente, um lenço de linho.
Um maço de cigarros e uma nota de dez cruzeiros, uma caixa de fósforo
com um pó branco, que logo se verifica ser cocaína, uma saboneteira
com mais de dez dentes da criatura humana.

O laudo médico é conclusivo; a morte foi por tóxico.

Dois meses depois, o narrador volta ao Largo da Palma. A visão humanizada
do largo cuja memória não abarca todos os acontecimentos, talvez
tenha esquecido a mulher sem nome.

O narrador se aproxima de “A Casa dos Pãezinhos de Queijo”,
o ar tem o perfume de trigo, misturado com o incenso que vem da igreja.

Ao falar com o inspetor fica sabendo que não identificaram a mulher,
o corpo com tóxico em todos os poros, o mistério dos dentes
guardados nunca foi desvendado, só há conhecimento de que eles
pertenciam a ela mesma. Agora, à noite, o narrador vê os gatos,
que na madrugada se tornam os donos do largo porque os homens e os pombos
estão dormindo.

E sobre a mulher: “A morte não a matou, porque morreu fora
do corpo. E, por isso, não morreu no Largo da Palma”.

COMENTÁRIO

Há um narrador que não se identifica, trata-se de um “eu”
que se diz, se fala, fala dos fatos em torno da morte, mas não se nomeia.
A rememoração que faz da época que tem dezoito anos,
faz lembrar Marcel Proust em “La recherche du temps perdue” (A
procura do tempo perdido), quando uma realidade do presente evoca uma imagem
do passado, caracterizando o impressionismo tanto na linguagem quanto nos
signos.

O Largo de Palma, que no episódio anterior, apesar da idade, antigo
de muitos séculos, tem boa memória, nesta narrativa, velho como
é, já a esqueceu porque não tem memória para todos
os acontecimentos.

A presença dos gatos, simbolicamente, relacionado com o mistério
da vida e da morte, segundo a tradição oriental, está
encarregado de transportar as almas para o outro mundo.

QUINTO EPISÓDIO: OS ENFORCADOS

Esta narrativa está localizada temporalmente. Através de um
cego, a história da revolução dos alfaiates é
contada numa perspectiva de pessoas que assistiram ao enforcamento dos revolucionários
acusados.

O ceguinho do Largo da Palma, como era chamado, sentiu que o largo estava
vazio, que a igreja tinha poucos fiéis e todos saíram apressados.
Ficou sabendo que era o dia dos enforcados.

Como não recebe nenhuma esmola, vai para a Piedade, mas antes pára
na birosca do Valentim. É o Valentim que vai narrar o enforcamento
para o ceguinho, ele que tinha uma voz de sermão, hoje fala baixo,
tem medo fruto das prisões e das torturas. A cidade traz a marca da
tragédia:

— A cidade parece triste.

— A Bahia nunca foi alegre — Valentim, abaixando a voz disse
por sua vez. — Uma cidade com escravos é sempre triste. É
muito triste mesmo.

Quando os quatro condenados estão chegando, a multidão se
agita. O cego tudo tomava conhecimento pela voz de Valentim, voz emocionada,
afinal era ele quem via. Quando a morte do último condenado aconteceu
Valentim sumiu, deixando o ceguinho só, tão só, apenas
com o porrete na mão. Andou até reconhecer o Largo da Palma.
Tudo o que queria era seu canto do pátio da igreja.

E ao aproximar-se, ao sentir o cheiro de incenso, pensou que naquele momento
já cortavam as cabeças e as mãos dos enforcados. Colocadas
em exposição, no Cruzeiro de São Francisco ou na Rua
Direita do Palácio, até que ficassem os ossos. O Largo da Palma,
porque sem povo e movimento, seria poupado. Ajoelhou-se, então, pondo
as mãos na porta da Igreja.

E, única vez em toda a vida, agradeceu à Santa Palma ter ficado
cego.

COMENTÁRIO

O cego da narrativa pode ser a representação do poeta itinerante,
uma visão de renúncia às coisas externas fugidias. Para
explicar o que o cego não vê é preciso falar: a narrativa
se faz necessária. É a justificativa para uma história
ser contada, no caso,“costurando a revolução”, tecendo
os fatos.

O cego sem poder ver os fatos exteriores, tem a capacidade de ver a verdade
interior.

A Revolta dos Alfaiates ou Inconfidência baiana ocorreu em 1798, cujos
participantes pertenciam às camadas pobres. Dois soldados; Lucas Dantas
e Luís Gonzaga das Virgens; dois alfaiates João de Deus do Nascimento
e Manuel Faustino dos Santos, que tinha dezoito anos lutavam pela República.
Eram todos mulatos. Os intelectuais e os ricos da Loja Maçônica
Cavaleiros da Luz foram perdoados. O castigo aos pobres deveu-se ao medo de
que houvesse uma rebelião dos negros como havia acontecido nas Antilhas.

O dia dos enforcados, na Piedade, 08/11/1799.

Na narrativa, o nome do governador D. Fernando José de Portugal e
Castro, os atos que praticava para impor respeito: a chibata, os grilhões,
a forca o esquartejamento, fazem parte do mundo de violência que não
deve ser visto. Por isso o cego agradece à Santa.

Como dois dos revolucionários eram alfaiates, mulatos, vítimas
de discriminação, pode-se relacionar este episódio com
o filme Concorrência Desleal de Scola, quando há uma lição
de solidariedade entre um alfaiate e seu concorrente, quando sofre a discriminação
por ser judeu.

SEXTO EPISÓDIO

A PEDRA

Esta narrativa faz referência ao período da peste bubônica
na Bahia. Nesse período era proibido terreno baldio. As casas e os
sobradinhos foram se erguendo ao redor da igreja, tão antiga. “O
sino da igreja, aqui na Palma, anuncia finados dia e noite. Maior que a peste,
de verdade, só o medo”.

Se o terreno estava barato, a construção era cara porque naqueles
dias o rei acabou com a escravidão.

Um negociante português construiu uma casa no terreno baldio próximo
à igreja: uma casa comum, pequena, baixa. Quem a comprou foi Cícero
Amaro, um garimpeiro de Jacobina. A narrativa descreve o temperamento folgado
de Cícero, a vida dura de sua mulher Zefa, até o dia em que
ele achou um brilhante do tamanho do caroço de uma azeitona. Vendeu
e veio com a Zefa para a capital. Aqui comprou a casa do português,
comprou uma quitanda para a Zefa e foi para a ladeira de Montanha, todo caprichado
em busca de uma aventura. Lá encontra Flor que tira dele tudo que pode
e lhe dá o fora. Quando está empobrecido, volta para Zefa que
não o quer mais. Acha que é uma grande ingratidão, mas
pensa em arrumar algum dinheiro para voltar a Jacobina e retornar à
sua vida de garimpeiro.

COMENTÁRIO

Esta narrativa traz um período triste para a história da Bahia,
quando a peste bubônica toma o espaço, dizima a população.
Ao lado da peste está um belíssimo brilhante. O Largo da Palma,
a velha igreja participam do sofrimento. O sino que toca dolorosamente anunciando
as mortes, as perdas, o medo.

Depois de passada a peste é que Cícero Amaro chega à
cidade. Para poder habitar o Largo da Palma, ele precisou encontrar um brilhante.
Essa pedra traz uma simbologia especial: o brilhante precisa passar por uma
transmutação, precisa ser lapidado, trabalhado. Em relação
ao homem, a pedra simboliza a aprendizagem. Foi isso que Cícero veio
aprender: como a vida oferece benefícios, mas exige que se mudem comportamentos.
Ao voltar ao ponto de partida, a lição que sobra para a personagem
é recomeçar, mais velho, mais experiente, esperando ter a sorte
lhe sorrindo novamente.

2.1 O ESPAÇO

O Largo da Palma aparece numa atmosfera de poesia e quase magia que se derrama
sobre as personagens, e as impressões envolvem o leitor. Não
se trata de um espaço indiferente aos homens, é lugar sofrido
ou de encantamentos, tem uma força estranha que assiste à aurora
dos gestos e das transformações na vida dos personagens.

A velha igreja “humilde e enrugadinha, com três séculos
de idade” e o convento são testemunhas dos acontecimentos. A
referência que faz à “velha igreja” e ao convento
dá uma idéia temporal, uma vez que as referências temporais
são predominantemente históricas. A Igreja e o convento foram
construídos sobre o “Monte das Palmas”, uma das primeiras
áreas de expansão da cidade, devendo-se a sua edificação,
em 1630, a ex-voto feito por Bernardino da Cruz Arraes, que estivera enfermo.
O convento, desenvolvido em torno de um pátio retangular, ladeado pela
igreja, é iniciado em 1670, posterior à igreja que, nesta época,
é ampliada. Pertence à Ordem dos Agostinhos Descalços,
é transferida à Irmandade do Senhor da Cruz, em 1822, com o
retorno daqueles a Portugal. Acredita-se que a igreja atual, da 2ª metade
do século XVIII, obedece basicamente o partido primitivo, com algumas
alterações.

O aroma dos pãezinhos de queijo que perfumam o largo em quatro dos
seis contos. Os pãezinhos de queijo também dão unidade
temporal, sabendo-se que, as narrativas em que são referidos, acontecem
num mesmo período.

O mundo se move a partir do Largo da Palma, com seus casarões, suas
ruas, pois os espaços públicos mais que os particulares marcam
os eventos que compõem esta novela. Do largo se vai à Barroquinha,
ao Jardim de Nazaré, que no primeiro episódio é espaço
de amor e magia, Jardim do Éden no qual o amor opera uma transformação
idílica,. Do largo se vai também à Praça da Piedade,
na quinta narrativa é o espaço do trágico, da morte injusta
e dolorosa, daqueles que lutaram pelos ideais da liberdade, da revolta que
nasce do movimento popular e que dramaticamente Adonias Filho nos conta.

É um espaço humanizado, capaz de pacificar corações
e almas, capaz de ser o lugar em que se refazem bodas, em que se busca reminiscências
do passado.

“O Largo da Palma, a noite morna, o velho negro Loio andava passo
a passo. (…) O próprio Largo da Palma, e assim ele se lembrava da
mulher, parecia comover-se. Dúvida jamais tivera de que, se a tranqüilidade
o envolvia, era porque Verinha nele habitava. Ela quem respirava na brisa
tão leve e não seria impossível que –morta há
tantos anos – tudo acalmasse para que as árvores e os pombos
dormissem em paz.” (p.61)

“O Largo da Palma, para o cego, sempre sofrera e amara. Conhecia-o
palmo a palmo, árvore a árvore, casa a casa. Identificava pelas
vozes todos os seus moradores.” (p.89)

2.2. A LINGUAGEM

A linguagem em que está construído o texto revela um escritor
em consonância com seu tempo: presença das correntes simbolistas,
impressionistas, expressionistas e surrealistas e também influência
do cinema. Uma linguagem cinematográfica que retrata com adequação
o espaço e as personagens permitindo ao leitor criar as imagens mentais,
tornando-se, este leitor, também, um criador no momento em que se torna
autor de sua leitura.

A linguagem oferece sugestão de imagens, em vez de um retrato exato,
especialmente na caracterização das personagens. Graças
ao uso de imagens e metáforas constrói um mundo simbólico
e mítico. Assim é o Largo da Palma, lugar mítico, metafórico
da construção narrativa. A inspiração regional,
a paisagem de Salvador, serve de fonte inspiradora da criação
das personagens e da trama, mostrando muito mais o “por dentro”
que o exterior das personagens na sua relação com o espaço.

O estilo de Adonias Filho mostra o predomínio da musicalidade e através
da sinestesia traz densidade, tratamento sintético, marcado por um
sopro de poesia. Ainda,

quando o escritor une as tradições populares às judaico-cristãs,
percebe-se que seu texto aprende a tecer o contato “vivo e carnal”
recortado de nosso complexo cultural popular. O que poderia ser captado como
um rebaixamento retórico na perspectiva canônica da história
literária tradicional, resulta como uma ampliação, ainda
que tardia, de referências que amadurecerão sua obra no sentido
de uma representação calcada em uma perspectiva de totalidade.

Quando Adonias Filho traz seus seres ficcionais do passado para o presente
urbano, evidencia-se um elemento da cultura popular brasileira: os elementos
da cultura popular são permeáveis ao contexto sócio-cultural,
não se imobilizando no passado de sua gênese.”

(ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade, p.21)

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