Arras por Foro de Espanha

I

A Arraia-miúda

PUBLICIDADE

O sino das ave-marias ou da oração, tinha dado na torre da Sé a última badalada, e pelas frestas e portas dessa multidão de casas que, apinhadas à roda do castelo e como enfeixadas e comprimidas pela apertada cinta das muralhas primitivas de Lisboa, pareciam mal caberem nelas, viam-se fulgurar, aqui e acolá, as luzes interiores, enquanto as ruas, tortuosas e imundas, jaziam como baralhadas e confusas sob o manto das trevas. Era chegada a hora dos terrores; porque durante a noite, naqueles boas tempos, a estreita senda de bosque deserto não era mais triste, temerosa e arriscada do que a própria Rua Nova, a mais opulenta e formosa da capital. O que, porém, havia aí desacostumado e estranho eram o completo silêncio e a escuridão profunda em que jazia sepultado o Paço de a par S. Martinho, onde então residia el-rei D. Fernando, ao mesmo tempo que pelos becos e encruzilhadas soava um tropear de passadas, um sussurro de vozes vagas, que indicavam terem sido agitadas as ondas populares pelo vento de Deus e que ainda esse mar revolto não tinha inteiramente caído na calmaria e sonolência que vem após a procela.

E assim era, com efeito, como o leitor poderá averiguar por seus próprios olhos e ouvidos, se, manso, manso e disfarçado quiser entrar connosco na mui afamada e antiga taberna do velho Folco Taca, que nos fica bem perto, logo ao sair da Sé, na rua que sobe para os Paços da Alcáçova, sete ou oito portas acima dos Paços do Concelho.

A taberna de micer Folco Taca, genovês que viera a Portugal ainda impúbere, como pajem de armas de famoso almirante Lançarote Pessanha, e que havia anos abandonara o serviço marítimo para se dar à mercância, era a mais célebre entre todas as de Lisboa, não só pelo luxo do seu adereço, e pela bondade dos líquidos encerrados nas cubas monumentais que a pejavam, mas também porque, em um aposento mais retirado e interior, uma vasta banca de pinho e muitos assentos rasos os escabelos ofereciam todo o cómodo aos tavolageiros de profissão para perderem ou ganharam aí, em noites de jogo infrene, os belos alfonsins e maravedis de ouro ou as estimadas dobras de D. Pedro I, o qual, ao contrário dos seus antecessores e sucessores, julgara ser mais rico e poderoso fazendo cunhar moeda de bom toque e peso do que roubando-lhe o valor intrínseco e aumentando-lhe o nominal, segundo o costume de todos os reis no começo do seu reinar.

Micer Folco soubera estender grossas névoas sobre os olhos do corregedor da Corte e de todos os saiões, algozes e mais família da nobre raça dos aguazis sobre a ilegalidade de semelhante estabelecimento industrial. O elixir que ele empregara para produzir essa maravilhosa cegueira não sabemos nós qual fosse; mas é certo que não se perdeu com a alquimia, porque se vê que ele existe em mãos abençoadas, produzindo, ainda hoje, repetidos milagres, em tudo análogos a este.

Era, pois, na taberna-tavolagem da Porta do Ferro, conhecida vulgarmente por tal nome em consequência da vizinhança dessa porta da antiga cerca, onde os ruídos vagos e incertos que sussurravam pelas ruas da cidade soavam mais alta e distintamente, como em sorvedouro marinho as ondas, remoinhando e precipitando-se, estrepitam no centro da voragem com mais soturno e retumbante fragor. A vasta quadra da taberna estava apinhada de gente, que trasbordava até o breve terreirinho da Sé, falando todos a um tempo, acesos, ao que parecia, em violentas disputas, que às vezes eram interrompidas pelo mais alto brado das pragas e blasfêmias, indício evidente de que o sucesso que motivava aquela assuada ou tumulto era negócio que excitava vivamente a cólera popular.

Já no fim do século décimo quarto era o povo, assim como hoje, colérico. Então cóleras da puerícia; hoje aborrimentos da velhice.

Se na rua o burburinho era tempestuoso e confuso, dentro da casa de micer Folco a bulha podia chamar-se infernal. Para um dos lados, no meio de uma espessa mó de populares, ouviam-se palavras ameaçadoras, sem que fosse possível perceber contra qual ou quais indivíduos se acumulava tanta sanha. ara outra parte, dentre o vozear de uma cerrada pinha de mulheres, cuja vida de perdição se revelava nos seus coromens de pano de arrás, nos cintos escuros, nas camisas e véus desadornados e lisos, rompiam risadas discordes e esganiçadas, nas quais se manifestavam, profundamente impressos, o descaro e a insolência daquelas desgraçadas. Em cima dos vufetes viam-se pichéis e taças vazias, e debaixo de alguns deles corpos estirados, que simulariam cadáveres, se os assobios e roncos, que, às vezes, sobressaíam através do ruído daquele respeitável congresso, não provassem que esses honrados cidadãos, suavemente embalados pelos vapores do vinho e do entusiasmo, tinham adormecido na paz de uma boa consciência. Enfim, a composta e bem reputada taberna do antigo companheiro de glória de micer Lançarote estava visívelmente prostituída e nivelada com as mais imundas e vis baiucas de Lisboa. O gigante popular tinha aí assentado a sua cúria feroz, e pela primeira vez o vício e a corrupção tinham transposto aqueles umbrais sem a sua máscara de modéstia e gravidade. Sobre os farrapos do povo não têm cabida os adornos do ouropel. É a única diferença moral que há entre ele e as classes superiores que se crêem melhores, porque no ginásio da civilização aprendem desde a infância as destrezas e os mornos de compostura hipócrita.

O astro que parecia alumiar com a sua luz, aquecer com o seu calor aquele turbilhão de planetas, o centro moral à roda do qual viravam todos aqueles espíritos, era um homem que dava mostras de ter bem quarenta anos, alto, magro, trigueiro, olhos encovados e cintilantes, cabelo negro e revolto, barba grisalha e espessa. Encostado a um dos muitos bufetes que adornavam o amplo aposento e rodeado de uma grossa pinha de populares de ambos os sexos que o escutavam em respeitoso silêncio, a sua voz forte e sonora sobressaía no ruído e só se confundia com alguma jura blasfema que se disparava do meio das outras pinhas de povo ou com as modulações das risadas que vibravam naquele ambiente denso e abafado, de certo modo semelhante a clarão afogueado que sulcasse ràpidamente as trevas húmidas e profundas da cripta subterrânea de alguma igreja de sexto século.

De repente, dois cavaleiros, cuja graduação se conhecia pelos barretes de veludo preto adornados de pluma ao lado, pelas calças de seda golpeadas e pelos cintos de pele de gamo lavrados de prata, entraram na taberna e, rompendo por entre o povo, que lhe alargava a passagem, chegaram ao pé do homem alto e trigueiro. Traziam os capeirotes puxados para a cara, de modo que nenhum dos circunstantes pôde conhecer quem eram. Bastantes desejos passaram por muitos daqueles cérebros vinolentos de o indagar; mas a mesma reflexão atou simultâneamente todas as mãos. Ao longo da coxa esquerda dos embuçados via-se reluzir a espada, e no lado direito e apertado no cinto, que a ponta erguida do capeirote deixava aparecer, escortinava-se o punhal. O passaporte para virem assim aforrados era digno de consideração, e ainda que entre a turba se achassem alguns homens de armas, principalmente besteiros, quase todos estavam desarmados. Tinha seus riscos, portanto, o pôr-lhe o visto popular.

Os dois desconhecidos falaram em segredo por alguns minutos ao homem alto e magro, que, de quando em quando, meneava a cabeça, fazendo um gesto de assentimento; depois romperam por entre a turba, que os examinava com uma espécie de receio misturado de respeito, e foram sentar-se em dois dos escabelos enfileirados ao correr da parede. Encostando os cotovelos em um bufete, com as cabeças apertadas entre os punhos, ficaram imóveis e como alheios ao sussurro que começava a levantar-se de novo à roda deles.

Este durou breves instantes; um psiu do homem alto e magro fez voltar todos os olhos para aquela banda. Subindo a um escabelo, ele deu sinal com a mão de que pretendia falar.

– Ouvide, ouvide! – bradaram alguns que pareciam os maiores daquela multidão desordenada.

Todos os pescoços se alongaram a um tempo, e viram-se muitas mãos calosas erguerem-se encurvadas e formarem em volta das orelhas de seus donos uma espécie de anel acústico. O orador principiou:

– Arraia-miúda!, tendes vós já elegido, entre vós outros, cidadãos bem falantes e avisados para propor vossos embargos e razoados contra este maldito e descomunal casamento de el-rei com a mulher de João Lourenço da Cunha?

– Todos à uma entendemos que deveis ser vós, mestre Fernão Vasques – respondeu um velho, cuja calva polida reverberava os raios de uma das lâmpadas pendentes do tecto, e que parecia ser homem de conta entre os populares. – Quem há aí entre a arraia-miúda mais discreto e aposto para tais autos que vós? Quem com mais urgentes razões proporia nosso agravo e a desonra e vilta de el-rei do que vós o fizestes hoje na mostra que demos ao paço esta tarde?

– Alcácer, alcácer!, por nosso capitão Fernão Vasques – bradou uníssona a chusma.

– Fico-vos obrigado, mestre Bartolomeu Chambão! – replicou Fernão Vasques, sossegando o tumulto. – Pelo razoado de hoje terei em paga a forca, se a adúltera chega a ser rainha: pelo de amanhã terei as mãos decepadas em vida, se el-rei com as suas palavras mansas e enganosas souber apaziguar o povo. E tende vós por averiguado, mestre Bartolomeu, que o carrasco sabe apertar melhor o nó da corda na garganta que eu o ponto em peitilho de saio ou em costura de redondel ou pelote, e que o cutelo do algoz entra mais rijo no gasnete de um cristão que a vossa enxó numa aduela de pipa!

– Nanja enquanto na minha aljava houver almazém, e a garrucha da besta me não estourar – exclamou um besteiro do conto, cambaleando e erguendo-se debaixo de um bufete, para onde o haviam derribado certas perturbações de entusiasmo político.

-Amen, dico vobis! – gritou um beguino, cujas faces vermelhas e voz de estentor brigavam com o hábito de grosseiro burel e com as desconformes camândulas que lhe pendiam da cinta.

– Olé, Frei Roy Zambrana, fala linguagem cristenga, se queres vir nesse bodo por nossa esteira – bradou um petintal de Alfama que, segundo parecia, capitaneava um grande troço de pescadores, barqueiros e baleotes daquele bairro, então quase exclusivamente povoado de semelhante gente.

– Digo por linguagem – acudiu o beguino – que ninguém como mestre Fernão Vasques é homem de cordura e sages para amanhã falar a el-rei aguisadamente sobre o feito do casamento de Leonor Teles, do mesmo modo que ninguém leva vantagem ao petintal Airas Gil em ousadia para fugir às galés de Castela e para doestar os bons servos da igreja.

Era alusão pessoal. Uma risada ruidosa e longa correspondeu à mordente desforra de Frei Roy, que abaixou os olhos com certo modo hipòcritamente contrito, semelhante ao gato que, depois de dar a unhada, vem roçar-se mansamente pela mão que ensanguentou.

Frei Roy era também, como Airas Gil, um ídolo popular, e a má vontade que parecia haver entre o beguino e o petintal nascera da emulação; de uma dúvida cruel sobre a altura relativa do trono de encruzilhada, do trono de lama e farrapos em que cada um deles se sentava.

Se, pois, aquela multidão não estivesse persuadida da superioridade intelectual do alfaiate Fernão Vasques, a opinião desses dois oráculos não lhe teria deixado a menor dúvida sobre isso. Todavia, nas palavras de ambos havia um pensamento escondido; pensamento de raízes que nascera num dia, e num dia lançara profundas raízes nos corações de ambos. O marinheiro e o eremita tinham pensado ao mesmo tempo que, lisonjeando esse homem mimoso do vulgo, tirariam juntamente dois resultados: o de ganharem mais crédito entre este e o de aplanarem a estrada da forca ao novo rei das turbas, erguido, havia poucas horas, sobre os broquéis populares.

Mas que auto era esse de que o povo falava? Sabê-lo-emos remontando um pouco mais alto.

O amor cego de el-rei D. Fernando pela mulher de João Lourenço da Cunha, Dª Leonor Teles, havia muito que era o pasto saboroso da maledicência do povo, dos cálculos dos políticos e dos enredos dos fidalgos. Ligada por parentesco com muitos dos principais cavaleiros de Portugal, Dª Leonor, ambiciosa dissimulada e corrompida, tinha empregado todas as artes do seu engenho pronto e agudo em formar entre a nobreza uma parcialidade que lhe fosse favorável. Quanto a el-rei, a paixão violenta em que este ardia lhe assegurava a ela o completo domínio no seu coração. Mas as miras daquela mulher, cuja alma era um abismo de cobiça, de desenfreamento, de altivez e de ousadia, batiam mais alto do que na triste vanglória de ver a seus pés um rei bom, generoso e gentil. Através do amor de D. Fernando ela só enxergava o refulgir da coroa, e o homem sumia-se nesse esplendor. O nome de rainha misturava-se em seus sonhos; era o significado de todas as suas palavras de ternura, o resumo de todas as suas carícias, a idéia primordial de todas as suas idéias. Leonor Teles não amava el-rei, como o provou o tempo; mas D. Fernando cria no amor dela; e este príncipe, que seria um dos melhores monarcas portugueses, e que a muitos respeitos o foi, deixou na história, quase sempre superficial, um nome desonrado, por ter escrito esse nome na horrível crónica da nossa Lucrécia Bórgia. Uma dificuldade, quase insuperável para outra que não fosse Dª Leonor, se interpunha entre ela e os seus ambiciosos desígnios. Era casada! Um processo de divórcio por parentesco, julgado por juízes afectos a Dª Leonor ou que sabiam até alcançava a sua vingança, a livrou desse tropeço. Seu marido, João Lourenço da Cunha, aterrado, fugiu para Castela, e D. Fernando, casado, segundo se dizia, a ocultas com ela, muito antes da época em que começa esta narrativa, viu enfim satisfeito o seu amor insensato.

Aqueles dentre os nobres que ainda conservavam puras as tradições severas dos antigos tempos indignavam-se pelo opróbrio da coroa e pelas consequências que devia ter o repúdio da infanta de Castela, cujo casamento com el-rei, ajustado e jurado, este desfizera com a leveza que se nota como defeito principal no carácter de D. Fernando. Entre os que altamente desaprovavam tais amores, o infante D. Dinis, o mais moço dos filhos de Dª Inês de Castro, e o velho Diogo Lopes Pacheco eram, segundo parece, os cabeças da parcialidade contrária a Dª Leonor: aquele pela altivez de seu ânimo; este por gratidão a D. Henrique de Castela, em quem achara amparo e abrigo no tempo dos seus infortúnios, e que o salvara da triste sorte de Álvaro Gonçalves Coutinho e de Pêro Coelho, seus companheiros no patriótico crime da morte de Dª Inês.

O casamento de el-rei, ou verdadeiro ou falso, era ainda um rumor vago, uma suspeita. Os nobres, porém, que o desaprovavam souberam transmitir ao povo os próprios temores, e a agitação dos ânimos crescia à medida que os amores de el-rei se tornavam mais públicos. D. Fernando tinha já revelado aos seus conselheiros a resolução que tomara, e estes, posto que a princípio lhe falassem com a liberdade que então se usava nos paços dos reis, vendo as suas diligências baldadas, contentaram-se de condenar com o silêncio essa mal-aventurada resolução. O povo, porém, não se contentou com isso.

Conforme as idéias daquele tempo, além das considerações políticas, semelhante consórcio era monstruoso aos olhos do vulgo, por um motivo de religião, o qual ainda de maior peso seria hoje, como o será em todos os tempos em que a moral social for mais respeitada do que o era naquela época. Tal consórcio constituía um verdadeiro adultério, e os filhos que dele procedessem mal poderiam ser considerados como infantes de Portugal e, por consequência, como fiadores da sucessão da Coroa.

A irritação dos ânimos, assoprada pela nobreza, tinha chegado ao seu auge, e a cólera popular rebentara violenta na tarde que precedeu a noite em que começa esta história.

Três mil homens se tinham dirigido tumultuàriamente às portas do paço, dando apenas tempo a que as cerrassem. A vozearia e o estrépido que fazia aquela multidão desordenada assustou el-rei, que por um seu privado mandou perguntar o que “lhes prazia e para que estavam assim reunidos”. Então o alfaiate Fernão Vasques, “capitão e procurador por eles”, como lhe chama Fernão Lopes, afeiou em termos violentos as intenções de el-rei liberalizando a Dª Leonor os títulos de má mulher e feiticeira e asseverando que o povo nunca havia de consentir em seu casamento adúltero. A arenga rude e veemente do alfaiate orador, acompanhada e vitoriada de gritas insolentes e ameaçadoras do tropel que o seguia, moveu el-rei a responder com agradecimento às injúrias, e a afirmar que nem Dª Leonor era sua mulher, nem o seria nunca, prometendo ir na manhã seguinte aclarar com eles este negócio no Mosteiro de S. Domingos, para onde os emprazava. Com tais promessas, pouco a pouco se aquietou o motim, e ao cair da noite o terreiro de a par S. Martinho estava em completo silêncio. Como se, na solidão, el-rei quisesse consultar consigo o que havia de dizer ao seu bom e fiel povo de Lisboa, as vidraças coradas das esguias janelas dos paços reais, que vertiam quase todas as noites o ruído e o esplendor dos saraus, cerradas nesta hora e caladas como sepulcro, contrastavam com o reluzir dos fachos, com o estrépido das ruas, com o rir das mulheres perdidas e dos homens embriagados, com o perpassar contínuo dos magotes e pinhas de gente que se encontravam, uniam, separavam, retrocediam, vacilavam, ficavam imóveis, aglomeravam-se para se desfazer, desfaziam-se para se aglomerar de novo, sem vontade e sem constrangimento, sem motivo e sem objecto, vulto inerte, movido ao acaso, como as vagas do mar, tempestuoso e irreflectido como elas. Feroz na sua cólera razoada, ferocíssimo no seu rir insensato, o vulgo passava, rei de um dia. Esse ruído, essa vertigem que o agitava era o seu baile, a sua festa de triunfo; e as estrelas de serena noite de Agosto, semelhantes a lâmpadas pendentes de abóbada profunda, alumiavam o sarau popular, as salas do seu folguedo, a praça e a encruzilhada. Era conjuntamente truanesco e terrível.

Na taberna de micer Folco (onde deixámos as personagens principais desta história, para inserir, talvez fora de lugar, o prólogo ou introdução a ela) as aclamações frenéticas dos populares tinham tornado indubitável que o “propoedor” para o ajuntamento do dia seguinte devia ser o mui avisado e sages mestre Fernão Vasques. Frei Roy era de todos os circunstantes o que mais parecia ter a peito esta escolha, e o petintal Airas Gil ajudava-o poderosamente com o ruído dos amplos pulmões dos galeotes de Alfama, contraídos como em voga arrancada, vitoriando o seu capitão. O alfaiate não pôde resistir, nem, porventura, tinha vontade disso, a tanta popularidade e, em pé sobre o escabelo, com a cabeça levemente inclinada para o peito, numa postura entre de resignação e de bem-aventurança, tremulava-lhe nos lábios semiabertos um sorriso que revelava uma parte dos mistérios do seu coração. Enfim, quando a grita começou a serenar, Fernão Vasques ergueu a cabeça e com aspecto grave deu sinal de que ainda pretendia falar.

Fez-se de novo silêncio.

– Seja, pois, como quereis – disse o alfaiate -, mas vede o grão risco a que me ponho por vós outros. Falarei a el-rei com liberdade portuguesa; proporei vosso agravo e a desonra e feio pecado da sua real senhoria: mas é necessário que vós todos quantos aí sois estejais de alcateia e ao romper da alva no alpendre de São Domingos. Dizem que a adúltera é mulher de grande coração e ousados pensamentos; em Lisboa estão muitos cavaleiros seus parentes e parciais. Besteiros deste concelho, que não vos esqueçam em casa vossas bestas e aljavas! Peoada de Lisboa, levai vossas ascumas! Os trons e engenhosos do castelo – acrescentou o alfaiate em voz mais baixa e hesitante – não vos apoquentarão, ainda que el-rei o quisesse, porque o alcaide-mor João Lourenço Bubal não é dos afeiçoados a Dona Leonor Teles. Santa Maria e Sant’Iago sejam convosco! Alcácer, alcácer pela arraia-miúda! A repousar, amigos!

– Alcácer, alcácer – respondeu a turbamulta.

– Morra a comborça! – gritou Airas Gil com voz de trovão.

– Morra a comborça! – repetiram os galeotes e as virtuosas matronas dos coromens de arrás e cintos pretos que assistiam àquele conclave.

– Olha, Airas, que São Martinho fica perto, e contam que Dna. Leonor tem ouvido subtil – disse Frei Roy ao petintal com um sorriso diabólico.

Dor de levadigas te consuma, echacorvos! – replicou o petintal. Quando eu quero que me ouçam é que falo alto. Alcácer por sua senhoria o bom rei D. Fernando! Deus o livre de Castela e de feitiços!

O petintal emendava a mão como podia. E entre morras e alcáceres; entre risadas e pragas; entre ameaças vãs e insultos inúteis, aquela vaga de povo contida na taberna de micer Folco espraiou-se pelas ruas, derivou pelas quelhas, vielas e becos, e embebeu-se pelas casinhas e choupanas que nessa época jaziam, não raro, deitadas junto às raízes dos palácios na velha e opulenta Lisboa.

Com os braços cruzados, o alfaiate contemplava aquela multidão, que diminuía ràpidamente, e cujo sussurro, alongando-se, era comparável ao gemido do tufão que passa de noite pelas sarças da campina. Ainda ele tinha os olhos fitos no portal por onde saíra o vulto indelineável chamado povo, e já ninguém aí estava, salvo os dois cavaleiros, que se tinham conservado imóveis na mesma postura que haviam tomado, e Frei Roy, que se estirara sobre um dos bufetes e já roncava e assobiava, como em sono profundo.

Os dois cavaleiros ergueram-se e descobriram os rostos: a um ainda a barba de homem não pungia nas faces; o outro, na alvura das melenas brancas, que trazia caídas sobre os ombros à moda de Castela, e no rosto sulcado de rugas certificava ser já bem larga a história da sua peregrinação na Terra.

O mancebo olhou para Fernão Vasques, que parecia absorto, e depois para o velho, com um gesto de impaciência. Este olhou também para ele e sorriu-se. Depois o ancião chamou o alfaiate em voz baixa, mas perceptível.

Este, como se caísse em terra da altura dos seus pensamentos, estremeceu e, saltando do escabelo, onde ainda se conservava em pé, encaminhou-se ràpidamente para os dois cavaleiros.

– Senhor infante, que vossa mercê em perdoe e o senhor Diogo Lopes Pacheco! À fé que, no meio deste arruído, quase me esquecera de que éreis aqui. Estais desenganados por vossos olhos de que posso responder pelo povo, e de que amanhã não faltarão em São Domingos?

– Na verdade – respondeu o mancebo – que tu governas mais nele que meu irmão, com ser rei! Veremos se amanhã te obedecem, como te obedeceram hoje.

– És um notável capitão – acrescentou Diogo Lopes, rindo e batendo no ombro do alfaiate.

– Se fosses capaz de reger assim em hoste uma bandeira de homens de armas, merecerias a alcaidaria de um castelo.

– Que só entregaria, no alto e no baixo, irado e pagado, de noite ou de dia, àquele que de mim tivesse preito e menagem.

– Bem dito! – interrompeu o velho Pacheco, no mesmo tom em que começara. – Se ta negarem, não será por não trazeres já bem estudadas as palavras do preito. Tem a certeza de que hás-de ir longe, Fernão Vasques; muito longe! Assim eu a tivera de que não me será preciso coser à ponta do punhal a boca de quem ousar dizer que o infante Dom Dinis e Diogo Lopes Pacheco cruzaram esta noite a porta da taberna do genovês Folco Taca.

Quando estas últimas palavras, proferidas lentamente, saíram dos lábios do que as proferia, os roncos e assobios do beguino que dormia foram mais rápidos e trémulos.

– Quem é aquele echacorvos? – prosseguiu Diogo Lopes, apontando para Frei Roy, com gesto de desconfiança.

– É um dos nossos – respondeu o alfaiate -, um dos que mais têm encarniçado a arraia-miúda contra a feiticeira adúltera. Na assuada desta tarde foi dos que mais gritaram defronte dos Paços de El-Rei. Por este respondo eu. Não ereis, senhor Diogo Lopes de lhe coser a boca à ponta de vosso punhal.

– Responde por ti, honrado capitão de arraia-miúda – replicou o velho cortesão. – Quem me responde por ele é o seu dormir profundo: quem me responderia por ele, se, acordando, nos visse aqui, seria este ferro que trago na cinta. Agora o que importa. Enquanto amanhã el-rei se demorar em São Domingos, um troço da arraia-miúda e besteiros há-de acometer o paço, e, ou do terreiro ou rompendo pelos aposentos interiores, é necessário que uma pedra perdida, um tiro em algum corredor escuro nos assegure que el-rei não pode deixar de atender às súplicas dos seus leais vassalos e dos cidadãos de Lisboa.

– Morta! – exclamou o infante, com um gesto de horror. – Não, não, Diogo Lopes; não ensanguenteis os paços de meu irmão, como…

– Como ensanguentei os Paços de Santa Clara – atalhou Pacheco -, dizei-o francamente; porque nem remorsos me ficaram cá dentro. Senhor infante, vós esquecestes-vos disso, porque eu posso e valho com el-rei de Castela! Senhor infante, a ambição tem que saltar muitas vezes por cima dos vestígios de sangue! Vós passaste avante e não vistes os do sangue de vossa mãe! Porque hesitareis, ao galgar os do sangue de Leonor Teles? Senhor, infante, quem sobre por sendas íngremes e por despenhadeiros tem a certeza de precipitar-se no fogo, se covardemente recua.

D. Dinis tinha-se tornado pálido como cera. Não respondeu nada: mas dos olhos rebentaram-lhe duas lágrimas.

Fernão Vasques escutou a prelecção política do velho matador de Dª Inês de Castro com religiosa atenção. E resolveu lá consigo não se deixar cair no fojo.

– Far-se-á como apontais – disse ele, falando com Diogo Lopes -, mas, se os homens de armas e besteiros de João Lourenço Bubal descerem do castelo…

– Não te disse, ainda há pouco, que João Lourenço ficaria quedo no meio da revolta? Podes estar sossegado, que não te certifiquei disso para animares o povo. E a realidade. Agora trata de dispor as coisas para que não seja um dia inútil o dia de amanhã.

Pegando então na mão do infante, o feroz Pacheco saiu da taberna e tomou com ele o caminho da alcáçova. Fernão Vasques ficou um pouco cismado: depois saiu, dirigindo-se para a Porta do Ferro e repetindo em voz baixa:

– não me precipitarei no fojo!

Passados alguns instantes de silêncio, Frei Roy levantou devagarinho a cabeça, sentou-se no bufete e pôs-se a escutar: depois saltou para o chão, apagou a lâmpada que ardia no meio da casa, abandonada por Folco Taca, logo que o povo tumultuàriamente a inundara, chegou à porta, escutou de novo alguns momentos, manso e manso encaminhou-se para a torre da Sé da banda do norte e, como um fantasma, desapareceu cosido com a negra e alta parede da catedral.

II

O Beguino

Quem hoje passa pela cadeia da cidade de Lisboa, edifício imundo, miserável, insalubre, que por si só bastara a servir de castigo a grandes crimes, ainda vê na extremidade dele umas ruínas, uns entulhos amontoados, que separa da rua uma parede de pouca altura, onde se abre uma janela gótica. Esta parede e esta janela são tudo o que resta dos antigos Paços de a par S. Martinho, igreja que também já desapareceu, sem deixar, sequer, por memória um pano de muro, uma fresta de outro tempo. O Limoneiro é um dos monumentos de Lisboa sobre que revoam mais tradições de remotas eras. Nenhuns paços dos nossos reis da primeira e da segunda dinastia foram mais vezes habitados por eles. Conhecidos sucessivamente pelos nomes de “Paços de El-Rei”, “Paços dos Infantes”, “Paços da Moeda”, “Paços do Limoeiro”, a sua história vai sumir-se nas trevas dos tempos. São da era mourisca? Fundaram-nos os primeiros reis portugueses? Ignoramo-lo. E que muito, se a origem de Santa Maria Maior, da venerando catedral de Lisboa, é um mistério! Se, transfigurada pelos terramotos, pelos incêndios e pelos cónegos, nem no seu arquivo queimado, nem nas suas rugas caiadas e douradas pode achar a certidão do seu nascimento e dos anos da sua vida! Como as da igreja, as ruínas da monarquia dormem em silencio à roda de nós, e, envolto nos seus eternos farrapos, o povo vive eterno em cima ou ao lado delas, e nem sequer indaga porque jazem aí!

Na memorável noite em que se passaram os sucessos narrados no capítulo antecedente, essa janela dos Paços de El-Rei era a única aberta em todo o vasto edifício, mas calada e escura, como todas as outras. Só, de quando em quando, quem para lá olhasse atento do meio do terreiro enxergaria o que quer que fosse, alvacento, que ora se chegava à janela, ora se retraía. Mas o silêncio que reinava naqueles sítios não era interrompido pelo menor ruído. De repente, um vulto chegou debaixo da janela e bateu devagarinho as palmas: a figura alvacenta chegou à janela, debruçou-se, disse algumas palavras em voz baixa, retirou-se, tornou a voltar e pendurou uma escada de corda que segurou por dentro. O vulto que chegara subiu ràpidamente, e ambos desapareceram através dos corredores e aposentos do paço.

Em um destes últimos, alumiado por tochas seguras por longos braços de ferro chumbados nas paredes, passeava um homem de meia idade e gentil presença. Os seus passos eram rápidos e incertos, e o seu aspecto carregado. De quando em quando, parava e escutava a uma porta, cujo reposteiro se meneava levemente; depois continuava a passear, parando, às vezes, com os braços cruzados e como entregue a cogitações dolorosas.

Por fim, o reposteiro ondeou de alto a baixo e franziu-se no meio; mão alva de mulher o segurava. Esta entrou, e após ela um homem alto e robusto, vestido de burel e cingido de cinto de esparto, de onde pendiam umas grossas camândulas. A dama atravessou vagarosamente a sala e foi sentar-se em um estrado de altura de palmo, que corria ao longo de uma das paredes do aposento. O homem que passeava sentou-se também, no único escabelo que ali havia. Frei Roy, que o leitor já terá conhecido, ficou ao pé da porta por onde entrara, com a cabeça baixa e em postura abeatada.

– Aproxima-te, beguino! – disse com voz trémula el-rei; porque era el-rei D. Fernando o homem que se sentara.

Frei Roy deu uns poucos passos para diante.

– Que há de novo? – perguntou el-rei.

– O povo cada vez está mais alvorotado e jura falar rijamente amanhã a vossa senhoria. Mas essa não é a pior nova que eu trago!

– Fala, fala, beguino! – acudiu el-rei, estendendo a mão convulsa para o echacorvos.

– É que amanhã, enquanto vossa senhoria estiver em São Domingos, o áco será acometido. Pretendem matar…

– Mentes, beguino! – gritou a dama, erguendo-se do estrado de um salto, semelhante a tigre descoberto pelos caçadores nos matagais da Ásia. – Mentes! Podem não me querer rainha: mas assassinar-me! Isso é impossível. Amo muito o povo de Lisboa; tenho-lhe feito as mercês que posso, não me há-de odiar assim de morte. Os fidalgos podem persuadi-lo a opor-se ao nosso casamento; mas nunca a pôr mãos violentas na pobre Leonor Teles.

– Prouvera a Deus que eu mentisse hoje. Seria a primeira vez na minha vida – replicou o echacorvos, com ar contrito. – Mas ouvi com meus ouvidos a ordem para o feito e a promessa da execução, haverá três credos, na taberna de Folco Taca.

– Miseráveis! – bradou, erguendo-se também, el-rei, a quem o risco da sua amante restituíra por um momento a energia. – Miseráveis! Querem sobre a cerviz o jugo de ferro de meu pai? Tê-lo-ão. Quem ousa ordenar tal coisa?

– Diogo Lopes Pacheco, do vosso conselho, o disse ao alfaiate Fernão Vasques, o coudel dos revoltossos, e vosso irmão D. Dinis estava, também, com eles – respondeu Frei Roy.

O beguino era o espia mais sincero e imperturbável de todo o mundo.

– Velho assassino! – exclamou D. Fernando -, cobriste de luto eterno o coração do pai: queres cobrir o do filho. E tu, Dinis, que eu amei tanto, também entre os meus inimigos! Leonor, que faremos para te salvar?! Aconselha-me tu, que quase que enlouqueci!

O pobre e irresoluto monarca cobriu o rosto com as mãos, arquejando violentamente. Dª Leonor, cujos olhos centelhantes, cujos lábios esbranquiçados revelavam mais ódio que terror, lançou-lhe um olhar de desprezo e, em tom de mofa, respondeu:

– Sim, senhor rei, na falta de vossos leais conselheiros, posso eu, triste mulher, dar-vos um bom conselho. Acordai vossos pajens, que vão pregar um poste à porta destes paços, e mandai-me amarrar a ele, para que o vosso bom povo de Lisboa possa despedaçar-me tranquilamente amanhã, sem profanar os vossos aposentos reais. Será mais uma grande mercê que lhe fareis em recompensa do seu amor à vossa pessoa, da sua obediência aos vossos mandados.

– Leonor, Leonor, não me fales assim, que me matas! – gritou D. Fernando deitando-se aos pés de Dª Leonor e abraçando-a pelos joelhos com um choro convulso. – Que te fiz eu para me tratares tão cruelmente?

– Dom Fernando, lembra-te bem do que te vou dizer! O povo ou se rege com a espada do cavaleiro, ou ele vem colocar a ascuma do peão sobre o trono real. Quem não sabe brandir o ferro cede; deixa-o reinar.

– Tens razão, Leonor! – disse D. Fernando, enxugando as lágrimas e alçando a fronte nobre e formosa, onde se pintava a indignação. – Serei filho de Dom Pedro, o Cruel; serei sucessor de meu pai. Eu mesmo vou ao alcáçar examinar os engenhos mais valentes que cubram o terreiro de São Martinho de pedras, de virotões e de cadáveres: os montantes e as bestas dos homens de armas e besteiros do meu alcaide-mor de Lisboa farão o resto. João Lourenço Bubal será fiel a seu rei. Se necessário for, com minhas próprias mãos ajudarei a pôr fogo à cidade, para que nem um revoltoso escape. Adeus, Leonor: conta que serás vingada.

D. Fernando voltou-se rápido para a porte do aposento. Frei Roy estava imóvel diante dele.

– João Lourenço Bubal – disse o espia, sem mudarde tom nem de gesto – é dos revoltosos. Ouvi-o da boca do próprio Diogo Lopes, que o certificou a Fernão Vasques. Os trons do alcácer estão desaparelhados, e a maior parte dos homens de armas e besteiros do alcaide-mor eram na taberna de Folco Taca os mais furiosos contra a que eles chamam…

– Cala-te, beguino – gritou el-rei, empurrando-o com força e procurando tapar-lhe a boca.

O echacorvos parou onde o impulso recebido o deixou parar e ficou outra fez imóvel diante de D. Fernando, a quem este último golpe lançava de novo na sua habitual perplexidade.

– … a adúltera – prosseguiu Frei Roy acabando a frase, porque ainda a devia, e era escrupuloso e pontual no desempenho do seu ministério.

– Beguino! – atalhou Dª Leonor, com voz trémula de raiva -, melhor fora que nunca essa palavra te houvesse passado pela boca; porque, talvez, um dia ela seja fatal para os que a tiverem proferido.

– Mas que faremos?! – murmurou el-rei com gesto de indizível agonia.

– Havia ainda há pouco três expedientes – respondeu Dª Leonor, recobrando aparente serenidade -, combater, ceder, fugir. O primeiro é já impossível; o segundo! … Porque não o aceitas, Fernando? Prestes estou para tudo. Não me verás mais, ainda que, longe de ti, por certo estalarei de dor. Cede à força: os teus vassalos o querem; qué-lo o teu povo. Esquece-te para sempre de mim!

– Esquecer-me de ti? Não te ver mais? Nunca! Obedecer à força? Quem há aí que ouse dizer ao rei de Portugal: “Rei de Portugal, obedece à força”? Os peões de Lisboa?! Porque sou manso na paz, não crêem que a minha espada no campo da batalha corte arneses, como a do melhor cavaleiro? Bons escudeiros e homens de armas da minha hoste, por onde andais derramados? Dormis por vossas honras e solares? O povo vos acordará, como me acordou a mim; bramirá, como os lobos da serra, ao redor de vossas moradas; saltar-vos-á no meio de vossos banquetes, por entre o ruído de vossos folgares. No ardor de vossos amores, dir-vos-á: “Desamai!” Ele ousa já dizê-lo a seu rei e senhor… Oh, desgraçado de mim, desgraçado de mim!

– Não queres, pois, deixar-me entregue à minha estrela? – disse Dª Leonor, com voz entre de choro e de ternura, abraçando pelo pescoço o pobre monarca e chegando a sua fronte suave e pálida às faces afogueadas de D. Fernando, que, numa espécie de delírio, olhava espantado para ela.

– Não, não! Viver contigo ou morrer contigo. Cairei do trono ou tu subirás a ele.

Um sorriso quase imperceptível se espraiou pelo rosto de Leonor Teles, que, recuando e tomando uma postura resoluta e ao mesmo tempo de resignação, prosseguiu com voz lenta, mas firme:

– Então resta o fugir.

– Fugir! – exclamou el-rei. E só esta palavra era mais expressiva que narração bem extensa dos atrozes martírios que o mal-aventurado curtia no coração irresoluto, mas generoso, com a ideia de um feito, vil e covarde em qualquer escudeiro, vilíssimo num rei de Portugal, em um neto de Afonso IV.

El-rei olhou para ela um momento. Era sereno o seu rosto angélico, semelhante ao de uma dessas virgens que se encontram nas iluminuras de antigos códices, o segredo de cujos toques, perdido no fim do século décimo quinto, a arte moderna a muito custo pôde fazer ressurgir. O mais esperto fisionomista dificultosamente adivinharia a negrura de alma que se escondia debaixo das puras e cândidas feições de Dª Leonor, se não uniam entre os sobrolhos, contraindo-se e deslizando-se ràpidamente como as vesículas peçonhentas das fauces de uma víbora.

– Seja, pois, assim! Fujamos – murmurou D. Fernando com o tom e gesto com que o supliciado daria do alto do patíbulo o perdão ao algoz.

Dª Leonor tirou do largo cinto com que apertava a airosa cintura uma bolsa de ouropel e atirou com ela aos pés do beguino, que, de mãos cruzadas sobre o peito e os olhos semiabertos cravados na abóboda do aposento, parecia extático e engolfado nos pensamentos sublimes do céu.

– Vinte dobras de Dom Pedro por teu soldo, beguino: vinte pelo teu silêncio. O resto da recompensa tê-lo-ás um dia, se a adúltera atravessar triunfadora o portal por onde vai sair fugitiva.

O rir afável de que estas palavras foram acompanhadas dizeram correr um calafrio pela medula espinal do echacorvos, cujas pernas vacilaram. Mas o contacto das quarenta dobras que uniu imediatamente ao peito debaixo do escapulário lhe restituiu o vigor natural.

El-rei havia-se sentado, quase desfalecido, no escabelo único do aposento, e o seu aspecto demudado infundia ao mesmo tempo terror e compaixão. Quando o beguino levantou a bolsa, D. Fernando fitou nele os olhos e estendeu a mão para o reposteiro, sem dizer palavra.

Frei Roy curvou a cabeça, cruzou de novo as mãos sobre o peito e, recuando até à porta, desapareceu no corredor escuro por onde entrara.

Apenas os passos lentos e pesados do echacorvos deixaram de soar, Dª Leonor encaminhou-se para uma janela que dava para um vasto terrado e afastou a cortina que servia durante o dia de mitigar a excessível luz do sol. A noite ia em meio do seu curso, como o indicava o mortiço das tochas, que mal alumiavam o aposento, e a Lua, já no minguante, começava a subir na abóbada do firmamento, mergulhando no seu clarão sereno o brilho esplêndido das estrelas. A janela estava aberta, e o escabelo de el-rei ficava próximo e fronteiro: o luar batia de chapa no rosto belo e triste de D. Fernando, que, embebido no seu amargurado cismar, parecia alheio ao que se passava à roda dele e esquecido de que lhe restavam poucas horas para poder levar a cabo a resolução que tomara. Leonor Teles, encostada ao mainel da janela, pôs-se a olhar atentamente. A cidade dormia, e apenas o ladro de algum cão cortava aquela espécie de zumbido que é como o respirar nocturno de uma grande povoação que repousa. Lá em baixo, uma faixa trémula, semelhante a uma ponta de luz, cortava oblìquamente o Tejo, de onde mais largo se curvava pela margem esquerda. Os mastros de milhares de navios, emparelhados com a cidade, desde Sacavém até o promontório onde campeava, fora dos arrabaldes, o Mosteiro de S. Francisco, formavam uma espécie de floresta lançada entre a cidade e a sua imensa baía. Desde o terrado para o qual dava a janela até o rio, o bairro dos judeus, pendurado pela encosta íngreme e fechado com traveses e cadeias nos topos das ruas, desenhava uma espécie de triângulo, cuja base assentava sobre o lanço oriental da muralha mourisca, e cujo vértice, voltado para ocidente, se coroava com a sinagoga, abrigada à sombra do vulto disforme da catedral. Pouco distante do terrado, entre o palácio e a judiaria, a claridade da Lua batia de chapa em um terreiro irregular, rodeado de mesquinhas e meio arruinadas casas, que pela maior parte pareciam desabitadas. No meio dele, o que quer que era se erguia semelhante ao arco de um portal romano. Parecia ser uma ruína, um fragmento de edifício da antiga Olisipo, que esquecera ali aos terremotos, às guerras e aos incêndios, e ao qual finalmente chegara a sua hora de desabafar, porque uma alta escada de mão estava encostada à verga que assentava sobre os dois pilares laterais e os unia, como se ali a tivessem porto para, em amanhecendo, os obreiros poderem subir acima e derribarem-no em terra.

Era para esse vulto que Dª Leonor se pusera a olhar atentamente.

Depois voltou o rosto para el-rei, que, com a cabeça baixa, os braços estendidos e as mãos encurvadas sobre os joelhos, parecia vergar sobre o peso da sua amargura: contemplou-o com um gesto de compaixão por alguns momentos e, estendendo para ele os braços, exclamou:

– Fernando!

Havia no tom com que foi proferida esta única palavra um mundo de amor e voluptuosidade; mas, no meio da brandura da voz de Leonor Teles, havia também uma corda áspera; alguma cousa do rugir do tigre.

El-rei deu um estremeção, como se pelos membros lhe houvera coado uma faísca eléctrica; ergueu-se, e atirou-se a chorar aos braços de Leonor Teles.

– Amanhã – disse ele com voz afogada – o rei mais desonrado da cristande serei eu: o cavaleiro mais vil das Espanhas será Dom Fernando de Portugal. Que me resta? Só o teu amor; mais nada. Porque não me pedem antes a coroa real, que para mim tem sido coroa de espinhos? Dera-a de boa vontade. Oh, Leonor, Leonor!, serias a mulher mais perversa, se um dia me atraiçoasses.

Um beijo da adúltera cortou as lástimas de el-rei. A formosura desta mulher tinha um toque divino à claridade da lua. D. Fernando, embriagado de amor, esqueceu-se de que poucas horas lhe restavam para fugir do seu povo enganado e ludibriado por ele.

– Fernando! – prosseguiu Dº Leonor -, jura-me ainda uma vez que serás sempre meu, como eu serei sempre tua.

Dizendo isto, afastou-o brandamente de si.

– Juro-to uma e mil vezes pela fé de leal cavaleiro que até hoje fui. Juro-to pelo céu que nos cobre. Juro-to pelos ossos de meu nobre e valente avô, que ali dorme junto do altar-mor da Sé, debaixo das bandeiras infiéis que conquistou no Salado. Juro-to por mais que tudo isso: juro-to pelo meu amor!

 

– Não me peças Lisboa, que essa sabe Deus se tornará a ser minha, rica, povoada e feliz como eu a tornei, ou se repousarei ainda a cabeça nestes paços de meus antepassados, passando por cima das ruínas dela! Não me peças Lisboa, que talvez amanhã deixe de um chamar seu rei: do resto de Portugal pede-me o que quiseres.

– Quero que me dês as minhas arras: quero o preço do meu corpo, conforme foro de Espanha.

– Vila Viçosa é alegre como um horto de flores, e Vila Viçosa dar-ta-ei eu. O Castela de Óbidos é forte e roqueiro, são numerosos e prestes para defesa os seus engenhos, e o Castelo de Óbidos será teu. Sintra pendura-se pela montanha entre lençóis de águas vivas, e respira o cheiro das ervas e flores que crescem à sombra das penedias: podes ter por tua a Sintra. Alenquer é rica no meio das suas vinhas e pomares, e Alenquer te chamará senhora.

– Guarda as tuas vilas, Dom Fernando, que eu não tas peço em dote; quero, apenas, uma promessa de coisa de bem pouca valia.

– De muita ou de pouca, não me importa! Dar-te-ei o que me pedires.

Dª Leonor estendeu a mão para a espécie de portada romana que se erguia solitária no meio do terreiro deserto.

– É ali que tu me darás o preço do meu copo, se um dia a cerviz da orgulhosa Lisboa se curvar debaixo do teu jogo real.

El-rei lançou um rápido volver de olhos para onde Leonor Teles tinha o braço estendido, mas recuou horrorizado. O vulto que negrejava no meio do terreiro era o patíbulo popular e peão: era a forca, tétrica, temerosa, maldita!

– Leonor, Leonor! – disse el-rei com som de voz cavo e débil -, porque vens misturar pensamentos de sangue com pensamentos de amor? Porque interpões um instrumento de morte e de afronta entre mim e ti? Porque preferes o fruto do cadafalso às vilas e castelos de que te faço senhora? Porque trocas a estola do clérigo que há-de unir-nos pelo baraço áspero do algoz?

– Rei de Portugal! – respondeu a mulher de João Lourenço da Cunha, com um brado de furor -, ainda me perguntas porque o faço? Tu nunca serás digno do ceptro de teu pai! Queres saber porque junto pensamentos de sangue a pensamentos de amor? É porque esses de quem eu o peço pediram também o meu sangue. Queres saber porque interponho entre mim e ti um instrumento de morte e de afronta? É porque o teu bom povo de Lisboa quis também interpor entre nós a morte e saciar-me de afrontas. Queres que te diga porque prefiro o fruto do cadafalso às vilas e castelos que me ofereces? É porque para os ânimos generosos não há vender vinganças por ouro. Vingança, rei de Portugal, te pede em dote a tua noiva! Jura-me que um dia os teus vassalos que me perseguem serão também perseguidos, e que essa vil plebe que cobre de injúrias e pragas o meu nome, porque te amo, o amaldiçoem porque levo os seus caudilhos ao patíbulo. Este é o preço do meu acorpo. Sem esse preço, a neta de Dom Ordonho de Leão nunca será mulher de Dom Fernando de Portugal.

E com um braço estendido para o lugar sem nome do suplício e com o outro curvado, como quem afastava de si el-rei, esta mulher vingativa era sublime de atrocidade.

– Tens razão, Leonor – disse por fim D. Fernando, depois de largo silêncio, em que se afectos inconstantes do seu carácter volúvel mudaram gradualmente. – Tens razão. A futura rainha de Portugal terá o seu desagravo: as línguas que te ofenderam calar-se-ão para sempre; os corações que te desejaram a morte deixarão de bater. No meu trono, até aqui de mansidão e bondade, assentar-se-á a crueza. Com Judas, o traidor, seja eu sepultado no Inferno, se faltar ao juramento que te faço de lavar em sangue a tua e a minha injúria.

A estas palavras, o aspecto severo de Dª Leonor Teles mudou-se em um sorrir de inexplicável doçura.

– Ah, como te hei-de amar sempre! – murmurou ela. E estas palavras caíam dos seus lábios meigos e suaves como o arrulhar de pomba amorosa. Um beijo ardente, que sussurou levado nas asas da brisa fresca da noite, selou esse pacto de ódio e de extermínio.

III

Um bulhão e uma agulha de alfaiate

O Sol, que havia mais de meia hora subira do Oriente, cingido da sua auréola da vermelhidão, no meio da atmosfera turva e acinzentada de um dia dos fins de Agosto, dava de chapa no rossio ou praça onde avultava o Mosteiro de S. Domingos, rodeado de hortas oriente, e pelo de Valverde, ao norte. Já muitos besteiros e peões armados de ascumas se derramavam ao longo da parede dos paços de Lançarote Pessanha fronteiros ao mosteiro, descendo uns por entre as vinhas de Almafala, outros do arrabalde da Pedreira ou bairro do Almirante, outros da banda da alcáçova, outros, enfim, desembocando das ruas estreitas e irregulares que iam dar à opulente e célebre Rua Nova. Homens e mulheres apinhavam-se, aos dez e aos doze, no meio da praça, e às bocas das ruas; falavam, meneavam-se, riam, chamavam-se uns aos outros. Às vezes, aquela mó de gente, cujo vulto engrossava de minuto para minuto, agitava-se como a superfície de um pego, passando o tufão. Incerta, vacilante, informe, sùbitamente se configurava, alinhava-se e, semelhante a triângulo enorme, a quadrela gigante desfechada de trom monstruoso, vibrava-se contra a vasta alpendrada do mosteiro, cujas portas ainda estavam fechadas. Aí hesitava, ondeava e retraía-se, como ressaltaria a folha cortadora de uma acha de armas quando não pudesse romper as portas chapeadas de forte castelo. Então aquela multidão tomava a forma de meia-luz, cujas pontas se encurvavam pelos lados de Valverde e da Mouraria e vinham topar uma com outra por baixo do bairro ladeirento da Pedreira, de onde, confundindo-se e irradiando-se de novo, se espalhavam pela vastidão do terreiro. O povo, que dorme às vezes por séculos, fora acometido de uma das suas raras insónias e vivia essa possante vida da praça pública, em que de ordinário é ridículo e feroz, mas em que não raro é sublime e terrível.

Era a manhã imediata à noite em que ocorreram os sucessos narrados antecedentemente. O povo preparava-se para uma luta moral com seu rei; mas não se descuidara de vir prestes para uma luta física, se D. Fernando quisesse apelas para esse último argumento. Era a primeira vez neste reinado que a arraia-miúda dava mostras da sua força e reivindicava o direito de dizer armada “não quero!” O elemento democrático erguia-se para influir activamente na monarquia; enxertava-se nela, como princípio político, a par da aristocracia, que com a manopla de ferro arrojava a plebe contra o trono, sem pensar que brevemente este, conhecendo assim a força popular, se valeria dela para esmagar aqueles que ora sopravam os ânimos para a revolta e davam nova existência ao vulgo.

A hora aprazada para a vinda de el-rei ainda não havia batido: mas o povo orgulhoso da importância que sùbitamente se lhe dera, embevecido na ideia de que obrigaria el-rei a quebrar os laços adulterinos que o uniam a Leonor Teles, não media o tempo pelo curso do Sol, mas sim pelo fervor da sua impaciência. Duas vezes se espalhava a voz de que D. Fernando chegara, e duas vezes o povo correra para o alpendre do mosteiro. As portas da igreja estavam, porém, fechadas, bem como a portaria e as estreitas e agudas frestas do mosteiro gótico que, formado apenas de um pavimento térreo e humilde, contrastava com a magnificência do templo, em cujas portadas profundas, sobre os colunelos pontiagudos que sustinham os fechos e chaves da abóbada, os animais monstruosos e híbridos, os centauros, os sátiros e os demónios, avultados na pedra dos capitéis por entre as folhagens de carvalho e de lódão, pareciam, com as visagens truanescas que nas faces mortas lhes imprimira o escultor, escarnecerem da cólera popular, que, lenta como os estos do oceano, começava a crescer e a trasbordar. Apenas, lá dentro, se ouviam de vez em quando as harmonias saudosas do órgão e do cantochão monótono dos frades, que ofereciam a Deus as preces matutinas. Era então que o povo escutava: e retraía-se arrastado pelas blasfêmias e pragas que saíam de mil bocas e que eram repelidas do santuário pelo sussuro dos cânticos que reboavam dentro da igreja, e que transudavam por todos os poros do gigante de pedra um murmúrio de paz, de resignação e de confiança em Deus.

O povo, porém, era como os homens robustos do génesis: era ímpio, porque era robusto.

O dia crescia, e crescia com ele a desconfiança. As notícias corriam encontradas: ora se dizia que el-rei cedia aos desejos dos seus vassalos e dos peões, e que viria anunciar ao povo a sua separação de Leonor Teles; ora, pelo contrário, se asseverava que ele era firme em sustentar a resolução contrária. Havia, até, quem asseverasse que na alcáçova e no terreiro de S. Martinho se começavam a ajuntar homens de armas e besteiros. A cólera popular crescia, porque a atiçava já o temor.

No meio de uma pilha de galeotes, carniceiros, pescadores, moleiros, lagareiros e alfagemas, dois homens altercavam violentamente. Eram Airas Gil e Frei Roy: objecto da disputa Fernão Vasques; arguente o petintal; defendente o beguino.

– Que não virá vos digo eu – gritava Airas Gil. – Disse-mo Garciordonez, o mercador de panos que mora ao cabo da Rua Nova, aos açougues, defronte das taracenas del-rei.

– Mentiu pela gorja, como um perro judeu – replicou Frei Roy. – Não era Fernão Vasques homem que faltasse a este auto, tendo-o a arraia-miúda elegido por seu propoedor.

– Medo ou dobras do paço podem tapar a boca aos mais ousados e fazê-los dormir até desoras – retrucou o petintal.

– Que fazem falar as dobras do paço, seu eu – tornou o beguino com riso sardónico, lembrando-se do que nessa noite passara -: medo sabeis vós que faz fugir; inveja sabemos nós todos que faz imaginar…

– Descaro e gargantoíce que faz mendigar – interrompeu Airas Gil, vermelho de cólera, cerrando os punhos e descaindo para o echacorvos como galé que vai aferrar outra em combate naval.

– Ecommunicabo vos – murmurou Frei Roy, fazendo-se prestes para resistir ao abalroar do petintal.

E o vulgacho que estava de roda ria e batia as palmas.

Nisto os gritos de alcácer!, alcácer!” reboaram para outro lado da praça: o povo correu para lá. Os dois campeadores voltaram-se: era o alfaiate.

Sem dizer palavra, o beguino olhou com gesto de profundo desprezo para Airas Gil e, tomando uma postura entre heróica e de inspirado, estendeu o braço e o índex para o lugar onde passava Fernão Vasques. Depois, partiu com a turbamulta que o rodeava, enquanto o petintal o seguia de longe lento e cabisbaixo.

O alfaiate, cercado de outros cabeças do tumulto da véspera, encaminhou-se para alpendrada de S. Domingos. Trazia vestida uma saia de valencina reforçada, calças de bifa, sapatos de pele de gamo, chapeirão de ingrês com fita de momperle e cinta de couro, tudo escuro, ao modo popular. Com passos firmes subiu os degraus do alpendre. Dali, em pé, com os braços cruzados, correu com os olhos a praça, onde entre o povo apinhado se fizera repentino silêncio. Depois tirando o chapeirão, cortejou a turbamulta para um e outro lado; os seus gestos e ademanes eram já os de um tribuno.

– Alcácer, alcácer pela arraia-miúda! Alcácer por el-rei Dom Fernando de Portugal, se desfizer nosso torto e sua vilta, senão!…

Esta exclamação de um alentado alfageme que estava pegado com a balaustrada do alpendre foi repetida em grita confusa por milhares de bocas.

De repente, do lado da Rua de Gileanes, sentiu-se um tropear de cavalgaduras, que parecia correrem à rédea solta. Todos os olhos se volveram para aquela banda: muitos rostos empalideceram.

Uma voz de terror girou pelo meio das turbas. “São homens de armas de el-rei!” Aquele oceano de cabeças humanas redemoinhou, a estas palavras, e começou a dividir-se como o mar Vermelho diante de Moisés. Num momento viu-se uma larga faixa esbranquiçada cortar aquela superfície móvel e escura: era ampla estrada que se abria por entre ela, desde a Rua de Gileanes até S. Domingos. As paredes dessa estrada adelgaçavam-se ràpidamente. Para as bandas da Mouraria e da Pedreira, os becos e encruzilhadas apinhavam-se de gente, e os reflexos dos ferros das ascumas populares, que erguidas cintilavam ao sol, começaram a descer e a sumir-se, como as luzinhas das bruxas em sítio brejoso aos primeiros assomos do alvorecer. Fernão Vasques olhou em redor de si: estava só. Descorou, mas ficou imóvel.

Entretanto, o tropear aproximava-se cada vez com mais alto ruído. Os besteiros do concelho postados ao longo dos Paços do Almirante eram, talvez, os únicos em quem o terror não fizera profunda impressão: alguns já haviam estendido sobre o braço da besta os virotes ervados e, revolvendo a polé, faziam encurvar o arco para o tiro. Os besteiros de garrucha tinham já o dente desta embebido na corda, prontos a desfechar ao primeiro refulgir dos montantes nus dos cavaleiros e escudeiros reais. Do resto do povo, os ousados eram os que recuavam; porque o maior número voltava as costas e internava-se pelas azinhagas dos hortos de Valverde e das vinhas de Almafala ou trepava pelas ruas escuras e mal-gradadas do bairro do Almirante.

Mas, no meio deste susto geral, aparecera um herói. Era Frei Roy. Ou fosse imprudente confiança no cargo oculto que lhe dera Dª Leonor, ou fosse robustez de ânimo, ou fosse, finalmente, a persuasão de que o hábito de beguino lhe serviria de broquel, longe de recuar ou titubear, correu para a quina da rua de onde rompia o ruído e, mirando pela aresta do ângulo um breve espaço, voltou-se para o povo e, curvando-se com as mãos nas ilhargas, desatou em estrondosas gargalhadas.

Tudo ficou pasmado; mas, vendo e ouvindo o rir descompassado do echacorvos, o povo começou a refluir para a praça. Aquelas risadas produziam mais ânimo e entusiasmo que os “quarenta séculos vos contemplam” de Napoleão na batalha das Pirâmides. Os amotinados recobraram num instante toda a anterior energia.

Esta cera tinha sido rapidíssima: todavia, ainda grande parte dos populares hesitava entre o ficar e o fugir, quando se reconheceu claramente a causa daquele temor que apertara por algum tempo todos os corações. Era a Corte que chegava.

Montados em mulas possantes, os oficiais da casa real, os ricos-homens, conselheiros e juízes do Desembargo vinham assistir ao auto solene em que da boca de el-rei a nação devia ouvir ou uma resolução conforme com os desejos tanto da arraia-miúda como dos senhores e cavaleiros, ou a confirmação de um casamento mal agourado por muitos nobres e por todos os burgueses, e condenado, de não duvidoso modo, por estes últimos. No meio das variadas cores dos trajos cortesões negrejavam as garnachas dos letrados e clérigos do paço, e entre o reduzir dos esplêndidos arreios das mulas alentadas e fogosas dos vassalos seculares, dos alcaides-mores e senhores viam-se rojar os gualdrapas dos mestres em leis e degredos, dos sabedores e letrados que constituíam o supremo tribunal da monarquia, a cúria ou desembargo de el-rei.

A numerosa cavalgada atravessou o terreiro por entre o povo apinhado. Em todos os rostos transluzia o receio acerca de qual seria o desfecho deste drama terrível e imenso, em que entravam representantes de todas as classes sociais.

Entre os membros daquela lustrosa companhia distingui-a por seu porte altivo o conde de Barcelos, D. João Afonso Telo, tio de Dª Leonor, a quem nos diplomas dessa época se dá por excelência o nome de “fiel conselheiro”. Quando os amores de el-rei com sua sobrinha começaram, ele fizera, sincera ou simuladamente, grandes diligências para desviar o monarca de levar avante os seus intentos. D. Fernando persistia, todavia, neles, e então o conde, juntamente com a infanta Dª Beatriz e com Dª Maria Teles, irmã de Dª Leonor, suscitara a ideia de a divorciar de João Lourenço da Cunha. O povo sabia isto e, posto que houvesse estendido a sua má vontade a todos os parentes de Leonor Teles, odiava principalmente o conde, como protector daqueles adúlteros amores. Foi, portanto, nele que se cravaram os olhos dos populares, que, tendo-se em poucas horas elevado até à altura do trono, ousavam, também, dar testemunho público do seu ódio contra o mais distinto membro da fidalguia.

– Velha raposa, em que te pese, não será a adúltera rainha da boa terra de Portugal! – gritava um carniceiro, voltando-se para uma velha que estava ao pé dele, mas olhando de través para o conde, que perpassava.

– Leal conselheiro de barreguices, por quanto vendeste a honra do compadre Lourenço? – perguntava um alfageme, fingindo falar com um vizinho, mas lançando também os olhos para D. João Afonso Telo.

– Que tendes vós com o lobo que empece ao lobo? – acudiu um lagareiro calvo e curvado debaixo do peso dos anos. – Deixai-os morder uns aos outros, que é sinal de Deys se amercear de nós.

– O que eles mereciam – interrompeu uma regateira – era serem atagantados com boas tiras de couro cru.

– E ela, tia Dordia? – acrescentou um ferreiro. – Conheceis vós a comborça? Às vezes a quisera eu: uma do alcaide no chumaço; outra do coitado nas costas dela!

– É costume, ergo direita a pena – notou um procurador, que gravemente contemplava aquele espectáculo e que até ali guardara silêncio.

Estas injúrias, que, como o fogo de um pelotão, se disparavam ao longo das extensas e fundas fileiras dos populares, iam ferir os ouvidos do conde de Barcelos, que, fingindo não lhes dar atenção, empalidecia e corava sucessivamente e mordia os beiços de cólera.

De quando em quando, o vociferar afrontoso da gentalha era afogado no ruído de risadas descompostas, mais insolentes cem vezes que as injúrias; porque no rir do vulgo há o que quer que seja tão cruel e insultuoso, que faz dar em terra o maior coração e o ânimo mais robusto.

Entre os parciais de Dª Leonor que vinham naquela comitiva viam-se, porém, muitos fidalgos e letrados que ou eram pessoalmente seus inimigos ou, pelo menos, desaprovavam alta e francamente a sua união com el-rei. Diogo Lopes Pacheco era o principal entre eles, e o povo, ao vê-lo passar, saudou-o com um murmúrio que foi como a recompensa do velho pelas desventuras da sua vida, desventuras que devera a um caso análogo, a morte de Dª Inês de Castro.

Quando os fidalgos, cavaleiros e letrados da casa e conselho de el-rei se apearam junto aos degraus do alpendre do mosteiro, o alfaiate, que viera misturar-se com o povo logo que desembocaram na praça, subiu após eles e esperou que se sentassem no extenso banco de castanho que corria ao longo da alpendrada. Depois voltou-se para a multidão apinhada em redor:

– Se el-rei ainda não é presente – disse em voz inteligível e firme – aí tendes para ouvir vossos agravamentos os senhores de seu conselho: porventura que eles poderão dar-vos resposta em nome de sua senhoria, e ele virá depois confirmar o seu dito.

– Senhor Fernão Vasques, sois o nossos propoedor: a vós toca falar – replicou um do povo.

– Assim o queremos! Assim o queremos! – bradou a turbamulta.

O alfaiate voltou-se então para os cortesãos, conselheiros e letrados do Desembargo de el-rei e disse:

– Senhores, a mim deram carrego estas gentes que aqui estão juntas de dizer algumas cousas a el-rei nosso senhor que entendem por sua honra e serviço; e porque é direito escrito que, sendo as partes principais presentes, o ofício de procurador deve cessar no que elas bem souberem dizer, vós outros que sois principais partes neste feito, e a que isto mais tange que a nós, devíeis dizer isto, e eu não: porém, não embargando que assim seja, eu direi aquilo de que me deram carrego, pois vós outros em elo não quereis pôr mão, mostrando que vos doeis pouco da honra e do serviço de el-rei…

– Cala-te, vilão! – bradou, erguendo-se, o conde de Barcelos, com voz afogada da cólera, que já não podia conter -, se não queres que seja eu quem te faça resfolgar sangue, em vez de injúrias, por essa boca sandia.

O velho Pacheco pôs-se também em pé, exclamando:

– Conde de Barcelos, lembrai-vos de que os burgueses têm por costume antigo o direito de dizerem aos reis seus agravamentos, de se queixarem e de os repreenderem. Nós somos menos que os reis.

Fernão Vasques tinha-se entretanto voltado para o povo apinhado ao redor do alpendre, com o rosto enfiado, mas era de indignação, e havia feito um sinal com a cabeça. No mesmo instante o povo abrira uma larga clareira, e quando os fidalgos e conselheiros, atentos para o conde e para Diogo Lopes, voltaram os olhos para o rossio, ao tropear da multidão, um semicírculo de mais de quinhentos besteiros e peões armados fazia uma grossa parede em frente dos populares.

Fernão Vasques encaminhou-se então para D. João Afonso Telo e, com a mão trémula de raiva, segurando-o por um braço, disse-lhe:

– Senhor conde, vós sois que doestais os honrados burgueses desta leal cidade em minha pessoas; porque eu nada fiz, senão repetir em voz alta o que cada um e todos me ordenaram repetisse. O que propus não é meu. Eis seus autores! Pelo que a mim toca, senhor conde, não receio vossas ameaças. Quando o nobre despe o gibão de ferro para vestir o de tela, não sei eu se este é mais forte que o do peão e se, também, a sua boca não pode golfar sangue, como a de um pobre vilão.

D. João forcejava por desasir-se do alfaiate, procurando levar a mão à cinta, onde tinha o punhal; mas Fernão Vasques era mais forçoso, e o conde já tinha entrado na idade em que costuma minguar a robustez do homem. Não pôde chegar com a mão ao cinto.

– Conde de Barcelos – prosseguiu o alfaiate, com um sorriso -, não recorrais a esse argumento; porque eu também estou habituado a lidar com ferros azerados, ainda que mais delgados e curtos que o vosso bulhão.

Estas últimas palavras, ditas em tom de escárnio, mal foram ouvidas: a grita na praça era já espantosa; ares, produziam aquele rouco e grande brado da fúria abismando-se por cavernas imensas.

Os fidalgos e letrados tinham rodeado os dois contendores: os parciais de Dé Leonor, o conde; os outros, cujo número era muito maior, o alfaiate. E tanto estes como aqueles trabalhavam em apaziguá-los, posto que todos os ânimos estivessem quase tão irritados como os dos dois contendores.

Finalmente, o conde cedeu. O aspecto da multidão, que se agitava furiosa, contribuiu, porventura, mais para isso que todas as razões e rogativas dos fidalgos e cavaleiros, atónitos com o espectáculos da ousadia popular: desta ousadia que, menoscabando as ameaças do primeiro entre os nobres, era mais incrível que a da véspera, a qual apenas se atrevera ao trono.

Que fazia, porém, o nosso beguino no meio destes prelúdios de uma eminente assuada? É o que o leitor verá no seguinte capítulo.

IV

Mil dobras pé-terra e trezentas barbudas

Mal Fernão Vasques travara do braço do conde de Barcelos, e a grita popular começara a atroar a praça, Frei Roy, escoando-se ao longo da parede do mosteiro, dobrara a quina que voltava para a Corredoura e, seguindo seu caminho por vielas torcidas e desertas, chegara à Porta do Ferro, de onde, atravessando o contíguo e mal-assombrado terreirinho que os raios do sol apenas alumiavam poucas horas do dia, embargados, ao nascer, pelos agigantados campanários da catedral e, ao declinar, pelos panos e torres da muralha mourisca, chegara esbaforido a S. Martinho. A porta do paço estava fechada, mas a da igreja estava aberta. Entrou. Ao lado direito uma escada de caracol descia da tribuna real para a capela-mor, e a tribuna comunicava com o palácio por um passadiço que atravessava a rua. O beguino olhou ao redor de si e escutou um momento: ninguém estava na igreja. Subindo ràpidamente a escada, Frei Roy atravessou o passadiço e encaminhou-se, sem hesitar no meio dos corredores e escadas interiores, para uma passagem escura. No fim dela havia uma porta fechada. O monge vagabundo parou e escutou de novo. Dentro altercavam três pessoas: Frei Roy bateu devagarinho três vezes, e pôs-se outra vez a escutar.

Ouviram-se uns passos lentos que se aproximavam da porta, e uma voz esganiçada e colérica perguntou:

– Quem está aí?

– Eu – respondeu o beguino.

– Quem é eu? – replicou a voz.

– Honrado Dom Judas, é Frei Roy Zambrana, indigno servo de Deus, que pretende falar a el-rei ou à mui excelente senhora Dona Leonor, para negócio de vulto.

– Abre, Dom Judas, abre! – disse outra voz, que pelo metal parecia feminina e que soou do lado oposto do aposento.

A porta rodou nos gonzos, e o echacorvos entrou.

Era o lugar onde Frei Roy se achava uma quadra pequena, alumiada escassamente por uma fresta esguia e engradada de grossos varões de ferro, a qual dava para uma espécie de saguão, ainda mais acanhado que o aposento. A abóbada deste era de pedra; de pedra as paredes e o pavimento: ao redor viam-se por único adereço muitas arcas chapeadas de ferro. O monge entrara na casa das arcas da Coroa – do “recábedo do regno”. As duas personagens que ali estavam, afora a que abrira a porta, eram D. Fernando e Dª Leonor. El-rei, de pé, curvado sobre uma das arcas, com a fronte firmada sobre o braço esquerdo, folheava um desconforme volume de folhas de pergaminho, cujas guardas eram duas alentadas tábuas de castanho, forradas exteriormente de couro cru de boi, ainda com pêlo. Dª Leonor, também em pé por detrás de el-rei, olhava atentamente para as páginas do livro. O que abrira a porta era o tesoureiro-mor, D. Judas, grande afeiçoado de Dª Leonor e valido de el-rei. O judeu apenas voltara a ponderosa chave, sem volver sequer os olhos para o recém-chegado, tornara imediatamente para o pé da arca a que el-rei estava encostado e prosseguira a veemente conversação cujos últimos ecos Frei Roy ouvira ao aproximar-se…

– Mil dobras pé-terra e trezentas barbudas são todo o dinheiro que o vosso fiel tesoureiro vos póde apurar neste momento, respigando, como a pobre Rute, no campo do vosso tesouro, ceifado e bem ceifado (aqui o judeu supirou) por aqueles que, talvez, menos leais vos sejam. Jurar-vos-ei sobre a toura, se o quereis, que não fica em meu poder uma pojeia.

El-rei não o escutava. Apenas Frei Roy entrara, Dª Leonor havia-se encaminhado para o echacorvos e, lançando-lhe um olhar escrutador, perguntava com visível ansiedade:

– Beguino, a que voltaste aqui?

– A cumprir com minha obrigação, apesar de vós me terdes dado ontem por quite e livre. Vim a dizer-vos que, a estas horas, talvez tenha já corrido sangue no rossio de Lisboa, e que é espantoso o tumulto dos populares contra os do conselho e contra os senhores e fidalgos da casa e valia de el-rei.

Fora à palavra “sangue” que D. Fernando havia cessado de atender à voz esganiçada do tesoureiro-mor, que continuava em tom de lamentação:

– Bem sabeis, senhor, que tenho empobrecido em vosso serviço e que hoje sou um dos mais mesquinhos e miseráveis entre os filhos de Israel. Aonde irei eu buscar dois mil maravedis velhos de Além-Douro, que são, em moeda vossa, trezentos e noventa mil soldos?

– Sangue, dizes tu, beguino? – exclamou el-rei. – Oh, que é muito! A quem se atreveram assim esses populares malditos?

– Eu próprio vi o nobre conde de Barcelos travar-se com Fernão Vasques; mui grande número de besteiros e peões armados de ascumas rodeavam já o alpendre de São Domingos, e os clamores de “morram os traidores” atroavam a praça.

– Que me dêem o meu arnês brunido, a minha capelina de camal e o meu estoque francês – gritou D. Fernando, escumando de cólera. – Eu irei a São Domingos e salvarei os ricos-homens de Portugal ou acabarei ao pé deles. Pajens!, onde está o meu donzel de armas?

– O teu donzei de armas, rei Dom Fernando – interrompeu com voz pausada e firme Dª Leonor -, segue com os outros pajens caminho de Santarém, montado no teu cavalo de batalha. Aqui, só tens a mula do teu corpo para seguires jornada.

– Mas o conde de Barcelos! O meu leal conselheiro, deixá-lo-ei despedaçar pelos peões desta cidade abominável? Lembra-te de que é teu tio; que foi o teu protector, quando o braço de Dom Fernando ainda se não erguera para te coroar rainha.

– Rei de Portugal, és tu que deves lembrar-te dele, quando o dia da vingança chegar. Então cumprirá que os traidores e vis te vejam montado no teu ginete de guerra. Hoje não podes senão deixar entregue à sua sorte o nobre Dom João Afonso e os senhores que são com ele; mas não te esqueça que, se o seu sangue correr, todo o sangue que derramares para o vingar será pouco, como serão poucas todas as lágrimas que eu verterei sem consolação sobre os seus veneráveis restos. Combateres? Ajudado por quem, numa cidade revolta? Os homens de armas do teu castelo quebraram seu preito e tumultuam na praça: muitos de teus ricos-homens estão conjurados contra ti: teu próprio irmão o está. Partir!, partir! Há quantas horas sabes tu que a última esperança está no partir breve? Porque, depois de tantas hesitações, ainda hesitar uma vez? Asseguremos ao menos a vingança, se não pudermos salvar aqueles que, leais a seu senhor, se foram expor à fúria da vilanagem para esconder nossa fuga… fuga; que é o seu nome!

O furor e o despeito revelavam-se nas faces e nos lábios esbranquiçados da adúltera, e a aflição e o temor comprimidos atraiçoavam-se numa lágrima que lhe rolou insensìvelmente dos olhos. Era uma das raríssimas que derramara na sua vida.

El-rei tinha escutado imóvel. Desacostumado de ter vontade própria, desde que (como dizia o povo) esta mulher o enfeitiçara, ainda mais uma vez cedeu da sua resolução, se não de homem cordato, ao menos de valoroso, e respondeu em voz sumida:

– Partamos. E seja feita a vontade de Deus!

– Ámen! – murmurou o echacorvos.

– Beguino – interrompeu Dª Leonor, voltado-se para Frei Roy -, corre já no rossio de São Domingos e diz em voz bem alta aos populares amotinados que me viste partir com el-rei caminho de Santarém. Talvez assim o conde seja salvo, porque a fúria desses vis sandeus se voltará contra mim. Dize-o, que dirás a verdade: quando lá houveres chegado o meu palafrém terá transposto as Prtas da Cruz. Guardai-vos, mesquinhos, que ele a torne a passar com sua dona. Echacorvos!, esse dia será aquele em que a “adúltera” pague todas as suas dívidas.

Frei Roy sentiu pela medula dorsal o mesmo calafrio que sentira na noite antecedente; porque o olhar que Leonor Teles cravou nele era diagólico, e a palavra “adúltera”, proferida por ela, soava como um dobrar de campa e vinha como envolta num hálito de sepulcro: o beguino arrependeu-se, desta vez mui sèriamente, de ter sido tão miúdo e exacto na “parte oficial”, que apresentara na véspera. Calou-se, todavia, e saiu com o seu ademã do costume, cabeça baixa e mãos cruzadas no peito.

Os três ficaram outra vez sós.

– Dom Judas, meu bom Dom Judas – disse el-rei com gesto de aflição -, não entendo estas embrulhadas letras mouriscas da tua aritmética. Estou certo de que não deves ao tesouro real uma única mealha e de que nas arcas do haver não existe senão o que tu dizes: mas, decerto, não queres que um rei de Portugal caminhe por seu reino como romeiro mendigo. Ao menos os dois mil maravedis de ouro…

– Ai – suspirou o tesoureiro-mor -, juro a vossa real senhoria que me é impossível achar agora outra quantia maior que a de mil dobras pé-terra e trezentas barbudas.

– Fernando – atalhou Leonor Teles -, ordena aos moços do monte que aí ficaram que enfreiem as mulas: devemos partir já. É tão meu afeiçoado Dom Judas que, com duas palavras, eu obterei o que tu não pudeste obter com tantas rogativas.

Ela sorriu alternativamente com um sorriso angélico para el-rei e para o tesoureiro-mor. D. Fernando obedeceu e, alevantando o reposteiro que encobria uma porta fronteira àquela por onde entrara o beguino, desapareceu. O tesoureiro ia a falar; mas ficou com a boca semiaberta, o rosto pálido e como petrificado, vendo-se a sós com Dª Leonor. Era que já a conhecia havia largos tempos.

– Dom Judas – disse esta em tom mavioso -, tu hás-de fazer serviço a el-rei para esta jornada. Darás os dois mil maravedis velhos.

– Não posso! – respondeu D. Judas com voz trémula e afogada.

– Judeu! – replicou Dª Leonor, apontando para um cofre pequeno que estava no canto mais escuro do aposento, coberto de três altos de pó -, o que está naquela arca?

O tesoureiro-mor, depois de hesitar por momentos, balbuciou estas palavras:

– Nada… ou, a falar verdade… quase nada. Bem sabeis que, dantes, guardava ali algumas mealhas que me sobejavam da minha quantia; mas há muito que nem essas poucas mealhas me restam.

– Vejamos, todavia – tornou Dª Leonor, cujo aspecto se carregava.

– Misericórdia! – bradou D. Judas com indizível agonia. Mas, reportando-se, por um destes arrojos que os grandes perigos inspiram, procurou disfarçar o seu susto, continuando com riso contrafeito:

– Misericórdia, digo; porque fora mais fácil achar entre os amotinados do rossio um homem leal a seu rei, do que eu lembrar-me agora do lugar onde terei a chave de uma arca há tanto tempo inútil e vazia.

– Perro infiel! Eu te vou recordar quem pode dizer onde a havemos de achar.

– Estais hoje, mui excelente senhora, merencória e irosa – replicou o tesoureiro-mor, trabalhando por dar às suas palavras o tom da galantaria, mas, visìvelmente, cada vez mais enfiado e trémulo. – Assim chamais perro infiel ao vosso leal servidor, por causa de uma chave inútil que se perdeu? Todavia, dizei quem sabe dela, que eu a irei procurar.

– Generoso e leal tesoureiro! – interrompeu Dª Leonor, imitando o tom das palavras do judeu, como quem gracejava -, não te dês a esse trabalho, por tua vida. Quem pode fazê-la aparecer é um velho cão descrido que mora na comuna de Santarém. Eu sei de um remédio que lhe restituirá à língua a presteza de uma língua de mancebo de vinte anos. O seu nome é Issachar. Conhece-lo?

– Alta e poderosa senhora, vós falais de meu pobre pai! – respondeu o tesoureiro-mor, redobrando-lhe a palidez. – Mas tratemos agora do que importa. Com mil e quinhentos dobras pé-terra e trezentas barbudas, que eu disse a meu senhor el-rei estarem prestes…

Dª Leonor lançou para o judeu um olhar de escárnio e prosseguiu:

– Do que importa é que eu trato. Sabes tu, meu querido Dom Judas, que, sejam as tuas dobras mil ou quinhentas, amanhã, a estas horas, eu Dona Leonor Teles, a rainha de Portugal. estarei em Santarém? Ouviste já dizer que, em não sei qual das torres do alcácer, há um excelente potro, capaz de desconjuntar num instante os membros do mais robusto vilão? Veio-me agora à ideia de que o velho Issachar, amarrado a ele, deve ser gracioso; porque, tendo vivido muito, constrangido a falar, há-de contar cousas incríveis, quanto mais dizer onde está uma chave cujo paradouro ele não pode ignorar. Não achas tu, também, que é folgança e desporto digno de qualquer rainha o ver como estouram os ossos carunchosos de um perro de noventa anos?

Um suor fio manou da fronte de D. Judas, cujas pernas vacilantes se esquivavam a sustê-lo. Quando Dª Leonor acabou de fazer as suas atrozes perguntas o judeu tinha caído de joelhos aos pés dela.

– Por mercê, senhora – exclamou ele, em transe horroroso de angústia -, mandai-me açoutar como o mais vil servo mouro: mandai-me rasgar as carnes com os mais atrozes tormentos; mas perdoai a meu velho pai, que não tem culpa da pobreza de seu filho. Se eu tivera ou pudera alcançar mais que as duas mil dobras e as quinhentas barbudas que ofereci a meu senhor el-rei…

– Judeu atalhou Dª Leonor -, tu deves saber três cousas: a primeira é que os tratos do potro são intoleráveis; a segunda é que eu costumo cumprir as minhas promessas; a terceira é que, se, neste momento de aperto, eu teu pudesse aplicar o remédio, não o guardaria para a ossada bolorente de um lebréu desdentado.

– Vendido cem vezes – prosseguiu o tesoureiro-mor, lavado em lágrimas e procurando abraçá-la pelos joelhos – eu não poderia apresentar neste momento mais que a soma já dita de duas mil e quinhentas dobras e quinhentas barbudas, ainda que vossa mercê me mandasse assar vivo.

– És um louco, Dom Judas! – interrompeu Dª Leonor, afastando de si o judeu, com um gesto de brandura. – Por uma miséria de pouco mais de quinhentos pés-terras, consentirás que Issachar, que teu pai, honrado velho!, pragueje, nas ânsias do potro, contra o Deus de Abraão, de Jacob e de Moisés?

O tesoureiro-mor conservou-se por alguns momentos calado e na postura em que estava. Depois, passando o braço de revés pelos olhos, enxugou as lágrimas e ergueu-se. A resolução que tomara era a de um desesperado que vai suicidar-se.

– Aqui estarão, senhora – murmurou ele -, os dois mil maravedis quando os quiserdes. Procurarei obtê-los; mas ficarei perdido. Agora podeis dar ordem à vossa partida.

– Adeus, meu mui honrado Dom Judas – disse Dª Leonor, sorrindo. – Não perderás nada em ter cedido aos meus rogos.

Dito isto, saiu pela mesma porta por onde saída el-rei.

O judeu estendeu os braços, com os punhos cerrados, para o reposteiro, que ainda ondeava, e levou-os depois à cabeça, de onde trouxe uma boa porção de melenas grisalhas. Feito isto, tirou da aljubeta uma chave, abriu o cofre pequeno e pulverulento, sacou para fora um saquitel pesado, selado e numerado, e os dois mil maravedis rolaram sobre o grande livro, que ainda estava aberto sobre uma das arcas. Contou-os quatro vezes, empilhou-os aos centos e, como se as forças se khe tivessem exaurido no espantoso combate que se passava na sua alma, atirou-se de bruços sobre a pequena arca e, abraçado com ela, desatou a chorar.

Meu pobre tesouro, junto com tanto trabalho! – exclamou por fim, entre soluços. – Guardei-te neste cofre com medo de te ver roubado, e os salteadores vim encontrá-los aqui! Mas que se livrem de eu tornar a receber os direitos reais das mãos dos mordomos. Meus ricos dois mil maravedis de bom ouro, não voltareis sòzinhos quando vos tornardes a ajuntar com os vossos abandonados companheiros!

Esta ideia pareceu consolar de alguma modo D. Judas. Levantou-se, tornou a contar os dois mil maravedis: desconfiou de que havia engano, e que eram dois mil e um: tornou-os a contar, e, quando el-rei entrou no aposento, já prestes para cavalgar, tinha o bom do judeu obtido a certeza de que não dava uma pojeia de mais da soma que lhe fora requerida em nome do potro da torre de Santarém.

– Oh – exclamou el-rei, lançando os olhos para cima do desalmado fólio, sobre cujas páginas amareladas estava empilhado o dinheiro -, temos os dois mil maravedis?!

– Saiba vossa real senhoria que, felizmente, tinha em meu poder uma soma pertencente a Jeroboão Abarbanel, o mercador da Porta do Mar, soma de que não me lembrava: ao vasculhar as arcas, dei com ela; a quantia está completa, e o honrado mercador não levará, por certo, mais de cinco por cento ao mês, enquanto os ovençais de vossa senhoria não vierem entregar no tesouro o produto dos direitos reais vencidos. Então pagar-lhe-ei, até à última mealha, a quantia e os seus lucros, se vossa senhoria não ordena o contrário.

– Faze o que entenderes, Dom Judas – respondeu el-rei, que não o ouvira, atento a meter numa ampla bolsa de argempel, que trazia pendente do cinto, os dois mil maravedis. – Tudo fio de ti, honrado e leal servidor.

E, recolhendo os maravedis, saiu. O judeu ficou só.

– No Inferno ardas tu, com Datã, Coré e Abirão, maldito nazareno!,,, – murmurou ele. – Porém não antes de eu haver colhido os dois… quero dizer, os três mil e duzentos maravedis que me tiraste com tanta consciência quanta pode ter a alma tisnada de um cristão.

Feita esta jaculatória ao Deus de Israel, D. Judas aferrolhou interiormente a porta do reposteiro, atravessou o aposento, saiu pela porta fronteira, que também aferrolhou, e a bulha dos seus passos, que se alongavam, soou através dos corredores por onde passara Frei Roy, até que, por aquela parte do palácio, tudo caiu em completo silêncio.

V

Mestre Bartolomeu Chambão

Frei Roy, saindo da casa das arcas, atravessara os corredores vizinhos: mas, em vez de seguir o que dava para o passadiço de S. Martinho, tomara por uma escadinha escura aberta no topo da estreita passagem anterior a esse passadiço. Esta escadinha descia para o átrio do paço. O beguino, habituado, pelo seu ministério, a entrar na morada real às horas mortas e a sair nas menos frequentadas, sabia por diuturna experiência que a porta principal devia estar aberta, mas ainda erma, ao mesmo tempo que a igreja, por onde entrara, já começaria a povoar-se de fiéis, porque, como é fácil de supor, as igrejas eram naquela época mais frequentadas do que hoje. Desceu, pois, com passo firme, resolvido a encaminhar-se ao rossio e a espalhar entre os amotinados a notícia da partida de el-rei.

Mas embargou-lhe os passos dificuldade imprevista. Ou fosse que os acontecimentos da véspera obrigassem a maiores cautelas, não havendo ainda então exército permanente, nem guardas pagas para defensão da pessoa real, cuja melhor protecção estava na própria espada, ou fosse por qualquer outro motivo, a porta ainda se não abrira. O beguino hesitou sobre se devia retroceder para sair pela igreja, se esperar. As considerações que o tinham movido a seguir este caminho obrigaram-no a ficar. Metido no estreito e escuro vão da escada, o echacorvos assemelhava-se, envolto nas suas roupas de burel e reluzindo-lhe os olhos à meia luz que dava o pátio interior, a um moderno funcionário, que hoje, nesses mesmos paços e em desvão igual, talvez no mesmo sítio, mostra aos que entram o rosto banhado na hediondez da sua alma, esperando que a vindicta pública o convide a algum banquete de carne humana, e, no esperar atroz, rodeia com as garras os ferros do seu covil, como o tigre cativo. O espia era ali, por assim dizer, uma “pre-existência”, uma “harmonia preestabelecida” do algoz.

Passara obra de meia hora, e o beguino começava a impacientar-se mui sèriamente quando sentiu pés de cavalgadura no pátio interior do edifício. Daí a pouco, um donzel, trazendo na mão uma desconforme chave e as rédeas de valente mula enfiadas no braço, chegou à porta e começou a abri-la. Era um dos donzéis de el-rei. Costumado a disfarçar a sua frequente entrada no paço sob a capa da mendicidade, e habituado a estender a mão à espera de alguns soldos que devotamente lhe atiravam senhores, cavaleiros e escudeiros, ao que ele retribuia com alonga lenda das suas orações em aleijado latim. Frei Roy era aceito a quase todos os moradores da casa de el-rei, que respeitavam a sua aparente santidade. Por isso, saindo do seu desvão, encaminhou-se para a porta.

A madre Santa Maria vos guarde de mau olhado, de feitiços e de ligamentos – disse ele, chegando-se ao donzel e fazendo sobressair esta última palavra.

– Vós aqui, Frei Rou, por estas horas? – replicou o donzel, voltando-se admirado.

– Que quereis! – tornou o beguino. – Quando ontem os malditos burgueses acometeram os paços reais com a sua grita e revolta, estava eu aqui. Ai que medo tive! Escondi-me naquela desvão, e quando se fecharam as portas achei-me encurralado cá dentro, como um emparedado em seu nicho. A minha profissão de paz e de religião não me consentia passar por meio de homens possuídos do espírito de cólera e inspirados por Belzebu, nem o susto me deixava ânimo desafogado para ir roçar o burel do meu santo hábito pelos trajos empestados dos filhos de Belial. Também a humildade e mortificação cristã se opunham a que eu subisse a pedir gasalhado a algum de vós outros, os moradores da casa de nosso senhor el-rei. Assim, louvando a Deus por me concedor uma noite de padecimento, ali me deixei ficar sobre as lajes húmidas, sobre as duras e agudas aresas dos degraus daquela escada. Agora, que a revolta é finda, consolado com as dores que me traspassam os ossos e confiado na providência de Jesus Cristo, vou-me ao meu giro diário, para ver se obtenho da caridade dos devotos a pitança usual com que possa matar a foma de vinte e quatro horas, pela qual dou louvores ao justo juiz, que reina eternamente nos altos céus.

O beguino revirou benignamente os olhos e fez uma visagem entre aflita e resignada, levando ao mesmo tempo a mão ao joelho, como se ali sentisse dor agudíssima.

– Venerável Frei Roy! – atalhou o donzel, com as lágrimas nos olhos -, se tivésseis procurado o aposento dos donzéis, nós vos daríamos, ao menos, um almadraque para repousar e repartiríamos convosco da nossa ceia. Mas o mal está feito, e o pior é que para hoje não vos posso oferecer abrigo. Vós credes, santo homem que a revolta é finda, e nunca ela esteve mais acesa. Sua senhoria vai partir já da cidade…

– Santa Maria vale! Santo nome de Jesus! Acorrei-nos, Virgem bendita! – interrompeu Frei Roy. – Pois os populares teimam em sua assuada, e el-rei deixa-nos aos coitados de nós, humildes religiosos e cidadãos pacíficos, entregues ao furor dos peões?

– E que remédio, bom Frei Roy?! – replicou tristemente o donzel. – Sem cavaleiros, escudeiros e besteiros não se faz guerra, nem se desfazem assuadas, e nada disto tem el-rei. Agora vou eu ao rossio de São Domingos avisar os senhores do conselho, os privados e fidalgos que lá estão, que sigam caminho de Santarém, sob pena de incorrerem em caso de traição, se ficarem em Lisboa: por sinal que el-rei me recomendou procurasse avisar primeiro que ninguém sua mercê o infante Dom Dinis.

– No rossio de São Domingos, dizeis vós? – tornou o beguino, arregalando os olhos. – Confesso que vos não entendo.

Durante este diálogo o donzel tinha acabado de destrancar a porta do paço, cavalgado na mula que trazia a rédea e saído ao terreiro seguido de Frei Roy, que coxeava, estorcia-se e suspirava dolorosamente de quando em quando. Passo a passo e sofreando a mula, caminho da Sé, o pajem narrou ao beguino todas as particularidades sucedidas aquela manhã, as quais Frei Roy sabia melhor do que ele. Chegados defronte dos Paços do Concelho, o pajem tomou pelo sopé da alcáçova e Frei Roy pela Porta do Ferro não sem terem primeiro saído da bolsa do donzel para a manga do beguino alguns pilartes, e da boca deste para os ouvidos daquele alguns latinórios pios devidamente escorchados.

Apenas passara o largo da Sé e transpusera a velha e soturna Porta do Ferro, Frei Roy tinha-se achado perfeitamente são do seu violento reumatismo. Ligeiro como galgo, desceu por entre as antigas terecenas reais, e em menos de três credos estava no pelourinho. Aí viu cousa que o fez parar.

Um homem vestido de valencina, e coberta a cabeça com um grande feltro, arengava a um troço de besteiros e peões armados de lanças ou ascumas, de almárcovas ou cutelos: tinha nas mãos um desconforme montante e na cinta uma espada curta. A turba ora o escutava atentamente, ora prorrompia em gritos confusos e estrondosos. Frei Roy chegou-se. O homem do feltro amplo era o mestre tanoeiro Bartolomeu Chambão, que, entusiasmado, prosseguia o seu veemente discurso, sem reparar no beguino:

– Já vo-lo disse: daqui ninguém bole pé antes de el-rei nosso senhor sair para São Domingos. Nada de bulha fora de sazão, que lá estão os esculcas. Daremos mostra ao poço quando aí for só a adúltera. Se, como ontem, nos fecharem as portas, isso é outro caso. É preciso que isto se desfaça. A cobra peçonhenta deve sair da toca. Não digo que então não seja possível esmargar-se-lhe a cabeça… Num brandir de ascuma… Mas cautela, não haja sangue!… Pelo menos de inocentes… Leais e esforçados cidadãos desta mui leal cida… Safa, bruto!

Esta peroração inesperada com que mestre Bartolomeu interrompera o seu discurso, que se ia elevar ao ápice da eloquência, procedera de lhe ter descido a grossa e espaçosa mão do echacorvos sobre o ombro, que lhe vergara, como se houvessem descarregado em cima dele uma aduela de cuba. A Frei Roy ocorrera uma ideia abençoada, a de comunicar a mestre Bartolomeu a nova que Dª Leonor lhe recomendara espalhasse entre os amotinados; a nova da sua partida de Lisboa com el-rei. O mendicante sabia que o tanoeiro era de bofes lavados, e que, dentro de meia hora não só a ser visto no rossio pelo donzel, de quem naquele instante se apartara, mas também a achar-se envolvido em qualquer desordem que semelhante notícia pudesse produzir, atenta a irritação dos ânimos. Além disso, a lembrança do arrepio dorsal que as últimas palavras de Dª Leonor lhe tinham causado fazia-lhe quase desejar que o tanoeiro, encarregado (segundo percebera do fim da sua arenga) da comissão que, na taberna de Folco Taca, Diogo Lopes incumbira a Fernão Vasques, pudesse ainda desempenhá-la, atalhando a fuga de Dª Leonor. Estas considerações, que lhe haviam passado ràpidamente pelo espírito, e o ver que mestre Bartolomeu não levava jeito de concluir moveram-no a falar ao tanoeiro, que só o sentira quando ele lhe descarregara sobre o ombro a ponderosa, mas amigável, palmada.

– Com mil e quinhentos satanases! – exclamou mestre Bartolomeu, voltando-se e vendo ao pé de si o beguino. – Sabia que a mão da Santa Madre Igreja era pesada; mas não pensava que o fosse tanto! Que me quereis, Frei Roy?

– Dizer-vos que podeis mandar sair vossos esculcas de sua atalaia; porque poderiam chegar a curtir o Inverno aí, antes de verem el-rei chegar e passar para São Domingos.

– Frei Roy – replicou o tanoeiro, fazendo-se vermelho de cólera -, para interromper-me com uma de vossas bufonarias, não valia a pena de me aleijardes este ombro!

– Tomai como quiserdes as minhas palavras; chamai-me o que vos aprouver, bufão ou mentiroso, mas a verdade é que não será hoje que os populares falarão com el-rei.

– Pois quê, morreu dos feitiços da adúltera ou tornou-o invisível algum encantador seu amigo?!

– Nem uma cousa, nem outra: mas, com estes olhos de grande pecador (aqui o echacorvos fez o gesto habitual de cruzar as mãos sobre o peito) eu o vi sair para a banda da Porta da Cruz…

– Frei Roy, olhai que estes honrados cidadãos vos escutam e que o auto é mui grave para gastar truanices.

– Já disse, mestre Bartolomeu, que falo verdade. Pelo bento cercilho do santo padre vos juro que, hoje, el-rei não dormirá em Lisboa, segundo o jeito que lhe vejo. Ele cavalgava uma possante mula de caminho; noutra ia uma dona coberta com um longo véu: seguiam-no donzéis, falcoeiros e moços de monte. Ao passar, ainda lhe ouvi estas palavras: Olhai aqueles vilãos traidores como se juntavam: certamente prender-me quiseram, se lá fora!” Não pude perceber mais nada. Que mais, porém, é preciso? Deixastes fugir a preia: agora catai-lhe o rasto.

– Traidor é ele, que nos há mentido, como um pagão! – bradou o tanoeiro, sopesando o montante. – Mas que se guarde de outra vez trazer a Lisboa a adúltera! Rainha ou barregã, arrancar-lhe-emos os olhos. A arraia-miúda foi escarnida; mas não o será em vão. Que dizeis vós outros, honrados burgueses?

– Escarnidos, escarnidos! – respondeu com grande grito o tropel. – Mas, à fé, que nunca a adúltera será rainha de Portugal. Morra a comborça!

E no meio do alarido, as pontas das lanças e os largos ferros das almárcovas agitadas nos ares cintilavam aos raios do sol oriental, como vasto brasido.

– A São Domingos! – gritou mestre Bartolomeu. – Vamos, rapazes: já que não fazemos aqui nada, ao menos que o povo não seja por mais tempo burlado!

E, pondo o montante às costas, mestre Bartolomeu tomou por uma das ruas que davam para a banda de Frei Roy, que procurava retê-lo, ponderando que ainda poderia alcançar el-rei e fazê-lo retroceder. O tanoeiro, porém, não tinha valor para afrontar-se face a face com D. Fernando, e por isso fingiu não ouvir o beguino, que dentro de alguns minutos se achou só no meio do terreiro calado e deserto.

Entretanto, junto a S. Domingos, se bem que a rixa começada entre os nobres partidários de Dª Leonor e Fernão Vasques se houvesse desvanecido, a agitação dos populares, cujo número crescia contìnuamente, não tinha diminuído. Encostado a um dos pilares do alpendre, o alfaiate, ora lançava os olhos de revés para os senhores da Corte e conselho, que, esperando por el-rei, passeavam de um para outro lado, ora os espraiava por aquele mar de vultos humanos, que ele sabia poder agitar ou tornar imóveis com uma palavra ou com um simples aceno. Semelhante à hora que precede a procela, em que apenas se vêem correr na atmosfera abafada os castelos encontrados de nuvens densas e negras, e se ouve o estourar dos trovões roufenhos e prolongados, aquela hora que então passava era espantosa e ameaçadora de estragos, sobretudo quando, após um rugido terrível do tigre popular, se fazia na praça, apinhada de gente, um silêncio ainda mais temeroso e tétrico.

Foi numa destas interrupções do motim que um pajem, saindo ao galope do lado da Corredoura, veio apear-se junto do alpendre e, tirando da cinta um pergaminho aberto, o entregou ao infante D. Dinis.

Este fitou os olhos na escritura, descorou sùbitamente e passou o pergaminho a Diogo Lopes, dizendo-lhe ao mesmo tempo em voz baixa:

– Estamos perdidos!

Diogo Lopes leu o conteúdo daquele escrito fatal e, no mesmo tom, respondeu ao infante:

– O caminho de salvação que nos resta é o de Santarém. Obediência e circunspecção!

O pergaminho passou ràpidamente de mão em mão: os fidalgos, letrados e cavaleiros fizeram um círculo no meio do alpendre: e, depois de o haverem lido, fitaram uns nos outros olhos desassossegados. Todos receavam falar. O manhoso Pacheco foi o primeiro que se atreveu a isso, aproveitando hàbilmente a hesitação dos outros fidalgos e conselheiros.

– Vistes a ordem de el-rei. Como um dos mais velhos entre vós, direi meu parecer. Embora o risco seja grande, achando-nos cercados de povo armado e furioso, o nosso dever é pôr a vida por obedecer a nosso senhor el-rei.

– Mas – atalhou o doutor Gil d’Ocem, que por mui letrado e prudente, era ouvido como oráculo pelos cortesãos -, o caso é grave: o povo, se nos vir retirar, enviar-se-á a nós; se lhe dizemos o motivo da nossa partida, é capaz de desconcertos maiores que os já cometidos. Sua senhoria não devera ter-nos emprazado para este auto, se a sua intenção era não dar resposta aos populares.

Visìvelmente, o doutor ëm leis e degredos” estava tomado de medo, no que não levava vantagem à maior parte dos outros membros do conselho real.

O conde de Barcelos guardava silêncio. Não podia conceber como Dª Leonor o não avisara a tempo, e por isso preocupava-o a indignação, ignorando que a resolução da fuga fora tomada mui tarde. Na véspera ela aconselhara a el-rei que cedesse a tudo quanto o povo quisesse; porque, dissolvido o tumulto, fácil era chamar à Corte os senhores e cavaleiros de mais confiança, acompanhados de gente de guerra, com que seria sopitado qualquer motim, se os populares ousassem opor-se aceitara o conselho, que, se não era o mais leal, era, ao menos, o mais seguro; mas as revelações do echacorvos, que o conde ignorava, tinham mudado, como o leitor viu, a situação do negócio.

A reflexão de Gil d’Ocem estava em todas as cabeças e por isso os cortesãos ficaram outra vez em silêncio, como buscando um expediente para sair daquele dificultoso passo. A incerteza, o despeito, o receito pintavam-se nos rostos demudados de muitos.

E as vagas do oceano que ameaçava tragá-los encapelavam-se aos pés deles: o povo, vendo os fidalgos erguidos, calados e em círculo, apinhava-se, cada vez mais basto, ao redor da alpendrada. Isto fazia crescer o temor, e o temor perturbara demais os ânimos para não poderem achar um expediente acertado.

Era por isso que esperava o astuto Pacheco.

– De um lado a cólera do povo: do outro os mandados de el-rei – disse, apertando com a mão a fronte, o velho conselheiro de Afonso IV. – Resta-nos só um arbítrio.

– Dizei, dizei! – clamaram a um tempo todos, à excepção do conde de Barcelos, que fitou nele os olhos desconfiados.

– É necessário que anunciemos a nova da partida de el-rei e que sejamos os primeiros a afear este procedimento: é necessário que vamos adiante da indignação dos peões. Depois, dir-lhes-emos que, burlando como eles, nada fazemos aqui. Então apartar-nos-emos sem custo e sairemos da cidade como pudermos, na certeza de que não serei eu o último, apesar de velho, que cruze as portas da Alcáçova de Santarém.

– Mas quem há-de falar em nosso nome? – perguntou Gil d’Ocem.

– No vosso, mestre Gil das Leis! – interrompeu o conde de Barcelos. – Nem o receito das afrontas de alguns milhares de sandeus nem o da própria morte me obrigariam a cuspir maldições sobre o nome daquele a quem uma vez jurei preito e leal menagem.

– Vitam impendere vero nemo tenetur replicou Gil d’Ocem -, ou, como quem o dissesse por linguagem, ninguém é obrigado a deixar-se matar por amor da verdade ou de seu preito. Vós fazei o que vos aprouver.

À autoridade de um texto latino, trazido assim a ponto por tão insigne doutor, não havia resistir. Os fidalgos e conselheiros aprovaram, unânimemente, o alvitre de Diogo Lopes.

– Mas quem há-de falar ao povo? – insistiu o mestre em leis, que não parecia excessivamente inclinado a incumbir-se dessa gloriosa tarefa.

– Eu, se assim o quiserdes – replicou imediatamente Diogo Lopes.

O manhoso cortesão vira claramente que a partida de el-rei transtornava todos os seus desenhos: todavia calculara num momento como, sem suscitar a indignação de Fernão Vasques, e por consequência alguma revelação perigosa, podia salvar-se e ao infante. Logo que el-rei se esquivara à influência do povo, de cuja ousadia o velho esperava tudo, o casamento de Dª Leonor era inevitável, e ainda supondo, o que não era de esperar, que o tumulto fosse avante, e que Lisboa se rebelasse claramente contra D. Fernando, o resultado favorável a el-rei, senhor do resto de Portugal, que ao povo, desprovido naquela conjuntura dos principais meios com que poderia sustentar uma luta intestina. Assim, o alvitre que oferecera para a salvação dos cortesãos era só para se haver se salvar a si, conservando ao mesmo tempo a afeição dos cabeças da revolta, sem que o meio que para isso devia empregar o fizesse decair da graça de D. Fernando.

Para os cálculos de Diogo Lopes faltara, porém, um elemento: era a delação do beguino, e era justamente esta falta que os destruía todos. Assim é a política.

O “sacrifício” de Diogo Lopes foi geralmente recebido com aprovação e agradecimento. Então ele, saindo do círculo, aproximou-se `de Fernão Vasques, que, de quando em quando, volvia os olhos inquietos para a pinha dos fidalgos e cavaleiros.

– Falhou a traça – disse o velho cortesão em voz sumida ao alfaiate. – El-rei acaba de sair da cidade.

Fernão Vasques recuou, e pôs-se a olhar espantado para Diogo Lopes, como quem não acreditava o que ouvia.

– O que vos digo é a verdade – continuou Pacheco. – Mas não afrouxar! El-rei de Castela é por nós, e bom número de fidalgos portugueses o são também. Mas: são por nós a maior parte dos que ora aqui vedes presentes. Conservai o bom ânimo do povo, fiai o resto de mim e… de quem vós sabeis.

Ao pronunciar estas palavras, Diogo Lopes lançou de relance os olhos para D. Dinis.

– Mas el-rei tomará por mulher, Dona Leonor – acudiu o alfaiate aterrado -, voltará a Lisboa com seus cavaleiros e homens de armas, e, então, coitados de nós!

– Não temais: o matrimónio adúltero será condenado pelo papa. Vós já tereis ouvido contar o que sucedeu a el-rei Dom Sancho: a Dom Fernando pode suceder o mesmo. Também os fidalgos de Portugal têm homens de armas. Podeis estar certos de que não vos abandonaremos. Agora resta uma cousa. Coube-me a mim dar esta triste nova aos bons e leais burgueses, que tão ousadamente se opuseram à desonra da sua terra e de seu rei, e eu devo ser ouvido por eles. Mandai-lhes que façam silêncio.

Fernão Vasques obedeceu: o ruído dos populares, que não descontinuara durante esta cena, acalmou a um aceno do alfaiate.

Diogo Lopes fez então um largo discurso, com o qual não cansaremos os leitores, e cujo assunto fácil é de adivinhar. Misturando amargas repreensões contra D. Fernando com lisonjas aos populares, procurou persuadi-los, posto que indirectamente, de que toda a fidalguia estava cheia de indignação. Aludiu à resistência por armas que el-rei podia encontrar entre os ricos-homens de Portugal contra o seu casamento, e, no caso de vir ste a cabo, a probabilidade de ser anulado pelas censuras da Igreja. Enfim, sem nunca lhes dizer claramente que insistissem na revolta e tratassem, se fosse preciso, de defender a cidade contra o poder real, suscitou todas as ideias que podiam levar os populares a este excesso. Faltava o ponto dificultoso: o da partida dos fidalgos. Pacheco soube com a mesma ambiguidade dar esperança aos peões de que se encaminhavam para as suas alcaidarias e honras, com o louvável intento de se aperceberem em socorro dos burgueses de Lisboa, e com tal arte o fez que os senhores e cavaleiros que se achavam em S. Domingos, sem exceptuar o próprio conde de Barcelos, não viram nas suas palavras senão uma feliz inspiração para os salvar da cólera da arraia-miúda.

Durante aquela larga arenga, esta guardara silêncio, interrompido a espaços por um desses burburinhos que são como os anúncios das erupções do vulcão popular. Pacheco, enfim, concluiu: mas o espectáculo que tinha diante de si fê-lo ficar imóvel por alguns momentos, e estes foram terríveis. Aqueles centenares de olhos avermelhados, cintilantes de furor, cravados nele e nos outros fidalgos; aquelas bocas semiabertas, prestes a prorromper em brados de morte, eram como um pesadelo diabólico, como uma vertigem de loucura. Os populares pareciam ainda escutá-lo, e não puderam acreditar a deslealdade de D. Fernando de Portugal.

Os fidalgos aproveitaram esse instante de torpor moral que precedia a procela. Desceram da alpendrada e, montando nas suas possantes mulas, encaminharam-se vagarosamente para a banda da Corredoura. No meio da cavalgada, e rodeado dos cavaleiros mais benquistos do povo, ia o conde de Barcelos, e Diogo Lopes com os seus pajens fechava o séquito. Se houvessem atravessado a praça, o conde teria corrido grande risco; porque, ao dobrar o ângulo do mosteiro, já os doestos grosseiros e violentos voavam contra ele do meio do povo apinhado, e, até, dois virotes de besta pareceu sibilarem por cima da sua cabeça. Mas, apertando os acicates, os cavaleiros seguiram ao longo da Corredoura, enquanto Diogo Lopes, vitoriado pelas turbas, a quem com sorrisos retribuía aquelas mostras de afecto, obstava a que as ondas populares rodeassem o diminuto número de cortesãos, alguns dos quais tinham fundados motivos para recear a irritação desses animais ferozes, exaltados pela fuga de el-rei.

A cavalgada havia desaparecido, quando um trocó de besteiros e peões desembocou do lado da Rua Nova. Eram mestre Bartolomeu e a sua gente, que vinham confirmar a nova dada por Diogo Lopes Pacheco.

Mas as palavras que Frei Roy dissera ter ouvido proferir a el-rei, lançadas entre os amotinados como um facho sobre montão de lenha por onde lavra há muito fogo oculto, levaram o tumulto a ponto medonho. As afrontas, que até aí quase só se encaminhavam contra Leonor Teles e seus parentes, voltaram-se contra D. Fernando. As maldições, as pragas, os nomes de traidor e covarde ajuntavam-se às mais violentas ameaças. Uns juravam que nunca mais ele entraria em Lisboa; outros propunham que se lançasse fogo aos paços reais. Debalde Fernão Vasques trabalhava por aquietá-los; nem já escutavam o seu ídolo. Furiosos, espalhavam-se pelas ruas, que atroavam com gritos, brandindo as armas; e por certo que, se neste momento D. Fernando lhes tivesse aparecido, não teriam, talvez, respeitado a vida do filho do seu tão querido D. Pedro I, o mais popular de todos os nossos reis, chamados da primeira dinastia.

Este motim sem objecto, sem resistência, e sem resultado, acalmou nesse mesmo dia. Ao anoitecer, a cidade tinha caído no seu habitual silêncio, e, pouco a pouco, os fidalgos e cavaleiros, atravessando as Portas da Cruz, seguiam caminho de Santarém. O sistema militar dos antigos partos dera a vitória a el-rei: ele vencera fugindo!

O povo adormeceu: os cabeças da revolta estavam irremediàvelmente perdidos.

VI

Uma barregã rainha

O Douro é bem carregado e triste! A sua corrente rápida, como que angustiada pelos agudos e escarpados rochedos que a comprimem, volve águas turvas e mal-assombradas. Nas suas ribas fragosas raras vezes podeis saudar um sol puro ao romper da alvorada, porque o rio cobre-se durante a noite com o seu manto de névoas, e, através desse manto, a atmosfera embaciada faz cair sobre a vossa cabeça os raios do sol semimortos, quase como um frio reflexo de lua ou como a luz sem calor de tocha distante. É depois de alto dia que esse ambiente, semelhante ao que rodeava os guerreiros de Ossian, vos desoprime os pulmões, onde muitas vezes tem depositado já os germes da morte. Então, se, trepando a um pináculo das ribas, espraiais os olhos para a banda do sertão, lá vedes uma como serpente imensa e alvacenta, que se enrosca por entre as montanhas, e cujo colo está por baixo de vossos pés. É o nevoeiro que se acama e dissolve sobre as águas que o geraram. O horizonte, até aí turvo, limitado, indistinto, expande-se ao longe: recortam-nos os cimos franjados das montanhas, que parecem engastadas na cortina azul do céu, e a terra, a perder de vista, afigura-se-nos como um mar de verdura violentamente agitado; porque em desenhar as paisagens do Douro a natureza empregou um pincel semelhante ao de Miguel Ângelo: foi robusta, solene e profunda.

Como sobre um circo convertido em naumaquia, o Porto ergue-se em anfiteatro sobre o esteiro do Douro e reclina-se no seu leito de granito. Guardador de três províncias e tendo nas mãos as chaves dos haveres delas, o seu aspecto é severo e altivo, como o de mordomo de casa abastada. Mas não o julgueis antes de o tratar familiarmente. Não façais cabedal de certo modo áspero e rude que lhe haveis de notar; trazei-o à prova, e achar-lhe-eis um coração bom, generoso e leal. Rudeza e virtude são muitas vezes companheiras; e entre nós, degenerados netos do velho Portugal, talvez seja ele quem guarda ainda maior porção da desbaratada herança do antigo carácter português no que tinha bom, que era muito, e no que tinha mau, que não passava de algumas demasias de orgulho.

Nos fins do século décimo quarto, o Porto ia ainda longe da sorte que o aguardava. O fermento da sua futura grandeza estava no carácter dos seus filhos, na sua situação e nas mudanças políticas e industriais que depois sobrevieram em portugal. Posto que nobre e lembrado como origem do nome desta linhagem portuguesa, os seus destinos eram humildes, comparados com os da teocrática Braga, com os da cavaleirosa Coimbra, com os de Santarém, a cortesã, com os de Évora, a romana e monumental, com os de Lisboa, a mercadora, guerreira e turbulenta. Quem o visse, coroado da sua catedral, semiárabe, semigótica, em vez de alcácer ameiado; sotoposto, em vez de o ser a uma torre de menagem, aos dois campanários lisos, quadrangulares e maciços, tão diferentes dos campanários dos outros povos cristãos, talvez porque entre nós os arquitectos árabes quiseram deixar as almádemas das mesquitas estampadas, como ferrete da antiga servidão, na face do templo dos nazarenos; quem assim visse o “burgo” episcopal do Porto, pendurado à roda da igreja e defendido, antes por anátemas secerdotais que por engenhos de guerra, mal pensaria que desse burgo submisso nasceria um empório de comércio, onde, dentro de cinco séculos, mais que em nenhuma outra povoação do Reino, a classe, então fraca e não definida, a que chamavam burgueses, teria a consciência da sua força e dos seus direitos e daria a Portugal exemplos singulares de amor tenaz de independência e de liberdade.

A populosa e vasta cidade do Porto, que hoje se estende por mais de uma légua, desde o Seminário até além de Miragaia ou, antes, até à Foz, pela margem direita do rio, entranhando-se amplamente para o sertão, mostrava ainda nos fins do século décimo quarto os elementos distintos de que se compôs. Ao oriente, o “burgo do bispo”, edificado pelo pendor do monte da Sé, vinha morre nas hortas que cobriam todo o vale onde hoje estão lançadas a Praça de D. Pedro e as Ruas das Flores e de S. João e que o separavam dos Mosteiros de S. Domingos e de S. Francisco. Do poente, a povoação de Miragaia, assentada ao redor da Ermida de S. Pedro, trepava já para o lado do Olival e vinha entestar pelo norte com o couto de Cedofeita e pelo oriente com a vila ou burgo episcopal. A Igreja, o Município e a Monarquia, entre esses limites pelejaram por séculos as suas batalhas de predomínio, até que triunfou a Coroa. Então a linha que dividia as três povoações desapareceu ràpidamente debaixo dos fundamentos dos templos e dos palácios. O Porto constituiu-se a exemplo da unidade monárquica.

Era neste burgo eclesiástico, nesta cidade nascente, que por formoso dia de Janeiro da era de César de 1410 (1372) se viam varridas e cobertas de espadanas e flores as estreitas e tortuosas ruas que pela encosta do monte guiavam ao burgo primitivo fundado ou restaurado pelos Gascões, se não mentem memórias remotas. Na Rua do Souto, já assim chamada, talvez pela vizinhança de algum bosque de castanheiros, como principal entrada da povoação, andavam as danças judengas e folias mouriscas com músicas e trebelhos ou ogos, por entre o povo vestido de festa, o que era indício evidente de que se esperava el-rei, cuja vinda a qualquer povoação era o único motivo legal para fazer dançar e foliar judeus e mouros, que, decerto, não folgavam nada com estes forçados e dispendiosos sinais de contentamento público.

Com efeito, uma numerosa e esplêndida cavalgada vinha da banda do bailiado de Leça. El-rei D. Fernando ajuntara em Santarém os seus ricos-homens e conselheiros e, amestrado por Leonor Teles na arte de dissimular, recebera com todas as mostras de boa-vontade o infante D. Dinis e Diogo Lopes Pacheco, ao qual, para maior disfarce, não escasseara mercês. Depois, em folgares e caçadas vagueara pelo Reino com Dª Leonor, até que em Eixo fizera um como manifesto da resolução que tomara de a receber por mulher, o que neste dia cumprira na antiga igreja daquela célebre comenda dos Hospitalários. Era, pois, para celebrar esse matrimónio adúltero, agourado pelas maldições populares, que o bispo D. Afonso, menos escrupuloso que o povo de Lisboa acerca de adultérios, vestia de festa o seu mui canónico burgo.

A cavalgada que se vira descer ao longo do vale já atravessava o rio da vila pela ponte do Souto e encaminhava-se para uma antiga porta da povoação primitiva, porta conhecida ainda hoje, como então, pelo nome de Vandoma. Ao lado direito de el-rei ia Dª Leonor, a rainha de Portugal: ele montando em um cavalo de guerra; ela em um palafrém branco, levado de rédea desde a entrada da ponte pelo infante D. João, que familiarmente falava e ria com a formosa cavaleira. Da banda esquerda, o bispo D. Afonso, curvado e enfraquecido pela velhice, oscilava e fazia cortesias involuntárias a cada passada da mansíssima e veneranda mula episcopal. Junto ao velho prelado, o infante D. Dinis caminhava em silêncio, e no aspecto melancólico do mancebo divisava-se quão profunda tristeza lhe consumia o coração, vendo-se como atado ao carro triunfal da mulher que pouco a pouco se convertera em sua irreconciliável inimiga. Após estas principais personagens, via-se uma grande multidão de cavaleiros, clérigos, cortesãos, conselheiros, juízes da Corte; companhia esplêndida, por entre a qual brilhava o ouro, a prata e as variadas cores dos trajos de festa, que sobressaíam no chão negro das vestiduras roçagantes dos magistrados e clérigos. Adiante de el-rei, as danças dos mouros e judeus volteavam rápidas, ao som da viola ou alaúde árabe, das trombetas e das soalhas. Segundo o antigo uso, seguiam-se às danças coros de donzelas burguesas, que celebravam com seus cantos o amor e ventura dos noivos.

Mas esse canto tinha o quer que era triste na toada. Triste era, também, o aspecto dos populares, que, sem um só grito de regozijo, se apinhavam para ver passar aquele préstito real. Mil olhos se cravavam no infante D. Dinis, cujo rosto melancólico revelava que os seus pensamentos eram acordes com os do povo, que por toda a parte não via neste consórcio senão um crime e uma fonte de desventuras. Os cortesãos, porém, fingiam não perceber o que se passava à roda deles e pareciam trasbordar de alegria. Muitos eram daqueles que mais contrários haviam sido aos amores de el-rei, mas, que, vendo, enfim, Dª Leonor rainha, voltavam-se para o sol que nascia e calculavam já quantas terras e que soma de direitos reais lhes poderia render da parte de um rei pródigo a sua mudança de opinião.

Entre estes não se via o tenaz e astuto Pacheco. Habituado ao trato da Corte por largos anos, experimentado em todos os enredos dos paços, hábil em traduzir sorrisos e gestos, palavras avulsas e discursos fingidos, não tardara em perceber que as mercês e agrados de el-rei e de Dª Leonor encobriam intentos de irrevogável vingança. Conhecendo que a sedição popular fora inútil e que, ainda renovada com mais fúria, não poderia resistir às armas de D. Fernando, havia-se afastado da Corte e, posto que só nos fins desse ano ele passasse a servir o seu antigo protector e amigo, D. Henrique de Castela, buscara entretanto esquivar-se ao ódio da nova rainha, conservando ao mesmo tempo a boa opinião entre o vulgo.

Abandonado assim do seu guia, o infante D. Dinis sofrera resignado um sucesso que não podia embargar; mas, digno filho de D. Pedro, conservara intacta a sua má vontade a Dª Leonor. Desamparado dos seus parciais, vendo, se não traída, ao menos quase morta e inactiva a aliança de Pacheco, e, para maior desalento, seu irmão mais velho, o infante D. João, ligado com essa mulher, da qual este príncipe mal pensava então lhe viria a última ruína; no meio de tantos desenganos, o infante, a princípio tímido e irresoluto, sentira crescer a ousadia com os perigos; sentira girar-lhe nas veias o sangue paterno. Obrigado a seguir a Corte, nunca Dª Leonor achara um sorriso nos seus lábios; nunca o vira conter diante dela um só sinal de desprezo. Assim, a cólera de el-rei contra seu irmão havia chegado ao maior auge, e os cálculos de fria e paciente vingança estavam resolvidos no ânimo de Leonor Teles.

A cavalgada tinha subido a encosta, atravessado a Porta de Vandoma, que em parte ainda subsiste, e passado em frente da Sé, junto da qual se dilatavam os paços episcopais. Aí as danças e folias pararam e fizeram por um momento silêncio. Então o infante D. João, tomando nos braços a formosa rainha, apeou-se do palafrém, e, após ela, el-rei saltou ligeiro do seu fogoso e agigantando ginete. Dentro em pouco toda a comitiva tinha desaparecido no profundo portal dos paços, e os donzéis conduziam os elegantes cavalos, as mulas inquietas e os mansos palafréns para as vastas e bem providas cavalariças do mui devoto e poderoso prelado da antiga Festabole.

O aposento principal dos paços, quadra vasta e grandiosa, estava de antemão ornado para receber os hóspedes reais do velho bispo D. Afonso. Um trono com dois assentos de espaldas indicava que a ele ia subir, também, uma rainha. Dª Leonor entrou seguida das cuvilheiras e donzelas da sua câmara; el-rei de todos os principais cavaleiros. Viam-se entre estes o alferes-mor Airas Gomes da Silva, ancião venerável, que fora aio do rei, quando infante, o orgulhoso mordomo-mor D. João Afonso Telo, Gil Vasques de Resende, aio do infante D. Dinis, o prior da Ordem do Hospital, Álvaro Gonçalves Pereira, e muitos outros fidalgos que ou seguiam a Corte ou tinham vindo assistir às bodas reais.

Guiada por D. Fernando, Leonor Teles subiu com passo firme os degraus do trono. Como o navegante, que, afrontando temporais desfeitos por mares incógnitos e aprocelados e chegando ao porto longínquo, quase que não crê pisar a terra de seus desejos, assim esta mulher ambiciosa e audaz parecia duvidar da realidade da sua elevação. A alma sorria-lhe a mil esperanças; a vida trasbordava nela. A seu lado um rei, a seus pés um reino! Era mais que embriaguez; era delírio. Ela sentia um novo afecto, um como desejo de perdão aos seus inimigos! Tremeu de si mesma e, convocando todas as forças do coração, salvou a sua ferocidade hipócrita, que parecia querer abandoná-la. Era severo o seu aspecto quando esses pensamentos estranhos lhe passaram pelo espírito; mas o sorriso tornou a espraiar-se-lhe no rosto quando o instinto de tigre pôde fazê-la triunfar desse momento em que a generosidade costuma acometer com violência as almas vingativas e ferozes, o momento em que se realiza a suma ventura por largo tempo sonhada.

Do alto do trono e em pé, D. Fernando estendeu a mão: o tropel de cortesãos e cavaleiros, de donas e donzelas formaram aos lados da espaçosa sala fileiras esplêndidas, imóveis e silenciosas: e el-rei volveu olhar lentos para um e outro lado e disse:

– Ricos-homens, infanções e cavaleiros de Portugal, um dos mais nobres sacramentos que Deus neste mundo ordenou foi o matrimónio: como para os outros homens, para os reis se instituiu ele; porque por ele as coroas se perpetuam na linhagem real. É por isso que eu desposei hoje a mui ilustre Dona Leonor, filha de Dom Afonso Telo, descendente dos antigos reis e ligada com os mais nobres de entre vós pelo dívido do sangue. Assim, a rainha de Portugal será mais um laço que vos una a mim como parentes, que de hoje avante sois meus. Leais, como tendes sido a vosso rei pelo preito que lhe fizestes, muito mais o sereis por este novo título. Em que pês a traidores, Dona Leonor Teles é minha mulher! Fidalgos portugueses, beijai a mão à vossa rainha.

O velho alferes-mor, Airas Gomes, aproximou-se então do trono, à voz do seu moço pupilo; ajoelhou e beijou à mão a Dª Leonor; mas o olhar que lançou para el-rei era como o de pedagogo que de mau humor se acomoda ao capricho infantil de um príncipe. Ao volver de olhos do ancião, D. Fernando corou e voltou o rosto.

O infante D. João, porém, dobrando o joelho aos pés da formosa rainha, parecia trasbordar de alegria. Contemplando-o, Leonor Teles deixou assomar aos lábios um daqueles ambíguos e quase imperceptíveis sorrisos que, vindos dela, sempre tinham uma significação profunda. Porventura que no infante D. João ela já não via mais que o precursor da humilhação de D. Dinis, do seu capital inimigo.

Após o infante, os fidalgos vieram sucessivamente curvar-se ante Dª Leonor. Boa parte deles era como capitães vencidos seguindo ao capitólio um triunfador romano. Podia com efeito dizer-se que, mau grado desses que se rojavam a seus pés, ela conquistara o trono.

Toda a comprida fileira de nobres oficiais da Coroa tinha passado e ajoelhado no estrado real. Faltava um; e era este, que, menosprezando tantas frontes ilustres por valor ou ciência, por fidalguia ou riqueza, inclinadas perante ela, a mulher orgulhosa e implacável esperava cogitando no momento em que o mancebo ainda impúbere, sem renome, sem poderio, célebre só por seu berço e pelo desgraçado drama da morte de Dª Inês, viesse tributar homenagem à que representava uma papel análogo ao daquela desventurada, salvo na sinceridade do amor e na inocência da vida.

Mas esse para quem Dª Leonor mais de uma vez volvera ràpidamente os olhos considerava com os braços cruzados aquele espectáculo em perfeita imobilidade, de que ùnicamente saíra quando Gil Vasques de Resende, que estava a seu lado, se afastara, caminhando para os degraus do estrado. O mancebo apertara a mão do idoso aio, trémula da idade, com a mão ainda mais trémula de cólera. Na conta de pai o tinha; venerava-o como filho, e a ideia de o ver prostituir os seus cabelos brancos aos pés de uma adúltera o levara a esse movimento involuntário; involuntário, porque ele naquela postura e naquela hora não fazia senão coligir todas as forças da alma para salvar a honra do nome de seus avós, do nome dos reis portugueses, esquecida por um de seus irmãos e, talvez, mercadejada por outro em troco de valimento infame. O velho entendeu o que significava este convulso apertar de mão: duas lágrimas lhe caíram pelas faces; mas obedeceu a el-rei.

Só faltava D. Dinis, que continuara a ficar imóvel. Houve um momento de silêncio sepulcral na vasta sala, e este silêncio era para todos indefinido, mas terrível.

D. Fernando pôs-se a olhar fito para seu irmão, enleado, ao que parecia, em cismar profundo.

Dentro de pouco, poder-se-ia crer que todos os fidalgos que povoavam aquela vasta quadra estavam convertidos em pedra semelhante à das colunas góticas que sustinham as voltas pontiagudas do tecto, se não fosse o respidar ansiado e rápido que lhes fazia ranger sobre os peitos e ombros os seus ricos briais.

Os lábios de el-rei tremeram, como a superfície do mar encrespada pela leve e repentina aragem que precede imediatamente o tufão. Depois, entreabrindo-os, com os dentes cerrados, murmurou:

– Infante Dom Dinis, beijai a mão à vossa rainha.

Foi um só o volver de todos os olhos para o moço infante: o sussuro das respirações cessara.

D. Dinis não respondeu; encaminhou-se para o meio do aposento: parou defronte do trono e, olhando em redor de si, perguntou com sorriso de amargo escárnio:

– Onde está aqui a rainha de Portugal?

– Infante Dom Dinis! – disse el-rei, cujo rosto o furor mal reprimido demudara. – Sofredor e bom irmão tenho sido por largo tempo: não queirais que seja hoje só juiz inflexível do filho querido daquele que também me gerou! Infante Dom Dinis!, beijai a mão da mui nobre e virtuosa Dona Leonor Teles, como fez vosso irmãos mais velho, de quem deveríeis haver vergonha.

– Nunca um neto de Dom Afonso do Salado – replicou o infante, com aparente tranquilidade – beijará a mão da que el-rei seu irmão e senhor que chamar rainha. Nunca Dom Dinis de Portugal beijará a mão da mulher de João Lourenço da Cunha. Primero ela descerá desse trono e virá ajoelhar a meus pés; que de reis venho eu, não ela.

– De joelhos, dom traidor! – gritou D. Fernando, pondo-se em pé e descendo dois degraus do estrado. – De joelhos, vil parceiro de revéis sandeus! Se a taberna de Folco Taca vos ouviu fazer preito infame aos peões de Lisboa, quebra-lo-eis diante do vosso rei: quebra-lo-eis, que vo-lo digo eu!

D. Dinis viu então que todos os seus passos estavam descobertos: achava-se, por isso, à borda de um abismo. Hesitou um momento; mas lembrou-se de que era neto do herói do Salado e precipitou-se na voragem.

– Vil é a mulher barregã e adúltera, e essa é ambas as cousas. Traidor seria um rei de Portugal que assentasse o adultério no trono, e vós o fizestes, rei desonrado e maldito de vosso Deus e do vosso povo! Quem neste lugar é o vil e o traidor?

O infante, acabando de proferir estas palavras, abaixou a cabeça e deixou descair os braços. Ele bem sabia que se seguia o morrer.

Apenas el-rei se alevantara, Dª Leonor, cujas faces se haviam tingido da amarelidão da morte, tinha-se erguido também. Naquele rosto, semelhante ao de uma estátua de sepulcro, apenas se conhecia o viver no profundar, cada vez maior, das duas rugas frontais que se lhe vinham juntar entre os sobrolhos.

Ouvindo as derradeiras e fulminantes palavras de D. Dinis, el-rei soltara um destes rugidos de desesperação e cólera humanas que nem o rugido da mais brava fera pode igualar; grito de ventríloquo, que é como o estridor de todas as fibras do coração que se despedaçam a um tempo; gemido como o do rodado ao primeiro giro do instrumento do suplício: rugido, grito, gemido, conglobados num só hiato, fundidos num som único pela raiva, pelo ódio, pela angústia – brado que só terá eco pleno no bramido que há-de soltar o réprobo quando no derradeiro juízo o julgador dos mundos lhe disser: “Para ti as penas eternas.”

do fizera tremer os mais esforçados cavaleiros que se achavam presentes: o movimento que o seguiu fez gelar o sangue em todas as veias.

Como um relâmpago ele tinha arrancado da cinta o agudo bulhão e, com os olhos desvairados, encaminhava-se para o meio da sala, onde seu irmão o esperava imóvel, com a mão sobre o peito, como se dissesse: “Aqui!”

Mas D. Fernando não pôde oferecer nas aras do adultério um fratricídio; uma barreira se tinha alevantado a seus pés. Era um velho de fronte calva e de longas melenas brancas e desbastadas pelos anos: era aquele que lhe fora mais que pai e que ele respeitava mais que a memória deste; era o seu alferes-mor, o venerável Airas Gomes, que, ajoelhado, lhe clamava com vozes truncadas de soluços e lágrimas:

– Senhor!, que é vosso irmão!

– É um covarde traidor, que deve morrer! Irmão!? Mentes, velho! Ele já o não é!

À palavra “mentes!” um relâmpado de vermelhidão passou pelas faces cavadas do antigo cavaleiro: abaixou os olhos e correu-os pela espada. Fora esta a primeira vez que ela ficara na bainha depois de tão funda afronta. Mas aquele era o momento dos grandes sacrifícios. Airas Gomes replicou, alimpando as lágrimas:

– Nunca vos menti, senhor, nem quando éreis na puerícia, nem depois que sois meu rei. Sabei-lo. Criminoso ou inocente, Dom Dinis é filho de meu bom senhor Dom Pedro. A vosso pai servi com lealdade; por vós já me andou arriscada a vida. Hoje tendes por defensores todos os cavaleiros de Portugal, ele é que não tem, talvez, um só. Senhor rei, ficai certo de que, para assassinar vosso irmão, vos é mister passar por cima do caáver de vosso segundo pai.

Atalhado assim o primeiro ímpeto, o carácter do moço monarca revelou-se inteiro neste momento. Comoveu-o a postura do venerando ancião, que pela primeira vez via a seus pés, e, com a irresolução pintada nos olhos, fitou-os em Leonor Teles.

Por uma reflexão instantânea, a hiena previra que o sangue derramado pelo fratricida não cairia sòmente sobre a cabeça deste, mas também sobre a dela. Naquele rosto, então semelhante ao de uma estátua, D. Fernando não pôde ler a sentença do infante, bem que lá no fundo do coração ela estivesse escrita com sangue.

Entretanto os cortesãos, que no furor rompente de el-rei haviam ficado estupefactos e quedos, vendo-o vacilar, rodearam o infante. O velho Gil Vasques de Resende, que ia interpor-se, também, entre D. Dinis e el-rei, quando este arrancara o punhal, parara ao ver a heróica resolução do alferes-mor; mas, ao hesitar de D. Fernando, correra a abraçar-se com o seu pupilo, que, no meio de tantos ânimos agitados por paixões diversas, era quem ùnicamente parecia tranquilo e alheio ao terror que se pintava em todos os semblantes.

Finalmente, el-rei meteu vagarosamente o punhal no cinto e, com voz pausada, mas trémula e presa, disse:

– Que esse mal-aventurado sai de ante mim.

O tom em que estas poucas palavras foram proferidas fez vergar o ânimo de D. Dinis, cujo coração, antes disso, parecera de bronze. Os olhos arrasaram-se-lhe de água. Sentira que, até então, era uma cólera cega, repentina, insensata, que o ameaçava: agora, porém, no modo e na expressão de D. Fernando vira claramente que era um amor de irmão que expirava.

Com a cabeça pendida em cima do ombro de Gil Vasques de Resende, saiu do aposento.

Era, talvez, o velho o único amigo que lhe restava no mundo.

Dª Leonor levou ambas as mãos ao rosto, e via-se-lhe arquejar o colo formoso, agitado por mal contido suspiro.

“Coração compadecido e generoso!”, pensou lá consigo o alferes-mor, que havia pouco a tratara de perto pela primeira vez.

“Hora maldita e negra, em que perdi metade de minha tão espera vingança”, pensava Leonor Teles, e o choro rebentou-lhe com violência.

– Não te aflijas, Leonor – disse D. Fernando, apertando-a ao peito. – Que nunca mais eu o veja, e viva, se puder, em paz!

Mas as lágrimas correram ainda com mais abundância e amargura.

O resto daquele dia foi triste: triste o banquete e o sarau. A atmosfera em que respirava a nova rainha tinha o que quer que fosse pesado e mortal, que resfriava todos os corações.

À meia-noite, por um claro luar de céu limpo de Inverno, uma barca subia com dificuldade a corrente rápida do Douro: à popa viam-se reluzir, nas toucas e mantos negros de dois cavaleiros que aí iam sentados, as orlas e bordaduras de ouro e prata: um dos remeiros cantava uma cantiga melancólica, a que respondia o companheiro, e dizia assim:

“Mortos me são padre e madre:

Eu tamanho fiquei.

Irmãos meus mal me quiseram.

Eu mal não lhes quererei.

Vou-me correr esse mundo;

Sabe Deus se o correrei!

A alma deixo-a cá presa;

O corpo só levarei.

De meus avós nos solares

Nasci: dous dias passei:

Meus irmãos, nada vos tenho

Senão o nome que herdei.”

Esta cantiga, cuja toada monótona repercutia nos rochedos aprumados das margens, foi interrompida por doloroso suspiro. Um dos cavaleiros o dera.

Os remeiros calaram-se: arrancaram da voga com mais ânsia e, depois, continuaram:

“Se fui rico, ora sou pobre:

Choro hoje, se já folguei:

Vilas troquei por desvios;

Muito fui: nada serei.

Sem padre, madre ou irmãos

A quem me socorrerei?

A ti, meu Senhor Jesus:

Senhor Jesus, me acorrei!”

Um gemido mais angustiado, que saiu envolto em soluços, cortou de novo a cantiga: era do mesmo que já a interrompera. O seu companheiro bradou aos barqueiros, com a voz trémula e cansada de um ancião:

– Calai-vos aí com vossas trovas malditas!

Os remeiros vogaram em silêncio; mas pensaram lá consigo que muito danadas deviam ser as almas de cavaleiros que assim maldiziam tão devoto trovar.

Repararam, porém, que, dos dois desconhecidos, o que suspirava e gemera lançara os braços ao pescoço do que falara, e que este, afagando-o, lhe dizia:

– Quando todos, senhor, vos abandonarem não vos abandonarei eu; que o devo ao amor com que vos criei e à esclarecida e santa memória de vosso virtuoso pai.

Então os barqueiros, bem que rudes, desconfiaram de que podia muito bem ser que não fossem duas almas danadas aquelas, mas sim mal-aventuradas.

VII

Juramento, pagamento

Passara mais de um ano depois do casamento de el-rei. Este casamento, que explicava o repúdio da infanta de Castela, não bastara, em verdade, para acender a guerra entre D. Henrique e D. Fernando, estando já de algum modo previsto nos capítulos adicionais do Tratado de Alcoutim. Mas, como se o desgosto que semelhante ofensa devia gerar no ânimo do rei castelhano não fosse assaz forte para servir de fermente a futuras guerras, D. Fernando suscitara novos motivos de sérias desavenças, que não particularizaremos aqui, por não virem a nosso intento. Baste saber-se que, depois de inúteis mensagens e queixas, D. Henrique de Castela, entrando sùbitamente em Portugal e tomando muitas terras fortificadas, atravessara ràpidamente a Beira, passara junto aos muros de Coimbra, onde se achava Dª Leonor Teles, e, vindo oferecer batalha a el-rei D. Fernando, que estava em Santarém e que não aceitou o combate, se encaminhara para Lisboa, cujos habitantes desapercebidos apenas tivera tempo de se acolherem aos antigos muros do tempo de D. Affonso III, de cujas torres e adarves viram os Castelhanos saquearem e queimarem o bairro mais povoado e rico da cidade, o Arrabalde, sem lhes poderem pôr obstáculo. No meio deste apertado cerco, desamparados de el-rei, que apenas lhes enviara alguns dos seus cavaleiros, os moradores de Lisboa não tinham desanimado. Com vária fortuna, haviam resistido aos cometimentos dos Castelhanos e, o que mais duro era de sofrer, à fome, à sede e, até, ao receio de traições de seus naturais. Finalmente, D. Fernando fizera uma paz vergonhosa, depois de ter suscitado uma injusta guerra, e Lisboa viu afastar dos seus muros o exército de el-rei de Castela, que a tivera sitiada durante quase dois meses.

Era nos fins de Mio de 1373, pela volta da tarde de um formoso dia de Primavera. O ar estava tépido e o céu limpo. Pelos campos e vales via-se verdejar a relva; a madressilva e as rosas bravias, enredadas pelos valados, embalsamavam a atmosfera. Mas estes eram os únicos sinais que, nos arredores de Lisboa, revelavam aquela estação suave no seu clima suavíssimo. Tudo o mais contrastava horrìvelmente com eles. Os extensos e bastos olivedos e azinhais que nessas eras a rodeavam jaziam aqui e ali por terra, como se por lá tivesse passado fouce gigante meneada por braço de ferro. Pelos outeirinhos, coroados pouco havia de vinhas frondosas, viam-se espalhadas as videiras cobertas de folhas ressecadas antes de tempo ou enegrecidas pelo fogo, assemelhando-se a gântara coberta de urzes que foi desbravada por fins do Outono. As vastas hortas que se derramavam por Valverde, trilhadas pelos pés dos cavalos, estavam incultas e abandonadas. Mas, sobre este mal-assombrado e triste chão do painel, mais melancólica e aflitiva avultava ainda a figura principal, a cidade.

O populoso bairro chamado o Arrabalde, onde, dantes, era contínuo o ruído discorde de trato imenso, achava-se convertido em montão de ruínas. Para os lados do sul e poente, não se viam, desde os antigos muros (cujo perímetro pouco mais abrangia do que o castelo e o bairro a que hoje damos geralmente o nome de Alfama), senão edifícios queimados, ruas entulhadas, praças desfeitas, vestígios de sangue, peças de armadura aboladas ou falsadas, hastilhas e ferros partidos de virotes, de lanças e de espadas, e, aqui e acolá, cadáveres fétidos, não só de cavalos, mas também de homens, cujas carnes, meio devoradas pelos cães ou pelo tempo, lhes deixavam branquejar as ossadas. Sobre os entulhos apareciam como fantasmas os servos mouros, revolvendo as pedras derrocadas, em busca de alguma preciosidade que tivesse escapado às chamas e ao inimigo; e junto às paredes negras da sinagoga os mercadores judeus, olhando para o seu bairro assolado, depenavam as barbas à roda dos rabis, que recitavam em tom de pranto os versículos hebraicos dos trenos.

Por meio deste vasto quadro de assolação rompia uma numerosa companhia de cavaleiros e damas, de donas e escudeiros, de donzelas e pajens brilhante cavalgada que descia da banda de Santo Antão para S. Domingos e tomava pela Corredoura para a Porta do Ferro. A formosura e o luxo das mulheres, as figuras atléticas e os rostos varonis dos cavaleiros, o brunido das armas, o loução dos trajos, o rico dos arreios, tudo, enfim, dava clara mostra de que naquela cavalgada vinha a mais nobre gente de Portugal. Os risos das damas, os ditos galantes e agudos dos fidalgos, o rinchar alegre dos corcéis briosos e dos delicados palafréns, as doudices dos donzéis, que, ora correndo à rédea solta, ora sofreando os cavalos, ao perpassar pelas mulas pacíficas dos cortesãos letrados, os faziam vacilar e debruçar sobre os arções, o bater das asas dos nebris e gerifaltes empoleirados nos punhos dos falcoeiros, o latir dos galgos e alãos, que, atrelados, forcejavam por se atirarem acima daqueles centenares de habitações derrocadas, de onde saía de vez em quando uma exalação de carniça: esse rir, este folgar, este ruído de contentamento, este matiz de reflexos metálicos, de cores variegadas, passando, como turbilhão, através daquele silêncio sepulcral, parecia rasgar o véu de tristeza que cobria a vasta área da cidade destruída e revocá-la a uma nova existência.

Mas o povo, apesar disso, continuava a estar triste.

A cavalgada chegou ao terreiro da Sé. Um engenho de arremessar pedras estava assentado no meio dele, e os grossos madeiros de que era construído viam-se ainda manchados de rastos de sangue. Uma dama que vinha na frente da comitiva parou: um cavaleiro de boa idade e gentil-homem, que caminhava a seu lado, parou também. A dama apontou para o engenho, disse algumas palavras ao cavaleiro e, depois, desatou a rir.

Era ela a mui nobre e virtuosa rainha Dª Leonor: ele o mui excelente e esclarecido rei D. Fernando de Portugal.

Dª Leonor tinha razão para rir.

Durante o cerco de Lisboa, uma voz, verdadeira ou falsa, se espalhara de que vários moradores da cidade estavam preitejados com el-rei de Castela para lhe abrirem uma das portas. Dava força a tais suspeitas o acharem-se no campo castelhano Diogo Lopes Pacheco e D. Dinis, que com ele se haviam ajuntado na sua entrada em Portugal, e as desconfianças recaíam naturalmente sobre aqueles que, dois anos antes, tinham seguido o partido contrário a Dª Leonor, de que o infante e o velho privado de D. Afonso IV eram cabeças. Assim a popularidade dos parciais de D. Dinis tinha diminuído consideràvelmente, porque o povo, em vez de atribuir a sua ruína a causas remotas, às paixões insensatas de Dª Leonor e à imprudência de el-rei, só nas sugestões de Diogo Lopes e do infante via agora a origem de todos os males presentes, e o ódio que contra os dois havia concebido se estendera a todos os que cria serem-lhes afeiçoados.

Apenas, portanto, se divulgou a notícia da intentada traição, o povo furioso correu às moradas daqueles que, como fica dito, lhe eram mais suspeitos. Seguiu-se uma festa de canibais, festa de vulgacho em qualquer tempo e lugar que ele reine. Aqueles que não puderam provar de modo inegável a sua inocência foram metidos aos mais cruéis tormentos, onde nenhum se confessou culpado. Um desgraçado, contra o qual eram mais veementes as desconfianças, foi arrastado pelas ruas e feito depois em pedaços: “outro – diz o cronista – tomarom e pozoromno na fumda d’huum engenho, que estava armado ante a porte da see; e quando desfechou lançouo em çima dessa igreja antre duas torres dos sinos que hi ha, e quando cahio acharomno vivo; e tomaromno outra vez e pozeromno na funda do engenho, e deitouho contra o mar, omde elles desejavom, e assi acabou sua vida”.

Era por isso que Dª Leonor olhava para o engenho e se rira. O próprio povo tinha pagado uma parte das arras do seu casamento.

A noite descera entretanto. A cavalgada parou no terreiro de S. Martinho, e à luz de muitas tochas parte daquela multidão escoou-se, pouco a pouco, por diversas ruas, enquanto outra parte subia à sala principal ou se derramava pelos aposentos dos paços, cujo silêncio de quase dois anos, depois da fuga de el-rei com Dª Leonor Teles, era a primeira vez interrompido pelo ruído de uma corte numerosa, mas bem diferente da antiga. A rainha havia quase exclusivamente chamado a ela os seus parentes ou aqueles fidalgos que lhe tinham dado provas não equívocas de sincera afeição e substituíra à severidade antiga do paço todo o brilho de luxo insensato e, o que mais era, a dissolução dos costumes, que quase sempre acompanha esse luxo. Depois de uma ceia esplêndida como o devia ser nesta corte voluptuária, apenas ficara na câmara real D. Fernando e sua mulher, o conde de Barcelos, D. João, D. Gonçalo Teles, irmão de Dª Leonor, e um donzel da rinha, filho bastardo de outro bastardo, do prior do Hospital Álvaro Gonçalves Pereira, donzel que ela mais que nenhum estimava. Estas personagens achavam-se reunidas no mesmo aposento onde, dois anos antes, o beguino Frei Roy viera revelar à então amante de D. Fernando os intentos dos seus inimigos. Era deste aposento que ela saíra fugitiva e amaldiçoada do povo. Mas era aí, também, que Dª Leonor vinha depois de tantos sustos, de tantas dificuldades vencidas, de tanto sangue derramado por sua causa, repousar triunfadora, segura já na fronte a coroa real. Tudo estava do mesmo modo, salvo as personagens, que, em parte, eram diversas e em diversa situação.

El-rei, habitualmente alegre, sentara-se triste na cadeira de espaldas, único móvel do aposento, e encostara a cabeça sobre o punho cerrado: Dª Leonor, posto que naturalmente loquaz, sentada no estrado defronte de D. Fernando, conservava-se, também, em silêncio: em pé, um pouco atrás da cadeira de el-rei, o donzel querido de Dª Leonor, com os olhos fitos nela, esperava atento as determinações de sua senhora: ao longo da sala o conde de Barcelos e D. Gonçalo Teles passeavam lentamente, conversando em voz submissa e pausada.

Mas a taciturnidade de cada uma das duas personagens principais tinha bem diferentes motivos.

A imagem da sua capital destruída havia-se embebido na alma de el-rei, como remorso cruel. Pelas sugestões de seu tio adoptivo, consentira que D. Henrique viesse livremente destruir a opulenta Lisboa. Ele, neto de Afonso IV, rejeitara os socorros de seus valorosos vassalos, que, ao esvoaçar dos pendões inimigos, de toda a parte haviam corrido, lança em punho, para combaterem debaixo da signa real: ele, cavaleiro, fora vil instrumento de vingança covarde: ele, rei de Portugal, fora o destruidor do seu povo: ele, português, recebera o nome de fraco de um castelhano, sem que ousasse desmentir a afronta! Estas ideias, que o tinham assaltado ao atravessar as ruínas dos arrabaldes, tomavam vulto e força na solidão e no silêncio. O pobre monarca, bom, mas excessivamente brando e irresoluto, tinha sobeja razão de estar triste. A Lua, que começava a subir, dava de chapa, através da janela oriental do aposento, no rosto de D. Fernando, como dois anos antes, quase a essa hora, lhe alumiara, também, as faces demudadas de aflição. Este lugar, esta luz e esta hora eram para ele funestos!

Nesse momento, passos mais rápidos e mais pesados que os dos dois fidalgos começaram a soar na sala contígua: quem quer que era passeava também.

Dos olhos de D. Fernando saíam dois ténues reflexos; eram os raios da luz que os espelhavam em duas lágrimas.

A rainha, alevantando-se então, disse ao donzel:

– Nun’Álvares Pereira, vede quem está nessa sala.

Nun’Álvares abriu a porta e, alongando a cabeça, voltou imediatamente e disse:

– O corregedor da Corte.

Os dois fidalgos pararam na extremidade do aposento, calaram-se e conservaram-se imóveis.

A rainha fez sinal com a mão a Nun’Álvares para que esperasse: o donzel ficou à porte sem pestanejar.

Dª Leonor encaminhou-se então para el-rei, que, embebido no seu profundo cismar, não vira, nem ouvira o que se fazia ou dizia. Curvando-se e firmando o cotovelo no braço da cadeira de el-rei, encostou a cabeça sobre o ombro dele, com a face unida à sua.

– Que tens tu, Fernando? – perguntou ela, com essa inflexão de voz meiga que só sabem lábios de esposa que muito ama, mas com que também soubera atinar esta mulher sublime de hipocrisia.

– Nada! … nada! – respondeu el-rei, lançando-lhe o braço em redor do pescoço e apertando a face incendiada àquele rosto de anjo, que dissimulava um coração de demónio.

Os dois ténues reflexos da lua tinham esmorecido nos olhos de D. Fernando: o hálito de Leonor Teles queimara as lágrimas da compaixão e do remorso.

– Enganas-me ou enganas-te a ti próprio, Fernando! – replicou a rainha. – Tu és infeliz, e eu sei porque o és. Aborreces já a pobre Leonor Teles.

O tom com que estas palavras foram proferidas era capaz de partir um coração de mármore.

– Enlouqueceste, Leonor? – exclamou el-rei. – Aborrecer-te? Sem ti, este mundo fora para mim soldade, a coroa martírio, a vida maldição de Deus. Como nos primeiros dias dos nossos amores, no leito da morte amar-te-ei ainda. Glória, riqueza, poderio, tudo te sacrifiquei; não me pesa. Mil vezes que tu o queiras to sacrificarei de novo.

– Ah, prouvera a Deus que o teu amor fosse metade do que dizes: fosse metade do meu!

– Busca, inventa, aponta-me algum modo de provar o que te digo, e verás se as minhas palavras são sinceras!

– Há um, rei de Portugal! – replicou Leonor Teles, em cujos olhos cintilava o contentamento.

Dizendo isto, ela se afastara de el-rei. O seu aspecto tomou sùbitamente a expressão grave e severa de uma rainha. A um gesto que fez, Nun’Álvares ergueu o reposteiro, e o corregedor da Corte entrou. Trazia na mão um pergaminho aberto. Chegou ao pé de Leonor Teles, ajoelhou e entregou-lho.

A rainha pegou nele e apresentou-o a el-rei: o donzel trouxe uma das tochas que estavam nos ângulos do aposento e colocou-se à esquerda da cadeira de D. Fernando.

– A prova do que dissestes, rei de Portugal, está em estampardes no fim desse pergaminho o vosso selo de puridade.

D. Fernando recebeu o pergaminho e começou a ler: a cada uma das extensas linhas, que o obrigavam a descrever com a fronte uma curva, o remor das mãos tornava-se-lhe mais violento e as contracções do rosto mais profundas. Antes de acabar de ler, atirou o pergaminho ao chão e, com voz terrível, exclamou, cravando os olhos reluzentes em Leonor Teles:

– Mulher, que me pedes tu?

– Justiça e as minhas arras.

Era a primeira vez que el-rei ousava resistir à vontade de Leonor Teles. Ela ainda não o cria. Habituada a ser obedecida pelo pobre monarca, estas últimas palavras foram proferidas com a insolência de uma resolução incontrastável.

– Justiça? Contra quem a pedes? Contra caáveres e moribundos. As tuas arras? Tiveste em dote as mais formosas vilas dos meus senhorios: tiveste o que mais desejavas, as arras de sangue e ruínas. Para te contentar, deixei Lisboa entregue ao furor de inimigos; para te contentar, fui vil e fraco; para te contentar, dos patíbulos já têm pendido sobejos cadáveres. E, ainda não satisfeita, pretendes que, antes de dormir uma única noite na minha capital assolada, confirme uma sentença de morte! Leonor!, tu eras digna de seres filha de meu implacável pai!

Dª Leonor repelira o olhar, entre colérico e tímido de D. Fernando, que mal acreditava a própria audácia, com um olhar em que se misturava a indignação e o desprezo. Ela ouviu as suas palavras sem mudar de aspecto; mas, apenas el-rei acabou, encaminhou-se para a janela onde batia o luar e estendeu a mão para o céu:

– Há dois anos, senhor rei, que neste aposento, a estas mesmas horas, um cavaleiro jurava a uma dama, de quem pretendia quanto mulher pode ceder a desejos de homem, que a amaria sempre; jurava-o pelo céu, pelos ossos de seus avós, pela sua fé de cavaleiro – e o cavaleiro mentiu. As bocas de homens vis vomitavam contra essa mulher e a essa mesma hora os nomes de adúltera, de barregã, de prostituta; e pediam a sua morte. O cavaleiro sabia que tais afrontas escrevem-se para sempre na fronte de quem as recebe, se o sangue de quem as proferiu não as lava um dia. O cavaleiro ofereceu a sua alma aos demónios, se não as lavasse com sangue – e esse cavaleiro blasfemou e mentiu. Senhor rei, diante do céu que ele invocou, perto dos ossos de seus avós, pelos quais jurou, à luz da lua, que o alumiava, dir-vos-ei: aquele cavaleiro foi perjuro, blasfemo, desleal e covarde, e eu a sua vítima. É contra ele que ora vos peço justiça. Rei de Portugal, justiça!

Esta última palavra restrugiu horrìvelmente pelo aposento. El rei, que, durante o discurso de Dª Leonor, se erguera pouco a pouco, fascinado pelo seu gesto diabólico e pelo seu olhar fulminante, caiu outra vez, arquejando, sobre a cadeira. O desgraçado cobriu a cada com ambas as mãos e, depois de um momento de silêncio, murmurou:

– Mas como punir aqueles que, talvez, são cadáveres? A guerra e a fúria popular os puniram!

Dª Leonor triunfara.

– Nem todos! – prosseguiu a astuta e sanguinária pantera, acometendo o último entrincheiramento em que D. Fernando, já debalde, procurava defender-se. – Os seus mais vis inimigos ainda respiram e, porventura, ainda sonham vingança. Corregedor da Corte, lede os nomes escritos em vossa sentença.

O corregedor da Corte alevantou o pergaminho, afastando-o dos olhos e interpondo a mão aberta entre estes e a tocha que Nun’Álvares segurava; tossiu duas veses, inclinou para trás a cabeça e, com o tom cheio e solene de um mestre em degredos, leu:

– Item: Fernão Vaasques, peom, alfayate, cabeça e propoedor dos ssusodictos rreveis.

Aqui abriu o peitilho da garnacha, tirou a sua ementa particular e leu a seguinte cota:

– Vivo: muy malferido dhuùa ffrechada com herva no ffecto do meirinho-moor, quando hos da çidade llevarom os castellãos de vencida até mêa rrua nova.

Lida esta observação, o corregedor continuou a ler sucessivamente os nomes dos réus e as respectivas cotas.

– Item: Stevom Martins Bexigosso, mercador, peom, capitão dhuu corpo dos ssusodictos rreveis. – Fizia a ementa: – Morto de ssua door naturall.

“Item: Bertholameu Martijs, ourives, peom, dizidor de pallavras de desacatamento contra ssua rreal ssenhoria e de grão ssamdiçe e desavergonhamento. – Dizia a ementa: – Morto dhuua pedrada dhuu engenho dos imiguos.

“Item: Joham Lobeira, escudeiro, homem darmas, acostado do alcayde moor que ffoy do castello desta lyal cidade, capitão dos beesteiros que fforam a Ssam domingos. – Dizia a cota: – Foi cativo dhos castellãos: dado em reendiçom e a boõ rrequado na pryssom Dalcaçova.

“Item: Bertholameu Chambão, peom, tanoeiro, cabeça da beesteria do concelho, deputado pera ffazer vilta e affronta a ssua rreal ssenhoria ha muy excellente e muy vertuosa de gramdes vertudes, rrainha dona llyanor. – Rezava a ementa: – Morto dhuua lançada aa porta dho fferro.

“Item: Ayras Gil, petintal, capitão dos rreveis, gualiotes, arraizes e pesquadores Dalfama. – Dizia a cota: – Ffogido com os castellãos.

“Item: Fr. Roy, dalcunha Zambrana, biguino, ffolliom, jograll de sseu officio, bevedo, assoalhador de pallavras e dictos devedados, scuita dhos rreveis. – Notava a ementa: – Enssandeçeu na pryssom ao lleer da sentença.

Pobre Frei Roy! Vendo-se condenado à morte, desesperado, revelara o que tinha sido na sedição – um espia de Leonor Teles. A cota da ementa fora tudo o que tirara das suas revelações. O corregedor, homem agudo, como o melhor mestre em leis ou em degredos, deduzira das suas palavras que o beguino endoudecera, Frei Roy trocara as ideias. Tinha sido espia, mas dos sediciosos.

Alevantado o cerco de Lisboa, o corregedor da Corte fora o primeiro presente que a nova rainha enviara à cidade. Àquele perspeicaz e diligente magistrado poucos dias haviam bastado para preparar um sarau digno dela, uma sentença de morte. A prova da sua perspicácia e diligência estava em ter já no caminho da forca os desgraçados cuja sentença vinha trazer à confirmação real. Numa execução nocturna não havia a recear tumultos populares, e a brevidade que a rainha lhe recomendara neste negócio lhe fazia crer que não seria desagradável a sua real senhoria a imediata execução dos réus.

Quando acabou a leitura, el-rei tirou da bolsa que trazia no cinto o selo de camafeu e, sem dizer palavra, entregou-o ao corregedor. Este pegou na tocha de Nun’Álvares, deixou cair alguns pingos de cera no fundo do pergaminho, assentou-lhe em cima um fragmento de papel que tirara da ementa e cravou neste o selo. As armas de el-rei ficaram aí estampadas. O corregedor fizera isto com a prontidão e asseio com que o mais hábil algoz enforcaria o seu próximo.

Depois o honesto magistrado entregou o selo a el-rei, cujo tremor nervoso se renovara durante a fatal cerimónia. Ao pegar-lhe, o pobre monarca deixou-o cair no chão. O selo foi rolando e parou aos pés de Dª Leonor Teles. Ela empalideceu. Porquê? Talvez se lhe figurou uma cabeça humana que rolava diante dela.

O corregedor fez uma profunda vénia e perguntou em voz sumida à rainha:

– Quando, senhora?

No mesmo tom, Dª Leonor respondeu:

– Já.

O destro e activo corregedor tinha dado no vinte. O “já” da rainha seria mais “já” do que ela própria pensava.

O corregedor saiu.

A um aceno de Dª Leonor, o donzel meteu a tocha no anel de ferro embebido na parede de onde a tinha tirado e encaminhou-se para junto da porta. Ali ficou de braços cruzados, olhos no chão, e imóvel como estátua. Desde este dia, o formoso donzel odiou do fundo da alma a sua mui nobre senhora, aquela que lhe cingira a espada. O generoso Nun’Álvares conhecera que debaixo desse rosto suave se escondia um instinto de besta-fera.

Os dois fidalgos continuaram a passear de um para outro lado, conversando em voz baixa, e como alheios à cena que ali se passava.

El-rei tomara a primeira postura em que estava, com o cotovelo firmado no braço da cadeira, e a cabeça encostada no punho; mas os seus olhos, revolvendo-se-lhe nas órbitas, incertos e espantados, exprimiam a dolorosa alienação daquela alma tímida, atormentada por mil afectos opostos.

Ouvia-se apenas o cicio dos dois que conversavam. E, por largo espaço, aquele murmúrio e o respirar alto e convulso de D. Fernando foram o único ruído que interrompeu o silêncio do vasto aposento.

El-rei, com a mão esquerda pendente sobre os joelhos, deixava-se ir ao som das ideias tenebrosas que lhe ofuscavam o espírito e que, protraídas, o levariam bem próximo das raias de completa loucura. A imagem de Leonor Teles aparecia-lhe como composto monstruoso de vulto de anjo e de olhar de demónio. Um amor infinito arrastava-o para essa imagem; o horror afastava-o dela. Via-a como um simulacro das virgens que, na infância, imaginava, ao ouvir ler ao bom de seu aio Airas Gomes as lendas dos mártires; mas logo cuidava ouvi-la dar risada infernal, passando por cima das ruínas da cidade deserta. O patíbulo e os delírios amorosos; o cheiro do sangue e o hálito dos banquetes, misturavam-se-lhe no senso íntimo: e o pobre monarca, nos seus desvarios, perdera a consciência do lugar, da hora e da situação em que se achava naquele terrível momento.

Mas um beijo ardente, dado nessa mão que tinha estendida, e lágrimas ainda mais ardentes, que a regavam, foram como faísca eléctrica, revocando-o à razão e à realidade da vida.

A comoção indizível e misteriosa que sentira fez-lhe abaixar os olhos: a rainha estava a seus pés; era ela quem lhe cobria a mão de beijos e lha regava de lágrimas.

D. Fernando afastou-a suavemente de si: ela alevantou o rosto celeste orvalhado de pranto; era, de feito, a imagem de uma das mártires que ele via no seu imaginar de infância. Dª Leonor ergueu as mãos suplicantes, com um gesto de profunda angústia: então, era mais formosa que elas.

– Ah! – murmurou el-rei -, porque é o teu coração implacável, ou porque te amei eu tanto?!

– Desgraçada de mim! – acudiu Dª Leonor entre soluços. 0 O teu amor era como o íris do céu: era a minha paz, a minha alegria, a minha esperança; mas desvaneceu-se e passou; a vida de Leonor Teles desvancer-se-á e passará com ele!

– É porque sabes que esse amor não pode perecer; que esse amor é como um fado escrito lá em cima – interrompeu D. Fernando -, que tu me fazes tingir as mãos de sangue, para satisfazer as tuas cruéis vinganças: é porque sabes que esgoto sempre o cálix das ignomínias quando as tuas mãos mo apresentam, que me sacias de desonra. Terás, acaso, algum dia piedade daquele que fizeste teu servo, e que não pode esquivar-se a ser tua vítima?

– Aí, quanto és injusto, Fernando, e quão mal me conheces! – exclamou Leonor Teles, limpando as lágrimas. – Foi a tua dignidade real, e a tua justiça, o teu nome que eu quis salvar da tua própria brandura. Aos mesquinhos que me ofenderam perdoei de todo o coração; mas tu, que eras rei e juiz, não o podias fazer. Se o nome de teu virtuoso pai ainda hoje lembra a todos com veneração e amor, é porque teu pai foi implacável contra os criminosos, e aquilo em que pões a desonra e a ignomínia é a coroa de glória imortal que cera o seu nome. Se as minhas palavras te constrangeram a escolher entre a confirmação dessa fatal sentença e a deslealdade e a blasfémia, que não cabem em coração e lábios de cavaleiro, foi por te salvar de ti mesmo. Se crês que nisto fui culpada, dize-me só “Leonor, já te não amo!”, e eu ficarei punida; porque nessas palavras estará escrita a minha sentença de morte! Possas tu depois perdoar-me e proferir sobre a campa da pobre Leonor uma expressão de piedade!

As lágrimas e os soluços parecia não a deixarem prosseguir. Reclinou a cabeça sobre os joelhos de el-rei, apertando-lhe a mão entre as suas com um movimento convulso.

Formosa, querida, humilhada a seus pés, como resistiria o pobre monarca? Unindo a face àquela fronte divina, só lhe disse: “Oh, Leonor, Leonor!”, e as suas lágrimas misturavam-se com as dela.

Durante esta luta da dor e da hipocrisia, em que como sempre acontece, a última triunfava, o conde de Barcelos e D. Gonçalo Teles tinham-se encostado à janela fatal que dava para o rio e que, também, dominava grande porção do arrabalde ocidental da cidade. O espectáculo da noite era de melancólica magnificência.

A Lua caminhava nos céus limpos de nuvens, e pela face da terra nem suspirava uma aragem. A claridade do luar refrangia-se nas águas, mas esmorecia batendo na povoação, na qual não achava, além dos antigos muros, uma parede branqueada, uma pedra alva, onde espelhar-se, ou um sussurro de festa acorde com as suas harmonias. O incêndio e o ferro tinham passado por lá, e Lisboa era um caos de ruínas, um cemitério sem lápides. Apenas, no extremo do seu, dantes, mais rico e povoado arrabalde, amarelejava, polido pelo tempo, o gótico Mosteiro de S. Francisco, junto de sua irmã mais velha, a Igreja dos Mártires. No vale que ficava em meio a luz de cima embebia-se inùtilmente na povoação que jazia extinta. A bela Lua de Maio, tão fagueira para esta cidade querida, assemelhava-se à leoa que, voltando ao antro, acha o seu cachorrinho morto. A pobre fera ameiga-o como se fosse vivo, e vendo-o quedo, indiferente e frio, não crê, e vai e volta muitas vezes, renovando os seus inúteis afagos. Lisboa era um cadáver, e a Lua passava e sorria-lhe ainda!

Mas, no meio daquele chão irregular, negro, calado, viam-se, aqui e acolá, luzinhas que se meneavam de um para outro lado, ao que parecia, sem rumo certo. Era que os frades de S. Francisco e de S. Domingos faziam procurar por entre os entulhos as relíquias dos mortos, para lhes darem sepultura cristã. Neste piedoso trabalho, que seguiam sem descontinuar havia muito tempo, eram acompanhados por alguns do povo, que, para se esforçarem, cantavam uma cantiga pia, cujas coplas, bem que interrompidas, vinham, com triste som, bater de vez em quando nos ouvidos dos dois cavaleiros. Rezavam as coplas:

“De amigos e imigos,

Que aí são deitados,

Levemos os ossos

Ao chão dos finados.

Ave-maria!

Santa Maria!

Madre gloriosa,

Dessa alta ventura

Demovei os olhos

À nossa tristura.

Ave-maria!

Santa Maria!

Ao bento Jesus,

E ao padre eternal

Pedi que perdoe

A quem morreu mal.

Ave-maria!

Santa Maria!”

Esta longíqua toada perdeu-se no som de outra bem diversa, que se alevantou mais perto dos dois cavaleiros. Uma voz esganiçada dava o seguinte pregão:

– … Justiça que manda fazer el-rei em Fernão Vasques, João Lobeira e Frei Roy: que morram na forca, sendo ao primeiro as mãos decepadas em vida.

Os cavaleiros abaixaram os olhos para o lugar de onde subira a voz: era no terreiro próximo: os três padecentes e o algoz, cercados de alguns besteiros, aproximavam-se do cadafalso: vários vultos negros fechavam o préstito: daquela pinha partira a voz do pregoeiro.

Este pregão, dado a horas mortas e numa praça deserta, parecia um escárnio. Mas o corregedor da Corte era afamado jurisconsulto, e nós temos ouvido a alguns que na execução das leis as formas são tudo. Assim piamente o cremos.

Duas se tinham, porém, esquecido: os desgraçados morriam, como aqueles que o salteador assassina na estrada, pela alta noite, e sem um sacerdote que os consolasse na extrema agonia.

O algoz empurrou brutalmente um dos padecentes para uma espécie de marco escuro que estava ao pé do patíbulo. Daí a nada, os cavaleiros viram reluzir duas vezes um ferro: ouviram sucessivamente dois golpes, dados como em vão, seguindo-se a cada um deles um grito de terrível angústia.

O conde de Barcelos quis rir-se, mas a risada gelou-se-lhe na garganta, e, como Gonçalo Teles, recuou involuntàriamente.

O grito que restrugira chegara aos ouvidos de el-rei.

– Que bradar de homem que matam é este? – perguntou ele.

– Justiça de sua senhoria que se executa – respondeu o conde, que neste momento retrocedia da janela.

– Oh, desgraçados!, tão breve! – disse el-rei, passando a mão pela fronte, de onde manava o suor da aflição e do terror. Olhando então para Leonor Teles, acrescentou:

– Até à derradeira mealha estão pagas vossas arras, rainha de Portugal! Que mais pretendeis de mim?

E deixou pender a cabeça sobre o peito.

Dª Leonor não respondeu.

D. Gonçalo Teles aproximou-se então da cadeira de D. Fernando e curvou um joelho em terra.

El-rei alevantou os olhos e perguntou-lhe:

– Que me quereis?

– Senhor – respondeu o honrado e nobre cavaleiro -, se vossa senhoria consentisse neste momento em ouvir a súplica de um dos seus mais leais vassalos! …

– Falai – replicou D. Fernando.

– João de Lobeira acaba de receber o prémio da sua traição – prosseguiu D. Gonçalo. – O desleal escudeiro possuía avultados bens, que ficam pertencendo à coroa real. Por vossa muita piedade, podeis fazer mercê deles a seu filho Vasco de Lobeira; mas o pobre moço ensandeceu há tempos! Tresleu com livros de cavalarias, e tão varrido está que não fala em al, senão em um que anda imaginando e a que pôs o nome Amadis. Para um mesquinho parvo e sandeu pouco basta, e vossa real senhoria bem sabe que a minha escassa quantia mal chega…

– Calai-vos, calai-vos; que isso é negro e vil – bradou el-rei, redobrando-lhe o horror que tinha pintado no rosto. – Deixai ao menos que a sua alma chegue perante o trono de Deus!

– Apenas cinquenta maravedis! – murmurou D. Gonçalo, erguendo-se, e abaixando os olhos, aflito com a lembrança de sua extrema pobreza.

seis de Junho da era de César de 1411 (1373), em um dos andares da torre do castelo, o veador da chancelaria, Álvaro Pires, passeando de um para outro lado, ditava a um mancebo, vestido de garnacha preta, o qual tinha diante de si tinteiro, penas e folhas avulsas de pergaminho, a seguinte nota:

– Item. Pera se spreuer a ffolhas cento e vinte-oyto do llivro prymeyro da Cançelaria Delrrey nosso senhor: – Doaçom dos bees de rraiz e moviis de Joham Lobeira, confisquado e morto por treedor contra ho serviço de ssua real senhoria, ao muy nobre D. Gonçalo Tellez, per ho muyto divedo que cõ elrrey ha, e polos muytos serviços que del tee reeçebido e ao deante espera de rreçeber.

E o povo? … Oh, este, sim! Nistrava-se agradecido e bom no meio de tantas infâmias e crimes.

Os populares que, na manhã imediata àquela horrível noite dos fins de Maio, passavam pelo terreiro maldito onde pendiam da forca os três cadáveres, meneavam a cabeça e seguindo avante, diziam:

“Boa e prestes foi a justiça de el-rei nos traidores. Alcácer por sua senhoria.”

D. Fernando guardou até à Primavera de 73 a vingança contra os populares de Lisboa e de outras terras que no ano de 71 se tinham amotinado por causa do seu casamento. Vê-se isto dos documentos registrados na sua chancelaria e citados por Frei Manuel dos Santos. Quem atentamente tiver estudado o carácter atroz e dissimulado de Leonor Teles, tão bem pintado por Fernão Lopes, e os factos que provam a sua influência sem limites no ánimo daquele príncipe, não poderá esquivar-se a veementes suspeitas sobre os motivos que, num romance, nós danos como reais, porque aí é licito fazê-lo, da, aliás inexplicável, inacção com que D. Fernando não quis opor-se à vinda de el-rei de Castela sobre Lisboa, vinda que reduziu os seus moradores aos mais espantosos apuros e que converteu a cidade, por assim dizer, em um montão de ruínas. Daqueles documentos resulta que, depois de tirada toda a força aos habitantes de Lisboa pela guerra de Castela, em que se viram quase sós e abandonados, el-rei viera, sobre as ruínas da maior e melhor parte dela, satisfazer os ódios de D. Leonor; porque, levantando o cerco em Março de 73, achamos el-rei em Lisboa (aonde não volta desde a sua fuga no Outono de 71) durante alguns dias de Maio, e em Santarém e outros lugares nos meses seguintes, fazendo mercês dos bens dos cidadãos mortos, decepados ou fugidos, do que se pode concluir que então foram executados ou banidos, não sendo de crer que a cobiça cortesã tivesse esperado muitos dias sem prear estes sanguinolentos despojos.

O casamento de Leonor Teles e as consequências dele são o primeiro acto do drama terrível, da Ilíada scelerum da sua vida política. Foi este primeiro acto que nós procurámos dispor na tela do romance histórico. Todo o drama daria, nessa forma da arte, uma terrível “crónica”. Desde esta conjuntura até ser arrastada em ferros para Castela, por aqueles mesmos que chamara a assolar o seu país, a Lucrécia Bórgia portuguesa é, na história dessa época, uma espécie de fantasma diabólico, que aparece onde quer que haja um feito de traições, de sangue ou de atrocidade.

FIM

Fonte: virtualbooks.terra.com.br

Veja também

Os Reis Magos

PUBLICIDADE Diz a Sagrada Escritura Que, quando Jesus nasceu, No céu, fulgurante e pura, Uma …

O Lobo e o Cão

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Encontraram-se na estrada Um cão e um lobo. …

O Leão e o Camundongo

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Um camundongo humilde e pobre Foi um dia …

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.