Os Cus de Judas

PUBLICIDADE

Clique nos links abaixo para navegar no capítulo desejado:


A
B
C
D
E
F
G
H
I
J
L
M

N
O
P
Q
R
S
T
U
V
X
Z

A

Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do rinque de patinagem sob
asárvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento
em elipsesvagorosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias
curtas e botasbrancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de
gaze como as que nosaeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão
que se dissolvem nosouvidos à maneira de fins de rebuçado na concha da língua.

Não sei se lhe parece idiotao que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando
nós lá íamos com o meu pai, osbichos eram mais bichos, a solidão de esparguete
da girafa assemelhava-se à de umGulliver triste, e das lápides do cemitério
dos cães subiam de tempos a tempos latidosaflitos de caniche. Cheirava aos
corredores do Coliseu ao ar livre, cheios de esquisitospássaros inventados
em gaiolas de rede, avestruzes idênticas a professoras de ginásticasolteiras,
pinguins trôpegos de joanetes de contínuo, catatuas de cabeça à banda comoapreciadores
de quadros; no tanque dos hipopótamos inchava a lenta tranquilidade dosgordos,
as cobras enrolavam-se em espirais moles de cagalhão, e os crocodilosacomodavam-se
sem custo ao seu destino terciário de lagartixas patibulares.

Os plátanosentre as jaulas acinzentavam-se como os nossos cabelos, e afigurava-se-me
que, de certomodo, envelhecíamos juntos: o empregao de ancinho que empurrava
as folhas para umbalde aparentava-se, sem dúvida, ao cirurgião que me varreria
as pedras da vesículapara um frasco coberto de rótulo de adesivo; uma menopausa
vegetal em que os caroçosda próstata e os nós dos troncos se aproximavam e
confundiam irmanar-nos-ia namesma melancolia sem ilusões; os queixais tombavam
da boca como frutos podres, apele da barriga pregueava-se de asperezas de
casca. Mas não era impossível que umhálito cúmplice nos sacudisse as madeixas
do ramos mais altos, e uma tosse qualquerrompesse a custo o nevoeiro da surdez
em mugidos de búzio, que a pouco e poucoadquiriam a tranquilizador tonalidade
da bronquite conjugal.

O restaurante do Jardim, onde o odor dos animais se insinuava em farraposdiluídos
no fumo do cozido, apimentando de uma desagradável sugestão de cerdas osabor
das batatas e conferindo à carne gostos peludos de alcatifa, encontrava-seordinariamente
repleto, em doses equitativas, de grupos excursionistas e de mãesimpacientes,
que afastavam com os garfos balões à deriva como sorrisos distraídos, aarrastarem
pontas de guita atrás de si, tal as noivas volantes de Chagall a bainha dosvestidos.
Senhoras idosas vestidas de azul, com tabuleiros de bolos na barriga,ofereciam
travesseiros mais poeirentos do que as suas bochechas folhadas, perseguidaspelo
fastio pegajoso das moscas. Cães esqueléticos de retábulo medieval hesitavamentre
a biqueira dos empregados e as salsichas que sobravam dos pratos para o chão
àlaia de dedos supérfluos, luzidios da brilhantina do óleo. Os barcos que
pedalavam notanque ameaçavam a todo momento entrar vogando pelas janelas abertas,
a oscilaremsobre ondas hostis de guardanapos de papel. E lá fora, indiferente
à música fosca que osaltifalantes embaciavam, aos lamentos viúvos do boi-cavalo,
à jovialidade depandeiretas cansadas dos excursionista e ao pasmo da minha
admiração comovida, o professor preto continuava a deslizar imóvel no rinque
de patinagem debaixo dasárvores com a majestade maravilhosa e insólita de
um andor às arrecuas.

Se fôssemos, por exemplo, papa-formigas, a senhora e eu, em lugar deconversarmos
um com o outro neste ângulo de bar, talvez que eu me acomodassemelhor ao seu
silêncio, às suas mãos paradas no copo, aos seus olhos de pescada devidro
boiando algures na minha calva ou no meu umbigo, talvez que nos entender numacumplicidade
de trombas inquietas farejando a meias no cimento saudades de insetosque não
há, talvez que nos uníssemos, a coberto do escuro, em coitos tão tristes como
asnoites de Lisboa, quando os netunos dos lagos se despem do lodo do seu musgo
epasseiam nas praças vazias ansiosas órbitas ferrugentas.

Talvez que finalmente mefalasse de si. Talvez que atrás da sua testa de Cranach
exista, adormecida, uma ternurasecreta pelos rinocerontes. Talvez que, palpando-me
me descubra de repente unicórnio,a abrace, e você agite os braços espantados
de borboleta cravada em alfinete, pastosa deternura. Compraríamos bilhetes
para o comboio que circula no jardim, de bicho embicho, o seu motor de corda,
evadido de um castelo-fantasma de província, acenando depassagem à gruta de
presépio dos ursos brancos, tapetes reciclados. Observaríamosoftalmologicamente
a conjuntivite anal dos mandris, cujas pálpebras se inflamam dehemorroidas
combustíveis. Beijar-nos-íamos diante das grades dos leões, roídos de traçacomo
casacos velhos, a arregaçarem os beiços sobre as gengivas desmobiladas. Euafago-lhe
os seios à sombra oblíqua das raposas, você compra-me um gelado depauzinho
ao pé do recinto dos palhaços, bofetadas de sobrancelha para cima que umsaxofone
trágico sublinha. E teríamos recuperado dessa forma um pouco da infância quea
nenhum de nós pertence, e teima em descer pelo escorrega num riso de que nos
chega,de longe em longe e numa espécie de raiva, o eco atenuado.

Lembra-se das águias de pedra da entrada do Jardim e das bilheteirassemelhantes
a guaritas de sentinela onde oficiavam empregados bolorentos, a piscaremórbitas
míopes de mocho na penumbra úmida? Os meus pais moravam não muito longe,perto
de uma agência de caixões, mãos de cera e bustos do padre Cruz, que os uivosnoturnos
dos tigres faziam vibrar de terror artrítico nas prateleiras da montra, inválidosdo
comércio místicos que decoravam os topos dos frigoríficos sobre ovais de crochê,
detal forma que o ronronar dos aparelhos se diria nascer dos seus esôfagos
de barro,afligidos de indigestões de galhetas. Da janela do quarto dos meus
irmãos enxergava-sea cerca dos camelos, a cujas expressões aborrecidas faltava
o complemento de umcharuto de gestor. Sentado na retrete, onde um resto de
rio agonizava em gargarejos deintestino, escutava os lamentos das focas que
um diâmetro excessivo impedia deviajarem pela canalização e de descerem no
jato das torneiras grunhidos impacientes deexaminador de Matemática. A cama
da minha mãe gemia em certas madrugadas olumbago do elefante desdentado que
tocava a sineta contra um molho de couves, numcomércio centenariamente inalterável
à inflação, comandada pela asma do meu pai emassopros ritmados de cornaca.
A mulher dos amendoins, a que faltava o cotoveloesquerdo, montava a sua indústria
de alcofas nos baixos da nossa varanda, e narrava àminha avó em discursos
verticais, de baixo para cima, as bebedeiras do marido, atravésde cuja violência
explodiam capítulos de Máximo Gorki da Editorial Minerva. Asmanhãs povoavam-se
e tucanos e de hibiscos servidos com as carcaças do pequenoalmoçoque abandonavam
nos dedos a farinha ou o pó dos móveis por limpar. Amancha do sol da tarde
trotava no soalho na cadência furtiva das hienas, revelando eescondendo os
desenhos sucessivos do tapete, o relevo lascado do rodapé, o retrato deum
tio bombeiro na parede, iluminado de bigodes, de que o capacete areado cintilavareflexos
domésticos de maçaneta. No vestíbulo havia um espelho biselado que de noitese
esvaziava de imagens e se tornava tão fundo como os olhos de um bebê que dorme,
capaz de conter em si todas as árvores do Jardim e os orangotangos dependurados
dassuas argolas à laia de enormes aranhas congeladas. Por essa época, eu alimentava
aesperança insensata de rodopiar um dia espirais graciosas em torno das hipérbolesmajestáticas
do professor preto, vestido de botas brancas e calças cor-de-rosa,deslizando
no ruído de roldanas com que sempre imaginei o voo difícl dos anjos deGiotto,
a espanejarem nos seus céus bíblicos numa inocência de cordéis. As árvores
dorinque fechar-se-iam atrás de mim entrelaçando as suas sombras espessas,
e seria essa aminha forma de partir. Talvez que quando eu for velho, reduzido
aos meus relógios eaos meus gatos num terceiro andar sem elevador, conceba
o meu desaparecimento nãocomo o de um náufrado submerso por embalagens de
comprimidos, cataplasmas, chásmedicinais e orações ao Divino Espírito Santos,
mas sob a forma de um menino que seerguerá de mim como a alma do corpo nas
gravuras do catecismo, para se aproximar,em piruetas inseguras, do negro muito
direito, de cabelo esticado a brilhantina, cujosbeiços se curvam no sorriso
enigmático e infinitamente indulgente de um buda depatins.

Este anjo da guarda de gravata desde sempre substituiu dentro de mim a pagelavirtuosa
da Sãozinha e as suas bochechas equívocas de Mae West de sacristia, envolvidaem
amores místicos com um cristo de bigodinho à Fairbanks no cinema mudo dooratório
das tias, que moravam em grandes casas escuras, com os baixos-relevos dossofás
e dos móveis adensando a penumbra, onde as teclas dos pianos cobertos por
xailesde damasco cintilavam a sua cárie de bemóis. Em cada edifício da Rua
BarataSalgueiro, triste como a chuva num recreio de colégio, habitava uma
parente idosaremando de bengala na vazante das alcatifas repletas de jarrões
chineses e de contadoresde embutidos, que o mar de gerações de comerciantes
de pera ali abandonara comonuma praia final. Cheirava a fechado, a gripe e
a biscoito, e só as grandes tinasoxidadas, de pernas em forma de garras de
esfinge, com a linha da água ausenteassinalada por uma orla castanha semelhante
a um vinco de boné na testa, se meafiguravam vivas, procurando com as ávidas
goelas desmesuradas as tetas de cobre dastorneiras, de que desciam, de quando
em quando, lágrimas raras como gotas de argirol.Nas cozinhas idênticas ao
laboratório de química do liceu, com um calendário dasMissões com muitos pretinhos
na parede, criadas sem idade, que se chamavam todasAlbertina, preparavam canjas
sem sal resmungando nos tachos pedaços de terço,destinados a condimentar o
arroz branco. Nos esquentadores antiquíssimos,contemporâneos da marmita de
Papin, as chamas do gás adquiriam a forma instável depétalas frágeis, oscilando
à beira de um estoiro catastrófico que reduziria a cacosirreconhecíveis a
última chávena de Sèvres. As janelas não se distinguiam dos quadros:no vidro
ou na tela, as mesmas árvores de Outubro encolhiam-se como pilas transidasdepois
de um banho de piscina, a que se enrolavam as serpentinas desbotadas de umcarnaval
defunto.

As tias avançavam aos arrancos como dançarinas de caixinha demúsica nos derradeiros
impulsos da corda, apontavam-me às costelas a ameaça poucosegura das bengalas,
observavam-me com desprezo os enchumaços do casaco eproclamavam azedamente:

– Estás magro como se as minhas clavículas fossem mais vergonhosas que um
rastro de bâton no colarinho.

Um pêndulo inlocalizável, perdido entre trevas de armários, pingava horasabafadas
num qulquer corredor distante, atravancado de arcas de cânfora, conduzinho
aquartos hirtos e úmidos, onde o cadáver de Proust flutuava ainda, espalhando
no arrarefeito um hálito puído de infância. As tias instalavam-se a custo
no rebordo depoltronas gigantescas decoradas por filigranas de crochê, serviam
o chá em bules trabalhados como custódias manuelinas, e completavam a jaculatória
designando com acolher do açúcar fotografias de generais furibundos, falecidos
antes do meu nascimentoapós gloriosos combates de gamão e de bilhar em messes
melancólicas como salas dejantar vazias, de Últimas Ceias substituídas por
gravuras de batalha:

– Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem.

Esta profecia vigorosa, transmitida ao longo da infância e da adolescência
pordentaduras postiças de indiscutível autoridade, prolongava-se em ecos estridentes
nasmesas de canasta, onde as fêmeas do clã forneciam à missa dos domingos
umcontrapeso pagão a dois centavos o ponto, quantia nominal que lhes servia
de pretextopara expelirem, a propósito de um beste, ódios antigos pacientemente
segregados. Oshomens da família, cuja solenidade pomposa me fascinara antes
da primeira comunhão,quando eu não entendia ainda que os seus conciliábulos
sussurrados, inacessíveis evitais como as assembleias dos deuses, se destinavam
simplesmente a discutir osméritos fofos das nádegas da criada, apoiavam gravemente
as tias no intuito deafastarem uma futura mão rival em beliscões furtivos
durante o levantar dos pratos. Oespectro de Salazar pairava sobre as calvas
pias labaredazinhas de Espírito Santocorporativo, salvando-nos da ideia tenebrosa
e deletéria do socialismo. A PIDEprosseguia corajosamente a sua valorosa cruzada
contra a noção sinistra de democracia,primeiro passo para o desaparecimento,
nos bolsos ávidos de ardinas e marçanos, dofaqueiro de cristofle. O cardeal
Cerejeira, emoldurado, garantia, de um canto, aperpetuidade da Conferência
de São Vicente de Paula, e, por inerência, dos pobresdomesticados. O desenho
que representava o povo em uivos de júbilo ateu em torno deuma guilhotina
libertária fora definitivamente exilado para o sótão, entre bidês velhos ecadeiras
coxas, que uma fresta poeirenta de sol aureolava do mistério que acentua asinutilidades
abandonadas. De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de umnavio
cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida aoGoverno
que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso nocais,
consentindo, num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidãoagitada
e anônima semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir,impotente,
à sua própria morte.

B

Conhece Santa Margarida? Digo isto porque, às vezes, na messe dos oficiaisdecorada
com o mau gosto obstinadamente impessoal da sala de espera de um dentistade
Moscavide (flores de plástico, oleografias imprecisas cujos arabescos monótonos
seconfundem com o papel da parede, cadeiras hirtas semelhantes a quadrúpedesdesirmanados
pastando num acaso sem simetria as franjas gastas dos tapetes), osmajores
em reboliço abandonavam os copos de uísque, de cubos de gelo substituídospor
dados de pôquer, para, eretos como soldados de chumbo barrigudos, saudarem
aentrada de uma senhora que qualquer coronel subitamente urbano comboiava,
deixandoatrás de si, perceptível na tremura dos galões, um rastro cochichado
de cio de caserna,que se cristalizaria em esquemas explicativos no mármore
venoso dos urinóis, destinadoà alfabetização dos faxinas. A masturbação era
a nossa ginástica diária, êmbolosencolhidos nos lençóis gelados à maneira
de fetos idosos que nenhum úterodesibernaria, enquanto, lá fora, os pinheiros
e a névoa se confundiam numa tramainextricável de sussurros úmidos, sobrepondo
à noite a noite pegajosa dos seus troncos,açucarados do algodão de feira popular
da bruma. Como em pequeno na Praia das Maçãs, percebe, no fim de Setembro,
quando nos deitávamos e o corpo se assemelhavaa uma sementinha perdida no
colchão enorme, enrugada e trêmula, agitando osfilamentos peludos dos membros
em espasmos assustados pelo som do mar lá em baixo,vinde de parte nenhuma,
a retrair e a distender a bronquite pedregulhosa do seu pulmãoinvisível. Os
relógios de cuco davam lugar a cornetas igualmente irritantes, a farda e apele
convergiam numa carapaça única de quitina militar, os cabelos rapados e asformaturas
traziam-me à memória as colônias de férias da infância e o seu cheiro a docee
azedo de pouca água, feito de resignação vagamente indignada. Aos domingos,
afamília em júbilo vinha espiar a evolução da metamorfose da larva civil a
caminho doguerreiro perfeito, de boina cravada na cabeça como uma cápsula,
e botas gigantescascobertas da lama histórica de Verdun, a meio caminho entre
o escuteiro mitômano e osoldado desconhecido de carnaval. E tudo decorria,
entretanto, na atmosfera de colégiointerno que os quartéis sutilmente prolongam,
com os seus segredos, os seus gruposiniciáticos, os seus estratagemas de perversidade
primária destinados a iludir avigilância de prefeitos dos comandantes, mais
preocupados com o trunfo do brídge, decuja escolha dependeria o rumo tranquilo
ou tempestuoso da digestão do jantar, do quecom as convulsões noturnas das
camaratas perdidas atrás da caspa bolorenta dosplátanos, onde cães magros
como galgos de Greco se uniam em coitos melancólicos,fixando-nos com olhos
dolorosamente implorativos de freiras moribundas.

Em Mafra, sob a chuva, vi correr os ratos entre os beliches na tristezadesmesurada
do convento, labirinto de corredores assombrados por fantasmas defurriéis.
Em Tomar, onde os peixes sobem do Mouchão para vogarem ao acaso pelasruas
em cardumes cintilantes, construí Jerônimos de paus de fósforo admirados pelasescleróticas
amarelas dos paraquedistas com hepatite. Em Elvas, à ilharga de umaspirante
gordo e inseguro como um pudim flan na borda de um prato, desejei evaporarmenas
muralhas da cidade à maneira dos violinistas de Chagall no azul espesso da
tela,batendo as desajeitadas asas de cotão das minhas mangas militares, até
pousar em Parispara uma revolução de exílio feita de quadros abstrato e de
poemas concretos, a que oDiário de Notícias da Casa de Portugal forneceria
o lastro lusitano de anúncios decasamento castos como notários hipermétropes,
e de missas do sétimo dia adoçadas pelosorriso sem carne dos mortos. E em
Santa Margarida, aguardando o embarque, pastoreeilongas bichas de soldados
a caminho de um dentista demente que despovoava gengivasuivando de felicidade
assassina:

– Com os queixais da gajada não vai colega ter problemas – berrava-me ele,encostado
à sua cadeira horrenda, reluzente de satisfação e de suor, a enterrar omaçarico
em chamas da broca num maxilar apavorado.

As senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair osvisons
da menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com
aefígie de Salazar, acompanhadas de padre-nossos nacionalistas e de ameaças
do infernobíblico de Peniche, onde os agentes da PIDE superavam em eficácia
os inocentes diabosde garfo em punho do catecismo. Sempre imaginei que os
pelos dos seus púbis fossemde estola de raposa, e que das vaginas lhes escorressem,
quando excitadas, gotas de MaGriffe e baba de caniche, que abandonavam rastros
luzidios de caracol na murchidãodas coxas. Sentadas à mesa do brigadeiro,
comiam a sopa com a ponta dos beiços talcomo os doentes das hemorroidas se
acomodam no vértice dos sofás, deixando nosguardanapos de papel pegadas de
copas de bâton de que se evolavam ainda desgostoscom as criadas e restos de
tiradas patrióticas, e reencontrei-as no portaló do barco namanhã da partida,
encorajando-nos com maços de cigarros Três Vintes e apertos de mãoviris em
que as falanges, falanginhas e falangetas se articulavam entre si por intermédiodos
anéis de brasão:

– Sigam descansados que nós na retaguarda permanecemos vigilantes.

E com efeito, observando bem, pouca coisa havia a recear de nádegas tão tristes,
em relação às quais as cintas se conformavam com o papel secundário de fundas
herniárias.

E depois, sabe como é, Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilhãocada
vez mais atenuados de marchas marciais em cujos acordes rodopiavam os rostostrágicos
e imóveis de despedida, que a lembrança paralisa nas atitudes de espanto.
Oespelho do camarote devolvia-me feições deslocadas pela angústia, como um
puzzledesarrumado, em que a careta aflita do sorriso adquiria a sinuosidade
repulsiva de umacicatriz. Um dos médicos, dobrado no colchão do beliche, soluçava
aos arrancos empalpitações irregulares de motor de táxi que se engasga, o
outro contemplava os dedoscom a atenção vazia dos recém-nascidos ou dos idiotas
que lambem longamente asunhas com os olhos extasiados, e eu perguntava a mim
próprio o que fazíamos ali,agonizantes em suspenso no chão de máquina de costura
do navio, com Lisboa a afogarsena distância num suspiro derradeiro de hino.
Subitamente sem passado, com o portachavese a medalha de Salazar no bolso,
de pé entre a banheira e o lavatório de quartode bonecas atarraxados à parede,
sentia-me como a casa dos meus pais no Verão, semcortinas, de tapetes enrolados
em jornais, móveis encostados aos cantos cobertos degrandes sudários poeirentos,
as pratas emigradas para a copa da avó, e o gigantesco ecodos passos de ninguém
nas salas desertas. Como quando se tosse nas garagens à noite,pensei, e se
sente o peso insuportável da própria solidão, nas orelhas, sob a forma deestampidos
reboantes, idênticos ao pulsar das têmporas no tambor do travesseiro.

Ao segundo dia alcançamos a Madeira, bolo-rei enfeitado de vivendascristalizadas
a flutuar na bandeja de louça azul do mar, Alenquer à deriva no silêncio datarde.
A orquestra do navio resfolegava boleros para os oficiais melancólicos comocorujas
na aurora, e do porão onde os soldados se comprimiam subia um bafo espessode
vomitado, odor para mim esquecido desde os meios-dias remotos da infância,quando
na cozinha, à hora das refeições, se agitavam à volta da minha sopa relutante
ascaretas alternadamente persuasivas e ameaçadoras da família, sublinhando
cada colhercom uma salva de palmas festiva, até que alguém mais atento gritava:

– Cantem o Papagaio Loiro que o miúdo está a puxar o vômito.

Em resposta a este aviso terrível, todos aqueles adultos desatavam a desafinarem
uníssono como no naufrágio do Titanic, de beiços arrepiados sobre os dentes
deouro, uma criada batia tampas de tacho a compasso, o jardineiro fingia marchar
devassoura ao ombro, e eu devolvia ao prato um roldão de massa e arroz que
meobrigavam a reengolir, desta vez sem coro, sibilando em voz baixa insultos
furibundos.Agora, percebe, estendido no convés numa cadeira de repouso, a
sentir no progressivosuor do colarinho a implacável metamorfose do Inverno
de Lisboa no Verão gelatinosodo Equador, mole e quente como as mãos do senhor
Melo, barbeiro do avô, no meupescoço, na loja da Rua 1º de Dezembro, onde
a umidade multiplicava o cromado dastesouras nos espelhos canhotos, o que
com mais veemência me apetecia era que, talcomo nesses tempos recuados, a
Gija me viesse coçar as costas estreitas de menino numvagar feito da paciência
da ternura, até eu adormecer de sonhos lavrados pelo ancinhodos seus dedos
apaziguadores, capazes de me expulsarem do corpo os fantasmasdesesperados
ou aflitos que o habitam.

C

Luanda começou por ser um pobre cais sem majestade cujos armazénsondulavam
na umidade e no calor. A água assemelhava-se a creme solar turvo a luzirsobre
pele suja e velha que cordas podres sulcavam de veias ao acaso. Negrosdesfocados
no excesso de claridade trêmula acocoravam-se em pequenos grupos,observando-nos
com a distração intemporal, ao mesmo tempo aguda e cega, que seencontra nas
fotografias que mostram os olhos voltados para dentro de John Coltranequando
sopra no saxofone a sua doce amargura de anjo bêbedo, e eu imaginava adiantesdos
beiços grossos de cada um daqueles homens um trompete invisível, pronto a
subirverticalmente no ar denso como as cordas dos faquires. Pássaros brancos
e magrosdissolviam-se nas palmeiras da baía ou nas casas de madeira da Ilha
ao longe,submersas de arbustos e de insetos, nas quais putas cansadas por
todos os homens semternura de Lisboa ali vinham beber os últimos champanhes
de gasosa, à maneira debaleias agonizantes ancoradas numa praia final, movendo
de tempos a tempos as ancasao tirmo de pasodoble de uma angústia indecifrável.
Alferes pequeninos e de óculos,com ar competente de estudantes-trabalhadores
escrupulosos, pastorearam-nos aossaltinhos na direção de carruagens de gado
que aguardavam num pontão coberto dedetritos e de limos, pontão da Cruz Quebrada,
lembra-se, onde os esgotos morremestendidos aos pés da cidade, cães idosos
que bolsam no capacho vômitos de lixo: emtoda a parte do mundo a que aportamos
vamos assinalando a nossa presença aventureiraatravés de padrões manuelinos
e de latas de conserva vazias, numa sutil combinação deescorbuto heroico e
de folha-de-flandres ferrugenta. Sempre apoiei que se erguesse emqualquer
praça adequada do País um monumento ao escarro, escarro-busto, escarromarechal,escarro-poeta,
escarr-homem de Estado, escarro-equestre, algo que contribua,no futuro, para
a perfeita definição do perfeito português: gabava-se de fornicar eescarrava.
Quanto à filosofia, minha cara amiga, basta-nos o artigo de fundo do jornal,tão
rico de ideias como o deserto do Gobi de esquimós. De modo que, de cérebroexaurido
por raciocínios complicados, tomamos ampolas bebíveis às refeições a fim deconseguir
pensar.

Apetece-lhe outro drambuie? Falar em ampolas bebíveis dá-me sempre sede delíquidos
xaroposos, amarelos, na esperança insensata de descobrir, por intermédio delese
da suave e jovial tontura que me proporcionam o segredo da vida e das pessoas,
aquadratura do círculo das emoções. Por vezes, ao sexto ou sétimo cálice,
sinto quequase o consigo, que estou prestes a consegui-lo, que as pinças canhestras
do meuentendimento vão colher, numa cautela cirúrgica, o delicado núcleo do
mistério, maslogo de imediato me afundo no júbilo informe de uma idiotia pastosa
a que me arrancono dia seguinte, a golpes de aspirina e sais de frutos, para
tropeçar nos chinelos acaminho do emprego, carregando comigo a opacidade irremediável
da minha existência,tão densa de um lodo de enigmas como pasta de açúcar na
chávena matinal. Nunca lheaconteceu isto, sentir que está perto, que vai lograr
num segundo a aspiração adiada eeternamente perseguida anos a fio, o projeto
que é ao mesmo tempo o seu desespero e asua esperança, estender a mão para
agarrá-lo numa alegria incontrolável e tombar, desúbito, de costas, de dedos
cerrados sobre nada, à medida que a aspiração ou o projetose afastam tranquilamente
de si no trote miúdo da indiferença, sem a fitarem sequer?Mas talvez que você
não conheça essa espécie horrorosa de derrota, talvez que ametafísica constitua
apenas para si um incômodo tão passageiro como uma comichãoefêmera, talvez
que a habite a jubilosa leveza dos botes ancorados, balouçando devagarnuma
cadência autônoma de berços. Uma das coisas, aliás, que me encanta em si,
permita-me que lho afirme, é a inocência, não a inocência inocente das crianças
e dospolícias, feita de uma espécie de virgindade interior obtida à custa
da credulidade ou daestupidez, mas a inocência sábia, resignada, quase vegetal,
diria, dos que aguardam dosoutros e deles próprios o mesmo que você e eu,
aqui sentados, esperamos do empregadoque se dirige para nós chamado pelo meu
braço no ar de bom aluno crônico: uma vagaatenção distraída e o absoluto desdém
pela magra gorjeta da nossa gratidão.

O comboio cheio de malas e do receio tímido de estrangeiros em terradesconhecida,
cuja lusitanidade se nos afigurava tão problemática como a honestidadede um
ministro, rolou do cais para os musseques num gingar inchado de pombo. Amiséria
colorida dos bairros que cercavam Luanda, as coxas lentas das mulheres, asgordas
barrigas de fome das crianças imóveis nos taludes a olharem-nos, arrastando
poruma guita brinquedos irrisóris, principiaram a acordar em mim um sentimento
esquisitode absurdo, cujo desconforto persistente vinha sentindo desde a partida
de Lisboa, nacabeça ou nas tripas, sob a forma física de uma aflição inlocalizável,
aflição que um dospadres presentes no navio parecia compartilhar comigo, afadigado
em encontrar nobreviário justificações bíblicas para massacres de inocentes.
Encontrávamo-nos àsvezes, à noite, na amurada, ele de livro em punho e eu
de mãos nos bolsos, para fitar asmesmas ondas negras e opacas em que reflexos
ocasionais (de que luzes? de queestrelas? de que gigantescas pupilas?) saltavam
como peixes, como se buscássemos,naquela escura extensão horizontal que as
hélices do barco aravam, uma esclarecedoraresposta a inquietações informuladas.
Perdi esse padre de vista (uma das minhas sinas,aliás, consiste em perder
rapidamente de vista todos os padres e todas as mulheres queencontro) mas
recordo com a nitidez de um pesadelo infantil a sua careta de Noéperplexo,
embarcado à força numa arca de bichos com cólicas, que arrancaram àsflorestas
natais das suas repartições, das suas mesas de bilhar e dos seus clubesrecreativos,
para os lançar, em nome de ideais veementes e imbecis, em dois anos deangústia,
de insegurança e de morte. Acerca da veracidade desta última, de resto, nãosobejavam
dúvidas: grandes caixões repletos de féretros ocupavam uma parte do porão,e
o jogo, um pouco macabro, consistia em tentar adivinhar, observando os rostos
dosoutros e o nosso próprio, os seus habitantes futuros. Aquele? Eu? Ambos?
O majorgordo lá ao fundo a conversar com o alferes de transmissões? Sempre
que se examinamexageradamente as pessoas elas começam a adquirir, insensivelmente,
não um aspectofamiliar mas um perfil póstumo, que a nossa fantasia do desaparecimento
delasdignifica. A simpatia, a amizade, um certa ternura até, tornam-se mais
fáceis, acomplacência surge sem custo, a idiotia ganha a sedução amável da
ingenuidade. Nofundo, claro, é a nossa própria morte que tememos na vivência
da alheia e é em facedela e por ela que nos tornamos submissamente cobardes.

Não quer passar ao vodka? Enfrenta-se melhor o espectro da agonia com alíngua
e o estômago a arder, e esse tipo de álcool de lamparina que cheira a perfume
detia-avó possui a benéfica virtude de me incendiar a gastrite e, em consequência,
subir onível da coragem: nada como a azia para dissolver o medo ou antes,
se preferir, paratransformar o nosso passivo egoísmo habitual num estrebuchar
impetuoso, não muitodiverso na esseência mas pelo menos mais ativo: o segredo
da famosa úlcera deNapoleão, percebe?, a chave que elucida Wagram e Austerlitz.
E estes pires de coisaspequeninas, venenosas e salgadas, que o imperador nunca
provou decerto, percorrerãoos nossos intestinos como pedrinhas de soda cáustica
capazes de nos atirarem, a favorda guinada de uma cólica, para as mais loucas
ou doces aventuras. Quem sabe seacabaremos a noite a fazer amor um com o outro,
furibundos como rinocerontes comdores de dentes, até a manhã aclarar lividamente
os lençóis desfeitos pelas nossasmarradas de desespero? Os vizinhos do andar
de baixo cuidarão, atônitos, que trouxe para casa dis paquidermes que se entredevoram
num concerto de guinchos de ódio e departo, e quem sabe se tal novidade despertará
neles humores há muito tempoadormecidos, e os leve a engancharem-se à maneira
das peças desses puzzles japonesesimpossíveis de separar, a não ser pela infinita
paciência de um cirurgião ou a facaexpedita de um capador definitivo. É capaz
de levar o pequeno-almoço à cama a cheirarjá a dentífrico Binaca e a otimismo?
De assobiar pelos incisivos como os padeiros deantigamente, anjos enfarinhados
de cesto ao ombro que substituíam as corujas cansadasdos guarda-noturnos,
e cuja recordação constitui uma das menos melancólicas fatias dasminhas lembranças
de infância? É capaz de amar? Desculpe, a pergunta é tola, todas asmulheres
são capazes de amar e as que o não são amam-se a si próprias através dosoutros,
o que na prática, e pelo menos nos primeiros meses, é quase indistinguível
doafeto genuíno. Não faça caso, o vinho segue o seu curso e daqui a nada peço-lhe
paracasar comigo: é o costume. Quando estou muito só ou bebi em excesso, um
ramalhetede flores de cera de projetos conjugais desata a crescer em mim à
maneira do bolor nosarmários fechados, e torno-me paegajoso, vulnerável, piegas
e totalmente débil; é omomento, aviso-a, de se retirar à sorrelfa com uma
desculpa qualquer, de se meter nocarro num suspiro de alívio, de telefonar
depois do cabeleireiro às amigas a narrar-lhesentre risos as minhas propostas
sem imaginação. No entanto e até lá, se não vêinconveniente, aproximo um pouco
mais a minha cadeira e acompanho-a durante umcopo ou dois.

O comboio que fugiu conosco daquela Cruz Quebrada africana e da sua coroa
deguindastes oxidados e gaivotas pernaltas acabou por depositar-nos numa espécie
dequartel ao largo de Luanda, casernas de cimento a arderem no calor, onde
o suorcrepitava na pele como bolhas de fervura. Nos alojamentos dos oficiais,
cercados debananeiras de grandes folhas franjdas idênticas a asas de arcanjos
em ruína, osmosquitos atravessavam a rede das janelas para produzirem no escuro,
em conjunto, umrumor insistente e agudo em que o meu sangue, sorvido em bochechos
rápidos efinalmente liberto de mim, cantava. Lá fora, um céu de estrelas desconhecidassurpreendia-me:
assaltava-me por vezes a impressão de que haviam sobreposto umuniverso falso
ao meu universo habitual, e que me bastaria romper com os dedos essecenário
frágil e insólito para reingressar de novo no quotidiano do costume, povoado
derostos familiares e de cheiros que me acompanhavam com a fidelidade dos
cachorros.Jantávamos na cidade em esplanadas sórdidas repletas de soldados,
entre cujos joelhoscirculavam de cócoras engraxadores miseráveis, lançando-lhes
às botas soslaiosveementes de paixão, ou indivíduos sem pernas que estendiam
timidamente manipançosesculpidos a canivete, equivalentes às Torres de Belém
de plástico do meu país natal.Sujeitos brancos sebentos, de pasta sob o braço,
trocavam dinheiro português pordinheiro angolano num vagar sabido de agiotas;
ruas, que se pareciam todas com aMorais Soares, aproximavam-se e afastavam-se
num labirinto atrapalhado a caminho dafortaleza; néon provinciano espalhava-se
nos passeios em poças piscas de estrabismoalarajando. Ancorado na baía, o
navio que nos trouxera duplicava o reflexo na águapreparando a partida: ia
regressar sem mim ao Inverno e ao nevoeiro de Lisboa ondetudo prosseguia irritantemente
na minha ausência com o ritmo do costume, permitindomeimaginar, despeitado,
o que se seguiria de modo inevitável à minha morte e que era,afinal, o prolongamento
da indiferença morna e neutra, sem entusiasmo nem tragédias,que eu tão bem
conhecia, feita de dias cosidos uns aos outros numa fúnebre burocraciadesprovida
de inquietações de labareda. Acredita nos sobressaltos, nos grandes lances,nos
terramotos interiores, nos voos planados de êxtase? Desengane-se, minha cara,
tudonão passa de uma mistificação ótica, de um engenhoso jogo de espelhos,
de uma meramaquinação de teatro sem mais realidade que a cartolina e o celofane
do cenário que a enformam e a força da nossa ilusão a conferir-lhe uma aparência
de movimento. Comoeste bar e os seus candeeiros Arte Nova de gosto duvidoso,
os seus habitantes decabeças juntas segredando-se banalidades deliciosas na
euforia suave do álcool, amúsica de fundo a conferir aos nossos sorrisos a
misteriosa profundidade dossentimentos que não possuímos nunca; mais meia
garrafa e cuidar-nos-íamos Vermeer,tão hábeis como ele para traduzir, através
da simplicidade doméstica de um gesto, atocante e inexprimível amargura da
nossa condição. A proximidade da morte torna-nosmais avisados ou, pelo menos,
mais prudentes: em Luanda, à espera de seguir dentro dedias para a zona de
combate, trocávamos com vantagem a metafísica pelos cabaréssafados da ilha,
um pega de cada lado, o balde de espumante Raposeira à frente, e apequena
vesga do strip-tease a despir-se no palco no mesmo alheamento cansado comque
uma cobra velha muda de pele. Acordei algumas vezes em quartos de pensãomanhosa
sem haver entendido sequer como para lá entrara, e vesti-me em silênciobuscando
os sapatos sob um soutien de rendinhas pretas no intuito de não perturbar
osono de um vulto qualquer enrolado nos lençóis, e de que percebia somente
a massaconfusa dos cabelos. De fato, e consoante as profecias da família,
tornara-me umhomem: uma espécie de avidez triste e cínica, feita de desesperança
cúpida, de egoísmo,e da pressa de me esconder de mim próprio, tinha substituído
para sempre o frágilprazer da alegria infantil, do riso sem reservas nem subentendidos,
embalsamado depureza, e que me parece escutar, sabe?, de tempos a tempos,
à noite, ao voltar para casa,numa rua deserta, ecoando nas minhas costas numa
cascata de troça.

D

Não, não me dói nada, talvez um pouco a cabeça, uma insignificância, umaimpressão,
uma tontura. Este rumor monótono de conversa, estes odores misturados, asfeições
que se desarrumam e se deslocam no ato de falar atordoam-me: não conheçoninguém,
não possuo o hábito destes tenplos exóticos em que se sacrificam não jávísceras
de animais mas o próprio fígado, modernas catacumbas a que as lâmpadasvotivas
das luzes raras e o murmúrio de reza das conversas conferem uma tonalidade
dereligião sacrílega de que o barman é o bezerro de oiro, imóvel atrás do
altar-mor dobalcão, cercado pelos diáconos dos frequentadores do costume,
que erguem em seulouvor black-velvets rituais. As cruzes do timol substituem
os crucifixos, jejuamos pelaPáscoa a fim de baixar as gorduras do sangue,
comungamos aos domingos vitaminaspurificadoras, confessamos ao grupanalista
os atropelos à castidade, e recebemos depenitência a sua conta mensal; nada
mudou, como vê, salvo que nos consideramos ateusporque, em lugar de batermos
com a mão no peito, bate o médico por nós com odiafragma do estetoscópio.
Sinto-me aqui, percebe, como sentia em pequeno o meu paina igreja, nas missas
pelos defuntos da família onde chegava invariavelmente a meio,plantado junto
à pia de água benta, de mãos atrás das costas, Robespierre de canadiana adesafiar
as caixas das esmolas e os olhos de barro triste dos santos. Pertenço sem
dúvidaa outro sítio, não sei bem qual, aliás, mas suponho que tão recuado
no tempo e noespaço que jamais o recuperarei, talvez que ao Jardim Zoológico
de dantes e aoprofessor preto a deslizar para trás no rinque de patinagem
sob as árvores, entre osguinchos dos bichos e a campainha do vendedor de gelados.
Se eu fosse girafa amá-la-iaem silêncio, fitando-a de cima da rede numa melancolia
de guindaste, amá-la-ia com oamor desajeitado dos exageradamente altos, mastigando
o chiclets de uma folhapensativa, ciumento dos ursos, dos papa-formigas, dos
ornitorrincos, das catatuas e dos crocodilos, e desceria trabalhosamente o
pescoço pelas roldanas dos tendões paraesconder a cabeça no seu peito em trêmulas
marradas de ternura. Porque, deixe-meconfidenciar-lho, sou terno, sou terno
mesmo antes do sexto JB sem água ou do oitavodrambuie, sou estupidamente e
submissamente terno como um cão doente, um dessescães implorativos de órbitas
demasiado humanas que de quando em quando, na rua, semmotivo, nos colam o
focinho aos calcanhares gemendo torturadas paixões de escravo,que acabamos
por sacudir o pontapé e se afasta, a soluçar, decerto, interiormentesonetos
de almanaque, chorando lágrimas de violetas murchas. Duas coisas, minha boaamiga,
continuo a partilhar com a classe de que venho, desapontando o poster doGuevara,
esse Carlos Gardel da Revolução, que pendurei sobre a cama a fim de que meproteja
dos pesadelos burgueses, e que funciona um pouco para mim como uma espéciede
joia magnética Vitaphor da alma: a emoção fácil que me faz fungar diante datelevisão
da leitaria à hora da novela, e o medo arrepiado do ridículo. O que eu gostava,por
exemplo,de conseguir, sem ostentação nem vergonha, coroar a minha calvícienascente
de um chapéu tirolês de pena. Ou de deixar crescer a unha do dedo mínimo.Ou
de entalar um bilhete de elétrico dobrado na aliança. Ou de atender os meus
doentesvestido de palhaço pobre. Ou de lhe oferecer o meu retrato em coração
de esmalte paravocê usar quando for gorda, porque será gorda um dia, descanse,
todos nós seremosgordos, gordos, gordos e tranquilos, como gatos capados à
espera da morte nas matinéesdo Odeon.

Porém, na época de que lhe falo eu tinha cabelo, bastante cabelo, enfim,
algumcabelo se bem que aparado regularmente curto e escondido dentro do pires
da boinamilitar, e descia de Luanda a caminho de Nova Lisboa na direção da
guerra, através deinacreditáveis horizontes sem limites. Entenda-me: sou homem
de um país estreito evelho, de uma cidade afogada de casas que se multiplicam
e refletem umas às outras nasfrontarias de azulejo e nos ovais dos lagos,
e a ilusão de espaço que aqui conheço,porque o céu é feito de pombos próximos,
consiste numa magra fatia de rio que osgumes de duas esquinas apertam, e o
braço de um navegador de bronze atravessaobliquamente num ímpeto heroico.
Nasci e cresci num acanhado universo de crochê,crochê de tia-avó e crochê
manuelino, filigranaram-me a cabeça na infância,habituaram-me à pequenez do
bibelot, proibiram-me o canto nono de Os Lusíadas eensinaram-me desde sempre
a acenar com o lenço em lugar de partir. Policiaram-me oespírito, em suma,
e reduziram-me a geografia aos problemas dos fusos, a cálculoshorários de
amanuense cuja caravela de aportar às Índias se metamorfoseou numa mesade
fórmica com esponja em cima para molhar os selos e a língua. Já lhe aconteceusonhar
de cotovelos apoiados num desses tampos horríveis e acabar o dia num terceiroandar
de Campo de Ourique ou da Póvoa de Santo Adrião, a ouvir crescer a própriabarba
nos serões vazios? Já sofreu a morte quotidiana de acordar todas as manhãs
aolado de uma pessoa que mornamente se detesta? Irem os dois para o emprego
no carro,olheirentos de sono, pesados já de decepção e cansaço, ocos de palavras,
desentimentos, de vida? Pois imagine que de repente, sem aviso, todo esse
mundo emdiminutivo, toda essa teia de hábitos tristes, toda essa reduzida
melancolia de pisapapéisem que neva lá dentro, em que neva monotonamente lá
dentro, se evaporava, asraízes que a prendem a resignações de almofada bordada
desapareciam, os elos que aagarram a pessoas que a aborrecem se quebravam
e você acordava numa camioneta, nãomuito confortável, é certo, e cheia de
tropas, é verdade, mas circulando numa paisageminimaginável, onde tudo flutua,
as cores, as árvores, os gigantescos contornos dascoisas, o céu abrindo e
fechando escadarias de nuvens em que a vista tropeça até cair decostas, como
um grande pássaro extasiado.

De tempos a tempos, no entanto, Portugal reaparecia sob a forma de pequenaspovoações
à beira da estrada, nas quais raros brancos translúcidos de paludismotentavam
desesperadamente recriar Moscavides perdidas, colando andorinhas de loiçanos
intervalos das janelas ou pendurando lanternas de ferro forjado nos alpendres
dasportas: quem levou séculos a semear igrejas acaba inevitavelmente, por
reflexo, acolocar jarras de flores de plástico no tampo dos frigoríficos,
do mesmo modo queTolstoi, agonizante, movia os dedos cegos no lençol repetindo
o ato de escrever, com adiferença de as nossas frases se resumirem a boas-vindas
de azulejo e a palavras deacolhimento desbotado no capacho da entrada. Até
que ao fim da tarde, um fim de tardesem crepúsculo, com a noite a suceder-se
abruptamente ao dia, chegamos a NovaLisboa, cidade ferroviária no planalto,
de que guardo uma confusa lembrança de cafésprovincianos e de montras poeirentas,
e do restaurante onde jantamos, de espingardaentre os joelhos, obsevados por
mulatos de óculos escuros parados diante de cervejasimemoriais, cujas feições
imóveis possuíam a consistência opaca das cicatrizes; durantetodo o bife senti-me
como que no prefácio do massacre de S. Valentim, prestes atiroteios de Lei
Seca, e levava o garfo à boca no aborrecimento mole de Al Capone,compondo
nos espelhos sorrisos de crueldade manifesta; ainda hoje, sabe, saio docinema
a acender o cigarro à maneira de Humphrey Bogart, até que a visão da minhaimagem
num vidro me desiluda: em vez de caminhar para os braços de Lauren Bacalldirijo-me
de fato para a Picheleira, e a ilusão desaba no fragor lancinante de um mitodesfeito.
Meto a chava à porta (Humphrey Bogart ou eu?), hesito, entro, olho a gravurado
vestíbulo (já definitivamente eu a olhá-la) e afundo-me no sofá no suspiro
de pneuque se esvazia de uma Gata Borralheira ao contrário. Como quando sair
daqui, percebe,ao ter acabado de lhe contar esta história esquisita e de ter
bebido, em vagares decamelo, todas as garrafas visíveis, e me achar lá fora,
ao frio, longe do seu silêncio e doseu sorriso, sozinho como um órfão, de
mãos nos bolsos, a assistir ao nascer da manhãnuma angústia cremosa que a
lividez das árvores macabramente sublinha. Asmadrugadas, de resto, são o meu
tormento, gordurosas, geladas, azedas, repletas deamargura e de rancor. Nada
vive ainda e, todavia, uma ameaça indefinível ganha corpo,aproxima-se, persegue-nos,
incha-nos no peito, impede-nos de respirar livremente, aspregas do travesseiro
petrificam-se, os móveis, agudos, hostilizam-nos. As plantas dosvasos avançam
para nós tentáculos sequiosos, do outro lado dos espelhos objetoscanhotos
recusam-se aos dedos que lhes damos, os chinelos sumiram-se, o roupão nãoexiste,
e no interior de nós, teimoso, insistente, dolorosamente lento, caminha estecomboio
que atravessa Angola, de Nova Lisboa ao Luso, a transbordar de homensfardados
que cabeceiam contra as janelas à procura de um sono impossível.

Conhece o general Machado? Não, não se franza, não procure, ninguém conheceo
general Machado, cem em cada cem portugueses nunca ouviram falar do generalMachado,
o planeta gira apesar desta ignorância do general Machado, e eupessoalmentem
odeio-o. Era o pai da minha avó materna, a qual, aos domingos, antesdo almoço,
me apontava com orgulho a fotografia de uma espécie de bombeiroantipático
de bigodes, dono de numerosas medalhas que tronavam no armário de vidroda
sala juntamente com outros troféus guerreiros igualmente inúteis, mas a que
a famíliaparecia prestar uma veneração de relíquias. Pois fique sabendo que
durante anos,aborrecido e pasmado, escutei semanalmente, em folhetins narrados
pela vozemocionada da avó, as proezas vetustas do bombeiro elevadas na circunstância
a cumesde epopeia: o general Machado envenenou-me anos e anos o bife introduzinho
na carneo mofo indigesto de uma dignidade hirta, cuja rigidez vitoriana me
enjoava. E foiprecisamente esta criatura nefasta, de que as órbitas globulosas
de prefeito ou de curame reprovaram da parede, recusando-me mesmo a absolvição
dúbia que paira como um halo nos sorrisos amarelos dos retratos antigos, que
construiu, ou dirigiu a construção,ou concebeu a construção, ou concebeu e
dirigiu a construção do caminho de ferro emque seguíamos, de rebenta-minas
na dianteira, chocalhando numa planície sem princípionem termo, mastigando
as conservas da ração de combate num desapetite em quemorava já o medo pânico
da morte, que durante vinte e sete meses cresceu na umidadedas minhas tripas
os seus cogumelos esverdeados. Na messe de oficiais do Luso,espécie de Bairro
da Madre de Deus de ruas geométricas e casas econômicas plantadono planalto
dos Bundas, no espírito Portugal dos Pequeninos corporativo que fez doEstado
Novo uma constante aberração por defeito ou por excesso, vi, pela primeira
vezem muito tempo, cortinas, cálices, mulheres brancas e tapetes: a pouco
e pouco aquilo aque durante tantos anos me habituara afastava-se de mim, família,
conforto, sossego, opróprio prazer das maçadas sem perigo, das melancolias
mansas tão agradáveis quandonada nos falta, do tédio à Antonio Nobre nascido
da crença convicta de umasuperioridade ilusória. Por exemplo, a tristeza depois
do jantar substituía as palavrascruzadas do jornal, e entretinha-me a preencher
os quadradinhos em branco detrabalhosas elucubrações oscilando entre o idiota
chapado e o vulgar profundo, limitesaliás entre os quais o pensamento lusitano
se condensa, equivalentes metafísicos dosversos dos cravos de papel. Compreenda-me:
pertencemos a uma terra em que avivacidade faz as vezes do talento e onde
a destreza ocupa o lugar da capacidadecriadora, e creio com frequência que
não passamos de fato de débeis mentaishabilidosos consertando os fusíveis
da alma à custa de expedientes de arame. Inclusiveo estar aqui consigo talvez
não passe de um expediente de arame que me salve da marébaixade desespero
que me ameaça, desespero de que não conheço a causa, percebe, eque à noite
me enrola no visco do seu lodo, me afoga de aflição e de receio, me molha
obeiço de cima de um bigode de suor, me faz tremer os joelhos um contra o
outro emcastanholas de dentadura postiça de porteiro adormecido. Não, a sério,
o crepúsculochega e o coração acelera-se, palpo-o no pulso, as vísceras comprimem-se,
a vesículadói-me, os ouvidos zumbem, qualquer coisa de indefinível e prestes
a romper-se palpita,tenso, no meu peito: um dia destes, o porteiro dá comigo
estendido nu no chão da casade banho, um fio de pasta de dentes e de sangue
ao canto da boca, as pupilassubitamente enorme contemplando nada, a cheirar
mal, sem cor, inchado de gases. Você lê no jornal, não acredita, volta a ler,
verifica o nome, a profissão, a idade, e passadasduas horas esqueceu-se e
virá aqui, como de costume, ancorar o seu silêncio numaenseada de copos, tilintar
em cada mínimo gesto as pulseiras indianas que recordamuma Londres mítica
perdida no nevoeiro do passado, na época em que Bod Dylan falavae as pernas
das vendedoras do Selfridges eram quase tão atraentes como os sorrisos dos
polícias.

Outro vodka? É verdade que não acabei o meu mas neste passo da minhanarrativa
perturbo-me invariavelmente, que quer, foi há seis anos e perturbo-me ainda:descíamos
do Luso para as Terras do Fim do Mundo, em coluna, por picadas de areia,Lacusse,
Luanguinga, as companhias independentes que protegiam a construção daestrada,
o deserto uniforme e feio do Leste, quimbos cercados de arame farpado emtorno
dos pré-fabricados dos quartéis, o silêncio de cemitério dos refeitórios,
casernasde zinco a apodrecer devagar, descíamos para as Terras do Fim do Mundo,
a dois milquilômetros de Luanda, Janeiro acabava, chovia, e íamos morrer,
íamos morrer echovia, chovia, sentado na cabina da camioneta, ao lado do condutor,
de boné nos olhos,o vibrar de um cigarro infinito na mão, iniciei a dolorosa
aprendizagem da agonia.

E

Gago Coutinho, a trezentos quilômetros ao sul do Luso e junto à fronteira
com aZâmbia, era um mamilo de terra vermelha poeirenta entre duas chanas podres,
umquartel, quimbos chefiados por sobas que o Governo Português obrigava a
fantasiascarnavalescas de estrelas e fitas ridículas, o posto da PIDE, a administração,
o café doMete Lenha e a aldeia dos leprosos; uma vez por semana eu sacudia
o badalo do sino decapela pendurado no meio de um círculo de cubatas aparentemente
desertas, no silênciocarregado de ruído que África tem quando se cala, e dezenas
de larvas informesprincipiavam a surgir, manquejando, arrastando-se, trotando,
dos arbustos, das árvoresdas palhotas, dos contornos indecisos das sombras,
larvas de Bosch de todas as idadesem cujos ombros se agitavam, como penas,
franjas de farrapos, avançando para mim àmaneira dos sapos monstruosos dos
pesadelos das crianças, a estenderem os cotosulcerados para os frascos de
remédio. O senhor Jonatão, o enfermeiro negro dadelegação de saúde nominal,
que corria constantemente como os chineses do Tim-Tim,distribuía as pastilhas
na majestade macabra de um ritual eucarístico para desenterradosvivos, alguns
dos quais, já cegos, voltavam para ninguém as órbitas desabitadas,reduzidas
a uma névoa azul-úmida de muco repugnante. Miúdos sem dedos, afligidosde moscas,
agrupavam-se numa pinha muda de espanto, mulheres de feições de gárgulasegredavam-se
diálogos que os céus da boca em ruína tornavam numa pasta de gemidos,e eu
pensava na ressurreição da carne do catecismo, como pedaços de tripas e ergueremsedos
buracos dos cemitérios num despertar vagaroso de ofídeos. Um pouco, percebe,como
se toda esta gente pálida que cochicha curvada em atitudes de feto, enrolando-semutuamente
em torno das nucas os tentáculos sem ossos dos braços, saísse de roldão aporta
do bar, não para a noite domesticada e cúmplice da Lapa, feita do ressonarconjunto
de bassets e de condessas, mas para um dia excessivo iluminado pelo solvertical
das salas de operação dos ringues de boxe, que revelasse sem piedade asolheiras,
as rugas, as pregas de cansaço, a murchidão dos seios, as expressões vazias
quenenhum cognac mobila. O senhor Jonatão, regiamente instalado numa cadeiradesconjuntada,
absolvia de tintura de iodo as feridas que lhe ofereciam pincelando-as deextremas-unções
expeditivas, inúteis esconjuros contra a presença da morte, e eucirculava
ao acaso de quimbo em quimbo assustando velhas esqueléticas acocoradas àentrada
das palhoras, e de que as saias, demasiado largas par as suas ancas de ícones,
seassemelhavam às mangas de papel que embrulham as palhinhas de refresco.
E havia ocheiro de decomposição de mandioca a secar nas esteiras, a umidade,
que se farejava noar, da chuva que crescia, excrementos secos como os cagalhões
de cartão do Entrudo,ratos obesos remexendo o lixo, a chana horizontal ao
longe atavessada por um riosinuoso e estreito como uma veia da mão, e os morcegos
a aguardarem o crepúsculo nosvestígios de templo de Diana de uma casa de colono,
afogada no capim sem cor doesquecimento.

Gago Coutinho era também o café do Mete Lenha, branco sopinha de massacujo
esforço para falar o torcia de caretas de defecação, casado com uma espécie
debotija de gascidla enfeitada de colares estridentes, sempre a queixar-se
aos oficiais dosbeliscões com que os soldados lhe homenageavam as nádegas
atlânticas, difíceis, aliás,de discernir numa mulher aparentada a um imenso
glúteo rolando em que mesmo asbochechas possuíam qualquer coisa de anal e
o nariz se aparentava a a inchaçoincômodo de hemorroida, café para refrescos
inocentes nas tão compridas tarde dedomingo, e onde pela primeira vez o tenente,
confidencial, abriu a carteira para memostrar a fotografia da criada, e revelou,
recostando-se para trás no assento de ferro por demais exíguo para as duas
omoplatas enormes, o produto sintético das meditações de uma vida:

– Sopeira em que o patrão não se ponha nunca chega a criar amor à casa.

No edifício sinistro do hospital civil, idêntico a uma pensão de provínciamoribunda
de paredes empoladas por furúnculos de umidade, os doentes de paludismoestremeciam
de febre nos degraus da entrada, no corredor, na sala de consulta, nocubículo
destinado às injeções, à espera das ampolas de quinino na tranquilidadeimemorial
dos negros, para quem o tempo, a distância e a vida possuem umaprofundeza
e um significado impossíveis de explicar a quem nasceu entre túmulos deinfantas
e despertadores de folha, aguilhoado por datas de batalhas, mosteiros e relógiosde
ponto. Diante da secretária, espessa como um bunker, à qual instalava a minhaciência
de manual, a miséria e a fome desfilavam manhã fora na serenidade monótonada
chuva de Setembro, e a única resposta que a minha impotência me permitia eram
aspastilhas de vitamina da tropa adoçadas por um sorriso de desculpa e de
vergonha.Impedidos de pescar e de caçar, sem lavras, prisioneiros do arame
farpado e das esmolasde peixe seco da administração, espiados pela PIDE, tiranizados
pelos cipaios, osluchazes fugiam para a mata, onde o MPLA, inimigo invisível,
se escondia, obrigandonosa uma alucinante guerra de fantasmas. A cada ferido
de emboscada ou de mina amesma pergunta aflita me ocorria, a mim, filho da
Mocidade Portuguesa, das Novidadese do Debate, sobrinho de catequistas e íntimo
da Sagrada Família que nos visitava adomicílio numa redoma de vidro, empurrado
para aquele espanto de pólvora numaimensa surpresa: sãos os guerrilheiros
ou Lisboa que nos assassinam, Lisboa, osAmericanos, os Russos, os Chineses,
o caralho da puta que os pariu combinados para nofoderem os cornos em nome
de interesses que me escapam, quem me enfiou sem avisoneste cu de Judas de
pó vermelho e de areia, a jogar as damas com o capitão idoso saídode sargento
que cheirava a menopausa de escriturário resignado e sofria do azedumecrônico
da colite, quem me decifra o absurdo disto, as cartas que recebo e me falam
deum mundo que a lonjura tornou estrangeiro e irreal, os calendários que risco
de cruzes acontar os dias que me separam do regresso e apenas achando à minha
frente um túnelinfindável de meses, um escuro túnel de meses onde me precipito
mugindo, boi feridoque não entende, que não entende, que não logra entender
e acaba por enterrar o tristefocinho molhado nos ossos de frango com esparguete
do rancho, do mesmo modo,percebe, que aqui, na sua companhia, me sinto cavalo
de narinas enfiadas na alcofa devodka, mastigando o feno azedo do limão.

A seguir ao jantar os jeeps dos oficiais giravam de palhota em palhota hesitaçõesde
pirilampos: o amor barato e rápido em compartimentos abafados, aclarados porpavios
indecisos de petróleo que coloriam as paredes de barro de uma ilusão de capelas.Chegava-se
de bisnaga antivenérea no bolso e aplicava-se a pomada através dabraguilha
aberta à maneira de uma vulva de pano, sob o olhar indiferente de mulheresde
dentes serrados em triângulo, acocoradas na cama no alheamento de perfil de
certosretratos de Picasso, em cuja curva dos lábios flutuam Guernicas desdenhosas.
Nomesmo colchão dormiam, em regra, os filhos, as galinhas e algum antepassadodecrépito
perdido em pesadelos de múmia, rosnando os hieróglifos dos seus sonhos. Otenente
fornicava de pala do boné para trás e pistola à cinta, com o impedido deespingarda
em riste a vigiar as redondezas, o oficial de operações mandou vir ummáquina
de costura do Luso e cozia bainhas de calça de madrugada ao lado de umanegra
esplêndida, de enérgicos seios pendentes como os da loba de Roma, e o capitãodas
damas, instalado ao volante, pedia a raparigas impúberes que o masturbassem,oferecendo
em troca cartuchinhos de rebuçados de hortelã-pimenta: o branco chegou com
um chicote, cantava o milícia na viola, o branco chegou com um chicote e bateu
no soba e no povo, o branco chegou com um chicote e bateu no soba e no povo.

Se você soubesse o que é acordar com vontade de urinar a meio da noite numanoite
sem lua, vir cá fora mijar e nada existir em torno, nenhuma luz, nenhuma caserna,nenhum
vulto, só o ruído do seu chichi invisível e as estrelas congeladas na meia
laranjado céu, afastadas demais, pequenas demais, inacessíveis demais, prestes
a desaparecerporque a manhã surge de repente e é dia adulto, acordar a meio
da noite e sentir naquietude e no silêncio, percebe?, o sono inumerável de
África, e nós ali de pernasafastadas, em camisa e cuecas, minúsculos, vulneráveis,
ridículos, estranhos, sempassado nem futuro, a flutuar na estreiteza assustada
do presente, coçando a flor-docongodos testículos. Já nessa altura certamente
você acostara neste bar, com o mesmocigarro na mão esquerda, o mesmo copo
na mão direita e a mesma absoluta indiferençanos olhos, inalteravelmente imóvel,
pássaro de pálpebras pintadas pousado no ramo dobanco a tilintar as pulseiras
indianas na música precisa dos seus gestos. Gosto dos seusgestos, assim automáticos
e lentos como os das figuras dos relógios prosseguindo o seutrajetozinho obstinado,
acabava-se de urinar e as bolhas ferviam na terra como se abexiga, sabe como
é, fosse uma chaleira a arder, voltava para dentro, e estendia-me nacama esmaltada
de branco da enfermaria até o primeiro clarim me extrair emsobressalto dos
meus vapores difusos.

De tempos a tempos chegavam visitas inesperadas ao cu de Judas: oficiais
doEstado-Maior de Luanda, que o formol do ar condicionado conservava, quinquagenáriassul-africanas
que beijavam os doentes em arroubos de cio da menopausa, duas atrizes derevista
a agitarem a descompasso as pernas gordas num palco de mesas, acompanhadaspor
um acordeão exausto; jantaram na messe ao lado do comandante reluzente deorgulho,
cuja timidez se embrulhava nos sorrisos de um adolescente em falta, enquantoo
tenente da criada lhes cirandava em torno, farejando os decotes num êstase
mudo. Ocapelão, contrito, descia as pálpebras virgens sobre o breviário da
sopa.

– Quarenta anos a acumular esperma – calculava o capitão idoso a medi-lo
de longe.

– Se aquele gajo se vier afoga-nos a todos na água benta dos tomates.

As atrizes acabaram por dormi no posto da PIDE, vigiadas por agentes biliososcujas
sobrancelhas se franziam de ameaças indecifráveis. Dizia-se que a mulher doinspetor,
espanhola magra com aspecto de contorcionista decadente que se exprimia aosgritos
numa linguagem de circo, torturava ela mesma os prisioneiros inventandomartírios
sem sutiliza de Lucrécia Bórgia das Portas de Santo Antão. Mais tarde, naBaixa
do Cassanje, ouvi falar do enforcamento de um ginga para edificação da sanzala,e
dos negros que cavavam um buraco na mata, desciam para dentro, e aguardavampacientemente
que lhes rebentassem a cabeça a tiro e os cobrissem de areia, puxandoum cobertor
de terra por sobre o sangue dos cadáveres.

– Filhos da puta, filhos da puta, filhos da puta – repetia o tenente, siderado.

O branco veio com um chicote, cantava o milícia na viola, e bateu no soba
e no povo.

F

Já reparou que a esta hora da noite e a este nível do álcool o corpo se começa
aemancipar de nós, a recusar-se a acender o cigarro, a segurar o copo numa
incertezatateante, a vaguear dentro da roupa oscilações de gelatina? O encanto
dos bares, não é?,consiste em, a partir das duas da manhã, não ser a alma
a libertar-se do seu invólucro terreste e a seguir verticalmente para o céu
no esvoaçar místico de cortinas brancas dasmortes do missal, mas a carne que
se livra, um pouco espantada, do espírito, e iniciauma dança pastosa de estátua
de cera que se funde até terminar nas lágrimas de remorsoda aurora, quando
a primeira luz oblíqua nos revela, com implacabilidade radioscópica,o triste
esqueleto da solidão sem remédio. Se no observarmos bem, aliás, podemosprincipiar
a entrever já o perfil dos nossos ossos, que as vírgulas das olheiras e o
acentocircunflexo da boca disfarçam de sorrisos melancólicos de que pendem
restos murchosde ironia idênticos ao braço inerte de um ferido. Talvez o tipo
da mesa ao lado, que odécimo Carvalho Ribeiro Ferreira inclina dezassete graus
para bombordo na rigidez deandor de uma torre de Pisa de casaco de veludo
à beira de queda catastrófica, sejaAmedeo Modigliani a procurar no fundo do
cálice um rosto assassinado de mulher,talvez Fernando Pessoa habite aquele
senhor de óculos ao pé do espelho, em cujaaguardente de pera pulsa o volante
comovido da Ode Marítima, talvez o meu irmãoScott Fitzgerald, que o Blondin
assemelhava a um três quartos ponta irlandês, se sente aqualquer momento à
nossa mesa e nos explique a desesperada ternura da noite e aimpossibilidade
de amar, porque, sabe como é, o vodka confunde os tempos e abole asdistâncias,
você chama-se na realidade Ava Gardner e consome oito toureiros e seiscaixas
de Logans por semana, e, quanto a mim, o meu verdadeiro nome é MalcomLowry,
sou escuro como o túmulo onde jaz o meu amigo, escrevo romances imortais,recomendo
Le gusta este jardín que es suyo? evite que sus hijos lo destruían, e o meucadáver
será lançado na última página, como o de um cão, para o fundo de um barranco.Viemos
todos hoje ocupar a inocente Lapa cor-de-rosa imitada de Carlos Botelho damaré-baixa
das nossas bebedeiras silenciosas, à superfície das quais cintila, de quandoem
quando e by appointment of Her Majesty the Queen, o reflexo do gênio, e sobre
asnossas cabeças ungidas tombam as línguas de fogo de Johnny Espírito Santo
Walker:Utrillo, que amarrotava postais ilustrados enquanto pintava, Soutine,
o dos meninos docoro e das casas torturadas, Gomes Leal e a sua inocente e
tonitruante miséria demenino velho, e nós os dois observando, maravilhados,
esta procissão de palhaçossublimes que uma música de circo acompanha. Pode
parecer-lhe esquisito mas semprevivi rodeado de fantasmas numa casa antiga
que era como que o espectro de si mesma,desde o portão flanqueado por ananases
de pedra à mala dos ossos de Anatomia, queaguardava, arrecadada, a minha vez
de a estudar, num perfume doce de incenso e degangrena. Gatos vadios escondiam-se
nos ramos da figueira do quintal como frutosfurtivos, cujos olhos pingavam
o leite verde de uma desconfiança rápida, nos vidros dasalamandra crescia
a claridade opala dos versos de Cesário, e na sala o retrato deAntero, de
uma dolorosa beleza que o gênio calcinava, opunha aos bigodes modestosdos
avós o oceano em desordem da sua barba loira, onde naufragavam destroçosquebrados
de tercetos. O meu pai, magro e anguloso como um mórmon, viajava à derivana
poltrona, impulsionado pela chaminé de navio do cachimbo. a sombra inchavavolumes
geométricos nos prédios vizinhos, desenhada por um Soulages triste. e eumasturbava-me
no quarto sob a fotografia colorida da equipa do Benfica, na esperançade vir
a ser um dia o Águas da literatura, que de cócoras, ao centro, desafiava o
universocom o orgulho de mármore de um discóbulo triunfal.

No cu de Judas, oculto por uma farda de camuflado que me fornecia a aparênciaequívoca
de um camaleão desiludido, adiava a minha partida para Estocolmo a bordo deum
barco de papel impresso, para viajar de helicóptero, de balões de plasma entre
osjoelhos, a recolher da mata os feridos das emboscadas, que sobreviventes
estupefatoserguiam à maneira dos corpos brandidos dos náufragos. O furriel
enfermeiro, a quem avista do sangue enjoava, ficava à porta da sala de operações
improvisada, dobrado comoum canivete, a vomitar num banco o feijão do almoço,
e eu, tenso de raiva, imaginava a satisfação da família se lhe fosse dado
observar, em conjunto e de chapéu de aba largacomo na Lição de Anatomia de
Rembrandt, o médico competente e responsável quedesejavam que eu fosse, consertando
a linha e agulhas os heroicos defensores doImpério, que passeavam nas picadas
a incompreensão do seu espanto: c’est un peu danschacun de ces hommes
Mozart assassiné, dizia eu furioso dentro de mim, desbridandotibiais, rodando
garrotes, regulando a botija de oxigênio, preparando os amputados paraseguirem
para o Luso, assim que amanhecesse, na pequena avioneta da FAP, enquantoos
maqueiros, no compartimento ao lado, procuravam as veias dos dadores, e o
tenenteseguia inquieto os meus gestos numa ansiedade que se adensava. Nunca
as palavras mepareceram tão supérfluas como nesse tempo de cinza, desprovidas
do sentido que mehabituara a dar-lhes, privadas de peso, de timbre, de significado,
de cor, à medida quetrabalhava o coto descascado de um membro ou reintroduzia
numa barriga os intestinosque sobravam, nunca os protestos me surgiram tão
vãos, nunca os exílios jacobinos deParia se me afiguraram tão estúpidos: se
me perguntam porque continuo no Exércitorespondo que a revolução se faz por
dentro, explicava o capitão de óculos moles e dedosmembranosos atrás do seu
cigarro eterno, o capitão qu puxou da pistola para o pidemagrinho que atirara
um pontapé a uma rapariga grávida e o expulsou da companhiindifetente às ameaças
azedas do outro, o capitão de malas cheias de livros e de revistasestrangeiras
que me contavam do que eu não sabia e a quem me juntei meses mais tardena
ilha e arame de Ninda, ao pé do rio, para a travessia sem bússola de uma longa
noite.

Os batuques dos luchazes eram concertos de corações pânicos, taquicárdicos,retidos
pelas trevas de galoparem sem controlo na direção da própria angústia, como,por
exemplo, as minha pernas se aproximam a tremer das suas sob o tampo cúmplic
damesa. As órbitas dos tocadores aparentavam-se a ovos cozidos fosforescentes,
sempupila, iluminados pelas fogueiras de palha destinadas a esticar a pele
de cabrito dostambores, ou pelas nádegas que balouçavam, suspensas do nada,
à laia das lanternas deum comboio que se afasta. Cada palhora, flanqueada
de uma miniatura idênticadestinada ao deus Zumbi, senhor dos antepassados
e dos mortos, adquiria os contornosinformes da inquietação e do terror, onde
nos cabiris somavam os seus latidos de medoao choro das crianças e aos cacarejos
interrogativos das galinhas, pássaros imperfeitosreduzidos a um destino de
churrasco. O escuro cavava-se de galerias, de corredores, dedegraus que os
sons penetravam numa procura desesperada, folheando sombras,deslocando rostos,
remexendo as gavetas vazias do silêncio em busca do eco de simesmos, tal como
por vezes nos encontramos, aterrados e surpresos, nos objetosesquecidos nas
prateleiras dos armários a lembrarem-nos quem fomos numa insistênciacruel.
O suor dos corpos, gordo e sumarento, possuía textura diversa das tristes
gotasarrepiadas que me desciam a espinha, e sentia-me melancolicamente herdeiro
de umvelho país desajeitado e agonizante, de uma europa repleta de furúnculos
de palácios ede pedras da bexiga de catedrais doentes, confrontado com um
povo cuja inesgotávelvitalidade eu entrevira já, anos antes, no trompete solar
de Louis Armstrong, expulsandoa neurastenia e o azedume com a musculosa alegria
do seu canto. A essa hora, na minhacidade castrada pela polícia e a censura,
as pessoas coagulavam-se de frio nas paragensdos autocarros, a soprarem adiante
da boca o vapor de água dos balões das legendas deuma história de quadradinhos
que o Governo proibia. Em tronco nu, o meu pai deviabarbear-se ao espelho
do quarto de banho nos gestos rápidos e precisos do costume,dentro do útero
da minha mulher uma criança prestes a nascer socav às cegas as gradesde carne
da sua prisão, a minha mãe estendia o braço sonolento para o tabuleiro dopequeno-almoço,
na grande cama preta que sempre constituiu para mim como que osímbolo do lar.
Pensei que nunca soubera de fato mostrar-lhes quanto gostava deles, portimidez
ou por pudor, e a ternura tantos anos reprimida trazia-me à boca o sabor amargo
do remorso e o desgosto de haver frustrado as suas pequenas esperanças ao
transformara minha vida numa sucessão sem nexo de cambalhotas desastrosas.
Planosgrandiloquentes, em que Freud, Goethe e S. Francisco de Assis convergiam
e secombinavam, começaram a grelar-me na cabeça arrependida, à laia de feijões
noalgodão molhado das experiências do liceu, milagres de algibeira para Lavoisiersmongoloides:
se regressasse vertical, jurava eu a mim mesmo num fervor de peregrinode Compostela,
afadigar-me-ia a construir, a partir do meu nada confuso, a digna estátuade
bronze do marido e do filho ideais, talhado segundo o modelo das pagelas dosmortos
no missal da avó, criaturas repletas de qualidades e virtudes à Santa Teresinha
edas quais conhecia apenas os sorrisos resignados. Talvez até que me inscrevesse
nosescuteiros a fim de pastorear, de apito, calções e autoridade paciente,
um grupo deadolescentes borbulhosos atavés do Museu dos Coches, ou vagueasse
pelas esquinas àcata de anciões de bengala com dificuldade em atravessar.
Far-me-ia irmão doSantíssimo, clarinete de filarmônica, colecionador de dentaduras
postiças no intuito deexpulsar do insuportável sossego dos serões o meu eterno
e deletério desejo de evasão.Calaria para sempre a vozinha interior que na
cabeça me reclama, teimosa, proezas deZorro. E ao termo de dolorosa enfermidade
suportada com resignação cristã econfortado com os sacramentos da Santa Madre
Igreja, ingressaria por meu turno napanteão do missal da avó a juntar-me a
uma extensa galeria de chatos bondosos,apontado como exemplo a netos indiferentes,
que considerariam com enfado a absurdamornidão da minha existência.

G

Ninda. Os eucaliptos de Ninda nas demasiadamente grandes noites do Leste,formigantes
de insetos, o ruído de maxilares sem saliva das folhas secas lá em cima, tãosem
saliva como as nossas bocas tensas no escuro: o ataque começou do lado da
pistade aviação, no extremo oposto à sanzala, luzes móveis acendiam-se e apagavam-se
nachana num morse de sinais. A Lua enorme aclarava de viés os pré-fabricados
dascasernas, os postos de sentinela protegidos por sacos e toros de madeira,
o retângulo dezinco do paiol; à porta do posto de socorros, estremunhado e
nu, vi os soldadoscorrerem de arma em punho na direção do arame, e depois
as vozes, os gritos, osesguichos vermelhos que saíam das espingardas a disparar,
tudo aquilo, a tensão, a faltade comida decente, os alojamentos precários,
a água que os filtros transformavam numapapa de papel-cavalinho indigesta,
o gigantesco, inacreditável absurdo da guerra, mefazia sentir na atmosfera
irreal, flutuante e insólita, que encontrei mais tarde noshospitais psiquiátricos,
ilhas de desesperada miséria de que Lisboa se defendiacercando-as de muros
e de grades, como os tecidos se previnem contra os corposestranhos envolvendo-os
em cápsulas de fibrose. Internados em enfermariasdesconjuntadas, vestidos
com o uniforme dos doentes, passeávamos na cerca de areia doquartel os nossos
sonhos incomunicáveis, a nossa angústia informe, os nossos passadosvistos
pelo binóclo ao contrário das cartas da família e dos retratos guardados no
funtodas malas sob a cama, vestígios pré-históricos a partir dos quais poderíamos
conceber,como os biólogos examinando uma falange, o esqueleto monstruoso da
nossa amargura.

Ocorria-me que quando a notícia da alta chegasse pelo rádio ser-nos-ianecessária
uma penosa reaprendizagem da vida, à maneira dos hemiplégicos queexercitam
o esparguete difícil dos membros em aparelhos e piscinas, e que talvezpermanecêssemos
para sempre incapazes de andar, reduzidos à cadeira de rodas de uma resignação
paralítica, a observar a simplicidade do quotidiano como o Chaplin dosTempos
Modernos as máquinas pavorosas que implacavelmente o trituram: sair oporteiro
e a falsa indulgência dos médicos, construída do cartão pintado de uma boavontade
postiça, encontrar pouco a pouco, ladeira abaixo, a manhã geométrica da cidadeque
os azulejos decepam em losangos desbotados, penetrar numa leitariafantasmagórica
para o primeiro galão livre, ver os reformados do dominó na eternapostura
dos jogadores de cartas de Cézanne, e sentir que se deixou irremediavelmentede
pertencer a esse mundo nítido e direto onde as coisas possuem consistência
de coisas,sem subterfúgios nem subentendidos, e os dias nos podem ainda oferecer,
sabe como é,apesar das anginas, dos cobradores e da letra do carro, a surpresa
de vigésimo premiadode um sorriso que se não pediu. Você, por exemplo, que
oferece o ar assépticocompetente e sem caspa das secretárias de administração,
era capaz de respirar dentrode um quadro de Bosch, sufocada de demônios, de
lagartas, de gnomos nascidos decascas de ovo, de gelatinosas órbitas assustadas?
Estendido numa cova à espera que oataque acabasse, olhando as hirtas silhuetas
de chapéu alto dos eucaliptos idênticas afúnebres testemunhas de duelo, de
G3 inútil no suor das mãos e cigarro cravado na bocacomo palito em croquete,
descobri-me personagem de Becket aguardando a granada demorteiro de um Godot
redentor. Os romances por escrever acumulavam-se-me no sótãoda cabeça à maneira
de aparelhos antiquados reduzidos a um amontoado de peçasdíspares que eu não
lograria reunir, as mulheres com quem me não deitaria ofereceriama outros
as cosas afastadas de rãs de aula de Ciências Naturais, onde eu não estaria
paraas esquartejar com o canivete ávido da minha língua, o filho por nascer
constituiriaapenas a cristalização improvável de ma distante tarde de Tomar,
num quarto de messede oficiais de janela escancarada para a praça, com o sol
coalhado nas acácias e nóscelebrando na cama a liturgia ardentes de um desejo
cedo demais desaparecido. Tomar:colchões que rangem como solas, abraços rápidos,
o pênis a pique úmido de sede,grosso de veias, vermelho em flor de Pessanha,
a mão que o friccionava contra os seios,a boca que o bebia, os calcanhares
a lavrarem-me as nádegas, o silêncio exausto, demarionetas desabitadas de
dedos, de depois. Hoje, quando a encontro, é como seobservasse o retângulo
pálido que as molduras imprimem nas paredes sem que nosconsigamos lembrar
do desenho da tela, e tento em vão discernir, por detrás das feiçõesenvelhecidas
e sérias, compondo a custo uma expressão de camaradagem benigna quenunca foi
sua, o rosto jovem e alegre que amei, fechado sobre o seu próprio prazer comouma
corola noturna. E todavia, percebe?, é desse modo que ela permanece em mimapesar
da usura dos anos e do azedume das reconciliações frustradas, das feridas
dasmentiras mútuas e do desencanto do afastamento definitivo: a rapariga morena
e magra,de grandes olhos graves, que conheci na praia, a observar as ondas
na majestadelongínqua dos carnívoros indiferentes, que parecem de súbito ausentar-se
emmeditações dolorosas e imóveis, enxotando-nos para o canto de sombra das
inutilidadesesquecidas. Lembra-se da voz de Paul Simon?

Ninda: o milho encostado ao arame folheava toda a noite as páginas ressequidas,o
feiticeiro sorvia o pescoço das galinhas degoladas numa voracidade brutal.
O capitão eeu jogávamos xadrez na mesa da sala de jantar, entre migalhas e
cascas, avançando umpeão interrogativo e reticente semelhante a um dedo que
palpa a medo uma borbulha infectada, ou conversávamos cá fora, sentados em
cadeiras curvas de tábuas de barril,julgando aproximativamente no escuro a
posição do outro através do eco devolvido dasnossas próprias vozes, morcegos
aflitos que se procuram: no meu desordenado MuseuGrévin interior de médicos
e poetas, onde Vesálio e Bocage discutiam pormenoresanatômicos picarescos
e clandestinos sob as castas vistas reprovadoras do generalFernandes Costa
dos sonetos do Almanaque Bertrand, a quem roubei sem vergonha, nainfância,
versos que cintilavam brilhos de vidro de metáforas de pacotilha que meencantavam,
um impetuoso fluxo de barbudos iluminados penetrou de roldão, a entoaralternadamente
a Internacional e a Marselhesa, substituindo-se, autoritários, ao doutorJúlio
Dantas, ao doutor Augusto de Castro e a mais algumas dezenas de criaturasquitinosas,
a bichanarem em sofás Império dramas históricos bordados no ponto de cruzde
diálogos de tremoço. O capitão apresentou-me de passagem um Marx que meconsiderou
de longe resmungando economias ininteligíveis no segredo do colarinhos,Lenine
a conspirar, de cabeleira postiça, no meio de um grupo de sobrecasacas ardentes,Rosa
Luxemburgo coxeando comovida nas ruas de Berlim, Jaurès assassinado a tiro
norestaurante, de guardanapo ao pescoço, à maneira dos gânguesteres de Chicago
arodopiarem, mortos, nas cadeiras do barbeiro, num estilhaçar de espelhos
e de frascos, eeu imaginei-me a entrar casa adentro com eles para assistir
ao fugir espavorido dosparentes na direção da zona de influência dos seus
ícones corporativos, estendendo paraos vampiros socialistas que lhes arreganhavam
a ameaça tremenda da nacionalizaçãodas porcelanas familiares, as tranças de
alho esconjuratórias das pagelas da Sãozinha. Opelotão que saía à noite para
proteger o quartel, alapado nas matas rasas que cresciam,amarelentas, na areia,
torcidas de anemia, aproximava-se no escuro, passava sob alâmpada coberta
de um abat-jour de insetos, dispersava-se sem ruído nas cabanas dascasernas,
onde a profundidade do sono se media pela intensidade do cheiro dos corpos,amontoados
ao acaso como nas fossas de Auschwitz, e eu perguntava ao capitão O quefizeram
do meu povo, O que fizeram de nós aqui sentados à espera nesta paisagem semmar,
presos por três fieiras de arame farpado numa terra que nos não pertence,
a morrerde paludismo e de balas cujo percurso silvado se aparenta a um nervo
de nylon quevibra, alimentados por colunas aleatórias cuja chegada depende
de constantes acidentesde percurso, de emboscadas e de minas, lutando contra
um inimigo invisível, contra osdias que se não sucedem e indefinidamente se
alongam, contra a saudade, a indignaçãoe o remorso, contra a espessura das
trevas opacas tal um véu de luto, e que puxo paracima da cabeça a fim de dormir,
como na infância utilizava a bainha do lençol para medefender das pupilas
de fósforo azul dos meus fantasmas.

Diga-me lá: como é que você dorme? Deitada de bruços, de polegar na boca,num
abandono em que se prolongam ainda restos hesitantes da fragilidade infantil,
oude pala negra nos olhos e rolhas de borracha nas orelhas à laia das artistas
decadentes docinema americano ou das mulheres fatais desesperadas de solidão
e de champanhe, depesadelos povoados de divórcios, de cirurgiões plásticos
e de ganidos de pelos de arameparecidos com a caricatura de Audrey Hepburn?
Acho que deve ler poetas esotéricosantes de apagar a luz, sujeitos de bigode
complexo que aqui vêm às vezes esconder asua mediocridade intransigente atrás
de um gin-fizz, admirados por raparigas sem peito,fumando Gauloises amarrotados
na sofreguidão desgrenhada com que as velhas dosasilos devoram a fatia de
pão-de-ló dos domingos. Deve ter uma gravura de Vieira daSilva na parede do
quarto e o retrato do cineasta sem talento, com quem mantém umarelação desiludida,
à cabeceira, deve acordar de manhã num torpor de crisálidatitubeante eternamente
entre a larva e a borboleta, a tropeçar às cegas para a cozinha naesperança
insensata de que o primeiro nescafé, bebido à pressa entre caçarolas sujas,
lhegaranta que existe de fato, eficiente e de colete, na gerência de uma qualquer
multinacional de sabonetes, o research executive sabiamente terno, de têmporasgrisalhas
e gravata Pestana & Brito, que o seu horóscopo lhe promete. Pela minha
parte,sabe como é, não peço tanto à vida: as minhas filhas crescem numa casa
de que cadavez menos me recordo, de móveis bebidos pelas águas de sombra do
passado, asmulheres que encontrei depois abandonei-as ou abandonaram-me numa
tranquiladecepção mútua em que não houve sequer lugar para esse tipo de ressentimento
que écomo que o sinal retrospectivo de uma espécie de amor, e envelheço sem
graça numandar demasiado grande para mim, observando à noite, da secretária
vazia, aspalpitações do rio, através da varanda fechada cujo vidro me devolve
o reflexo de umhomem imóvel, de queixo nas mãos, em que me recuso a reconhecer-me,
e que teimaem fitar-me numa obstinação resignada. Talvez que a guerra tenha
ajudado a fazer demim o que sou hoje e que intimamente recuso: um solteirão
melancólico a quem se nãotelefona e cujo telefonema ninguém espera, tossindo
de tempos a tempos para seimaginar acompanhado, e que a mulher a dias acabará
por encontrar sentado na cadeirade baloiço em camisola interior, de boca aberta,
roçando os dedos roxos no pelo cor-denovembroda alcatifa.

H

Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute, me escute com
amesma atenção ansiosa com que nós ouvíamos os apelos do rádio da coluna debaixo
defogo, a voz do cabo de transmissões que chamava, que pedia, voz perdida
de náufragoesquecendo-se da segurança do código, o capitão a subir à pressa
para a Mercedes commeia-dúzia de voluntários e a sair o arame a derrapar na
areia ao encntro da emboscada,escute-me tal como eu me debrucei para o hálito
do nosso primeiro morto nadesesperada esperança de que respirasse ainda, o
morto que embrulhei num cobertor ecoloquei no meu quarto, era a seguir ao
almoço e um torpor esquisito bambeava-me aspernas, fechei a porta e declarei
Dorme bem a sesta, cá fora os soldados olhavam paramim sem dizer nada, Desta
vez não há milagre meus chuchus, pensei eu, fitando-os,Está a dormir a sesta,
expliquei-lhes, está a dormir a sesta e não quero que o acordemporque ele
não quer acordar, e depois fui tratar dos feridos que se torciam nos panos
detenda, nunca os eucaliptos de Ninda se me afiguraram tão grandes como nesta
tarde,grandes, negros, altos, verticais, assustadores, o enfermeiro que me
ajudava repetiaCaralho caralho caralho com pronúncia do Norte, viemos de todos
os pontos do nossopaís amordaçado para morrer em Nida, do nosso triste país
de pedra e mar para morrerem Ninda, Caralho caralho caralho repetia eu com
o enfermeiro no meu sotaqueeducado de Lisboa, o capitão apeou-se da Mercedes
num cansaço infinito, segurava aarma à laia de cana de pesca inútil, o povo
da sanzala espreitava receoso lá de baixo,escute-me como eu escutava o rápido
latir aflito do meu sangue nas têmporas, o meusangue intacto nas têmporas,
pelos buracos da varanda via o capitão a passear de umlado para o outro apertando
o viático de um copo de uísque contra o peito, falandosozinho, cada um conversava
sozinho porque ninguém conseguia conversar comninguém, o meu sangue no copo
do capitão, tomai e bebei ó União Nacional, o corpo domorto crescia no quarto
até rebentar as paredes, alastrar pela areia, alcançar a mata embusca do eco
do tiro que o tocou, o helicóptero transportou-o para Gago Coutinho comoquem
varre lixo vergonhoso para debaixo de um tapete, morre-se mais nas estradas
dePortugal do que na guerra de África, baixas insignificantes e adeus até
ao meu regresso,o furriel arrumou os instrumentos cirúrgicos na caixa cromada,
os canivetes, as pinças, os porta-agulhas, as sondas, sentou-se ao meu lado
nos degraus do posto de socorros,espécie de vivenda pequenina para férias
de reformados melancólicos, mordomosidosos, governantas virgens, os eucaliptos
de Ninda não cessavam de aumentar, estamosos dois aqui sentado agora como
ele e eu nesse tempo, Abril de 71, a dez milquilômetros da minha cidade, da
minha mulher grávida, dos meus irmãos de olhos azuiscujas cartas afetuosas
se me enrolavam nas tripas em espirais de ternura. Foda-se, disseo furriel
que limpava as botas com os dedos, Pois é, disse eu, e acho que até hoje nuncative
um diálogo tão comprido com quem quer que fosse.

Escute: antes disso houvera a perna do Ferreira, ou seja, a ausência da perna
doFerreira que uma antipessoal transformou num saco agonizante, as coxas esfarrapadasdo
cabo Mazunguidi, das quais até ilhós de atacador retirei, o penso de frescura
damanhã na minha testa perplexa, chegar ao alpendre do posto de socorros com
a camisamanchada de sangue e receber como um insulto a claridade indiferente
do dia. Se arevolução acabou, percebe?, e em certo sentido acabou de fato,
é porque os mortos deÁfrica, de boca cheia de terra, não podem protestar,
e hora a hora a direita os vaimatando de novo, e nós, os sobreviventes, continuamos
tão duvidosos de estar vivosque temos receio de, através da impossibilidade
de um movimento qualquer, nosapercebermos de que não existe carne nos nossos
gestos nem som nas palavras quedizemos, nos apercebermos que estamos mortos
como eles, acomodados nas urnas dechumbo que o capelão benzia e de que se
escapava, apesar da solda, um odor grosso deestrume, urna do cabo Pereira,
urna do Carpinteiro, urna do Macaco, que uma minaassassinou a cinquenta metros
de mim, o saco de areia esmagou-lhe as costelas contra ovolante no carro tombado
de lado, quis fazer massagem cardíaca e o peito era mole esem ossos e estalava,
as palmas premiam um pasta confusa, bastou um estrondo paratornar o Macaco
um fantoche de serradura e de pano, o capitão sumiu-se no casinhotoda messe
e voltou com mais uísque no copo, a chana desbotava-se anunciando a noite,
oenfermeiro sempre a repetir Caralho caralho caralho veio acocorar-se ao pé
de nós,todos dizíamos Caralho de boca fechada, o capitão segredava Caralho
ao copo deuísque, o oficial de dia colocou-se em sentido diante da bandeira
e os seus dedos, queajeitavam a boina, gritavam Caralho, os cães vadios que
nos roçavam os tornozelosgemiam Caralho nos implorativos olhos molhados, olhos
de cães tão suplicantes comoos desta gente aqui, úmidos de resignação e de
estúpida meiguice, olhos flutuando àderiva acima dos cognacs, olhos acusando
os próprios rostos defuntos, desertos e semnuvens como os dos quadros de Magritte,
dezenas de manequins de cera ocuparam estebar oscilando feições compridas
de cavalos de loiça, mulheres e homens em cujadesilusão defensiva e maligna
me recuso a reconhecer a imagem fragmentária da minhaprópria derrota, por
teimar em pertencer ao grupo das sarças ardentes onde a melancoliaapaixonadamente
devagar se consome em labaredazinhas magoadas, e depois, sabecomo é, a noite
chegou de imprevisto à maneira de uma cortina de teatro cobrindo depregas
de ausência os atores exaustos, o motor da luz principiou a trabalhar num
ruídode táxi, a lâmpada messe empalidecia e corava, empaledecia e corava,
empalidecia ecorava, sentei-me defronte do capitão, na mesa que o Bichezas
pusera num ápice deprestidigitador, os alferes comiam em silêncio, de queixo
no prato, idênticos a alunosem falta, cada um mastigava sozinho separados
por quilômetros de irrecuperáveldistância, formávamos a cada jantar a anti-Última
Ceia, o desejo comum de não morrerconstituía, percebe?, a única fraternidade
possível, eu não quero morrer, tu não queresmorrer, ele não quer morrer, nós
não queremos morrer, vós não quereis morrer, eles nãoquerem morrer, o primeiro-sargento,
magro, grisalho, mesuroso, interrogativo, perfilouseà porta numa continência
sem fim guardando na mão livre um maço de papéis paraassinar até o capitão
atentar nele, erguer a cabeça, proferir Porra e o sujeito se sumir apavorado
com a sua pasta preciosa, o capitão pousou os talheres em cruz e disse Cadavez
mais isto me parece um absurdo formidável e eu pensei Acabada a cerimônia
cátemos o Ite, missa est do padre, Deo Gratias e dá-me a benção que por mim
me piro já,saio o arame e sigo mata fora com um pedaço de mandioca no bolso
como osguerrilheiros, um pedaço de mandioca a cheirar ao caixão do Carpinteiro
apodrecendo,branco, no meu bolso, levantei-me a fim de ver a pedra-pomes da
lua na chana e veiomede súbito à ideia o sorriso de Gagarine no regresso,
Quando eu chegar que sorrisofarei?, perguntei alto, os alferes voltaram-se
espantados para mim e o capitão estendeu obraço para a garrafa de uísque,
como de manhã, gorduroso de sono, se palpa a mesa decabeceira à procura do
esguicho horrível do despertador para calar a sua campainhadolorosamente estridente,
a furar-nos os ouvidos com a lâmina imperiosa de um berrode metal.

Escute: em 61 eu fugia diante da polícia no Estádio Universitário, chusmas
deestudantes em debandada na direção da cantina, o meu irmão João chegou a
casa muitosério e disse Parece que mataram um tipo, a polícia de choque avançava
de capacetenuma fúria de bastões e de coronhas, automóveis da PIDE giravam
em carrossel pelasFaculdades, o Salazar espetava o dedo, única coisa, decerto,
que ele alguma vezespetou, na televisão, ventres calvos aplaudiam-no com fervor
beato de sacristia,infelizmente o general Delgado era velho demais para Nuno
Álvares e o Mestre de Avisum conezinho de pó na Batalha, a guerra ou Paris
e agora escolhe que o Capado éeterno, a segunda parte do segredo de Fátima
é a garantia da eternidade do Capado,durante a viagem a orquestra do navio
tocava tangos mofentos para bodas de prata,embarquei a 6 de Janeiro e na noite
do fim do ano tranquei-me no quarto de banho parachorar, um bolo-rei impossível
de engolir entupia-me a garganta, empurrei-o achampanhe e ele tombou na barriga
no som dos pedregulhos no poço do jardim do avô,plof!, provocando círculos
concêntricos no lago da canja do jantar, o poço sob asárvores ao pé do muro
para a estrada onde se ia fumar às escondidas, o caseiro tirou ochapéu e explicou
respeitosamente a coçar a cabeça O que a gente precisa é que venhaalguém tomar
conta de nós o menino não acha?, e se vier alguém tomar conta de nós oque
pensa você que começaria por fazer, levar-me para sua casa, levá-la para minhacasa,
lavar-nos os dentes, estender-nos na cama, e falar-nos em voz baixa atéadormecermos,
falar-nos de serenidade e alegria até adormecermos, falar-nos doprimeiro de
Maio de 74 que os políticos inquinavamjá da massa folhada sem recheiodos seus
discursos veementes, mas onde crescia nas ruas uma irresistível fermentaçaode
esperança, os ministros do Caetano borravam-se de medo na Madeira, os pidesborravam-se
de medo em Caxias, um festa de labaredas vermelhas alastravatriunfalmente
em Lisboa, quiero que me perdones los muertos de mi felicidad, losmuertos
de mi felicidad no cacimbo de Angola, seis meses de cacimbo enevoado ecapim
amarelo a arder ao longe, perdoe-me os morros da minha felicidade quando lheseguro
na mão, quando os meus joelhos apertam os seus, quando a minha boca vai tocarna
sua e os olhos se fecham devagar como corolas noturnas, todos os meus ontens
seencontram presentes neste beijo, talvez que as múmias do bar se esfarelem
como osvampiros à aproximação do dia num concerto de dobradiças que se quebram,
todos osmeus ontens, percebe?, O que a gente precisa, menino, garantia o caseiro,
é que venhaalguém tomar conta de nós, Foda-se, disse o furriel de queixo nos
joelhos a limpar asbotas com o dedo, o corpo do primeiro defunto inchava sob
o cobertor, na realidadetodo o cais é uma saudade de pedra, Maria José, e
aí começamos a perder-nos, trêsgarrafas de uísque por mês a cada oficial para
acender a lampadazinha votiva docoração mecânico que teima, o sargento passou
por mim e fez a décima nonacontinência da última meia hora, Boa noite senhor
doutor, desapareceu no escuro a caminho da sua confusão de impressos, instalado
na cadeira de tábuas de barril lembreimedo soldado a dormir a sesta na gaveta
de chumbo e do apontador de metralhadora achamar Cabrões de merda aos cabrões
de merda que para aqui nos mandaram,professores patetas penteado e preciosos,
Cabrões de merda, cabrões de merda, cabrõesde merda, o diretor do Hospital
Militar de Tomar mandou chamar-me a anunciou O meuamigo foi mobilizado para
Angola, era em Agosto e a claridade da manhã fervia, verde,nas janelas, a
cidade flutuava na luz, o reflexo do Mouchão tremia na água, mobilizadopara
Angola num batalhão de Artilharia, Pai, fui mobilizado para Angola num batalhãode
Artilharia, na voz pequenina com que comunicava as reprovações na Faculdade,
ocapitão veio sentar-se na outra cadeira de barril e os cubos de gelo tiniam
como moedasnuma algibeira no escuro, O rapaz chegou já morto, disse-lhe eu,
e nenhum truque deilusionismo médico o safou, fez-me uma impressão danada
ver-lhe os cabelos loiros,parecia-se comigo aos vinte anos, Os tipos emboscaram-se
a dois metros da picada,disse o capitão, havia sangue deles nos arbustos,
marcas de arrastarem corpos deferidos, a pedra-pomes da luz encalhou nos eucaliptos,
enredada nos ramos, o capitãolevantou-se, a cara dele aparentava-se à de Edward
G. Robinson num filme de FritzLang, começou a afastar-se numa marcha de sapo
no sentido do armazém dovagomestre, perguntei Onde é que você vai?, o vulto
respondeu-me continuando a andar Pendurar os tomates na arrecadação, doutor,
se quiser dê-me também os seus que já nãoprecisamos dos gajos para continuar
aqui.

I

Porque camandro é que não se fala nisso? Começo a pensar que o milhão equinhentos
mil homens que passaram por África não existiram nunca e lhe estoucontando
uma espécie de romance de mau gosto impossível de acreditar, uma históriainventada
com que a comovo a fim de conseguir mais depressa (um terço de paleio, umterço
de álcool, um terço de ternura, sabe como é?) que você veja nascer comigo
amanhã na claridade azul pálida que fura as persianas e sobe dos lençóis,
revela a curvaadormecida de uma nádega, um perfil de bruços no colchão, os
nossos corposconfundidos num torpor sem mistério. Há quanto tempo não consigo
dormir? Entro nanoite como um vagabundo furtivo com bilhete de segunda classe
numa carruagem deprimeira, passageiro clandestino dos meus desânimos encolhido
numa inércia que meaproxima dos defuntos e que o vodka anima de um frenesim
postiço e caprichoso, e astrês da manhã vêem-me chegar aos bares ainda abertos,
navegando nas águas paradas dequem não espera a surpresa de nenhum milagre,
a equilibrar com dificuldade na boca opeso fingido de um sorriso.

Há quanto tempo de fato não consigo dormir? Se fecho os olhos, uma rumorosaconstelação
de pomboss levanta voo dos telhados das minhas pálpebras descidas,vermelhas
de conjuntivite e de cansaço, e a agitação das suas asas prolonga-se nos meusbraços
em tremuras hepáticas, apenas capazes de um tropeçar desajeitado de galinha,
aspernas enrolam-se na colcha numa umidade de febre, por dentro da cabeça
uma chuvade Outubro tomba lentamente sobre os gerânios tristes do passado.
Em cada manhã, aoespelho, me descubro mais velho: a espuma de barbear transforma-me
num Pai Natal depijama cujo cabelo desgrenhado oculta pudicamente as rugas
perplexas da testa, e aolavar os dentes tenho a sensação de escovar mandíbulas
de museu, de caninos malajustados nas gengivas poeirentas. Mas por vezes,
em certos sábados que o sol oblíquoalegra de não sei que promessas, suspeito-me
ainda no sorriso um reflexo de infância, e imagino, ensaboando os sovaços,
que me despertarão rêmiges entre o musgo dos pelos, e sairei pela janela numa
leveza fácil de barco, a caminho da Índia do café.

Como na tarde de 22 de Junho de 71, no Chiúme, em que me chamaram ao rádiopara
me anunciar de Gago Coutinho, letra a letra, o nascimento da minha filha,
rômio,alfa, papá, alfa, rômio, índia, golf, alfa, paredes forradas de fotografias
de mulheres nuaspara a masturbação da sesta, mamas enormes que começaram de
súbito a avançar e arecuar, segurei com força as costas da cadeira do cabo
de transmissões e pensei Vai-medar qualquer merda e estou fodido.

O Chiúme era o último dos cus de Judas do Leste, o mais distante da sede
dobatalhão e o mais isolado e miserável: os soldados dormiam em tendas cônicas
na areia,partilhando com os ratos a penumbra nauseabunda que a lona segregava
como um frutopodre, os sargentos apinhavam-se na casa em ruína de um antigo
comércio, quandoantes da guerra os caçadores de crocodilos por ali passavam
a caminho do rio, e eudividia com o capitão um quarto do edifício da chefia
do posto, através de cujo tetoesburacado os morcegos vinham rodopiar por sobre
as nossas camas espiraiscambaleantes de guarda-chuvas rasgados. Sessenta pessoas
encerradas na sanzalaalimentavam-se em latas ferrugentas dos restos de comida
do quartel, mulheresacocoradas sorriam para a tropa o riso vazio das efígies
das canecas de loiça, a que asbocas sem incisivos conferiam uma profundidade
inesperada, e o soba, septuagenárioem farrapos reinando sobre um povo côncavo
de fome, trazia-me à lembrança umavelha amiga aristocrática da minha mãe que
vivia com os cães e as filhas num andardesabitado de móveis, de pegadas retangulares
dos quadros nas paredes desertas e afalta das terrinas assinalada por uma
aus~encia de pó nas prateleiras dos armários. Umenxame de credores impacientes,
padeiro, leiteiro, mercearia, talho, etc., agitava´se àvolta dela brandindo
ameaçadoramente faturas por pagar, as criadas exigiam aos gritosos ordenados
em atraso, antigos lutadores de feira, de fato macaco, destroçados pelaerosão
marinha do bagaço, empurravam pelas escadas, a caminho do prego, o piano decauda
que soltava de tempos a tempos o ganido de protesto de um lá desafinado. Emajestosamente
alheia aos credores, às criadas, à amentosa partida do piano, aoscachorros
que urinavam no tapete numa sem-cerimônia medieval, a amiga, instaladanum
sofá de que as molas atravessavam o veludo como as clavículas das mulas idosas
ocouro gasto dos seus ombros, mantinha a postura soberba das princesas exiladas,
paraquem os relógios rodam para trás, marcando horas que já foram.

Como ela, o soba morava num passado de muitas mulheres e muitas lavras, naépoca
em que a sua gente, do Ninda ao Quando, plantava na mata a mandioca que osDakotas
agora queimavam na tentativa de dificultar o avanço dos guerrilheiros que
daZâmbia progrediam para o planalto do Huambo, com o objetivo de envolverem
a poucoe pouco as cidades do Sul: sentado na cadeira de braços precárias,
que eu levara daenfermaria para lhe oferecer, e cujo esmalte branco cintilava
diamantes de trono com oúltimo sol, o luchaze, distraído dos gaviões que lhe
cobiçavam os pintos em elipses degula, vagueava ao acaso pela chana um olhar
de Santa Helena, que a memória de glóriassuntuosas petrificava. A guerra reduzira-o
ao ofício insólito de costureira do quartel, domesmo modo que os condes russos
guiavam táxis nos romances de Ohnet, e instalava àtarde, diante da cubata,
uma máquina de costura antiquíssima que se assemelhava aosnavios de rodas
do Mississipi, na qual passajava as calças rasgadas da tropa nos gestosteatrais
de um ilusionista pouco convicto da eficácia dos seus dons, tal como eu pensoque
a minha mão, a afagar insistentemente a sua mão imóvel, não conseguirá mais
queuma rápida noite sem ternura.

O trabalho dos outros, que me proporciona a confortável situação de espectado
sem responsabilidade, fascina-me: em miúdo demorava-me horas maravilhadas
na oficina do sapateiro vizinho, cubículo onde pairava uma sombra fresca de
latada,frequentado por cegos de Greco que, de bengala de listras entre os
joelhos, conversavamcom o vulto desfocado que batia sola ao fundo, atrás de
uma muralha de botas,arrotando o bafo inseticida do tinto. Os cabeleireiros
dos drugstores, a desenharem emtorno de nucas obedientes bailados de ademanes
que se evaporam, levam-me a colar onariz às cortinas numa imensa sofreguidão
de pasmo. O movimento das agulhas detricot da minha mãe, segregando camisolas
num tinir de floretes domésticos, possuipara mim o inesgotável encanto do
fogo na lareira ou do mar, cuja monotonia semprediversas me hipnotiza. E após
alguns meses de guerra, que assinalava traçando cruzesraivosas em todos os
calendários ao alcance, após a perna do Ferreira e a morte do caboPaulo, professor
primário que todas as noites, oblíquo de vinho, dissertava aos berros,diante
da messe de oficiais, discursos prolixos acerca das equações de segundo grau,cercado
por uma matilha de cães ignorantes a ladraem furibundos no escuro, ocupava
osfins de tarde assistindo aos arrancos exaustos da máquina de costura do
soba, de que oscotovelos agudos de bielas se assemelhavam aos de um corredor
de marcha no termo deuma prova excessiva. Quando me chamaram ao rádio, o aparelho
acabava de seengasgar na deglutição da camisa de um alferes, tossia linhas,
botões e pedaços detecido por diversos orifícios ferrugentos, e o soba, de
mãos na cabeça, aflitíssimo,pulava à volta daquela geringonça venerável como
Buster Keaton em torno das suasinvenções catastróficas.

Espere um instante, deixe-me encher o copo. Quer chupar a rodela de laranja
ecuspi-la a seguir no cinzeiro, idêntica a uma fatia baça e seca de sol de
Outubro, chuparaa laranja, de olhos baixos, para se poupar a si mesma o espetáculo
derisório da minhacomoção, comoção de bêbedo, às duas da manhã, quando os
corpos se principiam adeslocar como limpa-para-brisas, o bar é um Titanic
que naufraga e as bocas caladasentoam hinos sem som, abrindo-se e fechando-se
à laia dos beiços tumefatos dospeixes? Há qualquer coisa, sabe como é, de
galeão espanhol submerso nesta sala,povoado dos cadáveres à deriva da tripulação
que uma claridade sublunardiagonalmente ilumina, cadáveres que flutuam sem
aderir às cadeiras, entre duas águas,a ondularem os braços sem ossos num vagar
de limos. Até os empregados se tornamdemorados, sonolentos, criando raízes
no balcão à maneira de corais estupefatos que obarman estimula por vezes ao
dar-lhes a cheirar o frasco de sais de uma aguardente depera, salvando-os
dessa forma de um coma vegetal. E aqui estamos nós, afogadostambém, franzindo
de tempos a tempos as vieiras das pálpebras, polvos de aquárioborbulhando
palavras que a música de fundo dissolve num murmúrio de surdina demaré, você
a escutar-me com a tranquila paciência das estátuas (que língua falariam asestátuas,
se falassem, que frases se segredam à noite no silêncio oco, de sarcófago
comescarradores, dos museus?), você a escutar-me, dizia, e eu contando-lhe
da chamada aorádio para ouvir de Gago Coutinho, palavra a palavra, a notícia
do nascimento da minhafilha, agarrado às costas da cadeira do cabo de transmissões
e a pensar Vai-me dar umacamueca e estou fodido.

Eu tinha-me casado, sabe como é, quatro meses antes de embarcar, em Agosto,numa
tarde de sol de que conservo uma recordação confusa e ardente, a que o som
doórgão, as flores nos altares e as lágrimas da família emprestavam um não
sei quê defilme de Buñuel enternecido e suave, depois de breves encontros
de fim-de-semana emque fazíamos amor numa raiva de urgência, inventando uma
desesperada ternura emque se adivinhava a angústia da separação próxima, e
despedimo-nos sob a chuva, nocais, de olhos secos, presos um ao outro num
abraço de órfãos. E agora, a dez milquilômetros de mim, a minha filha, maçã
do meu esperma, a cujo crescimento detouperia sob a pele do ventre eu não
assistira, irrompia de súbito no cubículo das transmissões, entre recortes
de revistas e calendários de atrizes nuas, trazida pelacegonha da vozinha
nítida do furriel de Gago Coutinho, explicando, alfa, bravo, rômio,alfa, charlie,
ômega, o abraço do batalhão.

Mille baisers pour ma fille et ma chère petite maman: a minha avó mostrou-meum
dia um pedaço de papel frágil como folha de herbário, telegrama em que o avô,
naguerra de França, respondia ao parto da minha mãe, e lembrei-me, olhando
umafotografia onde uma rapariga e um cão se lambiam mutuamente o intervalo
das coxas,de um homenzinho calado, de cabelos brancos e aparelho auditivo,
sentado na varandada casa de Nelas a mirar a serra, lembrei-me dos fins de
tarde na Beira, em Setembro, naépoca recuada em que a família se agrupava
à minha volta e à volta dos meus irmãosnuma espécie de retábulo enternecido
e protetor, lembrei-me do sorriso da minha mãe,que tão poucas vezes vi sorrir
depois, e do ramo de trepadeira que todas as noites batiacontra a janela,
chamando-nos para misteriosas proezas de Peter Pan. E agora,encostado ao arame,
sozinho, a fim de que me não vissem as lágrimas, encostado aoarame do Chiúme
e assistindo ao descer do morro até à chana e, para lá da chana, à matade
morrer do Leste, à mata de morrer magra e pálida do Leste, pensava na minha
filhadesconhecida num berço de clínica, entre outros berços de clínica que
se espiam atravésda vigia de navio, pensava na filha que tanto desejara como
testemunho vivo de mimpróprio na esperança de que, por intermédio dela, me
redimisse um pouco dos meuserros, do meus defeitos e das minhas falhas, dos
projetos abortados e dos sonhosgrandiloquentes a que me não atrevia a dar
forma e sentido. Talvez que ela escrevesseum dia os romances que eu tinha
medo de tentar e encontrasse para eles a cor e o ritmoexatos, talvez que ela
lograsse com os outros a relação próxima e quente e generosa queeu ao mesmo
tempo desejava e temia, talvez que nos fosse possível um entendimentopacientemente
conquistado que de certa forma me justificasse, e que a mãe dela, duranteanos,
aguardara em vão. A pieguice, sabe como é, substitui com frequência em mim
odesejo genuíno de mudar, e vou ferindo imperturbavelmente as pessoas em nome
dessaespécie peculiar de autocomiseração e arrependimento que reveste a maior
parte dasvezes a forma de um egoísmo feroz. A lucidez que a segunda garrafa
de vodka meconfere é de tal maneira insuportável que, se não se importa, passamos
à claridadetamisada do cognac que tinge a minha mediocridade interior do lilás
de uma solidãoaflita, que ao menos parcialmente me justifica e me perdoa.
Não sucede o mesmoconsigo? Nunca teve vontade de se vomitar a si própria?
À medida que envelheço e quea necessidade de sobreviver se vai tornando menos
urgente e aguda, apercebo-me commaior nitidez de que… Mas aqui está o cognac:
ao segundo gole, vai ver, a ansiedadeprincipia a mudar de rumo, a existência
recobra a pouco e pouco uma tonalidadeagradável, recomeçamos lentamente a
apreciar-nos, a defender-nos de nós mesmos, aser capazes de continuar a destruir.
Com este penso a 90 graus no esôfago sinto-me livrepara retomar a minha narrativa
no ponto onde há momentos a deixei: estamos em 71, noChiúme, e a minha filha
acaba de nascer. Acaba de nascer e a essa hora as senhoras doMovimento Nacional
Feminino devem estar pensando em nós sob os capacetesmarcianos dos secadores
dos cabeleireiros, os patriotas da União Nacional pensam emnós comprando roupa
interior preta, transparente, para as secretárias, a MocidadePortuguesa pensa
em nós preparando carinhosamente heróis que nos substituam, oshomens de negócios
pensam em nós fabricando material de guerra a preço módico, oGoverno pensa
em nós atribuindo pensões de miséria às mulheres dos soldados, e nós,mal agradecidos,
alvos de tanto amor, saímos do arame em que apodrecemos paramorrer por perversidade
de mina ou emboscada, ou deixamos negligentemente filhossem pais a quem ensinam
a apontar com o dedo o nosso retrato ao lado da televisão, emsalas de estar
onde tão-pouco estivemos. O alferes Eleutério, pequenino e enrugado, com quem
fora ter à mata, numa Mercedes, quando um dos seus homens perdera aperna numa
antipessoal e se torcia, ainda consciente, na areia, pousou a mão, sem falar,no
meu ombro, e foi essa, percebe?, uma das raras vezes em que até hoje me acheiacompanhado.

J

Deixe-me pagar a conta. Não, a sério, deixe-me pagar a conta e tome-me pelojovem
tecnocrata ideal português 79, inteligência tipo Expresso, isto é, mundana,superficial
e inofensiva, cultura gênero Cadernos Dom Quixote, ou seja, prolixa,esquisita
e fininha, opção política Fox-Trot, Pedras d’El Rei e Casa da Coimida,
umagravura de Pomar, uma escultura de Cutileiro e um gramofone de campânula
noapartamento, mantendo uma relação emancipada, sinuosa e repleta de curtos-circuitostempestuosos
com uma arquiteta paisagista, que, ao deixar à noite as lentes de contatono
cinzeiro, perde com esse strip-tease de diotiras o encanto brumoso do olhar
dasatrizes americanas de Nicholas Ray, para se transformar numa nudez sem
mistério deCampo de Ourique, à procura, às apalpadelas, na carteira, da embalagem
deMicroginon. Devíamos todos usar suspensórios para que a alma nos caísse
um poucomenos sobre os calcanhares, aconselhava Vidalie aos amigos num bar
que Maio de 68deixara intacto, do mesmo modo que as marés poupam, sem que
se saiba bem porquê,certos rochedos da praia, e talvez que assim cessássemos
de tropeçar nas dobras dascalças dos nossos projetos maquilhados, com tão
mau hálito se vistos de perto. Hápouca coisa em que ainda acredito e a partir
das três da manhã o futuro reduz-se àsproporções angustiantes de um túnel
onde se penetra mugindo a dor antiga que se nãoconsegue sarar, antiga como
a morte que dentro de nós cresce, desde a infância, o seumusgo pegajoso de
febre, convidando-nos à inação dos moribundos, mas existe tambémsabe como
é, essa claridade difusa, volátiel, onipresente, apaixonada, comum aosquadros
de Matisse e às tardes de Lisboa, que como o pó de Africa atravessa as frinchas,as
janelas cerradas, os intervalos moles que separam uns dos outros os botões
dacamisa, a parede porosa das pálpebras e a textura de vidro assassinado do
silêncio, e nãoé impossível que a beleza inesperada de uma rapariga jovem,
ao cruzar-se conosco semnos ver no restaurante em que a cabeça da pescada
nos fita do prato com órbitas deorgasmo implorativo, nos toque de súbito da
franja de milagre de uma cólica de desejo ede alegria. É esse instante de
surpresa, esse Natal inesperado, esse júbilo no fundo semmotivo que possivelmente
aguardamos aqui, neste bar que desejaríamos habitado do paide Huckleberry
Fynn e das suas bebedeiras furibundas e geniais, imóveis comocamaleões à espera
da mosca de uma ideia, e mudando de cor conforme a tonalidade doálcool que
engolimos. Como eu mudei de cor quando, ao entrar de manhã na casa debanho,
dei com o oficial catanguês a lavar os dentes, as gengivas, o céu da boca,
alíngua, a cara toda, com a minha escova:

– Bonjour, mon lieutenant – borbulhou ele num riso enorme que lhe escorria,
em baba cor-de-rosa, pelo queixo.

Tinham arribado dias antes ao Chiúme, uma companhia inteira de negrospequeninos
e cabeçudos, de lenço vermelho ao pescoço, cujos bigodes por ajardinar lhesconferiam
a aparência falsamente intelectual dos saxofonistas do Festival de Jazz deCascais,
gênios da semifusa que o mínimo Bem Webster excomungaria, comandadospor um
alferes de meia-idade que se apresentou como primo de Tchombé, exprimindosenum
francês de disco Linguaphone a girar na rotação errada:

– J’ai très bien connu Mobutu, mon lieutenant – avisou-me ele a puxar
escarro dedesprezo das grutas de Altamira dos pulmões -, il était caporal
comptable à l’arméebelge.

Reunidos e armados pela PIDE, constituíam uma horda indisciplinada epetulante
a que a emissora da Aâmbia chamava “os assassinos a soldo dos colonialistasportugueses”;
não faziam prisioneiros e regressavam da mata aos berros, com os bolsoscheios
de quantas orelhas lograssem apanhar; apoderaram-se das mulheres da sanzalaperante
o desespero resignado do soba, cada vez mais perdido na contemplação dachana,
apoiando o cotovelo e o que lhe restava da alma na sua máquina de costuradefinitivamente
avariada e que principiava a assemelhar-se a uma baleia morta na praia;eriçavam-se
constantemente em exigências e amuos de hóspedes de luxo a esporearemde ameaças
a solicitude dos empregados, recusavam serviço numa arrogância dediretores-gerais
que se cuidam confundidos com o porteiro, e o primo de Tchombé,impávido, banqueteava-se
de ratos assados sob os nossos soslaios de vômito, e lavava aseguir os dentes
satisfeitos com a minha escova, justificando-se numa simplicidadedesarmante:

– Excusez-moi, mon lieutenant, je pensais qu’elle était à tout de le
monde.

– Sôr pide manda mais que os tropa – verificava o soba numa incredulidadedesolada,
apontando os paisanos brancos que vinham de tempos a tempos conspirar comos
catangueses nos cantos do arame, cujo inspetor o tenente levantara uma ocasião,
namesse de Gago Coutinho, pelo pescoço, por haver insultado de cobarde um
oficial quenão estava presente:

– Ponha-se lá fora, seu sacana.

Mas logo do Comando de Zona os brigadeiros, autoritários, deram a entender
que quem entrasse em conflito com os heroicos patriotas da dêgêésse correria
alguns riscos militares desagradáveis, e o tenente embarafustou pelo meu quarto
a rodopiar de indignação:

– Tão cabrões são uns como os outros, doutor, e quem anda aqui a foder o
coirosomos nós. Veja lá se me arranja uma doençazita decente que tenho nojo
do caralhodesta guerra.

Eu estava de passagem na sede do batalhão, a caminho de Luanda e das férias
deLisboa, estendido na cama na sesta do almoço, a sentir como um feto o peso
doesparguete na barriga.

– Uma doença, doutor – insistia o tenente -, anemia, leucemia, reumatismo,cancro,
bócio, uma doençazeca, uma doença de merda que me passe à reserva: o quefazemos
nós aqui? Você já se perguntou o que fazemos aqui? Pensa que alguém nosagradece,
não, porra, escute lá, pensa que alguém nos agradece? Ainda por cima,imagine
o meu azar, recebi ontem carta da minha mulher a participar-me que a criada
sedespediu, foi-se embora, pirou-se: não estava lá o rapaz para pôr o selo
na pequena e oresultado viu-se. Vá por mim, doutor, sopeira em que o patrão
não se ponha nuncachega a criar amor à casa. Tinha-lhe comprado meias de renda
pretas e cuecasvermelhas, as cores da Artilharia, a minha mulher saía cedo
para o emprego, ela traziameo pequeno-almoço à cama com as meias e as cuecas,
boa como o milho, levantava olençol, olhava e dizia Ai senhor tenente que
hoje está tão grande. Ó doutor, só queriaque provasse aquela competência.
E os modos? E a delicadeza? Nunca lhe ouvi nenhumpalavrão, era sempre: o coiso.
O seu coiso isto, o seu coiso aquilo, dê-me o seu coiso,senhor tenente, gosto
tanto do seu coiso, meta o seu coiso na minha coisinha. Que é queme responde
a isto, hã?

De olhos fechados, com a voz enorme do tenente a rebolar pelo quarto, eu
pensava: há onze meses que não vejo cortinas, nem tapetes, nem cálices, nem
alcatrão, e era como se essas quatro ausências constituíssem a base elementar
de qualquer espéciede felicidade, há onze meses que só vejo morte e angústia
e sofrimento e coragem emedo, há onze meses que me masturbo todas as noites,
como um puto, a tecer variaçõesadolescentes em torno das mamas das fotografias
do cubículo de transmissões, há onzemeses que não sei o que é um corpo ao
pé do meu corpo e o sossego de poder dormirsem ansiedade, tenho uma filha
que não conheço, uma mulher que é grito de amorsufocado num aerograma, amigos
cujas feições começo inevitavelmente a esquecer,uma casa mobilada sem dinheiro
que não visitei nunca, tenho vinte e tal anos, estou ameio da minha vida e
tudo me parece suspenso à minha volta como as criaturas degestos congelados
que posavam para os retratos antigos.

– Amanhã sigo de bimotor para Luanda. Quer que dê uma tranca na sopeira por
si?

E de novo a baía, as palmeiras, os pássaros brancos pernaltas, os cafés dosmilitares,
os homens de pasta sebenta que trocavam dinheiro a vinte por cento nasesplanadas,
o jogo de ancas das mulatas, os engraxadores, os aleijados, a indescritívelmiséria
dos musseques, as putas do Bairro Marçal iluminadas de viés pelos faróis dosjeeps,
os sujeitos das roças de café nos cabarés da Ilha, a palparem bailarinas decrépitascom
órbitas globulosas de sapos, cidade colonial pretensiosa e suja de que nunca
gostei,gordura de umidade e de calor, detesto as tuas ruas sem destino, o
teu Atlânticodomesticado de barrela, o suor dos teus sovacos, o mau gosto
estridente do teu luxo.Não te pertenço nem me pertences, tudo em ti me repele,
recuso que seja este o meupaís, eu que sou homem de tantos sangues misturados
por um esquisito acaso de avós detoda a parte, suíços, alemães, brasileiros,
italianos, a minha terra são 89.000 quilômetrosquadrados com centro em Benfica
na cama preta dos meus pais, a minha terra é onde oMarechal Saldanha aponta
o dedo e o Tejo deságua, obediente, à sua ordem, são ospianos das tias e o
espectro de Chopin a flutuar à tarde no ar rarefeito pelo hálito dasvisitas,
o meu país, Ruy Belo, é o que o mar não quer.

Pássaros brancos, traineiras que saíam para a pesca ao início da noite. Ahospedeira
que me marcara o lugar no avião apareceu de repente a entregar-me umpapelinho
dobrado enquanto eu me debatia com a complicação do cinto:

– Você tem olhos azuis. Venha ter comigo quando voltar.

L

Às quatro da manhã os espelhos são ainda suficientemente misericordiosos
ouopacos para nos não devolverem o rosto amarrotado e encolhido das noites
sem sono,que os olhos baços animam de desânimo pisco: o excesso de luz do
aeroporto impediamede me confrontar nos vidros com a minha silhueta hesitante,
inclinada como umacana de pesca para o peixe gordo da mala, com a gravata
que as muitas horas de aviãohaviam decerto desviado da bissetriz dos colarinhos,
tranformando-a num trapo molecomo os relógios de Dali, com as rugas que se
acumulavam em torno das pálpebras, àmaneira dos vincos concêntricos de areia
dos jardins japoneses; entre o homem quevoltava sozinho da guerra à sua cidade
e caminhava através de cachos de estrangeirosindiferentes, e nós que nos dirigimos
para a saída do bar ao longo de um corredor denucas e perfis cuja monótona
diversidade os aproxima dos manequins da Baixa,petrificados em acenos imóveis
de uma inutilidade patética, há apenas a diferençainsignificante de alguns
mortos na picada, cadáveres que você não conheceu, as nucas eos perfis nunca
viram, os estrangeiros do aeroporto ignoravam, e que, portanto, são inexistentes,
inexistentes, percebe?, inexistentes, inexistentes como a sua ternura pormim,
esse rápido sorriso sem afeto que quase não chega a nascer, a mão quieta queaceita
com indiferença os meus dedos, a coxa inerte que a minha coxa ansiosamenteprime.
O seu corpo escapa-se-me como os mesmbros se nos escapam com o sextodrunfo,
independentes de nós, flutuando gestos de polvo a que falta o arame dos ossos,
epor dentro da sua cabeça giram pensamentos indecifráveis de que me sinto
expulso,condenado a permanecer, de pé e á espera, no capacho da entrada dos
seus soslaiosirônicos, à maneira, sabe como é, de uma lata de conservas de
que se não tem a chave.Lembra-se dos pescadores de fim-de-semana da muralha
da Marginal, a estenderemtoda a noite para o fio o anzolzinho obstinado e
feliz? Pois bem, se você pousassedevagar a cabeça no meu ombro, se a sua anca
friccionasse a minha até saltar, doencontro de ambas, a chama de sílex de
uma ereção contente, se as suas pestanasumedecessem de súbito, ao fitarem-me,
de consentimento e abandono, poderíamostalvez achar em nós o mesmo subterrâneo
júbilo que a pele contém a custo, o mesmodenso prazer de expectativa e esperança,
a mesma alegria que se alimenta de si própriacomo a manhã devora, nas suas
pregas claras, o cintilante coração do dia. Poderíamosenvelhecer perto um
do outro e da televisão da sala, com a qual constituiríamos osvértices de
um triângulo equilátero doméstico protegido pela sombra tutelar do abatjourde
folhos e de uma natureza-morta de perdizes e maçãs, melancólica como osorriso
de um cego, e encontrar na garrafa de Drambuie do aparador um antídotoaçucarado
contra a conformação do reumático. Poderíamos friccionar-nos mutuamenteos
bicos de papagaio com bálsamo Menopausol, pingar em uníssono, no termo dasrefeições,
as mesmas gotas para a tensão, e aos domingos, depois do cinema, graças aoúltimo
beijo do filme indiano do Avis, unirmo-nos em abraços espasmódicos de recémnascidos,a
soprar pelas dentaduras postiças bronquites aflitas de chaleira. E eu, deitadode
costas no colchão ortopédico reduzido a uma tábua dura de faquir a fim de
preveniras guinadas da ciática, lembrar-me-ia do jovem saudável e ardente
que há muitos anosfui, capaz de repetir sem azia o frango na púcara, para
quem o horizonte do futuro nãoera limitado pelo perfil de cordilheiras dos
Andes de um eletrocardiograma ameaçador,a regressar da guerra de África para
conhecer a filha, numa dessas madrugadas deNovembro tristes como a chuva num
pátio de colégio, durante a lição de Matemática.

A voz feminina, vinda de nenhum lado, que anuncia em três línguas a partidados
aviões, flutuava, imaterial, por sobre a minha cabeça, idêntica a uma nuvem
deDelvaux, até se dissolver a pouco e pouco numa espuma de sílabas em que
os nomes decidades estranhas ecoavam, São Salvador, La Paz, Buenos Aires,
Montevidéu, edifíciosde cem andares que as maças de Adão dos elevadores percorrem
de contínuo para baixoe para cima em deglutições incessantes, vomitando funcionários
escuros, de bigodes,cujos sorrisos se abrem como cortinas sobre dentes de
oiro de uma amabilidadecarnívora. Nesses países veementes, onde os golpes
de Estado e os tremores de terra sesucedem numa cadência teatral destinada
a tentar despertar (sem êxito) o desinteressesonâmbulo de um público de cantores
de tango que esperam, desde o desastre deGardel, a Cumparsita que os acorde,
poderia iniciar, entre um cacto e uma Dolores, aexistência generosa do Camilo
Torres que grita em mim, sob sucessivas camadascórneas de egoísmo e de preguiça,
a sua indignação apaixonada. Dezenas de SierrasMaestras aguardavam as minhas
barbas e o meu charuto, e resolveria tranquilamenteproblemas de xadez, encostado
a uma árvore, a fazer tremer de medo ditadoresbarrigudos protegidos pelos
óculos Ray-Ban e as pastilhas elásticas da CIA. Oempregado da Alfândega, magrinho
intolerante que suspeitou decerto em mim oguerrilheiro em embrião, vasculhou-me
a mala num azedume minucioso em busca demetralhadoras libertárias.

– Trago um feto de oito meses escondido no meio das camisas – informei-oamavelmente
para lhe aguçar a irritação e o zelo. Possuía o aspecto desiludido efrenético
de quem se estende ao lado de uma esposa frígida, que apenas o pulmão deaço
do folhetim do rádio mantém viva.- Vocês vêm de Angola convencidos que são
uns grandes homens mas isto aquinão é o mato, seu tropa

– E a voz dele, a articular as palavras numa entoação Assimil,trouxe-me de
súbito à lembrança o professor de Português do liceu, sujeitoexageradamente
cuidado, de unhas polidas e anel de monograma, que recitava TomásRibeiro em
bicos de sapatos de verniz, puxando do fundo do esôfago tremuras deemoção
arrebatada:

Palram pega e papagaio
E cacareja a galinha.
Os ternos pombos arrulham,
Geme a rola inocentinha.

– Se fosse, dava-lhe um tiro nos tomates.

O burocrata idoso que seguia à minha frente voltou-se para trás assarapantado,uma
senhora disse para outra Chegam todos assim lá de África, coitadinhos, e eu
sentique me olhavam como se olham os aleijados que rastejam de muletas nas
cercanias doHospital Militar, sapos coxos fabricados pela estupidez do Estado
Novo, que ao fim datarde, no Verão, escondiam os cotos envergonhados nas mangas
das camisolas, pombosdoentes pousados nos bancos do jardim da Estrela, ou
misturando-se com as prostitutasque na Rua Artilharia Um roçam as ancas ossudas
pelos Mercedes a diesel deconstrutores civis de fósforo nos dentes, a suarem
de cio sob os chapéus tiroleses. Oempregado da Alfândega, que recuara dois
passos de pavor, aguardava, encostado àparede, que eu varresse à metralhadora
os sacos de viagem empilhados no balcão,sangrando cuecas e peúgas pelos buracos
das balas. O burocrata idoso, assarapantado,tocou-me respeitosamente no ombro:

– O feto que traz na mala está num frasco?

Uma fieira de táxis imóveis alongava-se diante do aeroporto, sob a noite
e achuva, solenes como nos cortejos de enterro, pilotados por cabeças que
se distinguiammal no escuro dos estofos, mas que deviam fungar as sinusites
perpétuas dos infelizesresignados. O halo de claridade dos candeeiros aparentava-se
às auréolas fumosas dossantos nos quadros das igrejas, e eu pensei, fitando
as trevas desabitadas e murchas queuma aurora improvável desbotava, Afinal
é isto Lisboa, na mesma desilusão incrédulacom que visitara a casa de Nelas,
muitos anos depois, e descobrira compartimentosexíguos e sem mistério onde
tinha deixado enormes salas reboantes percorridas pelosopro de epopeia da
infância.

Sentado no banco traseiro do carro, com os estalos do contador a pularem-mecomo
soluços no esôfago, eu procurava desesperadamente reconhecer a minha cidadeatravés
dos vidros cobertos de verrugas de água que deslizavam lentamente para baixonum
vagar de estearina, e descobria apenas, na tremura precária dos faróis, perfisrápidos
de árvores e casas, que se me afiguravam imersas na atmosfera uniforme desolitária
viuvez devota comum a certas terras de província, quando o cinema do centroparoquial
não emite um filme piedoso acerca da escassez de vocações. A minhalembrança
grandiosa de uma capital cintilante de agitação e de mistério copiada de Johndos
Passos, que alimentara fervorosamente durante um ano nos areais de Angola,encolhia-se
envergonhada defronte de prédios de subúrbio onde um povo de terceirosescrituráriosressonava
entre salvas de casquinha e ovais de crochê. Um grupo de homens de oleado
regava camarariamente a rua na esperança obstinada de quenascessem crisântemos
miraculosos do alcatrão, poetas da aurora mascarados deescafandristas, os
primeiros cães, esqueléticos como galgos do Escurial, farejavam nasmolduras
vazias dos umbrais a ideia de um osso. Dentro em breve, sabe como é,mulheres
de sapatos de homens e homens sem sapatos desceriam das barracas junto aocemitério
para magras rapinas ávidas nos caixotes do lixo, vasculhando sobras decomida
nas latas de conserva e nas garrafas quebradas: os pobrezinhos das minhas
tias,a quem no Natal se ofereciam através do prior, demiurgo da caridade anual,
fatias debolo-rei, palavras evangélicas e medicamentos fora do prazo de validade,
rodeados defilhos, de piolhos e de gritos, personagens de Vittorio de Sica
à deriva no Pátio das Cantigas.

– Merda de país de merda – declarei eu para o chauffeur, o qual me respondeucom
um soslaio desconfiado no retrovisor que lhe reduzia o rosto a um par de pupilasmiúdas
e hostis, a que o espelho conferia a agudeza protuberante dos reflexos metálicos.Dois
bilhetes postais colados ao tablier, um representando Nossa Senhora de Fátima
e ooutro Santa Teresinha do Menino Jesus, ladeavam um letreiro a escantilhão
que exigiacom secura que se depositassem as pontas de cigarro numa espécie
de bolsa marsupialde alumínio alojada como uma verruga nas costas do banco
dianteiro. Estou fodido, umirmão do Santíssimo, pensei eu. E acrescentei alto,
no intuito de apaziguar a indignaçãode cruzada do católico:

– Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo – tentando imitar o majestoso sotaquebeirão
dos cardeais-patriarcas, em cujos gestos lentos de turíbulo se escondemdesconfianças
ossificadas de camponês a quem os comboios confundem.

– A mim, os caminhos de ferro fazem-me sonhar – expliquei ao pagar aocondutor
diante do velho portão franqueado de ananases de pedra: o homem consideroumenum
imenso espanto incrédulo esquecido do dinheiro, e foi como se tivesse emNovembro
a revelação do Natal.

A Travessa do Vintém das Escolas, o beco, o muro alta da casa, o pátio dafábrica
de curtumes onde latia constantemente um cachorro desesperado, o céu cor-deleiteda
chuva, os ramos secos da buganvília sobre o muro: cheguei, vou subir a escada
aarrastar a mala atrás de mim, abrir a porta, entrar, dissolver-me nos teus
braços há tantotempo sós, ver nascer a manhã na janela estreita do teto, ao
teu lado, assistir à chegadade anjo do padeiro, vou tocar a tua pele, as tuas
pernas, o intervalo macio e tenro ecôncavo das coxas, o espaço claro que separa
os seios e possui o brilho nacarado decertas conchas secretas que a vazante
exibe com o orgulho de um tesouro, vou entrar emti devagar, até ao fundo,
apoiado nos braços estendidos para assistir à alegria gritada doorgasmo, ao
rosto a rodopiar na almofada coberto de uma elipse de madeixas, às órbitasde
repente cegas, de repente opacas, que as pestanas escurecem de franjas trêmulas
deparamécia. É difícil falar disto assim, percebe?, junto ao porteiro do barsimultaneamente
intransigente e obsequioso, que exige a gorjeta numa subserviênciaperemptória
de assalto à mão armada, curvando para mim os galões da manga à maneirado
elefante do Jardim Zoológico a estender a tromba mole para o molhe de cenouras
dotratador. É difícil, compreende?, tanto mais que não encontro no bolso uma
moedasequer para satisfazer os apetites autoritários da criatura que principia
a franzir assobrancelhas na hostilidade sem nuances dos grandes animais irados,
pronto aespezinhar-me com as patas enormes dos sapatos numa fúria elementar
de paquiderme,e a transformar-me os braços em arabescos torcidos Arte Nova
idênticos às hastessabiamente oxidadas dos candeeiros, capazes de arrancarem
das calvícies cintilaçõeslunares. De modo que trepei os degraus com a mala
a arrastar atrás de mim à laia deuma cauda incômoda e uma explosão de lágrimas
a inchar, enovelada, na garganta,

encontrei uma mulher numa cama e uma criança num berço dormindo ambas na
mesmacrispação desprotegida feita da fragilidade e abandono, e fiquei parado
no quarto com acabeça cheia ainda dos ecos da guerra, do som dos tiros e do
silêncio indignado dosmortos, a escutar, sabe como é, os sonos que se entrelaçavam
numa rede complicada dehálitos, um tornozelo da minha mulher sobrava, pendente,
dos lençóis, e eu comecei aafagá-lo de leve até ela acordar, afastar os cobertores
sem uma palavra, e me receberinteiro na cova morna do colchão. A voz gorda
do tenente, rebolando de muito longe,repetia Pôr o selo na patroa, pôr o selo
na patroa, pôr o selo na patroa, doutor é precisopôr o seloa na patroa, os
capitães vindos de sargentos jogavam as damas na messe, oFerreira cicatrizava
o coto da perna que já não tinha, no Luso, e eu sentia-me a fazeramor por
todos eles, entende, a vingar o sofrimento e a angústia de todos eles numcorpor
aberto como uma corola noturna, a cerrar-se devagar sobre os meus rinsexaustos.

Talvez que um dia, se nos conhecermos melhor, lhe mostre o retrato que guardona
carteira da minha filha de olhos verdes que mudam de tonalidade quando chora,
e setornam da cor do mar intratável do equinócio a saltar a muralha num tricot
zangado deespuma, lhe mostre o seu sorriso, a sua boca, o seu cabelo loiro,
a filha que sonhei novemeses nos suores de Angola porque a gente é que somos
de verdade e o resto nunca queexistiu, dizia o Luandino, a gente é que somos
de verdade, ela e eu, o seu corpo alto, assuas mãos tão parecidas com as minhas,
a infatigável curiosidade das suas perguntas, asua inquietação aflita acerca
do meu silêncio ou da minha tristeza, a gente é quemsomos de verdade resto
tudo é mentira, lhe mostre a expressão séria da minha filha quenão vi inchar
na barriga crescida da mãe, a filha para quem eu era uma fotografia que seaponta
com o dedo e me encarava com a raiva com que se recebem os intrusos, euchegado
de África deitado com ela no meu colo tardes a fio, sorrindo um para o outro
oriso de entendimento antigo e sábio que as crianças de quatro meses herdaram
dosálbuns e demoram anos e anos a perder, Está a dormir a sesta e não quero
que oacordem, declarei eu para os soldados, o capelão cirandava em torno da
urna a desenharcruzes com os dedos, o tenente resmungava Caralho de guerra
caralho de guerra caralhode guerra, sou paisano de novo por uns dias e viajo
na geografia mansa do teu corpo, norio da tua voz, na sombra fresca das tuas
palmas, na penugem de peito de pomba do teupúbis, mas eu e Xana e tu chuva
de sábado é que somos ainda a verdade, o choro súbitoda nossa filha na noite
dos lençóis a acordar-nos, os biberões aquecidos na cozinha emnoites de angústia
e de esperança, não, oiça, hoje, quando me deito, o futuro é umnevoeiro fechado
sobre o Tejo sem barcos, só um grito aflito ocasional na bruma,viverei muito
tempo dentro dos teus gestos, minha filha, a família veio ver-me com acuriosidade
com que se assiste a salvo a um tremor de terra, uma derrocada, umsuicídio,
um desastre, um homem de bruços no chão junto a um automóvel amarrotado,um
epilético aos saltos no passeio, um cardíaco abraçado ao coração na mercearia,
asrugas graves do meu pai, as piadas dos tios, discursos bêbedos do cabo Paulo
que umamina levou, e de repente o avião da partida, a minha mulher encostada
a uma colunasem falar, nenhum cuspo na boca, sabe como é, a língua seca como
a das galinhas, asluzes da minha cidade lá de cima. Vi passar o boingue em
que ias da janela da sala esenti um aperto que nem quê.

M

Para sua casa ou para a minha? Moro por trás da Fonte Luminosa, na Picheleira,num
andar de onde se vê o rio, a outra banda, a ponte, a cidade à noite estilo
impressodesdobrável para turistas, e sempre que abro a porta e tusso o fim
do corredor devolveem eco o meu pigarro e vem-me como que a sensação esquisita,
percebe?, de me dirigirao meu próprio encontro no espelho cego do quarto de
banho onde um sorriso triste meaguarda, suspenso das feições como a grinalda
de um carnaval que acabou. Já lheaconteceu observar-se quando está sozinha
e os gestos se atrapalham numa desarmoniaórfã, os olhos procuram no seu reflexo
uma companhia impossível, a gravata de bolasnos confere o aspecto derisório
de um palhaço pobre a representar o seu número semgraça para um circo vazio?
Costumo sentar-me em alturas como essas no chão do quartodas minhas filhas,
que de quinze em quinze dias me visitam espalhando migalhas ecromos nos compartimentos
desertos, e cujos sonos vigio numa solicitude comovida, atropeçar em pernas
de bonecas, em livros de quadradinhos e em berços de baquelite,dispostos na
alcatifa segundo um código misterioso que tento penosamente reconstituirna
sua ausência, do mesmo modo que, diante das fotografias dos mortos, procuramos
namemória as espressões fugitivas que por demasiado líquida os retratos deixam
passarpor entre os dedos. Às terças e sextas-feiras, uma caboverdiana que
nunca vi, e comquem comunico por intermédio de mensagens cerimoniosas depositadas
no armário dacozinha, repõe os objetos e os móveis na ordem excessivamente
geométrica da solidão,a que a falta de pó confere a impessoalidade asséptica
de uma sala de pensos, e pendurano arame da varanda a minha monótona roupa
de home que nenhum soutien alegra desugestões conjugais. De tempos a tempos,
mulheres encontradas por acaso no canto desofá de uma reunião de amigos, como
quem descobre trocos inesperados no bolso docasado de Inverno, sobem comigo
no elevador para uma rápida imitação dodeslumbramento e da ternura de que
conheço já de cor os mínimos detalhes, desde odesenvolto uísque inicial ao
primeiro soslaio de desejo suficientemente longo para nãoser sincero, até
o amor acabar no chapinhar do bidê, onde as grandes efusões sedesvanecem à
custa de sabonete, raiva e água morna. Despedimo-nos no vestíbulotrocando
número de telefone que imediatamente se esquecem e um beijo desiludido quea
falta de bâton torna incolor, e elas evaporam-se da minha vida abandonando
no lençola mancha de clara de ovo que constitui como que o selo branco que
certifica o amoracabado: apenas um perfume estranho, a vestir-me os sovacos
de odores de cocote, e umtraço de base no pescoço descoberto na manhã seguinte
durante o harakiri sangrento dabarba, me garantem a breve passagem real pela
minha cama do que cuidava já serem osimprecisos artefatos que a melancolia
inventa. Entretanto, as torneiras e os autoclismosprincipiam um a um a deixar
de funcionar, os estores empenam como pálpebrascomplicadas impossíveis de
abrir, a umidade cresce no interior dos armários ilhasconfluentes de bolor;
lentamente, insidiosamente, a casa morre; as pupilas fundidas daslâmpadas
fitam-me numa névoa de agonia, da boca aberta escapa-se o hálito de correntede
ar das respirações exaustas; sentado à secretária do escritório sinto-me na
ponte decomando deserta de um navio que se afunda, com os seus livros, as
suas plantas, os seusmanuscritos inacabados, as cortinas que não há sopradas
pelo vento pálido de umafelicidade difusa. O prédio que constroem à minha
frente emparedar-me-á em breve àmaneira dos personagens de Poe e somente os
meus dentes cintilirão nas trevas, comoos dos esqueletos antigos acocorados
num ângulo de caverna, a abraçarem os ossos dosjoelhos com os tendões amarelecidos
dos cotovelos.

E você como faz? Imagino-a, sabe como é, num cenário a meio caminho entre
afilosofia oriental e a esquerda ponderada e lúcida, para quem Maio de 68
representouuma espécie de aborrecida doença da infância que reduziu o sonho
ao marxismodesencantado, utilitário e cínico de certas burocracias do Leste:
muitas almofadas pelochão, um odor de incenso e de patchouli a flutuar sobre
os bibelots indianos, um gatosiamês desdenhoso como uma prima-dona, livros
de Reich e Garaudy a prosseguiremnas prateleiras os seus monólogos veementes
de profetas, a voz de Leo Ferré queemerge em espirais de paixão febril do
gira-discos. Arquitetos de bigode,cuidadosamente mal vestidos, ocupam de tempos
a tempos a sua cama de ferro deantiquário de Sintra, enchendo de pontas de
cigarro sem filtro os cinzeiros design, ouafagando os cabelos hirsutos do
peito em elucubrações onde se adivinham perfis desupermercados por projetar.
De manhã, a porteira, intratável e gorda, recolhe os caixotesdo lixo vociferando
insultos silenciosos pelas sobrancelhas pesadas de buldogue. Doandar do lado
chegam as guinadas furibundas de uma discussão conjugal, acompanhadado som
de loiça que se quebra. Um sol alegre como o riso de um polícia toca xilofonenas
persianas. De chinelos, na cozinha, você prepara um café forte como umeletrochoque
que a projete para fora do seu invólucro de sono na direção do emprego,ao
volante de um R4 creme, de traseira amachucada por um táxi colérico. Habitantes
damesma cidade, passamos talvez anos e anos um pelo outro sem nos vermos,frequentamos
os mesmos cinemas, lemos os mesmos jornais, assistimos ambos,pontualmente,
aos espisódios da telenovela, na mesma irritação interessada. Somos, seassim
me posso exprimir, contemporâneos, e as nossas trajetórias paralelas vãofinalmente
encontrar-se em minha casa (porque o odor do incenso me enjoa) no júbilomole
com que dois fios de esparguete se cruzam. Quer que ligue o rádio do carro?
Podeser, pode sempre ser que o noticiário das três nos anuncie a ressurreição
da carne echeguemos ao cemitério de Benfica a tempo de ver sair do jazigo
da família as senhorasde sombrinha do álbum de retratos cujos imensos bustos
me continuam a intrigar. Oquê? A guerra de África? Tem razão, divago, divago
como um velho num banco dejardim perdido no esquisito labirinto do passado,
a mastigar recordações no meio debustos e de pombos, de bolsos cheios de selos,
de palitos e de capicuas, movendocontinuamente os queixos como se premeditasse
um escarro fantástico e definitivo. Ocerto é que, à medida que Lisboa se afastava
de mim, o meu país, percebe?, se metornava irreal, o meu país, a minha casa,
a minha filha de olhos claros no seu berço,irreais como estas árvores, estas
fachadas, estas ruas mortas que a ausência de luzassemelha a uma feira acabada,
porque Lisboa, entende, é uma quermesse de província,um circo ambulante montado
junto ao rio, uma invenção de azulejos que se repetem,aproximam e repelem,
desbotando as suas cores indecisas, em retângulos geométricos,nos passeios,
não, a sério, moramos numa terra que não existe, é absolutamenteescusado procurá-la
nos mapas porque não existe, está lá um olho redondo, um nome, enão é ela,
Lisboa começa a tomar forma, acredite, na distãncia, a ganhar profundidade
evida e vibração, Luanda enevoada subiu ao meu encontro, o alferes médico
abandonouo avião dobrado pelo peso de trinta e cinco dias de angústia e de
alegria a repetir dentrode mim mesmo Surtout pas d’émotion, como aconselhava
o Blondin, a repetir em cadadegrau Surtout pas d’émotion, Surtout pas
d’émotion, Surtout pas d’émotion, a janela dapensão abria para a
manhã confusa da Mutamba, tirei a fotografia da minha filha damala e coloquei-a
entre o telefone e o copo de água naquele quarto anônimo a cheirar adesinfetante,
a fórmica e a goma, estendi-me calçado e de casaco em cima da colcha, atulipa
de vidro do teto dividiu-se em duas e adormeci.

A noite surge depressa demais nos trópicos, após um crepúsculo fugaz edesinterssante
como o beijo de um casal divorciado por mútuo consentimento. As palmeiras
que bordam a baía acenavam as rêmiges das folhas em voos preguiçosos, astraineiras
abandonavam o cais arrotando o gasóleo do jantar, o néon dos cabarés da Ilhapiscava
as pálpebras demasiado pintadas, em cujo chamamento ansioso ecoavam osapelos
das mulheres das barracas de tiro do Parque Mayer, cujas vozes roucas mepovoaram
os sonhos, na adolescência, de crocitos apavorantes. O calor vestia-nos osgestos
de algodão pegajoso, e a água chegava a ferver dos canos num assobio de geiser.Jantei
sozinho num restaurante da Baixa, repleto de homens nédios, de pescoços aluzirem
de suor como os dos bois minhotos, e dedos povoados de anéis de pedras pretasou
vermelhas, que submergiam no caldo verde bigodes de lontras esfomeadas. Umnegro
corcunda tentava sem sucesso impingir de mesa em mesa bonecos talhados acanivete
de uma vulgaridade de plástico, até o empregado o enxotar com o guardanapoque
pendurava do ombro, tão escuro de nódoas e fuligem como o lenço de um tomadorde
rapé. Um velhote calvo, de carranca de chafariz, abocanhava num canto uma
mulataprotegida da sua sanha por três voltas de colares, ocupada a devorar
um geladogigantesco, monstruoso de frutas cristalizadas e de cremes, com uma
cereja obscena dotopo. Uma máquina elétrica de discos vomitava aos guinchos
pasodobles de cluberecreativo paranoico, e com o pano de fundo dessas sugestões
toureiras que meobrigavam a berrar no bocal urros tremendos de cadeira de
dentista, telefonei àhospedeira da TAP que me esperava, de Logan’s em
riste, num terceiro andar do BairroPrenda, metida nuns jeans tão apertados
que quase se percebia, através do tecido, opulsar das veias das coxas. Um
cão minúsculo, parecido com um rato pernalta e magro,reteso de hostilidade
azeda, veio ladrar-me, furioso, aos tornozelos, e eu pensei em leválode presente
ao alferes catanguês para o pequeno-almoço de domingo, no intuitoamável de
lhe variar a dieta. A rapariga agarrou nele por uma pata, atirou-o para ointerior
da cozinha onde o bicho tombou num ganido lancinante de fratura múltiplas,
efechou a porta com um pontapé; o passo seguinte seria, provavelmente, esmagar-me
ostestículos com uma joelhada de artes marciais, e no dia imediato encontrariam
o meucadáver, horrorosamente mutilado, no meio de móveis em desordem e de
pedaços degarrafas.

– Olá, Modesty Blaise – disse eu a encolher-me. Os peitos dela, sob a camisolaestampada,
assemelhavam-se a duas peras enormes debaixo de um guardanapo Coca-Cola: sem
a farda, perdia o coeficiente de mistério que eu teimo em atribuir aos anjospor
vício que me ficou do catecismo, mesmo aos que servem refeições de celofane
numcorredor de avião. O apartamento cheirava a roupa por lavar e a comida
enlatada deanimais, a noite de África entrave pela janela aberta num hálito
grosso de presépio, nacama por fazer um livro de poemas de Eluar veio prometer-me
de repente um horizontede doçuras insuspeitadas e frágeis naquela amazona
violenta, chegada, sabe como é, denão sei que céu, incumbida da missão específica
de quebrar as enervantes colunasvertebrais dos cachorros de luxo e de pulverizar
os tomates medrosos dos guerreiros depassagem, em trânsito para o arame farpado
e para a morte, pobres bichos fardadosescondidos nas gaiolas de madeira das
casernas.

– O que é que você toma, Olhos Azuis? – perguntou ela num sorriso carnívoro
deacordeão que se desdobra e me trouxe à memória o livro, cheio de imagens
assustadoras, do Capuchinho Vermelho da minha infância: É para te comer melhorminha
netinha, e o Lobo, de touca, exibia dos lençóis, a babar-se, os dentespontiagudos.

Para te comer melhor minha netinha, para te comer melhor minha netinha, parate
comer melhor minha netinha: a boca dela crescia na minha direção, côncava,gigantesca,
sem fundo, as unhas vermelhas aumentavam até me roçar a pele, hálitosfrios
de carne crua aproximavam-se de mim, a gruta de um esôfago de poço, onde o
pedregulho do meu corpo tombaria num roldão de queda, nascia-lhe na raiz de
ganganas coxas. O cão minúsculo arranhava a porta da cozinha em guinchos melancólicos.Pousei
o copo numa mesa de bambu onde o umbigo de um buda pantagruélicoestremecia
gargalhadas de loiça, e o tilintar dos cubos de gelo trouxe-me à lembrança
osino que comprara para o berço da minha filha e que guitarrava vagarosamente
umamelodia sem nexo; a essa hora, em casa, a minha mulher aquecia o biberão
da meianoite,o cigarro ardia no cinzeiro de estanho serenidades azuladas de
turíbulo, o confortodos silêncios domésticos arredondava as dolorosas arestas
do desespero, uma eternidadede retábulo medieval inventava anjos gordos pelo
teto. Talvez que o sofá da salaconservasse ainda a fugaz impressão digital
das minhas nádegas, e um resto diluído dosmeus traços flutuasse na água vazia
dos espelhos, pupilas inertes que se esquecem.Todo um universo de que me achava
cruelmente excluído prosseguia, imperturbável, naminha ausência, o seu trote
miúdo ritmado pelo coraçãozinho ofegante do despertador,uma torneira qualquer
suava um pingo perpétuo nas trevas. A rapariga sacudiu o livrode Eluard da
cama (larmes des yeux les malheurs des malleureux) no gesto de quemenxota
migalhas de pão de uma toalha, e deslizou nua para fora da roupa a agitar
ascrinas dos cabelos compridos à laia de uma grande égua ávida que espera,
a relincharuma espécie de vapor pelas narinas abertas. Em Lisboa, a minha
filha, de olhosfechados, começava o biberão, e as orelhas dela, à luz da lâmpada,
adquiriam atransparência cor-de-rosa do mar de Antonioni, enrolando em si
próprio espiraisdelicadas. Despi as calças, desabotoei a camisa, o umbigo
do buda troçava da minhamagreza pálida e aflita, estendi-me no colchão, envergonhado
do tamanho do meu pênismurcho que não crescia, não crescia, reduzido a uma
tripa engelhada entre os pelosruivos lá de baixo, a hospedeira pegou-lhe educadamente
com dois dedos como numjantar de cerimônia não sei se com surpresa ou com
desgosto, Entesa-te minha besta,ordenei-me eu dentro de mim, a minha filha
suspendeu o biberão para arrotar e os olhosdela fitavam para dentro, desfocados,
toquei a vulva da rapariga e era mole, e morna, etenra, e molhada, encontrei
o nervo duro do clitóris e ela soltou um suspirozinho dechaleira pelo bico
esticado dos beiços, Pela alminha de quem lá tens entesa-te, supliqueia mirar
de viés a minha pila morta, não me deixes ficar mal e entesa-te, pela tua
saúdeentesa-te, entesa-te, foda-se, entesa-te, a minha mulher mudava fraldas
de alfinete deama na boca, o tenente devia falar na criada ao capelão aterrado
que se benzia, oscaixões na arrecadação aguardavam que eu me estendesse, obediente,
no forro dechumbo, a rapariga parou de me beijar, apoiou-se no cotovelo como
as figuras dostúmulos etruscos, passou-me a mão na cara e perguntou O que
é que não vai bem, OlhosAzuis?, e eu encolhi os ombros, rodei até ficar de
bruços no lençol e desatei a chorar.

N

Depois de correr aflito pelo alcatrão, a agitar as asas numa ânsia de asma
embusca de ar que lhe faltava, o Nord Atlas soltou-se dificilmente da pista
num voodesordenado e torto de perdiz, roçando com as penas gordas da barriga
o telhado dezinco dos musseques, em que a miséria dos homens e dos cães se
afogava numaumidade quente de barrela. Apertado contra os outros nu único
banco comprido doavião, entre caixotes, fardos, sacos e malas (“o meu
país na gare de Austerlitz”), eu,emigrante forçado da guerra de regresso
ao bidonville do arame, olhava pelas janelasestreitas do avião a Ilha de Luanda
a encolher-se na distância, a cidade esvaziada devolume, subitamente pequena,
o mar de vidro da baía, ruas miniaturais que se torciam, sobrepunham e cruzavam
como enguias num cesto, o Bairro prenda da minha derrota,onde o cão execrável
devia latir de júbilo em torno de um lençol sem manchas: acabarapor esconder
a vergonha nas cuecas às primeiras horas da manhã, observado pelapiedade divertida
da mulher, e introduzira-me obliquamente no elevador à maneira deum passageiro
clandestino que se evade, desiludido, de um navio que não largou docais, até
um táxi me varrer os restos para a pensão da Mutamba, cujo néon leitosoestrebuchava
os derradeiros estremecimentos de uma cobra que agoniza. A negraenorme a cabecear
na entrada diante do painel das chaves ergueu para mim um pálpebraindiferente
de hipopótamo em que julguei perceber a cintilação fugidia de um sarcasmo.E
ao entrar no quarto apeteceu-me cuspir no copo de água o coral da dentadura
postiçacapaz de me fazer aceitar com menor sofrimento o meu fracasso: mas
os queixaispermaneciam teimosamente grudados às gengivas, a testa não se me
enrugava ainda nosespelhos, e alcançaria provavelmente o ano dois mil com
próstata em sossego e amargem suficiente de futuro para ajardinar a esperança.
De modo que fechei a janela,desci os estores, e principiei a narrar mentalmente
à lâmpada do teto a história donáufrago irremediável que de quando em quando
me sentia.

Éramos cerca de vinte militares que tornavam ao Leste, a fumar em silêncio
nobanco de pau, de feições desabitadas de expressão à laia dos retratos das
fotomatons, pordetrás das pupilas das quais se não adivinha a suspeita de
qualquer emoção, e eu penseique vivia há um ano no arame com os mesmos homens
sem os conhecer sequer,comendo a mesma comida e dormindo o mesmo sono inquieto
entrecortadodesobressaltos e suores, unidos por uma esquisita solidariedade
idêntica à que irmana osdoentes nas enfermarias de hospital, fieta do comum,
sabe como é, recei, pânico damorte, e da inveja feroz dos que prosseguem lá
fora um quotidiano sem ameças nemangústia a que se deseja desesperdamente
voltar, escapando à absurda paralisia dosofrimento, vivia há um ano com os
mesmos homens e não sabíamos nada uns dosoutros, o rosto com que se saía para
a mata era rigorosamente idêntico ao que se traziada mata, só que mais amarrotado
e coberto de um musgo verde de barba, as vozespossuíam o timbre de neutralidade
anônima dos interfones, os sorrisos rarosassemelhavam-se às chamas das velas
apagadas de que Lewis Carroll fala, os corposestendidos nos beliches dir-se-iam
fabricados por um único molde apressado e cinzentoque se esquecera de incluir
no reportório dos nossos músculos os súbitos gestos dealegria.

A pouco e pouco a usura da guerra, a paisagem sempre igual de areia e bosquesmagros,
os longos meses tristes do cacimbo que amareleciam o céu e a noite do iododos
daguerreótipos desbotados, haviam-nos transformado numa espécie de insetosindiferentes,
mecanizados par um quotidiano feito de espera sem esperança, sentadostardes
e tardes nas cadeiras de tábuas de barril ou nos degraus da antiga administraçãode
posto, fitando os calendários excessivamente lentos onde os meses se demoravamnum
vagar enlouquecedor, e dias bissextos, cheios de horas, inchavam, imóveis,
à nossavolta, como grandes ventres podres que nos aprisionavam sem salvação.
Éramos peixes,percebe, peixes mudos em aquários de pano e de metal, simultaneamente
ferozes emansos, treinados para morrer sem protestos, para nos estendermos
sem protestos noscaixõs da tropa, nos fecharem a maçarico lá dentro, nos cobrirem
com a BandeiraNacional e nos reenviarem para a Europa no porão dos navios,
de medalha deidentificação na boca no intuito de nos impedir a veleidade de
um berro de revolta. Deforma que me viram tornar ao Chiúme sem surpresa, e
nenhum oficial levantou oqueixo do prato do almoço quando me sentei a comer
no meio deles, entre o capitão e ocatanguês que sorria para toda a gente,
sem encontrar resposta, a gargalhada cruel dosleões de pedra das fachadas
dos prêmios Valmor. O leitor de cassetes do alferes Eleutério tocava a 4ª
Sinfonia de Beethoven, e era como se a música soasse numa saladeserta para
lá de cujas janelas sem cortinas a chana desdobrava interminavelmente aspregas
do seu lado, uma música que se prolongasse no eco de si própria do mesmomodo
que nos pianos cerrados teimam em morar ainda os compassos tênues de umavalsa
antiga, tão velha e hesitante como os relógios de parede do corredor. Éramospeixes,
somos peixes, fomos sempre peixes, equilibrados entre duas águas na busca
deum compromisso impossível entre a inconformidade e a resignação, nascidos
sob osigno da Mocidade Portuguesa e do seu patriotismo veemente e estúpido
de pacotilha,alimentados culturalmente pelo ramal da Beira Baixa, os rios
de Moçambique e asserras do sistema Galaico-Duriense, espiados pelos mil olhos
ferozes da PIDE,condenados ao consumo de jornais que a censura reduzia a louvores
melancólicos aorelento de sacristia de província do Estado Novo, e jogados
por fim na violênciaparanoica da guerra, ao som de marchas guerreiras e dos
discursos heroicos dos queficavam em Lisboa, combatendo, combatendo corajosamente
o comunismo nos gruposde casais do prior, enquanto nós, os peixes, morríamos
nos cus de Judas uns apósoutros, tocava-se um fio de tropeçar, uma granada
pulava e dividia-nos ao meio, trás!, oenfermeiro sentado na picada fitava
estupefato os próprios intestinos que segurava nasmãos, uma coisa amarela
e gorda e repugnante quente nas mãos, o apontador demetralhadora de garganta
furada continuava a disparar, chegava-se sem vontade decombater ninguém, tolhido
de medo, e depois das primeiras baixas saía-se para a matapor raiva na ânsia
de vingar a perna do Ferreira e o corpo mole e de repente sem ossosdo Macaco,
os prisioneiros eram velhos ou mulheres esqueléticos menos lestos a fugir,côncavos
de fome, o MPLA deixava mensagens nos trilhos a dizer Deserta mas paraonde
se só havia areia em volta, Deserta, os tipos passavam da Zâmbia para o interiordetendo-se
de quando em quando para dinamitar as pontes dos rios, um dia depois deum
ataque encontrei uma insígnia metálica do Movimento na pista de aviação fiquei
aolhá-la como o Lourenço mirava as tripas que se lhe escapavam da barriga,
o cabomostrou-me uma carta caída num arbusto I love to show you my entire
body, explicavauma inglesa a um angolano que na véspera nos metralhara oculto
no escuro, leves armaschecoslovacas de som agudo e rápido, médicos suecos
trabalhavam no Chalala Nengo apoucos quilômetros de nós, o Chalala Nengo que
os T6 bombardeavam de napalm eresistiam, Uma destas manhãs os meus amigos
acordam bem dispostos chegam lá numrufo e destroem aquilo tudo encorajava
o coronel otimista de camuflado engomadovindo de Luanda para nos estimular
com boas palavras conselhos e ameaças, Vai tu àfrente meu cara de caralho
respondia o tenente indignado por entre dentes, Se queremrodar ir para um
sítio melhor têm de nos mostrar resultados que se vejam minas turrastrotil,
o comandante encolhia os ombros em tiques de aflição pequeno ridículo quasetocante
de embaraço indicava no mapa a extensão da zona que nos cabia, gaguejavaMeu
coronel Meu coronel Meu coronel, do Mondego ao Algarve para quinhentoshomens
mal alimentados, peixe quase podre carne em mau estado ossos de frango,gastos
de paludismo e de cansaço, a beber a água que pingava gota a gota, lamacenta,dos
filtros, acabava-se a cerveja acabava-se o tabaco acabavam-se os fósforos,
não haviasequer fósforos no Luso para nós, Uma manhã os meus amigos acordam
bem dispostosgarantia o coronel e levam tudo à frente, aliás acho preferível
que isso suceda depressaporque conseguiram tão pouco até agora, o comandante
esmagado rodava o boné depala na mão, Aquele cabrão ainda me desata a chorar
diante deste mulo previa o tenentebaixinho, Estou farto desta merda pelo amor
de Deus arranje-me uma doença qualquer,Deserta gritavam os papéis do MPLA,
Deserta Deserta Deserta Deserta DesertaDESERTA, a locutora da rádio da Zâmbia
perguntava Soldado português porque lutascontra os teus irmãos mas era contra
nós próprios que lutávamos, contra nós que as nossas espingardas se apontavam,
I love to show you my entire body e eu já me tinha denovo esquecido do teu
corpo de coxas afastadas no quarto do sótão onde durante ummês vivi, esquecido
do cheiro do sabor da elasticidade suave da tua pele, já me tinhaesquecido
do som da voz do sorriso dos olhos egípcios irônicos e ternos os seiosgrandes
o cabelo na almofada os dedos perfeitos dos pés, o capitão chegou da mata
comuma kalachnikov no sovaco e disse O tipo estava de costas a guardar a lavra
não nos viusequer aproximar-nos, vamos todos acordar bem dispostos amanhã
e ganhar a guerravivaportugal, que importa o nevoeiro do cacimbo até aos ossos
se angolénossa e assenhoras do movimento nacional feminino se interessam desveladamente
pela gentetoma lá dez aerogramas e vai-te curar, compreende o que é querer
fazer amor e nãohaver com quem, a miséria de ter de masturbar-se a pensar
em nada, puxar a pele paracima e para baixo até que, uma espécie de desmaio
chocho um pouco de líquido eacabou-se limpar os dedos às cuecas subir a braguilha
e sair para a parada, Marcha lentoe à vontade nossos cadetes ordenava o alferes
na instrução de Mafra, convento absurdomonstruoso idiota cretino, Damas e
cavalheiros perdão senhores oficiais o conjuntoVera Cruz com o vocalista Tó
Mané deseja a Vossas Excelências um resto de tardefeliz, o sujeito do microfone
desafinava boleros poeirentos de 78 rotações a brilhantinadas melenas cintilava
o sapador girou a cadeira para o capelão arreganhou a tacha einquiriu A menina
dança, a primeira anticarro estoirou numa coluna dele e fui à mata dehelicóptero
recolher-lhe os feridos, Médico e sangue médico e sangue médico e sanguepedia
o rádio, dadores em bicha de braço arregaçado à entrada do posto, náufragosinertes
nas macas de pálpebras descidas a respirarem de leve por um canto dos lábios,
ànoite os cães selvagens ladravam em torno do arame Está a ouvir os gajos
sussurrava otenente e o hálito espalhava-se-me quente na orelha, como não
há fósforos acendem-seos cigarros uns nos outros, Mostrem resultados que se
vejam discursava o coronel e nóssó tínhamos para exibir pernas amputadas caixões
hepatites paludismos defuntosviaturas transformadas em harmônios de destroços,
o general perorou do Luso Asberliets são ouro piquem o trajeto inteiro de
modo que três homens de cada ladoexploravam a areia adiante dos carros porque
uma camioneta era mais necessária e maiscara do que um homem um filho faz-se
em cinco minutos e de graça não é verdade umaviatura demora semanas ou meses
a atarraxar parafusos, aliás havia ainda montes degente no país para mandar
de barco para Angola mesmo descontando os filhos daspessoas importantes e
os protegidos pelas amantes das pessoas importantes que nãoviriam nunca o
paneleiro do rebento de um ministro foi declarado psicologicamenteincompatível
com o Exército, Está a ouvir os gajos sussurrava o tenente apontando assombras,
Meu amor querido eis-me outra vez no Chiúme depois de uma viagem semproblemas
e isto sabes como é continua na mesma um pouco isolado mas tranquilo nofundo
é idêntico a morar dois anos em Vila Real ou em Espinho ou num monte doAlentejo
com a vantagem de poder contar à nossa filha que conversei com zebras eelefantes
em zebrês e elefantês, todas as tardes escrevia ridículas mentiras joviais
parauma mulher sem corpo, tendo no bolso o teu retrato a cores sentada numa
rocha ao pédo mar de cabelo cortado e óculos escuros pernas cruzadas sob um
vestido estampadovermelho e és tu e nã és tu quem na fotografia me (me?) sorri,
Angolénossa senhorpresidente e vivápátria claro que somos e com que apaixonado
orgulho os legítimosdescendentes dos Magalhães dos Cabrais e dos Gamas e a
gloriosa missão quegarbosamente desempenhamos é conforme o senhor presidente
acaba de declarar no seunotabilíssimo discurso parecida só nos faltam as barbas
grisalhas e o escorbuto mas pelocaminho que as coisa levam eu seja cego se
não lá iremos, e já agora e se me permiteporque é que os filhos dos seus ministros
e dos seus eunucos, dos seus eunucosministros e dos seus ministros eunucos,
dos seus miniucos e dos eunistros não malham com os cornos aqui na areia como
a gente, o capitão encostou a kalachnikov à parede eficamos surpreendidos
a olhá-la, Afinal é este o aspecto da nossa morte perguntou umalferes, senhor
doutor tem de ir à mata porque pisaram uma antipessoal num trilho, seisquilômetros
de Mercedes disparada e nisto o pelotão numa clareira o cabo Pauloestendido
a gemer e do joelho para baixo depois de uma pasta torcida de sangue nada,nada
senhor presidente e senhores eunucos nada, calcule senhor presidente o que
serádesaparecer de súbito um bocado de si, os legítimos descendentes dos Cabrais
e dosGamas a sumirem-se por frações um tornozelo um braço um troço de tripa
ostomatinhos os ricos tomatinhos evaporados, faleceu em combate explica o
jornal mas éisto falecer seus filhos da puta, eu ajudava-os a falecer com
os meus remédios inúteis eos olhos deles protestavam protestavam não entendiam
e protestavam, será falecer estaincompreensão esta surpresa a boca aberta
os braços bambos, cobriram-se as bombas denapalm com oleado e o governo afirmou
solenemente Em caso algum recorreríamos atão cruel meio de extermínio, eu
vi cobrir as bombas em Gago Coutinho, pedi umgarrote ao enfermeiro e logo
a seguir lembrei-me Sempre que ponho um garrote morremde embolia gorda no
Luso de forma que comecei a procurar a artéria para a laquear, umfurriel espreitava
por cima do meu ombro como um puto atrás do muro que o protege,era difícil
pinçar o vaso no meio de tanto músculo e tanto sangue, como é o teu corpocomo
é o teu sorriso como é o teu cabelo na almofada acordavas-me de manhã com
ocalor das torradas e as coxas entre as minhas quando andavas as tuas nádegasendoideciam-me
de desejo a maneira de mover as ancas o modo lento de beijarQueridos pais
aqui no Chiúme as coisas correm o melhor possível dentro do melhorpossível
que é possível não há motivo nenhum para se preocuparem comigo atéengordei
um quilo desde que cheguei e principio a assemelhar-me fisicamente a ummissionário
irlandeês ou ao médio de abertura do País de Gales, o soba afagava a suamáquina
de costura inútil com olhos de Pietà lamentosa, os gaviões cobiçavam ospintos
da sanzala em círculos manhosos demorados tensos de gula, nuvens de trovoadaengordavam
sobre a chana, os tendões do vento contraíam-se e distendiam-seassoprando
a areia, o navio do Mississipi do soba acastanhava-se de ferrugem adornado,apliquei
um rolhão de compressas contra o coto para o impedir de sangrar, o furrielvomitava
aos arrancos abraçado à arma abraçávamo-nos às espingardas como afogadosa
pedaços irrisórios de madeira, É este o aspecto da nossa morte interrogava
o alferes aapontar a kalachnikov na parede, o aspecto da nossa morte são estes
arbustos pindéricose este homem prostrado cor-de-cinza que delira, o comandante
do pelotão assobiava defúria, Prezado doutor Salazar se você estivesse vivo
e aqui enfiava-lhe uma granada semcavilha pela peida acima uma granada defensiva
sem cavilha pela peida acima, injeteisegunda ampola de morfina no deltoide,
Depois deste trabalho todo não patines, doChiúme informaram que o helicóptero
largara de Gago Coutinho com mais sangue abordo, gosto de ti gosto das tuas
mãos cheias de anéis e das tuas pernas magras que seenrolam nas minhas idênticas
a colares de muitas voltas gosto de jogar crapaud contigona cama desfeita
e da batota que ambos fazemos e ambos sabemos que o outro faz paraganhar,
um dia destes tiro o retrato e verificam espantadíssimos que engordei, mais
duascoraminas e três sympatol na esperança que o pulso me não fuja rápido
e tênue coraçãode ave nos meus dedos, Marcha lento e à vontade ofegava o alferes
na estrada daEriceira uma filha de cadetes exaustos de cada lado do alcatrão
sob a chuva gelada deMarço, o conjunto Vera Cruz deseja a Vossas Excelências
senhores oficiais um resto detarde descansado e feliz, não há motivo nenhum
para se preocuparem comigo porqueesta perna esfacelada ainda não é a minha
perna e por assim dizer continuo se assim meposso exprimir mais ou menos vivo,
o coronel em Luanda devia queixar-se aobrigadeiro de que falecíamos demais,
o helicóptero desapareceu por sobre a matatoctoctoctoctoctoc, pusemo-nos de
pé para partir, recolhemos do chão os panos de tendaas cartucheiras os cantis
e os bornais, o pelotão formou em bicha e reparamos nacontagem que faltava
o furriel dos vômitos, estava sentado ali perto em cima da G3 demãos no queixo,
chamei-o, tornei a chamá-lo, acabei por sacudi-lo pelo ombro e elelevantou
para mim olhos sonâmbulos de muito longe e respondeu numa voz doce demenino
Não percam tempo comigo que eu estou tão farto desta guerra que nem a tirovou
sair daqui.

O

Lisboa, mesmo a esta hora, é uma cidade tão desprovida de mistério como umapraia
de nudistas, onde o revelador do sol exibe brutalmente nádegas planas e peitossem
cones de sombra a aprofundá-los, que o mar parece abandonar na areia à laia
dosseixos sem arestas da vazante. Uma noite de cartório notarial, em cujos
lençóis de papelselado ressona timidamente um povo de terceiros-oficiais resignados,
transforma ascasas e os prédios em tristes jazigos de família, no interior
dos quais os casais azedosesquecem por algumas horas as suas querelas minúsculas,
para se assemelharem aestátuas jacentes de pijama às riscas, que o despertador
à cabeceira da cama empurraráem breve para quotidianos frenéticos e cinzentos.
No Parque Eduardo VII, oshomossexuais surgem do escuro à aproximação dos carros,
oferecendo de entre osarbustos os ademanes de alforreca de plástico dos seus
gestos e a vibração de pestanasdas pálpebras míopes, que o excesso de rímel
sublinha de promessas duvidosas. Dooutro lado da rua, o Palácio da Justiça,
ainda não invadido pelos sorrisos ferrugentos decárie das prostitutas que
dividem com os insetos o duche de claridade pálida doscandeeiros das redondezas,
preenchia uma espécie de plataforma de relva do seu imensovolume reprovador:
ali dentro, diante de um juiz desinteressado, ocupado a palparcautelosamente
um furúnculo do pescoço, o meu casamento terminará sem grandezanem glória,
após vários meses lancinantes de reencontros e separações, que meretalharam
de angústia os destroços de um longo inverno de aflição. Separamo-nos, sabecomo
é, numa paz feita de alívio e de remorso, e despedimo-nos no elevador como
doisestranhos, trocando um último beijo em que morava ainda um resto indigerido
dedesespero. Não sei se consigo aconteceu assim, se por acaso conheceu a agonia
dos finsde-semana clandestinos em estalagens à beira-mar, numa desordem de
ondas cor-dechumboesmagadas contra o cimento lascado da varanda e as dunas
a tocarem o céubaixo de nuvens idêntico a um teto de estuque esfarrapado,
se abraçou um corpo que aomesmo tempo se ama e se não ama na pressa ansiosa
com que os macacos pequenos sedependuram dos pelos indiferentes da mãe, se
juraram sem grande convicção promessasprecipitadas, mais decorrentes do pânico
da sua angústia do que de uma ternuragenerosa e verdadeira. Durante um ano,
percebe, tropecei de casa em casa e de mulherem mulher num frenesim de criança
cega a tatear atrás do braço que lhe foge, e acordeimuitas vezes, sozinho,
em quartos de hotel impessoais como expressões depsicanalistas, unido por
um telefone sem números à amabilidade vagamente desconfiadada recepção, a
quem a minha bagagem exígua intrigava. Estraguei os dentes e oestômago em
casas de pasto todas semelhantes aos restaurantes das estações de caminhode
ferro, de que a comida sabe a carvão de coque e a lenços úmidos do ranho já
saudosodas despedidas. Frequentei sessões da meia-noite, de nuca arrepiada
pela tosse dosolitário do banco de trás, que lia as legendas em voz alta para
se inventar umacompanhia. E descobri, uma tarde, sentado numa esplanada de
Algés, na borbulhosa presença de uma garrafa de água das Pedras, que estava
morto, entende, morto como ossuicidas do viaduto que de quando em quando cruzamos
na rua, pálidos, dignos, dejornal dobrado no sovaco, os quais desconhecem
que faleceram e cujos hálitos cheirama almôndegas com puré de batata e a trinta
anos de funcionário exemplar.

Não sente uma espécie de choque interior diante das montras apagadas, idênticasao
olhos ausente dos estrábicos? Em pequeno imaginava muitas vezes, estendido
nacama, de músculos retesos no pavor de adormecer, que toda a gente desaparecia
dacidade e eu circulava nas ruas vazias perseguido pelas órbitas ocas das
estátuas que mevigiavam com a implacável ferocidade inerte das coisas, petrificadas
na atitude artificiale pomposa das fotografias da época heroica, ou evitando
as árvores de que as folhastremiam numa inquietação marinha de escamas, e
memo hoje, sabe como é, continuo apensar-me sozinho na noite destas praças,
destas melancólicas avenidas sem grandeza,destas transversais secundárias
como afluentes, arrastando consigo capelistassuburbanas e cabeleireiros decrépitos,
Salão Nelinha, Salão Pareira, Salão Pérola doFaial, com penteados de revistas
de modas colados ao vidro das janelas. Em casa, aalcatifa bebe o som dos meus
passos reduzindo-me ao eco tênue de uma sombra, e tenhoa impressão, ao barbear-me,
que quando a lãmina me retirar das bochechas as suíças dePai-Natal mentoladas
da espuma, apenas ficarão de mim as órbitas a boiarem,suspensas, no espelho,
indagando ansiosamente pelo corpo que perderam.

Como no Chiúme, entende, no Natal de 71, primeiro Natal de guerra após quaseum
ano na mata, um ano de desespero, expectativa e morte na mata, em que acordei
demanhã e pensei É dia de Natal hoje, olhei para fora e nada mudara no quartel,
asmesmas tendas, as mesmas viaturas em círculo junto ao arame, o mesmo edifícioabandonado
que uma granada de bazooka destruíra, os mesmos homens lentos atropeçar na
areia ou acocorados nos degraus desfeitos da messe de sargentos, coçandoem
silêncio a flor-do-congo dos cotovelos como mendigos nas escadas de uma igreja.Acordei
de manhã e pensei É dia de Natal hoje, vi o céu de trovoada do lado do rioQuando
e a eterna segunda-feira do costume no cansaço dos gestos, o calor escorria-medas
costas em grossos pingos pegajosos de gordura, e disse dentro de mim Não pode
serhá qualquer coisa de errado nisto tudo, o pijama demasiado largo não parecia
conter emsi ossos e carne nenhuns e eu achei que não existia já, o meu tronco,
os meus membros,os meus pés, não existia para além de um par de pupilas piscas
que espiavam,surpreendidas, a planície da chana e a seguir à chana as árvores
acumuladas na diraçãodo norte de onde chegava o avião da comida fresca e do
correio, eu era só essas pupilasespantadas que fitavam e que hoje reencontro,
mais velhas e descoloridas, no espelho doquarto de banho, após o arrepio nos
ombros da primeira urina, vociferando para opróprio reflexo um apelo mudo
sem resposta.

Dias antes havia partido de coluna uma companhia de paraquedistas apoiada
porhelicópteros sul-africanos, chegados do Quito-Quanavale para uma operação
excessivae inútil na terra dos Luchazes, e todas as noites os pilotos, enormes,
loiros, arrogantes,se embebedavam com estrépito quebrando copos e garrafas
e desafinando canções emafrikander, comandados por um David Niven esquecido
da dieta, que considerava numaindulgência de nurse os subordinados a vomitarem
cerveja amparados uns aos outros,verdes de aflição e agonia:

– If you worry you die. If you don’t wprry you die. So, why worry?

Os oficiais paraquedistas, estritos e graves como seminaristas laicos, abraçandocontra
o peito os crucifixos das armas, fitavam reprovadores aquele pandemônio dearrotos
e de cacos, movendo silenciosamente os lábios em padre-nossos militares. Ocapitão,
em quem morava o espírito Modas & Bordados de uma dona de casaminuciosa,
esvoaçava preocupadíssimo em torno das loiças ainda intactas, lançando aos
cálices e aos pratos desgarradores soslaios de paixão sem esperança. O alferes
Eleutério,encarquilhado como um feto, escutava a um canto o seu Beethoven.
O catanguêsdeslizava para a sanzala ao encontro de um churrasco de ratos.
E eu, encostado aoscaixilhos, assistia às elipses dos morcegos ao redor das
lâmpadas, sem ouvir nada, sempensar nada, certo de que a minha vida se resumiria
para sempre ao oval de arame emque me achava, sob um céu baixo de chuva ou
de cacimbo, conversando com o soba àsombras da máquina de costura monumental,
a escutar as histórias de crocodilos de umtempo mais feliz.

A impertinência brutal dos sul-africanos, que nos julgavam um pouco umaespécie
de mulatos toleráveis, acendia em mim uma chama crescente de Manuelinho deÉvora
que a selvajaria dos pides e os abjetos discursos patrióticos da rádio alimentavam.Os
políticos de Lisboa surgiam-me como fantoches criminosos ou imbecis defendendointeresses
que não eram os meus e que cada vez menos o seriam, e preparandosimultaneamente
a sua própria derrota: os homens sabiam bem que eles e os filhos delesnão
combatiam, sabiam bem de onde vinha quem na mata apodrecia, tinham morto evisto
morrer demais para que o pesadelo se prolongasse muitos anos, os fuzileiroshaviam
desfilado uma noite pelo quartel-general do Luso entoando insultos, todas
astardes ouvíamos a emissão do MPLA às escondidas, alimentávamos mulheres
e filhoscom salários de miséria, demasiados estropiados coxeavam ao fim da
tarde por Lisboa,nas imediações do anexo do Hospital Militar, e cada coto
era um grito de revolta contrao incrível absurdo das balas. Mais tarde conhecemos
a hostilidade dos brancos deAngola, dos fazendeiros e dos industriais de Angola
reclusos nas suas vivendasgigantescas repletas de antiguidades falsas, de
que saíam para abocanhar prostitutasbrasileiras nos cabarés da Ilha, entre
baldes de péssimo champanhe nacional e beijossonoros como desentupidores de
retrete que se despegam:

– Se vocês cá não estivessem limpávamos isto de pretos num instante.

Cabrões, pensava eu a beber cubas-livres solitárias ao balcão, cabrões gordos
esuados, recaços de merda, traficantes de escravos, e invejava as gargalhadas
que asmulheres lhes segredavam nos pelos das orelhas, os abraços dos ombros
redondos delas,as nuvens de perfume espesso que os sovacos e as virilhas expeliam
como turíbulos aomais mínimo aceno, a cama D. Maria em que as deitariam, ao
aproximar da manhã,num cenário de espelhos foscos, de árvores da borracha
em vasos e de cãezinhos Mingde queixos horrorosamente torcidos por dores de
dentes de loiça, como a minha cara setorcia de incredulidade no Chiúme, nessa
madrugada de Natal absolutamente idêntica atodas as madrugas que conhecera
em África, fitando os soldados que conversavam dooutro lado da parada nos
degraus da messe de sargentos, e vendo as nuvens de chuvaque cresciam do Quando
para mim, em enormes rolos de basalto pesados de umaameaça de tempestade.

Não, não falta muito, moro ali adiante, naquele renque de feíssimos prédiosverdes
a que a noite confere, por um estranho milagre, a profunda dignidade hirta
deuma abadia à medida da minha linhagem de comerciantes de bigode e corrente
derelógio, a encararem a objetiva numa desconfiança bovina feita de medo e
desupersticioso respeito. Acreditava-se em Deus nessa época mesmo através
de umamáquina de tripé, um ser barbudo e severo, sexagenário de túnica, sandálias
e risca aomeio, que geria uma empresa de mártires e de santos tão complicada
como os ArmazénsGrandela, distribuindo pecados, bulas, absolvições e passa
portes para o Inferno porintermédio de encarregados de negócios terrestres
chamados padres, os quaistransmitiam aos domingos para a direção da firma
telex em latim. Estas casas, não acha,são aliás construídas à medida das nossas
ambições quadradas e dos nossos pequeninossentimentos: a umidade infiltra-se,
tudo empena, os canos entupidos gorgolejam guinadas de arrotos, as alcatifas
descolam-se, inevitáveis correntes de ar assobiam nasfrinchas, mas compramos
móveis em Sintra para ocultar misérias e manchas atrás devolutas de talha
pretensamente antigas, do mesmo modo que vestimos o nosso egoísmoestreito
das aparências de uma generosidade vingativa. O meu pai costumava contar-meque
o rei Filipe exclamara para o arquiteto do Escurial Façamos qualquer coisa
que omundo diga de nós que fomos loucos. Pois bem, neste caso a ordem recebida
pelogorducho de capacete e palito que presidiu à edificação destes monstros
abstrusosagaiolado-pretensiosos deve ter sido Façamos qualquer coisa que o
mundo diga de nósque fomos mongoloides. E, de fato, os vizinhos que se comprimem
comigo no elevadorexíguo possuem a boca aberta, as esclerótidas baças, a pele
amarela e o riso deincompreensão contente das criaturas demasiado quotidianas
para seremverdadeiramente infelizes, atravessando o deserto dos fins-de-semana
diante dosaparelhos de televisão, a beberem por uma palhinha o capilé da sua
mediocridade. Eu,que ainda conservo por milagre um tênue resíduo de inquietações
metafísicas, acordo demanhã com ciática na alma, que os passos no andar de
cima amachucam cruelmente, e ainteligência enferrujada por várias horas de
prisão num andar insidiosamente preparadopara me transformar num funcionário
exausto, carregando uma pasta com as Seleções,os termo do café com leite do
almoço e o boião de geleia de abelhas cujo rótulo mepromete a juventude ilusória
de uma ereção ocasional.

Era, portanto, dia de Natal no Chiúme e nada mudara. Ninguém da famíliaestava
ali comigo, a casa do avô, com o seu jardim de estátuas de loiça, o lago deazulejos
e a estufa em que a sala de jantar se prolongava, permanecia dolorosamenteancorada
em Benfica, atrás do portão cor-de-tijolo e do pátio repleto dos automóveis
dasvisitas, as pessoas, endomingadas, deviam estar a chegar para o almoço,
as criadasantigas da minha infância serviam as chávenas da sopa, dentro em
breve a avó mandariaum neto chamar o pessoal para lhes distribuir embrulhos
moles constelados de estrelasprateadas (meias, roupa de baixo, camisolas,
ceroulas), numa pompa lenta de cerimôniaNobel. Sentado na cama, defronte da
vastidão verde-amarela da chana e da trovoada ainchar sobre o Quando, lembrei-me
das tias velhíssimas nos andares enormes daAlexandre Herculano e da Barata
Salgueiro, mergulhados numa eterna penumbra ondecintilavam cálices e bules,
tia Mimi, tia Bilu, um senhor doente a babar interjeiçõesnuma poltrona, sujeitos
idosos que puxavam a risca da orelha para mascarar a calvície eme beliscavam
a bochecha com dois dedos distraídos, pianos verticais, o retratoassinado
de D. Manuel II, latas de biscoitos com cenas de caça na tampa. O passado,sabe
como é, vinha-me à memória como um almoço por digerir nos chega em refluxosazedos
à garganta, o tio Elói a dar corda aos relógios de parede, o mar feroz da
Praia dasMaçãs no Outono esmurrando a muralha, os grossos dedos subitamente
delicados docaseiro inventando uma flor. Pulara sem transição da comunhão
solene à guerra,pensava eu a abotoar o camuflado, obrigaram-me a confrontar-me
com uma morte emque nada havia de comum com a morte asséptica dos hospitais,
agonia dedesconhecidos que apenas aumentava e reforçava a minha certeza de
estar vivo e aminha agradável condição de criatura angélica e eterna, e ofereceram-me
a vertigem domeu próprio fim no fim dos que comiam comigo, dormiam comigo,
falavam comigo,ocupavam comigo os ninhos das trincheiras durante o tiroteio
dos ataques.

Uma agitação de silhuetas e de vozes borbulhou na sanzala, aproximou-se,tomou
forma: os meus tios, os meus irmãos, os meus primos, o chauffeur da avó,afetado
e delicadíssimo, os sujeitos da risca na orelha, o caseiro, o senhor doente
dapoltrona, fardados, exaustos, sujos, de arma ao ombro, chegavam de uma operação
namata e dirigiam-se para a enfermaria transportando, num pano de tenda entre
dois paus,o meu corpo desarticulado e inerte com um garrote na cosa reduzida
a um inchaço ensanguentado. Reconheci-me como num espelho excessivamente fiel
ao examinar osmeus próprios olhos fechados, a boca pálida, a relva loira da
barba que me escurecia oqueixo, a marca mais clara da aliança perdida na mão
sem anéis. Alguém partia o boloreiem gestos rituais, a minha mulher, comovida,
guardava num saco de plástico ospresentes que me cabiam. A família, imóvel,
à porta do posto de socorros, aguardava,suspensa, que eu me reanimasse a mim
mesmo, o cabo das transmissões pedia ohelicóptero aos gritos para me conduzir
a Benfica a tempo dos licores e do café.Auscultei-me e nenhum som me veio,
pelas borrachas do estetoscópio, aos ouvidos. Ofurriel enfermeiro estendeu-me
a seringa de adrenalina, e eu, depois de me abrir acamisa e palpar o espaço
entre as costelas, cravei-a de um só golpe no coração.

P

Cá estamos. Não. Não bebi demais mas engano-me sempre na chave, talvez pordificuldade
em aceitar que este prédio seja o meu e aquela varanda lá em cima, àsescuras,
o andar onde moro. Sinto-me, sabe como é, como os cães que farejamintrigados
o odor da própria urina na árvore que acabaram de deixar, e acontece-mepermanecer
aqui alguns minutos, surpreendido e incrédulo, entre as caixas do correio
eo elevador, procurando em vão um sinal meu, uma pegada, um cheiro, uma peça
deroupa, um objeto, na atmosfera vazia do vestíbulo, cuja nudez silenciosa
e neutra medesarma. Se abro o meu cacifo não encontro nunca uma carta, um
prospecto, umsimples papel com o meu nome que me prove que existo, que habito
aqui, que de certamaneira este lugar me pertence. Não imagina como invejo
a segurança tranquila dosvizinhos, a decisão familiar com que abrem a porta,
o sobrolho proprietário com queconsideram os títulos do jornal enquanto aguardam
o elevador, a cúmplice amabilidadedos seus sorrisos: existe sempre em mim
a suspeita tenaz de que me vão expulsar, deque ao entrar em casa encontrarei
outros móveis no lugar dos meus móveis, livrosdesconhecidos nas estantes,
uma voz de criança algures no corredor, um homeminstalado no meu sofá a erguer
para mim um olhar de perplexidade indignada. Umanoite, há pouco tempo, ao
atender o telefone, perguntaram-me se falava de um númerocompletamente diferente
do meu. Julga que desfiz o engano e desliguei? Pois bem, deipor mim a tremer,
de palavras enroladas na garganta, úmido de suor e de aflição,sentindo-me
um estranho numa casa estranha, a invadir em fraude a intimidade alheia,uma
espécie de gatuno, percebe, do universo doméstico de um outro, pousado na
bordada cadeira num excesso de cerimônia culpada. À medida que os filhos passavam
a viversozinhos e a abandonavam, a minha mãe ia transformando os nossos quartos
em salas,os divãs sumiam-se, quadros desconhecidos surgiam nas paredes, a
nossa presençaapagava-se dos compartimentos que habitáramos, do mesmo modo
que nos apressamosa lavar os dedos depois de apertar uma mão desagradável
ou oleosa. Quandoregressávamos de visita para jantar era como se a casa fosse
simultaneamente familiar eestrangeira: reconhecíamos os cheiros, as cômodas,
os rostos, mas em vez de nósencontrávamos os nossos retratos de infância espalhados
pelas mesas, abertos emsorrisos de uma inocência inquietante, e afigurava-se-me
que a minha fotografia demenino havia devorado o adulto que sou, e que quem
de fato existia verdadeiramente aliera uma mecha de cabelos louros por cima
de um babador de riscas, olhandoacusadoramente para mim através do difuso
nevoeiro de anos que nos separava. Nuncaestamos onde estamos, não acha, nem
sequer agora, comprimidos no espaço exíguo doelevador, você hirta e calada,
a medir-me de esguelha os ímpetos de bode, eu a tilintar as chaves na impaciência
enervada que estes esquisitos aparelhos de subir e descerinvariavelmente me
provocam, modernos sucedâneos das barquinhas de balão, sempre àbeira de uma
queda desamparada e catastrófica. A minha amiga está, por exemplo, noúltimo
agosto, nua na praia em frente ao mar xaroposo e domesticado do Algarve, nacompanhia
de uma dessas criaturas inteligentes e feias das quais é fácil gostar porque,por
um lado, não competem consigo e, por outro, a salvam de ir sozinha aos ciclos
decinema da Gulbenkian, frequentados por míopes lúcidos e sociólogas peremptórias,
e eucontinuo em Angola como há oito anos atrás, e despeço-me do soba-alfaiate
junto àmáquina de costura pré-histórica, coberta agora de um espesso musgo
de ferrugem, eque a areia corrói e tortura como Giacometti modela, numa espécie
de raiva paciente, assuas dolorosas silhuetas pernaltas, idênticas a pássaros
inventados, mais reais que osverdadeiros. Vamos abandonar o Chiúme na direção
do norte, as viaturas em colunaaguardam que embarquemos, e eu, imóvel no centro
da sanzala, enjoado pelo odordecomposto da mandioca a secar os ossos brancos
no teto das palhotas, tentodesesperadamente fixar, nesta manhã de janeiro
lavada pela chuva da noite, imersanuma claridade excessiva que dissolve os
contornos e afoga na sua luz sem piedade ossentimentos delicados ou demasiado
frágeis, tento desesperadamente fixar, dizia, ocenário que habitei tantos
meses, as tendas de lona, os cães vagabundos, os edifíciosdecrépitos da administração
defunta, morrendo pouco a pouco uma lenta agonia deabandono: a ideia de uma
África portuguesa, de que os livros de História do liceu, asarengas dos políticos
e o capelão de Mafra me falavam em imagens majestosas, nãopassava afinal de
uma espécie de cenário de província a apodrecer na desmedidavastidão do espaço,
projetos de Olivais Sul que o capim e os arbustos rapidamentedevoravam, e
um grande silêncio de desolação em torno, habitado pelas carrancasesfomeadas
dos leprosos. As Terras do Fim do Mundo eram a extrema solidão e aextrema
miséria, governadas por chefes de posto alcoólicos e cúpidos a tiritarem depaludismo
nas suas casas vazias, reinando sobre um povo conformado, sentado à portadas
cubatas numa indiferença vegetal. O almirante Tomás fitava-nos da parede compupilas
de vidro idiota de urso empalhado, milícias de espingardas veneráveisadormeciam
encostados à própria sombra sob os telheiros de zinco dos postos desentinela
junto ao arame inútil. E, no entanto, havia a quase imaterial beleza doseucaliptos
de Ninda ou de Cessa, aprisionando nos seus ramos uma densa noiteperpétua,
a raivosa majestade da floresta do Chalala a resistir às bombas, os púbistatuados
das mulheres, por trás de cuja curva de bule cresciam, ao ritmo cardíaco dostambores,
filhos que eu ansiosamente desejava menos passivos e melancólicos do quenós,
que se não acocorassem, vencidos, diante das palhotas, passando-se uns aos
outroso cachimbo de cabaça.

Não, é aqui, no 6º esquerdo, vestíbulo de mármore, olalá, uma alcatifa de
cadacor, uma ficha de televisão por compartimento, cinco divisões, três banheiros,
duaslongas varandas para o cemitério e o Tejo, o sol cor de laranja ao fim
da tardecomungado pelos telhados do Areeiro. Sinto-me neste andar, sabe como
é, como umavestruz despaisado, e rodo de sala em sala a conversar sozinho,
como os velhos, decopo de uísque na mão, recitando aos cubos de gelo os sonetos
a preto e branco deAntero que povoaram a infância de fantasmas cósmicos. O
senhorio, sujeito de bigodeafirmativo, que me visita de quando em quando a
bordo de um mirabolante automóvelamericano cuja espantosa profusão de faróis,
arrebiques e cromados me fazinvariavelmente pensar numa igreja manuelina de
pneus radiais, muniu a casa delavatórios idênticos a pias batismais que me
obrigam a escovar os dentes de manhãmurmurando rezas em latim, substituiu
as portas dos roupeiros por painéis de madeira aque apenas faltam os sorrisos
dúbios de uma galeria de santos medievais, e ofereceu-me a prenda suplementar
de uma garagem-catacumba nas fundações do prédio, onde aminha tosse modesta
reboa trágicos ecos de avalanche: pouco a pouco comecei ahabituar-me a esta
catedral de Chartres à medida de despachantes de alfândega sempoesia de que
os pesadelos se eriçam de faturas e livros de balanço, e principiei a amarestas
tintas horríveis das paredes e esta ausência de móveis, do mesmo modo que
segosta de um filho corcunda ou de uma mulher com mau hálito, por aborrecimento,
porhábito, ou até, talvez, por uma confusa expiação de erros obscuros. Gosto
das piasbatismais, dos armários, do Alto de S. João, que vejo da cozinha e
que se me afigurauma notável combinação de Portugal dos Pequeninos com o cemitério
dos cães doJardim Zoológico, em honra do ciclo do azoto. E depois, que alívio,
percebe, não se vêo mar, não existe o perigo de os olhos se alongarem para
o horizonte em busca de ilhasà deriva ou dos inquietantes veleiros da aventura
interior, sempre prontos a aparelharempara a Índia de um sonho. Não se vê
o mar, apenas uma faixa de rio sem mistério que oBarreiro limita de concretas
névoas fabris, e telhados, telhados, telhados e fachadas queabrigam dentro
de si os nossos conformados contemporâneos, a juntarem pacientementeas borboletas
ou os selos do seu aborrecimento sem ambições, ou apunhalandomentalmente as
esposas que tricotam na poltrona vizinha com a faca do pão. Tenho acerteza
de que se fechasse a porta à chave e permanecesse, por exemplo, aqui um mês
àsecretária, sem falar com ninguém, sem atender a campainha da rua ou do telefone,
semresponder às solicitações da diarista, do porteiro, ou do funcionário da
companhia dogás que de tempos em tempos vem verificar o relógio do contador,
e rabiscar numbloco, de sobrancelhas juntas, anotações severas, me transformaria,
de metamorfose emmetamorfose, no inseto perfeito de um coronel na reserva
ou de um aposentado daCaixa Geral de Depósitos, correspondendo-se em esperanto
com um bancário persa ouum relojoeiro sueco, e bebendo chá de tília na marquise
a seguir ao jantar, verificando abarba por fazer da coleção de cactos.

Não, a sério, a felicidade, esse estado difuso resultante da impossívelconvergência
de paralelas de uma digestão sem azia com o egoísmo satisfeito e semremorsos,
continua a parecer-me, a mim, que pertenço à dolorosa classe dos inquietostristes,
eternamente à espera de uma explosão ou de um milagre, qualquer coisa de tãoabstrato
e estranho como a inocência, a justiça, a honra, conceitos grandiloquentes,profundos
e afinal vazios que a família, a escola, a catequese e o Estado me haviamsolenemente
impingido para melhor me domarem, para extinguirem, se assim me possoexprimir,
no ovo, os meus desejos de protesto e de revolta. O que os outros exigem denós,
entende, é que os não ponhamos em causa, não sacudamos as suas vidasminiaturais
calafetadas contra o desespero e a esperança, não quebremos os seusaquários
de peixes surdos a flutuarem na água limosa do dia a dia, aclarada de viés
pelalâmpada sonolenta do que chamamos virtude e que consiste apenas, se observada
deperto, na ausência morna de ambições.

Quer um uísque? Este banal líquido amarelo constitui, nos tempos de hoje,depois
da viagem de circunavegação e da chegada do primeiro escafandro à Lua, anossa
única possibilidade de aventura: ao quinto copo o soalho adquire insensivelmenteuma
agradável inclinação de convés, ao oitavo, o futuro ganha vitoriosas amplidões
deAusterlitz, ao décimo, deslizamos devagar para um coma pastoso, gaguejando
as sílabasdifíceis da alegria: de forma que, se me dá licença, instalo-me
no sofá ao pé de si paraver melhor o rio, e brindo pelo futuro e pelo coma.

O Leste? Ainda lá estou de certo modo, sentado ao lado do condutor numa dascamionetas
de areia a caminho de Malanje. Ninda, Luate, Lusse, Nengo, rios que achuva
engrossara sob as pontes de pau, aldeias de leprosos, a terra vermelha de
GagoCoutinho que se prende à pele e aos cabelos, o tenente-coronel eternamente
aflito a encolher os ombros diante do licor de cacau, os agentes da PIDE no
café do Mete-Lenha, lançando soslaios foscos de ódio para os negros que bebiam
nas mesas próximasas cervejas tímidas do medo. Quem veio aqui não consegue
voltar o mesmo, explicavaeu ao capitão de óculos moles e dedos membranosos
colocando delicadamente notabuleiro, em gestos de ourives, as peças de xadrez,
cada um de nós, os vivos, temvárias pernas a menos, vários braços a menos,
vários metros de intestino a menos,quando se amputou a coxa gangrenada ao
guerrilheiro do MPLA apanhado no Mussumaos soldados tiraram o retrato com
ela num orgulho de troféu, a guerra tornou-nos embichos, percebe, bichos cruéis
e estúpidos ensinados a matar, não sobrava umcentímetro de parede nas casernas
sem uma gravura de mulher nua, masturbávamo-nose disparávamos, o mundo-que-o-português-criou
são estes luchazes côncavos de fomeque nos não entendem a língua, a doença
do sono, o paludismo, a amebíase, a miséria, àchegada ao Luso veio um jipe
avisar-nos que o general não consentia que dormíssemosna cidade, que expuséssemos
na messe as nossas chagas evidentes. Nós não somos cãesraivosos, berrava o
tenente de cabeça perdida para o enviado do comando de Zona, digaa esse caralho
do catano que nós não somos cães raivosos, um alferes ameaçavabaixinho destruir
a messe com as bazucas. Fodemos aquela porra toda meu tenente, nãosobeja um
cabrão sequer para nos enconar o juízo, Um ano no cu de Judas não nos dádireito
a dormir uma noite numa casa argumentava em sentido o oficial de operações,
otenente espalmou um murro enorme no capô do jipe Diga ao nosso general que
vá levarna anilha. Nós não éramos cães raivosos quando chegamos aqui disse
eu ao tenente querodopiava de indignação furiosa, não éramos cães raivosos
antes das cartas censuradas,dos ataques, das emboscadas, das minas, da falta
de comida, de tabaco, de refrigerantes,de fósforos, de água, de caixões, antes
de uma berliet valer mais do que um homem eantes de um homem valer uma notícia
de três linhas no jornal, Faleceu em combate naprovíncia de Angola, não éramos
cães raivosos mas éramos nada para o Estado desacristia que se cagava em nós
e nos utilizava como ratos de laboratório e agora pelomenos nos tem medo,
tem tanto medo da nossa presença, da imprevisibilidade dasnossas reações e
do remorso que representamos que muda de passeio se nos vê aolonge, evita-nos,
foge de enfrentar um batalhão destroçado em nome de cínicos ideaisem que ninguém
acredita, um batalhão destroçado para defender o dinheiro das três ouquatro
famílias que sustentam o regime, o tenente gigantesco voltou-se para mim,tocou-me
no braço e suplicou numa voz súbita de menino Doutor arranje-me a taldoença
antes que eu rebente aqui na estrada da merda que tenho dentro.

Q

Um pouco nu, o andar? Tem razão, faltam-lhe quadros, livros, bibelôs, cadeiras,
a sábiadesordem de revistas e papéis, de roupa ao acaso sobre a cama, de cinza
no chão, emsuma, que nos asseguram continuarmos a existir, a agitar-nos, a
respirar, a comer, asacudirmo-nos em vão sob as estações indiferentes e a
silhueta distraída do anúncioSandeman, que do alto dos telhados do Rossio
nos propõe, ora aceso ora apagado, umbrinde escarninho. Esta espécie de jazigo
onde moro, assim vazio e hirto, oferece-me,aliás, um sensação de provisório,
de efêmero, de intervalo, que, entre parênteses, meencanta; posso ainda considerar-me
um homem para mais tarde, e adiar indefinidamenteo presente até apodrecer
sem nunca haver amadurecido, de olhos brilhantes dejuventude e de malícia
como os de certas velhas de aldeia. Pelas janelas sem cortinasvejo, deitado
na cama, os operários que constroem o prédio em frente e principiam a trabalhar
muito mais cedo do que eu, a fitarem-me do outro lado da rua numa invejaadmirada.
Mulheres ensonadas sacodem das varandas panos enérgicos e exaustos.Rebocadores
minúsculos, com hérnias da coluna, puxam gordos navios pacíficos nadireção
da barra. Provavelmente, até no cemitério reina uma chocalhante atividadematinal
de esqueletos de família, catando-se mutuamente os vermes num cuidado demandris.
E somente eu, único habitante desta casa deserta, me permito generosamenteos
doces langores da preguiça porque apenas desibernarei à noite, no bar onde
nosencontramos, debaixo destes candeeiros Arte Nova e destas cenas de caça,
de narizmergulhado na vodca com laranja de um café da manhã tardio.

A vida contra a corrente possui também, no entanto, as suas desvantagens:
osamigos afastaram-se pouco a pouco de mim, incomodados pelo que consideravam
umaligeireza de sentimentos vizinha da vagabundagem libertina. A família recuava
diantedos meus beijos como de um acne peganhento. Os colegas de profissão
propagaramjubilosamente a minha perigosa incompetência, depois, é claro, de
se referirem depassagem a um radioso futuro malbaratado em orgias de mafioso
com uma bailarinafrancesa do Cassino Estoril, esfuziante de plumas, em cada
joelho de bode. Os própriosdoentes desconfiavam das minhas olheiras excessivas
e do hálito equívoco em queflutuava um resto óbvio de álcool. Cada vez mais
fui prolongando as madrugadas eencurtando os dias, na esperança de que uma
noite perpétua me lançasse um pudico véude sombra nas bochechas esverdeadas;
esta cidade absurda, onde os azulejosmultiplicam e devolvem a mínima parcela
de claridade num jogo de espelhos sem fim, eonde os objetos vogam suspensos
na luz como nos quadros de Matisse, obrigava-me atropeçar de quarto em quarto
à maneira de uma borboleta entontecida, passando umapalma mole pela lixa repelente
da barba.

Um pouco nu, o andar, de fato, mas já imaginou o espaço que sobra para osonho,
não um sonho de mobílias, doméstico, conjugal, quinânico, contandoangustiadamente
os tostões que faltam para uma escrivaninha ou uma cômoda, mas osonho tout-court,
sem metas nítidas nem objetivos definidos, cuja tonalidade varia ecuja forma
muda sem cessar, o sonho à Infante D. Henrique feito de maresdesconhecidos,
de monstrengos e de especiarias, a caravela que se envia pela alcatifa docorredor
fora e de que se aguarda o problemático regresso sentado no mármore dovestíbulo,
consultando o curioso astrolábio de uma história em quadradinhos. Esta casa,cara
amiga, é o deserto de Gobi, quilômetros e quilômetros de areia sem nenhum
oásis,e o silêncio da minha boca fechada sobre os dentes amarelos de camelo.
De modo quequando alguém invade a minha solidão, me sinto, sabe como é, como
um eremita queencontra outro eremita à esquina de uma praga de gafanhotos,
e tento penosamenterecordar-me do morse das palavras, reaprendendo os sons
à maneira de um afásico querecomeça, dificilmente, a usar um código que esqueceu.

Outro uísque? Convém prevenirmo-nos contra esta noite prestes a empalidecersem
aviso, a dar lugar a uma manhã demasiado nítida, demasiado clara, sem que
asnossas silhuetas imprecisas, fabricadas para a indulgente cumplicidade da
penumbra, sedissolverão como o perfume dos frascos antigos, de que se escapa
o cheiro doce daspaixões defuntas, convém muralharmo-nos de álcool para nos
defendermos do reveladorda claridade, exibindo aos nossos próprios olhos,
na crueza implacável dos espelhos,feições amarrotadas pela ausência de sono,
a piscarem as pálpebras foscas sob adesastrosa desordem dos cabelos. Acontece-me
por vezes acordar, sabe como é, ao ladode uma mulher que conheci poucas horas
antes, junto a um candeeiro propício de bar,de que o cone opalino confere
às rugas e aos pés-de-galinha o insidioso encanto de umasábia maturidade,
e eis que o subir da persiana me mostra, brutalmente, uma criaturaavelhentada
e vulnerável, naufragada nos lençóis num abandono cuja fragilidade me enfurece.
Sentado na cama, de cabeça no travesseiro que encostei à parede, acendoentão
o cigarro da desilusão e da raiva, fitando com acidez as pulseiras e os anéispousados
num montículo cauteloso na mesinha de cabeceira, a roupa estranha pelochão,
um soutien preto que se pendura de uma cadeira à laia de um morcego queaguarda
a chegada do crepúsculo na sua trave de sótão. A boca delas borbulha detempos
a tempos palavras evadidas sorrateiramente de sonhos a que não tenho acesso,
acurva mole dos ombros agita-se de sobressaltos indecifráveis, o velo das
coxas abertasperde o mistério de bosque úmido que me recebia na sua mansa
concavidade vegetal.Uma zanga de logro incha-me dos testículos para o sexo,
impossível de dominar, decontrolar, de diminuir, e acabo por penetrá-las,
tonto de ódio, como quem espeta umafaca num ventre em rixa de taberna, para
escutar depois, rangendo os dentes, os seusgemidos agradecidos de caniche,
pelo que imaginavam uma entusiástica homenagem àqualidade dos seus dons.

Um duplo sem gelo? Tem razão, talvez desse modo logre a lucidez sem ilusõesdos
bêbados de Hemingway que passaram, gole a gole, para o outro lado da angústia,alcançando
uma espécie de serenidade polar, vizinha da morte, é certo, mas que aausência
de esperança e do frenesi ansioso que ela inevitavelmente traz consigo tornaquase
apaziguadora e feliz, e consiga enfrentar a ferocidade da manhã dentro de
umfrasco de Logans que a proteja, tal como os cadáveres dos bichos se conservam
emlíquidos especiais nas prateleiras dos museus. Talvez desse modo se consigam
sorrirrisos de Sócrates depois da cicuta, levantar-se do colchão, ir à janela,
e defronte dacidade matinal, nítida, atarefada, ruidosa, não se sentir perseguidos
pelos impiedososfantasmas da própria solidão, de que os rostos sardônicos
e tristes, tão semelhantes aonosso, se desenham no vidro para melhor nos troçarem;
há derrotas, percebe, que agente sempre pode transformar, pelo menos, em vitoriosas
calamidades.

No Norte, à falta de uísque, bebíamos as sulfúricas mistelas do administrador,indiano
gordo e grande, recebendo os oficiais numa pomposidade amável de monarcaabsoluto,
a fim de se escutar a si próprio nos ouvidos dos outros, cuja atenção distraídao
certificava da existência de um público, como as nossas caretas ao espelho,
durante abarba, nos garantem a certeza do rosto de que duvidávamos, anjos
trôpegos que hesitamacerca da opacidade da carne. A minha companhia passou
em flecha por Malanje, ondea sede do batalhão se acomodou no choco desconfortável
do quartel, e abandonou anoite da cidade, escura e opaca como as pupilas de
um cigano, na direção da Baixa doCassanje, ilimitadas searas de girassol e
algodão no cenário de uma beleza irreal, e amiséria das sanzalas à beira da
picada, com negros imemoriais acocorados em pedrasmorenas e sem arestas, idênticas
a pães de segunda. Ancoramos em Marimba, fila demangueiras enormes no topo
de um morro cercado pela distância azul dos campos, numcírculo de arame de
que os garotos dos quimbos vizinhos suspendiam as feiçõesesfomeadas, enquanto
nuvens gordas de chuva, pesadas como odres, se acumulavam norio Cambo, habitado
pelo silêncio mineral dos crocodilos.

Aí, durante um ano, morremos não a morte da guerra, que nos despovoa derepente
a cabeça num estrondo fulminante, e deixa em torno de si um desertodesarticulado
de gemidos e uma confusão de pânico e de tiros, mas a lenta, aflita,torturante
agonia da espera, a espera dos meses, a espera das minas na picada, a esperado
paludismo, a espera do cada vez mais improvável regresso, com a família e
osamigos no aeroporto ou no cais, a espera do correio, a espera do jipe da
PIDE quesemanalmente passava a caminho dos informadores da fronteira, trazendo
consigo trêsou quatro prisioneiros que abriam a própria cova, se encolhiam
lá dentro, fechavam osolhos com força, e amoleciam depois da bala como um
suflê se abate, de flor vermelhade sangue a crescer as pétalas na testa:

– O bilhete para Luanda – explicava tranquilamente o agente a guardar a pistola
no sovaco. – Não se pode dar cúfia a estes cabrões.

De forma que na noite em que o sujeito rasgou a nádega no caco quebrado daretrete,
entende, lhe cosi o pandeiro sem anestesia, no cubículo do posto de socorros,sob
as vistas contentes do enfermeiro, vingando um pouco, em cada berro seu, oshomens
calados que cavavam a terra, de pânico a fundir-se em enormes placas de suornas
costas magras, e nos fixavam com órbitas duras e neutras como seixos, esvaziadasde
luz, tal as dos defuntos sem roupa, estendidos nos frigoríficos do hospital.

Depois do jantar, o motor reticente da eletricidade dava corda a uma constelaçãode
candeeiros gagos que aclaravam de viés o renque das mangueiras, arrancando
ramostrágicos do escuro, e os oficiais visitavam cerimoniosamente a administração
para oloto, em que a D. Áurea, esposa do imperador das cercanias, a extrair
as amplidões dopeito murcho da larguras do decote, cintilante de brincos e
colares, distribuía os cartõese o grão-de-bico, e extraía de um saco que se
me afigurava idêntico aos sudários que naminha infância se lançavam sobre
as máquinas de costura, em salas estreitas repletas decestos de roupa e da
frescura dos lençóis lavados, números de madeira, que anunciavaem voz baixa,
numa confidência íntima de revelação. O marido, no outro extremo dasala, convidava
em inclinações galantes a professora primária para dançar os tangosarrastados
do toca-discos, criatura magrinha, de clavículas tão salientes como assobrancelhas
de Brejnev, cujas menstruações intermináveis a afligiam de cólicas e deanemia,
voltando para nós olheiras exaustas em que se adivinhavam desmaios e contasde
somar. Aquarelas de jacintos e de dálias emolduradas a dourado desbotavam-se
nasparedes. A trovoada do Cambo iluminava a janela de clarões fingidos de
peça de teatroportuguesa, em que se suspeita um sujeito operoso a acionar
interruptores atrás de umacortina. O mulato, dono da única loja de comércio,
adormecia de palito na boca no seucanto, roncando comas pacíficos de hipopótamo.
O condutor da camioneta de carreiraajeitava a popa com um pente de plástico
amarelo made in praia de Santo Amaro dasOeiras. O serão trotava num langor
de tosses dispersas e de amabilidades fatigadas, até aD. Áurea voltar a cabeça
para a porta, erguer o queixo à laia de coiote prestes a uivar,encher os seios
tristes numa inspiração de mergulhador e berrar

– Bonifácioooooooooooo

num ganido interminável e imperioso. Seguiam-se uns segundos de silêncio
expectante que o mulato, despertado em tumulto, preenchia perguntando à roda

– O que foi? O que foi?

numa inquietação de jangada à deriva. Vai na volta escutava-se um tilintar
de coposapressados na cozinha, e um negro chaplinesco, contido a custo numa
jaqueta demordomo da Geórgia, surgia do corredor a dançar nos sapatos excessivos,
transportandouma bandeja de garrafas de que se aguardava, a cada instante,
o despenhar no soalho,numa chuva de estilhaços de cinema mudo. O uísque sabia
a álcool de lamparina e assbão-macaco, e cada um de nós comungava dois dedos
daquele sacrifício ictérico,torcendo-se de caretas atrás do pudor da mão,
enquanto o administrador, que guardava ogrão-de-bico do loto no saco dos números,
exclamava:

– Boa pomada, hã?

obtendo do capitão um sorriso obediente de óleo de fígado de bacalhau resignado.

Lá fora, o cipaio que vigiava o motor da eletricidade munido de uma espécie
demosquete de conquistador espanhol, ressonava sob o telheiro de cimento.
Morcegos dotamanho de perdizes rodopiavam a cambalear nas proximidades dos
candeeiros, fogospálidos consumiam-se na penumbra densa das sanzalas, soba
Macau, soba PedroMacau, soba Marimba, junto à pista da aviação, que o capim
constantemente invadia, asluzes da Chiquita tremiam, nítidas, na distância,
constelação de estrelas improváveis. A seguir ao início da guerra haviam morto
ou expulso para o Congo os Mô-Holos e osBundi-Bângalas que habitavam primitivamente
a Baixa do Cassanje, e substituído assuas aldeias por Gingas da área de Luanda,
mais obedientes e acomodatícios depois de oseu chefe ter apodrecido vinte
anos nas prisões colonais a pretexto de um crimequalquer. De coroa de lata
na cabeça, incrustada de brilhantes de vidro, posto a ridículo,perante o seu
povo, pelo Estado corporativo, que o obrigava a um humilhante uniformedo imperador
de carnaval, o rei vagueava no seu quimbo à maneira dos doentes mentaisnas
enfermarias psiquiátricas, olhado com desgosto incrédulo pelos velhos da tribo.
Noentanto, o soba Bimbe e o soba Caputo, do outro lado da fronteira, continuavam
a luta, eavistavam-se de Marimbanguengo as bases do MPLA no Congo, construçõesminúsculas
que cresciam. A D. Áurea inclinou-se amavelmente para a professora dasmenstruações
de Niágara, que coçava à socapa a flor-de-congo dos sovacos:

– Como vai de sáude, D. Olinda?

Você não calcula (um dedo, se faz favor, perfeitamente, basta) a sensaçãoesquisita
daquele loto no meio da mata, dos tangos poeirentos do toca-discos, dastoaletes
patéticas das mulheres, das mesuras dos homens, das dálias europeiasaquareladas
na parede, enquanto os condenados pela PIDE se enrolavam comotentáculos inertes
nos seus buracos, os soldados tremiam de paludismo nos beliches dascasernas,
os generais no ar condicionado de Luanda inventavam a guerra de que nósmorríamos
e eles viviam, a noite de África se desdobrava numa majestosa infinidade deestrelas,
os bailundo comprados em Nova Lisboa agonizavam de despaisamento nassanzalas
das fazendas, e eu escrevia para casa Tudo vai bem, na esperança de quecompreendessem
a cruel inutilidade do sofrimento, do sadismo, da separação, daspalavras de
ternura e da saudade, que compreendessem o que não podia dizer por detrásdo
que eu dizia e que era o Caralho caralho caralho caralho caralho do enfermeiro
aseguir à emboscada, lembra-se, no Leste, no país de areia vazia dos Luchazes,
com ocorpo do cabo defunto a apodrecer, sob a manta, no meu quarto, e eu sentado
nosdegraus do posto como me sento agora aqui consigo nesta sala, vendo os
barcos do riono nosso reflexo no vidro da janela, eu a falar e você a ouvir-me
nessa atençãosarcástica que me enerva e confunde, As mulheres, sentenciava
o Voltaire, sãoincapazes de ironia, catorze pontos no cu do agente a demorar,
deliciado, a agulha pelacarne, deixe-me encostar por um momento a cabeça aos
seus joelhos e fechar os olhos,os mesmos com que observei o cipaio a enfiar
cubos de gelo no ânus de um tipo semque eu protestasse sequer porque o medo,
percebe, me tolhia o menor gesto de revolta, omeu egoísmo queria regressar
inteiro e depressa antes que uma porta de prisão sefechasse, impeditiva, à
minha frente, regressar e esquecer e retomar o hospital e aescrita e a família
e o cinema ao sábado e os amigos como se nada me tivesse,entretanto, sucedido,
desembarcar na Rocha do Conde de Óbidos e declarar dentro demim Era tudo mentira
e acordei, e todavia, entende, em noites como esta, em que oálcool me acentua
o abandono e a solidão e me acho no fundo de um poço interiordemasiado alto,
demasiado estreito, demasiado liso, surge dentro de mim, tão nítidacomo há
oito anos, a lembrança da covardia e do comodismo que cuidava afogados parasempre
numa qualquer gaveta perdida da memória, e uma espécie de, como exprimirme?,remorso,
leva-me a acocorar-me num ângulo do meu quarto como um bichoacossado, branco
de vergonha e de pavor, aguardando, de joelhos na boca, a manhã quenão chega.

R

Não chega, a manhã, não vai chegar nunca, é inútil esperar que os telhadosempalideçam,
uma lividez gelada aclare tremulamente os estores, pequenos cachos decriaturas
transidas, brutalmente arrancadas ao útero do sono, se agrupem nas paradas
deônibus a caminho de um trabalho sem prazer: achamo-nos condenados, você
e eu, a umanoite sem fim, espessa, densa, desesperante, desprovida de refúgios
e saídas, umlabirinto de angústia que o uísque ilumina de viés da sua claridade
turva, segurando oscopos vazios na mão como os peregrinos de Fátima as suas
velas apagadas, sentadoslado a lado no sofá, ocos de frases, de sentimentos,
de vida, a sorrir um para o outrocaretas de cães de faiança numa prateleira
de sala, de olhos exaustos por semanas esemanas de apavoradas vigílias. Já
reparou como o silêncio das quatro horas instila emnós a mesma espécie de
inquietação que habita as árvores antes da vinda do vento, umfrêmito de folhas
de cabelos, uma tremura de troncos de intestinos, a agitação de raízesdos
pés que se cruzam e descruzam sem motivo? Pois bem, aguardamos no fundo o
quenão irá acontecer, a ansiedade que nos acelera as veias pedala em nós em
vão à maneiradas bicicletas imóveis dos ginásios, porque esta noite, percebe,
é um porão à deriva, umenorme armário de que se perdeu a chave, um aquário
sem peixes naufragado numaausência de pedras, e apenas percorrido pelas sombras
na água de um desassossegoinforme: ficaremos aqui a escutar o motor da geladeira,
única companhia viva nestastrevas, cuja lâmpada branca acende nos azulejos
fosforescências de iglu, até queconstruam outros prédios sobre este prédio,
outras ruas sobre esta rua, rostosindiferentes se sobreponham à amabilidade
rápida dos vizinhos, o porteiro adquira asbarbas majestosas e esgazeadas de
um louco de aldeia, e os arqueólogos do futuroencontrem os nossos corpos plasmados
em atitudes de espera, idênticos às figuras degreda dos túmulos etruscos,
aguardando, de uísque em punho, a claridade de uma auroraatômica.

Entretanto, e se estiver de acordo, talvez possamos tentar fazer amor, ou
seja,essa espécie de ginástica pagã que nos deixa no corpo, depois de acabado
o exercício,um gosto suado de tristeza no desastre dos lençóis: a cama não
range, é improvável quea válvula de descarga do andar de cima vomite a esta
hora o conteúdo limoso do seuestômago, perturbando as carícias sem ternura
que são como que o motor de arranquedo desejo, nenhum de nós sente pelo outro
mais do que uma cumplicidade detuberculosos num sanatório, feita da melancólica
tristeza de um destino comum; jávivemos demais para correr o risco idiota
de nos apaixonarmos, de vibrarmos nas tripase na alma exaltações de aventura,
de nos demorarmos tardes a fio diante de uma portafechada, de ramo de flores
em riste, ridículos e tocantes, a engolir cuspes aflitos de JoséMatias. O
tempo trouxe-nos a sabedoria da incredulidade e do cinismo, perdemos afranca
simplicidade da juventude com a segunda tentativa de suicídio, em queacordamos
num banco de hospital sob o olho celeste de um S. Pedro de estetoscópio, edesconfiamos
tanto da humanidade como de nós mesmos, por conhecermos o egoísmoazedo do
nosso caráter oculto sob as enganadoras aparências de um verniz generoso.Não
é em si que não acredito, é em mim, na minha repugnância em me dar, no meupânico
de que me queiram, na minha inexplicável necessidade de destruir os fugazesinstantes
agradáveis do quotidiano, triturando-os de acidez e ironia até os transformarno
Cerelac da chata amargura habitual. O que seria de nós, não é, se fôssemos,
de fato,felizes? Já imaginou como isso nos deixaria perplexos, desarmados,
mirandoansiosamente em volta em busca de uma desgraça reconfortadora, como
as criançasprocuram os sorrisos da família numa festa de colégio? Viu por
acaso como nos assustamos se alguém, genuinamente, sem segundos pensamentos,
se nos entrega, comonão suportamos um afeto sincero, incondicional, sem exigência
de troca? A esses, osCamilos Torres, os Guevaras, os Allendes, apressamo-nos
a matá-los porque o seucombativo amor nos incomoda, procuramo-los, de bazuca
ao ombro, raivosos, nasflorestas da Bolívia, bombardeamos-lhes os palácios,
colocamos no seu lugar sujeitoscruéis e viscosos, mais parecidos conosco,
cujos bigodes nos não trepam pelo esôfagorefluxos verdes de remorso. De forma
que as relações sexuais constituem entre nós,percebe, uma violação mole, uma
apressada exibição de ódio sem júbilo, a derrotamolhada de dois corpos exaustos
no colchão, à espera de reencontrarem o fôlego quelhe foge para verificarem
as horas no relógio de pulso à cabeceira, se vestirem sem umapalavra, examinarem
sumariamente no espelho do banheiro a pintura e o cabelo, epartirem, a coberto
da noite, ainda úmidos do outro, a caminho da solidão das suascasas. Os que
moram a dois, aliás, e dividem com má vontade o edredão e o dentifrício,padecem,
de resto, de um isolamento semelhante: ah, as refeiçõs frente a frente, emsilêncio,
cheias de um rancor que se palpa no ar como a água-de-colônia das viúvas!
Osserões junto à televisão acariciando projetos vingativos de assassínio conjugal,
a faca dopeixe, a jarra da China, um oportuno empurrão pela janela! Os sonhos
minuciosamentedetalhados do enfarte do miocárdio do marido ou da trombose
da mulher, a dor no peito,a boca à banda, as palavras infantis babadas a custa
na almofada da clínica! Possuímos,pelo menos, a vantagem, sabe como é, de
dormir sozinhos, sem uma perna alheia aexplorar as zonas frescas do lençol
que por direito geográfico nos cabem, mas falta-nossimultaneamente alguém
que possamos culpar do nosso fundo descontentamento de nóspróprios, um alvo
fácil para os nossos insultos, uma vítima, em suma, da nossamediocridade despeitada.
Você e eu, graças a Deus, não corremos esse risco, somoscomo dois judocas
que se temem o suficiente para se não ferirem, e inventam, quandomuito, falsos
golpes inofensivos que se detêm a meio do trajeto, à maneira de tentáculossubitamente
inertes que desistem: se eu lhe dissesse que a amava, você responder-me-ia,no
tom mais sério deste mundo, que desde os dezoito anos não sentia por um homemum
entusiasmo idêntico, que qualquer coisa de diferente e de estranho a perturbava,
quelhe apetecia com uma força de novilho nunca mais se separar de mim, e acabaríamos
arir, dentro dos copos respectivos, da inócua inocência das nossas mentiras.
Mas suponhaque havíamos despido, por minutos, o colete à prova de bala de
uma maldade sabida, eéramos, por exemplo, sinceros? Que ao afagar-lhe a mão
eu tocava, para além dos seusdedos de agora, que principiam a envelhecer sob
os anéis, o pulso estreito de umamenina vulnerável e frágil, a mastigar goma
de mascar à sombra do desdenhoso retratotrágico de James Dean, arcanjo louro
cujo breve trajeto de cometa terminouabruptamente num cone fumegante de sucata?
Que os seus seios endureciam de desejoverdadeiro, um arrepio esquisito lhe
separava as coxas, o ventre se cavava de uma fomeinexplicável e veemente de
mim? Que maçada, hã? Os ciúmes, as necessidadesexclusivas, o tormento obnóxio
da saudade? Descanse, é tarde já, será sempre tarde paranós, o excesso de
lucidez impede-nos os estúpidos e calorosos impulsos da paixão, omeu cabelo
ralo e os seus pés-de-galinha, impossíveis de disfarçar sob a delicadeza dosorriso,
defendem-nos do entusiasmo de estar vivos, do sonho sem malícia, do purocontentamento
sem mancha de acreditar nos outros.

Achamo-nos em condições, portanto, de fazer na cama lá do fundo um amor tãoinsosso
como a pescada congelada do restaurante, de que a única órbita nos fita agoniasvítreas
de octogenário entre os verdes desbotados das alfaces. A sua boca possui o
gostosem gosto dos biscoitos antigos envoltos no açúcar do bâton, a minha
língua é umpedaço de esponja enrolada nos dentes, inchada pela espuma oleosa
da saliva. Unir-nosemos,percebe, como dois monstros terciários, eriçados de
cartilagens e de ossos, balindo ganidos onomatopaicos de lagartixas imensas,
enquanto lá fora as picadas doNorte, destruídas pelas chuvas, substituem a
faixa de vidro preto do rio, borbulhante deluzes, e eu salto e balanço ao
lado do condutor do unimogue, protegido por uma escoltaque chocalha atrás
no seu banco de pau, a caminho de Dala-Samba, com a caixa dasvacinas da cólera
a tremer entre os joelhos.

De tempos em tempos, quando me sentia apodrecer demais na inércia do arame,diante
dos morcegos das mangueiras e do loto do administrador, a observar à noite
asórbitas minerais das osgas do teto, a engolirem borboletas em comunhões
instantâneas,esmagado de monotonia e impaciência, quando o King dos oficiais
se me afigurava umritual absurdo que adquiria pouco a pouco as tenebrosas
características de umacerimônia sangrenta (“Oito ou nulos e fodo-te os
cornos se mos deres”), quando depoisde me masturbar permanecia acordado
e sem sono, a fitar pela janela as trovoadas doCambo e a pensar nas tuas coxas
em Lisboa, no atrito leve das meias ao cruzar daspernas, na penugem afagada
a contrapelo, no triângulo, que sabia a ostras, escondido narenda das calcinhas,
quando os cães latiam das bandas da cozinha gemidos quasehumanos de crianças
com fome, quando a minha filha começava a andar de cadeira emcadeira passos
hesitantes e aplicados de motor de corda, quando o tempo se imobilizavano
poço dos calendários em teimosias de pedra com raízes e as tardes demoravam
mesese meses em sestas enervadas, partia para Dala-Samba ao longo da Baixa
do Cassanje, avisitar os cemitérios dos reis Gingas no alto dos morros nus,
cercados de tufos, depalmeiras que o vento da morte inclinava. E havia o túmulo
do Zé do Telhado em Dala,perto dos dois ou três comércios poeirentos da povoação
abandonada, velhos colonosquase miseráveis que o paludismo esverdeava, cabras
com peras de escultor em torno dosilêncio das cubatas, o enfermeiro do hospital
do Caombo na sua bata imaculada,exprimindo-se num português precioso de condessa.
Dormíamos nas camas de ferrobranco das parturientes, entre armários de instrumentos
cirúrgicos e mesasginecológicas, ao acordarmos o temporal da véspera lavara
a manhã, esfregando-lhe osbrilhos e as cores, e ao sairmos para os carros
sentia-me ingressar no primeiro dia dacriação, antes da partilha das águas,
e era como se vogasse, de botas da tropa abalançarem, na claridade irreal
das fotografias antigas, onde o iodo dilui as expressões eos contornos numa
nódoa solar que nos afoga.

Se você conhecesse as madrugadas de África na Baixa do Cassanje, o odorvigoroso
da terra ou do capim, o perfil confundido das árvores, o algodão aberto até
aohorizonte numa pureza de neve amortalhada, talvez nos fosse possível regressar
aoprincípio, às réplicas ainda tímidas do uísque inicial, ao sorriso que pede
e ao soslaioque consente, e construir a partir disso a cumplicidade sem arestas
dos amantes, quematam em três lances a desconfiança e o receio, e ressonam
a duas vozes nas pensões daAvenida, saciados e satisfeitos. Mas a poeira de
greda de Marrocos, a julgar pelaprofusão dos seus colares, é o equador de
que é capaz, e um bairro de casas sujas e dehomens acocorados, espécie de
Algarve invadido por ciganos a impingirem alcatifas deArraiolos e pulseiras
de arame num palavreado nauseabundo, a sua antevisão doparaíso. Longe da filigrana
manuelina dos Jerônimos, Reboleira dos Descobrimentos, edas praias da Costa
da Caparica em que as pessoas miraculosamente se multiplicam àlaia de formigas
num bolo de arroz, o despaisamento fá-la enrugar e definhar como umcacto no
polo. Os túneis do metrô constituem no fundo as suas tripas verdadeiras,percorridas
por dejetos de carruagens, e as micros da Praça do Chile, o negativo, emponto
pequeno, da sua alma. O que de certo modo irremediavelmente nos separa é quevocê
leu nos jornais os nomes dos militares defuntos, e eu partilhei com eles a
salada defrutas da ração de combate e vi soldarem-lhes os caixões na arrecadação
da companhia,entre caixotes de munições e capacetes ferrugentos. O cabo Pereira,
por exemplo, antes de estilhaçar a cabeça na estrada da Chiquita, vinha pingar
a blenorragia ao posto desocorros, exibindo a pica mole como uma vela de estearina,
de que surdia a gota a arderde um leite inflamado. O padeiro compôs um poema
autobiográfico que demorava duashoras a recitar e me fez adormecer de exaustão
sobre o prato do almoço. O tenentegabava-me os méritos da criada num extasiamento
de milagre. O comandante procuravaos seios macios como uvas das adolescentes,
remexendo-lhes os panos dos vestidos.Um capitão na quarta comissão apodrecia
como um Drácula na aurora, de feiçõesdecompostas na lama pálida dos cadáveres.
E eu conferenciava de sanzala em sanzalacom a gravidade dos sobas, acocorado
nos bancos de pele de cabrito destinados aosvisitantes de qualidade, distribuía
quinino por extensas filas de paludismos trêmulos,drenava abscessos, desinfetava
feridas, fumava liamba na febre dos batuques, quandohomens desorbitados ajoelhavam
a vibrar defronte dos corações em pânico dostambores. Os brancos do mato,
isolados e sem meios nas fazendas por explorar,deitavam-se de arma à cabeceira
junto das amantes negras, obedientes e mudas como asombra oblíqua de uma aparição.
O capim engolia os tratores avariados numa fome demil bocas vegetais vitoriosas,
devorava as casas, pulava as vedações, destruía as cruzesanônimas das campas
espalhadas ao acaso na orla das picadas. Um dia, um homemlouro apareceu no
quartel a bordo de uma camioneta em ruína, desembarcou com umamala de paramentos
de padre na mão e apresentou-se aos oficiais:

– Soy basco y amigo intimo del cabrón Francisco Franco.

Ouça: em Gago Coutinho havia uma missão abandonada, um velho edifício decolunas
protegido pela frescura das acácias, um oásis de silêncio onde os passosreboavam
como nos filmes de Hitchcock. À tarde, o tenente e eu costumávamos parar ojipe
na cerca de grades oxidadas, retirar o assento traseiro, instalarmo-nos junto
de umaárvore sob o sossego gordo dos pássaros, um silêncio grande e bom de
folhas altas, efumávamos sem falar porque as palavras se tornavam subitamente
desnecessárias comoum barco na cidade, um aquário no mar, um fingimento de
orgasmo durante o orgasmo,fumávamos sem falar e uma quietude de paz deslizava
devagarinho pelas veias areconciliar-nos conosco, a perdoar-nos estarmos ali,
ocupantes involuntários em paísestrangeiro, agentes de um fascismo provinciano
que a si mesmo se minava e corroía,no lento ácido de uma triste estupidez
de presbitério.

– Soy basco y amigo intimo del cabrón Francisco Franco.

Em Dala-Samba, o administrador vivia sozinho com a mulher e os filhos numacasa
vazia, de cuja varanda se avistava a incrível extensão azul do Cassange e
afronteira do Congo, lá embaixo, no rio dos diamantes, a pular escamas de
luz nas pedrassem facetas. Os filhos torciam-se de lombrigas na varanda. A
mulher fazia crochêsemanas a fio, de chinelos, naperons ovais em que se pressentiam
Campos de Ouriqueperdidos, com a sua constelação de capelistas manhosas em
torno da Igreja do SantoCondestável, gótico estilo Mãos de Fada para casamentos
de tecnocratas. O candeeirode petróleo iluminava um jantar de La Tour, onde
os rostos se assemelhavam a maçãsatentas recortadas num fundo cambaleante
de trevas, e a sanzala vizinha, voltada para ointerior de si própria como
um filósofo que medita, recuava no escuro com os seusfogos esparsos e as suas
silhuetas acocoradas, assando os grilos esperneantes da ceia.

– Soy basco…

Foda-se, também vim para aqui porque me expulsaram do meu país a bordo deum
navio cheio de tropas desde o porão à ponte e me aprisionaram em três voltas
dearame cercadas de minas e de guerra, me reduziram às garrafas de oxigênio
das cartasda família e das fotografias da filha, Angola era um retângulo cor-de-rosa
no mapa dainstrução primária, freiras pretas a sorrirem no calendário das
Missões, mulheres deargolas no nariz, Mouzinho de Albuquerque e hipopótamos,
o heroísmo da Mocidade Portuguesa a marcar passo, sob a chuva de abril, no
pátio do liceu. Um amigo negro daFaculdade levou-me um dia ao seu quarto no
Arco do Cego, e mostrou-me o retrato deuma velha esquelética, em cujo rosto
se adivinhavam gerações e gerações de petrificadarevolta:

– É a nossa Guernica. Queria que a visses antes de me ir embora porque me
chamaram da tropa e fujo amanhã para a Tanzânia.

E só compreendi isso quando vi os prisioneiros no quartel da PIDE, a resignadaespera
dos seus gestos, as barrigas gigantescas de fome das crianças, a ausência
delágrimas no pavor dos olhos. É preciso que entenda, percebe, que no meio
em que nascia definição de preto era “criatura amorosa em pequenino”,
como quem se refere a cãesou a cavalos, a animais esquisitos e perigosos parecidos
com pessoas, que no escuro dasanzala Santo Antônio me gritavam

– Vai na tua terra, português

cagando-se nas minhas vacinas e nos meus remédios e desejando intensamente
que euquebrasse os cornos na picada porque não era a eles que eu tratava mas
à mão-de-obrabarata dos fazendeiros, dezessete escudos por um dia de trabalho,
dez tostões para cadasaco de algodão, quem eu tratava através deles era o
branco de Malanje ou de Luanda, obranco ao sol na Ilha, o branco de Alvalade,
o branco do Clube Ferroviário que recusavadesdenhosamente conversar com a
tropa.

– Não precisamos de vocês para nada

de forma que essa Guernica se transformou pouco a pouco na minha Guernica
domesmo modo que me tornei basco y amigo intimo del cabrón Francisco Franco
eaguardei as vacinas e os remédios na caixa e voltei ao arame e às mangueiras
deMarimba, cheguei ao posto de socorros, fechei a porta, instalei-me à secretária,
e sentime,de súbito, sabe como é, acossado como um bicho.

S

Sofia, eu disse na sala Volto já, e vim aqui, e sentei-me no sanitário, diante
do espelhoonde todas as manhãs me barbeio, para falar contigo. Falta-me o
teu sorriso, as tuasmãos no meu corpo, as cócegas dos teus pés nos meus pés.
Falta-me o cheiro bom doteu cabelo. Esse banheiro é um aquário de azulejos
que o foco do teto abliquamenteilumina, varando a água da noite em que o meu
rosto se move em gestos lentos deanêmona, os meus braços adquirem o espasmo
de adeus sem ossos dos polvos, o troncoreaprende a imobilidade branca dos
corais. Quando ensaboo a cara, Sofia, sinto asescamas vítreas da pele nos
meus dedos, os olhos tornam-se salientes e tristes como osdos gorazes na mesa
da cozinha, nascem-me barbatanas de anjo dos sovacos. Dissolvome,parado, na
banheira cheia, como imagino que os peixes morrem, evaporados numaespumazinha
viscosa à tona, como decerto os peixes morrem no rio, de órbitasapodrecidas
a boiarem. Sofia, aqui, aurora após aurora, quando ainda nenhuma manhãsublinha
de verde os telhados, e as luzes se destacam, nítidas, no escuro, à laia deverrugas
fosforescentes, quando a amplidão das trevas de Lisboa me envolve nas suaspregas
apavorantes e moles, venho verter a medo na retrete uma urina furtiva de criança,empurrado
pela mão enorme da mãe que já não tenho. Agora, Sofia, que sou homem,moro
só, e o porteiro me cumprimenta de vênias respeitosas, assalta-me por vezes
acerteza esquisita de ser um peixe morto neste aquário de azulejos, cumprindo
um ritualdiário entre o espelho e o bidê no desânimo com que os defuntos se
movem, talvez, porsob a terra, fitando-se uns aos outros com pupilas de inexprimível
terror. Falta-me o teu ventre junto do meu ventre, a floresta das tuas coxas
negras enroladas nas minhas, o teumisterioso e quente e forte riso de mulher
que a PIDE, o governo, os tratoristas daCetec, a gula do administrador e a
fúria sádica e perversa dos brancos deixaram intactosna sua cascata alegre
de vitória. Falta-me a tua cama para o meu longo cansaço deeuropeu com oito
séculos de infantas de pedra às costas, falta-me a tua vaginaensolarada para
ancorar a minha vergonha de ternura, o meu pênis ereto que se curvapara ti
como os mastros se inclinam na direção do vento, esta sede de amor raivoso
quete escondo. Sofia, instalo-me no sanitário como uma galinha a ajeitar-se
no seu choco,abanando as nádegas murchas das penas na auréola de plástico,
solto um ovo de ouroque deixa na louça um rastro ocre de merda, puxo a válvula
de descarga, cacarejocontentamentos de poedeira, e é como se essa melancólica
proeza me justificasse aexistência, como se sentar-me aqui, noite após noite,
diante do espelho, a observar novidro os vincos amarelos das olheiras e as
rugas que em torno da boca se multiplicamnuma fina teia misteriosa, idêntica
à que cobre de leve os quadros de Leonardo, meassegurasse que ao fim de tantos
anos de deixar-te permaneço vivo, durando, Sofia,neste aquário de azulejos
que o foco do teto obliquamente ilumina, peixe morto à tona,de órbitas apodrecidas
a boiarem.

Conheci-te em Gago Coutinho, num sábado de manhã, quando as lavadeirasvinham
ao arame entregar a roupa engomada dos soldados, e ficavam de cócoras, àespera,
num talude, perto da passagem de nível desarticulada da porta de armas, aconversarem
numa esquisita linguagem que eu entendia mal, mas se aparentava aosaxofone
de Charlie Parker quando não grita o seu ódio ferido pelo mundo cruel eridículo
dos brancos. O odor putrefato da terra vermelha de África enjoava-nos como
ocheiro de defuntos no hospital, os insetos do Leste entredevoram-se em silêncio
nocapim, e as lavadeiras, com a roupa pronta embrulhada em panos coloridos,
deixavamque os soldados lhes corressem a mão pelos rins, pelas costas, pelo
peito, sob o enormee denso e fixo sol de Angola, enquanto escarneciam, conversando
umas com as outras,do desejo ansioso dos brancos, do seu desajeitamento e
da sua pressa, e também doaroma de cadáver que traziam consigo desde o navio
de Lisboa, homens tornados larvasde espingarda assassina nas patas, por um
Portugal de esbirros.

Aos sábados de manhã, os velhos reuniam-se ao centro da sanzala em torno
deuma cabaça de tabaco e soltavam, pelo nariz e pela boca, fumos castanhos
e serenoscomo as locomotivas antigas, com o ódio pelo ocupante escrito em
grandes letrasvermelhas na sua indiferença vegetal. Eram os velhos do Nengo,
do Lusse, os velhos deCessa e de Mussuma, os velhos do Luanguina e do Lucusse,
os velhos de Narriquinha,os velhos do Chalala, os velhos e orgulhosos luchazes,
senhores das Terras do Fim doMundo, vindos há muitos séculos da Etiópia em
migrações sucessivas, que tinhamexpulso os hotentotes, os Kamessekeles, os
povos que habitavam aquele país de areia enoites frias, em que os arbustos
estremeciam quando roçavam por eles apariçõesfosforescentes de deuses. Velhos
livres tornados reles escravos do arame peloscanhangulos dos milícias, pelos
rostos triangulares de lagartos furiosos dos pides, pelorancor do Estado colonial
que os tratava como a uma raça ignóbil, e que cuspiam nochão escuro a saliva
fumegante do tabaco, em escarros pesados de desprezo.

Os velhos reuniam-se ao centro da sanzala, os cabiris latiam atrás das galinhasmagras
de quimbo em quimbo, um pólen impalpável e levíssimo, semelhante ao que sesolta
das caixas de ruge antigas, acumuladas nas gavetas empenadas do quarto dosarmários
da minha infância, descia das árvores imóveis como pedras, criando estranhasraízes
de basalto na terra alucinada de África. O comandante encolhia os ombros no
seugabinete blindado, escravo ele também do arame e dos orgulhosos e desumanos
donosda guerra que em Luanda, cravando pontos coloridos nos seus mapas, um
a um nos matavam, e eu olhava-te, Sofia, acocorada no talude na mancha verde,
azul e negra dasmulheres, das mulheres que conversavam e se riam e troçavam
dos dedos dos soldadosque angustiadamente as tocavam, das mulheres luchazes
que abriam para os brancos asvulvas das coxas desinteressadas, nas cubatas
cheias do úmido silêncio dos filhosmudos a um canto, brincando com pedaços
de cana os jogos solenes dos meninos.

Conheci-te numa manhã de sábado, Sofia, e a tua gargalhada de prisioneira
livre,harmoniosa e estranha como o voo dos corvos que Van Gogh pintara antes
de se matarno meio do trigo e do sol, tocou-me como um gesto de irreprimível
ternura me toca seme sinto mais só, ou os sussurros dos mortos na nossa casa
de Benfica, perto docemitério, cercada pelos lamentos doces e tristes dos
defuntos.

Eu estava farto da guerra, Sofia, farto da obstinada maldade da guerra e
deescutar, na cama, os protestos dos camaradas assassinados que me perseguiam
no meusono, pedindo-me que os não deixasse apodrecer emparedados nos seus
caixões dechumbo, inquietantes e frios como os perfis das oliveiras, farto
de ser larva entre larvasna câmara-ardente da messe que o motor da eletricidade
aclarava de vacilaçõeshesitantes de desmaio, farto do jogo das damas dos capitães
idosos e das melancólicaspiadas dos alferes, farto de trabalhar, noite após
noite, na enfermaria, molhado até oscotovelos do sangue viscoso e quente dos
feridos.

Eu estava farto, Sofia, e todo o meucorpo me implorava o sossego que apenas
se encontra nos corpos serenos das mulheres,na curva dos ombros das mulheres
onde podemos descansar o nosso desespero e onosso medo, na ternura sem sarcasmo
das mulheres, na sua macia generosidade,côncava como um berço para a minha
angústia de homem, a minha angústia carregadade ódio de homem só, com o peso
insuportável da própria morte no dorso. O furrielenfermeiro, que possuía descoloridas
órbitas salientes de cavalo cego e um grandepânico de África nas tripas, trouxe-te
por um braço, um braço escuro e redondo e firmee jovem, ao ponto do arame,
diante da estrada branca para o Luso, onde eu ficara aolhar-te, e para além
de ti a extensão de azebre da mata que as máquinas da Cetec,estupidamente,
tronco a tronco, derrubavam, e perguntou-me numa voz dorida, idênticaa uma
antena que se retrai, timidamente, no receio de si mesma, a voz com que oscamaradas
assassinados me chamavam no meu sono, de cabelos envoltos em gazesinúteis
como trapos, a flutuarem na desordem molhada das madeixas, a voz do meu cãomorto
há muitos anos, a farejar a figueira do quintal em ecos de uivos que se meevaporavam
na memória:

– O senhor doutor precisa de uma lavadeira?

Eu não precisava de uma lavadeira, Sofia, porque os maqueiros me arranjavamas
camisas e as toalhas e as cuecas e as meias, mas precisava de ti, do cheiro
de fruta doteu ventre, do teu púbis tatuado, do colar de miçanga que te apertava
a cintura, dos pésduros e longos de pássaro dos rios, circulando de seixo
em seixo numa nervosamajestade.

Eu estava farto da guerra, Sofia, farto de ver chegar os feridos da picada,
emmacas improvisadas de lona, os feridos cujas bocas se abriam e fechavam
em apelosindecifráveis e magoados como os chamamentos do mar, o mar da Praia
das Maçãs quevinha mugir aos meus lençóis gritos de touro com cio, soltando
das narinas uma espumade ondas a ferver. Os meus irmãos e eu, acordados, escutávamos
sem entender alinguagem rouca do mar, dobrados nos colchões úmidos, sobre
a farmácia, como fetosaflitos, escutávamos sem entender o touro do mar que
marrava e marrava contra a portado quarto, saltava a muralha, corria, à desfilada,
pelas ruas, deitava o enorme focinhogelado na almofada ao pé de nós para tentar
dormir, porque o mar, Sofia, sofre dapertinaz insônia dos mortos que estalavam
os soalhos da casa de Benfica com os seuspassos insuportáveis e gasosos.

Eu estava farto da guerra, de me debruçar, até de madrugada, para camaradasque
agonizavam, sob a lâmpada vertical da sala de operações improvisada, farto
donosso sangue tão cruelmente derramado, de sair para fora, a fumar um cigarro,
aindaantes do dia, na completa noite escura que antecede o dia, e ver um súbito
céu sereno ecurvo povoado de desconhecidas estrelas, não o céu de alfazema
e naftalina de Benfica,nem o duro céu de pinheiros de granito da Beira, nem
sequer o céu de tempestuosa águada Praia das Maçãs em que navegava ao acaso
como um barco à deriva, mas o sereno ealto e inatingível céu de África e as
suas constelações que brilhavam, geométricas, à laiade pupilas irônicas. De
pé, à porta da sala de operações, com os cães do quartel afarejarem-me a roupa,
gulosos do sangue dos meus camarados feridos, a lamberem osangue dos meus
camaradas feridos nas nódoas escuras das minhas calças, da minhacamisa, dos
pelos claros dos meus braços, eu odiava, Sofia, os que nos mentiam e nosoprimiam,
nos humilhavam e nos matavam em Angola, os senhores sérios e dignos quede
Lisboa nos apunhalavam em Angola, os políticos, os magistrados, os policiais,
osbufos, os bispos, os que ao som de hinos e discursos nos enxotavam para
os navios daguerra e nos mandavam para África, nos mandavam morrer em África
e teciam à nossavolta melopeias sinistras de vampiros.

Na noite do dia em que te conheci, a seguir ao jantar, fugi das damas doscapitães
idosos e do pôquer dos alferes, enxotei os cães que rondavam a messe emelipses
de fome submissa e teimosa, agora que a população da sanzala lhes disputava
osratos do capim, os pequenos animais sôfregos e tímidos do capim, farejando
as nossassombras de brancos numa aflição inquieta, e saí a passagem de nível
desconjuntada daporta de armas na direção da mancha confusa da sanzala lá
embaixo, de onde o odor damandioca subia como um relento de jazigo, a mandioca
a secar nos telhados dascubatas, parecida com os ossos que o senhor Joaquim,
que vendia os esqueletos aosestudantes de Medicina, comprava ao coveiro do
Alto de S. João e deixava a secar nasua mansarda do Campo de Santana, inquinando
docemente o triste odor citadino dasárvores do jardim.

Ia jurar que me esperavas, Sofia, para lá das paredes grossas de adobe queconservavam
ainda, na dureza do barro, as marcas dos dedos anônimos que as haviamerguido,
porque a porta de madeira se abriu, sem que lhe tocasse, para um escuro maisescuro
do que o escuro da noite, mas povoado do silêncio das respirações e dossussurros,
de um cacarejo suave de galinhas adormecidas, de um dorso fugidio decabiri,
da tua mão, Sofia, que me guiava nas trevas, como um dia, quando for cego,
aminha filha me guiará, me guiava através do escuro e do silêncio, e eu sentia
a tuagargalhada vitoriosa imóvel na boca, riso de mulher liberta que nenhum
pide, nenhumtropa, nenhum cipaio calaria, o teu riso que mesmo hoje, neste
asséptico e odiosoaquário de azulejos, continuo a escutar, sentado no sanitário,
olhando no espelho o meurosto que irremediavelmente envelheceu, as falanges
amarelas dos cigarros, os cabelosbrancos, que eu não tinha, as rugas, Sofia,
que me vincam a testa do mole cansaço dosque em definitivo desistiram.

Ia jurar que a cova do colchão de palha possuía a exata forma do meu corpo,como
se desde sempre pacientemente me aguardasses, que a largura da tua vagina
era amiraculosa medida do meu pênis, que o filho mulato a ressonar no berço
de bordão e ocomerciante Afonso, gordo, ruivo e fanhoso, tinha por seu, e
recebia de tempos emtempos, com uma palmada desdenhosa, na estreita loja nauseabunda
de peixe seco,prolongava nas feições em repouso algo das minhas feições de
antes, quando aamargura e o sofrimento da guerra me não haviam transformado
ainda numa espécie debicho desencantado e cínico, procedendo mecanicamente
ao ato do amor nos gestos indiferentes e alheios dos comensais solitários
nos restaurantes, olhando para dentro de si próprios as sombras melancólicas
que os habitam.

Esperavas-me, Sofia, na espessa noite da tua casa na sanzala, acendias um
paviode petróleo numa garrafa, e as guinadas de claridade frouxa e romba revelavam-me,
aespaços, latas em prateleiras, um cesto de roupa, o quadrado fechado da janela,
umavelha acocorada a um canto a fumar o cachimbo de cana numa absoluta quietude,
umavelha muito velha de carapinha mais branca que o algodão do Cassanje, e
cujos peitoschatos e vazios se colavam às costelas como as pálpebras ocas
dos mortos aderem àsórbitas vazias. Esperavas-me, Sofia, e nunca houve entre
nós quaisquer palavras, porquetu entendias a minha angústia de homem, a minha
angústia carregada de ódio de homemsó, a indignação que a minha covardia provocava
em mim, a minha submissa aceitaçãoda violência e da guerra que os senhores
de Lisboa me impuseram, entendias as minhasdesesperadas carícias e a ternura
medrosa que te dava, e os teus braços desciam-melentamente ao longo das costas,
sem zanga nem sarcasmo, subiam e desciam lentamenteao longo do suor gelado
dos meus flancos, apertavam-me devagar a cabeça contra o teuombro redondo,
e eu tinha a certeza, Sofia, que sorrias no escuro o calado e misteriosoriso
das mulheres quando os homens se tornam de súbito meninos e se lhes entregamcomo
filhos desprotegidos e frágeis, exaustos de lutarem dentro de si mesmos contra
oque de si mesmos os revolta.

A tua casa, Sofia, cheirava a vivo, a coisa viva e alegre como o teu risorepentino,
a coisa quente e saudável e delicada e invencível, e a mim, que vinha doquartel
e do desesperado azedume dos oficiais fartos de matar e ver morrer, torcidos,como
eu, pelas dolorosas cólicas da saudade e do medo, sabia-me à infância estarcontigo,
sabia-me às unhas suaves da Gija nos meus rins, ao meu avô que se debruçavapara
o meu sono e me deixava na têmpora a violeta de um beijo, sabia-me ao modocomo
a minha tia Madalena me dizia Meu filho e me tocava o cabelo, eu que passava
otempo no meu quarto, desdenhosamente só, a fitar de quando em quando a figueira
doquintal e a estremecer nas tripas os cogumelos de febre de um lancinante
isolamentointerior.

Porque sempre estive isolado, Sofia, durante a escola, o liceu, a faculdade,
ohospital, o casamento, isolado com os meus livros por demais lidos e os meus
poemaspretensiosos e vulgares, a ânsia de escrever e o torturante pânico de
não ser capaz, denão lograr traduzir em palavras o que me apetecia berrar
aos ouvidos dos outros e queera Estou aqui, Reparem em mim que estou aqui,
Ouçam-me até no meu silêncio ecompreendam, mas não se pode compreender, Sofia,
o que se não diz, as pessoas olham,não entendem, vão-se embora, conversam
umas com as outras longe de nós, esquecidasde nós, e sentimo-nos como as praias
em outubro, desabitadas de pés, que o mar assaltae deixa no balançar inerte
de um braço desmaiado. Sempre estive sozinho, Sofia,mesmo na guerra, sobretudo
na guerra, porque a camaradagem da guerra é umacamaradagem de generosidade
falsa, feita de um inevitável destino comum que se sofreem conjunto sem de
fato se partilhar, estendidos no mesmo abrigo enquanto osmorteiros estouram
como os ventres repletos de ferro ferido dos cancerosos nasenfermarias do
hospital, apontando ao teto narizes agudos de pássaros que apodrecem,sozinho,
mesmo na missão abandonada, sentado com o tenente no banco traseiro do jipesob
as acácias, a escutar os insetos e os pássaros e o ensurdecedor silêncio de
África,sozinho na enfermaria no meio dos feridos que gemiam, e choravam, e
chamavam pormim noite a fio, dobrados pelo medo e pelas dores. Que imbecil
aquela guerra, Sofia,digo-te eu aqui acocorado no sanitário diante do espelho
que implacavelmente meenvelhece, sob esta luz de aquário e estes azulejos
vidrados, estes metais, estes frascos,estas louças sem arestas, que imbecil
aquela guerra numa África miraculosa e ardente onde apetecia nascer com o
girassol, o arroz, o algodão e as crianças surdem numímpeto de gêiser, fumegante
e triunfal.

Por que é que as mulheres negras, Sofia, permanecem silenciosas enquantoparem,
silenciosas e serenas nas esteiras à medida que a cabeça de um filho rompedevagar
do intervalo das coxas, ganha forma, se solta, um ombro se desembaraça daprega
do útero que o prende, o tronco desliza para fora da vagina como o pênis a
seguirao coito, num único movimento implacável e liso, sem dor, apenas a doce
separação deduas vidas, o simples afastamento de dois corpos que nunca mais
se juntarão, tal comonós, Sofia, nos perdemos, quando cheguei à tua casa e
a porta não se abriu, raspei amadeira com as unhas, rondei o adobe à escuta
e uma mudez vazia me respondeu,nenhuma respiração, nenhum cacarejo suave de
galinhas no seu sono me chegou pelasfrinchas, pelos intervalos do barro, pelas
madeixas escovadas do capim do teto, tornei araspar a madeira e a velha de
cachimbo na boca descerrou o postigo, deslizou para mimum soslaio mineral,
o pano ondulava um pouco em torno do seu ventre murcho,aproximei-me dela,
espreitei para dentro, o pavio iluminava a cama deserta, as pregas decalcário
dos lençóis, as latas oxidadas na prateleira, o horrível côncavo da ausência.
Avelha retirou o cachimbo da boca como quem descola a custo um selo de um
envelope,cuspiu para as minhas coxas um escarro escuro como nuvem de chuva,
os lábiosrodeavam-se de pregas concêntricas de ânus, o cachimbo aceso formou
uma volutatrêmula no ar, e a velha disse:

– Sô pide levou.

Era tua mãe ou tua avó, e não havia nenhum sentimento aparente de desgosto
oualarme no seu tom, ou, se havia, não atentei nele, pasmado como fiquei por
a ouvirfalar, como teria ficado se uma cadeira ou uma mesa recitasse de súbito,
em voz cava,um dos sonetos de Antero do meu pai.

No dia seguinte, a caminho do hospital civil, passei pelo quartel da PIDE
ondeos prisioneiros sachavam a lavra dos agentes sob a vigilância feroz de
um carcereiroarmado, encostado à sombra da casa como uma hiena retesa antes
do salto, pastoreandohomens e mulheres magros, quase nus, de cabeça raspada,
inchados de pontapés ebofetões, inclinando-se para a terra em gestos moles
de cadáveres adiados. Passei peloquartel da PIDE, Sofia, entrei o portão a
estremecer de medo e nojo, e perguntei por tiao chefe de brigada que junto
ao Land-Rover dava instruções a duas criaturas pálidas,de pistola à cinta,
a tomarem notas aplicadas em blocos de argolas de estudantes deliceu. O cabrão
escorregou risos contentes de frade diante de um banquete de galhetas:

– Era boa, hã? Estava feita com os turras. Comissária, entendes? Demos-lhe
umageral para mudar o óleo à rapaziada, e, a seguir, o bilhete para Luanda.

Tenho que voltar lá para dentro, Sofia. É quase manhã e o uísque evapora-se
nasparedes do meu corpo como um hálito embaciado num vidro, deixando-me aestrebuchar,
aflito, contra a desencantada lucidez da madrugada, em que o vento dosanos
devolutos sopra, pelo nariz exausto, o seu rumor transparente de tristeza.
A árvoredo meu sangue desdobra os transidos ramos incontáveis pelos membros
fora,espalhando-me na pele um nevoeiro tão melancólico como o da cidade em
novembro, aminha gasta e humilde cidade que acorda, casa a casa, para um quotidiano
de notário. Esaio deste aquário de azulejos como saí do quartel da PIDE, em
que os prisioneirossachavam a lavra dos agentes inclinando-se para a terra
em curtos gestos moles decadáveres, sem a coragem de um grito de indignação
ou de revolta, a acabar de cumpriresta noite como outrora cumpri, sem protestar,
vinte e sete meses de escravidãosangrenta, saio para o corredor, Sofia, apago
a luz, e recomeço a sorrir a gargalhadafradesca, filha-da-puta, desprovida
de júbilo, do chefe de brigada junto ao Land-Rover,descerrando os dentes enormes
numa satisfação de hiena. Porque foi nisto que me transformei, que me transformaram,
Sofia: uma criatura envelhecida e cínica a rir de siprópria e dos outros o
riso invejoso, azedo, cruel dos defuntos, o riso sádico e mudo dosdefuntos,
o repulsivo riso gorduroso dos defuntos, e a apodrecer por dentro, à luz douísque,
como apodrecem os retratos nos álbuns, magoadamente, dissolvendo-sedevagarinho
numa confusão de bigodes.

T

Não, a sério, espere, deixe-me desapertar-lhe o soutien. Apaga-se uma das
luzes namesa de cabeceira, um pudico véu de penumbra desce sobre os lençóis
como no rostodas graves senhoras desconhecidas das visitas de pêsames da minha
infância, instaladasem torno de um bule de prata para chás solenes, roçando
de leve os pratos de biscoitoscom as luvas de camurça. Eu descalço as peúgas
sentado na cama, você luta com ofecho eclair das calças numa impaciência de
taxista diante do sinal vermelho, e pode serque pairem, com um pouco de sorte,
neste quarto, doces atmosferas conjugais feitas deuma teia de hábitos comuns
pacientemente conquistados. Mas deixe-me desapertar-lheo soutien: adoro estes
fechos pequeninos, complicados, que se abrem sempre aocontrário do que de
início se pensa, e os seios que por fim me deixam na mão o seuinvólucro de
pano, como as cobras dependuram nos arbustos as peles abandonadas. Járeparou
que os seios nascem como luas dos vestidos, redondos, brancos, macios,opalinos,
de uma morna claridade interior de veias e de leite, erguendo-se sobre a cidadedeitada
do meu corpo num vagar triunfal? Gosto de ver os seios surgirem-me do flanco,subirem,
indiferentes, à altura trêmula e sequiosa dos meus beijos, cobrir com a nuvemdo
braço a sua suavidade calma, debruçar-me para a auréola dos mamilos em cuidadosdesajeitados
de astronauta, pousar a testa no côncavo intervalo que os separa, e sentirdentro
de mim, de olhos fechados, a funda tranquilidade de um mar finalmente emrepouso,
tocado de leve pelo halo indeciso de um peito que amanhece.

Estendido ao seu lado, junto ao seu perfil nu e imóvel de defunta, das coxasderramadas
nos lençóis, do bosquezinho tocante, geométrico e frágil do púbis, dos pelosarruivados
do púbis que a lâmpada torna nítidos e precisos como os ramos dos chouposno
crepúsculo, vem-me à ideia o soldado de Mangando que se instalou de costas
nobeliche, encostou a arma ao pescoço, disse Boa noite, e a metade inferior
da caradesapareceu num estrondo horrível, o queixo, a boca, o nariz, a orelha
esquerda,pedaços de cartilagem e de ossos e de sangue cravaram-se no zinco
do teto tal as pedrasse incrustam nos anéis, e agonizou quatro horas no posto
de socorros, estrebuchando apesar das sucessivas injeções de morfina, a borbulhar
um líquido pegajoso pelo buracoesbeiçado da garganta.

Eu estava sentado no jango de Marimba, a olhar a noite e os insetos fantásticosque
habitam o denso escuro de África e que as trevas incansavelmente segregam
eexpulsam, no jango de Marimba pegado à casa da professora cujas ancas estreitas
sedissolviam em dolorosas menstruações intermináveis. As varetas de guarda-chuva
dosmorcegos rodopiavam como papéis ao vento sob a muralha imensa das mangueiras,
aBaixa do Cassanje era um Alentejo enevoado de entusiasmo ardente, da furiosa
alegriade Angola onde até o sofrimento e a morte adquirem triunfais ressonâncias
de vitória,quando me vieram do rádio avisar do tiro, Um tipo deu um tiro em
Mangando, o furrielenfermeiro empurrou as seringas e os ferros para um saco,
a escolta esperava já por nósperto da messe de sargentos, partimos aos saltos
para o norte, a acordar os mochos quedormiam, de cócoras, na picada e agitavam
as asas defronte dos faróis como osafogados esbracejam, cerca da praia, a
aflição desordenada das penas.

Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo, eis os pontos cardeais da minhaangústia:
Bimbe e Caputo eram sanzalas fechadas na mata, policiadas por milícias e GE,espiadas
pelos informantes da PIDE e pelos brancos da OPVDCA, espécie de chuislaicos,
fardados como os caçadores de hipopótamos e elefantes dos livros de gravuras
daminha infância, livros do sótão do tio Elói com homens de botas altas e
espingarda dedois canos risonhamente instalados sobre os enormes pedregulhos
cinzentos dosanimais inertes. Da janela do sótão avistava-se a prisão de Monsanto,
que eu supunharepleta de criaturas simiescas, de barba por fazer, a abanarem
as grades de olhosalucinados e cintilantes, e cuja respiração julgava escutar,
colada ao meu ouvido, seacordava a meio da noite, e me paralisava de terror.
O tio Elói dava corda aos relógiosda parede, bebia-se anis del mono por cálices
de vidro azul, uma doce paz intemporaldescia do aparador, como do rosto de
uma pessoa que se ama. O tio Elói, pensava euaos saltos na picada a caminho
de Mangando, as tardes de Benfica no verão, pesadascomo frutos rumorosos de
luz, a voz de Chaby Pinheiro no gramofone de campânula, arouquejar versos
entre estalos e silvos, em que fundo de mim deixei que essa inocênciase perdesse?
Os faróis do carro arrancavam as árvores do escuro puxando-asviolentamente
para si, a chuva cavara desníveis enormes na estrada improvisada, emBimbe
e Caputo sobas fantoches, impostos pelo governo, fechavam-se receosos naproteção
dos quimbos, encostados aos panos do Congo das mulheres. Os fascistasfizeram
grandes erros em África, porque o fascismo felizmente é estúpido,suficientemente
estúpido e cruel para se devorar a si mesmo, e um deles foi substituir oschefes
de sangue, os nobres, altivos e indomáveis chefes de sangue, por sobas falsos,que
o povo escarnecia e desprezava, fingia venerar diante dos brancos satisfeitos
masdesprezava em segredo, continuava a obedecer às autoridades verdadeiras
ocultas namata, o soba Caputo, por exemplo, agarrou na imagem de madeira do
deus Zumbi,desapareceu na noite, e a sua gente, perplexa, contemplava o nicho
vazio numaconsternação aflita, recebia as instruções dos tambores que latiam
na treva as suasenormes têmporas reboantes de ecos.

Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo: em Mangando eMarimbanguengo a tropa
estacionada tiritava de paludismo e aflição, soldados seminuscambaleavam no
calor insuportável da caserna, que o relento do suor e dos corpos porlavar
entontecia como os hábitos nauseabundos dos cadáveres, se nos inclinamos paraeles
à espera das tristes palavras apodrecidas que os mortos legam aos vivos numborbulhar
de sílabas informes. Em Mangando e Marimbanguengo, vi a miséria e amaldade
da guerra, a inutilidade da guerra nos olhos de pássaros feridos dos militares,no
seu desencorajamento e no seu abandono, o alferes em calções espojado pela
mesa,cães vadios a lamberem restos na parada, a bandeira pendente do seu mastro
idêntica aum pênis sem força, vi homens de vinte anos sentados à sombra, em
silêncio, como osvelhos nos parques, e disse ao furriel enfermeiro, que desinfetava
o joelho com tintura,É impossível que um dia destes não tenhamos por aqui
uma merdósia qualquer, porque,sabe como é, quando homens de vinte anos se
sentam assim à sombra, num tãocompleto desamparo, algo de inesperado, e estranho,
e trágico acontece sempre, até queme vieram informar do rádio Um tipo deu
um tiro em Mangando, e eu corri para o carroonde a escolta me aguardava a
aprontar-se ainda, e seguimos aos saltos para o norte pelapicada que a chuva
destruíra.

É esquisito falr-lhe disto enquanto lhe toco os seios, lhe percorro o ventre,procuro
com os dedos a junção úmida das coxas onde realmente tudo começa, porquefoi
das pernas da minha mãe que divisei pela primeira vez, com órbitas recentes
comomoedas novas, o universo ciciado e estranho dos adultos, a sua inquietação
e a suapressa. É esquisito falar-lhe disto em Lisboa, neste quarto forrado
de papel de flores que uma namorada escolheu antes de se evaporar de mim,
se sumir da minha vida tãorepentina e obliquamente como veio e me deixar nas
tripas uma espécie de ferida queainda me dói quando lhe toco, neste quarto
de onde se vê o rio, as luzes de Almada e doBarreiro, o grosso azul fosforescente
da água. Tão esquisito, entende, que me perguntoàs vezes se a guerra acabou
de fato ou continua ainda, algures em mim, com os seusnojentos odores de suor,
e de pólvora, e de sangue, os seus corpos desarticulados, osseus caixões que
me aguardam. Penso que quando eu morrer a África colonial voltaráao meu encontro,
e procurarei em vão, no nicho do deus Zumbi, os olhos de madeiraque não há,
que verei de novo o quartel de Mangando a dissolver-se no calor, os negrosda
sanzala ao longe, a manga da pista de aviação acenando escarninhamente para
ninguém. De novo será noite e apear-me-ei do unimogue a caminho do posto desocorros,
onde o tipo sem rosto agoniza, aclarado pelo petromax que um cabo segura àaltura
da cabeça e contra o qual os insetos de desfazem num ruidozinho quitinoso
detorresmos.

O tipo sem rosto agoniza numa agitação incontrolável, amarrado à marquesa
deferro que oscila, e vibra, e parece desfazer-se a cada um dos seus sacões,
gemendo pelalepra de ferrugem das juntas. Ventas curiosas espreitam das janelas,
um pequeno cachoacumula-se à porta para assistir, fascinado e em pânico, ao
sangue e à saliva queborbulham pela garganta inexistente, aos sons indefiníveis
que o que sobeja de narizemite, aos olhos que a pólvora rebentou como ovos
cozidos que explodissem. Asampolas de morfina sucessivamente injetadas no
deltoide parecem esporear cada vezmais o corpo amarrado que se rebola e torce,
e o petromax multiplica nas paredes emsombras que confluem, se sobrepõem e
se afastam, formando uma dança frenética demanchas na geometria suja do estuque.
Apetece-me abrir a porta de golpe, abandoná-lo,sair dali, tropeçar ao acaso,
cá fora, nos cães do quartel e nos miúdos espantados que senos enrodilham
nas pernas, respirar o algodão úmido do ar de África, sentar-me nosdegraus
de uma velha casa de colono, de mão no queixo, vazio de indignação, deremorso,
de piedade, a lembrar as íris de capim da minha filha nos retratos que deLisboa,
pelo correio, me mandam, e imaginar-me a vigiar-lhe o sono, dobrado para ospanos
do seu berço num desvelo comovido. Os gritos de Mangando enchem a noite deruídos,
um dilatado e grave som contínuo sobe da terra e canta, as árvores, os arbustos,a
miraculosa flora de África solta-se do chão e flutua, livre, na atmosfera
espessa devibrações e de cicios, o tipo amarrado à marquesa agoniza a um metro
de mim à laia dasrãs crucificadas nas pranchetas de cortiça do liceu, introduzo-lhe
ampola após ampolanos músculos do braço, e queria estar a treze mil quilômetros
dali, a vigiar o sono daminha filha nos panos do seu berço, queria não ter
nascido para assistir àquilo, à idiota ecolossal inutilidade daquilo, queria
achar-me em Paris a fazer revoluções no café, ou adoutorar-me em Londres e
a falar do meu país com a ironia horrivelmente provincianado Eça, falar na
choldra do meu país para amigos ingleses, franceses, suíços,portugueses, que
não tinham experimentado no sangue o vivo e pungente medo demorrer, que nunca
viram cadáveres destroçados por minas ou por balas. O capitão deóculos moles
repetia na minha cabeça A revolução faz-se por dentro, e eu olhava osoldado
sem cara a reprimir os vômitos que me cresciam na barriga, e apetecia-meestudar
Economia, ou Sociologia, ou a puta que o pariu em Vincennes, aguardartranquilamente,
desdenhando a minha terra, que os assassinados a libertassem, que oschacinados
de Angola expulsassem a escória covarde que escravizava a minha terra, eregressar,
então competente, grave, sábio, social-democrata, sardônico, transportando
namala dos livros a esperteza fácil da última verdade de papel.

Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo: o sujeito imobilizou-se por fimnum
estremeção derradeiro, o que restava da garganta cessou o seu borbulho ansioso,
o cabo do petromax deixou pender o braço e as sombras estenderam-se no soalho
numavergonha de cachorros, subitamente imóveis. Ficamos muito tempo a contemplar
ocadáver agora em sossego, as mãos molemente cavadas sobre as coxas, as botas
que seme afiguravam dilatadas de um recheio de palha, quietas na placa de
ferro branco, malpintada, da marquesa. Os que espreitavam pela janela sumiram-se
dos caixilhos nadireção da caserna, o pequeno grupo apinhado dissolveu-se
devagar num murmúrioindistinto, e eu, sabe como é, dava o cu para estar longe
dali, longe do gajo morto quemudamente me acusava, longe das ampolas de morfina
que se amontoavam, vazias, nobalde de pensos, no meio da gaze, do algodão,
das compressas, estar em Paris a explicarno café como se combate o fascismo,
estar em Londres a catequizar de Marcuse aspernas de uma inglesa deslumbrada,
estar em Benfica a tocar de leve, com o dedo, atesta da minha filha que dormia,
a ler Salinger diante das cortinas abertas para a figueirado quintal, onde
a noite se enredava como as minhas mãos desajeitadas enredavam asmeadas de
lã das minhas tias.

Não. Ainda não. Deixe-me abraçá-la devagar, sentir a sua pele de encontro
àminha, o flanco, a curva leve da cintura. Gosto do sabor da sua boca, de
tocar com alíngua a placa dos dentes que me garante uma maravilhosa perecibilidade,
de ver aspálpebras descerem quando os seus lábios se aproximam, de assistir
à morna entregainteira do seu corpo. Esta cama é uma ilha à deriva no mar
de prédios e telhados deLisboa, os nossos cabelos, as farripas das palmeiras
ao vento, as falanges que seprocuram, uma reptação ansiosa de raízes,. No
momento em que os seus joelhos seafastarem docemente, os cotovelos me apertarem
as costelas, e o seu púbis ruivodescerrar as pétalas carnudas numa úmida entrega
de vulvas quentes e macias,penetrarei em si, percebe, como um cachorro humilde
e sarnento num vão de escadapara tentar dormir, procurando um aconchego impossível
na madeira dura dos degraus,porque o tipo de Mangando e todos os tipos de
Mangando e Marimbanguengo e Cessa eMussuma e Ninda e Chiúme se erguerão no
interior de mim nos seus caixões dechumbo, envolto em ligaduras sangrentas
que esvoaçam, exigindo-me, nos resignadoslamentos dos mortos, o que por medo
lhes não dei: o grito de revolta que esperavam demim e a insubmissão contra
os senhores da guerra de Lisboa, os que no quartel doCarmo se cagavam e choravam
vergonhosamente, tontos de pânico, no dia da suamiserável derrota, perante
o mar em triunfo do povo, que arrastava, no seu impetuosocanto, como o Tejo,
as árvores magras do Largo. Os tipos de Marimba que recusaram orefeitório
e o rancho do jantar e permaneceram formados na parada, com o cabo maisantigo
ao lado, um homem louro, sério, sem palavras, em sentido na parada, até o
oficialde serviço, à minha frente, o desfazer de tareia com a pistola, o cabo
caía, levantava-se,punha-se de novo em sentido, sangrava pelo nariz, pelos
sobrolhos, pela boca, acompanhia, formada, olhava fixamente para diante, o
oficial pontapeava o corpo degatas que buscava alcançar a boina para a colocar
ainda na cabeça, e que repetia Meualferes meu alferes meu alferes numa indestrutível
teimosia paciente, e por fim acompanhia marchou lentamente para o refeitório
e aceitou a lavadura do rancho. Nãoera o rancho que estava em causa, percebe,
todos comíamos o mesmo alimento turvo,quase podre, que as crianças da sanzala,
munidas de latas ferrugentas, desejavam comgrandes órbitas côncavas de fome
penduradas suplicantemente do arame, era a guerra, acabronice da guerra, os
calendários imóveis em intermináveis dias, fundos com ostristes e suaves sorrisos
das mulheres sozinhas, eram as silhuetas dos camaradasassassinados que rondavam
as casernas à noite conversando conosco na pálida vozamarela dos defuntos,
fitando-nos com as pupilas magoadas e acusadoras dosesqueléticos cães vadios
do quartel. Os soldados acreditavam em mim, viam-metrabalhar na enfermaria
os seus corpos esquartejados pelas minas, viam-me à beira dos beliches se
tiritavam de paludismo nos lençóis desfeitos, de modo que, sabe como é, mecuidavam
um deles, pronto a encabeçar a sua zanga e o seu protesto, assistiram à minhaentrada
na caserna onde um homem se trancara brandindo uma catana e ameaçandomatar
toda a gente e a si próprio, e viram-me sair com ele, momentos depois, a soluçarno
meu ombro abandonos de bebê disforme, os soldados julgavam-me capaz de osacompanhar
e de lutar por eles, de me unir ao seu ingênuo ódio contra os senhores deLisboa
que disparavam sobre nós as balas envenenadas dos seus discursos patrióticos,
eassistiram enojados à minha passividade imóvel, aos meus braços pendentes,
à minhaausência de combatividade e de coragem, à minha pobre conformação de
prisioneiro.

Espere mais um pouco, deixe-me abraçá-la devagar, sentir o latir das suas
veiasno meu ventre, o crescer de onda do desejo que se nos espalha pela pele
e canta, aspernas que pedalam nos lençóis, ansiosas, à espera. Deixe que o
quarto se povoe detênues sons de gemidos em busca de uma boca onde ancorar.
Deixe que eu volte deÁfrica para aqui e me sinta feliz, quase feliz, acariciando-lhe
as nádegas, o dorso, ointerior fresco e macio das pernas, ao mesmo tempo rijo
e tenro como um fruto. Deixeque eu esqueça, olhando-a bem, o que não consigo
esquecer, a violência assassina naterra prenhe de África, e tome-me dentro
de você quando do redondo das minhaspupilas espantadas, enodoadas da vontade
de si de que sou feito agora, surgirem asórbitas côncavas de fome das crianças
da sanzala, penduradas do arame, a estenderempara os seus seios brancos, na
manhã de Lisboa, as latas ferrugentas.

U

Gostou? Assim, assim? Desculpe, não estou em forma hoje, sinto-me azelha,
alheado,não domino o meu corpo, o uísque inquina-me o hálito de um relento
de urina, adolorosa consciência das minhas insuficiências preocupa-me. Durante
muitos anospensei em inscrever-me num desses cursos de que nos enviam os prospectosdesdobráveis
pelo correio, e que em quinze dias nos transformam em hércules eficazes,bem
penteados, bem barbeados, nodosos de músculos, cercados por uma nuvemadmirativa
de raparigas maravilhadas:

Em sua casa, sem aparelhos, com dez minutos de exercício apenas, torne-se
um homem;
Ganhe a confiança dos seus chefes e o amor das mulheres graças ao Método
Culturista Sansão;
Cresça treze centímetros sem palmilhas com a técnica de prolongar as Tíbias
Gulliver;
A Loção Azeviche fará o seu cabelo recuperar a cor natural, brilhante, sedoso
e macio com uma única aplicação;
É ansioso? Vive triste? O Magnetismo Astral, em cinco lições, dar-lhe-á
confiança no futuro;
Perca o seu ventre incomodativo pedalando a domicílio com a bicicleta abdominal;
Não consegue arranjar emprego? Combata a calvície com o óleo biológico Hirsutex
(rico em algas canadianas) e todas as portas se lhe abrirão;
Se não se despe na praia por ter vergonha dos seus ombros estreitos solicitenas
boas casas da especialidade o folheto explicativo “conquistei minha
esposagraças ao Claviculone Eletrônico”;
Mau hálito? Experimente o spray norueguês Cebolov (à base de casca decebola
e essência de alho) e os seus amigos aproximar-se-ão, fascinados, dassuas
palavras;
É gago? A Psicanálise Parapsicológica do Professor Azeredo conferirlhe-á
a fluência elegante de um locutor de televisão.

Não, ouça, só estou a ironizar em parte, sobretudo para disfarçar a humilhaçãodo
meu fracasso e a desilusão que atravessa de leve o seu silêncio, como as sombras
quecruzam, de quando em quando, o alegre sorriso da minha filha mais nova,
e me tocamno fundo das tripas a gota de ácido de um remorso ou de uma dúvida.
Quereriadesesperadamente ser outro, sabe, alguém que se pudesse amar sem vergonha
e de queos meus irmãos se orgulhassem, de que eu próprio me orgulhasse ao
observar noespelho da barbearia ou do alfaiate o sorriso contente, o cabelo
louro, as costas direitas,os músculos óbvios sob a roupa, o sentido de humor
à prova de bala e a inteligênciaprática. Irrita-me este invólucro inábil e
feio que é o meu, as frases enroladas nagarganta, a falta de lugar para as
minhas mãos defronte das pessoas que não conheço eme amedrontam. Irrita-me
o receio que tenho de si, de lhe desagradar, de não conseguirque o seu corpo
se erga, em ondas, do lençol, ao mesmo tempo vitorioso e vencido, queo seu
peito estremeça de prazer como uma enorme vaga antes de rebentar, que a suaboca
me fale, no instante do orgasmo, a linguagem gasosa dos anjos, em que flutuam
àderiva beijos em latim. Consinta-me que tente outra vez, dê outra oportunidade
à minhaaflição sem esperança, porque desisti de a seduzir, de a fazer render-se
às minhasproezas ou ao meu encanto, de a conceber a procurar o meu nome na
lista dos telefones,para me pedir, no sábado, para jantar consigo, e ficar
fitando-me, esquecida do rosbife edo tempo, num maravilhamento de descoberta.
Uma oportunidade, não por si, não pornós, mas por mim: seja um pouco o CLAVICULONE
ELETRÔNICO da alma, ajude aque me cresçam vigorosos ombros de esperança das
omoplatas finas do desânimo, e queo meu tronco, de repente triangular, erga
num júbilo fácil o homenzinho derrotado quesou. Transporte-me como uma Pietà
hercúlea o seu Cristo exausto, como eu transporteiao colo, há muitos anos,
o negro a quem os crocodilos do rio Cambo haviam devorado aperna esquerda,
e que gemia docemente, tal os filhos das hienas nos ninhos apodrecidos,rodeados
de excrementos e de ossos espumosos de gazela.

Eu odiava o rio Cambo, o rio dos jacarés e das jiboias, porque das suas águaslentas
nasciam, na época das chuvas, as trovoadas que avançavam, em rolos escuros,sobre
o quartel, rebolando pelas escadas do ar abaixo os enormes planos das nuvens.Durante
as trovoadas, no Cassanje, as pessoas juntavam-se sob os mesmos telhados dezinco
a tiritar de pavor, enquanto um odor de fósforo e de enxofre flutuava no ozonosaturado
do ar, madeixas de chispas prolongavam os nossos cabelos rígidos e azuis,
asárvores amoleciam humildemente à chuva, amedrontadas, as altivas árvores
de Angolaapequenavam-se, receosas, à chuva, e nós olhávamos uns para os outros
enquanto osrelâmpagos caíam, e nos iluminavam de viés o rosto do seu magnésio
instantâneo defotografia, revelando, sob a pele, a textura trágica dos malares.
Na margem do rioCambo, junto à jangada, vi uma jiboia morrer com uma cabra
na garganta, torcendo-sena relva como os doentes de enfarte se torciam nos
bancos de hospital, implorando entresoluços que os matassem, tentando arrancar
do peito, com os dedos, as veias quevibravam à maneira de cordas tensas de
guitarra. Vi as órbitas dos crocodilos à derivana corrente, pensativas e atentas
como as de uma rapariga à escuta, a pestanejarem aironia mineral de certos
bustos de Voltaire, sob cuja aparente simplicidade cintila odesdém carnívoro
dos homens. E vi uma cubata, onde um raio tombara, enegrecidacomo a pálpebra
fatal de uma dançarina de flamengo, e lá dentro, sentada na esteira, uma mulher
imóvel, cercada do halo de claridade verde que emana das Senhoras deFátima
de plástico e dos ponteiros dos despertadores.

Eu odiava o rio Cambo e os arbustos decompostos que lhe limitavam o curso,
osedifícios abandonados, de varanda de colunas, perdidos no capim, e de cujos
sobradosem ruína os lagartos e os ratos nos espiavam com rancor. Odiávamos
o rio em quetristes deuses de pau se chamavam com vozes guturais repletas
de apelos e ameaças, orio em que as lavadeiras esfregavam na pedra limosa
a nossa roupa militar, seguidaspela fome suspensa dos soldados, masturbando-se,
de joelhos na terra, junto da armaque esqueciam. Trazíamos vinte e cinco meses
de guerra nas tripas, vinte e cinco mesesde comer merda, e beber merda, e
lutar por merda, e adoecer por merda, e cair pormerda, nas tripas, vinte e
cinco intermináveis meses dolorosos e ridículos nas tripas, detal jeito ridículos
que, por vezes, à noite, no jango de Marimba, desatávamos de súbito arir,
na cara uns dos outros, gargalhadas impossíveis de estancar, observávamos
asfeições uns dos outros e a troça escorria-nos em lágrimas de piedade, e
de escárnio, e deraiva, pelas bochechas magras, até que o capitão, com a boquilha
sem cigarro entaladanos dentes, se sentava no jipe e principiava a buzinar,
espantando os morcegos dasmangueiras e os insetos fantásticos de Angola, e
nos calávamos como as crianças secalam a meio do seu choro, olhando as trevas
em torno numa surpresa imensa.

Trazíamos vinte e cinco meses de guerra nas tripas, de violência insensata
eimbecil nas tripas, de modo que nos divertíamos mordendo-nos como os animais
semordem nos seus jogos, nos ameaçávamos com as pistolas, nos insultávamos,furibundos,
numa raiva invejosa de cães, nos espojávamos, latindo, nos charcos dachuva,
misturávamos comprimidos para dormir no uísque da Manutenção, ecirculávamos
a cambalear pela parada, entoando em coro obscenidades de colégio. Diasantes,
três camaradas nossos haviam morrido num acidente de unimogue, uma árvoreinesperada
saiu da mata e plantou-se, vertical, ao centro da picada, diante da viatura
quelargara do comércio da Chiquita, a seguir a umas cervejas moles no balcão
das fazendas,e encontramos os corpos disseminados no capim, de crânio fraturado,
com as formigasvermelhas de África a treparem, obstinadas, pelos braços inertes.
Dias antes, os nossosúltimos companheiros assassinados partiram, embrulhados
em lonas, para as urnas deMalanje, que exalavam um odor repugnante e fétido
apesar do chumbo soldado e damadeira, e os rostos defuntos deles, estendidos
lado a lado no armazém de gêneros doquartel, tinham adquirido uma serenidade
de paz sem sobressaltos, a amável indiferençadistraída dos jovens que me esquecera
que eram, envelhecidos por um sofrimento semrazão. Invejei-os, percebe, entre
os sacos de batata e de farinha, as garrafas derefrigerante, os volumes de
tabaco, a enorme balança que se aparentava a um aparelhode tortura medieval,
invejei a sua tranquilidade vazia de medo e a esperança baça que seescapava,
vaga, das pálpebras mal cerradas, invejei o voltarem a Lisboa primeiro do
queeu, com a tatuagem de uma flor de sangue seco na testa.

Escute. Vai começar a amanhecer, o ladrar dos cães nas quintas longe mudouligeiramente
de tonalidade, adquiriu o eco lívido e pálido da aurora. Pelas frestas daspersianas
o dia incha, dolorido e pesado como um furúnculo, abrigando dentro de si umpus
de relógios e cansaço. Nos cigarros que acendemos há algo do incenso que paira
nasigrejas depois das cerimônias acabadas, entre os dedos agudos das velas
e a bondadepintada das imagens, as barbas dissolvidas na fuligem do tempo
dos painéis dos santos.Vai começar a amanhecer e todos os candeeiros se tornarão
inúteis, o sol exibirá sempiedade os nossos corpos deitados, as rugas, as
pregas tristes da boca, o cabeloemaranhado, os restos de pintura e de creme
na almofada. Como um campo de batalha,sabe como é, juncado da desordem já
nem patética dos cadáveres, uma simplesdesarrumação de sótão em que os móveis
fossem corpos decepados e risíveis. A energia musculosa do dia empurra-nos,
como às corujas, para as derradeiras pregas de sombra,onde agitamos as penas
úmidas numa ansiedade inquieta, encolhidos um contra o outroà procura da proteção
que não há. Porque ninguém nos salva, ninguém pode maissalvar-nos, nenhuma
companhia virá, de morteiro em punho, ao nosso encontro. Eis-nosirremediavelmente
sós no convés desta cama sem bússola, balançando pela alcatifa doquarto hesitações
de jangada. De certa forma continuaremos em Angola, você e eu,entende, e faço
amor consigo como na cubata da sanzala Macau da tia Teresa, negragorda, maternal
e sábia, recebendo-me na palha do colchão numa indulgência suave dematrona.
Os dedos dela arrepiam-me a espinha, o seu hálito grosso de peixe e de tabacodesce-me
o peito a caminho do pênis, que endurece, os seios enormes e escurosbalançam-me
adiante da boca, túrgidos do transparente leite da ternura. O pavio doazeite
aclara imagens piedosas, postais ilustrados colados na parede, os beiços peludosda
vulva que me roçam o ombro, idêntica às escovas dos barbeiros, adejando-me
nocasaco à espera da gorjeta, e eu sinto-me como os mortos do unimogue no
armazém degêneros, de flor de sangue na testa, tranquilos entre os sacos de
farinha e de batata, asgarrafas de refrigerante e os volumes de tabaco. Os
oficiais jogam o loto na casa novado administrador, a professora das menstruações
dança em torno da mesa da sala dejantar com o condutor da carreira, a pálida
alegria colonial tinge de tristeza cada gesto, ea tia Teresa fecha a porta
por dentro para que ninguém, percebe, nos incomode, edesabotoa-me a camisa
num vagar sapiente de ritual. O quimbo da tia Teresa, cercadopelo odor doce
dos pés de liamba e de tabaco, é talvez o único sítio que a guerra nãologrou
invadir do seu cheiro pestilento e cruel. Alastrou por Angola, a terra sacrificada
evermelha de Angola, alcançou Portugal a bordo dos barcos de militares queregressavam,
desorientados e tontos, de um inferno de pólvora, insinuou-se na minhahumilde
cidade que os senhores de Lisboa mascararam de falsas pompas de cartolina,encontrei-a
deitada no berço da minha filha como um gato, fitando-me com pupilas demaldade
oblíqua, a mirar-me dos lençóis com a turva raiva invejosa dos alferes nasmesas
de jogo, medindo com rancor, de pistola à cinta, as cartas do parceiro. A
guerrapropagou-se aos sorrisos das mulheres nos bares, sob as ampolas despolidas
doscandeeiros que lhes multiplicam de sombras a curva indagadora dos narizes,
turvou asbebidas de um gosto azedo de vingança, aguarda-nos no cinema, instalada
no nossolugar, vestida de preto como um notário viúvo a retirar do bolso do
casaco o estojo deplástico dos óculos. Está aqui, nesta casa vazia, nos roupeiros
desta casa vazia, grávidados fetos moles das minhas cuecas, no geométrico
espaço de trevas que as lâmpadas nãoalcançam nunca, está aqui e chama-me baixinho
com a pálida voz ferida dos camaradasassassinados nas picadas de Ninda e de
Chiúme, estende para mim os cotovelos brancose ossudos num abraço gasoso que
me agonia. Está em si, no seu perfil sarcásticodesprovido de amor, na obstinação
do seu silêncio e no mover mecânico das suas ancasdurante o coito, devorando
o meu pênis como um estômago digere, indiferente, oalimento que lhe oferecem,
recebendo os meus beijos na paciência vagamenteaborrecida das prostitutas
da minha infância, decrépitas bonecas insufláveis, ancoradasnas manchas de
esperma seco das colchas. Deito um centímetro mentolado de guerra naescova
de dentes matinal, e cuspo no lavatório a espuma verde-escura dos eucaliptos
deNinda, a minha barba é a floresta do Chalala a resistir ao napalm da gilete,
um granderumor de trópicos ensanguentados cresce-me das vísceras, que protestam.
Mas nacubata da tia Teresa, adocicada pelas folhas de liamba num vaso, as
folhas que ossoldados trouxeram de Angola, em caixas de pensos, para vender
aos jovens frágeis doRossio, aos jovens parecidos com aves doentes do Rossio,
coxeando em volta dosrepuxos num vagar tímido e perverso, na cubata da tia
Teresa, quando a porta setrancava à chave e os postigos se corriam para uma
intimidade de sacrário, a guerra circulava de mangueira em mangueira, trazendo
pela mão os seus heróis mortos e o seufalso patriotismo de estuque e gesso,
sem se atrever a entrar. Eu escutava, na palha docolchão, os seus passos aflitos
lá fora, sabia-a que espreitava pelas frinchas o meu corpoestreito e cansado,
calculava o seu furioso e mudo azedume de se sentir expulsa,desprezada pelo
pavio de azeite, pelas imagens piedosas e pelos postais colados naparede,
e sorria, de rosto na almofada, por me achar tranquilo, em paz e tranquilo
numpaís que ardia.

Escute. Vai começar a amanhecer, os despertadores do prédio em frenteempurrarão,
brutalmente, para fora do sono, as pessoas que dormem, extraindo-as doútero
lunar dos lençóis na direção de quotidianos sem alegria, de empregosmelancólicos,
dos rissóis de plástico das cantinas. O ladrar dos cães nas quintasassemelha-se
agora ao regougo dos encarregados nas fábricas, aos berros dos policiais,que
em 61, durante as greves universitárias, protegidos por uma espécie de viseiras,
nosperseguiam de cacetes e de gases. Dentro em breve o sol exibirá duramente
esta jangadade lençóis de náufragos, partilhando o último cigarro e o último
uísque numafraternidade de mendigos, sabe, de roupa espalhada ao acaso na
alcatifa, mendigos nus eindiferentes sob um arco de ponte, coçando-se com
as unhas sujas de dedos poeirentosdos pés. De modo que, se faz favor, chegue-se
para o meu lado da cama, fareje a minhacova do colchão, passe a mão no meu
cabelo como se tivesse por mim a suave esequiosa violência de uma ternura
verdadeira, expulse para o corredor o cheiropestilento, e odioso, e cruel
da guerra, e invente uma diáfana paz de infância para osnossos corpos devastados.

V

Conhece Malanje? Estava à espera da manhã para lhe falar de Malanje, da irrealidade
decrepúsculo polar que envolve os objetos e os rostos dessa espécie de halo
transparentepousado nas copas dos pinhais da Beira, da manhã, do silêncio
de mar suspenso, àescuta, a respirar de leve, da manhã, para lhe falar de
Malanje. Malanje, sabe como é, éhoje o monte de destroços e de ruínas em que
a guerra civil a tornou, uma terrairreconhecível pela estúpida violência inútil
das bombas, um campo raso de cadáveres,de costelas fumegantes de casas, e
de morte. Talvez que nesse tempo, quando passei porela de regresso ao meu
país, pudesse adivinhar os destroços e as ruínas sob o perfilintacto dos prédios,
as árvores do jardim, o café repleto de mulatos pretensiosos, cujosenormes
carros de luxo apoiavam no passeio os narizes de esqualo dos faróis. Talvezque
pudesse prever, sob a saúde aparente do sol, a sua morte próxima, tal como
certosdoentes nos revelam, por trás do sorriso alegre ou dos olhos carregados
de uma falsaesperança, o esgar, não de medo nem de nojo, mas de vergonha,
da agonia. A vergonhade estar deitado, a vergonha de não ter forças, a vergonha
de desaparecer em breve, daagonia, a vergonha perante os outros, os que dos
pés da cama nos olham no horroraliviado dos sobreviventes, inventam palavras
de um otimismo doloroso, conversam emvoz baixa com a enfermeira nos cantos
do quarto, que a janela ilumina em diagonal deum dia ilusório. Malanje, percebe,
é hoje o monte de destroços e de ruínas em que aguerra civil a tornou, uma
cidade devastada, desaparecida, um templo de Diana deparedes escuras e de
muros derrubados, mas em 73, no início de 73, era a terra dosdiamantes, dos
que enriqueciam e engordavam à custa do contrabando dos diamantes, àcusta
da camanga, do comércio furtivo das pedras: todas as pessoas traziam frasquinhosde
reagentes na algibeira, os negros, a população branca, a polícia, a PIDE,
os administrativos, os professores, a tropa, e à noite, na cintura suja das
sanzalas,comprava-se o minério a quem chegava do rio ou da fronteira com uma
cintilação devidro embrulhada em pedaços de pano, protegido pelas facas atentas
dos cúmplices.Sanzalas e casas de putas sob os eucaliptos, colchas de chita,
bonecas, mulheresenvelhecidas de dentes de prata, toca-discos entoando aos
berros os merenguescardíacos do Congo, e a felicidade por duzentos escudos
numa súbita gargalhada depreta jovem, recebendo-nos dentro de si numa alegria
de troça.

Malanje era o oficial pequeno, calvo, enrugado, parado à porta do liceu paraassistir
à saída das meninas das aulas, molhando o papel dos cigarros de um desejoporco
de velho, ou instalado a seguir ao jantar no passeio fronteiro à varanda da
messe,observando a vizinha impúbere, que levantava os pratos da mesa, com
órbitasprotuberantes, de animal empalhado. Vi-o no Chiúme abrir a braguilha
diante de umaprisioneira, obrigá-la a erguer uma das pernas colocando-a sobre
o bidê, e penetrá-la, deboina na cabeça, a soprar pelo nariz uma asma repelente
de bode. Entrei no banheirodos sargentos, na pocilga eternamente inundada
e nauseabunda a que se chamavabanheiro dos sargentos, vi o oficial abraçado,
numa espécie de desespero epilético, àprisioneira, criatura muda e tímida
encostada aos azulejos, de pupilas ocas, e por cimada cabeça deles, através
da janela, a chana abria-se num majestoso leque de verdesmatizados, em que
se adivinhava o brilho lento, ziquezagueante, quase metálico do rio,e a grande
paz de Angola no cacimbo, às cinco da tarde, refratada por sucessivascamadas
contraditórias da neblina. As nádegas do homem formavam um movimento deêmbolo
que se apressava, a camisa pegava-se às costas em ilhas imprecisas de suor,
oqueixo tremia como os dos reformados nos refeitórios dos asilos, as pupilas
ocas daprisioneira miravam-me numa fixidez insuportável, e apeteceu-me, entende,
tirartambém a minha pica para fora e urinar sobre eles, urinar demoradamente
sobre eles,como em pequeno mijava para os sapos do quintal, abrigados no meio
de dois troncosnuma aflição de pedras que respiram.

Mas não podíamos urinar sobre a guerra, sobre a vileza e a corrupção da guerra:era
a guerra que urinava sobre nós os seus estilhaços e os seus tiros, nos confinava
àestreiteza da angústia e nos tornava em tristes bichos rancorosos, violando
mulherescontra o frio branco e luzidio dos azulejos, ou nos fazia masturbar
à noite, na cama, àespera do ataque, pesados de resignação e de uísque, encolhidos
nos lençóis, à laia defetos espavoridos, a escutar os dedos gasosos do vento
nos eucaliptos, idênticos afalanges muito leves roçando por um piano de folhas
emudecidas. Não temos árvoresaqui: apenas o pó dos edifícios que se erguem,
em torno deste, segundo o mesmomodelo deprimentemente igual para bancários
melancólicos, as luzes do Areeiro lá emcima, azuladas e vagas como órbitas
de cães cegos, a Avenida Almirante Reis e as suaslojas fechadas sobre si próprias
à maneira dos punhos de uma criança que dorme: aspessoas acordam, afastam
as cortinas da janela, espreitam para fora, observam as ruascinzentas, os
automóveis cinzentos, as silhuetas cinzentas que cinzentamente sedeslocam,
sentem crescer dentro de si um desespero cinzento e deitam-se de novo,conformadas,
resmungando palavras cinzentas no seu sono que se espessa.

Já reparou que moro numa Pompeia de prédios em construção, de paredes, devigas,
de escombros que crescem, de guindastes abandonados, de montes de areia, e
demáquinas de cimento redondas como estômagos ferrugentos? Daqui a algumas
horas,operários de capacete principiarão a martelar estas ruínas empoleirados
em esboços decaixilhos, os maçaricos furarão o betão numa raiva teimosa, os
canalizadores abrirãoarbustos de artérias na carne enteiriçada das casas.
Vivo num mundo morto, semcheiros, de poeira e de pedra, onde o enfermeiro
da policlínica do primeiro andarpasseia, de bata, a barba surpreendida de
fauno, buscando ao seu redor, em vão, relvas fofas de margem. Vivo num mundo
de poeira, de pedra e de lixo, principalmente delixo, lixo das obras, lixo
das barracas clandestinas, lixo de papéis que virevolteiam e seperseguem,
ao longo dos tapumes, sarjetas fora, soprados por um hálito que não há, lixode
ciganos vestidos de preto, instalados nos desníveis da terra, numa espera
imemorialde apóstolos sabidos.

Queria falar-lhe de Malanje, agora que me portei mais ou menos, não éverdade?,
você gemeu mesmo, uma ou duas vezes, latidos de cadelinha contente,agitou-se
numa espécie de espasmo de coreia ou de desmaio, o seu rosto, de olhosfechados
e de boca aberta, assemelhou-se por instantes ao das velhas que comungavamnas
igrejas da minha infância, velhas de dentadura solta, arfando, de língua de
fora, pelocírculo branco da hóstia. Eu, menino de coro, acompanhava o padre
e contemplava,fascinado, o inacreditável comprimento das línguas das velhas
que se empurravam eacotovelavam, armadas de guarda-chuvas de cabo de osso
e de grandes terçossemelhantes a colares de atrizes, defronte do prior, de
taça na mão, resmungando arrotosmísticos pela ponta dos beiços. Queria falar-lhe
de Malanje, da cidade cercada de casasde putas e de eucaliptos, pátria da
camanga repleta de aventureiros palavrosos ouesquivos, tipos de pupilas cautelosas,
oblíquas, instalados de leve nas esplanadas doscafés. Queria falar-lhe da
miraculosa claridade de Malanje, da luz que se diria nascer dochão num júbilo
impetuoso, e violento, do bunker da PIDE e do quartel pretensiosoembaixo,
quartel de província, percebe, a cheirar a desinteresse e a sargento.

De Malanje a Luanda, quatrocentos quilômetros de estrada atravessavam osmorros
fantásticos de Salazar, aldeias à beira do alcatrão como verrugas no contorno
deum beiço, o fluir majestoso do Dondo em que se adivinha a presença do mar,
na demoradas suas ancas lentas de mulher de Pavia, e nos pássaros brancos
e pernaltas da baía deLuanda, a roçarem a água com os corpos de esferovite
fusiforme. Mas o importante, emMalanje, eram os minutos que precedem a aurora,
os minutos irreais, pungentes,absurdos que precedem a aurora, incolores e
distorcidos como os rostos da insônia oudo medo, a perspectiva deserta das
ruas, o silêncio transido das árvores e os seus braçosque parecem retrair-se,
hesitantes, magoados por um pânico sem razão. Antes damadrugada, sabe como
é, todas as cidades se inquietam, se enrugam de desconfortocomo as pálpebras
de um homem que não dormiu, espiam a claridade, o nascer indecisoda luz, se
arrepiam como pombos doentes num telhado, a estremecerem as penasnoturnas
no receio frágil e oco dos ossos. O primeiro sol, pálido, cor de laranja,
comoque pintado a lápis no céu de prata desbotada, encontra, ao surgir devagar
da confusãogeométrica das casas, praças pregueadas, avenidas encolhidas, travessas
sem espaço,sombras desprovidas de mistério refugiadas no interior das salas,
entre o brilho doscopos e os sorrisos dos mortos nas molduras, de bigodes
encurvados como assobrancelhas sarcásticas dos professores de Matemática,
depois do enunciado de umproblema de torneiras difícil. Todas as cidades se
inquietam, mas Malanje, percebe,dobrava-se a estremecer sobre si própria como
eu me debruço, na cama, para si,temeroso do dia que me aguarda, com o seu
peso insuportável de pedra no meu peito, ea cinza que se me acumula nas mãos
e deixo nos restaurantes ao lavá-las, antes doeterno bife sem gosto do almoço.
Queria pedir-lhe que não saísse daqui, meacompanhasse, ficasse comigo deitada
aguardando não só a manhã mas a próxima noite,e a outra noite, e a noite seguinte,
porque o isolamento e a solidão se me enrolam nastripas, no estômago, nos
braços, na garganta, me impedem de me mover e de falar, metornam num vegetal
agoniado incapaz de um grito ou de um gesto, à espera do sono quenão chega.
Fique comigo até que eu, finalmente, adormeça, me afaste de si numa dessasinexplicáveis
reptações frouxas com que os afogados oscilam nas vazantes, me estendade bruços,
de boca na almofada, babando na barriga da fronha palavras indistintas, me
afunde no poço pantanoso de uma espécie de morte, a ressonar o meu grosso
coma depastilhas e de álcool. Fique comigo agora que a manhã de Malanje incha
dentro de mim,vibra dentro de mim, invertida, agitações deformadas de reflexo,
e estou sozinho noasfalto da cidade, perto dos cafés e do jardim, possuído
de um insólito desejo semobjeto, indefinido e veemente, a pensar em Lisboa,
na Gija ou no mar, a pensar nascasas de putas sob os eucaliptos e nas suas
camas repletas de bonecas e naperons. Omedo de voltar ao meu país comprime-me
o esôfago, porque, entende, deixei de terlugar fosse onde fosse, estive longe
demais, tempo demais para tornar a pertencer aqui,a estes outonos de chuvas
e de missas, estes demorados invernos despolidos comolâmpadas fundidas, estes
rostos que reconheço mal sob as rugas desenhadas, que umcaracterizador irônico
inventou. Flutuo entre dois continentes que me repelem, nu deraízes, em busca
de um espaço branco onde ancorar, e que pode ser, por exemplo, acordilheira
estendida do seu corpo, um recôncavo, uma cova qualquer do seu corpo,para
deitar, sabe como é, a minha esperança envergonhada.

X

Não, palavra, ouça: agora que nos vamos separar, depois de combinarmos um
vagoencontro num vago restaurante de que nenhum de nós amanhã se lembrará,
que nos nãovoltaremos a ver senão no acaso fugitivo de um bar ou de um cinema,
com tempoapenas para um breve aceno e um sorriso, um desses sorrisos instantâneos,
sem afeto,que se abrem e se fecham, num brilho circular de dentes, à maneira
dos diafragmas dasmáquinas fotográficas, agora que você se vai vestir nos
gestos neutros e apressados dasmulheres a seguir à mesa do ginecologista,
apertando botões como quem se agrafa,posso confessar-lhe, de cotovelo apoiado
no colchão, junto ao cinzeiro a transbordar decinza e de pontas de cigarro,
de que sobe o odor repugnante de tabaco frio das coisasacabadas, que gosto
de si. A sério. Gosto da ironia atenta do seu silêncio, da gargalhadaque paira,
de quando em quando, sobre as feições em sossego, à laia de uma nuvemindecisa,
gosto das suas pulseiras exóticas, do luzir avaliador dos seus olhos, da raizelástica
das coxas que se fecham acima do meu corpo tal como a água cobre, num únicomovimento
sem rumor, o último aceno, já de alga, com que os afogados se dissolvemnuma
espumazinha sem peso. Gosto da noite à sua beira, lenta e pesada como uma
nucaadormecida, imaginar que você voltaria logo, com uma mala de roupa, a
fitar-me docapacho da entrada com as órbitas ao mesmo tempo agudas e turvas
da paixão, eficaríamos juntos nesta triste casa sem móveis, abraçados, a observar
o rio, onde asluzes se coalham em reflexos coloridos que pulsam, idênticas
a veias sob um dedo desombra. Inventávamos ementas esquisitas na cozinha,
misturávamos frascos, temperos ebeijos nos tachos ao lume, inundávamos as
salas de preguiçosos odores orientais, derevistas frívolas e de desenhos de
crianças, contávamos os cabelos brancos um do outrono inocente júbilo da velhice
esconjurada, você tirava-me os pontos pretos com asunhas, eu passava a minha
língua entre os dedos excitados dos seus pés, eadormeceríamos na alcatifa,
indiferentes à cama, às exigências do emprego, à tirania derobô do despertador,
se não felizes, percebe, pelo menos, como dizer?, alegrementesaciados.

Desculpe falar-lhe assim mas acho-me tão farto de me sentir sozinho, tão
fartoda trágica farsa ridícula da minha vida, do bife raspado do snack e da
diarista que merouba nas horas e no pó da máquina, que às vezes, sabe como
é, me vêm ganas deafastar de mim a aflita desordem de que enojadamente me
alimento, como certos bichos do lixo em que moram, e assobiar para o espelho
um contentamento sem mancha.Apetece-me vomitar no sanitário o desconforto
da morte diária que carrego comigocomo uma pedra de ácido no estômago, se
me ramifica nas veias e me desliza nosmembros num fluir oleado de terror,
tornar, penteado e saudável, à linha de partida ondeum círculo de rostos compassivos
e afáveis me espera, a família, os irmãos, os amigos,as filhas, os desconhecidos
que aguardam de mim o que, por timidez ou vaidade, lhesnão soube dar, e oferecer-lhes
a lucidez sem ressentimento e o calor desprovido decinismo de que até agora
nunca fui capaz. Apetece-me expulsar estes defuntos hirtosinstalados nas minhas
cadeiras numa expectativa pálida e tenaz, a minha mãe a passarindiferente
por mim a pensar noutra coisa, o meu pai a erguer da poltrona pupilas queme
atravessam sem me ver, os manos embrulhados nos seus esquisitos novelosinteriores
sem possível desmancho, expulsar os pianos verticais cobertos por panos dedamasco
cujos Chopins me enredam em melancolias de narciso, apetece-me a Isabel, arealidade
de Isabel, a realidade independente de mim da Isabel, os dentes da Isabel,
oriso da Isabel, os seios da Isabel em forma de focinho de gazela debaixo
da camisa dehomem, as suas mãos nas minhas nádegas durante o amor, e as pálpebras
que tremiam evibravam como espetadas por um alfinete cruel numa folha de almaço.

Pode apagar a luz: já não preciso dela. Quando penso na Isabel cesso de terreceio
do escuro, uma claridade ambarina reveste os objetos da serenidade cúmplice
dasmanhãs de julho, que se me afiguraram sempre disporem diante de mim, com
o seu solintantil, os materiais necessários para construir algo de inefavelmente
agradável que eunão lograria jamais elucidar. A Isabel que substituía aos
meus sonhos paralisados o seupragmatismo docemente implacável, consertavas
as fissuras da minha existência com orápido arame de duas ou três decisões
de que a simplicidade me assombrava, e depois,de súbito menina, se deitava
sobre mim, me segurava a cara com as mãos, e me pediaDeixa-me beijar-te, numa
vozinha minúscula cuja súplica me transtornava. Acho que aperdi como perco
tudo, que a sacudi de mim com o meu humor variável, as minhascóleras inesperadas,
as minhas exigências absurdas, esta angustiada sede de ternura querepele o
afeto, e permanece a latejar, dorida, no mudo apelo cheio de espinhos de umahostilidade
sem razão. E lembro-me, comovido e suspenso, da casa do Algarve rodeadade
ralos e figueiras, do céu morno da noite tingido pelo halo longínquo do mar,
da caldas paredes quase fosforescente no escuro, e da violenta e informulada
paixão dasminhas carícias que pareciam deter-se, irresolutas, a centímetros
do rosto dela, e sedissolviam por fim num afago indefinido. Penso na Isabel,
e uma espécie de maré, tensade amor, indomada e vigorosa, sobe-me das pernas
para o sexo, endurece-me ostestículos em crispações de desejo, alarga-se-me
no ventre como se abrisse grandes asascalmas nas minhas vísceras em batalha.
Percorremos de novo os antiquários poeirentosde Sintra à procura de móveis
de talha, entramos no aquário azul da boate onde pelaprimeira vez toquei,
maravilhado, a sua boca, inventamos um fantástico futuro de filhosmorenos
numa profusão de berços, e sinto-me feliz, justificado e feliz, ao abraçar
o seucorpo na vazante dos lençóis, de que as pregas formam como que ondas
a caminho dapraia branca da almofada, onde as nossas cabeças, a tua escura,
a minha, clara, sejuntam numa fusão que contém em si os germens estranhos
de um milagre.

Pode apagar a luz: talvez não fique tão sozinho como isso neste quarto enorme,talvez
que a Isabel ou você voltem um dia destes a visitar-me, eu ouça a voz ao telefone,a
voz miudamente precisa pelos furos de baquelite do telefone, o olá dela e
o seu olá aentrarem-me na orelha na oleosidade agradável e morna dos pingos
de tirar a cera daminha infância, a vá buscar no emprego, esperando dentro
do carro numa impaciênciade cigarros, a corrigir o nó da gravata, em bicos
de nádegas, no espelho, ela ou você seinstale no meu lado no automóvel às
escuras, me sorria, se debruce para colocar o cassete da Maria Bethânia no
gravador, e me passe ao redor da nuca os firmes cotovelosda ternura. Deixa-me
beijar-te. Deixe-me beijá-la enquanto se veste, enquanto aperta osoutien nas
costas em gestos cegos e canhotos que lhe tornam as omoplatas salientescomo
as asas de um frango, enquanto procura os anéis de prata na mesinha de cabeceiracom
uma ruga de atenção infantil, vertical, na testa, enquanto luta com a escova
contra aresistência ondulada do cabelo, o cabelo excessivo que a minha calvície
inveja, numciúme feroz a que não consigo fugir. Todas as manhãs penso quando
começarei a fazera risca na orelha, puxando trabalhosamente uma madeixa esfiada
pelo cocuruto nu, eprincipio a ler sem ironia os anúncios de postiços do jornal,
acompanhados pelasfotografias de hirsutos carecas satisfeitos, sorrindo risos
peludos de gorilas. Afasto-medos retratos do ano passado como um barco do
cais, e parece-me às vezes assemelharmea uma esquisita caricatura de mim próprio,
que as rugas deformam de um arremedode trejeitos. Deixa-me beijar-te: que
criatura vai querer beijar a paródia triste do que fui,o estômago que cresce,
as pernas que se afilam, o saco vazio dos testículos cobertos delongas crinas
cor de couro? Refletindo melhor, não apague a luz: quem sabe se estamanhã
oculta dentro de si uma noite mais opaca do que todas as noites que até agoraatravessei,
a que vive no fundo das garrafas de uísque, das camas desfeitas e dos objetosde
ausência, uma noite com um cubo de gelo à superfície, três dedos de líquido
amarelopor baixo, e um silêncio insuportável no interior vazio, uma noite
em que me perco, atropeçar de parede a parede, tonto de álcool, falando comigo
o discurso da solidãograndiosa dos bêbados, para quem o mundo é um reflexo
de gigantes contra os quais,inutilmente, se encrespam.

Não apague a luz: quando você sair a casa aumentará inevitavelmente detamanho,
transformando-se numa espécie de piscina sem água em que os sons seampliam
e ecoam, agressivos, retesos, enormes, batendo-me violentamente contra ocorpo
como se as marés do equinócio na muralha da praia, rolando sobre mim espumasfoscas
de sílabas. De novo escutarei a fermentação da geladeira, a ronronar o seu
sonode mamute, os pingos que se escapam do rebordo das torneiras como as lágrimas
dosvelhos, pesadas de conjuntivite ferrugenta. Hesitarei na camisa, na gravata,
no terno, eacabarei por bater a porta da rua como se abandonasse atrás de
mim um jazigo intactoonde a morte floresce nas jarras de vidro facetado e
nos caules podres dos crisântemos.Bater a porta da rua, percebe, como bati
a porta de África de regresso a Lisboa, a portarepugnante da guerra, as putas
de Luanda e os fazendeiros do café em torno dos baldesde champanhe, reluzentes
como as caixas forradas de lantejoulas dos ilusionistas,fumando cigarros americanos
de contrabando na penumbra de um tango. A porta deÁfrica, Isabel: um médico
homossexual, cujas pestanas se enrolam em nós como ostentáculos de um polvo,
acolitado por um cabo trocista, de patilhas, ao qual se deve unirde pensão
em pensão num suspirozinho exausto de ventosa, examina-nos o mijo, amerda,
o sangue, para que não infectemos o País do nosso pânico da morte, dalembrança
do rapaz louro coberto por um pano no meu quarto, dos eucaliptos de Nindae
do enfermeiro sentado na picada de intestinos nas mãos, a olhar para nós num
espantotriste de bicho. Trazemos o sangue limpo, Isabel: as análises não acusam
os negros aabrirem a cova para o tiro da PIDE, nem o homem enforcado pelo
inspetor na Chiquita,nem a perna do Ferreira no balde dos pensos, nem os ossos
do tipo de Mangando notelhado de zinco. Trazemos o sangue tão limpo como o
dos generais nos gabinetes comar condicionado de Luanda, deslocando pontos
coloridos no mapa de Angola, tão limpocomo o dos cavalheiros que enriqueciam
traficando helicópteros e armas em Lisboa, aguerra é nos cus de Judas, entende,
e não nesta cidade colonial que desesperadamenteodeio, a guerra são pontos
coloridos no mapa de Angola e as populações humilhadas, transidas de fome
no arame, os cubos de gelo pelo rabo acima, a inaudita profundidadedos calendários
imóveis.

Às vezes, sabe como é, acordo a meio da noite, sentado nos lençóis, inteiramentedesperto,
e parece-me ouvir, vindo do banheiro, ou do corredor, ou da sala, ou dobeliche
das miúdas, o apelo pálido dos defuntos nos caixões de chumbo, como amedalha
identificativa que trazemos ao pescoço pousada na língua à maneira de umahóstia
de metal. Parece-me ouvir o rumor das folhas das mangueiras de Marimba e o
seuimenso perfil contra o céu enevoado do cacimbo, parece-me ouvir o riso
súbito eorgulhosamente livre dos Luchazes, que estala junto de mim como o
trompete de DizzieGillespie, esguichando do silêncio num ímpeto de artéria
que se rasga. Acordo no meioda noite, e saber que tenho o mijo, a merda e
o sangue limpos, não me tranquiliza nemme alegra: estou sentado com o tenente
na missão abandonada, o tempo parou em todosos relógios, no do seu pulso,
no despertador, na telefonia, no que a Isabel deve usaragora e não conheço,
no que existe, desconexo e palpitante, na cabeça dos mortos, opólen das acácias
envolve-nos de leve de um ouro sem peso e sem ruído, a tarde arrastaseno capim
numa moleza animal, levanto-me para urinar contra o que resta de um muroe
tenho o mijo limpo, percebe, o mijo irrepreensivelmente limpo, posso regressar
aLisboa sem alarmar ninguém, sem pegar os meus mortos a ninguém, a lembrança
dosmeus camaradas mortos a ninguém, voltar para Lisboa, entrar nos restaurantes,
nosbares, nos cinemas, nos hotéis, nos supermercados, nos hospitais, e toda
a genteverificar que trago a merda limpa no cu limpo, porque se não podem
abrir os ossos docrânio e ver o furriel a raspar as botas com um pedaço de
pau e a repetir Caralho caralhocaralho caralho caralho, acocorado nos degraus
da administração.

Mesmo assim tive o cuidado de me despedir da baía, concha de água pútrida,onde
os edifícios, invertidos, vibravam. As traineiras saíam o cais para a pesca
no ruídoamortecido e irregular dos motores, assustando os grandes pássaros
brancos quepasseavam no lodo em pernadas proprietárias de gerentes, e arrepiando
os repuxos decabelos pendentes das palmeiras, que lançavam as sombras estreitas
nos bancosdesertos. No café das arcadas, garotos negros impingiam os pensos
rápidos dos seusmanipanços horrorosos. Os engraxates arrastavam-se por entre
as mesas, debruçadospara sapatos cintilantes. O médico homossexual, na cadeira
ao lado da minha, acendeulanguidamente um cigarro de filtro dourado, e apagou
o fósforo com o bico em copa,delicado, dos beiços. Usava um perfume denso
de prima solteira, que incensava o ar delargas baforadas de açúcar gasoso.
Tínhamo-nos conhecido em Londres, no outonogrisalho de Saint James Park, partilháramos
o mesmo quarto alugado, e eu assistiadiariamente ao ritual complicado da sua
toalete, cercado de cremes, de escovas, depinças depilatórias e de caixinhas
de tartaruga de produtos de beleza, que ele manejavanuma destra paciência
de Ver Meer, compondo um rosto maquilado que se diriaevadido, à socapa, de
um filme de vampiros. A sua roupa interior assemelhava-se aosternos dos trapezistas
de circo, onde o lilás dos projetores se demora numa admiraçãoextasiada. De
certo modo estimávamo-nos um ao outro porque as nossas solidões, a deleautocomplacente,
a minha raivosa, se tocavam e confluíam num qualquer ponto comum,porventura
o da inconformação resignada. Era de tal maneira feminino que a farda oaparentava
a uma mulher-polícia. Levou o cigarro á boca num gesto cauteloso de chávena
de chá demasiado quentem e roçou por mim, de leve, os grandes olhos meigosde
uma inocência sabida:

– Como é que te vais aguentar em Lisboa depois dos cus de Judas?

Os candeeiros da Marginal acenderam-se à uma, num repente, e milhares deinsetos
principiaram de imediato a agitar-se nos cones azulados das lâmpadas, frenéticos
como as bolhas de luz das frontarias dos cinemas. Um ruído inlocalizável de
talheresanunciava a hora do jantar.

– Nas calmas – respondi-lhe, afastando com a mão os cadáveres estilhaçados
napicada. – Tu próprio certificaste que tenho o sangue limpo.

Z

Espere aí, vou acompanhá-la à porta. Desculpe o tempo que demoro a levantar-me,
e,em vez de má educação, peço-lhe que veja nisso apenas o lamentável resultado
doexcesso de uísque, da noite sem sono, e da emoção do meu longo relato que
estáchegando ao fim. Aliás, amanheceu: ouvem-se distintamente as camionetas
das obras narua, uma válvula de descarga qualquer, no andar de cima, anuncia
o despertar dosvizinhos. Tudo é real agora: os móveis, as paredes, o nosso
cansaço, a cidade demasiadocheia de monumentos e de gente como uma cômoda
com muitos bibelôs no tampo, queamorosamente odeio. Tudo é real: passo a mão
pela cara e a lixa da barba por fazerarrepela-me a pele, a bexiga repleta
incha-me na barriga o seu líquido morno, pesadacomo um feto redondo que geme.
Um feixe oblíquo de luz aclara anemicamente umlosango de papel de parede,
junto ao roupeiro, e desce pouco a pouco a caminho daalcatifa, da placa cinzenta
do calorífico, das pernas harmoniosamente arqueadas dacadeira de balanço,
onde a minha roupa jaz na desordem esquecida dos trapos. São reaisas nódoas
amarelas do estuque do teto, de que agora facilmente me apercebo, os sorrisosdas
minhas filhas nas molduras, o telefone que se diria estar constantemente aencrespar-se,
prestes aos berros de fúria aguda da campainha. É real a sua impaciência,a
carteira pendurada do ombro, os tornozelos bem feitos, nos quais não tinha
aindareparado em pormenor, a estremecerem de pressa nos sapatos. Hoje não
vai chover:sinto-o nos ossos tranquilos, em paz, apenas moídos por tantas
horas sem repouso, nosossos secos, duros, leves, porosos como pedras-pomes,
que me pedem, no interior docorpo, que flutue de alcatifa em alcatifa numa
graça trôpega de anjo, roçando as unhasdos pés pelas sombras de túnel do corredor.
Não vai chover: o céu cor-de-rosa, vaziocomo o bojo de uma boca sem dentes,
adensa-se já de calor na linha quebrada em que ostelhados o tocam, adquirindo
um tom vermelho e esverdeado que incendeia os terraços,as varandas, o rebordo
exageradamente nítido dos edifícios ao longe. Às duas da tardeas árvores suarão
lágrimas de resina pelos troncos calcinados, o bronze das estátuas daspraças
dobrar-se-á como o ferro que arde, numa obediência mole de gesto sem força.Você
vai chegar a casa, tomar um banho rápido, procurar um vestido no mostruário
demangas penduradas de lado no armário, e, antes de sair para o emprego, disfarçar
asolheiras com os óculos escuros enormes que a aparentam, sabe como é, a um
insetoaltivo. O que existe por detrás dos óculos escuros das mulheres com
quem me cruzo nasruas de Lisboa intriga-me e fascina-me: a opacidade dos rostos
sem expressão acordaem mim o desejo de as despir, num movimento delicado,
dos seus pedaços de vidrocastanho ou verde, a fim de me confrontar com o pânico,
a ternura, a indiferença, osarcasmo, algo, em suma, que me garanta uma humanidade
semelhante à minha, emlugar da condição marciana que se me afigura a sua.
E os andares iluminados, na alturado jantar, pela claridade docemente doméstica
dos abajures e pela fosforescênciaretangular das televisões acesas, fazem-me
sentir irremediavelmente de fora de milharesde pequenos universos confortáveis,
em que me seria grato incluir, num canto do sofá,diante de uma reprodução
de Miró, a minha solidão envergonhada de cão tímido, aarquear constantemente
o dorso de falsas zangas submissas. As lojas de móveis, nas quais se reproduzem
intimidades estereotipadas com um poster barato por cima,representando uma
menina e um gatinho ternamente enlaçados, encantam-me: afelicidade dos desdobráveis
a ectacrome constitui, não diga a ninguém, o meu alvo navida, e projeto sempre
substituit as complicadas escrivaninhas da alma por prateleirasquinane e almofadas
em quadrados pretos e brancos, a que se juntam tapetes ovais depelo tão alto
como as sobrancelhas dos tios e grandes objetos de louça sem formadefinida,
pintados em pinceladas ao acaso. Não, escute, pode ser que o cenário seinsinue
pouco a pouco pela nossa existência dentro, a inunde de candeeiros esquisitoseriçados
de molas e de ângulos e de carantonhas sardônicas de barro, e um grossosangue
Robiallac nos desça pelas veias, forrando-as de um júbilo metalizado, à prova
daumidade das lágrimas. Vou comprar um Bambi de biscuit para a secretária
do escritório,colocá-lo bem à frente dos meus papéis e dos meus livros, entre
mim e o rio, e vai vercomo a minha vida se inflete no sentido de um futuro
de toureiro ou de cantor da rádio,sentado na borda da piscina particular abraçado
a uma loura sorridente.

Tudo é real: o tilintar das suas pulseiras possui agora um som diverso,desprovido
dos misteriosos prolongamentos e ecos que a noite lhes conferia, o sombanal
da manhã, que vulgariza o sofrimento e a exaltação, e os reduz perante asexigências
práticas do quotidiano, o emprego, a revisão do carro, a consulta do dentista,o
jantar com um amigo de infância palavroso, a expandir-se por cima dos talheres
emaborrecidas narrações intermináveis. Tudo é real, sobretudo a agonia, o
enjoo do álcool,a dor de cabeça a apertar-me a nuca com o seu alicate tenaz,
os gestos lentificados porum torpor de aquário, que me prolonga os braços
em dedos de vidro, difíceis como aspinças de uma prótese por afinar. Tudo
é real menos a guerra que não existiu nunca:jamais houve colônias, nem fascismo,
nem Salazar, nem Tarrafal, nem PIDE, nemrevolução, jamais houve, compreende,
nada, os calendários deste país imobilizaram-sehá tanto tempo que nos esquecemos
deles, marços e abris sem significado apodrecemem folhas de papel pelas paredes,
com os domingos a vermelho à esquerda numa colunainútil, Luanda é uma cidade
inventada de que me despeço, e, na Mutamba, pessoasinventadas tomam ônibus
inventados para locais inventados, onde o MPLA sutilmenteinsinua comissários
políticos inventados. O avião que nos traz a Lisboa transportaconsigo uma
carga de fantasmas que lentamente se materializam, oficiais e soldadosamarelos
de paludismo, atarraxados nos assentos, de pupilas ocas, observando pelajanela
o espaço sem cor, de útero, do céu. Reais são as camionetas cinzentas à espera
noaeroporto, o frio de Lisboa, os sargentos que nos examinam os documentos
no vagarlasso dos funcionários desinteressados, o trajeto até ao quartel onde
as nossas malas seempilham numa confusão cônica de volumes, as despedidas
rápidas na parada.

Passamos vinte e sete meses juntos nos cus de Judas, vinte e sete meses deangústia
e de morte juntos nos cus de Judas, nas areias do Leste, nas picadas dosQuiocos
e nos girassóis do Cassanje, comemos a mesma saudade, a mesma merda, omesmo
medo, e separamo-nos em cinco minutos, um aperto de mão, uma palmada nascostas,
um vago abraço, e eis que as pessoas desaparecem, vergadas ao peso dabagagem,
pela porta de armas, evaporadas no redemoinho civil da cidade.

Fardado, com um saco cheio de livros ao ombro e outro de roupa na mão, Lisboaergue
perante mim a sua opacidade de cenário intransponível, subitamente vertical,
lisa,hostil, sem que nenhuma janela abra, diante dos meus olhos sequiosos
de repouso,côncavos favoráveis de ninho. O trânsito roda majestosamente na
Rotunda daEncarnação, numa indiferença puramente mecânica que me exclui, os
rostos na ruadeslizam ao lado do meu num alheamento absoluto, em que qualquer
coisa da inérciageométrica dos cadáveres se insinua. A minha filha de olhos
verdes deve, com certeza,considerar-me um estranho indesejável, deitando ao
lado da mãe o estreito corpo supérfluo. A vida dos meus amigos, que se programou
sem mim na minha ausência,acomodar-se-á a custo a este ressuscitar de Lázaro
desnorteado, que reaprendepenosamente o uso dos objetos e dos sons. Habituara-me
demais ao silêncio e à solidãode Angola, e afigurava-se-me inimaginável que
o capim não rompesse do alcatrão dasavenidas os seus longos dedos verdes acerados
pelas primeiras chuvas. Não existianenhuma máquina de costura ferrugenta e
avariada na casa dos meus pais, e o soba doChiúme não me esperava na sala,
a fitar, para lá da estante envidraçada dos livros, avastidão, úmida de sapos
e de lodo, da chana. Idêntico a uma criança quando nasce,contemplava, com
órbitas redondas de surpresa, os sinais, os cinemas, o contornodesequilibrado
das praças, as melancólicas esplanadas dos cafés, e tudo se diria possuir,ao
meu redor, uma carga de mistério que eu seria sempre incapaz de elucidar.
De formaque encolhi a cabeça entre os ombros e curvei as omoplatas como as
pessoas semgabardina perante uma chuva inesperada, oferecendo o mínimo possível
do meu corpo aum país que não entendia já, e embarafustei pelo janeiro da
cidade.

Visitei as tias algumas semanas depois, envergando um terno de antes da guerraque
me boiava na cintura à laia de uma auréola caída, apesar dos esforços dossuspensórios,
a arrepanharem para cima as pernas, como se armados de uma héliceinvisível.
Esperei de pé, junto ao piano de castiçais, a entalar os ossos tímidos entre
umaconsola Império de coxas tortas, cheia de molduras de generais defuntos,
e um relógioenorme cujo grandioso coração soluçava mansamente os estalos rítmicos
de um budapacífico que digere. As cortinas das janelas ondulavam acenos evasivos
de coreógrafoentediado, os olhos agudos das pratas cintilavam dos aparadores
no escuro. As tiasacenderam o candeeiro para me observar melhor, e a luz revelou
subitamente tapetes deArraiolos desbotados, jarras chinesas disparando dragões
de língua torcida dassuperfícies brancas, a curiosidade das criadas que espreitavam
da porta, a enxugarem asmãos gordas nos aventais da cozinha. Instintivamente
coloquei-me na atitude hirta eséria que se oferece aos fotógrafos de feira,
examinando-nos por detrás das grossaslentes impiedosas das máquinas de tripé,
ou em sentido, como quando cadete, emMafra, perante o mau humor autoritário
e crônico do capitão, a franzir-se de botasafastadas numa arrogância agourenta.
Cheirava a cânfora, a naftalina e a mijo de siamês,e apeteceu-me veementemente
sair dali para a Rua Alexandre Herculano, onde, pelomenos, se visionava, no
alto, um bocadinho turvo de céu. Uma bengala de bambuformou um arabesco desdenhoso
no ar saturado da sala, aproximou-se do meu peito,enterrou-se-me como um florete
na camisa, e uma voz fraca, amortecida pela dentadurapostiça, como que chegada
de muito longe e muito alto, articulou, a raspar sílabas demadeira com a espátula
de alumínio da língua:

– Estás mais magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mascontigo
não há nada a fazer.

E os retratos dos generais defuntos nas consolas aprovaram com feroz acordo
aevidência desta desgraça.

Não, não, siga sempre em frente, vire na primeira à direita, na segunda à
direita aseguir, e como quem não quer a coisa está na Praceta do Areeiro.
A salvo. Eu? Fico ainda mais um bocado por aqui. Vou despejar os cinzeiros,
lavar os copos, dar umarranjo à sala, olhar o rio. Talvez volte para a cama
desfeita, puxe os lençóis para cima efeche os olhos. Nunca se sabe, não é?,
mas pode bem acontecer que a tia Teresa mevisite.

Veja também

Os Reis Magos

PUBLICIDADE Diz a Sagrada Escritura Que, quando Jesus nasceu, No céu, fulgurante e pura, Uma …

O Lobo e o Cão

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Encontraram-se na estrada Um cão e um lobo. …

O Leão e o Camundongo

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Um camundongo humilde e pobre Foi um dia …