Poemas e Poesias – Amadeu Amaral

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Soneto
Um Soneto de Bilac
Vencedor
Versos nevoentos
Vóz Íntima

A um adolescente

Basta crer na Beleza. Ama-a no Cosmos, fora
de ti, e ama-a em ti mesmo. É a suprema pesquisa!
Busca-a. E esculpe teu ser, juntando, hora por hora,
à mente que concebe o escopro que realiza.

Perguntas: — Onde o metro, a norma, a arte precisa
para rasgar no bloco a forma que se ignora?
— Quem ao leão deu o ardor com que os desertos pisa?
E quem à águia ensinou a ser do azul senhora?

Tens o instinto voador de quem nasceu com asa.
Ama o que é forte e puro, odeia o que é perverso,
o que é baixo, o que é vil, tudo que anda de rastros.

E põe-te em comunhão, no entusiasmo que abrasa,
com a Beleza, esplendor da Vida e do Universo,
com a poesia, os heróis, os abismos e os astros.

Falta o preceito firme a que a ação se conforme?
Falta uma diretriz certa e definitiva?
— Quem a teve jamais? O bom ideal é informe,
e a Certeza, ai de nós! de todo o encanto o priva.

A torrente que corre e espadana, áurea e viva,
sem parar nem recuar no itinerário enorme,
busca um sonho que além, sob a névoa, se esquiva…
e ai! dela, se desvenda o sonho azul que dorme!

Sê tu como a caudal: foge ao remanso e ao charco.
A água pura é a que ferve e cintila entre abrolhos.
O miasma e o lodaçal moram nas águas mansas.

Avança, seja o sol resplandecente ou parco;
— e se a meta surgir, algum dia a teus olhos,
impele-a para além à proporção que avanças!

Publicado no livro Espumas: versos (1917).

A um Manancial de Água Pura

No alto da escarpa, além, escorre e brilha
um leve, pequenino manancial:
é, entre rochas, uma fina estilha
de prata com sonidos de cristal.

Filha do morro, a fonte, boa filha,
agarra-se teimosa ao chão natal,
à trama das raízes, à escumilha
das ervas, aos farpões do pedregal.

Doce água! Aquele que a tomasse à fonte,
após lenta ascensão por duro monte,
esse a pudera bem julgar, enfim;

mas, não merece tanto esforço: escorre
abandonada e no abandono morre…
— Dentro de nós há mananciais assim.

16 de junho de 1921

Publicado no livro Lâmpada antiga: versos (1924). Poema integrante
da série Um Punhado de Sonetos.

Abrindo espumas

Que este livro, leitor, um momento consiga
prender o teu olhar como a nuvem que passa,
e num momento de sonho e de ilusão te faça
viver, e te provoque uma palavra amiga:

repercutam em ti as emoções que eu diga,
muito embora bem cedo o encanto se desfaça,
— e outro prêmio não quero, esse prêmio ultrapassa

quanta compensação mereça esta fadiga.

A que mais aspirar? E que há mais que eu mereça?
Passe tudo isto! Assim passam a vaga e as flores:
nada impede que o mar ondule e o chão floresça…

Eu não construo: canto… E entre todas as glórias
basta-me a de espelhar em poemas incolores
o perpétuo esplendor das coisas transitórias.

Capivari

Eis-me na minha velha terreola,
tão clara, tão singela, tão pequena!
Revivo a meninice, a a mesma cena:
Minha casa, o jardim, o teatro, a escola.

Todo passado se me desenrola
em torno, e tudo, como foi, se ordena.
Sorri, infante de rendada gola,
de cabelo doirado e alma serena.

Mas, quem sabe se o tempo que suponho
morto, ainda é presente? se a amargura
de o sentir findo não é mais que um sonho?

E, absorto, penso ouvir, pela janela,
a voz de minha mãe que me procura,
para saber se estou bem perto dela.

Crepúsculo Sertanejo

Eis-me na minha velha terreola,
tão clara, tão singela, tão pequena!
Revivo a meninice, a a mesma cena:
Minha casa, o jardim, o teatro, a escola.

Todo passado se me desenrola
em torno, e tudo, como foi, se ordena.
Sorri, infante de rendada gola,
de cabelo doirado e alma serena.

Mas, quem sabe se o tempo que suponho
morto, ainda é presente? se a amargura
de o sentir findo não é mais que um sonho?

E, absorto, penso ouvir, pela janela,
a voz de minha mãe que me procura,
para saber se estou bem perto dela.

Dialeto Caipira

Tivemos, até cerca de vinte e cinco a trinta anos atrás, um dialeto
bem pronunciado, no território da antiga província de S. Paulo.
É de todos sabido que o nosso falar caipira – bastante característico
para ser notado pelos mais desprevenidos como um sistema distinto e inconfundível
– dominava em absoluto a grande maioria da população e estendia
a sua influência à própria minoria culta. As mesmas pessoas
educadas e bem falantes não se podiam esquivar a essa influência.
(1)

Foi o que criou aos paulistas, há já bastante tempo, a fama
de corromperem o vernáculo com muitos e feios vícios de linguagem.
Quando se tratou, no Senado do Império, de criar os cursos jurídicos
no Brasil, tendo-se proposto São Paulo para sede de um deles, houve
quem alegasse contra isto o linguajar dos naturais, que inconvenientemente
contaminaria os futuros bacharéis, oriundos de diferentes circunscrições
do país…

O processo dialetal iria longe, se as condições do meio não
houvessem sofrido uma série de abalos, que partiram os fios à
continuidade da sua evolução.

Ao tempo em que o célebre falar paulista reinava sem contraste sensível,
o caipirismo não existia apenas na linguagem, mas em todas as manifestações
da nossa vida provinciana. De algumas décadas para cá tudo entrou
a transformar-se. A substituição do braço escravo pelo
assalariado afastou da convivência cotidiana dos brancos grande parte
da população negra, modificando assim um dos fatores da nossa
diferenciação dialetal. Os genuínos caipiras, os roceiros
ignorantes e atrasados, começaram também a ser postos de banda,
a ser atirados à margem da vida coletiva, a ter uma interferência
cada vez menor nos costumes e na organização da nova ordem de
coisas. A população cresceu e mesclou-se de novos elementos.
Construíram-se vias de comunicação por toda a parte,
intensificou-se o comércio, os pequenos centros populosos que viviam
isolados passaram a trocar entre si relações de toda a espécie,
e a província entrou por sua vez em contato permanente com a civilização
exterior. A instrução, limitadíssima, tomou extraordinário
incremento. Era impossível que o dialeto caipira deixasse de sofrer
com tão grandes alterações do meio social.

Hoje, ele acha-se acantoado em pequenas localidades que não acompanharam
de perto o movimento geral do progresso e subsiste, fora daí, na boca
de pessoas idosas, indelevelmente influenciadas pela antiga educação.
Entretanto, certos remanescentes do seu predomínio de outrora ainda
flutuam na linguagem corrente de todo o Estado, em luta com outras tendências,
criadas pelas novas condições.

Essas outras tendências irão continuando, naturalmente, a obra
incessante da evolução autônoma do nosso falar, que persistirá
fatalmente em divergir do português peninsular, e até do português
corrente nas demais regiões do país. Mas essa evolução
já não será a do dialeto caipira. Este acha-se condenado
a desaparecer em prazo mais ou menos breve. Legará, sem dúvida,
alguma bagagem ao seu substituto, mas o processo novo se guiará por
outras determinantes e por outras leis particulares.

Desapareceu quase por completo a influência do negro, cujo contato
com os brancos é cada vez menor e cuja mentalidade, por seu turno,
se modifica rapidamente. O caipira torna-se de dia em dia mais raro, havendo
zonas inteiras do Estado, como o chamado Oeste, onde só com dificuldade
se poderá encontrar um representante genuíno da espécie.
A instrução e a educação, hoje muito mais difundidas
e mais exigentes, vão combatendo com êxito o velho caipirismo,
e já não há nada tão comum como se verem rapazes
e crianças cuja linguagem divirja profundamente da dos pais analfabetos.

Por outro lado, a população estrangeira, muito numerosa, vai
infiltrando as suas influências, por enquanto pouco sensíveis,
mas que por força se farão notar mais ou menos remotamente.
Os filhos dos italianos, dos sírios e turcos aparentemente se adaptam
com muita facilidade à fonética paulista, mas na verdade trazem-lhe
modificações fisiológicas imperceptíveis, que
se irão aos poucos revelando em fenômenos diversos dos que até
aqui se notavam.

O que pretendemos neste despretensioso trabalho (de que pedimos escusa aos
componentes) é – caracterizar essa dialeto "caipira", ou,
se acham melhor, esse aspecto da dialetação portuguesa em S.
Paulo. Não levaremos, por isso, em conta todos os paulistismos que
se nos têm deparado, mas apenas aqueles que se filiam nessa velha corrente
popular.

É claro que não é esta uma tarefa simples, para ser
levada a cabo com êxito por uma só pessoa, muito menos por um
hóspede em glotologia. Mas é bom que se comece, e dar-nos-emos
por satisfeito, se tivermos conseguido fixar duas ou três idéias
e duas ou três observações aproveitáveis, neste
assunto, por enquanto, quase virgem de vistas de conjunto, sob critérios
objetivos. Quanto aos erros que, apesar de todo o nosso esforço, nos
hajam escapado, contamos com a benevolência dos entendidos.

* * *

Fala-se muito num "dialeto brasileiro", expressão já
consagrada até por autores notáveis de além-mar; entretanto,
até hoje não se sabe ao certo em que consiste semelhante dialetação,
cuja existência é por assim dizer evidente, mas cujos caracteres
ainda não foram discriminados. Nem se poderão discriminar, enquanto
não se fizerem estudos sérios, positivos, minuciosos, limitados
a determinadas regiões.

O falar do Norte do pais não é o mesmo que o do Centro ou o
do Sul. O de S. Paulo não é igual ao de Minas. No próprio
interior deste Estado se podem distinguir sem grande esforço zonas
de diferente matiz dialetal – o Litoral, o chamado "Norte", o Sul,
a parte confinante com o Triângulo Mineiro.

Seria de se desejar que muitos observadores imparciais, pacientes e metódicos
se dedicassem a recolher elementos em cada uma dessas regiões, limitando-se
estritamente ao terreno conhecido e banindo por completo tudo quanto fosse
hipotético, incerto, não verificado pessoalmente. Teríamos
assim um grande número de pequenas contribuições, restritas
em volume e em pretensão, mas que na sua simplicidade modesta, escorreita
e séria prestariam muito maior serviço do que certos trabalhos
mais ou menos vastos, que de quando em quando se nos deparam, repositórios
incongruentes de fatos recolhidos a todo preço e de generalizações
e filiações quase sempre apressadas.

Tais contribuições permitiriam, um dia, o exame comparativo
das várias modalidades locais e regionais, ainda que só das
mais salientes, e por ele a discriminação dos fenômenos
comuns a todas as regiões do país, dos pertencentes a determinadas
regiões, e dos privativos de uma ou outra fração territorial.
Só então se saberia com segurança quais os caracteres
gerais do dialeto brasileiro, ou dos dialetos brasileiros, quantos e quais
os subdialetos, o grau de vitalidade, as ramificações, o domínio
geográfico de cada um.

Seremos imensamente grato às pessoas que se dignarem de nos auxiliar,
de acordo com as idéias que aí ficam esboçadas, no aumento
e no aperfeiçoamento desta modesta tentativa. A essas recomendamos
as seguintes normas a observar:

a) não recolher termos e locuções apenas referidos por
outrem, mas só os que forem pessoalmente apanhados em uso, na boca
de indivíduos desprevenidos;

b) indicar, sempre que for possível, se se trata de dicção
pouco usada ou freqüente, e se geralmente empregada ou apenas corrente
em determinado grupo social;

c) grafá-la sempre tal qual for ouvida. Por exemplo: se ouvirem pronunciar
capuêra, escrever capuêra e não capoeira. Isto é
essencial, e há muitíssimas coleções de vocábulos
que, por não terem obedecido a este preceito, quase nenhum serviço
prestam aos estudiosos, não passando, ou passando pouco de meras curiosidades;

d) se houver diferentes modos de pronunciar o mesmo vocábulo, reproduzi-los
todos com a mesma fidelidade;

e) sempre que possa dar-se má interpretação à
grafia adotada, explicar cumpridamente os pontos duvidosos;

f) ter especial cuidado em anotar os sons peculiares à fonética
regional (como o som de r em arara, ou o som de g em gente) ; declarar como
devem ser pronunciadas tais letras, no caso de que o devam ser sempre da mesma
maneira, e adotar um sinal para distinguir uma pronúncia de outra,
no caso de haver mais de uma (por exemplo, um ponto em cima do g quando soa
aproximadamente dg, para o diferençar do que soa a moda culta; uma
risca sobre o c, para significar que é explosivo, como em chave (tchave),
etc.

I – FONÉTICA

1.º GENERALIDADES

1. Antes de tudo, deve notar-se que a prosódia caipira (tomando o
termo prosódia numa acepção lata, que também abranja
o ritmo e musicalidade da linguagem) difere essencialmente da portuguesa.

O tom geral do frasear é lento, plano e igual, sem a variedade de
inflexões, de andamentos e esfumaturas que enriquece a expressão
das emoções na pronunciação portuguesa.

2. Os acentos em que a voz mais demoradamente carrega, na prolação
total de um grupo de palavras, não são em geral os mesmos que
teria esse grupo na boca de um português; e as pausas que dividem tal
grupo na linguagem corrente são aqui mais abundantes, além de
distribuídas de modo diverso. Na duração das vogais igualmente
difere muito o dialeto: se, proferidas pelos portugueses, as breves duram
um tempo e as longas dois, pode-se dizer, comparativamente, que no falar caipira
duram as primeiras dois tempos e as segundas quatro.

Este fenômeno está estreitamente ligado à lentidão
da fala, ou, antes, se resolve num simples aspecto dela, pois a linguagem
vagarosa, cantada, se caracteriza justamente por um estiramento mais ou menos
excessivo das vogais (2),

3. Também decorre dessa mesma lentidão, como um resultado natural,
o fato de que o adoçamento e elisão das vogais átonas,
coisas comuns na pronunciação portuguesa, são aqui fenômenos
relativamente raros. Com efeito, compreende-se bem que o português,
na sua pronunciação vigorosa e rápida, torture muito
mais os vocábulos, abreviando-os pelo enfraquecimento e supressão
das vozes átonas internas, ligando-os uns aos outros pela absorção
das átonas finais nas vogais que se lhes seguem: subrádu, p’dáçu,
c’rôa, ‘sp’rança, tiátru, d’hoj’em diante, um’august’assemblêia.
Da mesma forma, compreende-se que o caipira paulista, no seu pausado falar,
que por força há de apoiar-se mais demoradamente nas vogais,
não pratique em tão larga escala essas mutações
e elisões.

O caipira (como, em geral, todos os paulistas) pronuncia, em regra, claramente
as vogais átonas, qualquer que seja a posição das mesmas
no vocábulo: esperança, sobrado, pedaço, coroa, e recorre
poucas vezes a sinalefa. Nos próprios monossílabos átonos
me, te, se, de, o, que, etc., as vogais conservam o seu valor típico
bem distinto, ao contrário do que sucede com os portugueses, em cuja
pronunciação normal elas se ensurdeceram, assumindo tonalidades
especiais.

Pode dizer-se que no dialeto não lia vogais surdas: todas soam distintamente,
salvos os casos de queda ou de sinalefa. Dai provém o dizer-se que
os caipiras acentuam todas as vogais, o que é falso, mas explica-se.
E que não se leva em conta a duração relativa das átonas
e tônicas, a que atrás nos referimos.

4. Não podemos, porém, atribuir inteiramente à influência
da lentidão e pausa da fala essa melhor prolação das
vogais átonas, no dialeto. Haverá também causas históricas,
por ora pressentidas apenas.

O fenômeno é, naturalmente, complexo, e são complexas
as suas causas; mas é impossível negar que existe pelo menos
uma estreita correlação entre um e outro fato.

5. Seria, aliás, muito interessante um estudo acurado das feições
especiais da prosódia caipira, com o objetivo de discriminar a parte
que lhe toca na evolução dos diferentes departamentos do dialeto.
Chegar-se-ia de certo a descobertas muito curiosas, até no domínio
dos fatos sintáticos.

A diferenciação relativa à colocação dos
pronomes oblíquos, no Brasil, deve explicar-se, em parte, pelo ritmo
da fala e pelo alongamento das vogais (3), Esses pronomes, no português
europeu, se antepõem ou pospõem a outras palavras, que os atraem,
incorporando-os. Prosodicamente, não têm existência autônoma:
são sons ou grupos de sons, destinados a adicionarem-se aos vocábulos
acentuados, segundo leis naturais inconscientemente obedecidas (ênclise,
próclise). Passando para o Brasil, a língua teve que submeter-se
a outro ritmo, determinado por condições fisiológicas
e psicológicas diversas: era o suficiente para quebrar a continuidade
das leis de atração que agiam em Portugal. O alongamento das
vogais, dando maior amplitude aos pronomes na pronúncia, tornando mais
sensível a sua individualidade, veio acentuar, de certo, aquele efeito.

2.º OS FONEMAS E SUAS ALTERAÇÕES NORMAIS

6. Os fonemas do dialeto são em geral os mesmos do português,
se não levarmos em conta ligeiras variantes fisiológicas, que
sempre existem entre povos diversos e até entre frações
de um mesmo povo; variantes essas de que, pela maior parte, só a fonética
experimental poderia dar uma notação precisa. Cumpre, entretanto,
observar o seguinte:

a) s post-vocálico tem sempre o mesmo valor: é uma linguo-dental
ciciante, não se notando jamais as outras modalidades conhecidas entre
portugueses e mesmo entre brasileiros de outras regiões; s propriamente
sibilante, assobiado, e bem assim chiante, são aqui desconhecidos.
Para produzir este som a língua projeta a sua ponta contra os dentes
da arcada inferior e encurva-se de modo que os bordos laterais toquem os dentes
da arcada superior, só deixando uma pequena abertura sob os incisivos:
modo de formação perfeitamente igual ao de c em cedo. (4)

b) r inter e post-vocálico (arara, carta) possui um valor peculiar:
é linguo-palatal e guturalizado. Na sua prolação, em
vez de projetar a ponta contra a arcada dentária superior, movimento
este que produz a modalidade portuguesa, a língua leva os bordos laterais
mais ou menos até os pequenos molares da arcada superior e vira a extremidade
para cima, sem tocá-la na abóbada palatal. Não há
quase nenhuma vibração tremulante. Para o ouvido, este r caipira
assemelha-se bastante ao r inglês post-vocálico. É, muito
provavelmente, o mesmo r brando dos autóctones. Estes não possuíam
o rr forte ou vibrante, sendo de notar que com o modo de produção
acima descrito é impossível obter a vibração desse
último fonema. (5)

c) A explosiva gutural gh tem uma tonalidade especial, sobretudo antes dos
semiditongos cuja prepositiva é u, casos em que freqüentemente
se vocaliza: áu-ua = água, léu-ua = légua).

d) ch e j palatais são explosivos, como ainda se conservam entre o
povo em certas regiões de Portugal (6), no inglês (chief, majesty)
e no italiano (ciclo, genere).

e) A consonância palatal molhada lh não existe no dialeto, como
na maioria dos dialetos port. de África e Ásia, e como em vários
dialetos castelhanos da América. (7)

7. Os fenômenos de diferenciação fonética que
caracterizam o dial. resumem-se desta forma:

VOGAIS

As TÔNICAS, em regra, não sofrem alteração. O
único fato importante a assinalar com relação a estas
é que, quando seguidas de ciciante (s ou z), no final dos vocábulos,
se ditongam pela geração de um i: rapáiz, méis,
péis, nóis, láiz. (8)

8. Quanto às ÁTONAS:

Na sílaba postônica dos vocábulos graves, conservam o
seu valor típico. Não se operou aqui a permuta de e final por
i, que se observa em outras regiões do país (oquêli, êsti),
como não se operou a de o por u (povu, dígu), fenômeno
este que se manifestou em Portugal, ao que parece, a partir do séc.
XVIII.

Nos vocábulos esdrúxulos, a tendência éeacute; para suprimir
a vogal da penúltima sílaba e mesmo toda esta, fazendo grave
o vocábulo (ridico = ridículo, legite = legítimo, cosca
= cócega, musga = música. Exceção: lático
< látego (curiosa reversão à forma originária;
cp. cósca < coç’ca < cócica), sumítico,
nófico, etc.

9. Nas sílabas pretônicas, alteram-se mais, como se verá
das seguintes notas:

e – a) Inicial, aparece mudado em i nasal em inzame < exame, inguá
< igual, inzempro < exemplo, inleição < eleição.

A nasalação de e inicial seguido de x é fenômeno
observado em tempos afastados da língua: enxame < examen, enxada
< exada, enxuito < exsuctum. Enxempro encontra-se nos escritores mais
antigos. Do mesmo modo inliçon (eleição).

b) Medial, muda-se freqüentemente em i (tisôra, Tiodoro, piqueno),
sobretudo se há outro i na sílaba seguinte: pirigo, dilicado,
minino, atrivido, intiligente, pidi(r), midi(r), pitiço (assimilação
regressiva).

Na pronúncia normal portuguesa tem-se dado, em tais casos, justamente
o fenômeno contrário (dissimilação), embora nem
sempre se substitua i por e na escrita: menino, preguiça, vezinho,
menistro. O caipira ainda conserva, como remanescente do que aprendeu dos
portugueses, a esse respeito, o nome próprio Vergílio, que pronuncia
com e. Também diz Fermino.

Este fonema perdura intacto nos derivados e nas formas flexionadas, quando
tônico nas palavras originárias: pretura, pretinho, pretejado,
pedrenio, medroso.

10. o – Medial, muda-se muitas vezes em u: tabuleta, cuzinha, dumingo, sobretudo
nos infinitivos dos verbos em ir, que o têm na sílaba imediatamente
anterior à tônica: ingulí(r), buli(r), tussi(r), surti(r).
A possuir corresponde a forma dialetal pissuí(r), que também
existe em galego. (9)

Nos infinitivos dos verbos em ar e er, conserva-se: cobrá(r), cortá(r),
broqueá(r), intortá(r), sofrê(r), podê(r).

Conserva-se também nos derivados e nas formas flexionadas, quando
tônico nas palavras originárias: locura, boquêra, porcada,
mortinho, rodêro.

Conserva-se geralmente, aberto, nos diminutivos de nomes que o têm
assim: pòrtinha, pòtinho, còbrinho (ao contrário
do que se dá em outros pontos do país; notadamente em Minas,
onde estes diminutivos têm o fechado).

11. en (en, em) – Inicial, muda-se em in: imprego, incurtá(r), insino,
imborná(l), insi(lh)á(r).

Em inteiro e indireitar, ao contrário, depara-se às vezes o
i mudado em e – entêro, endereitá(r), provavelmente por assimilação
regressiva. Aliás, as formas enteiro, enteiramente, endereitar, encontram-se
em documentos portugueses anteriores à reação erudita.

12. õ (on, om) – Medial, muda-se em u, em lumbi(lh)o, amuntá(r),
cume(r), cumpadre, cumigo, cunversa, cumeçá(r) e em geral nos
vocábulos cuja sílaba inicial e cõ.

GRUPOS VOCÁLICOS

(acentuados ou não)

13. ai (dit.) – Antes da palatal x, reduz-se à prepositiva: baxo,
baxêro, faxa, caxa, paxão.

Dois exemplos de mudança em éi: téipa, réiva.

14. ei (dit.) – Reduz-se a e quando seguido de r, x ou j: isquêro,
arquêre, chêro, pêxe, dêxe, quêjo, bêjo,
berada.

Nos vocábulos em que é seguido de o ou a, como ceia, cheio,
veia, também aparece às vezes representado por ê: chêo,
vêa, cêa. Cp. a evolução destas palavras no português:
cheio < chêo < cheno < *cheno < plenu(m); veia < vêa
< vena etc.

15. ou e oi (dits.) – a) Acentuado ou não, contrai-se o primeiro em
ô: poco, tôro, locura, rôpa.

Em Portugal, bem como no falar da gente culta no Brasil, há notório
sincretismo no uso dos ditongos ou e oi. Para o caipira tal sincretismo não
existe: os vocábulos onde esses ditongos aparecem são pronunciados
sempre de um só modo. Assim, lavôra, ôro, estôro,
côro, côve, lôco, bassôra, tôca, frôxo,
trôxa, e nunca lavoira, oiro, etc.; por outro lado, dois, noite, coisa,
poiso, foice, toicinho, oitão, afoito, biscoito, moita, e nunca dous,
noute, etc. Se há formas sincréticas, são raríssimas.

A causa desta distinção é puramente fonética:
note-se, nos exemplos acima, que há ô diante dos sons r, v, k
e x, e oi diante de s = ç, z etc.

b) Nas formas verbais em que o acento tônico recai em ou, este às
vezes se contrai em ó: róba, estóre, afróxa. A
trouxe corresponde truxe; a soube, sube.

16. ein (em) – Final de vocábulo, reduz-se a e grave; viaje, virge,
home, êles corre.

Parece-nos inútil acentuar que na palavra portuguesa viagem e em outras
de idêntica terminação existe um verdadeiro ditongo nasal
grafado em (viagein, virgein, etc.) Da mesma forma existe o ditongo nasal
õu nas palavras bom, som, etc. (bõu, sõu).

17. õu (om) – a) Na preposição com, reduz-se à
vogal nasal un, quando se segue a essa prep. palavra que comece por consoante:
cum você, cum quem vô, cumsigo, (com-sigo). Quando há eclipse,
reduz-se a o grave: co ele, cos diabo(s).

b) Nas palavras bom, tom e som muda-se em ão: bão, tão,
são.

18. ío (hiato) – Final de vocábulo, ditonga-se sempre em iu:
paviu, tiu, riu.

CONSOANTES

19. b e v – Muda-se às vezes uma na outra, dando lugar a várias
formas sincréticas:

burbuia e vevúia – borbulha

bassôra e vassora – vassoura

berruga e verruga – verruga

biête e viête – bilhete

cabortêro e cavortero – cavorteiro

jabuticaba e jabuticava – jaboticaba

Piracicaba e Pricicava – Piracicaba

mangaba e mangava (fruta) – mangaba

bespa e vespa – vespa

bagaço e vagaço – bagaço

bamo e vamo – vamos

20. d – Cai, quase sempre, na sílaba final das formas verbais em ando,
ando, indo: andano = andando, veno = vendo, caíno, pôno, e também
no advérbio quando, às vezes,

21. gh – Quando compõe sílaba com os semiditongos ua, uá,
ue, ué, uê, ul, como em guarda, água, tigüera, sagüi,
torna-se quase imperceptível, vocalizando-se freqüentemente em
u. Neste caso, esse u ditonga-se com a vogal anterior, e o segundo u continua
a formar semiditongo com a vogal seguinte: áu-ua, tiu-uéra,
sáu-ui.

22. l – a) Em final de sílaba, muda-se em r: quarquér, papér,
mér, arma.

Na locução tal qual, cai apenas o segundo l, porque o primeiro
se tornou intervocálico: talequá. E ainda digna de nota a locução
adverbial malemá (grafada como se pronuncia), que quer dizer "passavelmente",
"sofrivelmente", "assim assim". (Terá provindo
de mal e mal, ou de mal a mal, ou ainda de "mal, mal"? Fazer um
serviço mal e má (l): passavelmente, antes mal que bem; passar
mal e má de saúde: sofrivelmente).

As palavras terminadas em aí, el, il.. freqüentemente aparecem
apocopadas: má, só, jorná = mal, sol, jornal. Não
inferir daí que houve queda de l. Esse l mudou-se primeiro em r, e
depois caiu este fonema, de acordo com uma das leis mais rígidas, e
mais facilmente verificáveis, da fonética dialetal.

É de notar-se ainda que a pronúncia em questão (má,
só) é mais comum entre os negros, que, submetidos, em geral,
ao império das mesmas leis, quando no mesmo meio, não deixam
entretanto de diferir dos caboclos e brancos em mais de um ponto.

b) Quando subjuntivo de um grupo, igualmente se muda em r: craro, cumpreto,
cramô(r), frô(r).

Esta troca é um dos vícios de pronúncia mais radicados
no falar dos paulistas, sendo mesmo freqüente entre muitos dos que se
acham, por educação ou posição social, menos em
contato com o povo rude.

(Cp. 6-b).

23. r – a) Cai, quando final de palavra: andá, muié, esquecê,
subi, vapô, Artú.

Conserva-se, entretanto, geralmente, em alguns monossílabos acentuados,
tendo de certo influído nisso a posição proclítica
habitual: dôr, cór, côr, par. Conserva-se também
no monossíl. átono por, pela mesma razão, assim como,
raras vezes, em palavras de mais de uma sílaba: amor, suôr. Nos
verbos, ainda que monossílabos, cai sempre, provavelmente pela influência
niveladora da analogia: vê, í, pô.

b) Esta consonância é de extrema mobilidade no seio dos vocábulos,
dando lugar a metáteses e hipérteses freqüentíssimas.
(26, i-j).

24. s – Cai, quando final de palavra paro ou proparoxítona: arfére
(alferes), pire (pires), bamo (vamos), imo (imos).

Desaparece também nos oxítonos, quando é sinal de pluralidade:
mau, bambu, avo.

Conserva-se nos adjetivos determinativos e nos pronomes, ainda que graves,
o que se explica, em parte, pela posição proclítica habitual:
duas casa, minhas fiia, arguas pessoa, aqueles minino, eles, elas. A prova
é que, quando não está em próclise, freqüentemente
se submete à regra: aquelas são as minha, estas são sua.
Em parte, porém, essa conservação se deve à necessidade
de manter um sinal de pluralidade. Voltaremos oportunamente a este ponto,
que é, talvez, mais do domínio dos fenômenos psicológicos
na morfologia, do que de ordem fonética.

25. lh – Vocaliza-se em i: espaiado, maio, muié, fiio = espalhado,
malho, mulher, filho.

Cp. o que se dá com o l molhado em Cuba, na Argentina (caje = calle,
cabajo = caballo) e na França, onde desde o século XVIII começou
a acentuar-se a tendência para a vocalização deste fonema
(batáie, Chantií = bataille, Chantilly).

3.º MODIFICAÇÕES ISOLADAS

26. Além das alterações francamente normais, que ficaram
registradas, há toda uma multidão de modificações
acidentais, de que daremos alguns exemplos:

a) abrandamento: guspe = cuspo, musga = música.

E de notar que nos esdrúxulos cócega, náfego e látego
se dá o contrário: cócica (e coçca), náfico,
lático.

b) assimilação – progressiva. Carlo = Carlos, regressiva. birro
-bilro; açcançá = alcançar; digêro = ligeiro
(g palatal explosivo = dg).

c) Aférese: (a)parece, (i)magina, (ar)rependeu, (ar)ranca, (a)lambique,
(al)gibêra.

d) Síncope: pês(se)co = pêssego, mus(i)ga = música,
isp(i)rito, ca(s)tiçar, Jeró(ni)mo, ridíc(ul)o.

e) Apócope: Ligite(mo).

f) Prótese: alembrá = lembrar, avoá = voar, arripiti
= repetir.

g) Epêntese: rec-u-luta, Ing-a-laterra, g-a-rampo.

h) Epítese: paletor.

i) Metátese: perciso, pertende, purcissão, partelêra,
agardecê, aquerditá(r).

j) Hipértese: agordão (algodão), cardaço, chacoalhá(r),
largato.

27. Devem mencionar-se ainda as formas proclíticas:

de senhor – nho, seô, seu, siô, sô;

de senhora – nhá, seá, sea, sia, sa;

de minha – mea e mha;

de sua – sa

de não – num. (10)

II. – LEXICOLOGIA

1. O vocabulário do dialeto é, naturalmente, bastante restrito,
de acordo com a simplicidade de vida e de espírito, e portanto com
as exíguas necessidades de expressão dos que o falam. Esse vocabulário
é formado, em parte:

a) de elementos oriundos do português usado pelo primitivo colonizador,
muitos dos quais se arcaízaram na língua culta;

b) de termos provenientes das línguas indígenas;

c) de vocábulos importados de outras línguas, por via indireta;

d) de vocábulos formados no próprio seio do dialeto.

ELEMENTOS DO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI

2. Em verdade, estes não se limitam ao léxico. Todo o dialeto
está impregnado deles, desde a fonética até a sintaxe.
A sua discriminação através dos vários departamentos
do dialeto constituiria sem duvida um dos mais curiosos estudos a que se pode
prestar a nossa linguagem rústica, e não só pelo interesse
puramente lingüístico, senão também pelo clarão
que lançaria sobre questões atinentes à formação
do espírito do nosso povo.

Sobre a importância lingüística, não é necessário
insistir, pois ela, por assim dizer, se impõe por definição.
Basta notar o seguinte: uma vez reconhecido que o fundo do dialeto representa
um estado atrasado do português, e que sobre esse fundo se vieram sucessivamente
entretecendo os produtos de uma evolução divergente, o seu acurado
exame pode auxiliar a explicação de certos fatos ainda mal elucidados
da fonologia, da morfologia e da sintaxe histórica da língua.
Por exemplo: a pronunciação clara de e e o átonos finais
comprova o fato de que o ensurdecimento vozes só começou em
época relativamente próxima, pois de outro modo não se
compreenderia porque o caipira analfabeto pronuncia lado, verdade, quando
os portugueses pronunciam ladu, verdad’.

3. São em grande número, relativamente à extensão
do vocabulário dialetal, as formas esquecidas ou desusadas na língua.
Lendo-se certos documentos vernáculos dos fins do século XV
e de princípios e meiados do século XVI, fica-se impressionado
pelo ar de semelhança da respectiva linguagem com a dos nossos roceiros
e com a linguagem tradicional dos paulistas de "boa família",
que não é senão o mesmo dialeto um pouco mais polido.

Na carta de Pero Vaz Caminha abundam formas vocabulares e modismos envelhecidos
na língua, mas ainda bem vivos no falar caipira: inorância, parecer
(por aparecer) mêa (adj. meia), u"a, trosquia, imos (vamos), despois,
reinar (brincar), preposito, vasios (região da ilharga), luitar, desposto,
alevantar, "volvemo nos lá bem noute", "veemo nos nas
naus’, "lançou o na praya".

4. Os elementos arcaicos da língua, conservados no vocabulário
dialetal, dividem-se, naturalmente, em arcaísmos de forma, de significação,
e de forma e significação (11) Exemplos:

ARCAÍSMOS DE FORMA

acupá(r) inorá(r)

agardecê(r) livér

argua (u nasal). ……….. lua (u nasal)

avaluá(r) malino

Bertolomeu manteúdo

correição …………………. ninhua (u nasal)

cresçudo premêro

dereito repuná(r)

eigreja reposta

ermão saluço

escuitá(r) somana

estâmego sajeitá(r)

fermoso sojigá(r)

fruita sovertê(r)

ímburuiá(r) súpito

intrúido teúdo

inxúito trusquia

ARCAÍSMOS DE SENTIDO

aério ………………………… perplexo

dona ………………………… senhora

função ……………………… baile, folguedo

praça ………………………..povoado

reiná(r) ……………………. fazer travessuras

salvar ……………………… saudar

ARCAÍSMOS DE FORMA E SENTIDO

arreminado …………………………… indócil

contia ………………………………….. quantidade qualquer

cuca (arc. côco, côca) escotêro .. ente fantástico

escotêro ……………………………….. o que viaja sem bagagem

imitante (como particípio)

modinha ………………………………. cançoneta

punir ……………………………………. defender, "pugnar"

sino-samão …………………………… signo de Salomão.

5. Abundam igualmente as locuções arcaicas ou, pelo menos,
de sabor arcaico bem pronunciado:

a modo que

a pôs, a pôs de ……………………… a pós de

antes tempo (sem prep.) ………… antes da hora, antecipadamente

a par de ………………………………. junto, ao lado

de verdade ………………………….. de véras

de primeiro …………………………. outrora

em antes de ………………………… antes de

no mais ……………………………… não mais

neste meio …………………………. entrementes

6. É natural que, diante de certas formas apontadas como arcaicas
(ermão, somana), haja dúvida se de fato se trata de arcaísmo,
se de mera coincidência. Num ou noutro caso, esta última hipótese
será talvez a mais aceitável: por exemplo, se o nosso povo pronuncia
craro, frôr, não se deve ter pressa em ligar essas formas, historicamente,
às idênticas que se encontram em velhos documentos da língua;
pois que tais formas, antes de mais nada, obedecem a uma lei da fonética
local, a permutação de l subjuntivo por r. Mas, ermão,
somana, etc., só se podem explicar como formas recebidas dos colonizadores,
pois, além de se encontrarem em escritos antigos, se confirmam por
outros fatos análogos da língua, ao passo que mal se acomodam
às regras que atuam na alteração dialetal dos vocábulos.

ELEMENTOS INDÍGENAS

7. Das línguas dos autóctones, ou, melhor, do tupi, recebeu
o dialeto grande quantidade de termos.

A nossa população primitiva, durante muito tempo, antes da
introdução do negro, era, pela maior parte, composta de indígenas
e de mestiços de indígenas. Da extensão que teve a língua
dos aborígenes no falar dos primitivos dois ou três séculos
da nossa existência, dão testemunho flagrante, além de
muitos vocábulos que entraram nos usos sintáticos correntes,
os não menos numerosos topônimos, que se encontram nas vizinhanças
dos centros de população mais antigos.

8. Quanto a isto sobressai a capital com seus arredores, onde abundam os
nomes tupis, os quais vão escasseando pelo interior, nas zonas mais
novas, onde, ainda assim, os que se nos deparam são em boa parte artificialmente
compostos. Só no município de São Paulo e nos que com
ele confinam se contam por dezenas os rios, riachos, montes, bairros, fazendas
e povoados com denominações tupis tradicionais (12):

Açu

Caguassu

Choruróca

Guaracau

Ajuá

Cabussu

Cocaia

Guarapiranga

Aricanduva

Caçacuéra

Cupecê

Guarará

Anhangabaú

Caçandoca

Ebirapuéra

Guaratim

Baquiruvu-guassu

Caçapava

Gopaúva

Guaraú

Bopi

Cangùera

Guacuri

Guavirutuba

Botucuara

Canindé

Guaiaúna

Imbiras

Buçucaba

Caraguatá

Guaió

Itaberaba

Butantan

Carapicuiba

Guapira

Itacuaquecetuba

Itacuéra

Jaguaré

Nhanguassú

Tacuaxiara

Itaguassu

Jaraguá

Pacaembú

Tamanduitei

Itaim

Jaraú

Pari

Tamburé

Itaparicuéra

Juquiri

Piquiri

Tatuapé

Itaperoá

Jurubatuba

Pirajussara

Tremembé

Itapicirica

Mandaqui

Pirituba

Tucuruvi

Itararé

Mandi

Pirucaia

Uberaba

Ipiranga

Mhoi

Prati

Utinga

Jaceguava ou

Mooca

Poá

Votussununga

Jaceguai

Murumbi

Quitaúna

Voturantim

Jacuné

Mutinga

Saracura

acará

guará

maracanã

sucuri

anu

guariba

mucuím

suindara

araponga

guaripu

mumbuca

surubi

arapuá

guaru-guaru

mussurana

sussuarana

arara

gùirá

mutuca

tabarana

bacurau

içá

mutum

tamanduá

baitaca

inhambu

nhaçanã

tambijuá

biguá

irara

paca

tambiú

biriba

itobi

pacu

tanajura

borá

jacaré

pairiru

tangará

caçununga

jacu

piaba

taperá

cambucu

jaburu

piapara

tarira

caninana

jacutinga

penambi

taçuíra

capivara

jaguatirica

piracambucu

tatêto

cará-cará

jaó

piracanjuba

tatorana

chabó

japu

piraju

tatu

coró

japuíra

pirambóia

tietê

cuati

jararaca

piranha

tiriva

cuiú-cuiú

jateí

sabiá

tovaca

cumbé

jaú

sabiá-cica

tuím

cupim

jiquitiranabóia

sabiá-poca

tuiuva

curiango

jundiá

sabiá-una

tuvuna

curimbatá

jurutí

sanhaço

uru

curió

lambari

sanharão

urubu

curruíra

mamangava

saracura

urutau

curuquerê

mandaçáia

sará-sará

urutu

cutía

mandaguarí

saúva

xororó

gambá

mandi

siriêma

xupim

gaturamo

mandorová

siri

giboia

manduri

socó

10. Não são menos abundantes os nomes indígenas de vegetais,
de que daremos algumas dezenas, à

uisa de exemplificação:

abacate

capixingui

ipê

piri

abacaxi

capitava

jaborandi

pitanga

andaguassú

caraguatá

jabuticava

piúva

araçá

carnaúba

jacarandá

samambaia

aruêra

caróba

jacaré

sagùi

araribá

caruru

jantá

sapé

araticum

catanduva

jaracatiá

sapuva

açatunga

cipó

jarivá

sumaúma

bacaba

crindiuva

jataí

taióva

baguassu

grumixama

jiquitaia

taiúva

bracuí

guabiroba

jiquitibá

tacuara

brejaúva

guãibè

jovéva

tacuari

buriti

guandu

juá

tacuaritinga

bucuva

guapê

jurema

tacuarussu

butiá

guapocarí

macaúba

timbó

cabiúna

guareróva

manacá

timbori

cabriúva

guanxuma

mandióca

tiririca

caiapiá

guaraiúva

mangava

trapoeraba

cajuru

guaratã

maracajá

tucum

cambuci

guatambu

maçaranduva

urucu

cambuí

imbaúva

nhapindá

urucurana

canjarana

imbúia

orindiúva

uvá

canxim

indaiá

perova

capim

ingá

pipóca

11. Nomes de diferentes fenômenos, acidentes, produtos da natureza,
doenças, etc,:

beréva

cupim

piracema

tabatinga

bossoróca

joçá

pororóca

taguá

cambuquira

manipuêra

quiréra

tijuco

capão

nambiuvu

sambiquira

tupururuca

capuêra

pacuéra

sapiróca

catapóra

pichuá

sororóca

catinga

picumã

suã

12. Nomes de utensílios, aparelhos, objetos de uso, alimentos, etc:

arapuca

caxerenguengue

jacuba

muquéca

arataca

chuã

jiqui

mipeva

arimbá

jacá

juquiá

pamonha

pamonã

pindacuêma

samburá

tacuru

pari

pipóca

sapicuá

tipiti

paçoca

piruá

saracuã

patuá

pito

solímão

peléta

pussaguá

sururuca

1 3. Nomes referentes a usos, costumes, abusões, etc.:

bitatá

canhembora

caruru

piracuara

buava

capuava

guaiú

saci

caiçara

cateretê

mumbava

tapéra

caipira

catira

perequê

tiguéra

caipora

coivara

piá

14. Adjetivos e substantivos usados como tais:

aíva

jururú

pepuíra

punga

chimbeva

macaia

pereréca

sarambé

ité

nambi

piricica

turuna

jaguané

napéva

piririca

javevó

pangaré

piúva

jissi

pararaca

pururuca

15. Todos os vocábulos acima citados são, com uma ou outra
excepção apenas, de origem tupi.

Esta língua, como diz o sr. Teodoro Sampaio no seu precioso livrinho
"O Tupi na Geografia Nacional", vicejou próspera e forte
em quase todo o país, sobretudo em S. Paulo e algumas outras capitanias.
Aqui, segundo aquele escritor, a gente do campo falava a língua geral
até fins do século XVIII. Todos a sabiam, ou para se exprimir,
ou para entender. Era a língua das bandeiras; era a de muitos dos próprios
portugueses aqui domiciliados.

É o que explica essa absoluta predominância do tupi, entre as
línguas brasílicas, na toponímia local, na nomenclatura
de animais e de plantas e em geral no vocabulário de procedência
indígena.

É possível, entretanto, como dissemos, que haja excepções.
Mesmo sem outros elementos de suspeita, pode-se duvidar que todos os vocábulos
vulgarmente apresentados como tupis de fato sejam dessa língua, ou
mesmo de qualquer outra língua brasílica, considerando-se apenas
as dificuldades de ordem geral que embaraçam todo trabalho etimológico
em idiomas não escritos, cujas formas variam tanto no tempo e no espaço,
e se acham tão sujeitas, em bocas estranhas, a profundas corrupções
voluntárias e involuntárias. (13)

16. Muitos dos vocábulos de procedência indígena flutuam
numa grande variabilidade de formas, principalmente certos nomes de animais
e de plantas: açatonga, açatunga, guaçatonga, guaxatonga;
caraguatá, crauatá, cravatá; tarira, taraira, traíra;
maitaca, baitaca; corimbatá, curumbatá, curimatá. Na
terminação vogal + b + vogal, geralmente usada pela gente culta,
o caipira prefere quase sempre v a b: jabuticava, mangava, beréva,
tiriva, taióva, saúva.

A origem destas incertezas está em que a nossa fonética nem
sempre possui sons exatamente correspondentes aos indígenas. O u consoante
(w) foi desde cedo interpretado de vários modos: por uns como v, por
outros como b, por outros ainda como gh: é o que explica as variações
caraguatá, carauatá, cravatá, – capivara, capibara, capiguara,
– piaçava, pioçaba, piaçágua (cf. Piaçagùéra),
etc.

A pronúncia popular, nestes casos, é a melhor. O povo, direta
e inconscientemente influenciado pela fonética indígena, conserva
ainda sinais dessa influência na própria incapacidade para bem
apanhar o som distinto de v em vocábulos portugueses: daí pronúncias,
que às vezes se ouvem, como guapô por vapor, etc. (14)

ELEMENTOS DE VÁRIA PROCEDÊNCIA

17. A receptividade do dialeto em relação a termos de origem
estranha é muito limitada, porque as necessidades de expressão,
para o caipira, raramente vão além dos recursos ordinários.

O caipira genuíno vive hoje, com pouca diferença, como vivia
há duzentos anos, com os mesmos hábitos, os mesmos costumes,
o mesmo fundo de idéias. Daí o conservar teimosamente tantos
arcaísmos – e também tantos termos especiais que, vivos embora
no português europeu, são às vezes completamente desconhecidos,
aqui, da gente da cidade, tais como chêda, tamoeiro, cambota, náfego,
etc. Daí, também, o não precisar tanto de termos novos,
que, pela maior parte, ou designam coisas a que vive alheio, ou idéias
abstratas que não atinge.

18. Dos vocábulos estrangeiros modernamente introduzidos na língua
e que são de uso corrente no falar das pessoas mais ou menos cultas,
ele só tem aceito alguns, poucos, relativos a objetos de uso comum,
produtos de artes domésticas, etc.: paletó (que desterrou por
completo o vernáculo casaco), croché, cachiné, revórve,
etc.

19. Existem entretanto no dialeto muitos vocábulos (além dos
brasílicos e parte dos africanos) que não lhe vieram por intermédio
da língua. Destas aquisições, umas pertencem ao dialeto
geral do Brasil, outras resultaram da própria atividade paulista. Exemplos:

Do guarani, do quichúa (15):

chacra

guaiava

iapa

purungo

garõa

guaiaca

pampa

Do castelhano:

amarilho

cola

lunanco

porvadêra

aragano

empalizado

parêia

rengo

caraquento

enfrenar

pareiêro(16)

retovado

cincha

entreverar

pitiço

rinha

cochonilho

lonca

perrengue

Dos dialetos ibero-sul-americanos e do vocabulário sul-rio-grandense:

bagual

guasca

pala

ponche

gaúcho

matungo

pangaré

retaco

Quase todos esses termos nos vieram por intermédio do Rio Grande
do Sul, com o qual mantiveram outrora os paulistas intensas relações
de comércio, sobretudo de comércio de animais, sendo freqüentíssimas
as viagens de tropeiros de uma para outra província. Dessas relações
guardam ainda os vocabulários e os costumes populares de lá
e de cá numerosíssimos elementos comuns, não só
de origem estrangeira, como de elaboração própria.

20. A maior parte dos vocábulos africanos existentes no dialeto caipira
não são aquisições próprias. A colaboração
do negro, por mais estranho que o pareça, limitou-se à fonética;
o que dele nos resta no vocabulário rústico são termos
correntes no país inteiro e até em Portugal:

angu

cacunda

macóta

quingengue

banguela

carimbo

malungo

quisília

batuque

caximbo

mandinga

samba

binga

cuxilo

missanga

sanzala

cachaça

lundu

quilombo

urucungo

21. Há um certo número de provincianismos brasileiros de origem
africana, que, recebidos pela maior parte do Norte, aqui se introduziram no
falar das cidades e na linguagem literária, mas não penetraram
no dialeto: tais, por exemplo: cangerê, cacimba, candomblê, giló,
munguzá, quingombô.

FORMAÇÕES PRÓPRIAS

22. Com os elementos que vieram do português, do tupi e de outras línguas,
formaram-se no Brasil numerosos vocábulos, principalmente por derivação,
– já no seio do povo paulista, que através do seu movimento
de expansão pelo território nacional os levou a longínquas
regiões, já em outras terras, de onde foram trazidos.

Encontra-se no falar caipira de S. Paulo, e na própria linguagem das
pessoas educadas, toda uma multidão de neologismos derivados, alguns
muito expressivos e já indispensáveis àqueles mesmos
que procuram fugir à influência do regionalismo:

VERBOS (17)

abombar

chifrar

frautear

moquear

aforar

chatear

fuchicar

passarinhar

ami(lh)ar

coivarar

fuçar

pealar

asperejar

covejar

gramar

pererecar

assuntar

cutucar

intijucar

pescocear

barrear

desbarrancar

inquisilar

petecar

bestar

descabeçar

imbirotar

pinicar

bobear

descanhotar

impaçocar

piriricar

bolear

descangicar

impipocar

pitar

buçalar

descoivarar

lerdear

prosear

capengar

desguaritar

mamparrear

pururucar

campear

desmunhecar

mantear

sapecar

capinar

facerar

miquear

tapear

catingar

fachear

moçar

trotear(18)

cavortear

festar

molear

SUBSTANTIVOS

areão

buraquêra

caipirada

corredêra

bobage

burrage

caipirismo

dada

botina

cabeção

caiporismo

derrame

barrigada

carpa

capina

eguada

bestêra

carpição

capinzar

gaùchismo

bodocada

cavadêra

capuerão

gentama

boquera

cabocrada

chifrada

gentarada

bugrêro

caiçarada

chifradêra

jabuticavêra

lapiana

mulequêra

rodada

tijucada

moçada

ossama

rodêro

tijuquêra

moçarada

perovêra

sapezar

varrição

micage

piazada

sitiante

mulecada

poetage

soberbia

mulecage

porquêra

taquarar

ADJETIVOS

abobado
espeloteado
filante
praciano

abombado
impacador
franquêro
saberete

atimboado
impipocado
mamóte
supitoso

bernento
inredêro
micagêro

catinguento
facêro
passarínhêro

catingudo

peitudo

23. São em menor número as palavras formadas por composição,
e estas, na maior parte, pela justaposição de elementos com
a partícula subordinante de:

dôr-d’-óio (olhos)
fruita-de-lobo

sangue-de-tatu
áua-de-açucre (água de açúcar)

sangue-de-boi
cordão-de-frade

rabo-de-tatu
mer-de-pau (mel)

arma-de-gato (alma)
pedra-de-fogo.

orêia-de-onça (orelha)
baba-de-moça

pente-de-mico
abobra-d’-áua

unha-de-gato
côro-de-arrasto (couro)

língua-de-vaca
pau-de-espinho

cachorro-do-mato
barriga-de-áua

gato-do-mato
tacuara-do-reino

pá-de-muleque
pimenta-do-reino

ôio-de-cabra
canário-do-reino

barba-de-bóde
quejo-do-reino

Por justaposição direta e por aglutinação:

quatro-pau(s)
tatu-canastra
quebra-cangaia
arranha-gato

cinco-nerva(s)
méde-léua(léguas)
mata-sete
passa-treis

mandioca-braba
vira-mundo
tira-prosa
quatróio(olhos)

abobra-minina
chora-minino
tira-acisma
minhócussu

Por prefixação:

entreparar descoivarar desaguaxado descoivarado

e outros vocábulos já citados quando tratamos da derivação.

24. Muitas palavras há, entre as portuguesas, que têm sofrido
aqui mudanças mais ou menos profundas de sentido. Exemplos tomados
entre os casos de mais pronunciada diferenciação:

ATORAR – partir à pressa, resolutamente; fugir.
CANA – cana de açúcar.
CAIERA – grande fogueira festiva.
CANDIERO – guia de carro de bois.
CAPADO, subst. – porco castrado.
DESMORALIZAR, v. trans. – fazer perder
o entusiasmo, o brio.
DESPOTISMO – enormidade.
INTIMAR – ostentar. Daí intimação e intimador.
FAMÍLIA (famia) – no plural, filhos.
FRUITA – jaboticaba (usada sem determinação, tem este único
sentido).
FUMO – tabaco.
FINTAR – faltar dolosamente a uma dívida.
IMUNDÍCIA – caça miúda.
LOJA – armazém de fazendas a retalho.
MANGAÇÃO – vadiação.
MANCAR – vadiar
PIÃO – domador.
PINGA – aguardente de cana.
PILINTRA – casquilho.
PATIFE – medroso; sensível.
PANDÓRGA – desmazelado, moleirão.
PINHO – viola.
RANCHO – cabana de campo.
SCISMA – desconfiança; presunção.
SÍTIO – propriedade agrícola menor que a fazenda.
TABACO – rapé.

25. Outras palavras, conservando o seu sentido, ou sentidos, têm adquirido
novos:

ÁGUAS – direção das fibras da madeira.
BABADO – folho de vestido de mulher.
DÔBRE – canto (de pássaro), repique (de sino).
DOBRAR – cantar (o pássaro), repicar (o sino).
ESTACA – cabide.
LADRÃO – desvio de uma regueira ou açude; broto de cafeeiro.
SANGRADÔ(URO) – ponto do pescoço do boi, ou outro animal, onde
se embebe a faca ao matá-lo.
SÁIA – fronde que oculta o tronco desde o solo.
VIRGEM – poste de moenda.
SOLDADO – certo pássaro.
TOMBADÔ(URO) – lugar onde tombam as águas de um salto.
VAPÔ(R) – locomotiva

III. – MORFOLOGIA

FORMAÇÃO DE VOCÁBULOS

1. Como já mostrámos ("Lexicologia", "Formações
próprias") o dialeto tem dado provas de grande vitalidade, na
formação de numerosos substantivos e adjetivos, quer por composição,
quer por derivação. De ambos os processos fornecemos muitos
exemplos.

Registamos agora, aqui, um curiosíssimo processo de reduplicação
verbal, corrente não só entre os caipiras de S. Paulo, mas em
todo o país, ou grande parte dele.

Para exprimir ação muito repetida, usa-se uma perífrase
formada com o auxiliar vir, ir, estar, andar, seguido de infinitivo e gerúndio
de outro verbo. Assim: vinha pulá(r)-pulando, ia caí(r)-caindo,
estava ou andava chorá(r)-chorando.

A explicação deste fenômeno alguns têm querido
ir buscá-la ao tupi, "refugium" de tantos que se cansam a
procurar as razões de fatos obscuros e complicados da linguagem nacional.
Não nos parece que seja preciso apelar para as tendências reduplicativas
daquela língua, em primeiro lugar porque. essas tendências são
universais; em segundo lugar, porque se trata de palavras bem portuguesas,
ainda que combinadas de maneira um tanto estranha; em terceiro lugar, porque
há na nossa própria língua elementos para uma explicação,
tão boa ou melhor do que a indiática.

É sabido que, no tempo dos autores quinhentistas, o uso do gerúndio
nas perífrases (como anda cantando), era muito mais vulgar do que hoje.
Atualmente, em Portugal, o povo prefere, quase sempre, a construção
com infinitivo (anda a cantar). Assim, a concorrência decisiva entre
os dois processos se pronunciou justamente após a descoberta do Brasil.
A particularidade em questão é talvez legado genuíno
dessa época de luta, no qual se reúnem a modalidade mais freqüente
outrora, importada pelos primeiros povoadores, e aquela que depois veio a
predominar. O nosso povo, – inculto, em grande parte produto de mestiçagem
recente, aprendendo a custo o mecanismo da língua, – diante dos dois
processos concorrentes, não atinou, de certo, com as razões
por que se preferia ora um, ora outro, e acabou por combiná-los. Depois,
como um efeito, – que não como causa da reduplicação,
– os verbos assim combinados sofreram uma pequena evolução sematológica
no sentido da intensificação do seu valor iterativo. Assim,
temos, em esquema:

a virar

Port. – Vinha
a virá(r)

ou
(a) virá(r) virando

Dial. – Vinha
virando

virando

Corrobora esta hipótese o fato de que o nosso caipira, usando a todo
o momento de perífrases com gerúndio de acordo com a velha língua,
só muitíssimo raramente empregará, isolada, a forma popular
portuguesa de hoje, – infinitivo com prep. Isto confirma que esta forma lhe
terá causado estranheza desde cedo, originando-se daí a confusão.
(19)

2. Várias formações teratológicas já foram
apontadas e ainda o serão adiante, neste capítulo (Flexões
de número). Queremos, aqui, deixar apenas registrados os seguintes
processos de que ainda não tratamos:

a) A ETIMOLOGIA POPULAR tem sido fonte de numerosas formas vocabulares novas:
de "guapê", voc. de origem tupi, fez-se aguapé, por
se ver nele um composto de água e pé; de "caa-puan",
mato redondo, ilha de mato, fez-se capão; de "caa-puan-era",
capoeira; de cobrêlo, cobreiro (cobra suf. eiro); de torrão,
terrão, etc.

b) Também a DERIVAÇÃO REGRESSIVA dá origem a
outros termos: assim, de paixão, se fez paixa, por se tomar aquela
forma como um aumentativo; de satisfação, por idêntico
motivo, se tirou sastifa, com hipértese de s.

GÊNERO

3. O adjetivo e o particípio passado deixam, freqüentemente,
de sofrer a flexão genérica, sobretudo se não aparecem
contíguos aos substantivos: essas coisarada bunito, as criança
távum quéto, as criação ficarum pestiado.

NÚMERO

4. Já dissemos algo sobre o som de s-z no final dos vocábs.
(I, 24). Vamos resumir agora tudo o que se dá com esse som em tal situação.

Se bem que se trate aqui de flexões, é impossível separar
o que se passa com o s final, tomado como sinal de pluralidade, do que sucede
com ele em outras circunstâncias; e dificílimo se torna reconhecer,
em tais fatos, até aonde vão e onde cessam a ação
puramente fisiológica, do domínio da fonética, e a ação
analógica, do domínio das formas gramaticais. Porisso faremos
aqui uma exposição geral dos fatos relativos ao s final:

a) Nos VOCÁBULOS ÁTONOS, conserva-se: os, as, nos (contração
e pronome), nas. Aliás, há pronunciada tendência para
tornar tônicos esses vocábulos; pela ditongação:
ois, ais, etc. A conjunção mas tornou-se mais.

b) Nos OXÍTONOS, conserva-se, – salvo quando mero sinal de pluralidade:
crúiz, retróis, nóis (nós), nuz (nóz),
juiz, ingrêis, vêiz, (vez), dois, trêis, déiz, fáiz,
fiz, diz, páiz (paz), pois.

Como sinal de pluralidade, desaparece: os pau, os nó, os ermão,
os papé, as frô(r), os urubú. Excetuam-se os determinativos
uns, arguns, seus, meus (sendo que estes dois últimos, quando isolados,
perdem o s: estes carru são seu’, esses não são os meu’).
Há hesitação em alguns vocábulos, como péis
ao lado de pé’. Réis conserva-se, por se ter perdido a noção
de pluralidade (isto não vale nem um réis) ; semelhantemente,
pasteis, pernís, cóis.

c) Nos vocábulos PARO e PROPAROXÍTONOS, desaparece: um arfére,
os arfére; o pire, os pire; dois home; os cavalo, os lático;
nóis fizémo, vamo, saímo.

Quando o s pluralizador vem precedido de vogal a que se apoia, desaparece
também esta: os ingrêis (ingleses), as páiz (pazes), às
vêiz (vezes), as côr (cores).

Excetuam-se os determinativos, que conservam o s: u"as, argu"as,
certos, muitos, estes, duas, suas, minhas, etc. assim como o pronome eles,
elas. Quando pronominados, porém, os determinativos podem perder o
s: Estas carta não são as minha.

5. De acordo com as regras acima, – e abstraindo-se das flexões verbais,
– a pluralidade dos nomes é indicada, geralmente, pelos determinativos:
os rei, duas dama, certas hora, u"as fruita, aqueles minino, minhas ermá,
suas pranta.

6. O qualificativo foge, como o subst., à forma pluralizadora: os
rei mago, duas casa vendida, u"as fruita verde, as criança távum
queto. Abrem excepção apenas algumas construções,
quase sempre expressões ossificadas, em que há anteposição
do adjet.: boas hora, boas tarde.

7. Esta repugnância pela flexão pluralizadora dá lugar
a casos curiosos. A frase exclamativa "há que anos!", equivalente
a "há quantos anos!", sofreu esta torção violenta:
há que zano! (ou simplesmente que zano!) Ouve-se freqüentemente
bamozimbora. Não se deve interpretar como bamos+embora, mas como bamo+zimbora,
pois o som de z, resultante originariamente da ligação de vamos
com embora, passou a ser entendido pelo caipira como parte integrante da segunda
palavra; tanto assim que diz: nóis bamo, e diz: êle foi zimbora.
Prótese semelhante se dá em zóio (olhos), zarreio (arreios),
com o s do art. def. plur. – Outro caso curioso é o que se dá
com a expressão portuguesa uns pares deles, ou delas, que o nosso caipira
alterou para uns par dele e u"as par dela. A frase – Vai-me buscar uns
pares deles, ou delas, assim se traduzirá em dialeto: Vai-me buscá
uns par-dele, ou u"as par-dela, como se par-dele e par-dela fossem as
formas do masculino e do feminino de um simples substant. coletivo.

GRADAÇÃO

8. As flexões de grau subordinam-se às regras gerais da língua.
Apenas algumas observações:

a) QUANTIDADE – O aumentativo e o diminutivo têm constante emprego,
sendo que as flexões vivas quase se limitam a ão ona para o
primeiro, inho inha, ico ica para o segundo.

Nos nomes próprios de uso mais generalizado, há grande número
de formas consagradas: Pedrão, Pedróca, Zé, Zezico, Zéca,
Zêquinha, Juca, Juquinha, Jica, Jéca (José); Quim, Quinzinho,
Quinzóte (Joaquim); Joanico, Janjão, Zico, (João); Totá,
Totico, Tonico (Antônio) Mandá, Manduca, Maneco, Mané,
Manécão, Manéquinho (Manuel); Carola (Carolina); Manca,
Maricóta, Mariquinha, Mariquita, Maruca, Maróca (Maria); Colaca,
Colaquinha (Escolástica); Anica, Aninha (Ana) ; Tuca, Tuda, Tudinha,
Tudica (Gertrudes).

O emprego do aumentat. e do dimin. estende-se largamente aos adjetivos e
aos próprios advérbios: longinho, pertinho, assimzinho, agórinha.
Acompanham estas últimas formas particularidades muito especiais de
sentido: longinho equivale a "um pouco longe"; pertinho, a "bem
perto, muito perto"; assinzinho, a "deste pequeno porte, deste pequeno
tamanho"; agorinha, a "neste mesmo instante", "há
muito pouco", "já, daqui a nada".

Dir-se-ia existir qualquer "simpatia" psicológica entre
a flexão diminutiva e a idéia adverbial. São expressões
correntes: falá baxinho, parô um bocadinho, andava deste jeitinho,
vô lá num instantinho, falô direitinho, ia devagarinho,
fartava no sírviço cada passinho, etc.

b) COMPARAÇÃO – As formas sintéticas são freqüentemente
substituídas pelas analíticas: mais grande, mais piqueno, mais
bão, mais rúm e até mais mio, mais pió.

c) SUPERLATIVIDADE – Quase inteiramente limitada às formas analíticas.

FLEXÕES VERBAIS

9. PESSOA – Só se empregam correntemente as formas da 1.ª e 3.ª
pessoas. A 2.ª pessoa do sing., embora usada às vezes, por ênfase,
assimila-se às formas da 3.ª: Tu num cala essa bôca? Tu
vai? A 2.ª do plur. aparece de quando em quando com suas formas próprias,
no imperativo: oiai, cumei.

10. NÚMERO – O plural da 1.ª pessoa perde o s: bamo, fômo,
fazêmo. Quando esdrúxula, a forma se identifica com a do sing.:
nóis ia, fosse, andava, andasse, andaria, fazia, fizesse, fazeria.
Nas formas do preter. perf. do indic. dos verbos em ar, a tônica muda-se
em e: trabaiêmo – trabalhamos, caminhêmo = caminhamos.

O plural da 3.ª modifica-se: quérim, quiríum, quizérum,
quêirum; ándum, andávum, andárum, ándim.
No pres. do indic. de pôr, ter, vir, as formas da 3.ª pessoa são:
ponham, tenham, venham.

11. MODOS E TEMPOS – 0 fut. imperf. do indic. exprime-se com as formas do
presente: eu vô, nóis fazêmo, ele manda, por "eu irei",
"nós faremos", "ele mandará". Entretanto,
dubitativamente, empregam-se as formas próprias, às vezes modificadas:
Fazerêmo? – Fazerá? – Não sei se fazerei – Quem sá’
se fazerão! Será verdade? Sei lá se irei!

12. Com o condicional se dá coisa parecida. Correntemente, é
expresso pelas formas do imperf. do indic.: eu dizia, ele era capáiz;
mas: Dizeria? – Não sei se poderia – Seria verdade?

13. Aparecem não raro formas próprias do imperativo, do sing.
e do plur., – anda, puxa, vai, andai, correi, trabaiai; são, porém,
detritos sem vitalidade, que se empregam sem consciência do seu papel
morfológico, de mistura com as formas da 3.ª pessoa, únicas
vivas e correntes.

PRONOMES

14. Tu tem emprego puramente enfático, ligando-se a formas verbais
da 3.ª pessoa: tu bem sabia, tu vai, tu disse, Vóis (vós)
já não se ouve, senão, talvez, excepcionalmente.

15. Os casos oblíquos nos, vos têm emprego muito restrito: na
maior parte das vezes preferem-se-lhes as formas analíticas pra nóis,
pra você. Vos já não corresponde a Vós, mas a vacê:
– v. já deve de sabê, porque eu vos disse muntas vêis.

16. Outras formas pronominais: a gente, u"a pessoa (ambas correspondentes
ao francês on) ; você e suas variantes, todas muito usadas, vacê,
Vancê, vossuncê, vassuncê, mecê, ocê.

17. Um fato que merece menção, apesar de pertencer mais ao
linguajar dos pretos boçais do que propriamente ao dialeto caipira:
a invariabilidade genérica do pronome ele, junta à invariabilidade
numeral. Quando se trata de indicar pluralidade, o pronome ele se pospõe
ao artigo def. os, e tanto pode referir-se ao gênero masculino, como
ao feminino: osêle, zêle fóro zimbora – eles (ou elas)
foram-se embora.

IV. – SINTAXE

1. A complexidade dos fenômenos sintáticos, ainda pouco estudados
no dialeto, – apenas enumerados às vezes, – não permite por
ora sequer tentativas de sistematização. Só depois de
acumulado muito material e depois de este bem verificado e bem apurado é
que se poderão ir procurando as linhas gerais da evolução
realizada, e tentando dividi-lo em classes.

O material que conseguimos reunir é pouco, e ainda não estará
livre de incertezas e dúvidas; mas foi colhido da própria realidade
viva do dialeto, e tão conscienciosamente como o mais que vai exposto
nas outras partes deste trabalho.

FATOS RELATIVOS AO SUJEITO

2. Há no dialeto urna maneira de indicar o sujeito vagamente determinado,
isto é, um indivíduo qualquer de uma classe ou indivíduos
quaisquer de uma classe. Exprime-se por um substantivo no singular sem artigo:
Cavalo tava rinchando – Macaco assubiô no pau – Mamono tá rebentano
(Um cavalo estava a rinchar, rinchava – Um macaco assoviou, macacos assoviaram
no pau – O mamono está, os mamonos estão rebentando).

3. Convém acrescentar, porém, que a supressão. do art.
def. antes do sujeito, mesmo determinado, não é rara: Patrão
não trabaia hoje -Pai qué que eu vá – Chuva tá
caíno.

4. Quando o sujeito é algum dos coletivos gente, família, etc.,
o verbo aparece freqüentemente no plural: Aquela gente são muito
bão(s) – A tar famía são levado da breca – A cabocrada
tão fazeno festa.

Encontra-se esta particularidade, igualmente, no falar do povo português,
e vem de longe, como provam numerosos exemplos literários. Um de Camões
(Lus., I, 38):

Se esta gente que busca outro hemisfério,
Cuja valia e obras tanto amaste,
Não queres que padeçam vitupério.

Outro, de Duarte N. ("Orig.", cap. 2.º):

…com hu"a gente de Hespanha chamados indigetes…

5. As cláusulas infinitivas dependentes de para têm por sujeito
o pronome oblíquo mim, nos casos em que o sujeito deveria ser eu: Êle
trôxe u"as fruita pra mim cumê(r).

Este, como muitos outros, como quase todos os fatos da sintaxe caipira e
popular de S. Paulo, repete-se nas outras regiões do país. Um
exemplo dos "Cantos populares" de S. Romero:

Ora toque, seu Quindim.
Para mim dansar.

PRONOME

6. O pronome ele ela pode ser objeto direto: Peguei ele, enxerguei elas.

Este fato é um dos mais generalizados pelas diversas regiões
do país. Dele se encontram alguns exemplos em antigos documentos da
língua; mas é claro que o brasileirismo se produziu independentemente
de qualquer relação histórica com o fenômeno que
se verificou, sem continuidade, no período ante-clássico do
português.

7. O pronome oblíquo o a perdeu toda a vitalidade, aparecendo quase
unicamente encravado em frases ossificadas: Que o lambeu! etc.

8. Sobre as formas nos e vos, ver o que ficou dito na "Morfologia".

9. De lhe só usam os caipiras referido à pessóa com
quem se fala. Assim, dizem eles, dirigindo-se a alguém: – Eu já
le falei, fulano me afianço que le escrevia, i. é, "eu
já lhe falei" (ao senhor, a você), "fulano me assegurou
que lhe escrevia" (a você, ao senhor).

Pode dizer-se, pois, que o pronome lhe, conservando a sua função
de pronome. da "terceira" pessoa gramatical, só se refere,
de fato, à "segunda" pessoa real.

Aludindo a um terceiro indivíduo, o caipira dirá: Eu já
decrarei pr’a ele, fulano me garantiu que escreveu pr’a ele.

10. J. Mor. (1.º vol), tratando do emprego de formas pronominais nominativas
como complemento seguido de prep. (no aragonês, provençal, valenciano,
etc.), diz:

De construção semelhante encontram-se exemplos nos "Cantos
populares do Brasil", interessante publicação do sr. Sílvio
Romero:

Yayá dá-me um doce,
Quem pede sou eu;
Yayá não me dá,
Não quer bem a eu.

É possível que no Norte elo país se encontre essa construção.
Em S. Paulo o caipira diz: Não qué bem eu, sem prep., ou não
me qué bem eu. Aliás, isto é fato isolado. A regra, quando
se trata da primeira pessoa, e usar dos casos oblíquos: Não
me qué, não me obedece, não me visitô.

CONJUGAÇÃO PERIFRÁSTICA

11. Na conjugação perífrástica o gerúndio
é sempre preferido ao infinitivo precedido de preposição,
vulgar em Portugal e até de rigor entre o povo daquele país.
(J. Mor., cap.. XX, 1.º vol.). Aqui se diz, invariavelmente: – Anda viajando
– Ia caindo, estão florescendo, ao passo que, em Portugal, especialmente
entre o povo, se diz em tais casos: "estou a estudar", "anda
a viajar", "ia a cair" ou para cair", etc.

O nosso uso é o mesmo dos quinhentistas e seiscentistas, dos quais
se poderia citar copiosíssima exemplificação. Escrevia
frei Luís de Sousa na "Vida de Dom Frei Bartolomeu", de perfeito
acordo com a nossa atual maneira:

"… ia fazendo matéria de tudo quanto via no campo e na serra
para louvar a Deos; offereceu-se-lhe á vista não longe do caminho…
um menino pobre, e bem mal reparado de roupa, que vigiava umas ovelhinhas
que ao longe andavam pastando.

12. A ação reiterada, contínua, insistente, é
expressa por uma forma curiosíssima: Fulano anda corrê-corrêno
p’ras ruas sem o quê fazê – A povre da nha Tuda véve só
chorá-chorano despois que perdeu o marido (V. "Morf.", 1).

TER E HAVER

13. O verbo ter usa-se impessoalmente em vez de haver, quando o complemento
não encerra noção de tempo: Tinha munta gente na eigreja
– Tem home que não gosta de caçada – Naquêle barranco
tem pedra de fogo.

14. Quando o complemento é tempo, ano, semana, emprega-se às
vezes haver, porém, mais geralmente, fazer: Já fáiz mais
de ano que eu não vos vejo – Estive na sua casa fáiz quinze
dia.

15. Haver é limitado a certas e raras construções: Há
que tempo! – Há quanto tempo foi isso? – Num hai quem num saiba. Nessas
construções, o verbo como que se anquilosou, perdendo sua vitalidade.

Restringimo-nos, entretanto, neste como em outros pontos, a indicar apenas
o fato, sem o precisar completamente, por falta de suficientes elementos de
observação.

Vem a propósito referir que a forma hai, contração e
ditongação de há aí (por "há i",
que se encontra em muitos documentos antigos. da língua) só
é empregada, que saibamos, nestas condições:

– quando precede ao verbo o advérbio não, como no exemplo dado
acima;

– quando o verbo termina a proposição: É tudo quanto
hai – Vô vê se inda hai.

"CHAMAR DE"

16. O verbo chamar, na acepção de "qualificar", emprega-se
invariavelmente com de: Me chamô de rúin – Le chamava de ladrão.

O verbo chamar (diz, referindo-se a Portugal, J. Mor., cap. XXVIII, 1.ª
volume) não se usa hoje com tal construção nem na linguagem
popular nem na literária. mas teve-a em outro tempo, do que se encontram
exemplos, como no seguinte passo de Gil Vicente, vol. II, p. 435:

Se casasses com pàção,
Que grande graça seria
E minha consolação!
Que te chame de ratinha
Tinhosa cada meia hora
etc.

ORAÇÕES RELATIVAS

17. Nas orações relativas não se emprega senão
que. Nos casos que, em bom português, reclamam este pronome precedido
de preposição, o caipira desloca a partícula, empregando-a
no fim da frase com um pronome pessoal. Exemplos:

A casa em que eu morei ……… A casa… que eu morei nela

O livro de que falei ………. O livro… que eu falei dele.

A roupa com que viajava ……… A rôpa… que viajava cum ela.

18. Freqüentemente se suprimem de todo a preposição e
o pronome pessoal, e diz-se: a casa que eu morei, o livro que eu falei, ficando
assim a relação apenas subentendida.

19. Os relativos o qual, quem e cujo são, em virtude do processo acima,
reduzidos todos a que:

O cavalo com o qual me viram aquele dia.

O cavalo que me virum cum êle aquêle dia.

A pessoa de quem se falava

A pessoa que se falava dela

O homem cujas terras comprei

O home que eu comprei as terra dele.

Em Portugal observa-se entre o povo idêntico fenômeno, isto é,
essa tendência para a simplificação das fórmulas
das orações relativas. Lá, porém, tais casos são
apenas freqüentes, e aqui constituem regra absoluta entre os que só
se exprimem em dialeto, – regra a que se submetem, sem o querer, até
pessoas educadas, quando falam despreocupadamente.

20. Outra observação: lá, o relativo quem precedido
de a se resolve em lhe, e aqui só se substitui por pra ele. Assim a
frase – "o menino a quem eu dei meu livro" será traduzida,
pelo popular português: "o menino que eu lhe dei um livro";
pelo nosso caipira: o minino que eu dei um livro pra ele (ou prêle).

Seria mais curial que, em vez de pra ele, se dissesse a ele; mas há
a notar mais esta particularidade, que o nosso povo inculto prefere sempre
a primeira preposição à segunda.

NEGATIVAS

21. Na composição de proposições negativas, o
adv. já, corrente em português europeu, é de todo desconhecido
no dialeto. Em vez de "já não vem", "já
não quero", diz à francesa, ou à italiana, o nosso
caipira (e com ele, ainda aqui, toda a gente está de acordo, por todo
o país): num vem mais, num quero mais.

Esta prática é tão geral (diz, referindo-se ao Brasil,
J. Mor., cap. XXX, 1.º vol.) que os próprios gramáticos
não sabem ou não querem evitá-la. Assim, Júlio
Ribeiro, na sua Gramática Portuguesa, escreve: "Hoje não
é mais usado tal advérbio". Entre nós dir-se-ia:
"já não é usado" ou "já não
se usa tal advérbio".

A observação é em tudo exata. Só lhe faltou acrescentar
que, como tantas outras particularidades sintáticas de que nos ocupamos,
também desta há exemplos antigos na língua, e talvez
até em Gil Vicente, que J. Mor. tão bem conhecia e a cada momento
citava. Eis um exemplo, onde, pelo entrecho, mais pode ser tomado como negativo:

ANJO – Não se embarca tyrannia
Neste batel divinal.
FIDALGO – Não sei porque haveis por mal
Qu’entre minha senhoria.
ANJO – Pera vossa fantasia
Mui pequena he esta barca.
FIDALGO – Pera senhor de tal marca
Não há hi mais cortezia?

Um exemplo bem positivo de J. B. de Castro, "Vida de Cristo", (liv,
IV):

"Meu pae, contra Deus e contra vós pequei e não mereço
que me chameis mais vosso filho…"

22. O emprego de duas negativas – ninguém não, nem não,
etc., assim contíguas, – vulgar na sintaxe portuguesa quinhentista,
mas hoje desusado na língua popular de Portugal, e na língua
culta tanto lá como cá, – é obrigatório no falar
caipira: Nem eu num disse – Ninguém num viu – Ninhum num fica.

Deste uso no séc. XVI pode-se apresentar copiosa exemplificação.

23. Mas há fato mais interessante. A negativa não repetida
depois do verbo: não quero não, não vou não, parece
puro brasileirismo. Encontra-se, porém, repetidas vezes em Gil V.,
como neste passo:

Este serão glorioso
Não he de justiça, não.
(Auto da Barca do Purg.)

24. Também o trivial nem nada, depois de uma preposição
negativa, tem antecedentes que remontam pelo menos a Gil V.:

Sam cappellão d’hum fidalgo
Que não tem renda nem nada.
(Farsa dos Almocreves).

CIRCUNSTÂNCIA DE LUGAR

25. O lugar para onde é indicado com auxílio da preposição
em: Eu fui im casa – Ia na cidade – Joguei a pedra n’agua – Chego na janela
– Vortô no sítio.

Deste fato, comum a todo o Brasil, e ao qual nem sempre escapam os próprios
escritores que procuram seguir os modelos transoceânicos, se encontram
numerosos exemplos em antigos documentos da língua, e ainda há
vestígios nas expressões usuais: cair no laço, caí
em mim, sair em terra (J. Mor., cap. XXIV, 1.º vol.).

CIRCUNSTÂNCIA DE TEMPO

26. Os complementos de tempo são, na linguagem portuguesa de hoje,
empregados quase sempre com uma preposição (a, e em), destinada
a estabelecer uma espécie de liame que satisfaça o espírito
do falante. Assim, dizemos: "Fui lá numa segunda-feira" –
"No dia 5 ele virá" – "Anda por aqui a cada instante",
etc.

O caipira atem-se mais à tradição da língua.
Ele dirá: Fui lá u"a segunda-f\êra – Dia 5 ele vem
– Anda por aqui cada passo – Mando notícia quarqué instante
– Nunca está im casa hora de cumida.

Compare-se com os seguintes exemplos, entre outros citados por J. Mor. (cap.
XXV, 1.º vol.)

E o dia que fôr casada
Sahirei ataviada
Com hum brial d’escarlata –
(Gil V.)

Esta ave nunca sossega,
He galante e muito oufana;
Mas a hora que não engana
Não he pega.
(Gil V.)

Aquel dia que os romãos foram vençudos veerom a Rei Artur hu"as
mui maas novas.
("Demanda do Santo Graal").

CIRCUNSTÂNCIA DE CAUSA

27. Como o povo em Portugal (J. Mor., cap. XXVI, 1.º vol.) o nosso caipira
usa a fórmula por amor de para exprimir circunstância de causa.
"Hei de ir a Régoa no domingo pr amor de ver se compro os precisos"
– é exemplo citado por Júlio Moreira. Em frase semelhante o
caipira diria quase identicamente: "Hei d’i na vila dumingo pramór
de vê se compro os perciso". Poderia, também, dizer simplesmente:
mór de vê, ou ainda mó de vê.

28. Outra fórmula caipira: por causo de, com o mesmo valor de por
causa de. Essa alteração de causa em causo deve-se, talvez,
a confusão com caso (que o caipira mudou em causo).

É de notar que em Gil V. se encontra por caso. O mesmo poeta escreveu
freqüentemente "caiso" (subst.), o que mostra que talvez se
dissesse também "por caiso", e quem sabe se até "por
causo", como o nosso caipira.

V. – VOCABULÁRIO

O QUE CONTÉM ESTE VOCABULÁRIO

Este glossário não se propõe reunir, como já
dissemos em outro lugar, todos os brasileirismos correntes em S. Paulo. Apenas
regista vocábulos em uso entre os roceiros, ou caipiras, cuja linguagem,
a vários respeitos, difere bastante da da gente das cidades, mesmo
inculta.

Quanto a esses próprios vocábulos, não houve aqui a
preocupação de indicar todos quantos constam das nossas notas.
Deixamos de lado, em regra geral, aqueles que não temos visto usados
senão em escritos literários, e por mais confiança que
os autores destes nos merecessem.

Iguais reservas tivemos com os nomes de vegetais e animais. Alguns destes,
dados por diversos autores como pertencentes ao vocabulário roceiro,
nunca foram por nós ouvidos, talvez por mera casualidade. Não
os indicamos aqui. Outros, e não poucos, estão sujeitos a tais
flutuações de forma e a tais incertezas quanto à definição
(o que é muito comum na nomenclatura popular), que, impossibilitados,
muitas vezes, de proceder a mais detidas averiguações, preferimos
deixá-los também de lado por enquanto.

AS VÁRIAS FORMAS

Registam-se os vocábulos, em primeiro lugar, em VERSAL, na sua forma
dialetal mais freqüente, e como a pronunciam. Outras formas e pronúncias,
quando há, se registam, quase sempre, logo na mesma linha (para não
alongar demasiado este glossário), e em VERSALETE.

Quando as formas dialetais diferem sensivelmente das correspondentes da língua,
escrevem-se também estas, na mesma linha, em itálico. Nos casos
em que a diferença pode ser indicada no próprio título
do artigo, assim se procede, como em ABOMBÁ(R), onde a queda de r está
suficientemente assinalada.

ABONAÇÕES

As citas que se fazem logo após as definições, para
as esclarecer, levam muitas vezes indicação de autor, entre
parêntese. Não quer isto dizer que os vocábulos tenham
sido colhidos em tais escritores, pois até citamos algumas frases de
autores estranhos ao Estado de S. Paulo; quer dizer apenas que tais vocábulos
foram aí usados com o verdadeiro valor que lhes dão os roceiros
paulistas.

Tendo de juntar às definições frases que dessem melhor
idéia dos termos, achamos que seria interessante tirar essas frases
de escritores conhecidos e apreciados, desde que quadrassem perfeitamente
com o uso popular. Apenas lhes fizemos algumas modificações
de grafia.

ABREVIATURAS

Além das abreviaturas de nomes de autores e outras que constam da
lista inserta em outro lugar, há no vocabulário as seguintes,
que convém esclarecer:

adj. – adjetivo. a part. – particípio

adv. – advérbio, adverbial prep. – preposição, prepositiva

Br. – Brasil pl. – plural

bras. – brasileiro, brasileirismo Port. – Portugal

cast. – castelhano port. – português

conj. – conjunção pron. pronome, pronominal

det. – determinativo q. – qualificativo

dial. – dialeto, dialetal rel. – relativo

ext. – extensão signif. – significação

f. – feminino subst. – substantivo

fig. – figurado, figuradamente sing. – singular

i. – intransitivo t. – termo

intj. – interjeição t. – transitivo

loc. – locução v. – verbo

m. – masculino, a voc. – vocábulo

p. – página V. – Veja

O sinal | separa da definição e exemplificação
do termo qualquer comentário ou nota que se julgou útil acrescentar.

ABANCÁ(R) [SE] – v. pron. – sentar-se: "Entre i se abanque".
| De banco.

ABANCÁ(R). v. i. – fugir: "0 dianho do home, quano viu a coisa
feia, abancô"

ABERTO DOS PEITO(S), – diz-se do animal de sela ou tiro, que, andando, cai
para a frente.

ABOBADO, q. – atoleimado, pateta: "O cabo da guarda sopapeou o Quirino,
abobado de medo, fazendo-o cambetear para dentro da salinha". (C. P.)
| Com signif. semelhante, Gil V. empregou atabobado, t. cast.

ABOMBADO, q. – diz-se do animal de sela, tiro ou carga, extenuado de fadiga.
Por ext. também se aplica a pessoa: "Era em Fevereiro, eu vinha
abombado da troteada…" (S. L.).

ABOMBÁ(R), v. i. – extenuar-se (o animal).

ABRIDERA. s. f. – aguardente de cana. | De abrir (o apetite).

AÇA, aço, q. – albino. | – Usado em quase todo o Brasil.

ACARÁ, s. m. – peixe também chamado, no Brasil, cará
e papa-terra (R. v. I.).

ACAUSO, s. m. – casualidade: "Isso se deu por um acauso". | V.
CAUSO.

ACERTÁ(R), v. t. – ensinar (o animal de sela) a obedecer à
rédea. | V. ACERTADÔ(R).

ACERTADÔ(R), s. m. – indivíduo que acerta animais de sela: "Passaram-se
anos e a Eulália teve que aceitar o Vicente do Rancho, moço
de boa mão e de boa cabeça, quando ele deu os últimos
repassos num piquira macaco do pai dela e entrou a cercar-lhe a mãe
de carinhos e presentes. Q acertador não enxergava terra alheia quando
olhava da janela para fora…". (V. S.).

ACOCÁ(R), v. t. – mimar com excesso (a criança): "Esse
tar num dá pra nada. Tamem, o pai e a mãe só sabium acocá
ele…" Cp. à coca, expressão port., e também cuca,
côca e côco. V. a primeira destas palavras.

ACOCHÁ(R), v. t. – torcer como corda: "É perciso acochi
meió esse fumo". | De cochar.

ACUPÁ(R), ocupar, v. t. "De tudo isto tenho feyto hum roteiro
que poderá acupar duas mãos de papell…" (Carta de d.
João de Castro ao rei, escrita em Moçambique).

ADONDE, onde, adv.

Só nas partes mais altas pareciam Uns vestígios das torres
que ficavam. Adonde a vista o mais que determina E medir a grandeza co’a ruína.
(G. P. de Castro, "Ulisseia")

Também no Norte do Brasil persiste esta forma:

Eu ante quina sê a pedra adonde lavava sua roupa a lavandêra
(Cat., "Meu Sertão")

AFINCÁ(R), v. t. – embeber, cravar (qualquer objeto delgado e longo):
"Afinquei o pau no chão". "Não afinque prego
na parede". "O marvado afincô a faca no ôtro".
| É port., como fincar, mas com acepções diversas.

AFITO, s. m. – mau olhado. | Apesar de nunca termos ouvido este voc., e só
o havermos encontrado num escrito ("A Superst. Paulistana", eng.
E. Krug), resolvemos registá-lo, por ser dos mais curiosos. É
palavra antiga na língua com a significação de indigestão,
diarréia ("Novo Dic."). Em cast. existe ahito, q., – o que
padece de. indigestão ou embaraço gástrico. Comparando-se
isto com o sentido que dão à palavra os caipiras. segundo o
citado escritor, e com a expressão "deitar o fito", equivalente
a "deitar mau olhado". que se encontra em Gil V., pode deduzir-se
que a significação primitiva do voc. port. e cast. deve ter
sido, mais extensamente, a de – indisposição causada por mau
olhado, quebranto.

AFORA(R), v. t. – tirar fora, subtrair. Usado apenas sob a forma do gerúndio,
"aforando": "Vinticinco, aforan(d)o quatro, são vintium"
| Acreditamos que seja hoje bem raramente usado este expressivo verbo, que
ouvimos muitas vezes, porém há algumas dezenas de anos, e só
numa localidade paulista (Capivari).

AGÒRINIIA, adv. – agora mesmo. neste instante.

AGREGADO, s. m. – indivíduo que vive em fazenda ou sítio, prestando
serviços avulsos, sem ser propriamente um empregado.

AGRESTE, q. – ríspido, intratável, desabrido: "Nunca vi
home tão agréste como aquêle nho Tunico!". – Também
indica certos estados de ânimo indefiníveis e desagradáveis:
"Num sei o que é que tenho hoje: tô agréste…"

AGUAPÉ, s. m. – plantas que bóiam à superfície
das águas remansosas ou paradas. | Do tupi?

AGUARDECÊ(R), AGARDECÊ (R), agradecer, v. t. | Encontra-se guardeço
na "Cron. do Cond." ("o que vos eu guardeço muito e
tenho em seruiço…", cap. XI), provavelmente por errada analogia
com guardar. A forma dialetal, que também aparece com freqüência
aferesada, deve provir do mesmo engano. – Na citada "Cron." encontra-se
igualmente agardeceo: "E o mestre seedo dello ledo mãdou logo
chamar Nunalvrez e agardeceolhe muyto o que com Ruy Pereyra fallara…",
cap. XVI.

AGUAXADO, q. – entorpecido por longa inatividade e pela gordura (o animal
de sela). | Há quem escreva aguachado e ligue o voc. a guacho, mas
erradamente. Origina-se, ao que parece, do árabe alguaxa, de onde o
castelhano aguaja (úlcera ou tumor aquoso que se forma nos cascos dos
cavalos ou das bestas) e o português ajuaga ("tumor nos cascos
das bestas", segundo o "Novo Dic."). – Parece indiscutível
que o vocáb. veio do castelhano pela fronteira do sul, região
onde é conhecido e usado. A mudança de sentido deu-se evidentemente
pela similitude dos efeitos do tumor e da gordura, causas que por igual embaraçam
a marcha. Como se deu essa mudança, eis o que é mais difícil
explicar. Talvez tenha influído nisso a palavra aguado, já existente
em port., e, segundo certos autores, com a mesma origem (J. Rib., "Fabordão").
– As palavras aguado, aguar, aguamento, são correntes em Portugal e
Brasil. Aguado diz-se do animal atacado de certa doença que lhe tolhe
os movimentos: por aqui se prenderá a alguaxa, tumor do casco. Essa
doença caracteriza-se por uma abundância de líquido seroso,
que os nossos roceiros dizem existir no pescoço do animal e que se
faz vazar, geralmente, por meio de sangria: por aqui se relaciona com água.
A doença é atribuída pelo povo, ao menos em alguns casos,
a desejo insatisfeito de comer: ainda uma influência de água,
pois o apetite faz vir água ã boca. Também se diz de
uma criança que ela aguou quando ficou triste e descaída por
ver outra criança mamar, não podendo imitá-la, ou por
lhe apetecer coisa que não lhe podia ser dada. – Há razões
para se desconfiar que a sangria atrás referida seja mera abusão
de alveitaria bárbara, possivelmente originada, como tantas usanças
e mitos, numa falsa etimologia. De alguaxa ter-se-ia extraído aguar,
aguado, por se ver ali o tema de água. Tratando-se de animal aguado,
era forçoso que houvesse água, e foram descobri-la no pescoço,
não já nos cascos, como seria mais razoável. Existe essa
água? Os roceiros afirmarão que sim, sem admitir dúvida,
mas há quem duvide. Eis o que diz, por exemplo, o dr. E. Krug: "Deve
ser considerado superstição o tratamento de animais aguados
por intermédio de uma sangria, que se executa no pescoço. Esta
superstição é muito espalhada no nosso Estado e mesmo
pessoas que se devia presumir possuírem maiores conhecimentos na zootecnia
usam-na. O estar aguado do animal nada mais é do que um crescimento
irregular dos cascos, geralmente devido a um excesso de marcha, etc., e isto,
certamente, não se pode curar sangrando um animal. Diz-se que, depois
de uma sangria, quando esta é feita de um só lado, o animal
fica sempre manco; para se evitar este inconveniente sangra-se o animal dos
dois lados. Não posso dizer se isto é também superstição
ou fato verificado praticamente". – Cp. o cast. aguas, ferida ulcerosa
na região dos machinhos ou nos cascos dos animais; aguacha, água
podre; aguachar-se, alagar-se, e outros vocábs. que têm, quase
todos, correspondentes em port. – Em Goiás, segundo se depreende de
uma frase do novelista Carv. Ramos ("Tropas", 25), corre a expressão
"aguar dos cascos": "…o macho mascarado trazido à
escoteira, sempre à mão,… aguara dos cascos na subida da serra
de Corumbá…"

AÍVA, q. – adoentado, mofino. | O "Novo Dic." regista o
voc. com significação diversa: "pessoa ou coisa sem valor,
insignificante". Em S. Paulo não se entende assim. – Do tupi aíba,
ruim (Mont.).

AJÚPE!, intj., usada pelos tropeiros para estimular os animais.

ALACRANADO, LACRANADO, q. – diz-se de coisa cuja superfície está
cheia de talhos e esfoladuras, como de dentes ou de espinhos. Derivado de
alacran (o mesmo que lacrau, lacraia, alacraia), se é que não
veio feito do cast., em cujo vocabulário antigo existiu forma igual,
com a significação de "mordido de lacrau".

ALAMÃO, adj. patr. – forma dupla de alemão, muito antiga na
língua.

ALEGRE, s. m. – faca recurva com que se fazem colheres de pau. | Corr. de
legra, que o "Novo Dic." regista como provincianismo alentejano
de origem castelhana.

ALELÚIA, f. – fêmea alada do cupim, que sai, às centenas,
dos ninhos, à tarde, e se desfaz das asas com extrema facilidade, logo
que não mais necessita delas. O mesmo que sará-sará?
(R. v. I.) V. SIRILÚIA.

ALEMBRÁ(R), lembrar, v. | Esta prótese vem de muito longe na
história da língua, e ainda é pop.

Alambrava-vos eu lá? (Gil V., "Auto da índia")

ALEMBRANÇA, lembrança, s. f.

ALEMÔA, alemã, fem. de alemão.

ALIFANTE, elefante, s. m. | Forma ant., e pop. tanto no Brasil como em Port.

ALIMÁ, ALIMAR, LIMAR, animal, s. m. – Entenda-se "animal cavalar".
| "… me parece ainda mais que som coma aves ou alimares monteses…"
(Carta de Caminha).

AMARELÃO, MARELÃO, s. m. – anquilostomose.

AMARELÁ, MARELÁ, amarelar, v. i. – empalidecer de repente:
"Quano o Chico uviu a vóiz de prisão, marelô"

AMARIO, AMARILHO, q. – baio com crina e cauda brancas (cavalo) o mesmo que
"baio amarilho". | Cast. amarillo.

AMARRÁ(R)1 v. t. e i. – estacar diante da perdiz (o cão), de
olhos fitos sobre ela: "Brinquinho amarrô a bicha i eu, fogo!"
"Quano, nu"a vorta do caminho… o Bismarque chateô no chão,
amarrano, que era u"a buniteza…" (O último exemplo é
de C. P.).

AMARRÁ(R)2, v. t. – tratar, fechar (uma aposta, um negócio).

AMENHÃ, AMINHÃ, amanhã, ad. | É forma arc. e
"’ainda corrente no povo (em Port.) na forma aminhão", diz
Leite de Vasc., "Emblemas", introd.

AMIÁ, amilhar, v. t. – dar milho (aos animais). Acreditamo-lo pouco
usado.

AMIADO, amilhado, part. de "amilhar": "O tempo tava bão,
a estrada era meió, o cavalo tava descansado e bem amiado: a viage
foi u"a gostusura".

AMIÚDA(R), v. i. – tornar-se freqüente, nas expressões
inté os galo amiùdá, quando os galo amiùdávum
e semelhantes, onde galo está por canto dos galos: "Depois que
acaba a candeia, aí que a coisa é triste… Vai int&eacuteacute;
os galo amiùdá". (C. P.) | Esta acepção do
verbo é corrente em todo o Brasil.

AMOLAÇÃO, s. f. – ação ou efeito de amolar.

AMOLADÔ(R), q. – o que amola; importuno, maçador.

AMOLANTE, q. – o mesmo que amolador.

AMOLÁ(R), v. t. – importunar.

AMUNTADO, MUNTADO, q. – diz-se do animal doméstico que se meteu no
mato, asselvajando-se: "Gado amuntado". "Não há
pior fera que porco muntado". – Cp. monte que em Port. envolve também
idéia de mato, assim como monteiro, montês, montesino, andar
a monte.

ANDADURA, s. f. – andar apressado do animal de sela, com balanços
de anca.

ANGOLA,1 s. m. – certa gramínea forrageira; capim de Angola.

ANGOLA,2 s. 2 gens. – usado às vezes por galo ou galinha de Angola.

ANGÚ, s. m. – papas de farinha ou de fubá. Fig.: negócio
desordenado, teia de intrigas e mexericos, coisa confusa, e ininteligível.

ANGÙADA, ANGÙSADA, ANGÚLADA, s. f. – grande porção
de angú; negócio complicado, questão inextricável.

ANHUMA, s. f. – ave da fam. "Palamedeidae".

ANSIM, assim, adv. 1| Forma pop. em todo o Brasil com o a nasalizado por
influência de im. – Encontra-se freqüentemente nas peças
castelhanas de Gil V.

ANTA, s. f. – quadrúpede da fam. "Tapiridae".

ANTÃO, INTÃO, então, ad.: -"Antão ela reparou
bem em mim, não disse mais nada, e saiu adiante". (V. S.) |

Filhos forão, parece, ou companheiros, E nella antão os incolas
primeiros. (Camões, "Lus.").

ANTÃOCE, ANTONCE, INTONCES, outras formas de então. | Cp. o
arc. entonces: "E do acabamento do livro eu dey encomenda ao lecenceado
frey João uerba meu conffessor fazendo per outrem o que de acabar per
my entonces era embargado" (Inf. D. Pedro, "Livro da Virtuosa Bemfeitoria").

ANTE, antes, prep. | E Acreditamos que este ante seja simplesmente antes
modificado pela lei da queda de s final do dial., embora sendo certo que ante
= antes de é do vernáculo antigo e ainda subsiste em anteontem
(antonte), antevéspera, antemanhã, etc.

DANTE, loc. adv. – antigamente: "Eu dante fazia o que pudia, agora já
tô véio i num posso mais". | É loc. port. muito antiga,
no sentido de "antecedentemente", como se vê deste passo do
"Castelo perigoso" (séc. XIV): "…honde perde Deos
e o Paraíso e guanha os tormentos do Inferno e perde os bees que d’ante
auya fectos, sse o Deos nom chama pera sua graça…" (L. de Vasc.,
"Textos arc.", p. 38 e p. 124).

TEMPO DE DANTE, loc. equivalente a "tempo ‘antigo", e na qual "dante"
é tomado como um subst.: "Macaia, que fôra escravo do capitão
Tigre, fazendeiro do tempo de dante entre Porto Feliz e Capivari…"
(C. P.)

ANTES, prep. – A notar:

IM ANTES, em antes, loc., usada as vezes pela forma simples "antes":

"Estive lá ainda em antes que ele chegasse".

ANTES TEMPO, loc. adv. – antecipadamente, antes da hora marcada ou oportuna:
"Foi tão de pressa que chegô na eigreja antes tempo".
| Os antigos diziam ante tempo: "Uma muito principal razão porque
muitas pessoas cuidam de si mais do que tem, e ante tempo se tem por muito
aproveitadas, é, que como Deus em todas suas obras se parece comsigo
é tão fermoso nos seus começos, que muitos enganados
com isso, se dão por perfeitos". (Fr. Tomé de Jesus, "Trabalhos
de Jesus"). "E dizemos ‘lampeiro’ o que faz alguã cousa ante
tempo…" (D. Nunes, "Orig.", VII). Cp. anteontem, a que se
vai preferindo "antes de ontem" como mais correto. Na Carta de Caminha
há ante sol posto.

ANTONHO, Antônio, n. p. | Forma antiga, registada por Vit. Cp. Junho
de Juniu(m), sonho de somniu(m), etc.

ANTONTE, anteontem, adv. | V. ANTE.

ANÚ1, nu, q.

ANÚ2, ANUM, s. m. – ave da fam. "Cuculidae".

A PAR DE, loc. prep. – junto de, ao lado de: "Eu tava bem a par dêle
quando assucedeu o causo". | É de uso antiquíssimo na língua,
como mostram estes exemplos: "E quando comião de suum dom Diego
Lopez e sa molher, asseemtaua eli apar de ssy o filho; e ella assemtaua apar
de ssy a filha da outra parte". (Lenda da Dama Pé de Cabra, no
"Livro da Linhagem", séc. XV).

Aqui, aqui, Oribella, Serrana, alli apar della. (Gil V., "Com. de Rubena")

"Eu tenho huã quinta apar de Cintra…" (Testam. de D. João
de Castro).

APARÊIO, aparelho, s. m. – Na loc. "aparêio de fumo",
que compreende o isqueiro, a pedra, o fuzil, e parece que também o
que é necessário para fazer um cigarro.

APAREIADA, aparelhada. | V. PAREIADA.

APÊRO(S), apeiros, s. m.. pl. – conjunto de instrumentos de caça.
É port. O "Novo Dic." não lhe põe nota de antiquado;
mas parece que já não é de uso corrente em Port., segundo
o que se depreende desta menção de M.. dos Rem. ("Obras
de Gil V.", Gloss.): "APEIRO – Nome que antigamente se dava a diferentes
instrumentos de lavoura", etc. J. Moreira, por sua vez, o tinha por antiq.,
como se vê desta referência ("Estudos", 2.º v.,
p. 175): "Há em português o vocábulo apeiro, a que
em espanhol corresponde apero. Diez derivou-os do latim apparium (do verbo
apparo). As suas significações eram variadas. Designa o conjunto
de utensílios ou instrumentos de lavoura, e aplicava-se ainda a outros
objetos, chamando-se "apeiro de caçador" aos instrumentos
e armadilhas de caça…" etc. Vê-se em Vit. que já
no séc. XVII a palavra era usada tal qual. – Esses autores registam
a forma do sing.; acreditamos, porém, que no dial. só se emprega
no plur., – o que aliás já é uso antigo, como se vê
deste passo de Gil V., "Auto de Mof. Mendes":

Leva os tarros e apeiros E o çurrão co’os chocalhos –

APEÁ(R), v. i. – voc. port., que no dial. apresenta a particularidade
de envolver, correntemente, a idéia de "hospedar-se": "Quando
chegô? Adonde apeô? – Apeei na casa do Chico, perto de onde tenho
meus que-fazê".

APINCHÁ(R), PINCHÁ(R), v. t.. arremessar: "Fui de verêda
pro quarto, despois de tê apinchado a ferramenta num canto da sala…"
(V. S.) "Tratei de me apinchá pra outra banda, porque a noite
ia esfriando". (V. S.). | Também se usa no Ceará, segundo
este e outros passos do "Meu Sertão", de Catulo Cear.:

Meu compade Dizidero somentes pra me impuiá, má cheguei, me
foi pinchanda lá pra Avenida Cintrá.

Pinchar é port. mas acreditamos que bem pouco usado hoje, neste sentido,
em Port. No Brasil, é absolutamente defeso à gente educada –
Joanne, personagem do "Auto Pastoril Port.", de Gil V., exclama
a certo momento:

Oh! commendo ó demo a vida A que a eu arrepincho!

No gloss., ao fim do 3.º v. da sua ed. das "Obras de Gil V.",
pergunta M. dos Rem.: "Quererá dizer o Poeta ‘vida que eu levo
a pular, a divertir-me?’ Por nossa parte, com a devida vênia de tão
erudito mestre, a resposta é negativa: não, o poeta não
quis dizer isso. O entrecho da cena e a construção da frase
não autorizariam tal interpretação. A cena passa-se entre
Joanne e Catherina. Aquele faz e repisa declarações de ardente
paixão, que a rapariga repele grosseiramente, mandando-o bugiar, chamando-lhe
parvo. O pobre moço, enfim desesperado, exclama:

Oh commendo ó demo esta vida A que a eu arrepincho!

isto é: encomendo esta vida ao diabo, ao qual a arremesso! – A continuação
da fala não faz senão confirmar esta interpretação:

Catalina, se me eu incho, Por esta que me va de ida. A índia não
está hi? Que quero eu de mi aqui? Melhor será que me va.

É provável que o que do segundo dos dois versos primeiro citados
venha de uma transcrição errada de que "ou má interpretação
de q", A verificação deste ponto concorreria bastante a
elucidar a questão. – Quanto ao arre que Gil V. antepôs ao verbo,
destinava-se de certo a dar-lhe mais energia. O uso de tais expletivos era
comum em Gil V. e outros poetas d0 seu tempo, nos quais se encontra até
re-não, re-si, re-velho, re-tanto, re-milhor. Refletiam eles, sem dúvida,
uma tendência popular então bem viva, da qual nos terá
vindo boa parte dessa multidão de termos em re e arre, que a língua
possui.

APÔS, APÓS, prep. – no encalço de: "Saí no
mesmo instantinho após êle, mais foi de barde". | É
de uso antigo na ling.: "… e os outros foram logo apos ele e lhas tornaram…"
(Carta de Caminha). "… e correndo apoz nós, que já então
lhe iamos fugindo…" (F. M. Pinto).

APÔS, APÓS DE, com o mesmo valor: "Andei após disso
muito tempo". "Receio que a minha classe vá após d’esses
fantasmas com que a iludem". (Garrett).

ARA, ora, conj. e intj. | Cp. sinhara, vacê, hame(m), palavras nas
quais o som o se muda em â.

ARÁ(R), v. i. – empregado figuradamente no mesmo sentido que as expressões
"suar o topete", "ver-se em apuros ‘: "Cos diacho! arei;
pra descobri quem me fizesse êsse sirviço".

ARAÇARI, s. m. – espécie de tucano pequeno. | Tupi.

ARAGANO, q. – diz-se do cavalo espantadiço, que dificilmente se deixa
pegar. | Cast. haragano.

ARAGUARI, s. m. – espécie de papagaio pequeno. | Tupi.

ARAPONGA, s. f. – pássaro da fam. "Cotingidae", também
chamado "ferreiro". | Tupi.

ARAPUÁ, s. f. – certa abelha do mato. | Tupi.

ARAPUCA, URUPUCA, s. f. – armadilha para apanhar pássaros, feita de
pequenos paus arranjados horizontalmente e em forma de pirâmide. | B.
Rodrigues regista "arapuca" e "urapuca", do nheengatu.

ARARA, s. f. – papagaio grande, de cauda longa. | Tupi.

ARARA-UNA – arara inteiramente azul, de bico preto.

ARARIBÁ, s. m. – certa árvore de boa madeira. | Tupi.

ARATACA, s. f. – armadilha grande, que colhe e mata a caça. | Tupi
"aratag", armad. "para pássaros" (Mont.).

ARCO-DA-VÉIA, arco-da-velha, s. m. – arco-iris. | Paiva, nas "Inferm.
da Língua" (séc. XVIII), coloca este termo entre os que
cumpre evitar. O "Novo Dic." só o regista em sua última
ed. – No Brasil, é corrente a frase "coisas do arco-da-velha",
por "coisas extraordinárias, surpreendentes".

ARÊA, areia, s. f. | É forma arc. Cp. vêa, chêo,
etc., igualmente arcaicos mas persistentes no dial. caip.

AREÁ(R), v. t. – limpar cuidadosamente (qualquer objeto).

AREADO, part. de arear – muito limpo, em estado de perfeito asseio: "…
revirava de sol a sol na labuta das donas, trazia tudo areadinho…"
(V. S.).

AREÃO, s. m. – larga extensão de solo coberta de areia: "Assim
falavam o Chico Gregório e o Bertolomeu, no areão da estrada
do Abertão, sob uma sombra…" (C. P.).

AREJA(R), v. i. – constipar-se (o animal): "Desincie o cavalo e recôia
no paió. Tá choveno daqui um poquinho e êle tá
banhado de suór; pode arejá!" (C. P.) | Em Mato Grosso
e outras regiões há, com o mesmo sentido, "airar":
"Virou os arreios, não de súbito, mas com cautela e lentidão,
para que o animal, encalmado como estava, não ficasse airado, (Taunay,
"Inoc.").

AREJADO, q. – part. de "arejar". V. esta palavra.

ARIMBÁ, s. m. – boião de barro vidrado em que se guardam doces
em calda. | Do tupi?

ARIRANHA, s. m. carnívoro da fam. "Mustelidae" e semelhante
à lontra, hoje raro. | É nome de uma localidade do Estado de
S. Paulo. – Tupi.

ARFENETE, alfinete, s. m.

Não m’arrarão alfenetes E tamísem enxaravia. (Gil V.,
"Auto Past. Port.")

ARMA-D~GATO, alma de g., s. f. – ave da fam. "Cuculidae", castanho-parda,
cinzenta na parte inferior, cauda longa com pontas brancas. Também
se lhe chama, no Brasil, "alma de caboclo", "rabo-de-palha",
e "tinguassu". (R. v. I.).

ARRAIA-MIUDA, s. f. – populacho. | Cp. arraial, pequeno povoado, e outrora
povo (contraído em arreal, real). Parece ter havido aqui contaminação
da idéia de "arraia" peixe.

ARRANCHÁ(R), v. i. – armar barraca, ou "rancho"; estabelecer-se
provisoriamente; fig., hospedar-se sem cerimônia (com alguém):
"No fim do segundo dia fumo arranchá na bêra do Mugi".
"O Bituca arranchô na casa do cumpadre, sem mais nem menos".

ARRE LÁ, intj. – de enfado ou cólera, como arre: "Não
me aborreça! Arre lá!" | Esta intj., que não encontramos
registada em dicionário, se acha em Gil V. ("Auto da Barca do
Purg."):

Arre lá! uxte. morena!

Em meditação Introspectiva

Do fundo de meu ser, num arremesso
longo, parte uma voz turva e fremente.
Escuto-a já bramir, quando, em começo,
balbuciava uma prece, lentamente.

Acendo o lume da Razão, e desço
às cavernas profundas do Inconsciente.
A luz vacila e fuma; eu estremeço,
vendo só treva acumulada em frente.

Clamo, interrogo… Em vão. Silêncio em tudo.
Aos poucos, num luar distante, agora,
rondam vultos de sonho e de pecado.

E aflita, o colo branco a arfar desnudo,
uma princesa acorrentada chora
junto a um fosco antropóide acorrentado.

16 de setembro de 1922

Publicado no livro Lâmpada antiga: versos (1924). Poema integrante
da série Um Punhado de Sonetos.

Jamais

A Gastão Bousquet

Jamais, jamais encontrarei aquela
que eu procurava pelo mundo outrora,
como quem mira um céu que não se estrela,
um véu de névoa que não se evapora.
Jamais, jamais. E, solitária vela,
vai-se a Esperança, Desalento em fora.
Jamais há de cessar esta procela,
jamais há de raiar aquela aurora.
Há de morrer esta vontade pura
(o coração aniquilado diz-mo)
na intimidade das secretas mágoas.
E este imenso tesouro de ternura
será como um regato num abismo,
rolando oculto as cristalinas águas.

Publicado no livro Névoa (1910).

Memorial de um Passageiro de Bonde

O meu amigo João Felício Trancoso, conceituado, chefe de seção,
prometeu um dia, em troca já não sei de que serviço,
que me faria um presente à minha escolha. Resisti, como cumpria, à
promessa de outra compensação que não fosse a da sua
velha e sempre nova amizade.

Mas Trancoso é obstinado e não me deixou sossegar. Exigiu
sempre que eu lhe dissesse o que preferia – se a coleção das
obras de Jorge Ohnet (a sua maior predileção em literatura),
se uma cigarreira de prata, se um guarda-chuva de seda.

Como eu teimasse em recusar, mandou-me o guarda-chuva e, não satisfeito,
pouco depois me veio ameaçar com as obras de Jorge Ohnet. Urgia romper
o cerco.

Ora, eu sabia que Trancoso, muito calado, rascunhava um diário das
suas impressões de viagem. Das viagens que há vinte anos faz,
como bom empregado público, de casa para a repartição
e da repartição para casa. Tomei-lhe um punhado de folhas, li-o,
e disse-lhe: "Este é o presente que exijo".

Tentou repontar, quis sofismar o contrato: venci-o à força
de senso jurídico e de severas admoestações.

Nenhuma lembrança do velho amigo me poderia ser mais grata do que
esses papéis em que lançou uma verdadeira porção
de si mesmo. Verdadeira, porque Felício não conhece a arte dos
desdobramentos literários da personalidade. Nota no memorial as espontâneas
modificações de sua alma ao contato das coisas e dos homens.
Não edifica a sua obra: segrega-a. Não a escreve para verificar
ou provar que também é capaz de fazer literaturas, mas "para
ter a sensação de que se expurgou de uma inevitável porção
de tolices".

Assim, o seu ponto de vista de escrevedor é inteiramente oposto ao
dominante: outros constróem, com esforço, uma personalidade
exterior, feita de escritos, na qual põem toda a sua complacência
e o melhor das suas esperanças; este deita fora as suas idéias,
como um refugo, para conservar o equilíbrio, a saúde e a leveza
do seu ser interior e inviolável – o único que vale a pena de
ser vivido e cultivado, (mesmo porque não se lhe pode sair da casca).

Demais, gosta de escrever "para ter a impressão, ao reler-se,
de ser uma alma que vai vivendo, apesar de reduzida à mínima
expressão social de empregado público e viajante de bonde."
E acrescenta: "A lesma, na sua existência branca, só deve
ter uma tal ou qual sensação de vida quando olha para o rasto
prateado que vai deixando pela parede." Contudo, os mais sonsos têm
o seu sistema de idéias e Trancoso não escapa à necessidade.
O seu ponto de vista autoral, atrás indicado, já representa
uma posição filosófica diante do mundo e da sociedade.
Há mais: o nosso memorialista visivelmente gosta dos casos e coisas
mais ordinários, mais mesquinhos, mais insignificantes: esses, de preferência,
regista e comenta. É que pensa, com Chamfort, que, "nas grandes
coisas, os homens se mostram como lhes é conveniente, mas nas pequenas
se revelam tais quais são". Daí o sabor das pequenas coisas,
que são na verdade as realmente grandes, porque formam os alicerces
e as armaduras de tudo.

O sabor? Antes a amargura Entretanto, Trancoso não é um cético
nem um pessimista. Homem são na sua humana enfermidade e forte na sua
complexão mediana, conhece o valor higiênico da variedade de
exercícios e a conveniência de a gente se abandonar um pouco
à ondulação natural do sentimento e das intuições
ordinárias. No fundo, talvez, crente, – crente do bom senso da inteligência
e do coração, qualidade ativa, inimiga nata do senso comum,
"consagração social e passiva de toda a sorte de preconceitos
mendazes e de pré-sentimentos daninhos".

Enfim, aqui tem o leitor as impressões de viagem de Felício
Trancoso. Temo que este prefácio o prepare mal para avaliar a verdadeira
índole dessas páginas despreocupadas. A eterna impertinência
dos prefácios! As coisas da vida surgem por si mesmas, sem prefácios
nem explicações, e no entanto conseguem perfeitamente o fim
de todas as coisas: passar. Pois façamos de contas que este prefácio
já passou. Não existe.

L’áme respire avec des paroles UNAMUNO, L’Agonie du Christianisme
O BONDE Quando ia tomar o meu bonde, hoje pela manhã, o meu vizinho
Dr. Viegas passou no seu Dodge e atirou-me. num gesto, a fisga de um convite.
Hesitei um pouco, e afinal optei pelo bonde. O Dr. Viegas partiu.

Entrei no carro elétrico, conquistei um lugar no último banco,
e só depois que me vi instalado e refestelado é que me ocorreu
dirigir a mim próprio esta interpelação: "Por que
será que recusei o automóvel? Porque preferi o bonde?"
A resposta não foi imediata nem rápida; veio porém, e
aqui a reduzo a conserva: "Preferi o bonde porque não tenho pressa.
E não quero ter pressa, porque estou contente, e o contentamento em
mim propende naturalmente à lenteza das degustações silenciosas
e chuchurreadas. Trago a alma numa pacificação pessoal e cantante,
num desses estados de harmonia orgânica que crescem de dentro para fora,
como uma florescência, sem se saber porque, e por isso mesmo são
mais doces. Para fruir esta eufórica disposição, preciso
de estar só. E a melhor maneira de estar só é ainda achar-se
no meio de uma quantidade grande de estranhos. Sentimo-nos, assim, não
apenas insulados, mas diversos. Duplo círculo de segregação.
Solidariedade enfestada. – E eis aí a única forma de solidariedade
perfeita que os homens até hoje inventaram: a união de todos
para deixar cada um entrincheirado em si mesmo, como uma pedra.

Depois, o automóvel me é antipático. A rapidez posta
a serviço dos que não têm que fazer! A faculdade de deslocamento
veloz em posse dos que menos razão teriam para correr! Assim, os relógios
de bolso foram nos seus princípios um luxo de ricos, depois de apatacados;
adorno e brinquedo dos que tinham mais tempo ao seu dispor. Velha história
da maioria dos inventos: charadas e curiosidades de mecânica para pessoas
lunáticas ou desocupadas, acabam impondo-se a todo o mundo. Não
os determina a necessidade: eles é que a suscitam. Os que trabalham
deveras, os que suam e gemem na tarefa de todos os dias são os que
precisariam de ter automóvel, para poupar minutos, para espremer uma
gota de vida e de sangue em cada segundo. Mas esses não o podem adquirir
e manter; podem quando muito sonhar em possuí-lo um dia – quando já
não seja necessário.

Assim se vive perpetuamente, em busca do supérfluo; por ele nos batemos
e sacrificamos. O supérfluo é-nos tão indispensável
como para certos doentes o ar das montanhas ou os banhos de mar. Nele pomos
as nossas esperanças de saúde e rejuvenescimento. A vida é
uma carreira louca em pós de automóveis relampejantes. Poucos
os agarram. E os que os agarram, apenas aboletados mandam tocar mais depressa
para alcançar um outro que faiscou ao longe. E toda esta canseira se
resolve numa carreira desesperada empós do último carro, aquele
que tem douradas e negruras.

O automóvel é o veículo dos que fogem a si mesmos.
Qual a causa dessa febre de pressa? Vaidade material, exteriorização
do centro de gravidade psíquica. Depois, gosto puro da velocidade,
pendor infantil reencontrado na idade madura – prazer de um tropel de sensações,
dominado pela sensação central e capitosa de sermos uma vertigem
que voa através do delírio das coisas. Tudo maneiras novas de
embriaguez. O automóvel vem da mesma prateleira que o whisky, o tango
e a morfina. Tudo maneiras de uma pessoa esquivar o olho antipático
e fulgurante do seu Eu profundo, o consciente, o rememorador, o censurante,
o meditativo, que desperta e fala quando abandonamos o corpo e os sentidos,
e os braços descansam, e o animal estatela como um mecanismo cuja corda
se acabou.

O automóvel é o veículo dos que não amam, apenas
desfloram libertinamente a beleza das coisas. – A melhor atenção
do viajante, por essas estradas, se concentra na máquina. "Como
se porta? Quanto anda? Quantos quilômetros andou? Como funcionam os
freios? Bastará a provisão de gasolina? Onde encontrar gasolina
aos litros? Olha um que lá vem como um louco! Vamos a uma chispada!
Cuidado com essa volta… Diabo, lá se foi um pneu!… – Assim, conjugado
ao passageiro por todas as fibras da atenção e da vontade, o
auto é como um corpo doente que uma triste criatura tem de conduzir,
absorvida nele, por entre esbarros e escorregões. É um prolongamento
imediato do Eu material, e pois um reforço tremendo da múltipla
escravidão que amarra a endolorece o espírito. O ideal do filósofo
é despojar-se de tudo quanto nos limita e nos pesa: o ideal comum é
encarapitar novas cargas e novos prolongamentos, novas estruturas postiças
à personalidade natural.

Os homens na verdade amam todo gênero de escravidão, contanto
que lhe ponham um nome aprazível. Dirigir um automóvel é
"dirigir" alguma coisa. (Veja-se a tradicional imponência
dos indivíduos atrelados a uma boléia). Chamam a isso dominar
a matéria cega e a força bruta.

Dominar a matéria e a força, quem o faz é o inventor
que labuta no gabinete e no laboratório. Os outros apenas reproduzem
a história do mágico aprendiz. – Chamam a isso fazer esporte,
cooperar na obra de não sei que vago progresso. E com estas idéias
se alegram. Fáceis de contentar, os homens. É pena que os forçados
das galés antigas não tenham tido a consolação
de algum pensamento nesse estilo, quando se dobravam e desdobravam amarrados
à mecânica extenuante do remo! Sim, automobilistas há
que têm tempo para ver; que colecionam sensações; que
trazem braçadas de impressões da natureza, dos povoados, das
caras e das almas entrevistas.

Impressões talvez nítidas, mas fragmentárias e superficiais,
como fotografias. A objetividade chata e unilateral do instantâneo.
Nada das penetrações, das tatilidades envolventes, das sondagens
reveladoras, das adivinhações enlevadas, das apreensões
íntimas, concretas, totalizantes, de uma alma em lento contato, em
luta e em núpcias com a virgindade fugitiva do real. A imparcialidade
química, a mentirosa, a estúpida imparcialidade da fotografia.

Enquanto que o bonde… Ah! o bonde é outra história. Nem
tão vagaroso que dê sono, nem tão veloz que dê vertigem,
tem a suprema vantagem de ser seguro e repousante. "Repousante"
quer dizer que nos deixa o descanso necessário para continuarmos em
lida e em briga conosco mesmos. Quer dizer que no bonde não intervém
a força centrífuga que nos estraçalha e nos projeta contra
as coisas ambientes, na alucinação das corridas elásticas
e esfuziantes. Em vez de domar a pulso umas engenhocas pomposas e traiçoeiras,
acho mais razoável e mais agradável degustar as aquisições
já provadas e certas do gênio inventivo, das quais nos podemos
servir sem lhes dar maior atenção. E que formidáveis
aquisições, já docemente incorporadas aos nossos modos
de ser! Por exemplo, este meu Faber n.0 2, macio, leve e corrente como uma
agulha sensibilíssima adaptada a um aparelho psicográfico; este
papel em que escrevo, liso e lúcido como porcelana, claro como a cordialidade,
alvo como a inocência, receptivo como um espelho; este humilde capote
de lã que molemente me escorrega dos ombros à medida que trabalho,
brando como um carinho piedoso que discretamente se retira; este meu relógio
paciente e incansável, que há seis anos tiquetaqueia todos os
minutos da minha vida, já embaciado, já com os relevos do tempo
meio delidos, já com um ponteiro meio torto, já com o vidro
meio opaco, mas con moto dentro firme e obstinado no seu trabalho, sempre
a contar lá consigo, na sua vizinha martelada e tilintante, a medida
perpétua de todas as monotonias essenciais deste mundo tumultuoso.

O bonde permite que eu me concentre em mim mesmo. Não vale isso grande
coisa, mas sempre é um meio de eu me sentir viver enquanto vivo. O
que não é possível no automóvel à solta,
onde a nossa alma se vai espadanando pelos caminhos como a água de
uma vasilha sacolejada.

O bonde permite-me ver de perto, viver o bicho-homem na substancial realidade
dos seus gestos inadvertidos. E esse bichinho (verme da terra, lá diz
o Evangelho) é afinal só o que há de interessante no
mundo.

As próprias estrelas são uma poeira estúpida, na sua
mudez mortal e na sua mecânica fria. De onde lhes vem a magnitude e
a beleza? Da pequenez e da miséria desse bichinho que pensa e que imagina,
entre as minhocas e os sapos. A sua pequenez e a miséria o fazem visionário
de esplendores.

Deliciae meae esse cum filiis hominum.

O bonde é uma galeria inesgotável de exemplares desse verme
sempre igual e sempre vário; uma exposição permanente,
renovada a cada instante, de tipos, de esboços, de caricaturas, rica
e múltipla como a vida, sugestiva como deve ser a antecâmara
do Purgatório. Se as almas soassem, o bonde seria como um poderoso
jazz-band sobre rodas em que os uivos, os berros, os soluços, as casquinadas
interiores se despenhariam em cataratas de dissonâncias – sem perder
o fio às grandes linhas monótonas da composição.

"Ah! o bonde, sim…" Depois de me dar esta resposta, achei que
era um pouco longa demais para explicar uma resolução tomada
em dois segundos. Mas não sei fazê-lo por outro modo. Sei apenas
que é assim, ordinariamente, com todas as nossas resoluções.
Elas pressupõem longos trabalhos de raciocínio e reflexão;
na verdade, esses trabalhos vêm depois, e só servem, quando muito,
para as seguintes edições do mesmo ato.

No cabo de tudo, se eu ainda dispusesse de dinheiro sobrante, compraria
um automóvel, ou uma dessas máquinas que mais se assemelham
automóvel.

UM SONETO Saí, hoje, de casa maquinando um soneto. Não foi
culpa minha, mas obra do acaso. Lendo um jornal, depara-se-me, perdido no
entrecho de uma notícia ordinária, em que se narrava a prisão
de uma negrinha gatuna, este retalho de frase: "Toda a ilusão
da triste Gabriela…" – Magia do número! Não foi sem razão,
ó sombra venerável de Pitágoras! que a pressentiste por
tudo nas esferas como nas almas. Repeti duas, três, dez vezes esse pedaço
de frase vulgar, que é um verso inteiro e excitante. Gabriela alvejou-se-me
e transfigurou-se-me logo na remota imagem de uma linda pessoa que de repente
se vira nua de toda ilusão, nua como lady Godiva montada num asno,
em meio da praça. Comecei a compor… não, começou a
compor-se em mim um soneto: Já não tens ilusão, ó
Gabriela! Nega-ta o amor, essa comédia triste.

Nega-ta a vida. E em tudo quanto existe, O espinho do real se te revela.

Subi para o bonde a escandir mentalmente esses decassílabos, que
para ser sincero comigo mesmo, não me pareceram maravilhosos. Mas alentava-me
a esperança de que pudessem ir melhorando do meio para o fim do soneto.
– O que me apepinava um bocado era que as rimas aproveitáveis não
se deixavam pegar como frangos de pés amarrados. A memória,
afeita a servir-me os torresmos do vocabulário trivial, só me
deparava coisas como fivela, moela, espinhela, chiste, alpiste, que não
se coadunavam à pura nobreza da inspiração. Encolhi-me,
cerrei as pálpebras e atirei-me à caça de boas rimas,
exercício muito útil, para refrescar as idéias e especialmente
indicado como passatempo higiênico e divertido para homens atarefados,
nas horas vagas.

Ia engolfado nesse labor – Cellini do verso! – quando senti que uns dedos
me bicavam no ombro.

Voltei-me, era o meu amigo Fabiano Alves, prático de farmácia
meu vizinho. Bom homem, mas confiado, e ainda com a particularidade esquisita
de se achar sempre numa temperatura espiritual completamente diversa da minha.

– "Está calculando?" indagou.

Tive ganas de lhe perguntar que conta lhe fazia que eu estivesse calculando
ou voando muito acima do lodaçal do mundo, onde patejam os boticários
sem alma.

– "Vem tão concentrado, mexendo com os lábios."
– "Cá umas coisas." Fabiano entrou imediatamente a explicar
que era tapadíssimo em questões de cálculo.

Decididamente, não dava para essa especialidade. De uma feita, propuseram-lhe
um problema, no clube de Periquitos, sua terra natal: "Um pássaro
faz sete voltas em redor de uma torre de cantaria em quarenta segundos; quantas
torres serão precisas para que sete pássaros façam uma
volta…" Mais ou menos isso. Coisa à-toa, simples aplicação
da regra de três; podendo-se também resolver rapidamente por
análise. Pois levou mais de meia hora para dar com a solução!
Uma vergonha.

– "Ainda assim, você é um bicho, Fabiano." – "Não;
em Matemática, serei bicho, mas de má qualidade: um burrego.
De todas as ciências, a que dá com o meu feitio é esta"
(e batia com a larga e magra mão sobre a capa de um livro de espiritismo)
"é esta, a filosofia." E Fabiano falou copiosamente sobre
a doutrina espírita, "a mais consoladora de todas", e em
particular sobre a moral, "sem discussão possível, a mais
perfeita." – "Fabiano" (lhe disse eu, apenas por dizer alguma
coisa), "você conhece a moral de Sócrates? Ele sorriu: –
"Esse, justamente, freqüenta o meu círculo. Um espírito
evoluído. Adiantado!" E dizendo "adiantado", Fabiano
esticou os beiços para um assobio, que deixou subentendido.

Mas eu, intrigado, questionei: – "Como é isso, ó Fabiano?
Então Sócrates freqüenta…" Ele sorriu com bonomia,
explicando: – "Manifesta-se, compreende? Está desencarnado há
muitos anos, desde um desastre que houve aqui na Central. Saiu com as pernas
esmigalhadas. Nesse mesmo dia visitou uns nossos irmãos, no Pará;
por sinal que fez o pobre do aparelho gritar com dores nas pernas!" Fabiano
discorria, discorria. A certeza da verdade dava-lhe um ar de beatitude. "Ele
já parecia respirar o eterno, planava além de todas as coisas
perecedouras, que vão da molécula às estrelas. Este prático
de farmácia, que acabava de largar o almofariz para ir comprar uma
porção de calomelanos à drogaria, achava-se absolutamente
integrado nos planos perpétuos da vida e do movimento universal. E
o curioso é que se consolava com isto.

Ia sorrindo, no bonde, como sorriria um arcanjo na sua biga de chamas, através
do infinito, assistindo ao florir e ao despertar das constelações
pelos abismos sem fundo. Ou como uma criança contemplando um queimar
de rodinhas e traques.

Com isto, deixei de fazer o meu soneto. Quando pretendi reinvocar a inspiração,
ela havia batido as asas. Um acaso ma trouxera, um outro ma levou.

Assim acontece com tantas coisas belas e boas da alma! Nascem e morrem por
aí na sombra e na bruma da vida larvada. Nascem por acaso, por acaso
morrem. E nós caminhamos sobre as flores mortas dos nossos jardins
interiores, como um cordão de porcos-do-mato sobre uma camada de pétalas,
na época da inumerável florescência dos manacás.
Mas entre a preta Gabriela e o boticário Fabiano, minha alma teve um
momento de ventura inocente, embalada no berço dos ritmos e dos timbres.
E, se não chegou a perpetrar nada, tanto melhor.

O melhor da poesia e de tudo quanto se lhe parece é a elaboração,
o estado de graça, a embriaguez esporeante, a doce liberdade interior
em que vive quem a elabora ou rumina. Talvez que o mais alto poeta seja um
simples ruminante mudo de formas, O mais, vaidade e pretexto.

Bendita a Gabriela, e bendito o Fabiano.

RUFINA – "Entre, Rufina." Quando eu voltava, hoje, para casa,
lendo uma folha da tarde, ouvi soar essa frase num dos bancos dianteiros.
Instintivamente, olhei: Quem a proferira fora um senhor idoso, com uma grande
cara bonacheirona e sonsa, dirigindo-se a uma rapariga que, não sei
por que motivo, parecia hesitar sobre o estribo, como uma baratinha machucada.

O bonde estava parado. Quando o homem acabava de falar, o carro subitamente
arrancou, e a moça ia perdendo o equilíbrio, soltando um desses
guinchos de boneca rapidamente apertada na barriguinha. Dei um salto, voei,
e quando caí em mim estava agarrando a jovem por um dos braços
com a energia de um guindaste, enquanto os passageiros se levantavam à
uma, como se o bonde fosse peneira de sururucar em movimento, e eles quirera.

Larguei logo a presa, que, cabisbaixa e ruborizada, foi para perto do senhor
idoso. Como este me fizera uma cortesia, agradecendo a intervenção,
aproveitei-me da oportunidade para pedir desculpas à menina, ainda
arrufada do incidente, de a ter agarrado um pouco à bruta, no receio
de a ver sofrer uma queda. Ela riu-se, com uma pontinha de desdém.

– "Queda? Ah! disso não havia perigo. Tomo o bonde em movimento
a cada passinho!" Curvei a cabeça com dignidade, como quem deliberadamente
interrompe uma situação delicada; recostei-me, e recomecei a
leitura da minha gazeta. Tentei recomeçar. Mas não podia dar
com o seguimento do artigo em que viera mergulhado. As seções
tinham feito um chassêcroasê completo. Trechos vistosos, que antes
me saltavam aos olhos, agora andavam brincando de Maria-condê pelas
oito páginas do diário. Cheguei a desconfiar que alguma página
se houvesse evaporado. E, na correnteza das minhas emoções embrulhadas,
a consciência apenas tinha força para me sussurrar: "Toma,
burro! Bem feito. Por que é que te meteste? Por que é que não
a deixaste periclitar à vontade?" Já então, o gesto
da moça, que fora quase imperceptivelmente abespinhado – também,
com aquele susto – me reaparecia, em imagem, todo a arder em pura má
criação. Cheguei a sentir por ela uma espécie de ódio.
(Digo espécie de ódio, porque teria remorso, caso julgasse o
meu coração à ligeira, capaz de tão grosseiro
sentimento. O amor da justiça é inato nas almas; todos temos
infinitos escrúpulos em sentenciar contra nós mesmos.) Como
quer que seja, no aceso da raiva, afastei um pouco o meu paravento, isto é,
o meu jornal, e dardejei contra a rapariga uma torva olhadela de esguelha.
Ela estava agora voltada para mim, de um modo repassado e calmante, olhando-me
com esse ar de complacência desinteressada com que se contempla um animal
de jardim zoológico. Dei imediatamente à minha olhadura envenenada
o ar mais neutro e casual que foi possível. Sorri. Ela sorriu. Aquilo
foi como se um céu borrascoso de repente clareasse, todo florido de
nuvenzinhas recémnascidas, castas como roupa lavada ao sol. Sorri,
mais docemente. Ela baixou as pálpebras pestanudas e deu meia volta
ao rosto moreno e rosado sobre cuja superfície; dura e lisa como a
de uma figura de biscuít, o fumo de um cigarro vizinho punha a indecisão
aérea de um tenuíssimo nevoeiro. E ainda sorria; e pude perceber
que por entre a franja dos cílios a sua íris umidamente faiscava,
enviesada para o meu lado, embutida numa sedosa penumbra. E os cílios
palpitavam.

……………………………………………………………….
ainsi qu’un noir feuillage où filtre un long rayon d’étoile.

Nisto, o velho bezerrão fez sinal ao condutor e, na sua voz plácida:
"Vamos, Rufina; mas não caia!" A moça riu-se de boa
vontade, como um lindo modelo para anúncio de dentifrício; fez-me
um cumprimento de cabeça, largo e cordial, e saltou, acompanhada pelo
velhote.

Vieram-me ímpetos de saltar igualmente, mas uns temores me agarraram
ao banco, pelos fundilhos, como cola. Não me acharia ela ridículo.
Não daria o meu ato na vista dos passageiros? Refleti que este receio
era estúpido. Eu tinha o sagrado direito de saltar onde quisesse. Demais,
como é que se podia decentemente receber um sorriso de mulher bonita,
sem a seguir, ainda que a custo de algum risco? Ia eu refletindo, quando olhei
para trás: Rufina tinha desaparecido. Bolas! Encolhi-me, num acabrunhado
desprezo de mim mesmo, e deixei o bonde rodar. Quando dei acordo de mim, era
o único passageiro restante e estava no fim da linha. Só, só
na solidão do carro vazio. Só e triste como a fruta murcha que
ficou no fundo do cesto. A voz do condutor português rolava, irônica,
conclusiva, retumbando-me na alma como a voz do pai de Hamlet nos subterrâneos
de Elsenor: Pooonto finale!!! O PESCADOR E O SILÊNCIO "Com que
então, Barbosa, você é pescador?" Esta simples frase,
dita numa voz branca, de um jeito quase distraído, me ia hoje rendendo
uma quebra de amizade.

Frederico Paulo Barbosa Ramires é o homem mais calmo, sisudo e direito
que jamais conheci.

O senso comum encarnou-se nele como a seiva se infunde e se solidifica numa
cabiúna. Dir-seia que a própria arquitetura de Barbosa fora
armada com aquele material primário: os ossos robustos, as carnes duras,
o corpanzil maciço, a fisionomia densa de hoplita membrudo.

Familiarizamo-nos há muito. E nunca descobri no meu amigo uma trinca,
um recanto desleixado, uma dependência indecisa e frouxa.

Vendo-o, hoje, no bonde, de caniço em punho, tive uma pequena surpresa,
olhei para ele fiz-lhe aquela pergunta inócua. Parece que lhe toquei
num ponto dolorido. Não se desconcertou, nem se irritou propriamente,
mas respondeu-me com um nadinha de impertinência: – "É verdade;
pescador. Todos têm a sua mania, a minha é esta. Não faz
mal a ninguém – senão aos peixes. É higiênica,
tem a sua dose de poesia…" – "Bem, Barbosa, pesque, pesque, isso
não precisa de justificação." – "Mas, se eu
quiser justificar?" Fez então o elogio da pesca de vara. Uma pessoa
fica à beira da água com a cana em punho, lança o anzol,
e espera. Não há nisso nenhum desbarato de energias físicas
nem morais. Por outro lado, não há tampouco a mínima
astúcia nem a mínima violência. Fica à espera.
Não corre atrás do peixe, não vai agarrá-lo. Nem
o enxerga sequer. É como quem tira a sorte. O rio traz o peixe, o peixe
vê a isca, engole-a, engasga-se. Então, o pescador sente na ponta
da vara um estremecimento característico, dá-lhe um meneio,
e puxa.

– "Como vê" (prosseguiu) "a intervenção
do pescador é em tudo semelhante à do acaso, ou dos acidentes
cegos que semeiam o curso dos rios e de todas as coisas. Ele espera, entendeu?
ali, parado. Não vê o peixe, não sabe se o peixe virá,
nem de que espécie há de ser caso venha; não sabe nada.
Espera. É de uma imparcialidade absoluta." – "Em todo caso
atalhei, sabe que o rio é piscoso. E a imparcialidade, aí, quer
dizer simplesmente que qualquer um serve." – "Sim. Mas o peixe,
se não pegasse no anzol, seria imortal? Não teria de morrer
logo adiante?" – "Dizem que eles têm o sestro de viver muito;
até duzentos anos, conforme.,’ – "E você acredita isso?
Quem é que contou os aniversários do peixe? E depois, olhe aqui,
e depois que vem a ser um século ou dois diante da imensidade do tempo."
– "Alto lá, nós não vivemos a imensidade do tempo,
Barbosa. Com esse artifício metafísico, se tem justificado muita
pose de espíritos inumanos e muita monstruosidade material. Nós
vivemos um minuto! Esse minuto é que deve ser a nossa medida. Tudo
que o excede é imensurável. E, sendo imensurável, é
sagrado." – "Ahn…" – "Mas, falando sério, você
não precisa ter esse trabalho de justificar o seu gosto. Nada de repreensível
na pesca, nem mesmo na caça. É lei do mundo que as espécies
umas às outras se exterminem, por necessidade, por esporte, por prazer,
por passar o tempo, é lei do homem que combata as outras espécies
todas e a própria. Que lhe havemos de fazer? Observo-lhe, simplesmente,
que a sua filosofia piscatória poderia justificar também uma
larga parte da moral corrente nas relações humanas. Lança-se
o anzol, fica-se à espera. Conheci um mercador que, fisgando e aleijando
o freguês, não se desculpava por outra forma: Veio porque quis!
Não obrigo ninguém a comprar." – "Mas está
muito direito" (replicou Barbosa). "Ele tinha razão. Eu,
dono de um negócio, daria o preço que bem entendesse às
minhas coisas." – "Você não o faria, Barbosa."
– "Faria, sim, e você também." – "Pois, se eu
o fizesse, seria um espertalhão como qualquer outro." Barbosa
amuou, resmungou, e creio que só a sua sensatez e bonomia de animal
forte, o impediu de levar adiante a contenda. Separamo-nos sem nos encarar.
Fiquei penalizado com esse primeiro fio partido na teia de seda que vínhamos
tecendo há tantos anos. Por um fio roto vai-se às vezes o tecido
inteiro.

Todo o mal está em se falar demais.

O que vale deveras, deveras, nos indivíduos, não são
as idéias, que mudam, que ondulam, que o menor sopro de interesse ou
paixão modifica, é o fundo indefinível de bondade que
neles exista. E esse fundo mesmo, e preciso que não se pretenda apurar
com fúrias de análise! Não é senão um pouco
menos mudável e incerto, neste perpétuo devenir em que tudo
o que vive se resume num equilíbrio momentâneo e precário
de elementos errantes e fluidos.

Devemos crer nesse fundo, sem o examinar com insistente rigor. A nossa boa
vontade o faz crescer. Acreditar que ele existe é corroborar-lhe a
existência. A nossa fé transfunde-se no íntimo dos outros
como uma levedura vivaz. E assim cada um de nós é um pouco criador;
criador das mais doces coisas do mundo.

Os homens de bem são geralmente melhores do que a sua própria
lógica faria supor. Há indivíduos excelentes que falam
como cínicos ou malvados.

A palavra não foi dada a todos os homens para encobrir os seus pensamentos:
foi dada à maior parte para encobrir a falta de pensamento. Felizes
os que ainda têm pensamentos que encobrir! A maioria pensa à
medida que fala. A necessidade de falar é que a obriga a pensar um
pouco. E há pior: a necessidade de falar a obriga por vezes a dizer
coisas que nunca teria pensado.

Era preciso falar muito menos. O silêncio seria a nossa melhor cura.
E seria freqüentemente a melhor das satisfações que pudéssemos
dar de nós, em nossa irremediável enfermidade.

No silêncio germinam as forças heróicas. No silêncio
condensam-se as forças invencíveis. O silêncio é
a túnica invisível e pesada das almas inquebrantáveis,
sumidas na profundidade triste da sua clarividência e da sua piedade.

Silence and Secrecy! – palavra de Carlyle que devia ser a divisa das almas
religiosas, isto é, das almas humanas.

Os amigos deviam estar juntos apenas para se sentirem viver um ao outro,
mantendo entre si esses largos silêncios falantes que são o que
há de mais expressivo na linguagem do amor. A linguagem do amor é
uma brosladura vã de palavras sobre um fundo uniforme de sentimento.

Para que sobrecarregar a brosladura? Para que arriscar desenhos supérfluos
que podem comprometer irremediavelmente o tecido? A linguagem apropriada seria
musical, a meia voz, lenta como um cantus planus envolvido pela melancolia
suave que banha as felicidades efêmeras.

O mundo com todas as suas complicações miseráveis e
a nossa personalidade mundana e aparente, com todas as suas pretensões,
e imbecilidades, mistificações e parlapatices, deveriam desaparecer,
como fumo varrido por um vento puro e purificador, diante do milagre de duas
almas que de verdade se querem, – milagre! coisa incompreensível e
estupefaciente, nesta raça de macacos famélicos e obscenos.
E seria como se cada uma dissesse para a outra, sem dizer nada: "Eis-me
aqui. Tal como sou, eis-me aqui: um pouco de lodo com duas asas.

Amemo-nos, pelas nossas asas. Mas em silêncio, chut! em si-lên-ci-o…
Basta o sopro de uma palavra vã para que essas asas se rompam como
teias de aranha! Etre méconnu memê par ceux qu’on aime, é
est la coupe d’amertume et la croíx de la vie…

escreveu Amiel com o seu sangue.

Dentro do silêncio, a compreensão mútua, despindo os
incômodos véus da palavra exterior e dos conceitos ordinários,
e mesmo da palavra interior, poderia assumir a forma serena de uma iluminação.
De uma claridade difusa e divina. Para além da lógica tardígrada
das magras aparências, das reflexões esterilizantes. – Poderia.
Mas!…

O HOMEM QUE FUMA Vou deixar o hábito de ler no bonde, hábito
estúpido. Ver o homem viver é mais interessante do que ler as
histórias do que ele faz e pensa, (ou pensa que pensa.) É certo
que no bonde, geralmente, salvo numerosas exceções, vai quieto
e sorumbático. Mas onde quer que esteja, e como quer que esteja respira
humanidade. E os seus gestos e momos mais fugitivos são debuxos descosidos
do grande jogo de cena que faz a dramaticidade da história.

"Todo ser humano é para mim um templo, e eu gostaria mais de
distinguir os traços originais, as leves pinceladas que aí se
encontram, do que de ver o famoso quadro da Transfiguração de
Rafael." Esta opinião de Sterne em sua Viagem Sentimental, é
justamente a minha. Honra a Sterne. – Só divirjo dele em que não
gosto apenas dos traços originais, mas de todos. Aliás, no fundo,
cada homem é sempre uma síntese original, um composto único,
um exemplar sem parelha. A nossa visão grosseira ou a nossa necessidade
e sede de catalogação é que nos obriga a converter as
semelhanças em identidades e as analogias em semelhanças, a
criar espécies e gêneros para ver o indivíduo, única
realidade tangível, único depósito real de humanidade
vivente e vibrante.

Viajei ao lado de um homem que, pela casca, devia ser negociante de secos
e molhados. Era, de fato. Cheirava a suor, tinha os dedos grossos e encardidos,
trazia um casaco de casimira cinzenta semeado de respingos, coscorões
e tintas de varias cores. Contudo, carregava relógio com uma grossa
cadeia de ouro, guardava na pupila a chispa da independência e, enfim,
tinha esse ar de cavaleiro garbosamente escarranchado em cavalgadura mansa,
tão próprio dos homens classificados e prósperos.

Mascava um toco de charuto, soltando baforadas na cara dos vizinhos, entre
os quais havia senhoras de várias idades, formatos e cores. Não
lhe ocorria sequer a idéia de que pudesse incomodar. Isso me irritou,
e figurei-me logo esse mesmo homem, em mangas de camisa, por trás do
balcão a desfazer-se em mesuras com os habítués do parati
e em gatimonhas gentis com as cozinheiras.

Portanto, um abjeto ganhador de níqueis? um tipo que se faz calculadamente
macio e untuoso quando lhe convém, altaneiro e maroto quando não
depende? Não será bem isso. Para ele, ser paciente e obsequioso
com a freguesia é uma forma de virtude. Disto se ufana. Ensina essa
virtude ao caixeirinho, ensina-a aos filhos, e está candidamente plantado
na convicção de que o Bem é uma coisa que logo se reflete
na gaveta.

No bonde, o Sr. Joaquim já não é um negociante, é
um passageiro. Aí, já não sente os limites que de ordinário
lhe circunscrevem a personalidade, pungindo-lhe a carne; dá liberdade
ao corpo; reveste, como uma roupa larga, os gestos e modos comuns do passageiro.

A este não lhe incumbem senão três coisas: pagar a passagem,
não fumar nos três primeiros bancos, e só ocupar o lugar
de uma pessoa – o que não é difícil, a menos que tenha
um volume incapaz de redução à unidade, na aritmética
dos bondes. De resto, todos iguais perante o condutor e o motorneiro. Todos
podem, ser brutos, dentro das regras, bastante amplas, que presidem a vaga
polícia dos carros. – O Sr. Joaquim está igualmente compenetrado
deste princípio, que da mesma forma já se lhe incorporou à
maquinalidade dos reflexos.

Ora, quem estiver isento de culpa, esse lhe atire a primeira pedra! Todos,
nesta vida, cada um a seu modo, não fazem senão aquilo que faz
o Sr. Joaquim. Todos, no fundo, vendeiros amabilíssimos com a freguesia,
e passageiros que fumam nos bondes da vida muito à sua vontade.

Onde estão a originalidade do Sr. Joaquim? Eis o que não pude
descobrir, mas tenho a certeza de que lá está, dentro dele,
como uma pérola no ventre de um galo. Questão de tempo e de
paciência. – Há criaturas difíceis de decifrar. São
enigmas que a Vida compõe para os propor a Deus, o grande matador de
todas as charadas.

RUFINA Esquisita vaga de saudade! Ontem, anteontem, nada vi no bonde: nada
vi senão Rufina, a moça que salvei de um desastre iminente.

A princípio, entrei a duvidar se ficara preso ao feitiço da
sua pessoa, que tinia de vida e mocidade, se lhe guardara afeição
apenas pelo fato de a ter socorrido. – Há no fundo de nossa alma um
veiozinho de sentimento que fica agradecido aos que nos devem serviço.
E quando quem deve o serviço é uma bonita mocetona, temos evidentemente
uma complicação a mais.

Ser útil a alguém no perigo ou na penúria, é
o melhor caminho para vir a querer-lhe bem: ficanos pertencendo um pouco,
já que nos custou alguma coisa. Andam errados os moralistas filantropos
quando pregam a necessidade de amar ao próximo como condição
e preparação para o ajudar e suportar. O primeiro passo é
ajudá-lo e suportá-lo: o amor vem depois.

Mas isto não tem nada que ver com o amor-amor, amor-desejo, o amor-folia;
e a perturbação que Rufina deixou em mim veio muito menos do
susto de que a livrei do que do filtro luminoso que a furto se lhe escorreu
de entre as pálpebras semicerradas.

………………………………. un long rayon d’étoile! Ah!
Rufína, meteoro rutilante perpassaste pelo céu caliginoso de
minha vida! Estarás a estas horas olvidada de mim. Nem por um momento
esvoaçará tua cabecinha pequenina e redonda a idéia de
que deixaste um farpão enroscado na carne de um pobre funcionário;
de que esta pobre alma, jogada de cá para lá sobre os trilhos
imutáveis, está a ver-te sempre no mesmo banco, ao lado do mesmo
ancião de rosto severo e pausada voz, como um avezita ao lado de um
rinoceronte. – Perdoa-me, se é teu pai, ou teu avô, ou padrinho;
mas não podias ter companheiro que melhor fizesse realçar a
tua brevidade graciosa e arrogante de galinha garnisé.

Não te verei mais, Rufina? BRINQUEDOS No bonde em que voltei da cidade,
hoje à tardinha, vinham crianças com brinquedos.

Perto de mim, um senhor idoso e barbeado fazia ver ao filho de seis anos
como funcionava um galante volantim mecânico, que o pequeno, mais por
comprazer ao tipo velho, inutilmente lidava por acionar.

Mais adiante, uma senhorita loura, sopesava uma bola nas pontas dos dedos
compridos, fazendo-a girar velozmente, com prazer, como sentindo nas papilas,
a carícia de uma tatilidade nova, e uma sensação ótica
inédita na rotação dos gomos bancos, azuis, amarelos
e escarlates.

E essa dança de cores parecia emanar, pela mão translúcida
e ágil, como um vago punhado de flores e de borboletas, de toda aquela
pessoa que se diria a própria Primavera a viajar de bonde.

Perto, uma menina embezerrada olhava esse exercício e essa bola com
um ar de proprietária complacente, estéril de uma bola.

Na cidade, quando lá perambulei à cata do bonde, havia azáfama
nas lojas de brinquedos e novidades. As crianças eram poucas, porque
geralmente os grandes não gostam de sair com crianças e porque,
nestes dias de festas, preferem fazer-lhes a clássica surpresa. – Na
verdade, os grandes é que se divertem com os presentes que fazem; e,
não satisfeitos, ainda se reservam, no seu egoísmo, o direito
de saborear a surpresa dos presenteados. É com delícias que
aproveitam, entre Natal e Reis, a concessão feita pelos costumes para
mergulhar a sua infantilidade envergonhada no mundo maravilhoso das coisas
inúteis e bonitas.

Outrora, mais ou menos até Rousseau, considerava-se a criança
como um homem pequeno. Os próprios artistas as presentavam como adultos
em escala menor. Muito custou reconhecer-se que o homem é que é
uma criança crescida. Entretanto, dir-se-ia que isso entra pelos olhos.

Para as crianças ainda não crescidas, tudo é brinquedo.

O brinquedo especializado é uma invenção que os grandes
fizeram para se divertirem com eles e com as crianças. Estas muitas
vezes, se vêem reduzidas ao papel de usufrutuárias, ou menos
ainda, ao de guardas e conservadoras dos bonitos objetos. Para elas, coitadas,
tudo é brinquedo. Uma toalha enrolada, que se revestiu de um casaco
velho, faz o papel de uma boneca perfeita, ainda melhor do que a própria
boneca perfeita. Um cabo de vassoura pode ser um cavalo sem rival, com vantagem
de não impor ao dono sua raça, nem os acidentes da sua forma
ou do seu caráter, mas com a capacidade preciosa de ser árabe
ou ponney pangaré ou ruano, fuá ou poleiro, à vontade.
Uma galinha, um ferro de engomar, um grilo ou uma caixa de fósforos
são divertimentos mais interessantes e de mais durável prestigio
de que o macaco de pau que sobe por um cordel, do que o trenzinho de ferro
com túneis e estações, do que o palhaço que gira
sobre o calcanhar de pinho e tilinta soalhas e guizos de lata. – Estas observações
não são originais, mas apesar disso são justas.

É verdade que os petizes recebem com ânsias esses presentinhos
de festas, e fazem a propósito um pouco de rumor. É o atrativo
da novidade. É a pressa de ver e experimentar. É o prazer de
dizer "meu". É a tentação de fazer inveja aos
outros pequenos. É, sobretudo, a mímica do desejo, do alvoroço,
da cobiça, do egoísmo apropriador, que os grandes lhes têm
ensinado e que os pequenos vão executando, numa adaptação
mecânica do sentimento confuso e alvorecente aos recortes do gesto distinto
e expressivo.

As crianças amam acima de tudo a espontaneidade da sua própria
imaginação, que os brinquedos, quanto mais complicados e perfeitos,
mais embaraçam. Ou então preferem a complicação
extrema e sempre nova das coisas vivas. Se por natureza são assim,
devia deixarse obrar a natureza. Mas os adultos querem o artifício,
todos os gêneros de artifício, e impõemos às crianças,
perturbando-lhes o viço da curiosidade espontânea e da livre
investigação. Por isso mesmo, a ciência é o último
luxo da humanidade, sendo o seu primeiro desejo.

A ROUPA E O GESTO Gosto de viajar no último banco. Vai-se mais resguardado
de maçantes. Pode-se inspecionar o carro inteiro, quase sem ser visto.
Não se vêem caras.

Evita-se o risco de pagar a passagem para os amigos que não o são,
e pode-se fazer aos amigos que o são a surpresa de lha pagar, numa
traição delicada, pelas costas, – o que, como fineza, tem na
sua independência um especialíssimo sabor. – Por fim, pode-se
fumar sem a preocupação de ser incômodo a senhoras, por
que muito raramente vão senhoras no último banco e dá-se
a coincidência de não haver outro depois do último.

Aliás, deixo de fumar perto de senhoras, não por uma particular
deferência, mas apenas para não me incomodar a mim mesmo. Saborear
um cigarro é prazer tão leve e tão fino, que o simples
pensamento de que alguém no-lo possa estar amaldiçoando amarga
os gorgomilos e embacia a transparência azulejante das espirais.

Apesar de preferir ordinariamente o último, fui hoje para o primeiro,
e fiz toda a viagem voltado para o resto do carro. Não influiu nisto
o fato de eu envergar o meu novo terno cinzento e de estrear uma comburente
gravata de listras amarelas e filetes encarnados.

Não. Detesto exibições. E não distingo entre
exibições, sejam de roupas, sejam de talentos ou virtudes, sejam
de vícios ou maroteiras. Propendo até a perdoar mais facilmente
a exibição de roupas, que não é assim tão
idiota como inculcam os que não a podem pagar.

Ter vaidade de uma farpela bonita é geralmente uma falta venial e,
por assim dizer, exterior, que não repercute nas regiões nobres
da alma; ao passo que a vaidade intelectual envenena e turba as próprias
fontes do pensamento, e a vaidade da boa ação destrói
exatamente essa misteriosa e fragílima levedura de heroísmo,
que é o seu único valor, – o imponderável que a análise
não pode reduzir e ante o qual o escalpelo se detém, enquanto
faísca no olho implacável do operador uma centelha de humana
emoção.

É a vaidade exterior que tem preservado na mulher o seu secreto manancial
de piedade e de energias profundas. Aparentemente frívola, ela é
na realidade mais forte e melhor. Os seus tecidos aéreos, as suas rendas
e fitas, as suas exterioridades espumosas e florais de criatura espetacular,
são na realidade umas couraças, uns adarves, umas muralhas,
– são tranqueiras e circunvalações defensivas que a mulher
estende em redor de si, para ir entretendo o inimigo enquanto ela conserva
lá dentro, na intimidade da cidadela sacra, o seu tesouro e o seu altar.

Não, a indumentária (termo suntuoso, que eu sentia envolver-me,
luxuosamente, como a coisa designada) a indumentária não me
influiu na resolução de ir para o primeiro banco. Predispôsme
bem, quando muito deu-me um calorzinho de otimismo e de simpatia difusa. Isto,
sim. – De onde infiro que devíamos usar mais freqüentemente de
roupa nova, revezando-a talvez com as mais velhas, para acentuar o efeito
pelo contraste, mas enfim usar mais freqüentemente de roupa nova.

Se todos vivêssemos enfiados em estojos de boa fazenda e bom corte,
de certo lucraria a disciplina interna das almas e com ela a facilidade e
o concerto das relações entre os homens. – Um indivíduo
rudemente estrafegado pela vida, mas sempre cingido em ternos corretos e confortáveis,
suporta com outra filosofia e outra elegância os baldões da fortuna.

Principalmente, é claro, quando a roupa está paga.

Homens há que são relembórios por teima, por descaso,
por sistematização inconsciente das sugestões da preguiça,
da somiticaria ou da falta de gosto. Querem fazer crer que são assim
por vontade e que vão executando um programa bem meditado. Dão-se
ares de desprezar profundamente essas materialidades ineptas. E a verdade
é que são às vezes sinceros. Mas como se iludem! O indivíduo
mais sinceramente lavado de vaidades decorativas não pode, quando menos,
quando menos, deixar de sentir a cada instante a discrepância em que
se encontra nos meios que freqüenta. Então, para manter a sua
atitude interior de dissidência, não pode evitar a necessidade
de pensar nisso, de fazer reflexões que deixam forçosamente
um sedimento amargo, sobretudo quando reagem contra atitudes e atos depreciativos
com que esbarrou.

Sendo assim, onde está a liberdade interior que ele pretende prezar
acima de tudo? A liberdade perfeita e bela seria a que implicasse no mesmo
desprezo profundo e sereno as materialidades exteriores e todas as suas conseqüências
– a liberdade de Diógenes ou de Francisco de Assis.

Sem isso não é liberdade: é um simulacro, um escamoteio,
um sofisma em ação, que traz consigo mesmo a sua pena perpétua,
como a sua própria sombra.

Um dos seguros efeitos da roupa nova e bem cortada é que ela cria
e mantém o hábito das posições perfiladas e dos
movimentos harmoniosos. Vale por um esporte. Excelente esporte para o corpo,
visto que o submete a uma disciplina retificadora e a uma continuada economia
de força. Excelente esporte para a alma, que se modela à feição
do corpo. – As atitudes e movimentos da alma são atitudes e movimentos
corporais: a alma põe-se de pé, acocora-se, desliza, descai,
ajoelha-se, caminha direita e alegre, ou cambaleia, ou rasteja. A alma toma
todas as posições de luta, desde a de um calmo e melódico
guerreiro de Fídias até à de um torpe moleque agachado
e sinuoso, com a navalha empalmada e o pé igualmente pronto para a
rasteira ou para a fuga.

Nas aulas de educação moral e cívica devia-se ensinar,
antes de mais, a selecionar e fixar posturas e gestos. Aquele que aprendeu
uma simples maneira nova de segurar o cigarro, de puxar e soltar a fumaça,
de arremessar o coto, uma certa maneira vivaz, ritmada, incisiva e distinta
de realizar todos esses pequenos movimentos, adquiriu alguma coisa que positivamente
lhe modifica a personalidade, por via de ressonâncias que se vão
convertendo em movimentos interiores habituais. – Inversamente, para convencer
uma menina de que ela deve ser boazinha, não há como convencê-la
de que assim se torna mais bonita. Há muito menina grande que faz toda
a força do seu domínio interior com a simples preocupação
de não ter cara de espeloteada ou de evitar a inflamação
das pálpebras. Chamfort conta de uma dama que assim se justificava
de assistir com olhos secos a uma comovedora representação teatral:
"Eu choraria; mas é que tenho de cear na cidade".

Compreende-se bem a confusão que de ordinário se faz entre
o gesto significativo e a coisa significada, entre o valor da virtude e suas
aparências externas. Este pratica uma ação honrada, não
por esta ou aquela razão abstrata, mas para poder andar "de cabeça
erguida"; aquele, para poder "dar uma…", isto é, fazer
um gesto violento e desaforado aos seus detratores. Conheci um homem que,
dando uma grossa esmola a uma igreja, dizia: "Não é lá
tanto pela religião, porque enfim eu vivo a fazer por ela o que posso;
mas é cá por uma birra, – é um couce que eu prego ao
Alvarenga, aquele idiota, que deu um conto de réis e disso se pavoneia."
A metáfora é mais do que um artifício pitural, é
a gesticulação das almas.

Somos bonecos à procura de gestos. Estes preexistem e persistem fora
de nós, e nós passamos por eles como a água passa pelos
vasos e canais que a contêm e lhe dão forma, como a água
passa pelos acidentes da própria correnteza e do próprio caminho,
pelas suas rugas, pelas suas cintilações e sombras, pelas suas
espumas e cachões.

Tomamo-los no lar, desde o berço, e na escola; apanhamo-los no teatro,
no cinema, nos livros, nos quadros, na escultura, na rua, nas salas, na própria
música, que espontaneamente se resolve em desenhos cinéticos
de uma aérea e fulmínea expressividade.

Os gestos de dignidade serena, de compostura discreta e elegante estão,
em parte, incorporados às roupas distintas, como um forro invisível.
O alfaiate corta pelo pano e, sem o saber, vai cortando ao mesmo tempo por
uma tela espiritual, fabricada por duas tecelãs incansáveis,
a Humanidade e a Natureza.

Dizem que o hábito não faz o monge. Imagine-se o que seria
um frade de São Francisco sem o seu hábito! O hábito
só não faz o monge quando esse está de tal maneira conformado
pela vestimenta, que já pode impunemente despi-la, sem de fato arrancá-la
toda do corpo.

A toga foi talvez a mais importante das invenções romanas.
De certo contribuiu mais do que tudo para fortalecer e ritmar, para esculturizar
o caráter daquela gente estrepitosa e derramada.

Por uma razão semelhante, as estátuas clássicas (isto
me parece que foi dito por Alam) são formas imperecíveis de
idealidade ética, formas que precedem e sobrevivem ao conteúdo
ideal que nelas vão sucessivamente vazando as gerações.

A roupa é muita coisa, porque a expressão é tudo. Tudo
quanto em nós representa idéia, pensamento, espirito, são
expressões que se refletiram para dentro e puseram um pouco de luz
e de ordem no caos de que brotaram – como esses deuses barbáricos e
frustes que nasceram da pedra informe, das águas indeterminadas, dos
elementos brutos e confusos, para individuar as coisas e esboçar uma
organização do mundo.

RUFINA Hoje de manhã, ao tomar o bonde, lobriguei lá dentro
um vulto de mulher e, com a instantaneidade do raio, enxerguei a imagem de
Rufina. Trêmulo, sentei-me, e verifiquei: o vulto era uma velha gorda
e tostada. Fechei os olhos, procurei esquecer-me da velha e de Rufina – ejusdem
farínae, afinal de contas! – e comecei a resolver o seguinte problema:
qual seria a renda bruta da companhia, supondo-se que tinha em tráfego
quatrocentos bondes, cada bonde transportando em média vinte e cinco
passageiros? A questão me interessava, porque estou tratando de redigir
uma reclamação para a imprensa contra certas irregularidades
do serviço.

– Vejamos. 25 x 200 = vinte por duzentos, que são 4.000, mais…
Ru-fi-na… cinco por duzentos, que são mil… Erre, um = Ru…. Quatro
mil mais mil, cinco mil; cinco mil que? Ora, o diabo da velha! Cinco mil contos…
– Desisti das contas. A matemática é inconciliável com
o coração. É inconciliável com a vida.

Como é que Newton pôde ser pai de família, ter uma esposa,
ter filhos, ter afetos, preocupações, desejos, e calcular continuamente?
Eu, quando alguma vespa me pica, faço até as máquinas
de cálculo errar uma adição. Tudo aquilo em que ponho
as mãos desconcerta, extravaga. Até o Melquíades, meu
servente, que em matéria de calma e paciência e um urso de bazar,
fica esparavonado, entorta, arrebita e disparata! Preciso esforçar-me
para me corrigir. Não tanto, porém, que me torne apto a maquinar
friamente com a cabeça no meio das tormentas e das delícias
da vida. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Eu prefiro sonhar com
Rufina a cavar uma celebridade em cálculo diferencial.

O GATO Sentei-me hoje ao pé de uma velhota embrulhada num xale. Logo
notei, sem ter nada investigado, que ela dissimulava qualquer coisa por baixo
da manta. – Como foi que cheguei a isso? não o sei ao certo. Um movimento
de suas mãos ocultas a arrepanharem o xale sobre o regaço…
o seu ar demasiado "inocente"… sei lá.

Eu podia ter-me ufanado da minha perspicácia. Mas não. Nem
houve propriamente perspicácia alguma; ou, se houve, foi toda inconsciente:
pouco se me dava daquela mulher, do seu xale, dos seus gestos. Ser Sherlock
por vontade, por estudo, por aplicação determinada e metódica
da inteligência, é um esporte razoável, embora não
me seduza. Mas esta espécie de "suspicácia" inata
e vulgar é aborrecível como todas as inclinações
tolas e baixas.

Senti-me desgostoso de mim, e mal me consolei com a reflexão, que
fiz em seguida, de que o dom não me era particular, nada tinha de diferencialmente
pessoal, Pois que alheio a todo pensamento, a toda vontade e a toda tendência
definida. É qualidade humana, com raízes fundas na camada mais
funda da nossa humanidade. Todos temos dentro de nós um bicho indiscreto
e malévolo, em simbiose com o nosso Eu distinto e consciente, que às
vezes o ignora ou faz por ignorá-lo, ou mesmo lhe dá largas.

Arrastado pela curiosidade, antes que acabasse de refletir, não me
custou perceber que de fato a mulher escondia qualquer coisa, e que essa coisa
era um gato. Um gato branco, boquinha rósea, olhos muito grandes estriados
por um chuvisco de luz entre vegetações de esmeralda e ouro.
Tinha um ar pouco amigável, meio enfezado, meio suplicante. – Percebi
tudo isso num ápice, porque tenho a vista habituada a inspecionar gatos.
É este o animal da minha predileção, o único semovente
que me agrada sem reservas.

Gostaria também bastante dos cavalos de raça desde o possante
Brabançon até o árabe naturalizado e aperfeiçoado
nos haras de Inglaterra, por seu instinto da atitude pictórica ou escultural,
se tais cavalos fossem do tamanho de gatos e se pudessem ter dentro de casa,
pôr ao colo e deixar correr por cima das mesas. – O defeito desse animal
é ser excessivamente grande. Isto o reduziu ao papel pouco distinto
de mero acessório do homem, e tornou-o um prosaico objeto de utilidade
ou de ostentação.

Dentre todos os caprichos da natureza, o mais estranho está nessa
fantasia inutilíssima e zombeteira com que ela repartiu a força
e a beleza pela escala das dimensões, no reino animal.

Os insetos, em regra, são feíssimos e fortíssimos;
ao mesmo tempo, pequeninos e inaproveitáveis. Os cavalos e outros viventes
grandes e belos são relativamente fracalhões.

Tudo se resolveria bem se houvesse gafanhotos do tamanho de girafas, besouros
do volume de vacas holandesas, pulgas das dimensões de bezerros; que
motores formidáveis à disposição do homem! Entretanto,
escusava que os animais nobres e formosos ocupassem tanto espaço e,
sendo na verdade os bibelots da natureza, fossem condenados ao estábulo,
à estrebaria, ao amanho da terra, à tração de
veículos, ao trabalho bruto, à escravidão humilhante.

Essa a justiça da grande Mãe! E ainda se isso passasse exclusivamente
com os bichos! Mas, não. Toda beleza é escrava. Mulher, – é
o alvo e a presa da matilha esfaimada dos instintos.

Vende-se nos mercados. Aprisiona-se. Condena-se a ser uma forma vazia, ornada
de vermelhão, de pó-de-arroz e de jóias, com a noite
dentro, como a cabaça mágica do bugre.

Talento, gênio, bondade, amor, – tudo capturado, amarrado, explorado,
torturado, agadanhado, sangrado, e finalmente reduzido a cacos, a cisco, a
lama, a cinza, a pó, a pó que se espalha ao vento, entre o delírio
e a confusão da macumba retumbante e frenética.

Ao cavalo, a certos respeitos, eu preferiria o elefante. Embora convivendo,
em determinadas regiões, com a espécie humana, esse, contudo,
guarda a dignidade de um escravo testarudo e resignado – obediente, fiel,
mas inamoldável, sempre intransigentemente elefante. Não tem
a elegância do nobre equus (elegância, aliás, já
um pouco desacreditada, como a do estilo ciceroniano), mas lá tem a
sua, que lhe é própria e, além de própria, intransferível,
por mais que haja indivíduos humanos a quererem tomar-lha, na classe
que compreende os grandes vendeiros, os desembargadores e os clérigos.

A elegância do elefante, revelam-na bem certos artistas. Há
bibelots de louça, marfim ou bronze, em que ela se manifesta com a
evidência da luz. Hierática, cheia, pesada, a massa liga-se às
proporções e aos contornos numa sóbria unidade de concepção
e de fantasia, e tudo é um só élan de inspiração
enternecida e brincalhona. A gravidade unida ao peso, a paciência ao
volume, a doçura à simplicidade, e um quê de majestoso,
e um quê de ingênuo, e um quê de gaiato. – Apenas falta
a essas composições o indefinível encanto da vida, esse
encanto que resulta da nossa perversa inclinação para só
gostar completamente das coisas que sofrem.

O certo é que, se eu pudesse possuir um elefante em casa, aí
com umas dez ou doze polegadas de altura, e que me viesse comer à mão,
e brincasse com o meu bichano, às correrias por baixo de mesas e cadeiras,
isto me seria um verdadeiro enlevo na minha solidão povoada de imagens
inertes. – O pior é que um dia… Tudo tem o seu fim neste mundo. Seria
possível que o meu bibelot animado devolvesse antes de mim a sua porção
de fluido vital ao laboratório do universo. O meu bichano havia de
andar miando tristemente pelos cantos. A minha cozinheira talvez enxugaria
lágrimas, às escondidas, ao ver-me acariciar o Romão,
à hora das refeições, na ausência do outro.

Gatos que miam e cozinheiras lacrimejantes estragam uma casa. Desisto do
elefantinho.

A verdade é que tenho um fraco pelos gatos, e fiquei a pensar no
que a mulher do bonde faria daquele. Iria deitá-lo fora? Iria dá-lo
a alguém que lhe destinasse o indigno emprego de caçador de
ratos? Eu estou convencido de que os gatos não querem mal ao gênero
mus. Procuram agarrar os roedores por simples prazer e necessidade de brincar.
E se preferem esses a quaisquer outros, é apenas porque o rato, de
todos os bichos proporcionados ao felino doméstico, é, o que
mais radicalmente difere deste.

O gato só pode compreender o rato como uma coisa sem afinidade alguma
com ele, mais ou menos como nós encaramos os peixes, aos quais não
concedemos nenhuma sobra de respeito, nem de simpatia, nem de piedade. São
objetos de um outro mundo, criações de um outro plano, obras
de uma outra série. A teoria que Malebranche sustentava com referência
à sua triste cadela – cujos latidos de dor eram no seu entender simples
passagem do ar pelo mecanismo da garganta – é por todo o mundo imemorialmente
e inconscientemente aplicada aos peixes. O próprio dilúvio,
condenação e aniquilamento de todos os viventes não embarcados,
deixou à margem, isto é, dentro da água, esses interessantes
autômatos.

O rato, roedor meticuloso, destruidor frio, amigo das sombras, dos recantos
ocultos, das gretas e frinchas secretas, dos buracos dissimulados e recônditos,
grande trabalhador sem horizonte, medroso, tenaz, esperto, estúpido,
o rato é o antípoda psicológico e moral deste príncipe
dos quadrúpedes, deste poeta de pelo, deste artista de garras, deste
sonhador indolente e desdenhoso, que compreendeu a imensa utilidade de não
fazer nada, amigo do sol, das noites de lua, dos jardins floridos, dos telhados
altos e desertos.

Este, quando procura a penumbra e o aconchego, é no borralho familiar
onde o fogo deixou um pouco da sua alma quente e errante, é entre cobertas
moles e cariciosas, é no regaço quieto das pessoas pensativas,
ternas ou tristes.

Acusam-no de ser desamoroso e ingrato. Julgamento mesquinho. O mal do gato
está unicamente em não ser nem servil nem serviçal. O
homem só compreende as afeições no seu tríplice
aspecto de promessa, desejo ou saudade de serviços. (Triste de quem
as concebeu algum dia como um culto e um puro gozo interior, esquecendo-se
de que a vida que vale é a que se processa e corre da periferia do
corpo para fora!) O gato saboreia melhor do que os próprios donos a
fina flor da humanidade, aquilo que há em nós de mais seleto,
e despreza tranqüilamente o farelo. Por isso é que se apega mais
à casa do que ao habitante, como alguém, de refinado olfato,
que preferisse, numa paisagem, o ar embalsamado por um resto de perfume de
flores ausentes.

O homem canta – Home, sweet home!, e vai para a pândega, a dissipação,
o tráfico, as feiras dos negócios, dos vícios e das vaidades:
o gato fica, adorando com recolhida finura o melhor produto do homem, o melhor
retrato do homem melhor, a Casa, a Casa onde o fogo prisioneiro canta a ária
encantatória das coisas perpétuas, verazes e substanciais, a
mesa em torno da qual a família reparte o pão cotidiano em paz
no meio da tormenta, as paredes de onde pendem alfaias e recordações,
as portas em cuja tela de penumbra se enquadraram vultos amigos que nunca
mais vieram empurrá-las, mas parece às vezes que vão
chegar a todo momento, que andam ali perto, ali. – A Casa! A Casa do Homem,
em tudo superior ao habitante que passa, ao hóspede mofino de uns dias
fugazes; ilha de estabilidade, de composição, de recolhimento,
de segurança e de amor, no meio da instabilidade, da precariedade,
da confusão, do desperdício, da angústia e da loucura
universal.

O homem faz a sua casa e foge dela; ainda lá dentro, foge em espírito;
não chega a compreender nem a sentir que fez um mundo, um mundo maravilhoso,
para o qual todo o mundo grande, desde tempos imemoriais, vem acumulando infinitos
elementos; um pequeno mundo sensível e supra-sensível onde a
soma dos elementos imateriais é incomparavelmente maior do que a dos
outros, onde cada pedra ou tijolo, cada móvel, cada quadro, cada retrato,
cada canto encerra uma saturação imensa de humanidade e de vida
vivida e vem a ser mais rica em poder irradiante do que a mais carregada petchblenda…

Mas eu estava em que os gatos não têm aversão aos ratos.
E não têm. O que há é que são antípodas
uns dos outros. O bichano vê no rato um simples mecanismo, bom para
esporte e brinquedo.

É verdade que das brincadeiras resulta muitas vezes o óbito
da presa. Mas é natural que um gato não tenha idéias
claras acerca dos sofrimentos e da morte.

Nós, que somos gente, ou tendemos a isso, apenas sentimos que há
dor no mundo por experiência própria e individual, e nada nos
custa como acreditar que a experiência dos outros possa coincidir com
a nossa.

Por isso o rancor é dez mil vezes mais comum do que a piedade; além
de que a piedade é freqüentemente uma forma de rancor fatigado.

Quanto à morte, pode-se muita vez duvidar que seja motivo de mágoa
para algum dos que ficam; ao passo que se tem a certeza de que é festa
para os herdeiros, pão para os gatopingados, rócio para várias
indústrias, e espetáculo para os vizinhos do falecido.

Tive ganas de ver se a dona quereria vender-me o gatinho, mas deteve-me
a dificuldade do transporte. Se eu o levasse na mão até à
secretaria, rir-se-iam de mim pelo caminho e na repartição.
Carregá-lo no bolso, impossível. Mandá-lo levar a casa,
despesa. Eu neste ponto me pareço muito com toda a gente: sou comodista
e econômico em matéria de prazeres do coração.

Desisti da compra e consolei-me com os poetas que amam damas imaginárias,
sob o pretexto de que as de osso e carne são imperfeitas, mas na realidade
por uma questão de economia: pus-me a pensar amorosamente num gato
ideal. E desfiei de memória aquilo de Beaudelaire: Viens, mon bon chat,
sur mon coeur amoureux, Retiens les griffes de ta patte.

Logo o enxerguei junto de mim, grande, perfeito, maravilhosamente gato,
lambendo a mão com a língua rósea, o olhar tranqüilamente
perdido no borborinho das ruas, e como que a repetir aquela sentença
grave de Eurípedes: "Zeus aborrece os homens atarefados e os que
se agitam demais".

O gato é uma das mais completas expressões de beleza dadas
ao mundo. Completas? Digo mal. Nem nós esgotamos todo o seu potencial,
nem o próprio acabou de se realizar. Como os colibris, as rosas e os
periquitos, é uma obra-prima, feita pela Natureza no caprichoso intento
de mostrar como aquela que faz montanhas e mares é também capaz
de compor coisas de paciência, de fantasia graciosa e de gosto quintessencial.

Desconfio, porém, às vezes, que não foi a Natureza,
mas o próprio Deus quem modelou esses objetos com os próprios
dedos, para humilhar o homem e divertir os anjos. E que os anjos os deixaram
cair à terra por descuido, ou para os destruir. – É talvez por
isso que os periquitos têm a cabeça achatada, e aquele arzinho
de devotos irônicos, e aquele ânimo desconfiado e áspero
que faz com que se irritem e escancarem o bico recurvo quando os queremos
acariciar. De certo, é pela mesma razão que os gatos conservam
essa aura de humana nostalgia que os distingue, essas atitudes de insatisfação
gemente e errabunda, esses enrodilhamentos imóveis e solitários,
com os olhos estanhados, esfomeadamente arregalados para o ar, como na desesperada
esperança de ver cair alguma traga migalha do paraíso perdido!
APÊNDICE DO GATO Meu Deus, como a arte de escrever é difícil
e como eu faço bem de não escrever senão para mim mesmo!
À medida que vou enchendo estas minhas costaneiras de almaço,
trezentas coisas que eu dantes não suspeitava, se me apresentam, –
pequenos e grandes problemas de composição e de expressão,
de lógica e de verdade, de método e de maneira. Enxergando-os,
palpando-os, sentindo-os bulir sobre a lauda como insetos descobertos e espicaçados
pelo bico da pena, surpreendo-me de os ver tão numerosos e tão
estranhos; e gozo um indefinível prazer: o prazer de não ser
obrigado por coisa nenhuma, a atormentar-me com eles.

Um exemplo de inadvertência galucha: falando de animais bonitos e
nobres, dei a minha preferência, precipitadamente, depois do gato, ao
cavalo e ao elefante. Entretanto, seria tão natural que tivesse refletido
em que os vertebrados, geralmente, são belos e que os há tão
encantadores como aqueles! Tanto mais quanto Remy de Gourmont, nas suas Dissociações,
já o fizera notar.

Na verdade, só há um animal feio, é o homem. O Esporte,
que se aplica em fomentar a beleza física da espécie, tem nesse
ponto fracassado, uniformemente, em toda a parte do mundo. Só apresenta
indivíduos bonitos quando os colheu da natureza. Belos, sempre muito
raros, ele não os revela em maior número do que o simples Acaso.
O aspecto ordinário das suas legiões é desencorajante.
– Os esportes particulares deformam, dando excessivo desenvolvimento a certas
aglomerações musculares. Pensou-se em remediar, doutrinando
o atletismo completo: vão-se com isso criando deformações
generalizadas.

Veja-se entretanto um coelho, um veado, uma onça, um porco-do-mato
em condições normais de desenvolvimento e saúde: cada
qual, dentro dos princípios da sua construção respectiva,
é uma obra deliciosa de acerto, de rêussite, de precisão
sem sobras e sem falhas. Surge-nos sem traços de esforço nem
de intenção, com a corrente naturalidade de um descuido! – Conformação
e movimento permanecem dentro de uma lógica infrangível, de
uma unidade perfeita, de uma economia necessária, onde cada coisa tem
um valor e entretanto, se engolfa e se dissimula na totalidade. Nada que estale,
bambeie, descaia, descole, descontinue; um admirável concerto de transições
e transformações simultâneas e sucessivas. O jogo das
massas e dos contornos perde-se fluidicamente em si mesmo. Cada imagem emerge
da precedente como numa espiral de fumo, dissolve-se na seguinte como num
caleidoscópio sem recortes e sem chocalho. Tudo facilidade, afinação,
fusão, correnteza, equilíbrio, tudo aquela suprema simplicidade
que é o nome familiar da complexidade infinita na perfeição.

Bem, mas porque foi que eu cometi esse erro? Porque estava possesso de Rufina.
A imagem da moça do bonde se interpunha entre mim e os bichos, o som
da sua voz golpeava cada momento a membrana fragílima das minhas idéias,
os seus gestos rápidos rebentavam a todo instante o meu colar de miçangas.
Embalde eu protestava que ela era mais feia do que o elefante, menos perfeita
do que uma leitoa. Embalde eu procurava esquecer, embrenhar-me no meu produto
como a aranha no seu, embriagar-me com esses pensamentos de luxo, suspender-me
a essas teias, atar as minhas arrobas ao vôo dessas borboletas extraterrenas.
E, na verdade, nem agora consigo exconjurar aquele demônio.

UM ROMANCE Entre os passageiros com os quais freqüentemente me encontro,
pela manhã, há uma bonita mulata, não de olhar azougado,
mas calmo e um pouco triste. O condutor cumprimenta-a com respeito, e trocam
notícias de família. Veste-se com decência e modéstia.
Sobe e salta sem ruído, instala-se no seu canto e não se mexe.
Tem as mãos lisas e mórbidas, os dedos compridos e afusados;
as unhas ogivais parecem recortadas em porcelana. Usa saias pouco acima dos
tornozelos. Os pés, pequenos e arqueados, comprimidos em botins de
couro, sob a massa movediça das saias, têm uma graça hesitante
de pássaros timoratos. Será o pudor dos botins? Essa criatura
acabou por me interessar. A freqüência das suas viagens, a constância
dos seus modos, a sua beleza um tanto fanada, o seu donaire involuntário
de juriti meio desplumada e taciturna, a sua familiaridade familiar com o
condutor, enfim o contraste entre o abafado concerto da sua pessoa e as mulheres
brancas e chiques de braços e pernas ao léu, tudo me intrigava.
A custo obtive umas informações vagas. Ontem, finalmente, encontrando-me
com o prático de farmácia, o homem do Infinito, ouvi dele a
informação cabal.

"Pois não a conhece? Não conhece, deveras, a Florinda?"
– Contou-me toda a história de Florinda, a mesma história de
tantas outras, tantas outras Florindas, e finalizou: "Hoje, uma senhora.
E ainda bonita, não viu? Costura fora de casa. É companheira
de um empregado aposentado dos correios, um casca, velho, reumático,
bravo como um gato sarnento. Serve-lhe de irmã de caridade, de cozinheira,
de mãe e de filha. E até de armazém de pancadas."
É aquilo de Amiel: Pas um brin d’herbe qui n’ait une histoire à
raconter, pas un coeur qui n’ait son roman…, que é aquilo mesmo de
Emerson: "Todo indivíduo tem uma história que valeria a
pena conhecer, se ele pudesse contá-la, ou se nós lha pudéssemos
arrancar". – Cada um carrega em si um epítome do drama humanal,
tecido de trevas e de lumes. E cada um nos dá uma sensação
de humanidade imensa, como cada onda pode dar a vertigem do abismo.

LENÇO PERDIDO Quando eu acabava de saltar do bonde, esta manhã,
ouvi atrás de mim um pchiu!, voltei-me, e um passageiro, homem do povo,
esticando o braço até no meio da rua, me apresentou um lenço
que ficara no banco. Apalpei os bolsos, não me faltava lenço
nenhum. Tive pena de que o objeto não me pertencesse, porque pareceu-me
que sem isso o meu agradecimento não encaixaria perfeitamente com a
amabilidade do homem. Por um instante, pensei em aceitar o lenço, mas
prevaleceu o austero dever, tirei o chapéu, agradeci, e fui-me. O homem
ainda me pediu desculpa e ficou a olhar em redor, a ver se aparecia o legítimo
dono.

Segui o meu caminho a fruir esta agradável impressão – que
ainda há muito sentimento sadio e cordial por este mundo! A honestidade
do ato, valha a verdade, não era grande. Os objetos transviados são
quase sempre restituídos, quando de pouco importância. Mas a
galantaria do gesto! Linda coisa, a galantaria. A honestidade, afinal, é
uma obrigação. Tem um princípio passivo. É uma
astúcia do egoísmo socializado, que evolveu para virtude, como
o réptil se fez pato. Mas a galantaria é soberana: impulso livre,
ação de luxo e primor, dom incompulsório, fantasia espontânea
do coração, scherzzo garboso e supérfluo da vontade senhora
de si mesma. – O excesso da medida justa vale a medida inteira.

Ia eu a pensar estas coisas aprazíveis, num passo vagaroso de quem
vê que carrega borboletas no ombro ou no chapéu e não
quer afugentá-las. Ao entrar num café, dei com o homem do lenço
na minha frente. Notei que tinha o nariz vermelho. Sorriu-se, descobriu-se
e, inclinando a cabeça para um lado: – "Seu doutor, não
tem aí uns nicolaus que lhe sobrem, para eu tomar um pingado?"
Dei-lhe os nicolaus.

CANUDO-DE-PITO A manhã, hoje, era uma festa, e o meu bairro, todo
em manchas aéreas e frescas de paredes claras, telhados vermelhos,
jardins verdes, morros azulegos e violáceos a derreterem-se na distância
como caramelos, me divertia como uma paisagem refletida numa bola de cristal.
Eu não tinha senão olhos, enquanto o bonde corria. "Corre
mais devagar, bonde do diabo! que assim como vais se me atrapalha tudo. –
Corre mais depressa, bonde do inferno! que assim lentamente a desfilada das
coisas mal se liberta da rigidez e do peso." De repente, do meio da grande
nuvem escura de um velho bosque, saltou como de um capulho, uma nuvem amarela,
a fronde arredondada de uma árvore de ouro. "Olhe, que lindo!
"(disse eu ao meu vizinho mais chegado, o Sr. João Cesário
da Costa, capitalista, quarenta e oito anos).

"Veja aquele ipê!" O meu vizinho deu uma olhadela e informou
friamente: "Canudo-de-pito".

O fato de se tratar de um canudo-de-pito, e não de ipê, madeira
de lei, influía decisivamente na reação da sua sensibilidade
ante aquele quadro fugente e alucinatório. O mundo, para ele, reduziu-se
a uma coleção de conceitos, ou a um dicionário ilustrado.
Costa não foi composto para comunicar diretamente com as coisas, no
absoluto momentâneo e original da sensação, nesse largo
e surpreendente aquém da idéia e do pensamento, mais maravilhoso
e menos triste do que o Além por onde vagam os Fabianos.

A civilização cada vez mais afasta os homens do contato imediato
e regenerativo das coisas sensíveis. Só as enxergam de longe
e de viés, através dos tipos, modelos, noções,
definições, poeira brumosa de abstração, sob a
qual a intimidade fluente e jovial do mundo se desvanece, e a alma encantada
da criação foge como um Ariel zombeteiro. Diante de uma paisagem,
não vêem a paisagem, mas uma coleção de objetos
e de efeitos conhecidos e explicados, formando um conjunto visual de acordo
com meia dúzia de normas laboriosas. Diante de um ser vivo, desarticulam
as partes, (como se um ser vivo, como se as coisas tivessem na realidade partes)
examinam, medem, subdividem, espedaçam, e cada ato desses decorre de
uma idéia feita, de um critério preconcebido, de uma prefiguração
normativa, de uma série de operações mentais anteriores
ou presentes. A grande descoberta instantânea tornou-se impossível.
O delicioso milagre só se revela a quem confia, franciscanamente, na
luminosa estupidez do seu instinto e dos seus sentidos, e ingenuamente se
lhes abandona, como o pássaro se deixa librar nas suas asas.

Por isso, um imenso repositório de beleza jaz inexplorado e ignorado
no mundo e na vida.

Quanta mulher feia por definição não é por natureza
uma coisa formosa! Quanto rosto irregular, escabroso, macilento, não
guarda, um poucochinho mais além desses acidentes, dissimulado como
um seixo branco no fundo de um rio, uma harmoniosa, surpreendente disposição
fundamental de linhas, de relevos e de contornos! E a quantidade de beleza
que não se vê porque o objeto em si mesmo é desprezível
ou repugnante! Um charco é uma imagem intelectual e oratória
de dissolução, de paralisia, de morte, de decadência;
é um foco pestilento, uma chaga aberta na terra, tapada de moscas,
de vermes, de batráquios: um horror "por conseqüência".
Uma cobra – puh! medonha! Entretanto, olhemos para isso tudo como uma criança,
com a atenção e a curiosidade nuas de uma criança que
não conhece nada, não sabe nada, não teme nada. O charco
talvez nos apareça, cheio de azul, como um buraco da terra sobre um
abismo sem fundo, todo lavado de claridade e povoado de numes joviais. A superfície
da água, aqui lisa, ali borbulhante, além com placas e refegos
de nateiro grosso, ora arrepiada pelo vento, ora quebrada por um bicho que
se mexeu, toda betada de sombras movediças e de reflexos morrentes,
golpeantes, explosivos, filiformes, maculares, difusos, – como se andasse
ali a dissolver-se uma taxada de luminosidades, de negruras e de cores, pode
ser um retalho fresco e maravilhoso de beleza arrancado ao monturo da realidade
intelectiva.

A cobra, essa é positivamente um objeto encantador. Vê-la enrodilhar-se
é apreender a nitidez perfeita da imagem, aliada quase paradoxalmente
à cambiante contínua. Vê-la caminhar é ter a impressão
de um liquido que se solidificou conservando a propriedade de escorrer.

Vai tão sutil e estreitamente adaptada aos altos e baixos do terreno,
que se diria que a cobra não existe, é um simples movimento
ondulatório do solo, um fragmento funiforme de sismo, uma estilha perdida
e deslizante de terremoto. Esse corpo sem membros parece também não
ter ossos, e apenas se percebe que é formado de anéis ou forma
anéis à medida que se move, e que esses anéis se desmancham,
mal se desenharam em outros que vão desvanecer-se de igual maneira:
um devaneio maluco objetivado.

É um pau que se fez cipó e um cipó que parece querer
voltar aos enlaces e aos balanços com as ramas. Irritado, arroja o
bote com a fulminante rapidez e a fatalidade mecânica de um galho seco
atirado pela raiva súbita da rajada. Como se tivesse barbatanas e asas
invisíveis, bóia, nada, voa pela superfície da terra,
e, quando se diria que lhe vai fugir, mergulha por ela dentro.

Vejamo-la em repouso: é uma obra esquisita de tapeçaria, com
desenhos tão bem arabescados e cores tão bem distribuídas,
que os nossos olhos se espreguiçam como ela e, como ela o nosso prazer
se enrodilha e se esquece nas suas próprias roscas, e sonha.

Disse Boileau, sentenciosamente, como sempre: Il n’est pas de serpent ni
de monstre odjeur, Qui, par l’art imité, ne puísse plaire aux
yeux, – mas quais são os monstros odiosos para os meus olhos? não
têm ódios nem amores. Tudo é natureza, tudo é espetáculo,
tudo é necessário, tudo é expressão da multiplicidade
sem fim na unidade substancial do infinito mistério e da infinita beleza.

No meio desse infinito, que nos cerca, nos trespassa, nos convida, vivemos
um tanto à maneira daqueles dormentes estatelados nas ruas, nos palácios,
nos pátios, nos jardins, nos mercados, nos templos e nos bosques do
conto oriental. Príncipes, vizires, xeques, mercadores, ganhões,
– todos alheios à magia do espetáculo colorido e móbil
do mundo, eles próprios mero espetáculo para os olhos de um
triste fugitivo e da sua amorosa e assustada companheira.

RUFINA Se eu fosse Rufina, hoje recostado no banco do bonde, enquanto um
céu muito lavado se arqueava sobre todas as coisas, e um grande desejo
de amor e ventura abrolhava nas almas, que teria feito? Teria pensado naquele
passageiro desconhecido que me arrancara aos braços da morte; ter-me-ia
lembrado com infinito carinho daquele homem tão corajoso e tão
tímido, e teria refletido que por força ele devia ter um grande
coração e uma alma adolescente.

Pensaria, outrossim, que ele provavelmente era solteirão, pois os
homens casados não são assim tão solícitos, ou
pelo menos tão tímidos com as damas. Pensaria que ele devia
viver só e melancólico, habitando uma pensão inóspita,
ou uma casa de família onde ansiasse rodeado de intimidades e ternuras
que não eram para ele. E tanta coisa mais! Entretanto, quem sabe lá
o que Rufina àquela hora pensaria! Pensaria nalgum namorado vulgar,
suavemente grosseiro e agradavelmente chato. Ou talvez estivesse com ele,
mãos nas mãos, olhos nos olhos. Esta idéia me perturba
e me desalenta. Aquela mão rósea e mole ficaria tão bem
na minha, ossuda e pilosa! Aquele braço torneado encaixaria tão
deliciosamente ao redor do meu pescoço! E eu me sentiria tão
ufano e pacificado, como um gato no borralho, ao calor do seu corpo e do seu
coração! Poderíamos estar aqui juntos, ela bordando tranqüilamente
um pano de mesa, uma almofada, ou lá o que lhe desse, e eu, quieto,
a esta secretária, bordando as notas felizes de um memorial de venturas
brandas, a interrompê-lo de quando em quando para dar um ósculo
à minha gata.

Mas aquela pestinha é lá capaz de sonhar por esta mesma partitura!
LOUVA-A-DEUS Tivemos hoje, à ida, um inesperado companheiro de viagem.
Não sei quando nem como se aboletou no carro; só foi notado
ao levantar o vôo do chapéu de um cavalheiro velho para ir pousar
no seio de uma senhora gorda, copiando a abelha da pequena ode de Anacreonte.
A senhora gorda enxotou-o, num gesto de susto muito gracioso, como convinha
ao sexo. O bicharoco, executando um rápido vôo plané,
foi aterrar no ombro de um rapaz elegante. Este se apresentava para lhe desfechar
um tiro com o dedo médio armado em aríete, quando ele se passou
para as costas de um homem distraído, onde se deixou e o deixaram ficar.

Uma vaga de hilaridade desencadeou-se no bonde ao toque das asas daquele
forasteiro. Todos lhe acompanhavam as evoluções com sorrisos.
E alguns manifestavam na cara uma curiosidade lorpa, como se estivessem diante
de um invento completamente novo. Porque essa hilaridade? Problema complicado
e escuro. Lembro-me de Bergson, mas não vejo como aplicar ao caso a
sua teoria. Até nova ordem, penso que o riso proveio apenas de que
o bonde não é veículo para passageiros dessa classe;
de que o lugar habitual onde imaginamos o louva-a-deus não é
o bonde, não as ruas ladeadas de prédios, calçadas de
pedras, atravancadas de carruagem e caminhões, riscadas de fios de
metal e pontas de cimento, – e de que os passageiros sentiam, ou melhor, não
sentiam, mas tinham necessidade de deixar ver uns aos outros a impressão
de desconcerto ou desconveniência que o transviado lhes produzia.

De fato, a mecânica do riso assenta no irreprimível instinto
de comunicação próprio do homem.

Como o pranto, o riso é uma forma de linguagem, em grande parte inconsciente,
destinada a comunicar o incomunicável, a exprimir o inexprimível,
o que não se pode, não se sabe, não se quer ou não
se pensa exprimir por palavras ou por gestos que lhes eqüivalham. (Se
é certo que rimos e choramos a sós, também é certo
que falamos conosco mesmos – e todo pensamento é diálogo interior
– sem que por isso possa negar-se o caráter eminentemente, social da
linguagem articulada, cujas origens supõem fatalmente troca, relação
entre indivíduos, fixação coletiva de sinais sonoros).
A mímica do pranto e do riso nasceu provavelmente da necessidade de
se solidarizarem e coligarem os ânimos, na horda primeva diante do perigo,
da contrariedade ou do benefício comum que iam encontrando pela frente.
Seria um elemento de coesão sublimável. Uma circulação
rápida de psiquismo coletivo. Com o tempo, isso se teria refletido
e entranhado no indivíduo, até assumir uma sorte de vida inferior,
independente. Mas a inconsciência do seu mecanismo interindividual aí
está para lhe atestar as origens gregárias. – Somos ovelhas
que se vão apenas destacando do rebanho por ligeiras diferenças
de pêlo, de dimensões ou de andadura; mas a alma da ovelha pertence
mais ao rebanho do que a ela própria.

E se tudo isto estiver errado? Não importa. Para um simples passageiro
de bonde, as idéias são como os bilhetes de loterias: é
preciso jogar em muitas, para ter probabilidade de acertar em alguma. E ainda
o melhor é não acertar. Criar fama de rico é uma das
mais graves maçadas que possam cair sobre quem não necessite
de tanto numerário. Responsabilidade social muito pesada. Admiradores.
Compromissos. Facadas, amabilidades, invejas, intrigas, amofinações…

Que bom travesseiro, a pobreza! A mim, o que me fez sorrir diante do louva-a-deus
foi o riso dos outros, tão saudavelmente natural e estúpido.
E foi também o próprio louva-a-deus, natural e bobo como esse
riso.

O louva-a-deus é talvez um simples broto que de repente se animou,
mexeu as suas folhazinhas tenras mal transformadas em asas, saltou, olhou
o mundo em torno com os dois olhitos esbugalhados que se lhe acabavam de pôr
– e esqueceu-se do papel que vinha representar.

Todo trangalhadanças e todo indeciso, na sua irrepreensível
casaquinha verde, é como um mascarado tanto que não tem coragem
de ir ao baile nem sabe se há de voltar para casa, e fica a estatelar-se
macambúzio pelas esquinas.

Desconfio agora que o louva-a-deus talvez fosse um broche que um artista
primitivo, das cavernas ou das palafitas, modelasse,- no barro verdengo de
algum açude, dando-lhe, por inabilidade e por fantasia, uma feição
de monstro quimérico e grotesco. Um dia, a senhora Natureza, num momento
de nervos, confundindo-o com os seus modelos infelizes e inacabáveis
ter-lhe-ia comunicado o sopro da vida, lançando-o fora; "Enfim!
sume-te, diabo!" Outra hipótese. Esse e, com esse, muitos bicharocos
parecem ter sido produzidos pela artífice quando ela ainda não
podia desprender a imaginação dos liames do concreto. A minhoca
teria sido tirada de uma raiz de tubérculo. A serpente, de uma haste
de foraminífera. O besouro foi talvez copiado de um caroço de
mamona. O elefante originar-se-ia de uma pedra viajada, do período
glaciário, quer por acaso se tivesse vindo suster em cima de outras
pedras menores e espaçadas. O lagarto, de um estilhaço de pau
nodoso rachado pelo raio. Os peixes não teriam vindo da sugestão
de um cardume de folhas polpudas caídas de grossas plantas aquáticas?
E o morcego? O morcego foi de certo imitado de um pequeno guarda-chuva esfrangalhado
pelo vento. (Contudo, não estou seguro da existência pré-histórica
do guarda-chuva).

Só depois, muito depois, a Artista se libertou das formas anteriores
para as inventar novas e mais perfeitas – o galo, esse objeto de luxo, o cisne,
esse sonho de paz e perfeição, o gato, essa pequena mistura
de inocência e de malignidade, a mulher… Ai, a mulher! complexa obra
de fantasia terna, cruel e humorística: cisne, galinhola e gata. Rufina,
meu amor, eu adivinho que tu és isso tudo! Tive também um acesso
de ternura pelo coitado do meu louva-a-deus, perdido entre paralelepípedos
e almas, na cidade poeirenta e dura, longe do fluido verdor fresco das moitas
e dos aguaçais. E lembrei-me do meu tempo de menino, lá muito
longe (muito longe, muito longe, num outro mundo que já nem sei se
existe!), onde o louva-a-deus se conhecia por cavalinho de Nosso Senhor e
onde me divertia com outros pequenos a caçá-lo, para o ver fazer
a sua oração de mãos postas e para lhe amarrar um cordelinho
a uma das patas traseiras.

Vi os agros lavrados, grandes remendos postos ao manto das lombas, com estrias
roxas de terra e bordados verdes de planta nova. Vi a vegetação
mole e tufada dos grotões por onde a água corria e ofegava,
como rapariga surpreendida nua. Vi o empastamento violáceo-azulfumaça
dos morros distantes. Vi o risco sangrento do caminho velho através
da solidão virgiliana dos pastios. Senti o cheiro salubre das macegas.
Ouvi ranger a velha porteira pesada e pensa, ao pé do valo esboroado,
entupido de gravatás, à sombra do pau-d’alho fechado e baixo
como uma cabana triste. Ouvi ecos errantes de vozes grossas a chamarem pelo
gado, de cantigas de lavadeiras no córrego, do jorro da bica a referver
no esqueleto negro da roda de água. E havia no meio de tudo isso, ainda
mais distante, mais real e mais irreal, mais vivo e mais sonhado, um toque
fremente e forte de buzina de caça, lá pelas barrocas e pelos
cerrados desertos, um toque ululante; ansioso, resoluto, que estraçalhava
o silêncio com ímpetos heróicos e melancólicos,
de desafio e de saudade.

Transpassou-me a alma hereditária de lavrador desenraizado um sentimento
agudo de solidão e de incomunicabilidade, e fiquei a olhar para o louva-a-deus
na ânsia com que alguém, perdido em terra estrangeira, se poria
a amar de longe um compatriota com quem houvesse topado por acaso. (Assim
as nossas ternuras vêm sempre acabar em nós mesmos. Aí,
senhor duque de la Rochefoucauld!) Viajava a meu lado um moço atochado
de conhecimentos exatos. Disse-me, com certa indignação, que
o louva-a-deus, mante réligieuse, é um dos seres mais sinistros
da criação viva: a fêmea tem o indelicado costume de devorar
o incauto esposo logo no festim de bodas (ao contrário portanto de
outras que comem os seus aos bocadinhos, a vida inteira).

Eu já sabia disso pelos Souvenirs do Fabre; mas o moço tinha
prazer em me instruir, e eu não lhe quis aguar essa satisfação
não de todo inocente, mas tolerável. Não lha tolerei
por generosidade, mas porque não queria jogar com ele a cena dos dois
pedantes que se travam de sabenças.

Tenho pavor a essa espécie de gente, (aliás estimável,
posto que daninha) a essa espécie de gente que vive a verter sabidelas
decoradas por todas as juntas, como pipotes de melado em que não se
pode pôr o dedo sem sentir o pegajoso das escorrências. São
sucursais vivas da tipografia. São jornais parlantes, cheios de reportagens,
de ciência feita, mas sem artigos de fundo e sem rodapés literários.
A ciência, para eles, é o refugium, desde que se reconheceram
anêmicos de bom senso, de imaginação, de sensibilidade
e privados dessa divina capacidade de simpatia cósmica, que faz as
almas verdad…. Mas não vale a pena repetir Nietzsche.

SANFONA Tivemos hoje concerto de sanfona durante a viagem da tarde. O homem
tocava bem, e tocava de tudo.

Amo de coração estes artistas humildes, que têm a paixão
da arte, com o mínimo possível de cálculo, ou sem nenhum.
São, na sua imperfeição, mais artistas do que muitos
outros mais hábeis, mais cultos, mais refinados: não procuram
na arte senão o seu prazer – sem pensar em proveitos; e exercem-na
com a simplicidade e a inocência de quem pratica os atos mais ordinários
da vida. Dão generosamente e anonimamente o que têm, o bom e
o mau, o certo e o errado, sem presunção e sem torturas, e vão
seguindo o seu caminho. Quem gostar, goste à vontade; quem não
gostar, perdoe; e, se não quiser perdoar, é o mesmo. Que boa,
alegre e higiênica maneira de ser artista! Durante vinte minutos, o
homenzinho da sanfona foi o único que veio deitar um pouco de alegria
purificadora na alma fechada e amarrotada de quarenta e tantos passageiros.

Pela minha parte, Deus lhe pague, frater desconhecido! EMBRIAGUEZ Viajou
hoje no bonde um homem embriagado, meio dormindo. Quando chegamos ao ponto,
no centro, todos descemos, e ele ficou. O condutor foi interrogá-lo,
ver porque não descia. Sacudiuo.

"Ó amigo, já chegamos! Ó amigo…" O bêbedo
abriu um olho, ergueu a cabeça, e deixou-a tombar de novo sobre o peito.
"Ó amigo! então não desce? Ó amigo…"
O ébrio tornou a abrir um olho, fixou-o no condutor, e murmurou: "Toca
o bonde." – "Mas olhe que tem de pagar outra passagem! Ó
cidadão! está ouvindo? Tem de pagar outra passagem!" –
"Sim!" berrou o homem.

"Sim! eu pago outra passagem! Toque essa porcaria! Siga! Eu pago quanto
você quiser. Olhe, tome!" E estendeu ao condutor uma prata de dez
tostões.

Quando o condutor lhe restituía o troco, o beberrão, já
manso, fez um gesto trêmulo de repulsa amigável. "Guarde
para você, guarde lá… ouviu? Mas olhe aqui, condutor, mande
tocar mais devagar nas curvas… sim? É só o que eu lhe peço.
Mais devagarinho nas curvas!" E o ébrio recostou-se, acomodou-se,
cruzou as mãos sobre os joelhos e fechou os olhos, como se estivesse
na mais fofa poltrona, debaixo de um teto amigo.

Explicou então o condutor porque é que ele queria menos rapidez
nas curvas: é que já havia levado um meio trambolhão
do bonde abaixo, numa delas. Assistiam à cena dez ou doze curiosos,
que muito se divertiram. Nunca há maior divertimento do que ver um
homem em situação degradante, e "risível",
que por via de regra é risível porque seria própria para
entristecer.

E porque o estado de bebedeira é degradante? Já sei: é
pela mesma razão por que é risível, é que diminui
o homem ex abrupto, o reduz à condição de autômato,
de um autômato e amarfanhado. Mas há tanto outro gênero
de embriaguez que passa como se não fosse degradante nem ridículo!
Por que? Os efeitos são os mesmos: um homem sem a posse completa de
si próprio, sem sequer essa espécie de dignidade animal que
consiste na harmonia espontânea dos movimentos com as "finalidades"
naturais, da estrutura; um homem que se torna inconveniente ou se torna perigoso,
que tem de ser aturado nas suas importunações, ou carregado
como uma coisa, ou conduzido como um animal, ou que extravasa, dá escândalo
e faz desordem.

Há a bebedeira de morfina, éter e similares, e das paixões
políticas, profissionais e confessionais, a da ambição
doentia, a do exibicionismo patológico; há a embriaguez moderna
da atividade exacerbada, que, como todas, enfuria, desfalca, mecaniza e deforma
a natureza do homem. E há a embriaguez da sensualidade que se desdobra
nesta epidemia universal de ostentação, de festas e de fantochismo
dançante. E há a embriaguez do automóvel, embriaguez
típica.

O paciente começa por tomá-lo aos poucos, e às vezes
arrenega, às vezes duvida entre si se é bom ou se não
será. Mas volta, e prova mais uma vez, mais outra, e mais outra, aumentando
as doses. Para encurtar, não tarda que seja um viciado. Torna-se um
automobilimaníaco. Anda quase constantemente automobiliagado, com períodos
lúcidos de mais em mais breves, em que trata de seus negócios
e participa da vida íntima de sua família.

Quando está em crise, empalidece, enrija-se, tem os olhos parados,
o lábio descaído e branco.

A pequena velocidade é a fase alegre e brincalhona: ele pirueteia,
ziguezagueia, faz gracinhas com a máquina, assusta o transeunte pacífico,
dirige pilhérias aos guardas. A velocidade média é a
fase da provocação e do "leve o diabo". A velocidade
máxima média é o estado delirante: a consciência
acaba de desaparecer, desaparece tudo, ou tudo se reduz a um sonho agônico,
em que a personalidade tem a abafada impressão de se libertar das prisões
materiais e voar no vento e na luz.

Embriaguez detestável como qualquer outra. Mais do que qualquer outra
produz vítimas, que não são unicamente os enfermos, conforme
todos os dias revelam as crônicas. E, como muitas outras, deixa suas
heranças à descendência.

Entretanto, não se cogita de uma lei seca para esse flagelo.

A verdade é que o homem é um ser que se embriaga. Não
importa a maneira: o essencial é embriagar-se. Morfina, éter,
coca, ópio, vinho, grappa, whisky, gin, vodca, cerveja, automóvel,
jogo, esporte, dança, negócios, arte, política, notoriedade,
glória, ódio, tudo lhe serve, contanto que lhe permita, conforme
os temperamentos, sentir a falsa plenitude de um desaforo interior, embora
à custa do desbarate e da quebra do rico, vário e harmônico
plano natural da construção humana.

Dizia Tolstói que o homem procura no álcool e no tabaco o
entorpecimento do Eu consciente. E é verdade. Mas o álcool e
o tabaco não são os únicos mananciais dessa felicidade
mutilante.

Há-os em barda por aí, todos produzindo efeitos exteriores
análogos, todos proporcionando o mesmo resultado interior, quer se
trate de um cigarro ou de um trago, quer de um veículo atirado como
um buscapé ou de uma paixão ou preconceito absorvente, que se
cultiva: reduzir o campo dos cuidados, abafar uma porção de
vozes que balbuciam dentro de nós, prevenir um mundo de preocupações
e de angústias possíveis, apequenar a nossa humanidade, pôr
entre nós e o cariz oceânico da vida um véu que o esfume
e nos tranqüilize.

Não nos ríamos do bêbedo, ríamo-nos de nós.
Todos temos o nosso copo, e todos parecemos obedecer ao conselho de Omar Kayyám:
Sonha que já não és, e sê feliz.

És que? Homem, cá para o nosso caso.

BOA PROSA Boa prosa, o Antônio Palhares. É curioso como há
indivíduos inteligentes, perspícuos e engraçados, perdidos
na multidão que não aparecem nas crônicas impressas, nem
nas volantes e sonantes da gente que se conhece. De repente, surde-nos um
da obscuridade e da indeterminação do vasto mundo que desdenhamos
e ignoramos, – e é um bicho de compreensividade, de senso, de espírito!
Palhares é assim.

Conversei com ele hoje pela manhã, e nem sei dizer como me divertiu.
Valeu por um livro novo que eu abrisse e folheasse, vendo as gravuras, o índice,
os títulos de alguns capítulos, alguns relances de páginas.
Quanta novidade, quanta frescura, quanto inesperado, e também quanto
sabor de sinceridade libérrima e despreocupada, nos seus dizeres de
homem sem galeria presente nem futura! Queixei-me a Palhares dos inconvenientes
da notoriedade. Não por mim, que sou um obscuro chapado e contente,
mas por um amigo meu, que é uma espécie de terça parte
minha, o qual muito tem sofrido por via desse flagelo. O rapaz não
pode mais isolar-se, meter-se consigo, perder-se na fecunda anonímia
multitudinária que lhe permitiria o descanso, o recolhimento, a respiração
livre, a remodelação dos hábitos, a cura das feridas
sempre abertas pela esfregação mundana: é um escravo
aflito e amarfanhado das relações, das amizades, dos compromissos,
das idéias que outros formaram a seu respeito, das solicitações
e dos estímulos que por isso lhe vêm de todos os lados; e então
padece, e geme, e desespera, porque desejaria romper com o seu passado, deixar
de ser o homem frívolo, o homem vento, o homem-inundação
que tem sido, para ser um homem concêntrico e dono de si.

Palhares ouviu-me, ouviu-me, e, afinal, perguntou: – "Mas esse moço
é deveras uma inteligência sagaz, ou é uma dessas grandes
inteligências bobas que há por esse mundo?" – "Sagacíssima."
– "Pois não parece. Seria tão fácil libertar-se,
isolar-se!" – "É o que se afigura à primeira vista."
– "Precisa dos outros, efetivamente, para viver?" – "Não;
isso, não; tem a sua independência material bem segura."
– "Então, não compreendo. Por que não se retira?"
– "Impossível. Relacionadíssimo. Cheio de laços,
que não se dissolvem senão quando novos laços os submergem:
um homem que se procura, se aprecia, se quer, se disputa, se admira.

Encantador. Como romper? Como ter a energia de quebrar brutalmente esses
laços? Como repelir, quando se tem um coração brando,
uma revoada de carinhos e solicitudes que nos cerca e nos assalta?" –
"Não compreendo. Para um homem se isolar, não há
necessidade de movimentos bruscos, nem de fuga. Para fazer o vácuo
em redor de si, gradualmente, docemente, não há senão
isto: ser bom." – "Mas ele o é. E depois, ser bom é
mais um motivo para criar afetos e dedicações em redor de si."
– "Espere. Distingo. Ser bom, de uma bondade pedestre e regular, de fato,
é um meio de criar afetos e dedicações em redor de si.
Não é dessa bondade prática e hábil que eu falo.
Eu falo da bondade íntima, profunda, plena e sossegada, que procura
o bem nas próprias raízes do pensamento e da vontade, de forma
que o pensamento e a vontade, quando se manifestam, já se manifestam
como conseqüências exteriores, mortiças, frias, aguadas
e, dir-se-ia, indiferentes de uma grande realidade latente e central que não
cura de exterioridades. Compreendeu?" – "Mais ou menos. Quer dizer
uma bondade sentida, consciente, feita de compreensão e de piedade,
mas que não tenta esforços por se mostrar e por atuar cá
fora. Porque sabe talvez que toda exteriorização é espetáculo
e todo espetáculo perverte." – "Mais ou menos isso!"
– "Mas por que pensa que aí estaria o meio de libertação?"
– "Ora, essa! meu amigo! Pelo que vejo, não conhece os homens.
Os homens só nos avaliam, nos pesam, nos apreçam pelas nossas
projeções exteriores. E essas projeções, para
terem valor, se hão de articular com as necessidades, os desejos, as
conveniências, as aspirações dos que nos rodeiam. Valem
pela soma de utilidade e de cumplicidade que levam consigo.

Mas um indivíduo realmente e simplesmente bom é o mais desvalioso
dos homens. É talvez uma árvore frutífera, mas que produz
frutos quando é sazão, e fora disso não produz mais nada;
ali está, no seu lugar, quieta, sem movimento, sem iniciativa, sem
préstimo, sem solicitudes, sem graça.

Apenas dá sombra. Uma sombra igual para todos. Mas que importa aos
homens uma árvore que dá sombra! A sombra aproveita-se, quando
aderga, goza-se, saboreia-se, mas não se tem nenhuma gratidão
para a planta equânime que não no-la reservou para nós,
que a dará ao primeiro vagabundo que a procure. Assim, a árvore
de boa sombra vive realmente isolada, cercada por uma densa muralha de impenetrabilidade
própria e de alheia indiferença." "Diga ao seu amigo
que faça isso." Palhares sorriu, pôs um confeito na língua
e, a remexê-lo na boca, perguntou: – "Quer jantar comigo?"
– "Obrigado." – "Sem cerimônia. Temos hoje lá
em casa um peixe que me mandaram do litoral, um esplêndido robalo. Presente
de um amigo." – "Tem amigos amáveis." – "Mas, naturalmente.
Prestei a esse um serviço de grande importância, que só
eu estava em condições de prestar." – "Gratidão,
nesse caso." – "Qual!" – "Esperança de novo serviço…"
– "Talvez" – "Afeto humano!" – "Afetos verdadeiros
e sólidos! Passam depressa, nada mais fugitivo, não há
dúvida; mas verdadeiros e sólidos porque se firmam na realidade
viva das relações úteis. Não há outra.

Dentro da vida, da vida efetiva, da vida que se vive, não há
outra. É isso. É assim. Mas quer ou não quer comer o
bom peixe do meu amigo?" RUFINA Tornei a ver a minha Rufina, afinal.

Corria eu os olhos pelos passageiros, com essa curiosidade vaga, sem garra
nem asa, que nos resta nas horas de fadiga. Vi num banco de trás o
prático de farmácia, com um livro de Allan Kardec sobre os joelhos
e a fazer gracinhas a uma criança, cuja mãe era uma guapa mocetona.

Vi o simpático Berredo, inimigo da Medicina, médico amador.
Benzi-me em espírito com a canhota, e desviei os olhos: dei com eles
num banco todo ocupado por mulheres idosas e feias, não sei se mais
idosas do que feias, e tinham os cabelos entre o grisalho e o branco amarelado.

Mas a velhice é uma coisa venerável. Contemplei aquelas caras
a ver se conseguia extrair de alguma delas a imagem reconstituída de
uma beleza decomposta. Não o consegui. Teriam talvez uma espécie
de beleza interior. Mas por que então não se revelava cá
fora ao menos como o lume vermelho e mortiço de um forno velho? Pus-me
a passear os olhos pelo tejadilho, pela rua, pelas pontas de meus dedos. De
repente, quem havia de descobrir! Lá no fundo, sentadinha entre uma
preta gorda e um bigodudo vendedor de loterias, Rufina! a própria,
a autêntica, a única, a olhar para mim, sorrindo como antiga
conhecida – a boa criatura! Toda ela era uma só imagem de lindeza una
e vibrante como uma interjeição.

Trajava de branco e tinha uma gola alta que lhe dava ao pescoço,
ao ombro e à cabecinha redonda um quê dessa graça aconchegada
e sólida, que se encontra nas frutas perfeitas e nos legumes viçosos.
Mergulhei-me na figura de Rufina.

Nisto, veio de lá o prático de farmácia, marinhando
pelo estribo. Alegou que me queria cumprimentar, e de fato realizou esse rito
com a mais intempestiva lentidão. Relanceava os olhos para Rufina,
uns olhos de emplastro, sob cujas apalpadelas a moça baixava os seus.

Depois, saltou. – Lamentei sinceramente que não tivesse caído.
Senti ganas de lhe saltar no rasto como uma onça atrás de um
quati, e meter-lhe a garra pelo gasnete, e batê-lo pelo chão
e pelas paredes.

Quando o bonde chegava à primeira esquina, o condutor subiu ao meu
banco, que era o da frente, para repor em zero o relógio de marcação
das passagens. Incomodado pelo intruso, passei provisoriamente para o banco
imediato, dando costas à linda criatura. Tão depressa o condutor
se retirou, voltei para o meu primitivo posto. Mas a moça tinha desaparecido.
Saltara na esquina, que já ia longe.

Precipitei-me para a rua, corri para trás, inspecionei tudo, barafustei;
nada. Sacudiu-me então uma tal intensidade de desespero e de cólera,
que me pus a rir e a rilhar os dentes.

Foi este o dia mais negro dos meus últimos dez anos. Dei ponto na
repartição, e fui fazer um passeio de bêbedo por bairros
distantes e ignorados.

DELICADEZA Testemunhei uma cena desagradável, que infelizmente não
teve piores conseqüências.

Ia perto de mim um cidadão muito gordo. Luxuosamente gordo. Parecia
carregar as banhas com a recolhida empáfia de um grão-sacerdote
afogado em deslumbrantes vestes talares.

Refestelava-se no banco, firmado nas enxúndrias das nádegas,
como uma pesada bóia flutuante indiferente ao balanço das ondas.
Exibia o ventre, que lembrava o hemisfério de um grande globo, como
se de propósito desejasse que toda a gente lhe pudesse admirar aquela
prenda. Aquilo era o seu precioso berloque de novo rico.

A certo ponto da viagem, surgiu do outro lado do hemisfério um moço
magro e sutil, que procurava passar pela frente do obeso, mas hesitava ante
a impassibilidade ou distração deste.

Afinal, tocando no chapéu, perguntou-lhe, alto, com verrumante delicadeza:
– "Cavalheiro, não lhe seria muito incômodo ceder-me um
corredorzinho para eu passar?" O gordo zangou-se.

Encolheu como pôde o fardo abdominal e, sacudindo a papada, os olhos
arregalados: "Passe!" O moço magro, atônito por um
momento, depois inclinado a reagir, sorriu-se afinal, e disse entre dentes,
relanceando um olho escarninho pela venerável barriga: – "Bolas!
não estou disposto a brigar com meio mundo." E o gordo a resmungar:
"O calcinhas! Esta sucia…" A princípio não compreendi
por que seria que o pançudo tanto se irritara. É que sou por
natureza tardo de compreensão. Nada mais fácil de ver que o
homem sentira espicaçado justamente por aquele excesso de delicadeza.
Se o moço, passando, lhe tivesse empurrado de leve os joelhos, dizendo
um seco e rápido "com licença!", e fosse tocando para
diante, nada teria acontecido. O gordo levaria isso à conta de uma
pequenina e desculpável grosseria sem endereço especial. Não
já, assim a frase e o gesto do mancebo, que lhe bateram no toutiço
como farpazinha particularmente preparada para sua pessoa. Ninguém
gosta de se ver assim pessoalmente visado e distinguido nos seus pequenos
tortos, que são mais ou menos os de toda a gente e devem passar sem
exame e sem reparo.

Há uma causa mais geral, e é que o excesso de delicadeza leva
uma dose de ironia, e a ironia ofende e revolta mais do que a rudeza. Não,
como geralmente se julga, por penetrar mais fundo na derme do alvejado, mas
pela desigualdade de armas. O homem desprevenido e "natural" não
tem, nos seus encontros e lidas cotidianas, mais do que as armas de ataque
e defesa que a natureza lhe deu, e delas se socorre como pode. O irônico
é um mal intencionado, que carrega armas artificiais no meio de uma
população policiada e pacífica. Viola a convenção
em que a generalidade repousa. Quebra a regra consuetudinária do jogo
da convivência. Onde outros se limitariam a usar das mãos e dos
cotovelos, ele saca de um pequenino punhal e põe-se a esgrimi-lo com
a destreza de um especialista de má-fé e de maus bofes. O adversário
sente-se apanhado à traição, exaspera-se e, às
vezes explode.

O sujeito extremamente delicado é, no fundo, um indivíduo
que faz o pior juízo acerca dos seus dissemelhantes, e os trata com
infinitos cuidados, como se lidasse com cavalos passarinheiros ou cachorros
agressivos. Ou isso, ou então é que gosta de lançar engodos
às almas incautas, para que se lhes abram e se lhes ofereçam
em espetáculo. Todos os seus gestos estão impregnados de ironia,
de uma ironia que nada tem com a dos homens compreensivos e sensíveis
que já viveram muito, mas uma ironia feita de vaidade, de caborteirice
e de secura de coração. Ele é o "homem de escol",
"a criatura de exceção", fina, distinta, lixada, repolida,
cheia de bicos e rendas, desgraçadamente obrigada a viver no meio de
uma canalha tosca e molesta! A antipatia instintiva que provoca é uma
reação da vis medicatie social.

O que mostra mais uma vez como os movimentos instintivos podem eqüivaler
a longas reflexões, e como a mentalidade coletiva pode chegar, sem
raciocínio, aos mesmos resultados das lentas análises do psicólogo
e do moralista., – De onde, também, o erro dos paradoxófilos,
quando partem do pressuposto de que, para bem pensar, é preciso pensar
contra os sentimentos do maior número.

O SONETO Se eu tivesse de fazer perante o vigário uma confissão
minuciosa, raspando as voltas mais fundas do meu ser, não encontraria
de certo explicação para o fato de o soneto de Gabriela me haver
tornado, hoje, ao espírito- não à lembrança apenas,
ao espírito, à alma. Só posso dizer que, ao vir-me o
condutor cobrar a passagem, nem o senti chegar, estava absorvido na segunda
quadra.

A vida é um céu que uma só vez se estrela; toda estrelada
e rutilante a viste…

Não me satisfizeram estes versos, nem como idéia nem como
forma. Chamar céu à vida é sempre extravagância;
demais, um céu que só se estrela uma vez, não pode ser
senão um céu de papel pintado. A construção "a
viste" era ambígua para o ouvido. Por fim, o período não
dava liga. Modifiquei-o: Contudo, a vida forte boa e bela: sorriu-te, tanto
quanto lhe sorriste.

Podia servir. O diabo era a continuação. Eu não tinha,
na verdade, a mínima idéia assentada acerca do caso psicológico
de Gabriela, nem sequer sabia que forma e que alma teria essa emanação
possível do meu cérebro. Ao contrário de Minerva ao sair
da cabeça de Júpiter, estava completamente desarmada. E nem
mesmo queria acabar de sair. As casualidades da versificação
é que me diriam afinal o que eu houvesse de pensar a respeito. Grande
coisa, a versificação.

Contudo, a vida foi-te boa e bela: a vida te sorriu, tu lhe sorriste…

Dados estes dois versos, o campo de exploração restringia-se.
O problema fixava-se em três incógnitas: x) dois decassílabos,
em ela e iste; y) que desenvolvessem o pensamento começado; z) tornando
possíveis os tercetos com um fecho reluzente e forte.

Hoje, ela te maltrata, e tu caíste.

Aqui, o verbo caíste (le mont est créateur) sugeriu-me espontaneamente
este quarto verso: caíste, pobre moça, na esperança!
Não estaria mal, se eu quisesse fazer humorismo. Bastava modificar
de leve os versos antecedentes: Outrora, a vida aparece-te bela; acenou-te,
sorriu. Tu lhe sorriste.

E a seus braços voaste. E enfim caíste, caíste, pobre
moça! na esparrela.

O mais engraçado desse humorismo é que a idéia em si
é perfeitamente justa e muito séria. A vida, de fato, estende
às almas jovens e sequiosas umas fatais urupucas, tentadoras e terríveis,
onde elas se debatem e se magoam. Mas o "cair na esparrela" tornou-se
cômico pela vulgaridade, e a vulgaridade é o sentido moral figurado.
Sentidos profundamente imorais, estes sentidos morais, que apagam tudo quanto
há de emoção poética e de pungente verdade humana
em tantas metáforas enérgicas e felizes. – Como quer que seja,
eu agora já queria bem à moça, como as mães já
amam os filhos ainda no ventre, e detestei a idéia de impor à
minha criatura um indumento grotesco. Nem que ela fosse real! Não,
o soneto havia de ser afetuoso e nobre.

Outrora, a vida apareceu-te bela; acenou-te, sorriu. Tu lhe sorriste.

E a seus braços voaste; e assim te viste presa das graças
lacerantes dela.

Ora, bem. Faltavam os tercetos. Estava a ensaiar-me para pescar os tercetos
no vasto mundo das possibilidades ideais, quando o condutor me chamou ao mundo
estreito das impossibilidades ordinárias: "O senhor volta para
trás?" O bonde tinha chegado ao ponto final e ia recomeçar
o giro. Saltei dele e do sonho (assim chamam os poetas a estes exercícios,
que são os mais conscientes e espertos de quantos se possam imaginar)
e corri à repartição. – Talvez que disto fique dependendo
a inexistência de mais uma obra-prima na literatura nacional. Mas, quem
sabe? Ego dormio et cor meum vigilat.

UM BORRACHO O bonde vinha tão silencioso, ontem à tarde, como
se por ele tivesse passado um sopro de solenidade histórica. Os passageiros,
alinhados, taciturnos, pareciam compenetrados de representar algum papel de
responsabilidade. Ou dir-se-ia que iam jogar a própria vida numa linha
de fogo, logo ali adiante.

A certo momento, entrou um bêbedo, que mal se sustinha nas pernas,
como um fardo que trepasse a custo arrastado por uma corda invisível.
Mas falava sem parar e ria-se numa grande jovialidade enternecida e patusca.
Tudo lhe ria, a barba crespa e grisalha, repartida em duas pontas, os olhos
pequenos e azuis, como dois botões de esmalte, o chapéu amolgado
e caído sobre a orelha, os longos caracóis de cabelo bamboleantes
sobre a testa como gavinhas de aboboreira, e que se haviam despregado da pastinha
rala, transversalmente colada por cima da calva. Ria a próprio casaco
de pano encorpado, cujos bolsos atafulhados se arredondavam como bolsas, e
ria ainda mais o lenço vermelho amarrado ao pescoço, com as
pontas a esvoaçar como bandeirolas.

Falando e rindo, o homem caiu sentado em cima de duas mulheres, que recuaram
espavoridas "Scusate, signore!" E tirou largamente o chapéu
com a mão que segurava o cachimbo, cujas cinzas se espalharam por cima
das cabeças vizinhas. "Scusate, io sono un pó allegro,
Oggi ê festa!" E disparou a cantar.

O condutor veio lá do fundo como uma flecha e, com o sobrecenho mais
autoritário que pôde compor: "Ó aquele, aqui não
se canta!" – "Non si può. Bene, bene. Non si può.
È giusto. Si. Stà benissimo… Eh! condutore, mi dà un
fiammífero?" E, enquanto acamava com o polegar o fumo negro contido
no pipo, cantou, numa voz que podia bem ser a de um ex-barítono: –
"Io voglio un fiammifero!" O condutor voltou a ele e, com redobrada
energia no cenho e na voz: – "Já lhe disse que não pode
cantar!" – "Eh!… io già sabia che non si può cantare.
Domandavo a lei un fiammifero." – "Não tem fiammifero. Você
vai é já para baixo, se não fica quieto." – "Pra
basso, io?! Dio b…! E che ho fatto io, conduttore… O conduttore! che ho
fatto io per esser messo giu… in mezzo alla strada?" O homem largou
o cachimbo em cima do banco, remexeu os bolsos com as mãos bambas,
remexeu, e não encontrava o dinheiro. Tirou um lenço, uma laranja,
duas metades de charuto toscano, um pedaço de barbante, uns restos
de amendoim, uma medalha, um jornal; e resmungava: – "Come no! io tenho
dinero. Si! Anche della carta moneta… Vucê truca cinque milla, conduttore?
Ebbene, aspetti. Si, ió tenho… eh! Un pó de pazienza, caro."
A muito custo, deu com a nota num dos bolsos do colete, junto do relógio
de prata, enorme, que previamente sacou e auscultou. Ao retirar a cédula,
fê-lo num gesto de triunfo; ergueu senhorilmente a cabeça e,
estendendo a mão com o dinheiro ao condutor irritado, esboçou
um canto jacundo e nobre como um ofertório, em voz retumbante: "Ecco,
o signor, prendetela!" O condutor não lhe cobrou a passagem, mas
fez parar o carro e obrigou o cantor a descer, com tácita aprovação
dos demais passageiros. Quando se viu na rua, o expulso abriu os braços
para protestar, mas cambaleou e sentou-se no chão, gritando sonoramente,
à maneira de insulto e de ameaça: "Portoghese! Vado dal
presidente dello Stato!" Mas o bonde já ia longe. E os passageiros
riam-se. E ria-se o condutor. Precisamente nesse momento, eu ficava sério,
e aquele homem alegre e inofensivo, posto do veículo abaixo como uma
lata velha, me começava a interessar. Era a vítima simpática
de um lote de imbecis. E eu no meio destes.

Um homem alegre, fosse qual fosse o combustível da sua alegria, devera
ser olhado como em certas civilizações primitivas se olhavam
os doidos, criaturas sagradas, ou como os gregos consideravam os devotos delirantes
de Dionísios, condensadores momentâneos desse mistério
de jovialidade e de exaltação que em certas épocas circula
através das coisas, e preme os úberes da terra, e desata as
ofertas do céu.

Minha alma ficara lá para trás, junto daquele homem assoado
para a rua pela austera comunidade do bonde. E minha alma lhe dizia: Ri, ri,
ri, minha vitima, meu irmão. Brinca, tagarela, traquina à tua
vontade. Frui sem vergonha e sem cuidado este parêntese divino de liberdade
e de loucura alegre que se abre na miséria soturna da tua vida. Ri,
ri, meu irmão, minha vítima.

A tua risada não me alivia, mas vinga um pouco a minha ânsia
recolhida de libertação impossível, pobre, torturado
escravo que sou, mesquinho escravo das Regras, dos Horários, dos Regulamentos,
dos Códigos e das Necessidades criadas.

Ri, folga, berra, cabriola, papagueia, pragueje, insulta! E canta! canta,
nessa efusão de lirismo obscuro que sobe do mais fundo da nossa alma
bruta, expressão sem palavra de alegria vital, inconsciente, expansiva,
cósmica, alegria do gafanhoto que salta e voeja, da maritaca gritadeira
e gloriosa, da água que foge às guinadas fervendo e brilhando,
do fogo que dança o bailado da labareda, de tudo que não é
esta nossa desgraçada alma superficial de bicho domesticado e diminuído.

Ri, ri, ri, com todo o teu ser, todo o teu sangue, a tua carne, para além
ou aquém do Bem e do Mal, Homem! pobre Homem, bom Homem, meu irmão.

Ri, ri, ri, até que estoures de repente com o riso, como a cigarra
a cantar, e acabes assim na mais bela das mortes, fulminado por uma explosão
de vida!" Agora, ao rememorar esta minha ode, com a pena entre os dedos,
já não me parece que tenha justificado bem a embriaguez, que
afinal é um vício detestável. Embriaguez por embriaguez,
é preferível uma consciência clara e um sentimento profundo
e sutil das realidades. Também isto é uma espécie de
bebedeira; mas lúcida, infinitamente matizada; e tem todo, o atrativo
de um vício artificial.

"Sede duros, meus irmãos!" pregava Zaratustra, "e
a verdade é que a dureza é um ingrediente da vida e uma condição
de ordem." Nada mais saboroso do que o diálogo de Tolstói
com a sentinela do Cremlim. Esta enxotava um mendigo de certo lugar onde não
se permitia a permanência de estranhos. Tolstói aproxima-se,
vê, sofre, e aborda o soldado, perguntando-lhe se não conhecia
os versículos do Novo Testamento em que se recomenda tratar o próximo
como a um irmão. Retruca o militar: "E o senhor não conhece
o regulamento da praça? Pois eu o conheço." Palavra profunda!
A primeira necessidade é cumprir cada um o seu dever particular, o
seu dever concreto, positivo, limitado, pequenino.

O dever particular às vezes é duro, como pedra, como prego,
duro como pau, mas é dele que se faz a ordem, a ordem que é
edificação, que é obra, que é abrigo e desfrute,
oficina e palácio, lavoura e escola, a ordem que é civilização.
Os deveres mais gerais são também mais flutuantes: discutem-se;
oscilam com a temperatura do sentimento, com as marés da idealidade.

Mas o dever imediato e cotidiano é fixo e indiscutível: não
há senão obedecer-lhe. E a obediência é a segurança
e o alimento de cada um e de todos. Coisa insignificante, um homem que regularmente
cumpre os seus deveres de cada dia: coisa majestosa, uma nação
em que todos procedem assim! O ideal é talvez juntar ao livro de Tolstói
a espada do soldado. Em todo caso, eu daria ao soldado uma fria aprovação,
e a Tolstói um abraço.

MANUAL DE COZINHA Arranjei hoje com um contínuo um Manual do Perito
Cozinheiro, para ler durante a viagem, à falta de outra leitura edificante,
instrutiva ou deleitável.

Trago a cabeça cheia de leituras de jornal, e já não
me diverte nada, pelo contrário, a sarabanda cotidiana das crônicas,
estudos, fantasias, comentários, bisbilhotices e descomposturas. Tenho
a impressão de já haver lido isso tudo não sei quantas
vezes, desde a minha vida anterior, nos remotos pródromos do jornalismo
com Mr. Théophraste Renandot. É incrível como as coisas
atuais caducam depressa, como as novidades são velhas, como os fatos
extraordinários são vulgares.

É verdade que a impressão de perpétua velhice só
se prova agudamente quando se vai descambando ladeira abaixo dos anos em enta.
Mas isso apenas demonstra que o espetáculo é comprido e só
se pode bem apreciar depois de lhe ter visto um bom pedaço.

O fato é que estou fazendo quaresma a respeito dessa carne-de-vaca
dos prelos. Ontem, li no bonde o Livro de são Cipriano, conhecimento
que me entreteve como um fruto proibido, e que valeu ao dono do volume, servente
da repartição, um pacote de fumo Veado. Hoje, um dos meus colegas
devia emprestar-me as Noites da Virgem, mas afinal parece que teve receio
de que eu lhe extraviasse essa "mimosa jóia", e declarou-me
que a não havia encontrado; mentira, pois é o seu livro de cabeceira.

Arranjei-me porém com o contínuo, que fora da repartição
é cozinheiro praticante, em ocasião de festa e regabofe, e dentro
da repartição aprende a arte, decora receitas e dá consultas.
Seja registado em sua honra, que não preenche apenas assim o seu horário
oficial: também serve o café e faz o jogo do bicho.

O Manual fez-me o efeito refrescante de um bastão de cristal japonês
passado pelas têmporas em hora de dor de cabeça. Nunca eu havia
provado a tal ponto a maravilhosa utilidade das leituras inúteis. A
parte referente ao preparo do peru com farofa e de outras aves domésticas
e selváticas parecia escrita por um estômago inspirado, tanto
garbo havia na variedade dos termos técnicos, na escolha das palavras
mais precisas e sugestivas, no emprego dos adjetivos mais emanteigados e olorosos,
enfim na composição de um estilo todo suavemente tostado e pururuca.

Li tudo, mas com absoluto desinteresse; por um puro ato de vontade, sem
que nada me obrigasse ou seduzisse, ou me prometesse o mais remoto benefício.
Singular prazer, cujo valor só depois completamente reconheci. Nem
sequer me era dado pensar no aproveitamento de alguma receita, porque todos
os pratos de que eu gosto já são perfeitamente executados e
são de sobra para uma rotação conveniente dos menus;
a tal ponto que ao saborear o frango assado no domingo, já eu sinto
um pouquinho de saudade da torta de palmito da quinta-feira, e vice-versa,
e assim por diante.

O que havia de bom nessa leitura era o emprego tenaz da vontade num objeto
indiferente, ótimo exercício; era, depois, o esquecimento de
umas amofinações, porque é impossível conciliar-se
a leitura atenta de uma série de receitas de assados e cabidelas com
o remeximento de espinhos espirituais.

Era, finalmente, a entrevisão liminar de um vasto mundo desconhecido,
o mundo da Copa e da Cozinha, da pastelaria e das Artes afins; um mundo de
ocupações e preocupações, de atividades e de idealidades,
com sua história, seu tesouro tradicional, sua literatura, sua arte,
sua ética, sua ciência; um mundo que aí fervilha tão
perto do meu e ao qual eu andava alheio como se ele fosse Marte ou Saturno!
Esta percepção da impermeabilidade dos diferentes planos da
vida me calou fundo na alma, e eu me senti ainda mais pequenino.

Se eu amanhã fizesse (mera hipótese) um poema forte, ou construísse
uma teoria de mecânica, ou propusesse uma nova e fecunda maneira de
interpretar a história, nada disso teria a mínima repercussão
no mundo da Cozinha e da Copa; nem um eco sequer do meu nome chegaria até
lá. A preparação do peru com farofa continuaria a mesma;
ou, se se modificasse, havia de ser por ação de um dos íncolas,
inovador de talento; e a alma do artista viveria em todo esse mundo largo
mais viva e mais venerada do que a Divina Comédia ou o Discours de
la Méthode ou o Novum Organum cá pelo nosso. E a sua glória
não sofreria contestações nem eclipses, proclamada cada
dia, através de tempos sem conta, por milhares de bocas verídicas
e gratas! E o nosso pobre mundo comum é todo assim, feito de mundinhos
concêntricos, que se articulam sem se confundir E nós, ai de
nós! pretendemos viver "cosmicamente!" RUFINA Encontrei-me
hoje com o boticário, a quem não via desde a última vez
que vira Rufina.

"Quem é aquela moça", lhe perguntei, "que,
há coisa de duas semanas, viajou conosco neste bonde? Aquela morenota
de olhos grandes e úmidos? Aquela de bonitos dentes? Aquela espigadinha,
de branco, a quem você, saltando do carro, deitou uma olhadela xaroposa?"
Fabiano custava-lhe recordar-se. Vincou a testa, cravou os olhos no tejadilho,
levou a unha do indicador para entre os incisivos, com a boca aberta.

– "Uma gorda, de cabelo ondado?" – "Nada. Não ofenda."
– "Não me lembro… Espere. Uma alta, de nariz grande?" –
"Já lhe disse que era morena, pequena, engraçada."
Fabiano agitou-se, como que para sacolejar a caixa das lembranças,
atirou uma perna para cima da outra, curvou o busto, agarrou o queixo, carregou
o cenho. "Diabo!" De repente, riu-se, deu-me uma tapona no joelho
e exclamou: – "Já sei! Uma cabrochinha, não é isso?"
Conservei-me calado, mandando em espírito, o idiota do boticário
a todos os mil demônios.

Aliviado, voltei-me para ele, frio: – "Desistamos, oh amigo Fabiano
José de Figueiredo Alves." – "Figueiredo, não; Azevedo."
– "Ou isso." Eu estava convencido de que Fabiano não queria
era lembrar-se de Rufina. Impossível que se tivesse realmente esquecido
dessa criatura maviosa e rara. Conhecia mulheres como um recenseador: uma
gorda, uma alta, uma parda, fora muitas outras que não referiu; e não
se recordava da única que valia a pena! Grande ordinário.

Percorremos umas quatro ou cinco quadras em silêncio. Eu nem sequer
olhava para a cara de Fabiano. A certa altura, perguntou-me se sabia o nome
da moça.

– "Rufina." – "Hein?!" – "Rufina." Fabiano
olhou para mim e disparou a rir.

– "Já sei, meu caro, já sei!" – "Mas porque
essa risada?" – "Ah! já sei, meu amigo, já sei. ..
Olhe, ela nunca se chamou Rufina. Qual Rufina, nem meia Rufina!… É
boa! Ela é Augusta, meu caro amigo. Augusta, entendeu? Rufina… é
boa! quiá, quiá, quiá…" "Mas.. então,
conhece-a?…" – "Pchê! Há muito tempo. Uma rapariga
magra, moreno-mate, com o nariz levemente rebitado, o queixo saliente, não
é isso? Conheço muito. Chama-se Augusta, mora ali para as bandas
do cemitério. Boa fazenda coitada!" Desmoronei. Só ao cabo
de longos e dolorosos minutos pude reconstruir-me um pouco, firmarme um pouco
em cima de mim mesmo, e perguntar com voz sumida: – "Mas, então,
esse nome de Rufina?" – "Muito simples. Bestice do coronel Ferrão,
um velho meio pancada – bem pancada, aliás – que tinha a mania de lhe
dar esse nome." – "E por que?" – "Por nada, burragem dele.
Gostava de trocar os nomes, fazia isso com toda a gente. Tinha um sobrinho,
o Bentoca, Bento Felizardo Ferrão, homem respeitável, atacadista
ali no centro: chamava-lhe Esmeraldino, até diante dos empregados,
na loja. O Viana, era para ele Pascoal, um dia; outro dia, era Bonifácio.
A mim, quis-me uma vez batizar por Crispiniano, mas eu, pan! barrei-o logo:
Às suas ordens, seu Januário. Danou-se – ora, imagine: danou-se,
o bestiaga! – e não falou mais comigo." Emudeci. Fabiano continuava,
mas já não o entendi daí por diante. A versátil
indiferença do boticário chocava-me como uma sem-vergonhice
irritante, de sujeito sem alma, sem o senso piedoso e comovido da miséria
humana. Mas Fabiano afinal era um bom homem: isto é, um tipo fútil
e feroz como soem ser os homens de juízo.

Oh! n’insultez jamais une femme qui tombe! Mas não é isso,
oh poeta, não é isso o pior. O horrendo é esta indiferença,
esta sorridente indiferença, esta familiar e brincalhona ferocidade,
aérea, difusa, impalpável, com que se considera um ser humano,
com que se fala de uma pobre mulher – logo de uma mulher! de uma triste mulher
e do seu destino, de uma mulher bela, graciosa e miseranda; de uma mulher
que tem toda a massa de que se fazem as mães e os anjos da terra, –
e com uns olhos tão grandes, tão úmidos, tão luminosos!
– "Mas porque é que queria saber" indagou o boticário,
depois de uma pausa.

– "À-toa, Fabiano." – "Pois olhe, é fácil."
Encarei-o de um modo que devia ter-lhe parecido esquisito, pois calou-se e
ficou sério. E não se falou mais nisto.

JUSTIÇA Íamos hoje para a cidade na marcha habitual, nem muito
rápida, nem propriamente vagarosa.

Circunstância notável, se bem que ordinária – o bonde
não correu nem por um instante fora dos trilhos. Entretanto, chocou
de repente com um automóvel, e surgiu uma grande discussão a
respeito de se saber a quem tocava a culpa, se ao motorista, se ao chauffeur.

Entrou em função o juiz que há dentro de cada indivíduo,
e as sentenças divergiam.

– "Foi esse negrinho estúpido," dizia um, indigitando o
chauffeur.

– "O culpado é esse louco desse portuga," asseverava outro,
referindo-se ao motorista.

– "Cadeia com eles, é o que eu vivo a dizer." – "Qual!
só a pau." – "Por milagre não houve coisa muito pior:
olhe como ficou a máquina." – "Foi pena que não ficasse
ainda mais escangalhada, era menos uma." – "Mas o bonde podia bem
ter parado a tempo." – "Não podia, aqui é um declive."
– "Seu guarda, o culpado é o chauffeur." – "Não,
seu guarda, o culpado é o motorneiro." E cada juiz era também
um partidário, ou do lado do homem do bonde, ou do lado do homem do
automóvel. Por simpatia física, por espírito de nacionalidade
ou de raça, por disposição mais favorável a uma
das classes de automedontes, por ter ou não automóvel, por ter
ou não ter um parente chauffeur ou automobilista, por mero palpite,
cada um propendeu imediatamente para uma das bandas.

Mas, valha a verdade, havia também homens imparciais, por exceção.
Um destes, abanando a cabeça, e afastando-se do burburinho, me ponderou
tranqüilamente: – "Ora, ora! Quem foi, quem não foi… Eu
o que fazia era pegar nos dois e socá-los no xilindró: é
aí, seus danados! Esta corja…" MODÉSTIA Franklin Penha
dera-me hoje a impressão de um grande fátuo. Viu-me no bonde
e cumprimentou-me com excessiva amabilidade, com regozijada surpresa, como
se tivesse descoberto em mim, de repente, algum encanto inédito. E
eu nem sequer tinha a barba feita. O motivo não tardou a aparecer.
O que Franklin pretendia era capturar a minha atenção e boa
vontade para uma notícia de jornal que trazia recortada, no bolso,
e lhe pesava como uma barra de ouro. A notícia era mais ou menos a
seguinte: "O Senhor Doutor Franklin da Costa Penha, conceituado advogado
do nosso foro e futuroso cultor do nosso passado, acaba de ser nomeado sócio
correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Estado
de…, por indicação, unanimemente aprovada, do eminente historiógrafo
brasileiro Sr…." – "Parabéns, bichão." – "Oh!"
Apesar desse oh! Franklin estava realmente satisfeito, mais talvez do que
o seu venerando xará depois que eripuit fulminen, etc. Guardou o retalho
na carteira, quase a afagá-lo com as pontas dos dedos, como se fosse
um aéreo tecido de seda; arrumou a carteira no bolso e, confidencial
e grave: – "Não; eu, de fato, para ser franco, fiquei muito contente.
Eu sou assim. Tenho ainda alguma coisa do menino de colégio, que se
ufana dos prêmios recebidos. Puerilidade. Pura, insofismável
puerilidade. Eu podia contar-lhe esta nova assim com um arzinho de quem não
ligava, negligentemente, como por uma lembrança de acaso. Podia ter-lhe
dito que o fato me agradava por este ou por aquele motivo nobre; pelo prazer
que teriam lá em casa, pela recomendação que estas distinções
representam no seio de uma burguesia bobalhona… enfim qualquer coisa por
esse gosto. Mas tudo isso não seria senão hipocrisia. A verdade
pura é que fiquei contente por mim mesmo, pela própria distinção
em si; contente deveras, cheio de contentamento como um balãozinho
de goma elástica cheio de ar. Eu sou assim. "Mas também,
amanhã ou depois, já estarei resfriado; nem me lembrarei mais
de que fui eleito sócio correspondente. Depende de eu querer alcançar
uma outra tetéia que no momento me seduza." Franklin dizia-me
estas coisas com tanta simplicidade e com um lume tão sincero nos olhos,
que tudo lhe aceitei como vera confissão. E absolvi-o. Não,
ele não é fátuo. É talvez mesmo o oposto do fátuo,
um grande modesto.

Modéstia, afinal, não é isso? A verdadeira não
é aquela que se proíbe a mínima expansão de vaidade.
Os indivíduos que se proíbem a menor demonstração
de vaidade são quase sempre os mais vaidosos dos vaidosos. Pretendem,
sonham, invejam, sofrem e gozam tanto quanto os outros, com a única
diferença de que põem abafos a isso tudo e, além de tudo,
ainda querem fruir a reputação de ser extraordinariamente modestos.
Há mesmo cidadãos que devem a maior parte do seu renome à
sua modéstia ou à sua preguiça. O pouco que dão
de si, dão como passatempo, como capricho ou brinco de um momento,
como efeito de imposições alheias, como necessidade ocasional.
Por si mesmos, não, não querem nada, querem sossego! Mas o seu
maior gozo é quando os admiradores exclamam: "Ah! se este safado
se resolvesse a trabalhar!" Vaidosos dobrados, têm várias
vaidades lá dentro, presas e gordas como perus de galinheiro, e ainda
por cima se deliciam, epicuristicamente, com a vaidade de não ter nenhuma
vaidade, que é a mais vá, a mais falsa, a mais loucamente ambiciosa
de todas.

O modesto verdadeiro não é o que se envergonha das suas vaidades,
é aquele que lhes dá expansão, reconhecendo-as porém
com bonomia como tais, sem lhes emprestar outros nomes, nem estar com rodeios
e mentirolas. Somente, possuir a clara consciência delas é automaticamente
reduzi-las. Dar-lhes expansão, assim, é rarefazê-las.
É torná-las exteriores, superficiais e passageiras, como um
suor, como escamazinhas eruptivas da pele, como secreções, coisas
que a economia orgânica de um corpo são, normalmente engendra
e rejeita.

Uma limpeza, uma "catársis", um arejamento, um alívio.

Gozar as próprias vaidades com sincera e inocente imprudência
é o melhor meio de lhes sentir a vacuidade, de as tornar inócuas,
de acabar por desprezá-las e perdê-las. Permitir-lhes que levantem
o vôo é deixar que se vão embora.

Alegrar-se alguém abertamente com os seus pequenos triunfos é
um modo amável de se confessar bem gratificado. Saudável fusão
de bonomia, conformidade e desprendimento: modéstia, enfim; a boa,
a legítima, a pura. A única.

Todo o mal da vaidade está nos sentimentos e nos cálculos
que se lhe ajuntam, que a mascaram, a pervertem, a envenenam, a entranham
na alma, hipertrofiando-a, dando-lhe por vezes a figura hidrópica de
virtudes austeras, dessas que merecem lápides em latim. – É
assim que se formam esses veneráveis cavalheiros amargos que santamente
odeiam todas as manifestações brilhantes e aladas da vida, esses
grandes desambiciosos que se vingam em todo o mundo de não poderem
confessar ambições, esses perpétuos caluniadores que
enxameiam e zumbem, como varejeiras pesadas e tontas de sânie, em redor
de cada desgraçado cujo nome não ficou soterrado como o deles
na própria impotência.

Nietzsche teve razão – o que algumas vezes lhe acontece por maneira
fulmínea – quando disse que as paixões, em seu estado puro,
são boas. Apenas haverá nisso exagero. São boas porque
são naturais, porque são o próprio homem. O que as torna
más, corrompendo-as envilecendoas, é a hipocrisia, que as dissimula
intensificando-as no entanto; que as enfeita por fora, como serpentes, mas
dá-lhes o veneno e a insídia; que as oculta e as desvia de seus
fins imediatos, claros e geralmente saudáveis, para as pôr ao
serviço de afetos nobres e de longos, tenazes e engenhosos ressentimentos.

Menos ousado, Augusto Comte apenas reconhece à vaidade – desejo de
aprovação – direitos de cidade na sua moral sociocrática;
mas…

… Mas que Nietzsche! que Comte! que Fulano ou Beltrano! Antes de todos
eles, o Eclesiastes havia proclamado, para todo o tempo, que tudo é
vaidade neste mundo.

Dessa e de outras afirmações se tirou apressadamente a ilação
de que o cristianismo nascente votava um ódio entranhando à
vida. Mas ele não fazia senão pôr o dedo na latejante
verdade, na dolorosa e redentora verdade. Era uma libertação
e um alívio que ele trazia: tornaram-no um torvo condenador da vida.
Era uma reação contra o formalismo, a pedantaria, a artificiosidade
hipócrita do judaísmo literalizante e manhoso, uma revolta do
espírito, uma insurreição de veracidade heróica,
alegre triunfal da nossa miséria".

Sim, tudo é vaidade; sim, o homem é mau; sim, somos o verme
da terra. Pois, sejamos vaidosos, sejamos maus, sejamos vermes, francamente,
de cara descoberta, de alma leve, com a lavada e impudente sinceridade da
flor e da fera, à luz do Sol e à face de Deus, na perpétua
humildade de uma confissão total e tranqüila! Não queiramos
converter velhacamente a larga realidade comum da nossa pobreza em falsas
opulências de exceção. Quem se abaixa é que será
exaltado: só quem se reconhece tal qual é, ou tal qual somos,
achará em si mesmo a verdadeira força purificadora e ascensional,
que não mente nem quebra. Confessemo-nos sinceramente a Deus, e Deus
a todos os humildes perdoa e sustém.

Como é que a tola perversidade humana pôde converter a clara
e benéfica fonte de liberdade e de alegria, que há no fundo
dessa viril visualização cristã da vida, nesta coisa
sombria e horrenda, nesta mascarada de mistificações, neste
pesadelo de atrozes artifícios, neste abominável Santo Ofício
de idealismos hipócritas e peçonhentos e de mútua espionagem,
que a sociedade instituiu dentro de si mesma e carrega no seio como um rolo
esfervilhante de víboras? Jesus claro, natural e harmonioso como a
Verdade, até fabricou vinho em Caná para a jovialidade simples
dos homens…

A modéstia é uma virtude imensuramente prezada pelo grande
número. Todos a veneram.

Todos a exigem dos outros. Por que? Mas, evidentemente, por ciúme
e inveja. Não há ninguém mais modesto do que as velha
chupadas, arrependidas… de não haverem pecado. – Não podendo
suprimir os méritos de quem os tem, quer-se que ao menos o possuidor
não os reconheça, ou finja não os reconhecer; quer-se
diabolicamente aguar, estragar, atormentar com dúvidas, com acanhamentos,
com terrores e com escrúpulos o prazer natural, irreprimível
e capitoso que ele possa provar. Assim, mais ou menos, falou Zaratustra.

A moral social é uma formidável conspiração
de todos contra cada um, para o triturar, perverter, o desvirilizar, o reduzir
a um ser lamentoso e tortuoso, um aleijado sofredor, grotesco e malfazejo.
O pátio dos Milagres! O envaidecido enrosca-se e enclavinha-se em si
mesmo. Em vez de lançar ao vento as suas pequenas fatuidades e libertar-se
delas, ele as recolhe, as acumula, as afunda lá dentro, e as recoze,
e as cultiva em sigilo, como um fabricante de venenos, com toda a sorte de
cautelas, de temores, de desculpas, de artifícios, de equívocos,
de dissimulações, e aí temos uma franqueza quase inocente
convertida, pelo farisaísmo da virtude, numa podriqueira secreta! Só
o indivíduo que experimenta prazeres de vaidade, sem se enganar sobre
a natureza deles, assistindo a essas experiências do sentimento como
um lúcido espectador de si mesmo, só este é capaz de
modéstia. Se algum há que não os conheça, esse
não é propriamente um modesto, é um que nasceu com uma
falha psicológica, como outros nascem privados da vista ou com um pé
atrofiado. Não tem mérito algum. Tem um defeito de nascença.

A modéstia é a vaidade que sorri de si mesma. E nesse sorriso
vai o quantum satis de contraveneno.

A boa modéstia é a vaidade que sorri de si mesma para não
se rir das outras, e que às vezes arde e se sublima na chama do sorriso
– como um balão de papel se destrói e desaparece na própria
chama que o eleva.

A vaidade paga regiamente as suas culpas. Quantos artistas crucificados
na sua obra, vertendo sangue e clarões! A boa modéstia é
aquela que doma as suas vaidades e as subjuga ao domínio de uma paixão
forte e bela, como os tigres que puxavam o carro de Dionísios.

A serpente, às vezes, gasta o seu veneno em botes aos raminhos que
bolem ou às sombras que passam, e assim se torna inócua ao picar
uma rês ou um homem. A vaidade é muitas vezes como a cobra.

À vaidade parece dever-se também uma quantidade de horrores:
assassínios, roubos, atrocidades, suicídios. Na realidade, ela
desempenha apenas o papel de um purgante orgânico da comunidade social.
Em muitos casos, se a uma só causa se podem filiar coisas tão
complexas, é a modéstia que deve ser responsabilizada. Convertida
em mandamento irretorquível, comprime e abate a natureza humana e a
obriga a esses longos desvios e absurdas transferências da paixão
inextirpável, a vontade de se afirmar. O excesso de modéstia
pode prolongar-se até ao cinismo, e à delinqüência.

UMA ROSA Ganhei uma rosa e uma experiência. Deu-me aquela, no bonde,
um homem velho, rude e chambão. Contraiu a afeição das
flores já entrado em anos, depois de desenganado de feminilidades há
muitos. E eu tinha o amor das flores na conta de um puro reflexo de sentimentos
sexuais, de uma ondulação distante do culto da mulher.

De fato o é; mas também pode ser outra coisa, como me prova
este velho puído e tristonho, que viu amanhecer em si o encanto das
rosas quando já iam muito longe as derradeiras fagulhas do outro amor.

Quem sabe se ele põe agora neste afeto um afã meio inconsciente
de recuperar o tempo perdido para o coração? Como quer que seja,
revelou-me como a natureza, contra toda lógica e toda expectativa,
pode achar saídas novas e elegantes para as situações
mais abatidas e ruinosas. Há nela uma capacidade virgem e indefinível
de com que não costumam contar os analisadores de almas, que pensam
desmontar-lhes as peças como a mecanismos, e não fazem senão
jogar com esquemas e conceptos.

Tudo, neste homem, indicaria uma carreira fatal para o embrutecimeno e a
prostração. Idade, doenças, decepções,
rupturas, arrancamentos, saudades, rancores, desesperança. Devia acabar
no desânimo e na tristeza aparvalhada do animal que procura um recanto
esquecido para morrer. Pois, nada disso. Viu ainda florir em si, de repente,
um novo amor e uma alegria, uma doçura e uma esperança novas.
Uma nova forma de ingenuidade fresca e gentil. Uma ressaca de mocidade.

Dir-se-ia que todas as suas mágoas e misérias se haviam convertido
numa energia clara e imprevista de nascente gorgolejante Que todo o cisco
do seu passado, em montão, a consumirse ao sol e à chuva, fecundara
a terra e dera-lhe sombra e umidade para que brotasse lá em baixo uma
semente ignorada, e que a semente se fizera broto, e o broto crescera e atravessara
os destroços apodrecidos para vir oferecer à luz a flâmula
verde de uma frondezinha viçosa.

A vida vive em nós! Ai, se nos convencêssemos bem de que é
a Vida que vive em nós… A Vida, senhora eterna de todas as germinações.

AINDA A ROSA A rosa que o meu amigo velho me dera anteontem ainda estava
hoje bem passável. Olhei-a, pela manhã, quando lavava o rosto,
e achei-lhe um encanto dorido de mulher bonita que, em pleno solstício
de encantos, de repente se vê marcada pelos primeiros gorgulhos do tempo.

Esborrifei-lhe um pouco de água, e disse-lhe: "Que será
de si amanhã, minha rosa?" As rosas sabem falar, e para ouvir
e entender o que elas dizem não é preciso amar alguma senhora,
como, segundo o poeta, se requer de quem deseje ouvir as estrelas. E a rosa,
com soberba indiferença, respondeu: "Que será de mim? Olha
esse grosseiro antropomorfismo, néscio animal! Então tu julgas
que nós outras somos feitas da tua massa? Para mim e minhas irmãs
todas as voltas do mundo são as mesmas. Eu, amanhã, não
serei nada que tu aprecies, mas aí ficam infinidades de rosas desabrochadas
e por desabrochar. E todas elas são eu mesma, porque eu sou todas,
e não desapareço, nem sucumbo".

Muito bem, muito bem. Em todo caso, como rosa individual, a minha durava
bastante. Malherbe assinou a esta flor, como prazo fixo de vida l’espace d’un
matin, e entretanto é geralmente sabido que ela pode durar dois ou
três dias, e mais. Mas também está geralmente convencionado
que, para os efeitos poéticos, há de durar uma só manhã.

Verdades duplas, assim, há muitas, há tantas que o mundo está
cheio delas.

A borboleta, símbolo da volubilidade na poesia, é com efeito
uma excelente imagem da constância, porque só faz indefinidamente
a mesma coisa.

A abelha, essa dizem que é o tipo do ecletismo intelectual ou sentimental
que saqueia a corola de todas as flores; na verdade, é a representação
mais fiel da inflexibilidade de princípios, pois que não visita
senão as flores que lhe forneçam matéria-prima, e delas
não quer senão a pequenina dose de matéria-prima que
possam dar.

O gato considerado como um animal de caráter independente, vive de
fato na estreita dependência própria dos parasitas, não
sabendo senão estar nas cozinhas e nos telhados; gravitando em redor
da paparoca preparada.

À palmeira, chamam-lhe esbelta e soberba, ou altiva, ou senhoril.
Não há o que se lhe oponha, porque, realmente, a gente pode
dar às coisas os adjetivos que quiser, não havendo contrariedade
declarada; mas é muito de notar que, assim como a palmeira é
esbelta e senhoril, também poderia ser senhoril e esbelto um espanador
de cabo comprido, ou uma vassoura do tipo antigo, trastes estes havidos como
sumamente prosaicos.

O boi, símbolo da força, é um colosso tão frágil
que passa da mocidade à decrepitude em meia dúzia de anos, e
possui muitíssimo menos energia ativa do que uma formiga ou uma pulga.
E a águia, emblema do gênio, porque tem asas e vive nas alturas,
é menos inteligente do que uma galinha e nem sofre comparação
com o castor, que passa a existência no fundo dos vales e no lamaçal
dos rios.

Enfim, não se contam as verdades, duplas que todo o mundo enxerga,
ou poderia enxergar, mas deliberadamente separa e torna reciprocamente estanques.
E não só no que respeita ao mundo objetivo, mas também
no que se refere ao próprio domínio subjetivo da experiência
moral.

A economia é uma virtude, quando se põem sobre ela os óculos
simpáticos da generalização poética; a economia,
em seus casos concretos, é sempre uma indecenciazinha de que nos envergonhamos
e que satirizamos nos mais.

"O amor é a mais bela e a mais santa das coisas desta vida":
mas ninguém torne esse conceito como preceito porque se arrisca a ser
apedrejado na praça.

"A calúnia é o fel das almas ignóbeis": na
realidade, a calúnia é um vício tão generalizado
e tão familiar como o do cigarro; e quem não o cultivar está
no perpétuo risco de passar por idiota ou por "jesuíta".

Mas, afinal de contas, esses desdobramentos da verdade são úteis,
porque correspondem a duas tendências fundamentais do espírito
humano: a que visa a adaptação deste à natureza, e a
que procura a sua adaptação à sociedade.

A primeira procede por via de indagações meticulosas e serenas;
a segunda marcha por meio de conceituações imediatas e sínteses
arrojadas.

A primeira é lenta, dificultosa e fatigante; a segunda é rápida,
leve e encantadora.

A primeira fornece exercício a uma minoria de cabeças, especializa
e desmembra funções, e como que pulveriza a continuidade e a
fluência do real numa infinidade de corpúsculos gelados; a segunda
comunica impulsos a toda a sorte de mentes, aproxima-as, harmoniza-as, estimula
a imaginação e a simpatia, dando a todas a mesma concepção
aproximativa das coisas, deformante mas agradavelmente fácil, ampla
e satisfatória.

A primeira prepara o viveiro das verdades exatas e necessárias de
amanhã; a segunda alarga o domínio das verdades agradáveis
e convencionais provisórias para uns, perpétuas para a maior
parte.

Instinto de saber, instinto de poesia. Dois irmãos inimigos, que
não podem viver um sem o outro.

Posta de parte essa parlenda, o fato é que a resposta da rosa mais
me enamorou dela. Enfiei-a na botoeira, apesar de já meio fanada. –
Precisei, para tanto, de um pouco de decisão e atrevimento, pois nunca
uso flores comigo, nem mesmo frescas. Audácia de carneiro.

Atrevimento de cágado.

Instalado no bonde, semicerrados os olhos, e sentindo na face a carícia
de uma pétala pendente, instiguei a minha interessante companheira
a falar ainda, antes que algum golpe de vento ou algum encontrão a
despojasse da sua voz feita de cor e perfume. Não se fez de rogada.

"Não sabes, amigo? Tal como aqui me vês, sou filho do
conúbio do homem e da natureza…

Tanto devo o ser ao solo, ao sol, ao ar, como ao espírito, à
arte e à mão humana.

Sou um produto da terra e da civilização: duplamente flor
de cultura.

Sou ao mesmo tempo a glória de Flora e a mais perfeita das flores
artificiais. Tendo o viço hereditário das rosas selváticas
e a aura humana das rosas de papel e de tecido, armadas por magras mãos
de operárias tristes, mãos febris de moças namoradas.

O homem faz-me, cheio de suas vaidades, seus desejos, suas ambições,
seus sobejos de carinhos, seu saber, seu gosto amável, paciente e caprichoso.
Assim, uma infinidade de forças diversas vêm-se coordenando e
vêm colaborando, através dos séculos, na seleção
das minhas formas, dos meus tons e dos meus olores – florindo e reflorindo
em mim.

De mim, pois, aprende, homem tolo e ingrato! a olhar a tua humanidade não
tanto na sombria confusão dos seus galhos e ramas, como na vária
e fugitiva permanência das suas flores, ou no perpétuo esplendor
das suas graças transitórias.

Ama-a com todos os seus vícios e brutezas, com todos os seus primores
e pulcritudes.

Não há vícios, não há primores, há
só o homem. O homem e nada mais. O homem inumerável, incomportável
e indefinível. O homem que te ultrapassa no espaço e no tempo,
e cujos últimos limites partem do centro da terra e vão perder-se
nas constelações.

Perdoa-lhe tudo, tudo. Perdoa-lhe simplesmente. Sem gestos e sem frases.
Perdoa-lhe mesmo na cólera e na angústia. Reserva-lhe ao menos
uma promessa de perdão no infinito, até para o que não
possas, até para o que não devas perdoar.

Se tudo, nele, coopera na produção destes milagres de melindroso
e incorruptível prestigio! Milagres em que o fugitivo se confunde com
o permanente, e o encanto de uma hora é um sorriso dos séculos.

Passam as catedrais, esfarelam-se os granitos e os bronzes, desagregam-se
os impérios, e as nações dissolvem-se, mas eu permaneço
na minha deliciosa insignificância, Como a última confidência
de ternura e de beleza que as gerações legam umas as outras
através dos abismos do tempo.

Sou a obra mais duradoura do homem. Não há ferrugem nem verme,
nem guerras nem sinistros que me atinjam.

Vê como uma coisa assim pequenina e branda vem a ser o único
triunfo comum das energias contraditórias derramadas pela face da terra!
Eis-me aqui, doce como um afago, leve como uma asa, breve como um sonho, mas
forte como o que permanece e perdura, imorredoura e essencial como a lágrima
e como o sorriso, esses dois resumos humanos da infinita comédia, e
da infinita alegria do universo…

Serve-me com os olhos, aspira-me, grava-me na alma. E sabe que nunca faltarei
ao pé de ti, se o quiseres.

Busca-me, achar-me-ás. Eu só desapareço de teus olhos
para que em ti se renove a ânsia pela minha presença.

Toda a perene agitação do mundo parece não ter outro
fim que produzir uma espuma de rosas.

Nada tão ao alcance da tua mão.

Colhe, beija e sorri.

Nesse minuto estarás num pináculo da vida e num ponto luminoso
da eternidade.

Eu sou a Rosa, eu sou a Rosa, a beleza e a graça fugentes, a doce
filha da terra vil e do homem desgraçado…" UM FIO DE CABELO
Aquela moça espigada que entrou no bonde com o ímpeto ágil
de um gafanhoto e ficou sentada ao meu lado, nunca imaginaria que fosse causa
possível de uma pequena tragédia.

Entrou, sentou-se, tão isenta, como diria o Camões, tão
longe de mim que sentia a irradiação das suas calorias! Viçosa,
inocente e jocunda como um cacho de flores de resedá arrancado ao galho
pela manhã, tinha a afilada silhueta de uma girl esportiva e a despachada
simplicidade de um rapaz. Tirou a espécie de boina que trazia na cabeça,
agitou o nevoeiro de fogo do cabelo, ajeitou-o com as mãos, de leve,
como se lhas queimasse, e minutos depois, repondo o gorro, partia, num outro
salto de gafanhotinho brincalhão.

Jeunesse de visage et jeunesse de coeur! Quando cheguei a casa, tinha no
ombro um fio de cabelo, um fio de chama. Descobriu-o a criada, com um sorriso
ingênuo e perverso. Pegou nele, de intrometida, examinou-o à
luz da janela, e ia deixá-lo cair quando eu, não me podendo
conter, exclamei: "Deus a faça careca, Manuela!" Manuela
olhou-me com cara de surpresa e desapontamento, como a pedir explicação.
Não lha dei, limitando-me a assoviar uns compassos da Marcha de Cádis,
para não lhe deixar a impressão de estar zangado, e retirei-me
para o meu quarto.

Na verdade, estava zangado. Aquele ato da pobre mulher apertara a mola ao
mecanismo das minhas melancolias. Pus-me a considerar os frutos de suspicácia,
de bisbilhotice e de malignidade que a moral produz nas almas simples; e de
reflexão em reflexão achei-me de repente imerso, mal sustendo
a cabeça de fora, na imensurável e irremediável miséria
da bicharia humana.

E aí está como aquela menina, inocente como o é a Lua,
dos raios que deixa cair, não esteve longe de ser causa de um desaguisado
doméstico. Ao mesmo tempo que alisava o cabelo, num movimento de mãos
e numa dança de dedos leve e aérea como um gorjeio, poderia
estar agitando a corrente de dois destinos ignorados e preparando uma pororoca
longínqua.

Ai! por muito pobre que seja a imaginação dos malfazejos,
os distúrbios que ela consegue promover são pequena coisa diante
do mal que todos fazemos uns aos outros pelo simples fato de existir.

Não há pior acidente do que ocupar um lugar no espaço.
Um simples fio de cabelo caindo de uma cabeça pode ser para alguém
como o raio destruidor partindo do punho de Arimã. Vivemos assim uma
eterna e terrível mitologia. Participamos da natureza dos deuses, ao
menos para o mal. Só para o mal. A vida é a angústia
do terror difuso e permanente.

RETICÊNCIAS Encontrei-me hoje no bonde, depois do almoço, com
o Nicolau Coelho. Como eu lhe dissesse, um dia, que lera com prazer a sua
crônica sobre finados, desse dia em diante se aproximou de mim, e não
me vê sem que me venha apertar a mão. Ainda hoje pagou a minha
passagem.

Conheço Nicolau desde menino, fui amigo de seu pai, professor gratuito
de um dos seus irmãos, e nunca se julgara obrigado a usar de cortesias
comigo. Passei a ser alguém para ele no dia em que lhe elogiei uma
crônica, a ele que tantas e tão aplaudidas tem escrito, a ele
carregado de glórias.

Nicolau, vendo-me no último banco, ergueu-se do seu e desfechou-se
de lá. Sacou de cinco tiras de papel e disse, com modéstia:
– "Isto é curtinho… Gostaria que lesse, preciso da sua opinião."
Fixei os meus olhos nos seus.

– "Precisa da minha opinião?" – "Sim pois…"
– "Mas isso é grave, meu amigo. Então a minha opinião
vale?" – "Muito." – "Nesse caso, eu necessitaria ler com
vagar, com toda a atenção." – "Mas, eu tenho de levar
o original à folha. É curtinho. Lerá num momento."
Li. Li e não achei mal. Ao contrário. Certa harmonia agradável
e constante, harmonia de forma, harmonia de fundo, feitas de pequenas audácias
de pensamento e de expressão, difíceis de orquestrar. Notei
apenas um exagero de sinais sintáticos, travessões, virgulas,
pontos-evírgulas, pontos finais, e sobretudo, reticências.

O abuso das reticências me é particularmente enervante (a não
ser quando entram, num sistema personalíssimo de notações,
compreensível em certos indivíduos muito irregularmente "individuais".)
Ponham quantas forem necessárias para indicar suspensão ou transição
inesperada. Mas este costume de derramar ao pé de cada período
uma série de pontinhos, para denotar que a frase é aguda, que
ali há coisa, que a passagem envolve malícia ou profundidade
– não, não.

O leitor (sempre inteligente) irrita-se por não se lhe deixar o gosto
de descobrir por si mesmo as sutilezas, as intenções, os valores
velados. E depois o autor acaba por botar reticências em tudo, porque
é difícil que um autor não veja coisas a realçar
em cada um dos seus períodos.

Afinal, a função dos pontinhos desaparece, e onde eles não
estão é que a gente vai ver se desentoca o melhor.

A mania das reticências não tarda em semeá-las no próprio
pensamento. Recolhem, como as bexigas. E lá se vai o amor da claridade
e da justeza, lá vem o prazer vicioso do equívoco, do ambíguo,
do flutuante.

Os antigos não usavam reticências. Faltou-lhes pois uma boa
forma de notação, hoje indispensável. Mas o fato é
que a estreiteza do sistema de suplementares da palavra tinha as suas vantagens.
Forçava-os a tudo exprimir e sugerir com os recursos únicos
da frase nua e dos seus ritmos naturais. Em vez de pôr um sinal de ironia
tinham de açacalar a ironia através da rede dos períodos.
Em vez de indicar com que óculos cinzentos ou vermelhos se havia de
ler o capítulo ou a página, davam à página ou
ao capitulo a tonalidade sentimental ou mental conveniente. Era o processo
direto, que penetrava até às carnes e aos nervos do estilo.

Podiam falecer-lhe a este as flexibilidades e esfumaturas da sensibilidade
moderna, mas ainda isso era uma vantagem, porque era uma disciplina. O escritor
havia de se resignar, por muito indeciso e ondulante que tivesse o espírito,
ao freio de um métier e havia de viver perpetuamente em busca do límpido,
do incisivo, do luminoso. Nunca se entregava senão a construções
de pensamento com uma classificação e um fim. Toda a sua aspiração
era fabricar obras acabadas, portáteis, que representavam aquisições
(como diz Emerson a propósito já não lembra de que autor)
coisas que se poderiam sopesar, palpar, pôr no bolso e levar para casa
– como um utensílio, como uma jóia, como uma fruta.

Representei tudo isto por outras e mais breves palavras, a Nicolau, cujo
valor não deixei de tomar para estribilho. Guardou os originais, acendeu
um cigarro e perguntou, com um sorriso reticente: – "Então, só
um excesso de… pontinhos?" "Só, Nicolau, só. Mas
isso mesmo, ó Artista, ó Imaginífico, ó Mistagogo!
é talvez mania ou sutileza do meu bestunto emperrado. Quando vejo um
desses escritos retalhados em pequenos parágrafos cada parágrafo
seguido de uma secreção de pontinhos, tenho logo a idéia
de uma desfilada de cabritos.

"Mas, pensando bem, penso que um escritor moço precisa de ter
certa porção de cacoetes e singularidades, até de erros,
dentro de certo limite porque tudo isto serve exatamente de lhe dar um ar
de viçoso verdor e de divinatória inexperiência, a graça
do gênio ainda ignorante de si próprio, todo em flor e esperança.

"As pequenas carepas envolvem uma promessa festiva de aperfeiçoamento
ao passo que a lixa insistente e minuciosa, tirando todas as titicas e asperidades
da superfície, deixa ver melhor as imperfeições essenciais
da matéria e da construção.

"Esses cacoetes, essas singularidades, esses descuidos constituem uma
garantia para o escritor. Ninguém suspeita nele um gramático,
um espírito peco e miúdo, preocupado com a língua e outras
superfluídades peróbicas. Perdoam-lhe por simpatia, numa absolvição
geral, as faltas cometidas, e ainda as que venha a perpetrar. Ao passo que
os escritores corretos dão ganas a todo o mundo de lhes descobrir trincas
e manchas.

E isto sempre se consegue: a correção é uma zona ideal
de equilíbrio instável…" Ia eu assim dissertando, alheio
ao bonde e ao tempo, quando uma brecada instantânea fez estralejar todo
o arcabouço do carro. Gritos, borborinho. O bonde havia pegado uma
carroça pela rabeira e arremessado esse veículo, com os seus
dois animais, a três metros de distância.

A carroça adernara, com uma das rodas meio fora do eixo, e os burros,
presos ao correame e aos varais abatidos, resfolegavam largamente, com estremeções
espaçados de toda a courama.

O pior é que o próprio carroceiro, cuspido para o chão,
raspara a poeira e se estatelara ao lado, a verter sangue da cabeça,
as mãos meio enclavinhadas, o peito a arquejar sob a camisa aberta.

Magotes de curiosos iam e vinham enquanto dois homens de maior iniciativa
tratavam de recolher a vítima a uma casa próxima e de levantar
os animais.

Válidos, prestantes bons homens! Surgiram de repente da massa amorfa,
como os que sabem querer e mandar. E eu era da massa amorfa, imprestável
distraída, hesitante. Ó céu, cada dia me reservas uma
humilhação! Depois, que, vinda a polícia e o carro da
assistência, o bonde pôde continuar a viagem, os passageiros consternados
ainda pormenorizavam o ocorrido, explicavam o desastre, discutiam as culpas.
Quanto a mim, conservava-me quieto, com a visão pasmada daquele homem
caído no chão, a derramar sangue na poeira, e do triste do motorista
que parecia fulminado de estupor, na balorda prostração do animal
tocado de raio.

Nicolau catucou-me de repente no braço. Voltei-me para ele como quem
despertava.

– "Mas!… quer que lhe diga?" (recomeçou) "não
estou de acordo com o senhor." E tinha um arzinho entre provocador e
mofento.

– "Comigo?! Em que?!…" – "Nesse negócio de reticências.
A mim me parecem indispensáveis. A questão está naquilo
que se pretende dizer ou sugerir." E por aí foi, a traçar
com o indicador o desenho dos argumentos. Dei-lhe sempre razão até
o termo do discurso e da linha. "Sim. Claro. Sim! Pois não. Sim,
sim!" Afinal, disse um adeus veloz a esse espírito gentil e corri
a um café, onde fui tomar a minha xícara em silêncio e
em penitência, e reatar os fios inacabáveis do meu perene diálogo
comigo mesmo – com o único indivíduo que não se aborrece
quando o contrario, com o único indivíduo que me aborrece quando
o não quero contrariar.

RUÍDOS E RUMORES As almas têm umas irradiações
pouco observadas – sem nada de comum com a transmissão de pensamento,
o magnetismo e análogas complicações etéreas,
ódicas e místicas.

Não há uma ciência (e ainda bem, arre!) mas há
uma arte, uma pequena arte sutil sobre a caça das irradiações
da personalidade, através dos rumores e das vozes.

Tenho uns vizinhos esquisitos, um casal velho que vive fechado em casa e
raramente se deixa ver. Trabalhando ou lendo no meu gabinete, ouço
vozes, passos, tosses, assoadelas arrastamentos de móveis, bater de
pregos, – tudo espaçado e abafado, passando através das paredes
como vagas mensagens de um mundo sigiloso.

Ponho-me, às vezes, a escutar esses rumores e, à força
de os ouvir e comparar, não só eduquei o ouvido para lhes perceber
as menores variações, como consegui fixar o valor expressivo
de alguns deles.

Cheguei à conclusão de que o homem é gordo, rude, voluntarioso,
e talvez com um defeito numa das pernas. Pisa com força e peso, mas
de um jeito claudicante; tosse de um modo rápido e sacudido; os ruídos
que produz batendo pregos ou fechando portas são sempre céleres
e inteiriços, e sua voz é robusta e serena.

Por que então não sai de casa? Provavelmente, algum incômodo
ou lesão localizada, que o impede sem lhe afetar o estado geral.

Quanto à mulher, deve ser velhota, magra, tristonha a paciente. Seus
passos apenas chiam no soalho, sua voz mal se ouve, assemelha-se a um arrulho
monótono. De, quando em quando, escuto-lhe uns espirros longamente
gemidos. Esses espirros por si sós ainda me fornecem uma indicação:
a senhora é do interior de São Paulo, provavelmente de lugar
pequeno, e talvez da zona sorocabana.

Outro dia, tive um susto: o homem entrou a falar alto e ríspido,
a dar passadas por toda a casa.

Estaria a maltratar a pobre senhora? Apurei o ouvido. O vizinho andava,
parava de quando em quando, falava falava, e depois punha-se a andar de novo,
para de novo estacar e falar: o ritmo característico de uma crise de
raiva recriminante.

Mas que poderia ter-lhe feito a pobre velhota, tão calma e resignada?
Ansioso, apurei ainda mais o ouvido, e só descansei quando ouvi um
espirro da vizinha: atchiii!… Esse espirro, longo, pacífico, modulado
pela forma exata do hábito, garantia que a zanga não era com
ela.

Hoje, finalmente, viajei de bonde com o casal, que saiu conforme às
revelações sonoras. O homem, alto, gordo e vermelho; ela, seca
e sumida. Ao tratarem de descer, ele puxou a corda da campainha num golpe
incisivo e forte. Desceram, e então vi que ele tinha um pé inchado
em chinelo.

Pus-me a traduzir, pelo resto da viagem, os sons da campainha.

As vibrações indicam o sexo, a idade aproximada e o temperamento
de quem as faz retinir. Há campainhadas tímidas, indecisas,
distraídas, discretas, nervosas, indolentes, autoritárias, coléricas.

Umas previnem, refletidas, o motorista, a quase uma quadra de distância,
declarando, calmas e incisivas: "Pare aí adiante; olhe que está
avisado!" Outras exprimem certa dúvida: "Deverei saltar aqui?…
Será aqui mesmo o ponto que me convém?…" Outras enfim,
após tantas, deixam transparecer a surpresa de um apalermado que de
repente se achou no ponto de parada sem ter dado por isso: "Oh, diabo,
cá estou; pára aí!" A linguagem das campainhas pode,
porém, exprimir coisas ainda menos triviais.

Outro dia, vinha um passageiro novato no bairro, que mandou parar em certo
ponto, e não desceu: tinha-se enganado. Ressoou surdamente a campainha,
acionada pelo condutor, um português muito plantado em si mesmo: "Bom,
vamos embora." Duas esquinas adiante, o homem dá nova ordem de
parada, e ainda não desce: tinha-se enganado outra vez. Então,
a correia da campainha fuzilou nos ganchos como uma chicotada, e o metal retiniu
com tal expressão, que se entendeu perfeitamente: "Roda!. .. Raios
o parta!" Há um conto de Gautier O Ninho de Rouxinol, onde figuram
umas jovens estranhas, que unicamente comunicam com o mundo por meio dos sons.
Todo o universo, para elas, se traduz em música, e só em música
elas traduzem o que sentem e pensam.

Realmente, não há nada que não se possa resolver em
música, e é lícito conceber-se um mundo em que fosse
essa a linguagem universal das coisas e das almas. Sem irmos, porém,
às alturas da imaginação, é fácil reconhecer
que tudo trivialmente, em redor de nós, se manifesta por sonoridades,
ruídos e silêncios.

Sabe disso toda a gente que dispõe da integridade do seu aparelho
auditivo. O que pouca gente sabe é como se podem obter impressões
novas, surpreendentes e divertidas das coisas e das almas que nos rodeiam,
– apenas aplicando o ouvido à sondagem e interpretação
dos sons.

Nós vivemos pelos olhos. A estes confiamos quase exclusivamente a
missão de observadores e testemunhas. O sentido auditivo reduzimo-lo
quase a um simples papel de serviçal obediente às determinações
da vontade. Vemos tudo, mas só ouvimos o que queremos. É incrível
a capacidade de que dispomos para eliminar as impressões do ouvido,
no meio do rumor infernal das ruas, do bruaá de um café regurgitante
de palradores.

Ainda hei de escrever um artigo sério para um jornal sério,
um artigo científico, cheio de termos técnicos como um queijo
cheio de saltões, a propugnar a educação e a aplicação
mais racionais das faculdades auditivas. Quantos afluxos de sensações
sistematicamente rejeitados, e que poderiam ser tão úteis á
inteligência, e úteis à própria defesa do indivíduo!
E depois, se a moda pegasse, se começássemos todos a fazer um
uso mais consciente, mais constante e mais largo desse aparelho receptor,
seria impossível que um grande número de cidadãos não
se insurgissem afinal, indignados, exigentes, furiosos, contra a pandemônica,
vertiginosa e martirizante barulheira da cidade, contra este caos sonoro que
nos engole e nos aniquila.

PALAVRAS CRUZADAS Veio à minha frente, ontem à tarde, um passageiro
engolfado num sobretudo enorme e num largo jogo de palavras cruzadas. Espiei
um pouco por cima, o homem percebeu o meu movimento, voltou-se, reconheci-o:
era o meu ex-vizinho Eulálio Peixoto, professor de Matemática
e de conformidade.

– "Pois até você, Peixoto!" – "É para
você ver, Felício. Mas quem pode resistir! Todo o mundo vive
às voltas com isto. Ainda hoje vi uma senhora, com um livro aberto,
no bonde, dentro do livro ia um retalho de papel – era o jogo. Tenho um conhecido
que traz o seu dentro do chapéu. Outros o carregam na carteira e em
qualquer momento de descanso, no bonde, no café, na esquina, lá
se põem a decifrar.

Curioso! A que é que você atribui esta mania?" – "Gosto
de quebrar a cabeça".

– "Está enganado. Isso é o que menos influi no caso.
Quantidade desprezível. A vida toda, toda, desde as grandes até
às ínfimas coisas, é um tecido de quebra-cabeças."
"Dirá você que são problemas repulsivos – uns tenebrosos,
como a própria vida em si, outros atenazantes, como o do pão
que se há de comer no mês que vem. Perfeitamente! Mas, nesse
caso, haveria uma infinidade de passatempos deste mesmo gênero à
nossa disposição – os problemas de aritmética e álgebra,
o xadrez, o soneto, as ações humanas, o acróstico…
veja você, o acróstico tão aparentado com isto, e tão
mais interessante! "Não, o prazer do entretenimento é o
que menos influi nesta epidemia. Ele existe, sem dúvida, no fundo de
todos estes exercícios, mas neutro, indiferente à oscilação
e variedade das aplicações." – "Mas, então,
Peixoto, onde é que está o busílis?" – "Eis
aí o grande problema das palavras cruzadas! Esse é que eu gostaria
de ver discutido.

Para mim, provisoriamente, o segredo só tem uma explicação,
uma só: contágio mental.

– "Mas como explicará você o contágio, por sua
vez?" – "É outra questão. O contágio existe,
é evidente, manifesta-se por mil formas. Sempre existiu. A moda nunca
foi outra coisa que um nome diverso desse fenômeno.

O joguinho apareceu um dia, lá na América do Norte, como um
desses mil divertimentos com que os jornais engabelam o público. Ou
porque tivesse uma feição mais atraente, ou porque o jornal
que o inventou fosse de grande circulação, ou porque se anunciassem
prêmios convidativos, a coisa teve êxito, despertou os êmulos
e os imitadores, – e eis a epidemia armada, a alargar-se por toda uma região,
por todo um país, transpondo os mares, saltando em portos distantes,
explodindo em todos grandes centros, voando a todos os recantos do mundo."
"É a própria, a propriíssima curva de todas as epidemias
– explicou Peixoto continuando. – Há um primeiro foco, lento, hesitante,
dúbio. Repetem-se os casos, nas vizinhanças. E, à medida
que se repetem, a intensidade sobe. Há um momento de máxima
intensidade e máxima expansão. A epidemia alastra-se.

"Depois, vão-se extinguindo aos poucos os mil focos espalhados,
bambeia a fúria do mal, os casos voltam a ser mais brandos, mais incertos,
e tudo acaba como um incêndio rápido que lambesse e queimasse
todas as folhas e gravetos secos disseminados por um mato verde, morrendo
afinal aos pedaços, por falta de alimento e de vento." Peixoto
fez-me ver em seguida como o contágio mental vai alargando, em todas
as suas formas, o seu campo de expansão.

Em outros tempos que não vão tão longe, cada país
era um campo restrito de ressonâncias, e dentro de cada um desses campos
havia outros, igualmente quase fechados – as classes, as categorias sociais.
Um sapateiro da Idade Média estava muito mais longe de um magistrado,
na mesma cidade, do que hoje um fazendeiro de Mato Grosso se acha de um professor
de Heidelberg.

As modas, outrora, levavam muito mais tempo a ir de Paris à província,
do que, hoje, de Nova York ao Extremo Oriente. Demais, propagavam-se em linha
horizontal – dentro de certas classes; hoje propagam-se tanto no sentido horizontal
como no vertical – entre as gentes colocadas em posição semelhante
e entre as que ocupam qualquer outra posição na escada ascendente
ou descendente.

O contágio, hoje, envolve tudo. Tudo pode transformar-se repentinamente
em mania coletiva.

Outrora, havia epidemias de misticismo, de guerra ou de suicídio
limitadas a certas regiões.

Hoje, toda a vida universal tende a ser uma sucessão de epidemias.
Há epidemias universais de dança, epidemias esportivas, epidemias
de jogo, epidemias políticas, epidemias artísticas, literárias,
epidemias econômicas, epidemias filantrópicas.

Se algum dia houve a ilusão do que os homens fossem capazes de se
deixar guiar pela razão, hoje o mundo inteiro é um só
vasto campo de experiência a provar todos os dias, que os homens agem
sistematicamente à revelia da razão – o que não quer
dizer que uma vez por outra, não possam encontrar-se com ela, por acaso.
Quanto mais se civilizam, mais imitam e copiam. Quanto mais prezam a individualidade
mais a perdem. Quanto mais amam o novo e o original, mais feitos "em
série" parecem.

Os motivos de ação vão-se tornando, cada vez mais,
efeitos de sugestão coletiva.

Os Estados Unidos, que se diriam a terra por excelência do individualismo
violento, são na verdade a terra por excelência da socialização
absorvente. O que dá a aparência da liberdade é a franqueza
exterior dos movimentos. Pura aparência. Não há nada que
pareça tão "livre" como as peças ativas de
um tear moderno, a trabalharem silenciosamente, como por si, como uma espécie
de alacridade serena e de inabalável consciência do dever.

Na realidade, o homem por lá não tem a mínima liberdade,
no sentido clássico, estóico, de liberdade interior, fundamental,
soberana; inviolável – aquela que Emerson por lá mesmo exaltava.
É sempre homem de um partido, de uma igreja de um clube, de uma corrente,
– um dos caracteres de que se compõem as palavras de um pensamento
coletivo, para ele proveitoso mas indecifrável.

Formidáveis, naquela terra, o volume e a rapidez dos movimentos de
opinião ou sensibilidade, isto é, de contágio mental.
São turbilhões que passam levantando fiumanas de almas como
folhas secas. Estes movimentos tanto podem dar-se a propósito de bebidas,
como de um match de box; de uma eleição, como de uma nova dança
de negros; de um escândalo teatral como de uma doutrina religiosa Enfim,
o indivíduo vai sendo empastado na comunidade e arrastado nas convulsões
obscuras das forças elementares que a percorrem e remexem.

Este o pendor contemporâneo da civilização. Este o seu
perigo mais tétrico. Ela tende cada vez mais a absorver as personalidades,
como um organismo em jejum forçado tende a alimentar-se às suas
próprias expensas, esgotando os seus elementos vitais, esgotando-se…

Chegado a este ponto, Eulálio interrompeu-se por que me achou distraído.
Na verdade, a minha aparente distração estava apenas em que
eu lhe bebia as palavras, e as memorizava.

Mas ele tinha a sua razão de me estranhar o silêncio e a imobilidade;
porque a boa educação manda que, nas conversas, se dêem
todas as atenções à pessoa que fala, e nenhuma ao que
ela fala.

PASSEIO DOMINICAL Hoje, domingo, quando cheguei ao meu posto de espera,
por volta de meio-dia, lá estava, em fila, uma família pobre.

Era visível que tinham destinado o dia para passeio e que esse passeio
era para eles um acontecimento. Respiravam timidamente a frescura das impressões
novas.

O chefe, homem de meia-idade, ia frouxamente embrulhado num terno de brim
pardo reluzente do ferro de engomar e onde mal se dissimulava uma carta topográfica
de remendos e serziduras. O chapéu mole, puído e bambo tinha
sido cuidadosamente armado sobre os cabelos crescidos, repuxados a pente para
trás das orelhas, onde formavam caracóis. A camisa era limpa,
e um sorriso satisfeito, que se diria igualmente lavado com sabão de
cinza, ao jorro da torneira sobre a tina, se lhe abria na cara tostada, como
uma toalha a corar ao sol.

Pois filhos buliçosos, entre os seis e os dez anos, enfarpelados
à marinheira, com grandes colarinhos deitados, por cuja abertura se
estripavam altos laçarotes de fita escocesa. Tinham chapéus
de palha amarela com cintas atuis, nos quais se liam nomes de navios de guerra:
"Aquidabá", "Timbira", em letras douradas. Traziam
bengalinhas, demasiado compridas e pareciam mais atrapalhar-se do que divertir-se
com esse luxo desacostumado.

A mãe, maciça no seu largo vestido de lãzinha cor chocolate,
os cabelos repartidos em duas asas negras e lisas, apanhados numa rodilha
farta sobre a nuca morena. Estava alegre como os outros, mas de uma alegria
meio assustada, – talvez acanhamento do vestido novo, dos sapatos novos, do
penteado que lhe repuxava a pele da testa.

Quando o bonde chegou, os pequenos treparam desajeitadamente, agarrando-se
ao carro com as mãos ambas e foram colocar-se nas extremidades fronteiras
dos dois primeiros bancos, a garantir os postos de observação.

A mãe entrou com eles, arrastando um pela blusa, empurrando outro
pelo traseiro e sentou-se ao pé dos dois, ralhando em voz baixa, como
se estivessem num lugar de respeito.

O pai mais senhor de si, aboletou-se a pouca distância, inspecionando
tudo com um semblante meio severo meio condescendente.

Depois, todos entraram a rir e palrar. Todos se viravam para um e outro
lado, a olhar os prédios, as perspectivas das ruas, as massas retangulares
dos edifícios alteados ao longe, os automóveis que passavam.
Divertiu-os muito um caminhão cheio de futebolistas seminus e gritadores.
Também acharam bastante graça num velho de barbas bíblicas,
que trazia na mão uma espécie de árvore, de folhagem
toda florida de papaventos vermelhos, amarelos e azuis. E os papaventos giravam
e zumbiam como um enxame assanhado.

O estridor das rodas do bonde nas curvas mal engraxadas foi ponto de partida
de uma rivalidade entre os dois pequenos, cada qual mais empenhado em imitá-lo
com a boca. A mãe ria-se, tapando os dentes com a mão, relanceando
os olhos desconfiados pela circunvizinhança.

Quando o condutor marcava as passagens, os peque-nos queriam saber como
era aquilo, porque era, e o pai dava-lhes explicações fantasiosas
que eram ocasião de teimas e risos.

Enfim, como aquela família se divertia! Ao chegarmos à cidade,
saltaram para ir ver as vitrinas e, de certo, para ir a algum botequim tomar
café-com-leite e comer cavacas e pães-de-ló – um festim
delicioso.

Respiravam tranqüilidade e alegria. A alma boiava-lhes numa descuidosa
satisfação de filhos amados da felicidade e do candor.

Passear de bonde, andar pela cidade, ver a gente, ver as vitrinas, tomar
café-com-leite num botequim grande, cheio de espelhos, em chávenas
de louça brilhante, – que recreio, que consolo, que temeridade jovial
e dissipadora! Nunca tenho inveja a ninguém, e aos felizes da felicidade
exterior, ainda menos que a ninguém.

Mas diante dessa família, tive uma espécie de inveja.

Pobre alma escalavrada e enfastiada, para quem tudo quanto divertia aquela
gente era vago e distante como tudo quanto é muito próximo e
muito visto, senti em certo momento uma impressão angustiosa – a impressão
que teria alguém, de repente, apalpando-se, de que metade si mesmo
já era coisa morta.

RUFINA Encontrei no bonde um homem parecido com o Coronel Ferrão,
o ex-protetor de Rufina- Augusta. Esta surgiu imediatamente ao seu lado, acomodando
os vestidos, sorrindo e lançando sobre mim aquele seu olhar magnético
através daqueles cílios de treva, com uma ………………………………………….
dolcezza che intender non la può chi non la prova.

Claro que era uma aparição imaginária. Mas não
me impedia que ficasse olhando para o lugar onde colocara a moça e
lhe dirigisse a esta um longo e confuso improviso.

"Quem és tu? De onde vens? Que fazes? Como vives?… – Na verdade,
nada disso me interessa muito. Afinal de contas, nada tenho contigo."
"O que me interessou desde logo em ti foi apenas a tua figura. Apareceu-me
de repente, no meio da vulgaridade fosca das coisas, como uma obra-de-arte
perdida num subterrâneo na qual batesse de repente o jorro de uma lanterna
furta-fogo." "Era-me tão indiferente saber quem fosse a pessoa
que havia dentro dessa figura, ou mesmo se havia uma pessoa, como seria indiferente,
diante da graça de uma vela branca no mar azul, saber de onde vinha,
para onde ia, se levava a bordo uma princesa errante ou um ogre sinistro.

Contudo, não me esqueci mais de ti.

Tu me entraste na alma como um farrapo que a ventania atira por uma porta
descuidosamente aberta.

A porta de minha alma profunda estava aberta naquela hora. E eu fiz como
a mulher pobre que, tendo achado em sua casa um farrapo de escumilha brilhante,
trazido pelo vento, não tivesse ânimo de o varrer com o cisco,
o levantasse e o prendesse à parede, entre um caco de espelho e um
cromo descorado.

És talvez um episódio horoscópico da minha vida, posto
de reserva pelo Destino para ser lançado, certo dia na desfilada heteróclita
dos casos da minha biografiazinha. privada.

Como que havia em mim um lugar vago à tua espera. Vieste, caíste
no lugar justo, e aí estás, fixa e luminosa como uma pedra fina
que, por maravilha do acaso, saltando, perdida, viesse cair justamente no
engaste vazio de um velho anel.

Devias fatalmente aparecer-me em determinada hora, como aparece a forma
exata e exteriorizada de um pensamento flutuante, longamente entrevisto, longamente
resolvido no espírito.

Eras um motivo que faltava ao magro concerto da minha vida consciente e
que aí havia de surgir, deliciosa serpe melódica a ondular e
faiscar num relvado de ritmos obtusos.

A música interior tem hoje uma dolência menos remota, um gemido
menos vago, uma ânsia interrogativa mais profunda, uma angústia
menos aérea e mais humana.

Por que me apareceste? Por que me agradaste? Por que não te pude
falar? Por que me foges sem o querer, e por que te evito, procurando-te? E
por que vim a conhecer da tua vida, ó coisa graciosa e fugente, apenas
o aspecto sombrio e grosseiro? Por que não me reapareces, para me confiar
a tua história risonha e dolorosa, a celeste e bestial realidade do
teu destino, a lama e a chama da tua alma, ó gentil, ó brilhante,
ó miserável borboleta do brejo? Mas a tua vida não me
interessa, na verdade. Que é que eu tenho contigo, que é que
tens tu comigo? Vimo-nos duas vezes. Será uma razão para que
te deva agora ver sempre? Tanta coisa bela e passageira como tu, bela passageira
de bonde, tem encantado os meus olhos por uma vez necessariamente única
– uma nuvem, um pássaro, uma hora de sol, um certo sorriso da felicidade
que se perdeu por ser achado!" Tudo isto era dito com os meus botões.
Mas, de repente, o homem que se parecia com o coronel me encarou formalizado:
– "O senhor está estranhando alguma coisa na minha pessoa?"
Olhei para o homem que se parecia com o coronel e respondi, sem saber ao certo
o que dizia: – "Desculpe-me, senhor, tenha a bondade de me desculpar.
Eu não o conheço, nem conheço ninguém que se lhe
assemelhe, mas estava vendo se o senhor não seria uma outra pessoa."
O homem deu-se por satisfeito com a explicação.

CAMELÔ Viajei ontem ao lado de um camelô, ou seja aquilo que
outrora se chamava um bufarinheiro ou charlatão. Hoje, esta última
palavra designa categorias mais ilustres de artistas da patranha; era preciso
um vocábulo novo, que evitasse confusões; a lei de repartição
de Bréal.

Pus-me a observar os gestos e as expressões do meu companheiro de
viagem, como outros examinam, fascinados, os homens eminentes em certos ramos
clássicos de atividade ou de inatividade superior.

Modesto e simples não parecia sequer sonhar que pudesse merecer a
curiosidade e admiração de um seu semelhante (aliás muito
diverso, no meu caso). Por vezes, até se esquecia de si, e ficava para
ali murcho, com esse ar aparvalhado e desarmado que só costumam ter,
em público, bem familiarizadas com a idéia da sua nenhuma importância.

Ia muito sumido no seu canto, fumando maquinalmente um cigarro meio apagado.
Talvez premido por dentro, como por um parafuso, por alguma preocupação
de família, ou de dinheiro, ou de saúde.

A certo momento, saltou, enfiou as mãos nos bolsos das calças
– uma aragem áspera começara a dar tremuras de sezões
às árvores da rua – baixou a cabeça e entrou apressadamente
por uma viela, deserta e feia como um pátio de cortiço em dia
de chuva.

O camelô, misto de artista, de orador, de pelotiqueiro e de meneur.
A multidão, sempre bestial, despreza-o. E ele é que realmente
sabe desprezar a multidão, porque a domina, a maneja, a desfruta, e
para tanto tem de a enfrentar, cada dia, como um domador de olho vivo e de
decisões fulmíneas.

Este exercício requer mais inteligência, mais sangue-frio e
mais intrepidez do que aqueles que são consumidos por toda a roda de
basbaques que se divertem com esse retalhista do heroísmo.

O camelô não é negociante; é um homem que negocia
por acidente. A venda de coisas é mero pretexto, no fundo, ou mero
ponto de apoio exterior, de que a sua complexa personalidade necessita para
funcionar. Difere do comerciante normal em aspectos essenciais, e a vantagem
estética é toda sua: faz do comércio um simples ganha-pão,
e não um sistema de vida; é senhor absoluto da sua atividade
e não escravo de uma atividade coletiva que o supere e o inclua como
uma peça; não tira do comércio nenhuma importância
pessoal, mas, ao contrário, ele é que condescende em dar ao
comércio umas sobras da sua rica provisão de coragem, de inventiva,
de facúndia, de dons capciosos e sedutores, e em sacrificar-lhe um
pouco do seu nobre instinto de independência e de travessura.

O camelô tem consigo uma dose de força intrínseca ou
um grão de bravura que falece aos da imensa turba do encostamento mútuo.

Estes procuram e arranjam a sua casa no plano das atividades normais e respeitáveis,
e gozam, com um mínimo de originalidade e energia própria, ou
mesmo sem nenhuma energia nem sombra de originalidade, os benefícios
mais ou menos previstos e mais ou menos automáticos da organização.
Aquele, porém, na sua pequeneza e na sua modéstia, cada dia
sai de casa para o mundo como pela primeira vez. Sai completamente só,
quase inerme sem a armadura dos mais, sem os guarda-costas dos mais, sem boas
e fortes armas de combate, – só, quase nu, com uma funda na mão,
como o pastorzinho Davi quando partiu em busca do membrudo Golias.

Sai escoteiro e ignorado, sem rumor de ferros, sem estropear de cavalos,
sem alalis de trompa, sem atitudes nem gestos, à caça de vagas
migalhas de um tesouro possível, escondido sob a guarda de um bicho-manjaléu
com milhares de cabeças.

Isto é quase a reprodução, aí na rua, entre
gentes frívolas e sensatas sob os olhos frios dos passantes colocados
e tranqüilos, das façanhas ilustres do ágil e gracioso
Sigurd quando venceu os anões e prostou o dragão Fúfnir.

Nós vivemos na plena teia dos mitos e das lendas, e não damos
por isso. Perdemos o sentido poético das situações.

UM GRANDE EGOÍSTA O meu amigo Heráclides, de ordinário
benevolente, ia ontem azedo, no bonde. Observava exemplos de aspereza e grosseria
de maneiras, aos quais via um sinal meteórico de barbarização,
uma prova da decadência do senso de humanidade, que outrora a religião
alumiava ainda nos mais incultos.

Heráclides apontou-me, sucessivamente, um passageiro que deixara
de ceder lugar a uma senhora, apesar dos olhos compridos que ela deitava para
o seu lado; um menor que se desarticulava no banco, como uma letra gótica,
e soltava grossas baforadas de fumo na cara dos vizinhos; um cidadão
bem trajado que disse dois desaforos ferinos ao condutor porque este se atrapalhara
numa questão de troco, e um homem gordo, escarrapachado como uma foca,
as perninhas roliças largamente jogadas para os lados, a direita a
premir uma pobre moça, a esquerda, a bater no joelho de um velho magro,
que fazia horríveis esforços por ocupar apenas a metade do espaço
a que tinha direito e que lhe era necessário.

– "Veja, Trancoso, veja: todo esse pessoal tem, no fundo da alma, um
desprezo absoluto pelo bicho homem, uma indisposição latente
e injuriosa contra o gênero humano em massa." – "Heráclides,
estas pequenas coisas não têm a importância que você
lhes quer dar." – "Não têm importância? Então
você acha que nada significa, nada, aquilo que aflora à periferia
das personalidades, normalmente, ordinariamente, como o efeito imediato e
espontâneo de uma fermentação? Então, se essa gente
que ai vai tivesse outro fundo, esse fundo estaria a borbulhar cá fora
dessa maneira? Deite dois dedos de açúcar puro num copo, encha
o copo de água; que é que vem à superfície? gases
sulfúricos? fragmentos microscópicos de potassa? traços
de ácido prússico? bavas de sal de azedas?" Curvei a cabeça,
como quem cedia por ceder, para não discutir. Mas, no fundo, cedia
completamente. Entretanto, não convém encorajar nos outros essas
inclinações à clarividência.

Nada tão inútil nem tão deletério como enxergar
demais.

Heráclides calou-se, com os olhos perdidos no filme que se desenrolava
por fora do bonde.

Depois de uns minutos de silêncio, disse-me: – " Quero-lhe fazer
um convite. Você não gostaria de entrar para o Clube dos Egoístas?"
– E antes que eu pedisse explicação: "O Clube dos Egoístas,
um grupo que fundamos, eu o Gabriel, o Tomasinho, o Tinoco, ali no fundo do
bar Kauffman. Reunimo-nos todas as noites para conversar, ou para não
conversar, apenas para beber o nosso chope. Só se exigem duas condições:
cada um paga a sua despesa, e deve ser um indivíduo sem espécie
alguma de generosidade." – "Que extravagância? Então
pode entrar toda a gente." "Está enganado, redondissimamente
enganado. Pois não vê que este mundo anda cheio de indivíduos
que se sacrificam pelo próximo? pelo bem da Pátria? prosperidade
da lavoura? pela educação nacional? Pelo futuro da indústria
petrolífera ? pela religião? pela família? pela humanidade?
Não vê como pululam, como se embatem, como fervem as manifestações
de caridade, as obras pias, os organismos de previdência e auxílio
mútuo, as campanhas contra a doença, a ignorância e o
vício? Não percebe como há uma infinidade de pessoas
feramente devotadas a todas as nobres causas? Pois, bem. Nós não
nos preocupamos com essas causas: só nos preocupamos conosco mesmos.
Só. Absolutamente só. Então, sucede que a nossa prosa,
lá no bar, à noite, é deliciosa.

Cada um de nós é um poço de desencanto. Mas esse desencanto
é um encanto. Tocamos com o dedo todas as misérias da hipocrisia
e da mistificação. Intensificamos danadamente, com a nossa vida
interior, a acuidade nevrálgica da nossa visão dos homens e
dos acontecimentos.

Despojamo-nos de tudo que é vestimenta de idéias feitas, de
preconceitos recebidos, de concepções correntes, de inclinações
bem vistas. Somos homens diante de homens; homens, só homens, simplesmente,
tristemente, heroicamente homens." – "Mas que é que tem isso
com o caso de que vínhamos tratando?" – "Tem tudo. Tudo.
Essa gente toda que você aí vê é gente que se desumaniza.
É gente que não sabe ser egoísta. São anjos. Toda
ela se move por puros ideais, por santas idéias, por altos princípios,
por desígnios heróicos: batem-se, agitam-se, odeiam-se, caluniam-se,
esgadanhamse por amor à família, por amor à pátria,
por amor à ordem, por amor ao direito, por amor à cultura, por
amor às letras, por amor à civilização e por amor
ao próximo.

Por isso mesmo, nós mesmos os egoístas. Metidos conosco: nem
filantropos, nem patriotas, nem heróis da família, nem paladinos
de coisa alguma. Homens. Apenas homens. Lucidamente, miseravelmente e deliciosamente
homens – livres e naturais como os peixes do fundo do mar.

Eu creio que a humanidade, hoje, não tinha nada melhor para fazer
do que praticar e santificar o egoísmo – Você quer entrar para
a tropa?" – "Quem sabe! Depende." Heráclides sorria,
como a dizer: "Este ainda não está preparado", e de
novo mergulhou no silêncio, fumando profundamente um cigarro de palha.
E depois, meio assim como se falasse consigo mesmo: – "O curioso é
que este nosso egoísmo, pelo que vejo, acaba mal." – "Por
que?" – "Porque tende, naturalmente, muito naturalmente, a transformar-se
na coisa mais séria neste mundo: em religião.

As almas descascadas ficam todas tão semelhantes! À atitude
que elas assumem diante da infinita miséria da condição
humana é tão inevitavelmente uma só, de raiz! Uma sede
única de verdade e sinceridade se apodera das gargantas. E um sentimento
entranhando de fraternidade acaba brotando por si mesmo, como o grelo das
batatas.

Nós, insensivelmente, já nos vamos querendo tanto bem uns
aos outros que precisamos de fazer tremendos esforços para não
resvalar na sinistra comédia mundana da amizade e de galantaria! Porque
nós, lá, não pretendemos ser senão irmãos."
UM HOMEM PERFEITO O Sr. João Cesário da Costa é um homem
sólido, solidamente refestelado na vida Tem rendas sofríveis,
uma bela casa, uma saúde de ferro, um genro colocado na pol&iiacute;tica.
Suas ambições nada têm de temerárias nem de atormentadas:
são plácidas; limitam-se, evidentemente, a poupar trabalhos
e amofinações, a garantir e a entreter a aurea mediocritas ou
o otium cum dignitate em que o Sr. Cesário vive desde mocinho.

Conversar com o Sr. Cesário é um exercício que reconforta
e tonifica. A uma ausência absoluta de inquietações pensantes,
reúne um otimismo tranqüilo. Quando alguma opinião, alguma
frase, algum ato equivoco ou complicado cai no domínio de sua percepção,
faz um gesto de quem lhe sentisse o mau cheiro, e afasta-o de si, num pudico
movimento que não admite réplica.

É possível confabular com ele meia hora, uma hora, sem lhe
ouvir outra cousa que considerações sobre o bom e o mau tempo,
sobre a superioridade da roupa preta em relação à de
cor, sobre a melhor maneira de preparar um molho de tomates, ou sobre as inconveniências
de se viajar no estribo do bonde. Fala correntemente, com certa graça
natural, acentuando, recortando, remexendo, saboreando com volúpia
os ínfimos pormenores, como quem chupa os ossinhos de um frango assado.

O Sr. João Cesário faz-me, às vezes, o efeito de uma
boa cadeira de balanço. Quando me sinto fatigado dos meus infindáveis
solilóquios, que nada concluem, entreter um quarto de hora de conversação
com este homem é o mesmo que trocar um cavalo aragano por uma cadeira
fofa e embaladora. Não há senão o trabalho de fazer a
cadeira balançar.

Tive ontem esse prazer. O Sr. João Cesário cumprimentou-me
com a sua habitual bonomia temperada de autoridade: – "Como vai o bom
amigo?" – "Bem, obrigado".

– "Bem mesmo?" – "Assim, assim…" – "Por que?"
– "Nada. Vou bem." – "E a família?" – "Bem."
– "Sua irmã?" – "Agora bem." – "Ah! Esteve
doente?" – "Coisa ligeira." – "Constipação,
de certo." – "Justamente." – "O tempo é disso.
Tudo por aí anda cheio de gripados. Em casa, todos mais ou menos perrengues."
– "Que maçada!" – "Mas não há nenhum caso
sério. Creio que o mais doente ainda sou eu." – "Não
parece." – "As aparências. Tenho uma dorzinha de cabeça
que não para, aqui, entre a fonte e a nunca, passando por cima da orelha,
– vê neste ponto. Mas o pior é que o intestino anda funcionando
meio à matroca, – de tudo, uma sensação de cansaço
pelo corpo todo, essa sensaçãozinha amolante e gostosa de um
corpo que está pedindo cama – ou rede, que é melhor… ah! ah!"
– "E o senhor sai, apesar de tudo?" – "Ah! Não posso
ficar preso – é inútil! – senão em último extremo.
Acredito mesmo que a gripe, conseguindo resistir-se-lhe de pé, vai
embora mais cedo. 8enti-lhe a visita há três dias, sábado.

Sábado à tarde. Disse à minha velha: "Por sua
culpa, estou gripado." Ela ficou passada. "Por minha culpa, Cesário?"
-"Sim, por sua culpa, porque me obrigou, ontem à noite, com aquele
frio, a dar uma grande volta pelo bairro. Coitada, arranjou-me mais que depressa
um escaldapés, uma camisa de flanela, umas meias de lá, um chá,
e esteve a ponto de fazer promessa a Nossa Senhora da Penha. Mas eu exagerava.
Gosto de brincar com a velha; nunca vi criatura mais medrosa, quando se trata
de doenças em casa. Claro que apanhei porque tinha de apanhar…"
– "Não se sabe como é que ela chega" – "Não,
às vezes se sabe. Mas, no meu caso, não foi o tal passeio de
noite. Digo que não foi porque, já antes de mim, o Alfredinho
meu filho sentira a primeira bordoada. Só nos contou isso ontem à
hora do chá. Demais, estou habituado a fazer voltas a pé, de
noite, depois do jantar, quando não chove. É verdade que aquela
noite tinha caído uma garoinha, coisinha de nada, ali pelas sete horas.
Quando saímos às nove, o céu estava limpo como um prato.
E que luar! Fomos até lá ao alto do morro, descemos pela avenida,
passamos pela igreja…" – "Sr. Cesário, leu a notícia
daquele crime?" – "Nem fale! Que coisa estúpida! Como se
mata um homem pacato, trabalhador, boa pessoa! Aqui está um caso em
que eu, jurado, não tinha contemplações. Então
é assim? destrói-se um pai de família como quem acaba
com uma cobra à-toa, por umas questõezinhas de nonada?"
– "Havia uma questão de honra, alega o assassino." – "Honra,
honra! Pusesse a mulher para fora de casa." – "Mas, ele amava a
mulher." – "Qual, nada. O seu dever era esse, e nunca matar. Ninguém
pode matar. A vida, quem a dá é Deus, e quem a pode tirar é
só Deus".

– "Mas o senhor garantirá que não foi Deus quem a tirou
à vítima por intermédio do assassino, como a podia tirar
por meio do tifo ou do automóvel?" O sr. João Cesário
não respondeu; nem pestanejou sequer. Puxou do lenço de linho,
que trazia dobrado no bolso da direita, escarafunchou as ventas, tornou a
assoar-se, dobrou e guardou o lenço. Em seguida tirou um outro de fina
cambraia, que trazia alequeado no bolsinho de cima, e passou-o pelos lábios
e pelas fossas. Por fim, arrumou-o de novo, calcou-o, e, numa despreocupação
satisfeita: – "Pois é isso".

Pouco adiante, disse-me adeus, esperou o carro parar bem parado, desceu,
voltou-se para mim a fazer uma última cortesia, e partiu, muito apertado
no seu terno azul de risquinhas brancas, sopesando com graça a bengala
de castão de ouro.

E havia em redor dele um halo de perfeição.

Eis aí um homem feliz. Acompanhei-o com um olhar de inveja, enquanto
pude; mas acabei por me resignar. Coisas que não se aprendem, não
se adquirem. Que fazer? Limitarmo-nos a admirar.

Este indivíduo, como tantos outros aparentemente insignificantes,
é uma verdadeira maravilha da humanidade. Que assombrosa obra de inteligência
e de técnica magistral, a composição deste mecanismo
físico-psíquico, tão perfeitamente adaptado a todas as
condições médias de uma navegabilidade tranqüila!
Foi, sem dúvida, fabricado após uma série imensa de provas
e após uma colheita e apreciação rigorosa de milhares
de dados experimentais. Diga quem o quiser que é mero produto das forças
inconscientes da natureza".

DE AMICITIA Ia eu muito macambúzio, no meu banco de trás,
e nem sabia porque.

Lembro-me de que, em casa, quando me aprontava para sair me havia irritado
por causa de uns incidentes minúsculos. Ao vestir o colete, o relógio
caíra-me do bolso, e ficara suspenso pela cadeia; e algumas moedas
que estavam no outro bolsinho despencaram para o soalho, rolando em todas
as direções, como expressamente para me fugir. Quando eu passava
a escova pelo chapéu, ela deixara pegada à copa uma lanugem
de felpas impalpáveis, de seda ou de algodão, que tive de extrair
à unha, uma por uma.

Saí quase a correr, e o casaco se me enganchou pelo bolso à
maçaneta da porta. Libertei-me, empurrei a porta com um safanão,
e ela, voltando, soltou um relincho tão triste, que me senti subitamente
envergonhado da minha estúpida impaciência.

Que covardia e que ingratidão ser bruto com as coisas! É preciso,
ao contrário, amá-las, no recanto em que vivemos, como as boas
protetoras e inalteráveis amigas. O aspecto ordenado, limpo, benévolo
e tácito dos objetos que me rodeiam, no meu quarto, parece refletir
às vezes algo que não é bem deste mundo: um ambiente
de estampa, uma atmosfera de história, um casulo de intimidades intangíveis,
uma ilusão de permanência e de espiritualidade – enfim, um sonho,
uma doçura, um perfume.

Ao tomar o bonde, porém, já eu pensava em coisas muito diversas
daqueles incidentes. De modo que não sei porque fiz metade da viagem
tão sombrio, a olhar para o mundo com uma espécie de terror
inerte. A estupidez e o mal da vida se me revelavam com a evidência
de um acidente brutal, como um sinistro imenso que se acabasse de produzir,
ali, de repente, sob meus olhos.

"Hei de consumir os anos que me restam, como tantos que já passaram,
a fazer duas e quatro vezes por dia este mesmo trajeto, a percorrer estas
mesmas ruas, estas mesmas esquinas, estes mesmos postes, entre as mesmas caras,
as eternas caras indiferentes insidiosas, malignas, sornas, fátuas,
soberbas, hostis.

Hei de ir todos os dias à repartição, ver a cara regulamentar
do chefe, ver as caras dos meus cinco ou seis auxiliares, uma tola outra escarninha,
outra fútil e finória, outra bovinamente resignada e mortiça.
E não hei de topar muitas vezes na minha frente com alguma cara aberta
e sincera, alguma cara iluminada e boa, desfranzida e cordial, que me olhe
firme e de chapa com uns olhos direitos e claros como duas espadas, límpidos
e quentes como duas chamas.

Meu Deus, como pude viver até hoje deste jeito! Meu Deus como é
que hei de viver ainda, sabei-me lá até quando, nesta triturante
estupidez e nesta abjeção ignominiosa! Matai-me, senhor, matai-me
logo. Ou então, dai-me uma sorte na loteria, que me permita sair por
esse mundo, sem cuidados, livre, errante, como o homem que perdeu a sombra,
durante os primeiros momentos de sua peregrinação." Ia
engolfado nestes pensamentos amarelos, quando subiu e veio sentar-se a meu
lado o Aurélio de Moura. Cumprimentou-me com afabilidade mais larga
do que a habitual. Acolhi-o com prônubos alvoroços.

Auré1io perguntou-me solícito pelas minhas coisas, passando-me
o braço pelo ombro, com um sorriso de páscoa. Deixei-me abraçar,
comovidamente, e conversamos.

Este rapaz é dos que parecem apostados a pensar, no miúdo
e no grosso, de modo radicalmente diverso do meu; mas esta circunstância,
que em outras ocasiões me quizilava, então se me tornou mais
um motivo de satisfação, como um bom molho ajuntado a um prato
já de si excelente. Concedi tudo a Aurélio, pelo prazer de o
ver trabalhar em liberdade. As coisas vulgares e as coisas estrambóticas
que ele dizia, tudo me soava uma doce música.

"Fala, Aurélio! fala, fala tudo quanto quiseres. Agrada-me pensar
que é para mim só que tu falas, que o teu espírito veio
verter no meu a espuma generosa do seu mosto vivo – uma forma de confidência
sem gravidade e sem segredo, mas indiretamente complexa e escancarada.

Fala Aurélio! Achas que os postes de fios elétricos deviam
ser pintados de escarlate? Muito bem. Achas que o Brasil precisa urgentemente
ser invadido pelo argentarismo estrangeiro, que é necessário
matar todos os leprosos e que as mulheres não devem mais aprender a
ler nem escrever? Continua, Aurélio; tens razão, porque me divertes
e porque confias na minha tolerância. Continua sempre. Pensas que a
música é a mais insignificante das artes e que a poesia deverá
ser proibida por decreto? Fala, fala….

A mim tu tens a coragem de dizer tudo, e isto significa que tu avalias afetuosamente
a minha capacidade de ouvir todos os destampatórios honestos e de levar
a sério todas as tolices sinceras. Com efeito, nada mais interessante
do que uma opinião, essa coisa rara, essa coisa inútil e preciosa.

Mas, na verdade, o que ora mais me interessa não são as tuas
opiniões, é o fato de mas expores nessa confiança tranqüila
e ridente, sem reservas e sem receios, à sombra da frondosa Amizade,
– a bela, a santa, a benéfica Amizade, o único dom dos deuses
desmemoriados, que nunca mais se lembrariam de nós, os pobres humanos,
ou que, tendo-no-la dado, entenderam ter-nos feito a maior oferta compatível
com o nosso egoísmo e a nossa ruindade".

Entrementes, Aurélio discorria. Asseverava, por último, que
higiene pública é apenas o negócio dos médicos
higienistas e dos fabricantes de aparelhos higiênicos.

– "Sim, talvez tenhas razão".

– "Bem, eu salto aqui, seu Felício. Mais uma vez, obrigado pela
passagem".

Eu tinha-lhe pago a passagem.

"Ora, ora!" – "Não você nem sabe que favor me
fez. Saí de casa sem um níquel. Mas, quando vi você neste
bonde, lá da esquina da alameda, disse cá comigo, estou garantido.
E eis aí por que você teve de me aturar todo esse tempo! Como
sabe, esta linha não é a que mais me convém. Mas quem
não tem cão… Obrigadinho. Ciao!".

– "Té logo, Aurélio…" PROBLEMAS Hoje, o bonde
vinha cheio, e tive de ceder o meu lugar a uma senhora. Esta, ao invés
de me agradecer, parece que ficou ligeiramente arrufada com a minha gentileza.

Creio que a ética do bonde manda que, ao ceder o lugar, o passageiro
não dê a isso a mais ligeira aparência de um ato de cortesia
faça-o friamente, como por uma obrigação regulamentar.

Deve ser isso.

Mas será? Eis aí um dos inumeráveis problemas psicológicos
que o bonde depara. O bonde é um saco de víspora: é só
meter a mão, remexer, pegar, lá vem o problema psicológico.

Infelizmente, esses problemas vão ficando cada vez mais obscuros,
à medida que cresce o número dos psicologistas, número
infinito, hoje em dia, só comparável ao dos sociólogos.
Se o futuro do Brasil dependesse da psicologia da sociologia, estava garantido;
e só nos restava lamentar que não pudéssemos viver mais
uns cinqüenta ou cem anos, para assistir ao grande fogo de vistas dos
resultados. Estupenda coisa a ciência! Há dias, vi o Sr. João
Cesário a conversar atentamente com um mocinho sisudo e altivo. Este
falava em coisas difíceis: mentalidade primitiva – formação
alógena – metabolismo racial – camadas de aluvião – idealismo
hipocondríaco – teorias de Comte e Spencer – obras de Le Play, Fouillet,
Tarde, Novicow, Pareto, memórias de Schwaartzemberg e Perikowski, de
Astrinaieffe e Dragobsen. De repente, despediu-se e desapareceu veloz, como
uma motocicleta.

Corria, provavelmente, a endireitar algum erro perigoso de técnica
social, que estivesse para desabar sobre nós. Digno bombeiro da Ciência!
Neste ínterim, perguntei assombrado ao Sr. Cesário: – "Quem
é este menino? Que sábio!" – "Nem tanto. Muito estudioso,
isso sim. Especializou-se – não sabe? É apenas sociólogo".

Senti-me absolutamente acalcanhando com ver um menino que, ainda longe dos
trinta anos já havia conseguido ser um sociólogo, apenas. Senti
necessidade de esquecer aquilo.

Montesquieu disse que não havia aborrecimentos que não lhe
passassem com meia hora de leitura. Não sei se isto provará
a virtude da leitura ou antes de Montesquieu. A mim, muitos aborrecimentos
me desaparecem com a decifração de problemas ou com jogos de
paciência.

Armei logo uma série de dificuldades através dos miolos, e
depois mergulhei em cogitações para as desmanchar uma por uma.

Foi o que fiz hoje. Não tendo mais em que me ocupar, comecei a extrair
e remexer os problemas que o bonde me oferecia, abundante corno pedreira.

Por que é que os nossos conhecidos sempre nos aparecem nos bancos
de trás à hora da cobrança das passagens? Por que é
que as senhoras apeiam voltadas para o lado traseiro do carro? Por que é
que os condutores, quando recebem as passagens, vêm com cara de cobradores
de contas atrasadas? Por que é que não se pode tirar um lenço
ou abrir uma cigarreira sem despertar a atenção vigilante do
vizinhos? Por que é que, ao contrário, se a gente sofre e tosse
com o fumo de um cigarro alheio isso não é percebido nem pelo
vizinho fumante? Por que é que, quando lemos, há sempre um passageiro
a querer por força descobrir o que vamos lendo? Por que é que
os homens, quando pedem licença para passar, são mais atenciosos
à entrada do que à saída? Por que é que o lavador
de pratos ou o vendedor de bananas trata os condutores como se estes fossem
os trintanários de seus coches? Por que é que o passageiro acha
graça nas grosserias ou desaforos do condutor, desde que não
são com ele? Por que é que, encontrando um amigo distraído
e pagando-lhe a passagem, ele imediatamente nos pergunta como vai a família?
Por que é que só assobiam no bonde indivíduos inteiramente
desprovidos de memória musical? Por que é que, se chove, há
sempre, ao nosso lado ou à nossa frente, um passageiro que não
tolera cortinas arriadas? Por que é que tantas senhoras gordas, não
permitindo que se lhes toque de leve com o dedo, não fazem contudo
nenhuma cerimônia para se amesendar em cima de nossa perna? Por que
é que há tanta comoção no bonde, se este pega
uma galinha, e não há nenhuma por causa do homem enfermo, aleijado
e decrépito que vai no carro? Por que é que os moços
bonitos e os célebres ficam sentados de viés? Por que é
que temos tanta paciência para perder duas horas numa pane difícil
de automóvel, e nenhuma para sofrer dois minutos de parada do bonde
num desvio? Por que é que as senhoras, ao pagar a passagem, custam
tanto a encontrar o dinheiro na bolsa? Por que é que o bonde estimula
em certos indivíduos a vontade de comer amendoim torrado e tremoços?
Por que é que as pessoas mais desocupadas e mais pachorrentas se tomam
de pressa e de nervos quando o bonde vai chegando ao ponto final? Por que
é que nos dói mais termos perdido o nosso bonde do que o ter
um amigo perdido o trem – ou mesmo uma perna? ESCOTEIRO Ainda revejo nitidamente
aquele escoteirinho que entrou hoje no bonde pela mão do venerando
papai. Um feixinho de ossos, olhos brancos, lábio pendente, postura
curva e bamba de aluno de catecismo. Retrato ideal do menino dócil
e bem comportado.

Se o inflexível progenitor lhe falava, respondia com respeitoso sorriso,
sorriso frágil e distante, virando para a cara fiscalizadora uns olhos
de animalzinho perfeitamente domesticado.

O pai, sem dúvida, muito satisfeito com esse rebento esperançoso,
tão automático na obediência e na penúria de vida.
O pequeno chamava-lhe papai. Coitadinho! Devia chamar-lhe progenitor.

Progenitor é o nome que na verdade calha a esta espécie de
autores de vidas alheias.

Impiedosamente solícitos, eles parasitam as suas misérrimas
criaturas. Polvos agarrantes, colantes e triturantes, abusam do direito de
ser senhores de almas. Estão cheios da crença surda de que o
melhor que podem fazer a seus filhos é formá-los à sua
semelhança.

Parecem orgulhosos de ter mudado o empirismo da paternidade numa especialização
técnica.

Têm o ar de pais de família diplomados.

Já não lhes bastam as luzes da Pedagogia, da moral, da Religião,
da Medicina, da Gramática e do don’t. Renovas achegas até na
Sociologia. A Psicologia vai-se-lhes impondo como um evangelho (tanto mais
cômodo quanto se pode abrir em qualquer lugar e ler de corrida ou salteado).
Creio que a heráldica e o cálculo integral também têm
que ver com a matéria.

Progenitores! progenitores! homens respeitáveis, sapientes e pendentes,
sagazes e tenazes.

Tenazes sobretudo. Tenazes de ferro! Só lhes falta um pouco de bom
senso e um pouco do senso de humanidade. E apenas perdem o direito a esse
nome simples, vivo, saboroso e místico de pai.

Pai! palavra elementar e profunda irmã de ar, água, pão,
sol, dor, alegria, esperança, coisas fundamentais e essenciais, belas
e terríveis como tudo quanto nos supera, tudo quanto nos vivifica,
nos vê passar, e continua. Palavra de ressonâncias externas, com
barulhos de lágrimas e anseios de amor, de melancolia e de piedade.

Mas também isso tende a desaparecer sob a capa de chumbo do cientificismo,
do tecnicismo e do pedantismo esmiuçador e complicador, pragas que
vão devorando todas as boas coisas deste mundo triste, como aquelas
vacas que devoravam vacas, no sonho do faraó.

Os persas, de há dois mil anos, segundo o testemunho de Heródoto,
não queriam que seus filhos aprendessem nada mais que três coisas:
montar a cavalo, manejar o arco e dizer a verdade. Era um programa completo
de educação individual e geral, utilitária e idealista,
física e psíquica, individual e social.

Montar a cavalo – eis a primeira necessidade. Todos temos de ser cavaleiros,
de guiar uma besta e de nos servir dela. Manejar o arco – arma franca, simples
e forte, ato de habilidade, de sangue frio, de coragem viril e leal, abertamente
praticado à luz do sol, em cima do cavalo. Dizer a verdade – condensação
última e por feita de todos os deveres, dos mais sérios, mais
ásperos, mais agoniantes e esporeantes deveres da vida comum. da atividade
intelectual que quer pairar no alto e ser fecunda, da sublimação
moral que pretende chegar à retidão, à simplicidade e
ao fulgor definitivo.

Mas estas sínteses divinatórias se vão tornando impossíveis.
Tudo é sabença, é técnica, é pedantologia,
é complicação.

Diante daquele pai e daquele filho, fiquei a pensar na sorte das belas idéias
e no irônico destino dos inventores.

O escotismo nasceu do exemplo dado pelos boys sul-africanos na guerra contra
os ingleses.

Ágeis e robustos, trepando às árvores como serelepes,
arrastando-se por chãos e pedregais como lagartixas, varando lagoas
como filhotes de hipopótamos, espertos e pândegos como gorilazinhos,
prudentes como tartarugas, teimosos como porcos do mato, eram ótimos
exploradores e espias de campanha.

Num contato combinado com a áspera natureza e a necessidade multiforme
e imperiosa, ganhavam uma força de paciência, de coragem e de
desprendimento, uma flexibilidade e rapidez de senso prático, uma destreza
de espírito, que, em suma, constituíam uma bela moralidade agreste
e saudável, natural como a respiração ou como as funções
digestivas.

Desconheciam as intemperanças da paz e da praça, o beberete,
o estupefaciente, a literatura desalmada, a gula, o dinheiro, o luxo, o mercantilismo,
a cabotinagem, a intriga, a maledicência, o espirito, o eretismo sentimental
e sexual. Sóbrios, tácitos, incisivos. Da civilização,
só assimilavam a fina flor; da barbárie, a masculinidade sadia,
generosa e jovial.

Um general britânico viu isso, franziu impressionado o sobrolho, curvou
a cabeça, parafusou.

Por que não transplantar essa espontânea florescência
da casualidade viva para os domínios da educação social?
Voltando à Inglaterra, criou o escotismo. Era o remédio indicado
para sanear várias fontes de podridão, que iam minando a fibra
do old Tom.

O mundo todo pegou a fórmula e aplicou-a. Mas, geralmente, a fórmula
só. O eterno prestigio das receitas não podia falhar: a receita
pareceu esplêndida. Bela receita! E a receita voou para todos os cantos
do mundo, como a última descoberta para limpar chapéus de palha,
para curar defluxos ou para compor obras de arte geniais e vendáveis.

O resultado ei-lo aí: uma quantidade de coelhinhos guardanacionalizados;
uma escola de virilidade, de independência, de selfcontrol e de ânimo
benfazejo, mudada numa triste e gélida pedagogia, regular, burocrática,
higiênica, ginástica, homenageativa, sob programazinhos variados
que são sempre a mesma coisa. E tudo comandado a toques de apito, entremeado
de discursos e – supremo horror! – tudo meticulosamente, implacavelmente mecanizado
pela sapiência mensuradora dos técnicos.

Ah! os terríveis técnicos, os tenebrosos técnicos,
iscados até à medula por esse flagelo do século, o tecnicismo
anti-séptico, esterilizador de toda bactéria de entusiasmos
e instintividades turbulentas e regenerativas! Essa, a marcha inevitável
de todas as altas idéias quando descem ao campo da realização,
que é o da degradação. Esse, o irônico destino
que aguarda os sonhos de todos os inventores, concepções luminosas
cujo arcabouço lógico se transmite e se propaga, mas cuja alma
lírica e divinatória permanece no altiplano das possibilidades
incompreendidas.

Esta alma é incomunicável, como a alma do Vesúvio é
estranha aos hábeis artistas que cá por baixo, colhem a lava
resfriada para talhar nela as suas eternas, invariáveis figurinhas.

UM HOMEM PERFEITO Tenho-me encontrado muito com o Sr. Cesário, ultimamente.
O Sr. Cesário, às doses espaçadas e discretas, faz bem.
É desingurgitante, refrescativo, uma coisa assim entre o sal de frutas
e sorvete de copinho. Mas, todos os dias, em todas as viagens, é demais.

Aquilo que, de quando em quando, e por momentos, nos encanta como um livro
novo, folheado a furto, com a continuação se converte num símile
dessas revistas atrasadas e revistas que se nos oferecem na sala de espera
do dentista ou na loja do barbeiro.

Mas tudo tem o seu lado aproveitável. O lado aproveitável
do Sr. Cesário é que ele me dá lições de
estilo, do estilo estabilizado e conspícuo que convém às
relações públicas entre funcionários e pessoas
colocadas. Ele não é, mas devia ser diretor de uma repartição.

Fala como um bom minutador de ofícios. Tem a serena compenetração
de autoridade, o senso das hierarquias, o tato diplomático, o respeito
das fórmulas e a impersonalidade de julgamentos que se requer num chefe
acabado. Por esse aspecto burocrático, o seu contato é útil.
Boa pedra de amolar. O mau é que às vezes amola demais.

Que rico fundo de idéias honestas ele possui! Em poucos dias, assim
como quem não se aplica, durante quinze ou vinte minutos de bonde,
fiz uma boa coleta de opiniões do meu distinto amigo.

O que não lhe faltam são opiniões. O Sr. Cesário
é um homem eminentemente opinativo sem contudo ser opiniático.
Já houve mesmo um indivíduo maldoso, de cujo nome nem me quero
lembrar, que uma vez mo definiu com escarninho intento, nestes termos: "um
filho dileto da Opinião Pública." O Sr. Cesário
sentencia, por exemplo que "tudo nesta vida é questão de
ponto de vista." Afirma, acentuando o tom de convicção,
a corrigir a aparente leveza da frase paradoxal, que "o senso comum é
o que há de menos comum entre os homens". Também costuma
declarar, com um gesto fisionômico de aguda intuição,
que "tudo é relativo".

Acerca de moral, só lhe ouvi por enquanto um conceito genérico
nitidamente formulado: "Inteligência sem caráter é
droga".

Sobre o Além, a vida e a morte, a crença, e assuntos correlatos,
costuma ser mais explícito, provavelmente porque a sua situação
de amigo do vigário da paróquia e de irmão do Santíssimo
lhe tem permitido certa familiaridade com o mistério.

Concede que o Outro Mundo seja coisa duvidosa, mas acha que, em todo caso
não convém brincar. A esperança e o temor que se ligam
ao Além são necessários e são insubstituíveis.

O que lhe repugna é o inferno. Nesse, acredita "porque é
seu dever de católico nato e praticante acatar as injunções
da Igreja". Mas, afinal, o verdadeiro inferno parece que "e aqui
mesmo" – "se bem que não se devam aceitar certos exageros
de pessimismo".

Ontem, o Sr. Cesário saiu-se com esta frase: "Deixe falar, a
religião é um freio, como dizia padre Miguel, meu padrinho."
As suas opiniões sociais e políticas são do mesmo feitio
enxuto e corrente: Todas as formas de governo são boas, desde que haja
honestidade.

O nosso povo não estava preparado para a República.

Governar é uma questão de bom senso e de recursos.

É um grande mal a oposição sistemática.

Cada povo tem o governo que merece; mas nem sempre.

A política de hoje é eminentemente econômica.

A maior das nossas necessidades é a educação, – em
termos.

O brasileiro é muito inteligente, mas indisciplinado e vadio.

Não há questão social no Brasil, pais novo, aberto
a todas as iniciativas.

Somos um povo em formação.

A boa administração depende da estreita harmonia dos poderes.

A mulher deve permanecer no seu posto de rainha do lar.

A esmola deprime e nada adianta.

O empregomania e o bacharelismo são dois males nacionais.

A retórica é outro vício brasileiro.

A dissolução dos costumes caminha a passos de gigante.

O Brasil é uma terra de poetas.

A maior das nossas desgraças é a crise de caráter.

"A lavoura é a coluna mestra do nosso sistema arterial".

Ontem, acertou de falarmos a respeito de literatura, a propósito
de um romance de Macedo, que Cesário me pedira emprestado. Declarou
que não era para ele, mas para a senhora. Não gosta senão
de romances históricos e instrutivos, como os de Júlio Verne
e Vítor Hugo.

Passou a expender idéias sobre outros ramos. Não perde tempo
com poesias, mesmo porque não as entende. Os dramas e tragédias
já não são para os nossos dias; ninguém mais se
resolve a ir ao teatro para ficar triste; e para tristezas bastam as da vida.
O teatro deve ser humorístico e moral.

Os Lusíadas, a seu ver, foram feitos especialmente para exercícios
de análise. A obra pode ser muito boa, mas para quem gosta. De resto,
o Sr. Cesário está convencido de que todos os clássicos,
que aliás nunca leu, são cacetes e intragáveis. Parece
mesmo pensar que eles escreveram expressamente para deixar modelos de boa
linguagem gramatical. E, um destes dias, exclamou com recacho de homem-do-seu-tempo:
"Quais clássicos, quais nada! A língua também evolui,
entendeu?" Acha que a língua italiana é a mais suave, quando
bem pronunciada; mas que a mais útil, na atualidade, é a inglesa.
Quanto à nossa, acredita que seja a mais difícil de todas, a
mais "cheia de dúvidas e encrenquinhas". Pois se o próprio
Rui Barbosa, a "Águia de Haia", levou a vida inteira estudando
português.

O que aí fica é resultado de uma colheita muito irregular,
mas já basta a caracterizar as qualidades fundamentais deste sólido
e harmonioso espírito.

Quanto às expressões, o Sr. Cesário tem todas, todas
quantas se acham consagradas pelo gosto das classes respeitáveis.

Se fosse capaz dos trabalhos seguidos, regulares e minuciosos da Filologia,
eu poderia tomar o meu amigo como um compêndio vivo das filtrações
eruditas e literárias de segunda mão na mentalidade média
da burguesia nacional, e explorá-lo metodicamente. Daria para um belo
estudo de Psicologia Idiomática, cheio de conseqüências
para o literato, para o glotologista, para o educador, e até para o
alienista, – um belo estudo que, sem dúvida, não seria lido
senão pelos indivíduos que a Providência destacasse para
lhe meterem a lenha.

As expressões frias do Sr. Cesário são algo de suculento
e de opíparo. Algumas, as menos repolhudas, as meãs, ele as
profere com plena serenidade. Mas como aprecia igualmente as mais pomposas,
sempre arranja lá um jeitinho de as empregar, soltando-as com um certo
ar brincalhão ou irônico, que lhe dá por vezes o aspecto
original de um homem que acha graça nas crepitações do
próprio pensamento.

Já lhe apanhei, não há muito, sem lhe mexer nas molas,
referências às "trevas da ignorância", ao "santuário
do lar", ao "punhal da calúnia", à "máscara
do anonimato" e ao "dédalo das paixões". Foi
um dia em que estava impressionado com a onda de crimes, suicídios
e poucavergonhas que por aí vai "num crescendo assustador".
Falava com tal abundância e tal veemência, que cheguei quase a
desconfiar que me tivesse na conta de um dos responsáveis.

De uns dias para cá, tenho subitamente guiado o fio e dado o tom
à conversação, e o Sr.

Cesário se desata em chuveiros de preciosidades.

A propósito de política, lançou zargunchadas certeiras
aos "eternos descontentes", que "vivem a semear a cizânia"
com seus "cantos de sereia". Mas também, por um estríqueto
"dever de imparcialidade", não podia deixar de "verberar
o impatriotismo de certos homens colocados no galarim, que transformam em
vacas de leite os postos de sacrifício a eles confiados pelo povo,
a eterna besta de carga".

Terminou resumindo-se numa sentida peroração: "Enfim,
meu caro amigo! é a tal crise de caráter.

"Mas que quer? Nem a majestade da religião escapa a esse referver
de paixões subalternas! Até no seio das irmandades se intromete
a politicagem rasteira! Até lá, indivíduos sem entranhas
vão pondo a garra, com. pés de lã, e… Homem! paremos
por aqui.

"O tempora!" De onde pude inferir que o Sr. Cesário andava
às voltas com algum desaguisado na paróquia.

A um espírito assim ricamente organizado não podia faltar
um certo aparelho de erudição leve.

Consegui os seguintes indícios, apanhados foneticamente, como convém
a coisas pescadas nas águas vivas da elocução oral: "Laborônia
vince – Cosivá ilmondo – Senon évéro… – Lemondemarche
– Arraite! – Tâimismónei – Savá sandire – Via crúcis
– Tante grácie, cabalhero! – Por mares nunca dantes navegados – Festim
de Baltazar – Ciumento como um Otelo – As trevas da Idade Média – Crueldade
neroniana – Justiça imanente – Psicologia das multidões Os meio
intelectuais – O poverélo de Assis – As lições da sociologia
– A ciência de Ádan-Esmite – O último romântico
– Os tonéis da Danaide – Vá derrétro!" Enfim, grande
caçador de frases perante o Eterno! O BONDE E A RUA O bonde da tarde,
hoje, foi demorado por uma qualquer manifestação popular, que
lhe barrou a passagem. Os viajantes, depois de satisfeita a primeira curiosidade,
obra de segundos, começavam a dar sinais de irritação,
quando um orador entrou a trovejar. Essa obstrução pareceu a
todos insuportável, e todavia não durou mais de cinco ou seis
minutos.

Sempre é verdade que a medida real do tempo é o nosso desejo.

Isto me faz lembrar o meu colega Sinfrônio de Mendonça, que,
outro dia, lá na repartição, ao inaugurar-se o retrato
do chefe, quis à viva força ler um discurso. E leu, prevenindo
os ouvintes: "É curtinho senhores, tenham paciência".

Esta esfarrapada desculpa com que se costumam cobrir os oradores intempestivos
baseia-se toda num passe finório com as noções de tempo
– a do tempo mecânico e objetivo e a do tempo psicológico ou
subjetivo. Quando dizem que a peça é curta, é porque
lhe aplicam a medidarelógio, como se fosse esta a que importasse aos
ouvintes como se não fosse, por exemplo, uma verdade universal que
o pequenino sermão de ouro que nos aborrece é dez ou mil vezes
mais comprido do que a interminável lenga-lenga que nos lisonjeia.

O nosso relógio interior tem também dois mostradores, um grande
e outro pequeno, mas o grande é que dá medida prática
dos minutos desagradáveis, que aí correspondem às horas,
e o pequeno marca a duração das horas amenas, que nele são
minúsculas frações – quando o ponteiro não está
engasgado.

O tempo real é conforme ao ícone que dele deixaram os gregos
– um velho decrépito que naturalmente se arrasta quando caminha por
seus pés, mas que também voa como um pássaro, porque
tem asas, e quando bate as asas rejuvenesce.

RUFINA O homem é um ser tão mesquinho, que onde quer que ele
se ajunte logo lhe sobrevem, pelo número, uma alma coletiva, embora
muito rudimentar.

A multidão que se ensardinhava em redor do orador tinha visivelmente
a sua; toda ela se agitava num só ritmo, gritava com uma só
voz e se enchia de braços erguidos como um só bicho a eriçar-se
numa só contração momentânea. O bonde também
a possuía mas indiferente, comodista e escarninha.

Uma contava o seu tempo pelo mostrador pequeno, a outra media o dela pelo
quadrante maior.

Eram duas entidades inconciliáveis, vivendo em duas esferas distintas
e irredutíveis da duração.

As duas almas se olhavam sem se compreender: nem a da rua se aplacava, nem
se inflamava a do bonde. Dois mundos com trajetórias opostas, um em
ebulição, outro frio.

Um começo de automática hostilidade pairava entre um e outro.
Viesse um pequeno impulso, e os dois sistemas talvez se engalfinhassem com
cega violência, como dois içás colocados rosto a rosto
mecanicamente assumem o papel de inimigos de morte, e se agarram e se estraçalham
com um santo e inconsciente heroísmo.

Não me esquecerei tão cedo de um casal de namorados que vinha
hoje no bonde.

Gente do povo, gente humilde, dessa que não transpôs ainda
o limite em que o indivíduo ignorante e simples começa a ver
e a querer copiar atitudes, maneiras e atos de uma camada superior. Era, portanto,
de uma espontaneidade inocente e quase animal a ternura com que os dois se
enlaçavam, tecendo cada um, em redor de ambos, uma teia isolante de
carícias, – mãos dadas, olhos compridos, falas em tom velado
e plácido, e um permanente sorriso da mais pura e imbecil felicidade.

Ele, um latagão carpintejado à larga; ela, uma bezerrinha
forte e carnuda, com uma pele esticada e quente e uns cabelos ásperos
e crespos de lavadeira tostada ao sol. Simpáticos.

Talvez belos, não tanto dessa "beleza do diabo" (dizem
os italianos), mero efeito da mocidade e da saúde, como dessa espécie
de beleza promissiva, que não entra pelos olhos, que se entrevê,
que é como um esboço deixado de mão quando se encaminhava
para a forma perfeita.

O meu prazer foi imaginar que o latagão era eu, que a moça
era Rufina. Estávamos entregues um ao outro.

Tinha-me apropriado dela com a naturalidade com que me apropriaria do meu
duplo, se ele surgisse a meu lado. Fechara-a no âmbito da minha personalidade
e um desdobramento, um acréscimo, uma projeção do meu
ser.

Que me importava o seu passado? A mulher que se ama não tem passado.
Nasceu na véspera.

É a objetivação de um acontecimento interior. Não
é um ser: é um fato. É um episódio novo de uma
história que vem de longe. A história, com o seu ritmo, a sua
lei, a sua necessidade, a sua marcha, o seu destino, engloba, arrasta, dissolve
e tinge de sua cor tudo quanto colhe através do seu derrame fluvial.

A mulher que se ama começou com o nosso amor; como disse o catalão
Maragall da poesia.

… tot just ha començat i es plena de virtuts inconegudes.

De repente, o casal desceu. O rapagão foi o primeiro à saltar,
e, instintivamente, voltou-se com galante dónaire e estendeu a mão
à juvenoa.

Esta pulou rápida e leve, como se tivesse recuperado instantaneamente
uma aptidão perdida.

Nesse momento, aquele tosco rapaz, cabouqueiro ou lavrador, nos seus sapatões
entorroados, sob o seu chapéu sujo, e aquela moça que mal e
superficialmente se alindara, como uma batata apenas cozinhada e descascada,
me deram a impressão de duas criaturas saturadas por séculos
de galantaria e de cultura.

Eram duas sementes, e já me pareceram duas flores. Eram dois bichos
do chão e pareceramme dois pássaros esguios.

O amor gera e regenera desde que surde. A função generatriz
não é um acidente da sua história, nem é a causa
da sua aparição: amar e gerar é tudo um, e produz partos
mais temporãos e mais estranhos do que os do ventre. Tudo começa
ou recomeça, e todas as fecundidades se concentram na carne e na alma
dos amantes, e o próprio mundo aparece de repente refeito, banhado
das claridades e tocado da magnificência de um gênesis.

Rufina…

Ora, ora, Rufina, uma simples passageira de bonde com quem eu, passageiro
de bonde, me encontrei duas vezes por acaso! O SONETO Deus de misericórdia,
como eu tenho pena dos poetas, meus irmãos! Apesar de ser eu o pobre
da irmandade.

Pelo trabalho que me tem custado o soneto que empreendi há três
meses, calculo as torturas em que voluntariamente se enredam os que ainda
fabricam esses objetos de arte.

Dizem, que há indivíduos que sonetizam com facilidade, sem
prejuízo da perfeição. Não descreio disso. Mas
essa espontaneidade para fazer um soneto só se adquire depois de muito
e duro labor de aprendizagem e prática do soneto. Também os
ginastas fazem com a máxima facilidade e economia de esforço
os mais complicados e arriscados giros no trapézio, na barra e nas
argolas, – e isso está muito longe de provar que tais habilidades lhe
sejam naturais como a nós outros o uso do guarda-chuva ou o trepar
no estribo dos bondes.

Quanto a mim, vou desistir de concorrer aos futuros florilégios.
Mas, em vez de fazer como o outro, que despreza essa forma de poesia, alegando
que é velha de seiscentos anos, que o mundo está cheio de sonetos,
e que os sonetistas são muito mais numerosos do que os poetas, continuo
a achar que a fabricação deste gênero de peças
é um útil e nobre exercício de engenho, além de
ser o mais justificável dos quebra-cabeças.

Quanto a serem milhões os que se produzem, hoje em dia, em todo o
mundo, e contarem-se pelos dedos os capazes de sobreviver, não vejo
nisso razão para se condenar o soneto. É igualmente certo que
o mundo produz cada dia milhões de rosas, e que essas rosas ainda vivem
apenas, como no tempo de Malherbe, – d’un matia – isto é, três
ou quatro dias; contudo, daí não se segue que a rosa se tenha
tornado indigna do nosso apreço. Ao contrário, a brevidade fatal
da sua melindrosa vida é um dos elementos do sutil encanto que elas
desprendem, como um outro perfume.

Cosa bella e mortal…

Creio que não há nada mais difícil, ou pouco haverá,
do que armar, travar e concluir um soneto de modo que ele fique cheio e redondo
como uma bola maciça. Digo bola, porque o soneto, graficamente quadrilateral,
é mentalmente esférico. Não tem na sua transcendente
realidade, princípio nem fim: o termo aparente é que, a certa
luz, se pode considerar começo, porque ninguém se inicia na
compreensão justa da peça antes de ter chegado ao "final",
antes de haver este lançado a projeção anímica
do seu conteúdo até às primeiras palavras do primeiro
verso.

Assim, todas as partes idealmente se alongam num único sentido, e
repassam sobre si mesmas, girando em redor de um eixo gerador, buscando mecanicamente
a esfericidade a que tendem as massas em revolução.

Será isso poesia pura? Parece que não é. Mas, dado
que se saiba o que venha a ser poesia pura, é evidente que essa essência,
como certas substâncias delicadas e voláteis, precisa sempre
de uma liga mais ou menos grosseira para subsistir.

De resto, a mim pouco me importa o nome da coisa, ou os quadros em que ela
entre ou deixe de entrar. Quando, aí pelos caminhos, eu topo com uma
bela teia de aranha, estendida ao sol da manhã como uma roupa de fada,
para que se lhe seque o relento da noite, a mim pouco se me dá de saber
se aquilo está bem construído, se não está, se
o material é puro ou impuro (a natureza sabe o que seja puro ou não
o seja), e se a aranha devia ou não devia fazer outra coisa.

Aceito-lhe a teia como está; e se ela palpita e cintila ao sol, toda
tecida de filetes impalpáveis colhidos ao luar, às fosforescências
noturnas, às azulejantes fluências matinais do córrego,
à casca metálica dos besouros e se ela parece bulir no mato
como um enxame de estrelinhas tontas, – paro, olho, sorrio, vou andando, e
ainda volto a vista para trás. Aquilo é bonito, e acabou-se.

No soneto, como os fizeram Petrarca ou Santa Teresa, Du Bellay ou Shakespeare,
a liga em que se aprisiona a essência de poesia é sutil e engenhosamente
intelectual. Todos os bons sonetos são obras-primas de engenho discursivo,
tocadas de um raio de poesia. Puzzle, envernizado de sonho. Gaiolas dialéticas
nas quais, pelo menos, parecem revolutear penugens do pássaro que fugiu,
– o tal pássaro fantástico da poesia verdadeira.

Engenho, eis o que me tem faltado para levar a cabo a minha obra-prima.
Também tem faltado oportunidade. Feitas as quadras no bonde, entendeu
o meu subconsciente que no bonde eu havia de fabricar os tercetos.

Fora daí, no meu gabinete, na repartição, no teatro,
não me acode nem fiapo de idéia; mas no bonde nem sempre consigo
a calma nem os vagares indispensáveis a esta classe de serviço.

Como este mundo anda desconsertado! Mas ainda bem. Se os homens tivessem
tempo para meditar, decerto deixariam de fazer muitas asneiras – das pequenas;
mas como as premeditariam grandes e terríveis! Hoje, depois de várias
tentativas, entrei no bonde decidido a conquistar o meu sossego.

Dei logo de cara com o Sr. João Cesário, esse risonho pirata
que infesta a nossa linha e assalta pobres passageiros para lhes arrancar
o único money que eles têm, o tempo. Mas o Sr. Cesário
não me viu, porque estava despojando a um outro. Fui para o banco mais
plebeiamente preenchido, entre uma preta de xale e um cabo de polícia.

Cerrei os olhos, evoquei a imagem flutuante e delgada de Gabriela, recordei
as quadras, fui avançando o pé pelo escuro da inspiração
informe.

Gabriela, como ficou assentado, era uma jovem que tinha perdido todas as
ilusões, coitada! Por necessidade de rima e falta de espaço,
não foi possível precisar de que ilusões se tratava,
sendo certo que em tudo, na vida, a ilusão desempenha um papel muito
sério e ninguém pode jamais gabar-se de as haver perdido por
completo. Já se disse mesmo que o homem vive de ilusões. Mas
essa imprecisão de idéias é muito própria da poesia;
e tem a vantagem de dar largueza bastante para as imaginações
se moverem ao sabor de cada temperamento.

Gabriela perdera as suas ilusões de moça ardente e sequiosa,
porque se atirara aos chamarizes e às insídias do mundo com
excessiva sofreguidão e nenhuma cautela. Isto ficou registado na segunda
quadra.

Agora, os tercetos é que eram elas! Conviria acentuar que, tendo
perdido as suas ilusões, a menina estava como quem tivesse perdido
a túnica através de matos e pedernais, ou em luta com bichos
assanhados. Esta idéia é velha, mas pondo-se-lhe um revestimento
novo, ainda serve. As comparações poéticas essenciais,
referentes às verdadeiras situações em que se pode encontrar
uma alma nesta vida, são bem pouco numerosas, no fundo; e os poetas,
por mais que façam, hão de sempre voltearlhes em redor.

Hoje, aí vais………………..

……….. inteiramente nua ………………………………….

Repeti essas palavras vinte vezes, preenchendo os espaços vagos da
pauta com sílabas soltas sem significação nem consistência,
só para acentuar o ritmo e provocar a idéia. Uma espécie
de massagem sobre um tumor maduro.

Mas na verdade o tumor ainda estava um tanto verde. O que sobretudo me impedia
de chegar a um resultado, era o final.

O soneto, hoje estou disso convencido, tem uma causa final – o fecho deve
ser achado antes do mais. É o verdadeiro princípio. Então,
tudo para lá se encaminha, como no ovo se forma com segurança
e tranqüilidade o pinto prefigurado.

Enquanto eu ia fazendo estas reflexões, o bonde se aproximava mais
depressa do termo, e tive de adiar mais uma vez a conclusão da minha
tarefa poética.

Mas hei de concluí-la. Tenho diante de mim todo o resto da minha
vida. Tudo me indica que ainda poderei vir a ser o Arvers de um soneto, não
direi tão acabado, mas pelo menos tão difícil de acabar.

Sainte-Beuve disse que il existe chez les trois quarts des hommes un poète
mort jeune à qui l’homme survit. Mas isso não é um achado:
a poesia sempre foi tida como particular companheira da juventude, nos homens
e nos povos. O mais curioso é que muitos trazem consigo poetas que
nunca chegaram a nascer e que são como revenants do futuro.

UM HOMEM PERFEITO O Sr. João Cesário da Costa apareceu-me
hoje muito loquaz e prazenteiro. Sentou-se a meu lado, palpou as minhas disposições
auditivas, notou que eram boas, e deixou escapar a loqüela, primeiro
às gotas espaçadas, depois às gotas que já quase
se ligavam num fio, por fim jorro franco.

Principiou por falar do tempo, que estava "lindíssimo e convidativo."
Daí deslizou para considerações acerca do nosso clima
e do europeu, das nossas estações e das européias.

Descambou então para o elogio da nossa "terna primavera"
e da nossa "natureza exuberante".

Isto o levou ao fatídico paralelo entre a natureza e o indígena;
e Cesário revelou gravemente que, segundo a opinião de Humboldt,
no Brasil tudo é grande, menos o homem.

Mostrei-me consternado por isso, e Cesário caiu no domínio
da educação, cujo principal objetivo, no Brasil, devia consistir
em debelar a empregomania, o bacharelismo e a macaqueação do
estrangeiro. Quando chegamos ao ponto, o meu amigo, depois de ter passado
pela política, ia bordando comentários em roda do vestido feminino
e deplorando a subversão da família.

Enquanto ele orava, eu vinha-lhe mentalmente acompanhando a curva das associações
de idéias e avaliando as vastas etapas que fazia através da
matéria pensável, metido nas botas de sete léguas da
imaginação discursivas.

É assim, justamente, que os homens práticos pensam, desde
que saem do crédulo habitual das preocupações profissionais.
Tomam as suas associações espontâneas e os seus estados
vulgares de sentimento como legítimas formas de cogitação.
E têm um grande desdém pelos poetas – sendo que poetas são
todos quantos não se contentam com essa moagem perpétua de idéias
feitas e de idéias que nunca se acabam de fazer.

Na verdade, isto é eminentemente prático. Nada mais é
preciso para viver, e viver bem, e prosperar, e fazer jus a um mausoléu
de cinco metros de altura, com cúpula guardada por um anjo de magoado
semblante e grandes asas, talhado em mármore branco pelo melhor marmorista
da cidade.

João Cesário tem um mérito, além de muitos outros:
não é uma edição, nem mesmo uma edição
barata de Acácio, versão portuguesa e pacata de Mr. Prudhomme
e variedade conservadora do farmacêutico Homais.

Acácio, Prudhomme e Homais eram homens de princípios ou de
ideais, ao passo que Cesário não tem convicções
arreigadas: é um bom homem, arranjado, comodista, amigo da boa roupa,
da boa mesa e da boa prosa, com ambições modestas e com um grande
tato instintivo do que lhe pode ser útil e agradável. Incapaz
das parlapatices de Prudhomme, da compenetração respeitosa de
si próprio que distinguia Acácio, e de aziumados sectarismos
à maneira de Homais.

Apenas se encontra com eles no terreno do lugar-comum. Mas o lugar-comum
não é privativo destes ou daqueles, é a terra de ninguém
onde todo o mundo, uns mais amiúde, outros mais de longe em longe e
mais a medo, faz as suas incursões e as suas colheitas.

De resto será o lugar-comum coisa tão desprezível?
Não, o lugar-comum é necessário. Faz parte das forças
da natureza. É da natureza do espírito humano a necessidade
de cunhar uma espécie de moeda divisionária das idéias,
que possa andar pelas próprias mãos dos que não tenham
capitais e que presta enorme serviço a toda a gente.

Se se quer encarar o caso na sua verdadeira latitude, o ponto de vista escolar,
estilístico, literário, é de uma insuficiência
absoluta, e por sua estreiteza e vetustez bem merece figurar também
na categoria dos lugares- comuns elegantes.

O abuso desse ponto de vista crítico e aristocrático vai espalhando
nos espíritos inclinados às letras e às idéias
um terror excessivo e doentio do ominoso pecado. E com isso chega a criar
freqüentemente uma espécie de Acácios às avessas,
que repelem boas idéias por serem velhas, sem sempre forjar novas que
sejam boas, e esquecem-se da corrente e desempenada linguagem da conversação,
e embrulham em formas rebuscadas os mais fugitivos e ambíguos fiapos
de pensamento, como quem fizesse gaiolinhas de metal dourado para guardar
pernilongos.

A grande e imponente maioria dos humanos não dá nenhum apreço
às idéias por si mesmas.

Estas, quando caem na circulação geral, perdem toda a sua
virtude abstrata, empastam-se na grossa praticidade e na violenta concreteza
dos valores vitais imediatos. Descem do plano lógico para o biológico.
Rousseau disse que pensar é um ato contra a natureza, e os atos contra
a natureza ela os pune empeçando-os ou desviando-os, reassimilando-os
e recolocando-os na órbita dos seus próprios fins.

As idéias, na marcha geral e normal da vida, têm um valor tão
puramente instrumental, oportunístico e subalterno como as armas, os
utensílios, os aparelhos e todas as coisas que prolongam os nossos
meios naturais de ação. É preciso que um homem esteja
pervertido pela literatura e análogas manias, para ter a fantasia de
inventar idéias, pelo simples prazer de criar instrumentos originais.
Se a faca e o martelo já foram inventados há milhares de anos,
e prestam ótimo serviço, para que é que o Sr. Cesário
havia de imaginar um traste novo e aperfeiçoado, só para cortar
uns cipós ou para bater uns pregos de quando em quando? Não
seria econômico. Enorme desproporção entre o esforço
e o resultado.

Com um pequeno arsenal de lugares-comuns, Cesário está dispensado
de gastar inutilmente largas somas de tempo e de trabalho. Põe a sua
provisão no bolso, cada dia, conforme as necessidades, e sai para os
seus negócios, para os seus prazeres de sociedade, para as suas demandas,
para a sua descansada pescaria de proveitos possíveis, nas horas vagas.
Surte-se com a suave facilidade de quem completa, em casa a sua toilette habitual,
pondo meia dúzia de charutos na carteira, um lenço de sobressalente
no bolso da calça, um canivete no bolsinho do colete.

Dá-se bem com o sistema, e a sociedade ainda melhor. Ganha esta um
homem afável, serviçal, maneiro, de fácil e macio contato,
simples de utilizar.

Multipliquem-se estes homens exemplares por mil, e veja-se que incalculável
benefício não seria, que harmônica estabilização
de um tipo social indígena, que precioso reforço de cidadãos
bem construídos, normalizados, estandardizados, sem mistérios
e sem surpresas, sólidos, garantidos, de uso limitado mas seguro e
preciso, – como a louça inglesa, como a cutelaria de Manchester, como
o presunto holandês, como o óleo de fígado de bacalhau,
como o fósforo Jonkonpings, como as camisas do Porto! Foi essa multiplicação
de um tipo modesto mas viável e bom que fez aquela coesão e
aquela estabilidade magnífica da sociedade britânica, – o seu
núcleo resistente, a sua massa harmônica e firme, a deslocar-se
através da história com o ímpeto regular de um imenso
exército em marcha.

Suponham-se agora estes inumeráveis Cesários preocupados todos
com fabricar idéias e esmaltá-las sob formas graciosas e cortantes.
Que calamidade! Ganharíamos, talvez, algumas jóias do espírito,
mas, em troca, que multidão de intelectuais neurastênicos, incertos,
cáusticos, insociáveis, prisioneiros eternos de si mesmos, despidos
de tolerância e de benignidade, sacrificando tudo por uma frase de espírito,
inadaptáveis a todo esforço comum, inimigos de toda disciplina
obscura e de todo devotamento discreto e silencioso, e enfim grandes criadores
efetivos de mal-estar, de desinteligência e de estéreis, inacabáveis
veleidades e agitações no seio da massa e no das moças!
MÃE Pobre mulher, aquela boa e sincera mãe que vi ontem, tão
mansa, tão entregue ao seu pequenino! Era bonita, mas como que o ignorava.
Estava tão despreocupada no bonde como se estivesse em sua casa. ‘Trazia
o filhinho ao regaço, e brincava-lhe com uma das mãozinhas,
fazendo-a saltar, arremessando-a e abaixando-a, aos pequenos tapas, como uma
bola. O pequeno ria-se de quando em quando, e a cada risada o rosto da mãe
tomava uma expressão forte, escultural de felicidade plena e remansosa.

A certo momento, pegou a criança pelo tronco, pô-la em pé
sobre os joelhos, e começou a sacudi-la como a pregar-lhes sustos.
Fazia-lhe, ora, uma cara de surpresa cômica, arregalando os olhos; ora,
uma cara de cólera, carregando as sobrancelhas, afuzilando o olhar;
ora, uma cara de choro desconsolado, em que todos os músculos se relaxavam
e as pálpebras e os cantos da boca descaíam.

Jogral do seu pequerrucho, essa mãe se esquecia de si, se despojava
de todas as preocupações habituais, concentrava toda a sua vida
naquele ser único, pequenino e fragílimo.

Era um simples brinquedo em poder do seu bebê, – brinquedo todo cheinho
de amor, como outros o são de serragem.

Mas, por que, deuses imortais e impossíveis! por que seria necessário
que essa mãe, resumindo o mundo em seu filho, trabalhasse tão
obstinadamente por gravar nele os gestos eternos da loucura humana? Gestos
de fúria, de terror, de cupidez, de despeito, de ciúme, – toda
a mímica do inferno mundano, – formas para ele ainda vazias, mas nas
quais se irá pouco a pouco vertendo e solidificando a substância
do seu pequeno Eu rarefeito e disperso? Ama-o como a um anjo, e luta por fazer
dele apenas um destes vasos de miséria, de impureza e de sofrimento!
Belo e medonho, o amor de mãe. Suavíssimo e terrível.
A sombra dos seus gestos, branda como a dos ramos, prolonga-se até
o horizonte da vida, onde a sombra enorme da Fatalidade passa arrastando pelos
cabelos a sombra da Ilusão.

RUFINA E O SONETO Pobre Rufina! Tão juvenilmente graciosa e linda
ainda há dois meses… Parecia arder em mocidade e beleza como uma
pedra preciosa. Agora, dá-me a idéia de uma pérola moribunda.

É assim este mundo; um resfriado, uma pleurisia, três semanas
de cama – e eis um corpo e uma alma completamente modificados, e uma vida
clara e leve como um regato da montanha mudada num ribeirão turvo do
vale triste! Viajei hoje com ela. Descorada e descarnada, metida num vestido
escuro e pobre, era apenas uma sombra da outra Rufína. Disse-me coisas
graves sobre a vida. Queixou-se das suas ilusões malucas, que a conduziram
até há pouco através das almas e das coisas como através
de uma festa, para, de repente, a abandonarem entre essas duas megeras – a
Solidão e a Necessidade.

Chegou a falar-me de Deus, e, entre dois acessos de tosse, perguntou-me,
com a simplicidade suprema de quem pedia uma informação: – "Será
que ele me aceita?" Em que embaraço me pôs: Pedir a mim,
pecador encoscorado, um raio de esperança e consolação
– porque era evidentemente o que pedia, na simplicidade triste daquela pergunta!
Valeria o mesmo querer refrescar os lábios em febre com o suco de uma
pêra de campainha elétrica.

Tive ímpetos de endereçar ao vigário da nossa paróquia.
Mas o santo homem estava já tão acostumado a lidar com almas
em pena! Era possível que não lhe desse maior atenção,
que a tratasse com desdenhosa bonomia, como fazem certos médicos, excepcionalmente,
com os clientes pobres: "Isso não é nada. Está nervoso.
– Dor no cogote, Há de ser mau jeito. – Febre, é? Uhn… – Qual!
não tem importância. Apareça um dia lá no consultório".

Não, não a mandaria ao vigário, poderia vir de lá
com as feridas banhadas em bálsamo suavíssimo, e poderia vir
com elas envenenadas de despeito e de revolta.

Eu estava para lhe dizer que sim, que Deus a receberia nos seus braços
com paterno carinho, porque nada pode ser mais agradável ao Senhor
de toda a sabedoria e de toda a misericórdia do que uma alma despojada
de mundanidades, nua, na plena e corajosa nudez da humildade, do desengano
e do arrependimento.

Quando, porém, decidia estas dúvidas de consciência
e preparava esta resposta, Rufina ergueu-se, fez soar a campainha, despediu-se
e esgueirou-se. Fiquei a vê-la do bonde, que estacionara por um momento.
Reprochava-me com raiva as minhas eternas indecisões de animal imprestável.

Ela foi para a calçada, e pôs-se a caminhar de um jeito meio
automático, direita, impassível, num passo miúdo e rígido
de boneca mecânica, a cabeça pensa para um lado – como quem caminha
com indiferença, de alma vazia, para a última renúncia
ou para a morte…

Pude saber depois que ia à costureira.

Somos todos horrendamente egoístas. Nunca tive como hoje a sensação
do que valem todas essas florescências admiráveis da vida nobre,
as belas idéias, os ideais formosos, os sentimentos altos e delicados.

Nem bem Rufina desaparecera de minhas vistas, aquilo de eu a ter comparado
mentalmente a uma alma despojada de mundanidades, nua, inteiramente nua, voltou
a borboletear-me no espírito como um remorso gostoso. E lembrei-me
logo daquele meu soneto parado entre os andaimes; como uma dessas igrejas
que levam anos a construir e ficam anos à espera de recursos.

Agora, concluiria a obra. Aferrei-me a ela pelo resto da viagem.

Rufina, de passagem por mim tocando-me de leve, pusera-me em movimento a
engenhoca da poesia, como quem toca inadvertidamente num pé de "mimosa
pudica", ou como quem sacode sem o querer um relógio engasgado,
fazendo-o trabalhar.

É essa a finalidade dos outros, no sistema especial da nossa vida
de cada um: pôr em movimento algum dos relógios engasgados que
temos conosco.

O caso é que concluí o soneto. A bem dizer não o concluí
no bonde: acabei de concluir na repartição, apesar de um parecer
urgente que me atenazou o dia. Mas a inspiração é assim:
quando vem, vem de fato, e não há urgências que se lhe
oponham.

Agradeci ao destino o ter-me deparado Rufina, não só porque
daí proveio a conclusão do soneto, como porque me permitiu banir
dele a tal Gabriela. Eu já andava seriamente implicado com essa negrinha
vagabunda, caçada na sarjeta do noticiário. Decididamente, não
dava nada.

Logo o primeiro verso: Já não tens ilusão, oh Gabriela!
era de uma inépcia absoluta. Que é que tinha o público
que ver com esse nome próprio. E, além do mais, um decassílabo
frouxo, – que é ainda pior do que uma frouxidão de bom senso.
Pude substituí-lo com vantagem. E o resto – foi uma sopa: A UMA TUBERCULOSA
Já nenhuma ilusão tua alma estrela; Nenhuma abrolha em teu caminho
triste.

Tudo te é negro: e em tudo quanto existe, só o que existe
de mau se te revela.

Novela e Conto

PSICOLOGIA DO BOATO

O boato é um fenômeno social que bem merece uma preleção
psicológica, como um capítulo, que de fato o é, da psicopatologia
das multidões.

Nas multidões, ou nas turbas, os elementos estão reunidos em
massas, num momento dado; os fenômenos sociais aí se realizam
por explosão, por contágio súbito que tem como ponto
de partida o estado afetivo exagerado de um ou de alguns elementos influentes
– os chefes de revolta, de arruaças etc.

É da natureza humana o não agir sem um estímulo exterior;
nossa vida mental não passa de sugestão de célula a célula
e nossa vida social uma contínua sugestão de pessoa a pessoa.
Isso se conclui da opinião dos psicólogos que têm tratado
desse assunto. A sugestão é um fenômeno geral no meio
social. A imitação, a repetição universal, de
que G. Tarde se ocupa largamente no seu livro – Les Lois de l’Imitation –
demonstrando sua universalidade, nada mais é do que a "sugestão"
na significação mais ampla dessa palavra. O hipnotismo faz o
papel de microscópio, mostrando-nos a sugestão muito aumentada.
S. Sighele, no seu livro sobre a "turba criminosa", esboçando
em traços gerais a psicologia das turbas, aceita as idéias de
Tarde e mostra sua coincidência com as de Sergi (Psicose Epidêmica).

Com o boato as coisas se passam de modo um pouco diverso; o fenômeno
se realiza lentamente, porque os indivíduos estão esparsos;
mas o fenômeno é da mesma natureza essencial dos que se dão
nas turbas.

Que é o boato? É quase sempre uma criação fantasiosa
de um indivíduo mau, de caráter abjeto, fantasia essa que se
espalha em horas, ou em dias, numa coletividade humana, num povoado, numa
cidade, num Estado. O boato nasce como realização ilusória
de um desejo perverso, originário de uma paixão inconfessável
– raiva, vingança, interesse torpe, seja este pecuniário, político
ou sexual.

O criador de um boato é sempre um imbecil (moral). A vítima
é, em regra geral, uma pessoa que tem algum valor social; é
esse o seu único consolo…

O boateiro escolhe um momento oportuno para lançar a sua mentira,
a fantasia perversa. Esse momento é de alta importância, porque
nele se acha a circunstância que dá aparência de verdade
ao fato que se pretende propalar. Essa circunstância é mui variável
de um caso a outro. Não é possível, por exemplo, divulgar
a notícia de que um certo financeiro importante está louco (para
dar-lhe, suponhamos, um golpe de momento) se estiver ele presente e visível
a todo o mundo; é preciso que esteja ausente, fortuitamente. É
a circunstância oportuna.

Não basta, porém, como explicação para o boato,
essa circunstância e a possibilidade ou verossimilhança do fato
a divulgar. É necessário o meio social apropriado para que o
fenômeno se realize. A sociedade espelha o caráter de seus fatores
antropológicos. A explicação é bem escabrosa e
desoladora para o homem civilizado, mas é preciso repetir a verdade,
ainda que muito nos custe.

"Dizer mal e gostar de ouvir falar mal de alguém é um
velho cacoete da alma humana. Talvez seja a música mais harmônica
que existe, porque convibra bem com qualquer espírito". A frase
é de Austregésilo, no livro O Mal da Vida.

Há em toda a criatura humana um misto estranho de bondade e de maldade,
de infâmia e de perversidade. As proporções dessa mistura
é que variam ao infinito. Desde o tipo bom, completo, que sufoca perfeitamente
o que há de mal dentro de si mesmo, porque a lucidez e a largueza de
sua consciência lhe permitem reconhecer e dominar a própria tendência
perversa, até o malvado arrematado, cuja consciência estreita
e sensibilidade moral embotada lhe não permitem reconhecer o mal que
vive dentro dele, há nessa vasta série, a infinidade de caracteres
que vemos diariamente na sociedade.

Devo a fineza de um amigo o conhecimento de um trabalho de Conceptión
Arenal (Delito Coletivo) em que se repete a noção acima exposta,
apenas por outras palavras; "lo más grave y lo más triste
es ver que cuanto mal son capaces los buenos, los que portales se tenian y
lo habian sido hasta que la lucha vino a desnaturalizarlos, como se dice,
o, para hablar con más propriedad, a revelar su naturaleza. Esta terrible
revelación no es obra de ningún principio, de ninguna idea;
es consecuencia del combate, que depierta malos instintos dormidos y pone
en el caso y hasta en la necessidad a veces de satisfazerlos".

O trabalho secular da civilização tem sido exatamente o de
reprimir ou recalcar o elemento mau e dar expansão e força ao
que é bom. Aquele, porém, não se extingue; existe sempre,
embora sufocado, como os Titãs da fábula que, vencidos pelos
deuses e soterrados sob o peso das montanhas, se revelam de tempos em tempos
pelas convulsões de seus membros, e sacodem as entranhas da Terra.

Canto e Melo, no seu recente romance – Relíquias da Memória
– lá diz a mesma verdade, à página 67: "pela primeira
vez na vida, pensei na crueldade dos homens. Só os conhecera até
então através dos artifícios da civilização
e do convencionalismo da sociedade. Ao vê-los agora, no pleno viço
das suas inclinações primitivas e bárbaras, convenci-me
de que o homem é mais feroz do que as feras e, se não exerce
a todo o momento contra os outros homens a sua crueldade, é porque
o medo da represália lhe arrefece dentro do coração os
nefandos impulsos da ferocidade inata".

A concepção freudiana, seguindo as pegadas do Prof. Bergson,
admite na alma humana o inconsciente dinâmico como sede de todas as
tendências e instintos maus recalcados pela civilização
no correr dos séculos.

Nada, entretanto, é novo neste mundo. Os doutores da Igreja, finos
observadores e psicólogos, conheciam muito bem esses assuntos e deles
trataram nos seus escritos sobre teologia, embora disfarçados pelo
simbolismo de sua linguagem.

Sabido isto, ainda que em súmula, temos aí o núcleo
indispensável para a explicação do boato.

Toda a pessoa de valor social, vencedora na luta pela vida, bem sucedida
em todos os seus esforços, tem na sociedade número incontável
de desafetos gratuitos, instintivos, mesmo entre os que lhe são absolutamente
estranhos, não se tratando já de oficiais no mesmo ofício,
conhecidíssimos como inimigos natos.

"A felicidade de qualquer é desespero para muitos", diz
muito bem Austregésilo no Mal da Vida.

Quem não tem desafetos, tem com certeza passaporte para o reino do
céu.

O sucesso, por si próprio, cria má disposição
de ânimo nos outros. E essa indisposição vive no inconsciente;
não é raciocinada. No seu fundo se encontra a inveja, disfarçada
sob múltiplos aspectos. Na espécie humana é a política
o melhor campo de observação.

Entre os animais o fenômeno é grosseiro e por demais visível.
Repare-se quando diversos cavalos comem numa só manjedoura, cada um
com seu quinhão de alimento, como sai sempre um deles do seu lugar,
para ir escoicear os outros, embora não lhe falte comida. É
o mesmo fenômeno que se encontra no meio social, muito abrandado, está
visto, pelo grau superior de desenvolvimento em que se acha o homem.

É inegável, pois, que no meio social, por toda a parte, existe
sempre uma atmosfera de insidiosa e inconsciente hostilidade contra a pessoa
que vence na vida. Haverá alguém tão ingênuo que
a desconheça?

Nessa atmosfera é que se acha o elemento vital indispensável
à germinação e rápida florescência do boato.

A escuridão do anonimato dá ao boateiro o ânimo e a proteção
de que carece para agir, como a escuridão da noite protege certos insetos
nojentos que propagam repugnantes infecções. É mesmo
essa uma das feições que distinguem o boato de outros fenômenos
sociais da mesma natureza, como o tumulto das ruas, por exemplo, que se realiza
em pleno dia, por contágio quase explosivo.

No fundo, na essência, os fatos são idênticos. As coisas
se tornam mais claras por meio de exemplos banais. Barnabá, da ópera
Gioconda, provoca na praça um tumulto contra a cega, mãe de
Gioconda, lançando sorrateiramente no meio dos marinheiros descontentes
a convicção de que fora a cega quem exercera "malefícios"
e ocasionara o mal que os magoava no momento. O desejo de possuir a Gioconda
foi a verdadeira origem daquele tumulto. O infame Barnabá é
uma criatura eterna na sociedade.

Mais belo exemplo se acha na tragédia Júlio César, é
o magnífico discurso de Brutus ao povo romano. Grande conhecedor de
sua alma, Shakespeare pôs na boca de Brutus as palavras inflamadas que
levariam o povo a assassinar Antônio, se este não possuísse
também a poderosa arte de dirigir a fera – a multidão – que
o ameaçava.

A habilidade do boateiro está, como em regra nos fenômenos desse
grupo da psicopatologia social, em saber despertar e açular a besta
humana mal amordaçada pelas coerções do meio civilizado.

O boateiro é sempre, como se disse, uma alma defeituosa, que se agita
por mesquinhos interesses. Ele tem a maldade indômita que existe na
maioria dos homens, embora mais ou menos escondida. Individual no nascedouro,
o boato passa logo a ser coletivo em virtude da consonância que sua
tendência encontra nas almas do mesmo estofo. Despine compara a propagação
dos estados afetivos nas multidões ao efeito da onda sonora de uma
nota musical, que faz vibrar todas as notas iguais existentes dentro da esfera
atingida pelas suas ondulações. É um principio geral
nos fenômenos de contágio moral.

A perversidade influi com prontidão, porque é uma qualidade
mais ativa do que a bondade, afirma Sighele. Os bons em regra, não
procuram fazer o mal, são passivos; os maus "querem" fazer
o mal, são ativos.

Felizmente existem também almas nobres em que essa lepra já
se acha, por assim dizer, extinta. Por meio dessas pessoas o boato não
caminha. Isso quer dizer que a alma humana, em geral, é suscetível
de aperfeiçoamento com o envolver da civilização; a consciência
se alarga no correr da evolução. É ao menos um consolo
lembrar que a civilização irá melhorando cada vez mais
a sociedade, onde vicejam ainda esses males, por enquanto irremediáveis.
Também, se o conhecedor da alma humana só enxergasse ai o que
há de mal, morreria de pavor.

O aperfeiçoamento da consciência chegará a extinguir
o boato no dia em que a maioria dos homens tiver clara intuição
do que acontece atualmente, em casos raros, quando um cúmplice do boateiro
encontra um homem bom ele narra uma calúnia, mais ou menos nestes termos:

"Sabe que "se anda dizendo" de F…? Dizem que fez isto, aquilo
e mais aquilo. Eu não creio, mas me garantiram e de fonte limpa. Estou
dizendo só aqui entre nós; não convém falar, porque
talvez seja invencionice. Em todo o caso é uma pena, se é verdade."

O homem bom fixa então os olhos semicerrados sobre o narrador e diz
mentalmente:

"Miserável, infame! Não tens nem força para sufocar
o prazer que isso te causa. Não inventaste, talvez, a mentira; mas
o inventor contava contigo, com a tua covardia, com a torpeza de tua alma
igual à dele, para colaborar no trabalho essencial – o da divulgação
da infâmia. E tu contavas comigo, salafrário! porque não
tens consciência do vil papel que neste momento representas."

Ora, aí está como as coisas se passam, embora excepcionalmente.
Na quase generalidade dos casos, entretanto, o patife encontra um homem de
sua igualha, que sente o mesmo prazer que ele e vão logo adiante, confidencialmente,
com ar muito contristado, na rara infâmia a um outro, e assim se espalha
o boato com extrema rapidez. Ainda há pouco vimos como se espalhou
no norte do Brasil o boato de uma vaia ao presidente da República,
aqui em São Paulo, vaia que não passou de pura fantasia de um
boateiro soez.

Há indivíduos mais afoitos, felizmente raros, que vão
a um jornal e dão a falsa noticia da morte de um cidadão que
está bem vivo em sua casa, onde recebe com espanto a lutuosa noticia…
Os jornais já tomaram, entretanto, suas cautelas e esses casos são
raríssimos. Vimos essa maldade praticada em São Paulo e não
há muito anos.

Há uma diferença enorme entre o indivíduo que recebe
com verdadeiro pesar uma falsa notícia e o cúmplice do boateiro,
isto é, o que tem prazer em espalhá-la. O primeiro cala-se,
ou procura saber de quem partiu a notícia; vai ao encontro da vitima
e diz francamente quem lhe comunicara o fato. O outro não; esconde
a fonte de onde lhe viera a notícia; pactua com os malfeitores e finge
pudor ou discrição, sem se lembrar que em tal caso não
se trata disso; ao contrário, deve-se pôr tudo à luz do
sol.

É muito difícil descobrir no meio dessa obra de colaboração
anônima, o verdadeiro autor dessas infâmias. O professor Jung,
de Zurique, conseguiu, no caso fácil e no meio restrito de um colégio
de meninas, averiguar de onde partira o boato que difamava um professor. Fez
com que todos os conhecedores da notícia a escrevessem como a receberam.
Notou ele o fato que nós expressamos no ditado português: "quem
conta um conto aumenta um ponto". Cada um contou o fato com particularidades
que variavam entre os diversos narradores; só o núcleo essencial
do boato era o mesmo para todos. A invencionice era narrada como um sonho
e deixava perceber um desejo erótico que inconscientemente dominava
a menina, autora do boato. Tratava-se de um caso típico da mitomania
de que tanto se ocupou Dupré, médico da prefeitura de Paris.

Fora desses casos, assim limitados a um meio restrito, é impossível
descobrir o verdadeiro autor, no meio de tantos colaboradores.

Há épocas mais propicias, como todos sabem, para o nascimento
e divulgação do boato como há tanto tempo favorável
às plantações na vida agrícola. São as
épocas de intensas agitações emotivas – de guerra, de
epidemia, de revolução política etc.

A ambição, outra tendência fundamental humana, permite
também do mesmo modo que a maldade, a criação de uma
atmosférica especial em que se observam curiosos episódios de
sugestão e contágio, alguns dos quais revertem em castigo cômico
contra os próprios ambiciosos. Temos o exemplo na célebre fortuna
que se acreditou existir num banco inglês, pertencente a brasileiros,
descendentes de Amador Bueno da Ribeira. Um advogado velhaco, psicólogo
prático, mandou do Rio de Janeiro, noticiar em São Paulo, há
mais de trinta anos, que tinha meios de liquidar essa fortuna e distribuí-la
aos supostos herdeiros de Amador Bueno. Para tanto exigia ele que cada um
lhe mandasse apenas cinqüenta mil réis junto ao nome que o habilitasse
como herdeiro. Eram herdeiros todas as pessoas que tinham no sobrenome – Bueno,
Silveira etc. Ora! formigaram descendentes de Amador Bueno e choveram notas
de cinqüenta mil réis que deram magnífico resultado ao
pândego mistificador.

Vimos nessa ocasião muita gente séria, carrancuda e circunspecta,
entrar com o seu dinheirinho e discutir convictamente sobre a parte que lhe
poderia caber.

Passado algum tempo, o insaciável advogado, precisando de mais dinheiro,
mandou um mensageiro fazer nova colheita, para a qual trouxera instruções
muito especiais. Só podiam pagar novo tributo os que tinham tais e
tais sobrenomes; os outros estavam excluídos. Muitos dos excluídos
importunavam a gente para conseguir entrar com as suas cotas. Nada o demovia;
era preciso dar uma feição de seriedade a tal bandalheira. A
nova colheita deu ainda magnífico resultado. A herança não
apareceu até hoje, mas os contribuintes tiveram seu momento de prazer…
de viver um sonho por algum tempo.

É de crer que ainda existam por esse mundo alguns dos sonhadores que
naquela época concorreram para os regabofes do advogado.

O boato nem sempre é expansão de malvadez recalcada; há
o boato tendencioso e o boato inócuo. Sua origem primeira é
sempre um desejo inconfessável e freqüentemente inconsciente.

A perversidade geral da alma humana que serve de terreno onde se desenvolve
o boato, é sempre inconsciente.

Caminha para a perfeição espiritual aquele que consegue tornar
consciente a maior parte da maldade que lhe existe no inconsciente, e assim
pode dominá-la. Ainda estamos longe da perfeição; não
podemos exigir a extinção do boato.

Buscar na literatura, na obra de arte, o exemplo concreto, confirmador de
uma doutrina exposta em princípios gerais, é hoje moda e fundada
em boas razões. Quem quiser ler um belíssimo exemplo de boato
em lugarejo do interior, encontrá-lo-á na novela de Amadeu Amaral
A Pulseira de Ferro. Aí se acha o fenômeno magistralmente descrito.

Nuvens

Sobre a lâmina azul de um céu todo bonança
passa uma nuvem clara em curvas franjas de onda,
– vaga que adormeceu num mar que não estronda,
nas mudas convulsões de uma tormenta mansa…

Bruma, sonho da terra, ergueu-se; e enquanto avança,
busca a forma fugaz, que se esboça e esbarronda;
aqui se esgarça, ali descai, além, redonda,
bóia ao sol que a redoira e ao vento que a embalança.

Sonhos, bruma secreta, entre anseios e dores,
sobem-nos da alma assim, livres, espaço em fora,
na lenta indecisão dos informes vapores…

Possam os meus pairar na luz por um momento,
ser a nuvem que arrasta o olhar perdido – embora
suceda a cada esboço um desmoronamento!

Publicado no livro Espumas: versos (1917).

O Elogio da Mediocridade

Carta a um crítico

Meu amigo:
Está V. a ensaiar os seus pendores para a crítica, no que faz
muito bem, porque é tempo de se ir criando por aqui essa coisa proveitosa;
mas a ensaiá-los a custa de pobres poetas enfermiços e de prosadores
claudicantes, no que faz muito mal. Permita que lhe represente, em brevesos
linhas, os equívocos fundamentais e as incongruências desta sua
atitude heróica.

O crítico, meu caro, que ferozmente agride as obras medíocres,
procede como o sujeito que pretendesse deitar abaixo o pavimento inferior
de uma casa de vários andares, para só conservar o resto. A
mediocridade é necessária, absolutamente necessária que
no sentido de coisa inevitável, quer no sentido de coisa útil.
É, porque tem de ser; além disso, é benéfica.

A turba imensa dos medíocres constitui uma como nebulosa informe,
sementeira protoplasmática de estrelas. A maioria dos grandes de lá
saiu, e felizes daqueles que saíram de vez, para não mais tornar
ao rebanho depois de um esforço máximo e prodigioso. Em regra,
a obra total de um escritor de fama é uma série de livros que
vai da mediocridade ao esplendor de um pináculo de ouro, e esse pináculo,
como o de uma pirâmide, é justamente a porção que
ocupa o menor lugar no espaço. A glória de Cervantes está
inteira na cúpula de um enorme edifício literário Dom
Quixote; o resto ficou para sempre mergulhado na sombra, como o corpo colossal
de um casarão que só conserva iluminado, no seio da noite, a
torre mais alta e mais esguia.

Certo, escritores há que, em rigor, nunca foram medíocres,
cujas primeiras tentativas podem comparar-se aos primeiros vôos, mas
aos primeiros vôos das águias jovens. São poucos. Esses
mesmos, porém, não existiriam se não houvesse a vasta
mediocridade que os cerca, que lhes serve de ponto de apoio, que lhes alimenta
o espírito nos primeiros tempos, e que os impele para cima com todos
os estímulos contraditórios da rivalidade e do aplauso.

Toda literatura pressupõe uma multidão de medíocres,
e não só de medíocres, senão também de
inferiores, de rudimentares, de falhados e de decadentes. Tanto mais pujante
e luminosa ela é, tanto mais grossa a multidão rasteira. Esse
mato baixo sustenta a indispensável camada de humus, resguarda e entretém
a vida incipiente das árvores destinadas à máxima expansão.
Foi esse mato que permitiu, na Inglaterra, o crescimento fabuloso de Shakespeare,
a cuja volta trabalhava e produzia uma plêiade de dramaturgos fortes
e uma turba-multa obscura de escribas irrequietos.

Por que, pois, essa fúria sinistra de demolição, de
que o meu jovem amigo se mostra dominado, a exemplo de outros cavalheiros
que conscienciosamente manejam o cacete correcional da crítica impiedosa?

[…]

No seu entender, quem publica um livro está por força na atitude
de quem constrói um pagode monumental, e nele se remira, e lá
dentro se instala, como um Buda, à espera da romaria dos pósteros.
Ora, o livro, depois que se inventou a imprensa, deixou rapidamente de ser
um luxo, uma alfaia, um segredo, um adorno, qualquer coisa que avaramente
se guardava a um canto da casa, entre a arca pregueada e o oratório
esculpido, como uma relíquia ou um manipanço, para ser algo
que já não corresponde a qualquer imagem antiga, algo de imprevisto
e de original, uma característica flagrante de tempos renovados: um
instrumento de comércio transitório entre as almas, prolongamento
da conversação adstrito à troca universal das idéias.

O livro tem de ser considerado, não mais como um repositório
de coisas concebidas e filtradas “para a eternidade”, mas sim
como uma rede de pesca a sair do seio imenso das águas, trazendo de
envolta com o peixe a alga, o marisco e a salsugem. Instrumento, utensil,
aparelho, o livro tem a sua função naturalmente limitada: o
seu fim primacial não é durar, é prestar serviço.
Cumprida a sua missão, embotado, enferrujado, substituiu-se pelo mais
novo e mais interessante e põe-se fora. Nem por isso deixou de haver
um momento em que foi bem-vindo. Era um elo, passou; mas teve a virtude de
arrastar um outro, que também passa, e a circulação continua…

Deixe em paz, meu bom amigo, os literatelhos em que V. gosta de saciar o
seu rancor ao pedantismo e à pretensão. Ou bem que faz moral,
ou bem que faz crítica.

Como crítico, o seu dever é respeitá-los: estão
desempenhando a alta função de preparar o terreno para o surto
das grandezas futuras.

Lembre-se de que o nosso amigo Shakespeare não fez, nas sua grandes
peças, senão apoderar-se tranqüilamente de produtos medíocres
para os transformar a seu jeito, insuflando-lhes aquilo que os predecessores
não haviam podido dar-lhes, apesar de toda a boa vontade: gênio.
Lembre-se de que a lenda dos gigantes que fazem línguas e literaturas
por si sós está definitivamente morta. Dante não teria
feito a Divina comédia, nem Camões os Os lusíadas, nem
você estaria aí escrevendo críticas, se não fosse
a enorme legião dos pigmeus sem nome nem lustre, cujo esforço
apagado e tenaz, inumerável e ininterrupto, lavrando subterraneamente,
aumenta pouco a pouco o tesouro coletivo da língua, lhe dá variedade,
elasticidade e energia, e a conduz ao ponto de poder ser manejada com fragor
por um punho poderoso.

Não se impressione com as pretensões da mediocridade, com a
troca de doçuras ditirâmbicas em que ela se compraz. O louvor
excessivo só perverte e inutiliza, em regra, os que nasceram talhados
para coisa nenhuma. Há, em compensação, muito cavalheiro
de grande valor que a canalha deixa na sombra? A isso, meu amigo, nem, Você
nem ninguém dará remédio. Molière, numa época
de florescência literária, que V. não quererá comparar
com a nossa, passava por um hábil comediógrafo, em quem a crítica
justiceira do tempo nem por isso lobrigava grandes méritos. Em compensação,
Delille foi aclamado gênio pelos contemporâneos. E, sempre há
de ser assim.

O caminho que V. deve tomar é outro. Deixe os medíocres em
paz, e vá direito aos grandes. Com eles é que o meu amigo deve
medir forças. Trate de ser alto e forte com eles, e renuncie a esse
trabalho infrutífero e triste de remexer miçangas e alfinetes,
acocorado numa esteira.

Lá é que eu desejo ver aplicadas as excelentes disposições
que V. revela para a crítica, e que nos hão de dar daqui a pouco
o nosso respeitável Brandes, ou o nosso compendioso Faguet.

Ex-corde…

(O elogio da mediocridade, 1924.)

Soneto

A terra é dura, o sol é bravo; a geada
destruidora; aves más e más formigas
assolam tudo, e a planta acarinhada
mal resiste a essas forças inimigas.

Que importa! Lavra sempre. Não maldigas
a terra ingrata. Não maldigas nada.
Talvez um dia o preço das fadigas
brote do sulco da robusta enxada.

Mas, quanto mais a terra é ingrata, e bravo
o sol e as aves são cruéis, e o resto,
mais valor mostrarás em continuar.

Que é gentileza não viver escravo
da ganância, e plantar só pelo gesto
religioso e sereno de plantar!

Um Soneto de Bilac

A terra é dura, o sol é bravo; a geada
destruidora; aves más e más formigas
assolam tudo, e a planta acarinhada
mal resiste a essas forças inimigas.

Que importa! Lavra sempre. Não maldigas
a terra ingrata. Não maldigas nada.
Talvez um dia o preço das fadigas
brote do sulco da robusta enxada.

Mas, quanto mais a terra é ingrata, e bravo
o sol e as aves são cruéis, e o resto,
mais valor mostrarás em continuar.

Que é gentileza não viver escravo
da ganância, e plantar só pelo gesto
religioso e sereno de plantar!

Vencedor

Um dia, enfim, na senda em que vais, dura e flórea,
ao termo chegarás da exaustiva escalada,
e, depondo o bastão, a lira, a cruz, ou a espada,
cingirás o laurel da mais alta vitória.

Um bardo, uma ovação, tropéis… Depois, mais nada.
Inda todo a fremir da áspera trajetória,
entrarás bocejando a áurea porta da Glória,
e olharás com surpresa a multidão calada.

Olhá-la-ás com rancor, vendo-a seguir a esmo,
vaga a eternos vaivéns e remoinhos sujeita.
E não terás razão, porque a glória é assim
mesmo…

A onda humana avançou, cresceu, ergueu-te, numa
investida triunfal; depois, recuou desfeita…
Como há de a onda parar, para que brilhe a espuma ?
(Poesias, 1931.)

Versos nevoentos

Um dia, enfim, na senda em que vais, dura e flórea,
ao termo chegarás da exaustiva escalada,
e, depondo o bastão, a lira, a cruz, ou a espada,
cingirás o laurel da mais alta vitória.

Um bardo, uma ovação, tropéis… Depois, mais nada.
Inda todo a fremir da áspera trajetória,
entrarás bocejando a áurea porta da Glória,
e olharás com surpresa a multidão calada.

Olhá-la-ás com rancor, vendo-a seguir a esmo,
vaga a eternos vaivéns e remoinhos sujeita.
E não terás razão, porque a glória é assim
mesmo…

A onda humana avançou, cresceu, ergueu-te, numa
investida triunfal; depois, recuou desfeita…
Como há de a onda parar, para que brilhe a espuma ?
(Poesias, 1931.)

Vóz Íntima

Fecha-te, sofredor, na alva túnica ondeante Dos sonhos! E caminha, e
prossegue, embebido, Muito embora, na dor de um fiei celebrante De um estranho
ritual desdenhado e esquecido! Deixa ressoar em torno o bárbaro alarido,
Deixa que voe o pó da terra em torno… Adiante! Vai tu só,
calmo e bom, calmo e triste, envolvido Nessa túnica ideal de sonhos,
alvejante.

Sê, nesta escuridão do mundo, o paradigma De um desolado espectro,
uma sombra, um enigma, Perpassando sem ruído a caminho do Além.

E só deixes na terra uma reminiscência: A de alguém que
assistiu à luta da existência, Triste e só, sem fazer
nenhum mal a ninguém.

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