Sermões – Padre Antônio Vieira

PUBLICIDADE

Clique nos links abaixo para navegar no capítulo desejado:

Sermão da Dominga XIX depois do Pentecoste – 1639

Misit servos suos vocare invitatos nuptias (1).

I

É semelhante o reino do céu a um homem rei. — Vou repetindo
e construindo o texto do Evangelho, palavra por palavra. Tende advertência
e fazei memória de todas, porque têm mistério, e todas
nos hão de servir. — É semelhante o reino do céu
— diz Cristo, Redentor nosso — a um homem rei, o qual fez as bodas
a seu filho. Chegado o dia, mandou a seus criados que fossem chamar os convidados
para o banquete, e eles não quiseram vir. Tornou, contudo, a mandar
outros criados com outro recado nesta forma: — Dizei-lhes que venham,
porque o banquete está aparelhado e o gasto feito, as reses e as aves
mortas, e tudo preparado. — Os convidados, porém, não
fizeram caso desta segunda instância: uns se foram para a sua lavoura,
outros para a sua negociação, e alguns houve tão descomedidos,
que prenderam os mesmos criados, e, depois de muitas afrontas, os mataram.
Irou-se o rei, como era justo, mandou os seus exércitos a que fossem
castigar aqueles rebeldes, com ordem que não só matassem os
homicidas, mas pusessem fogo a toda a cidade, e a queimassem. Executado assim,
voltou-se o rei para os criados e disse: — O banquete está aparelhado;
e pois os convidados não foram dignos, ide às saídas
das ruas, e trazei quantos achardes. — Foram, e ajuntando quantos encontraram,
maus e bons, todos trouxeram e introduziram, com que os lugares do convite
ficaram cheios. Então o rei entrou em pessoa na sala para os ver à
mesa, e como notasse que entre eles estava um sem vestidura de bodas, estranhou-lhe
a descortesia, dizendo: Amigo, como entraste aqui tão indecentemente
vestido? — O homem emudeceu, e o rei mandou a seus ministros que, atado
de pés e mãos, o lançassem fora e o levassem a um cárcere
subterrâneo e escuro, chamado trevas exteriores. Ali não haverá
— conclui Cristo — senão choro e ranger de dentes, porque
os chamados são muitos, e os escolhidos poucos.

Esta é, letra por letra, a história ou parábola do Evangelho,
para cuja inteligência convém saber quem é o rei, quem
o filho, quais as bodas, qual o banquete, quem os convidados que vieram, quem
os que não quiseram vir, e quem os criados que os foram chamar. O rei
é o Eterno Padre; o filho é o Verbo, segunda Pessoa da Santíssima
Trindade; as bodas são a Encarnação do mesmo Filho de
Deus, que se desposou com a natureza humana; o banquete é a glória
e bem-aventurança do céu, que por meio deste mistério
se nos franqueou; os convidados que vieram são os que se salvam; os
que não quiseram vir, os que se condenam; e os criados, finalmente
que os chamaram são os pregadores. Suposto pois que este é o
ofício e esta a obrigação do pregador, esta será
também hoje a matéria do sermão. Misit servos suos vocare
ad nuptias (Mt. 22,3). Manda-me Deus, senhores, que vos chame para o banquete
da glória, e assim o farei. Mas quando vejo nesta mesma parábola
que, chamados uma e outra vez os convidados, não quiseram vir, que
razões vos posso eu alegar, ou de que meios me posso valer para vos
persuadir o que tantos pregadores e escolhidos por Deus não persuadiram?
Toda a minha confiança trago posta na virtude e eficácia do
Evangelho; e assim vos não direi outra coisa, senão o que ele
diz, e já ouvistes. Ponderarei somente as suas palavras, e ponderá-las-ei
todas, sem deixar nenhuma, e para quanto disser e provar não alegarei
outra escritura, nem do Velho nem do Novo Testamento, mais que o mesmo Evangelho.
Se vos parece assunto novo e dificultoso, por isso mesmo me deveis ajudar
a pedir mais graça hoje, que noutras ocasiões. Ave Maria.

II

Misit servos suos vocare invitatos ad nuptias. Chamar os convidados para
o banquete da glória é assunto que tomei ou me mandou tomar
o Evangelho. E não sendo este banquete senão o do Santíssimo
Sacramento, o que com repetida memória de todos os meses celebra hoje
a vossa piedade, para que me deis atenção, sem desgosto nem
escrúpulo, sabei que o mesmo Evangelho vos há de livrar dele,
e com propriedade e mistério até agora não ouvido, nem
de vós esperado.

Entrando, pois, na parábola que referi, a primeira coisa que ela supõe
para fundamento do muito que encerra e nos há de ensinar, é
que todos os que estamos presentes somos convidados para o banquete da glória.
Para prova desta suposição, diz o texto que, chegado o dia das
bodas, mandou o rei alguns dos seus criados que fossem chamar os convidados
para o banquete: Misit servos suos vocare invitatos ad nuptias (Mt. 22,3).
E como estes não quisessem vir, em vez de se mostrar ofendido como
homem e como rei: Homini regi, para mostrar que debaixo desta metáfora
era Deus, tornou a mandá-los chamar, não pelos mesmos, senão
por outros criados: Misit alios servos. Quem fossem estes criados, assim os
primeiros como os segundos, declaram com excelente propriedade Orígenes,
S. Jerônimo e Santo Tomás. Os primeiros dizem que foram os profetas,
os segundos os apóstolos. Os profetas foram os primeiros, porque primeiro
chamaram os convidados na lei escrita; e os apóstolos foram os segundos,
porque, vindo depois dos profetas, também chamaram os convidados na
lei da graça. Daqui se segue, com a mesma propriedade, que os convidados
para o banquete da glória, antes de virem os apóstolos e os
profetas, já estavam convidados. Antes dos profetas já estavam
convidados, porque dos primeiros criados diz o texto: Misit servos suos vocare
invitatos; e antes dos apóstolos também estavam convidados,
porque aos segundos criados disse o rei: Dicite invitatis. Pois, se já
estavam convidados antes de haver apóstolos nem profetas, e nem os
apóstolos nem os profetas foram os que os convidaram, senão
os que somente os chamaram, quem os convidou? Não há dúvida
que quem os convidou foi o mesmo rei, pai do príncipe desposado, que
é Deus. Mas quando? Alguns dizem que foram convidados ab aeterno, quando
Deus predestinou os homens para a glória. Mas isto não pode
ser, porque convidar e ser convidado supõe notícia recíproca,
e os homens não podiam ser convidados quando ainda não eram
destinados ou predestinados. Logo, se antes dos apóstolos e dos profetas
já estavam convidados, quando os convidou Deus? Convidou-os em Adão,
quando lhe revelou que não só o criara a ele e a todos seus
descendentes para o paraíso da terra nesta vida, senão para
a glória do céu na outra. Nem a verdade, ordem e conseqüência
da parábola se pode concordar doutro modo com a verdadeira teologia.
Em suma, que desde o princípio do mundo e desde Adão, assim
como depois todos pecamos nele, assim todos somos convidados nele para o banquete
da glória, porque o fim, para que todos nascemos e somos criados, é
para servir a Deus na vida, e o gozarmos na eternidade.

Suposta esta primeira verdade tão manifesta no nosso Evangelho, e
suposto também que os sucessores dos apóstolos e profetas, que
foram chamar os convidados, são os pregadores, o que a mim me toca
hoje — como dizia — é chamar-vos também para o banquete,
e persuadir-vos que vos não escuseis ou condeneis em o não querer
aceitar. Mas, se o banquete é da glória, que posso eu dizer
da grandeza, da magnificência e do sumo gosto e gostos que Deus tem
aparelhado nela para os que forem dignos de a gozar? Dos profetas e apóstolos
que chamaram os convidados para o banquete da glória, só dois
a viram. Um a viu de longe, estando na terra, que foi Isaías; e outro
a viu de perto, sendo levado ao céu, que foi S. Paulo. E que é
o que disseram um e outro do que lá viram? O que disseram ambos conformemente
é que se não pode dizer, porque os bens e felicidades daquela
pátria bem-aventurada são tão diversos destes nossos,
a que falsamente damos o mesmo nome, que excedem sem proporção
nem medida a capacidade de todos nossos sentidos e a esfera natural de todas
nossas potências. Pois, se o mais alumiado nas coisas da bem-aventurança
entre os profetas, qual foi Isaías, e o mais alumiado e experimentado
nelas entre os apóstolos, qual foi S. Paulo, não sabem dizer
nada do que viram, que posso eu dizer do que não vi, nem mereço
ver? Mais ainda. Quando os primeiros criados do rei, que eram os profetas,
foram chamar os convidados, diz o texto que eles não quiseram vir:
Nolebant venire (Mt. 22,3); e quando os segundos criados, que eram os apóstolos,
os chamaram, também diz que não fizeram caso disso: Illi autem
neglexerunt (lbid. 5). Pois, se chamados com toda a eloqüência
dos profetas, e com toda a eficácia dos apóstolos se não
persuadiram, que argumentos, ou que demonstrações vos posso
eu fazer, para que entendais o que eles não entenderam, para que queirais
o que eles não quiseram, para que estimeis o que eles desprezaram,
e para que procureis e trabalheis por alcançar o que eles, uma e outra
vez rogados, não admitiram.

III

Esta é a razão, fiéis, porque hoje me despedi de todas
as outras Escrituras, e só com o Evangelho, nua e secamente considerado,
quero fazer prova da vossa fé e da sua graça. Em todas as outras
Escrituras apenas se acham divididas três coisas, as quais Cristo, Senhor
nosso, pôs juntas neste Evangelho, para com elas nos ensinar a fazer
inteiro e cabal conceito da glória a que nos tem convidado. Propõe-nos
esta glória em metáfora de banquete, em que até os mais
grosseiros sentidos são agudos, e as três circunstâncias
notáveis que nele pondera, e quer que ponderemos, são estas.
Primeira: quem o fez? Segunda: para quem se fez? Terceira: quanto custou a
fazê-lo?

O rei que fez este banquete da glória: Qui fecit nuptias, é
Deus. Assim o entendem concordemente todos os Padres e expositores, e se é
Deus o que o fez: Qui fecit, quais serão as delícias incompreensíveis
daquela mesa celestial e divina, a qual fez e colocou diante de si o mesmo
Deus, não só para última ostentação de
sua majestade e grandeza, mas para fazer eternamente bem-aventurados a todos
os que se assentarem a ela? Tudo o que se pode imaginar e encarecer se encerra
na significação daquela imensa palavra: Qui fecit. O que o fez
é a infinita Sabedoria, o que o fez é a infinita onipotência,
o que o fez é a infinita liberalidade e o infinito amor. Vede, que
será o que fez? Os filósofos, que não tinham fé,
pelas coisas que se vêem neste mundo inferior, entenderam que o autor
delas era Deus. Nós, que temos fé, havemos de argumentar às
avessas, e porque sabemos que o autor das coisas do céu, que não
vemos, é Deus, daí havemos de argüir quais elas serão.
Mas não é isto o que pondero; mais alto é o fundo do
nosso texto.

Simile est regnum caelorum homini regi, qui fecit nuptias filio suo (Mt.
22, 2): É semelhante o reino do céu a um homem rei, que fez
as bodas a seu filho. — Este homem rei, como dissemos ao princípio,
é Deus Padre, que fez as bodas a seu filho, quando o desposou e uniu
com a natureza humana. Pois, se é Deus Padre, por que se chama rei
homem: Homini regi? Que se chame rei, para significar a soberania de sua majestade
e a grandeza de seu poder, bem está; mas rei homem, parece impropriedade,
porque o Padre Eterno, ainda que fez homem a seu Filho, ele nem se fez, nem
é homem. Diga logo a parábola: semelhante é o reino do
céu a um rei, e não a um rei homem, pois não é
homem o rei de que fala. E se quer distinguir este rei dos outros reis, diga:
a um rei Deus, e não a um rei homem: Homini regi. Assim havia de ser
se a parábola não fora do banquete da glória. Mas porque
é do banquete da glória, sendo o Eterno Padre Deus, e não
homem, chama-se contudo homem, e não Deus, porque na magnificência
deste banquete, para que fosse mais magnífico, não obrou Deus
como Deus, senão como homem. Ora vede. O homem, quando se quer mostrar
magnífico e grandioso, faz quanto pode; porém Deus, ainda que
quisesse fazer quanto pode, não pode. A razão que a nós
nos basta, deixadas outras, é muito clara, porque, como Deus é
onipotente, por mais que faça, sempre lhe fica poder para fazer mais.
E se pudesse fazer quanto pode, esgotar-se-ia a onipotência, e, não
sendo onipotente, deixaria de ser Deus. Este é pois o modo com que
Deus obra em todas as outras coisas, em que sempre faz menos do que pode,
e pode mais do que faz. Porém no banquete da glória, como se
obrara como homem, faz tudo o que pode, e não pode mais. Por quê?
Porque se dá a gostar e a gozar a si mesmo. A glória imensa
do mesmo Deus, que só ele compreende, em que consiste? Consiste em
se ver, em se amar, em se gozar a si mesmo. Pois esse mesmo Deus, e esse mesmo
sumo bem, que Deus vê, é o que nós vemos, esse mesmo que
Deus ama é o que nós amamos, e esse mesmo que Deus goza é
o que nós gozamos na glória, porque a sua mesa e a nossa é
a mesma. E isto é o que fez este rei Deus, como se fora rei homem:
Homini regi, qui fecit.

Dirá, contudo, alguém que não basta isto só para
Deus obrar como homem na magnificência da glória, porque os homens,
quando se querem ostentar magníficos, não só fazem tudo
o que podem, senão mais do que podem. Vemos que os reis homens, depois
de despender seus tesouros, ou os reconhecer menores que sua magnificência,
carregam de tributos sobre tributos os povos, para assim igualar à
ostentação de sua grandeza. E os homens que não são
reis também fazem o mesmo, e por isso nas festas de um dia se empenham
para toda a vida, e deserdam e empobrecem toda a sua descendência. Logo,
para Deus obrar como homem na magnificência do banquete da glória,
não só havia de fazer quanto pode, senão mais do que
pode. Assim é, e assim o faz Deus, se bem se considera. Obra Deus tanto
como homem no banquete da glória, que não só faz tudo
o que pode, senão também mais do que pode, porque faz que gozemos
nela o que ele não pode fazer. Deus pode fazer criaturas, e essas mais
e mais perfeitas infinitamente; pode fazer mais e melhores mundos, pode fazer
mais e melhores céus; mas fazer-se a si mesmo, ou outros como ele é,
não pode, porque nem ele se fez a si. E isto que Deus não fez
nem pode fazer, faz que nós o gozemos no banquete da glória,
sendo o mesmo Deus a primeira e a principal iguaria daquela mesa divina. No
nosso texto o temos.

Quando o rei mandou a segunda vez chamar os convidados, a forma do recado
foi que viessem às bodas, porque o banquete estava preparado: Ecce
prandium meum paravi: venite ad nuptias (2). E suposta esta distinção
das bodas enquanto bodas e enquanto banquete, é muito para reparar
que as bodas diz o texto que as fez o rei: Qui fecit nuptias filio suo; porém
o banquete, não diz o rei que o fez, senão que o preparou: Ecce
prandium meum paravi. Pois, por que não diz também que fez o
banquete, assim como diz que fez as bodas? Porque as bodas fê-las Deus;
o banquete não o fez: preparou-o somente. As bodas significam a Encarnação
do Verbo, o banquete significa a glória dos bem-aventurados; e a Encarnação
do Verbo fê-la Deus porque fez a humanidade e a união hipostática;
porém a glória dos bem-aventurados não a fez, porque
o objeto da glória, e o que os bem-aventurados nela gozam, é
o mesmo Deus, e Deus nem se fez, nem se pode fazer. Mas este mesmo banquete
da glória, que não diz que fez, diz altíssima e propriissimamente
que o preparou, porque, elevando sobrenaturalmente o entendimento com que
o vemos, com este, que se chama lume da glória, o prepara e nos faz
capazes de o gozar. De sorte que o banquete da glória é um composto
de tudo o que Deus pode fazer, e de mais do que pode. Da parte do objeto,
que é Deus visto e gozado, é mais do que Deus pode fazer, porque
Deus não se pode fazer a si mesmo, e da parte do sujeito, que é
o bem-aventurado que vê e goza a Deus, é tudo o que Deus pode,
porque não pode Deus fazer mais que elevar a criatura a que o veja
e goze, assim como ele é; e por este modo se verifica que no banquete
da glória faz Deus, como se fosse homem, não só tudo
o que pode fazer, senão mais do que pode.

E que mais fazem os homens quando se querem mostrar magníficos? Se
lhes não basta para isso o que têm de seu, pedem emprestado o
que não têm, e com o seu e o emprestado suprem a magnificência
da obra. Isto fazem ultimamente os homens, e isto é o que também
fez Deus, como se obrasse como homem: Homini regi. O homem, com os olhos da
alma, que são espirituais, se forem elevados, pode ver a Deus; mas
com os olhos do corpo, em que não é possível tal elevação,
não o pode ver; e que fez Deus para que o homem não só
com a alma, mas também com o corpo, o gozasse inteiramente no banquete
da glória? O que fez Deus foi pedir emprestado à natureza humana
o corpo que não tinha, e unindo, por este modo inefável, a divindade
com a humanidade, o mesmo banquete da glória, que tem por objeto a
Deus, ficou não só divino, mas divino e humano juntamente: divino,
para beatificar o homem na alma, e humano, para o beatificar no corpo. É
pensamento altíssimo de S. Cipriano: Deus homo factus est, ut homo
haberet in Deo unde fieret plene beatus: in anima videndo divinitatem, in
corpore videndo humanitatem. Sendo o homem composto de alma e corpo, se somente
visse a Deus com os olhos da alma, ficaria beatificado como de meias, e não
inteiramente; e como se Deus fizera a consideração de Epicteto:
— Hoc inter epulandum considera, duos tibi excipiendos convivas, corpus
et animam — vendo que em cada homem se haviam de assentar à sua
mesa dois convidados, um que é a alma, outro que é o corpo,
para que um e outro recebesse o gosto, e tivesse a satisfação
proporcionada à sua capacidade. A este fim, diz Cipriano, tomou Deus
a natureza humana, e se vestiu do corpo que não tinha, fazendo-se homem,
para que o homem, gozando no mesmo Deus a vista da divindade, com os olhos
da alma, e a vista da humanidade, com os do corpo, fosse inteiramente bem-aventurado:
Ut homo haberet in deo unde fieret plene beatus. Aos anjos, que são
puros espíritos, basta-lhes, para ser inteiramente bem-aventurados,
ver a divindade de Deus; porém ao homem, que é composto de espírito
e corpo, não lhe bastava: por isso, pois, não lhe bastando também
a Deus, para nos fazer inteiramente bem-aventurados no banquete na glória,
a natureza divina que tinha, tomou emprestado da natureza humana o que lhe
faltava, e deste modo encheu as medidas, ou a imensidade, de sua magnificência,
obrando não só como Deus, senão também como homem:
Homini regi, qui fecit.

IV

Declarada a grandeza da glória por parte de quem a fez, segue-se a
segunda consideração, e maior ainda — se pode ser maior
— em que vejamos e ponderemos para quem se fez. Naquela considerou-se
o autor da obra, que é o Pai; nesta considerou-se o motivo, que é
o Filho; Fecit nuptias Filio suo. Mas quem poderá declarar bastantemente
a excelência infinita deste soberano motivo, que só o mesmo Pai
compreende? Os mais sublimes entendimentos, quando querem rastear de algum
modo a realeza do banquete da glória, do que vemos e experimentamos
na terra conjecturam o que será no céu. Na terra pôs Deus
a mesa aos homens, e é coisa tão digna de agradecimento como
de admiração, que, de seis dias em que criou o mundo, empregasse
os três maiores e mais fecundos só em prover esta mesa. Tudo
quanto nada no mar, tudo quanto voa no ar, tudo quanto nasce ou pasce na terra,
são os simples que produziu a natureza, para que deles compusesse e
temperasse a arte, o sustento e regalo do homem. As espécies que se
contêm debaixo destes quatro gêneros vastíssimos, tão
várias na formosura tão esquisitas nos sabores e infinitas no
número, excedem sem limite a capacidade do gosto e dos outros sentidos.
E que discurso há, que não pasme na consideração
do poder, magnificência e grandeza com que mais parece quis Deus enfastiar
o apetite humano com a superfluidade da mesa, que fartar a necessidade com
a abundância? Daqui faz três ilações Santo Agostinho,
comparando lugar com lugar, tempo com tempo, e pessoas com pessoas: Si tanto
facis nobis in carcere, quid ages in pelatio? Si tanta solatia in hac die
lachrymarum, quanta conferes in die nuptiarum? Quid dabit iis, quos praedestinavit
ad vitam, qui haec dedit etiam iis, quos praedestinavit ad mortem? Se Deus
fez tantas delícias para o desterro e para o cárcere, que será
para a pátria e para o palácio? Se assim nos sustenta e regala
no tempo das lágrimas, que será no dia das bodas? Se tudo isto
criou também para os inimigos, que hão de arder no inferno,
que será para os amigos, que o hão de gozar no céu? —
Esta é a diferença que pondera, e o argumento e conjectura que
faz Santo Agostinho. Mas, com licença de seu alto entendimento, ou
sem ela, o excesso que se argúi do nosso texto é infinitamente
maior. Não faz comparação de lugar a lugar, nem de tempo
a tempo, nem de estado a estado, nem de pessoas a pessoas, ainda que sejam
tão indignas umas, como os precitos: Quos praedestinavit ad mortem
— e tão dignas outras, como os predestinados: Quos praedestinavit
ad vitam. Mas, abstraindo de toda a comparação -porque a não
há — diz que será o banquete qual deve ser o das bodas
do Filho: Qui fecit nuptias Filio suo. Considere quem o puder ou souber considerar,
quanta é a sua grandeza e dignidade do Filho, cujas bodas se festejam,
tão infinito, tão imenso e tão Deus como o próprio
Pai, e daqui forme o conceito de qual será o banquete, porque toda
a outra conseqüência e conjectura feita de uns homens a outros
homens, por mais amigos, por mais amados, por mais cheios de graça,
por mais santos e por mais dignos que sejam os que se hão de assentar
àquela soberana mesa, é infinitamente desigual à sua
magnificência.

Haverá, porém, quem cuide — e fundado no nosso mesmo
Evangelho -que a grandeza e magnificência da mesa da glória não
se há de medir com a dignidade do Filho, senão com a dignidade
dos convidados. Assim o disse o mesmo rei, quando eles não quiseram
vir: Sed qui invitati erant, non fuerunt digni (3). Não lhes chamou
ingratos, descorteses e descomedidos, como mereciam; o que somente disse é
que não foram dignos. E quem são os dignos ou indignos do banquete
da glória? Os dignos são os que têm merecimentos de boas
obras, e os indignos os que os não têm. Não se segue daqui
que os que não foram dignos de vir ao banquete também não
tinham sido dignos de ser chamados a ele, porque a dignidade que faz dignos
de ser chamados funda-se na excelência da natureza racional, capaz de
ser elevada a ver a Deus; e a dignidade que faz dignos de o ver e gozar na
glória funda-se na disposição da vontade e merecimento
das boas obras. E daqui vem que, sendo o banquete o mesmo, uns o gozam mais,
outros menos, segundo a maior ou menor dignidade, isto é, segundo o
maior ou menor merecimento com que se fazem dignos. Logo, se a porção
ou graus da glória — que Deus não quis que alcançássemos,
senão a título de prêmio — se mede ou há
de medir no céu pelos merecimentos desta vida, e o merecimento humano,
por grande e heróico que seja, sempre é curto e limitado, a
mesma sentença do rei, com que diz que os convidados não foram
dignos, não só se lhes nega a eles a dignidade, mas também
diminui ao banquete, porque, medido com os merecimentos, ainda dos dignos,
e muito dignos, sempre será limitado.

Bem se inferia assim, se Deus fizera o banquete para nós por amor
de nós; mas o Evangelho nega a conseqüência, e prova o contrário,
porque diz que o não fez o rei para os convidados por amor dos convidados,
senão para os convidados por amor do Filho: Fecit nuptias Filio suo.
Dizei-me: quando nasce ou se desposa um príncipe primogênito,
não se fazem festas reais com a maior grandeza, com a maior majestade,
com o maior aparato e empenho que é possível? Sim. E esse empenho
e aparato das festas reais, com quem se mede? Com o merecimento do povo, que
as há de ver e gozar, ou com o merecimento e grandeza do príncipe,
por quem se fazem? Claro está que com o merecimento e grandeza do príncipe.
Pois o mesmo se passa no banquete do céu. A grandeza da glória
e bem-aventurança que havemos de gozar não se mede pela estreiteza
dos nossos merecimentos, que são limitados, senão pelos merecimentos
e dignidade do príncipe, que é infinita. Os merecimentos nossos,
fundados nos seus, só servem de ter melhor lugar no banquete, assim
como cá nas festas uns têm lugar mais alto, outros mais baixo.
Porém o ver e gozar absolutamente, ou a grandeza do que se vê
e se goza, não se mede pelos nossos merecimentos, senão pelos
de Cristo, porque se não foram os merecimentos de Cristo, que é
a causa de nossa predestinação, a ninguém se dera a glória.

Considerai agora qual é a grandeza infinita do príncipe desposado
nas bodas, e daí podereis inferir qual será a magnificência
do banquete feito para elas. Assim o declarou com majestosa energia o mesmo
rei. No recado que deu aos segundos criados, disse: Ecce prandium meum paravi:
venite ad nuptias (Mt. 22, 4). Notai que não disse está preparado
o banquete, vinde ao banquete, senão: está preparado o banquete,
vinde às bodas. E por quê? Porque as mesmas bodas, por serem
de quem eram, eram as que mais encareciam qual havia de ser o banquete. Como
se dissera: Já uma vez não quisestes vir ao banquete, sem dúvida
porque não tendes entendido qual ele é. E para que vos arrependais
de não ter querido, e venhais com tanta ambição como
vontade, adverti e considerai qual será o banquete, pois é feito
para as bodas de meu Filho: Venite ad nuptias. Se o banquete fora feito para
vós, então o podereis estimar menos; mas sendo feito para o
Filho do Rei, e havendo vós de assentar à mesa com ele, como
vos podeis escusar? Assim concluiu com mais alta e mais adequada consideração
que as primeiras, o mesmo Santo Agostinho: Ubi erit unicus ejus, ibi erunt
et illi: haeredes quidem Dei, cohaeredes autem Christi. Já não
argumenta Agostinho da terra para o céu, nem dentro do mesmo céu
com o merecimento e dignidade dos que Deus escolheu para a glória,
nem com a graça e amor com que os escolheu. Não diz que os convidados
se assentaram à mesa com os patriarcas, apóstolos e mártires,
que tanto padeceram e mereceram, nem com os anjos e arcanjos, e as outras
hierarquias supremas dos espíritos bem-aventurados, nem, finalmente,
que terão lugar com a mesma Mãe de Deus, senão com o
Filho: Ubi erit unicus ejus, ibi erunt et illi — porque este é
só o argumento cabal, e esta a medida adequada da magnificência
do banquete. Por isso ajunta, com nova e canônica confirmação,
que o gozaremos não só como herdeiros de Deus, senão
como co-herdeiros de Cristo: Haeredes quidem Dei, cohaeredes autem Christi.
Faz muita diferença Agostinho, e considera grande vantagem em entrarmos
no banquete da glória, mais como co-herdeiros de Cristo que como herdeiros
de Deus. E por que razão? Não por outra – que não
pode ser outra — senão pela que ponderamos em todo este discurso.
Porque entrar ao banquete como herdeiros de Deus, declara somente a magnificência
de ser feito por Deus; porém entrar como co-herdeiros de Cristo, acrescenta
a vantagem não só de ser feito por Deus, mas por Deus e para
seu Filho: Qui fecit nuptias Filio suo.

V

E se estas duas considerações ainda não chegam a nos
persuadir de todo, passemos à terceira e última, de que se não
pode passar. Na primeira vimos o autor, na segunda o motivo, nesta veremos
o preço. Na primeira, o autor onipotente que fez o banquete; na segunda,
o motivo imenso por que se fez; nesta terceira, o preço infinito que
custou o fazer-se. E se a primeira consideração foi incompreensivelmente
grande, e a segunda ainda maior, esta é tão superior a toda
a admiração e encarecimento, que quase excede a fé. Dirá
— e com muita razão -a fé, que a quem pode tudo, não
lhe pode custar nada fazer o que pode. Que podia logo custar ao Onipotente
fazer este banquete? O mesmo Onipotente, que é o rei que o fez, o disse.
Vendo que os convidados se escusavam, mandou-lhes declarar os gastos que tinha
feito, com este segundo recado: Tauri mei et altilia occisa sunt, et omnia
parata: venite ad nuptias (Mt. 22, 4): Dizei-lhes que venham, porque as reses
e as aves já estão mortas, e tudo aparelhado. — Pois,
para o banquete da glória matou-se alguma coisa? Sim, e não
menos que o Filho de Deus. Se Cristo não morrera, nenhum Filho de Adão
podia entrar na glória, porque no paraíso da terra perdemos
o direito que tínhamos ao do céu, e pela gula de um bocado ficamos
excluídos do banquete. Morreu pois Cristo, e derramou o preço
infinito de seu sangue, e este preço infinito foi o custo que se fez
para de novo se comprar e preparar o que por tão pouco se tinha perdido.
Pesai agora, se podeis, o preço daquela morte, e contai as gotas daquele
sangue, cada uma das quais vale mais que infinitos mundos, e então
podereis rastear de algum modo o valor incompreensível do que com ele
se comprou. Este mundo, que tanto nos leva os olhos e os corações,
e tantas coisas tem deleitáveis, dignas do poder e liberalidade de
seu Autor, não custou a Deus mais que um aceno de sua vontade. E se
quisera fabricar outro mundo mais precioso, em que a terra fora ouro, o mar
e os rios prata, as areias pérolas, os penhascos diamantes, as plantas
esmeraldas, as flores rubis e safiras, e os frutos e seus sabores proporcionados
a esta riqueza e delícia, com outro aceno da mesma vontade, e sem mais
tempo que um instante, o pudera criar de nada. Qual será logo o preço
daquele bem, ou suma de bens que a este mesmo Deus, tão justo como
poderoso, não custou menos que a morte e sangue de seu Filho? Mas ponderemos
as palavras do Pai, que todas estão cheias de profundos mistérios,
com que mais se declara este.

Tauri mei et altilia occisa sunt; diz primeiramente o rei que estão
mortas as reses e as aves para o banquete. E que reses e aves são estas?
Já se sabe que na parábola são o que são, e no
fundo dela o que significam. Sendo, pois, o significado de umas e outras Cristo
morto, como dizem todos os intérpretes, as reses, que são animais
da terra, significam a humanidade de Cristo, e as aves, que são do
céu, a divindade. E posto que a divindade seja imortal, de ambas se
diz, contudo, que estão mortas: Tauri mei et altilia occisa sunt —
porque, como a natureza humana e a divina estão unidas em um suposto,
não só morre Cristo enquanto homem, mas também é
verdadeiro dizer que morreu Deus. E não deve passar sem reparo o modo
e distinção advertida, com que o rei falou neste caso, porque
às reses chama suas, e às aves não: Tauri mei et altilia.
Pois se o rei é Deus, Senhor de tudo, por que chama suas as reses,
e não as aves? Pela mesma razão que temos dito. Sobre a humanidade
de Cristo tem Deus domínio; sobre a divindade não tem nem pode
ter domínio, porque é o mesmo Deus: e como as reses, no composto
inefável de Cristo, significam o que tem de humano, e as aves o que
tem de divino, por isso o rei, que significa e representa a Deus, às
reses chama suas, e às aves não: Tauri mei et altilia. Como
se nos dissesse: o humano que há em Cristo é meu, o divino não
é meu: sou eu. Finalmente a palavra occisa sunt, que significa não
qualquer morte, mas violenta, posto que própria para as reses e aves
do banquete, também a disse o rei com particular mistério e
energia, porque tal foi a morte de seu Filho, com que Deus nos preparou o
banquete dá glória. Não morte natural que bastara —
mas violenta, e não com o sangue congelado nas veias, mas derramado
delas. No mesmo texto temos o caso, e toda a história dele singularmente
descrita.

Quando o rei mandou segundo recado aos convidados, alguns deles foram tão
insolentes e furiosos que não só não quiseram vir, mas
prenderam os criados do rei, e lhes fizeram muitas afrontas, e por fim os
mataram: Reliqui vero tenuerunt servos ejus, et contumeliis affectos occiderunt
(4). Os criados que levavam este segundo recado, já dissemos que eram
os apóstolos. Os convidados que os prenderam, afrontaram e mataram,
não há dúvida que foram os cidadãos de Jerusalém,
os quais não só tiraram a vida a alguns dele, senão também
ao Apóstolo dos apóstolos, que foi o mesmo Cristo, e de quem
particularmente fala o texto. Prova-se por muitos princípios. Primeiro
porque Cristo foi próprio e particular apóstolo do povo de Israel,
como ele mesmo disse (Mt. 15,24). Segundo, porque o rei que mandou os recados
era o Padre Eterno, e Cristo foi imediatamente mandado pelo Padre, como os
outros apóstolos imediatamente por Cristo. Terceiro, porque de Cristo
se verifica com toda a propriedade o ser preso, o ser afrontado com muitas
injúrias, e o ser cruelmente morto: Tenuerunt servos ejus, et contumeliis
affectos occiderunt. Nem faz contra isto o nome de servo: servos ejus, porque,
não obstante que alguns teólogos tiveram para si que Cristo,
ainda em respeito de Deus, se não podia chamar servo, é certo
que, enquanto homem, verdadeira e propriamente foi servo de Deus, e assim
se pode e deve chamar, como, depois de Santo Tomás, prova douta e difusamente
o Padre Soares.

Finalmente, para que conste com toda a evidência que o nosso texto
fala literalmente da morte de Cristo, vai por diante a história, e
diz que, sabendo o rei o que aqueles homicidas tinham feito, mandou seus exércitos
a que os fossem castigar, e não só os mataram e destruíram,
mas também arrasaram e queimaram a sua cidade: Missis exercitibus suis,
perdidit homicidas illos, et civitatem illorum succendit (Mt. 22, 7). E que
exércitos mandados por Deus — que é o rei — e que
cidade assolada e abrasada foi esta? São Jerônimo: Per hos exercitus
Romanos intelligimus sub duce Vespasiano et Tito, qui occisis Judaeae populis,
preavaricatricem incenderunt civitatem: Estes exércitos — diz
São Jerônimo — foram os dos romanos, governados por Vespasiano
e Tito, os quais, destruídos e mortos os povos de Judéia, assolaram
e queimaram a cidade de Jerusalém, em pena do pecado da morte de Cristo.
— O mesmo Senhor, indo a morrer, e muitas vezes antes, lho tinha assim
profetizado. E porque esta morte tão violenta, padecida em Jerusalém,
foi a que no mesmo ponto abriu as portas do céu, e este o preço
infinito que se suspendeu para o banquete da glória, por isso o rei
mandou dizer aos convidados, que já os gastos estavam feitos, e as
reses e aves mortas: Tauri mei et altilia occisa sunt.

Mas aqui se deve notar uma diferença admirável entre o primeiro
recado e o segundo. No primeiro recado só mandou o rei que fossem chamar
os convidados: Misit servos suos vocare invitatos ad nuptias. No segundo recado
não só os mandou chamar, mas acrescentou que já o banquete
estava aparelhado e o gasto feito: Dicite invitatis: ecce prandium meum paravi,
tauri mei et altilia occisa sunt, et omnia parata. Pois, se os primeiros criados
não levaram este recado, por que o levaram os segundos? E se estes
haviam de dizer, e disseram, que já estava aparelhado o banquete, os
primeiros, por que não disseram o mesmo? Porque nem o podiam dizer
com verdade, nem o rei lhes podia mandar que o dissessem. Os primeiros criados,
como vimos, foram os profetas; os segundos os apóstolos. Os profetas
foram antes da Encarnação e morte de Cristo; os apóstolos
foram depois de sua morte; e como por meio da morte de Cristo se abriu o céu,
que estava fechado, e se preparou o banquete, que até então
só estava prometido, por isso os primeiros criados não disseram
nem podiam dizer que estava preparado o banquete, e os segundos sim; e por
isso os que mereceram a glória na lei antiga, iam esperar ao limbo,
e os que a merecem agora na lei da graça, entram logo a gozá-la.

E para que não fique sem ponderação a última
cláusula do recado, o que nele disse o rei é que tudo estava
aparelhado: Et omnia parata. Tudo, disse, porque tudo o que o homem pode querer
e tudo o que Deus pode dar se compreende no banquete da glória. Mas
não é isto o que pondero. O em que reparo é que tendo
dito no princípio: Ecce prandium meum paravi, torne a repetir no fim:
Et omnia parata. Se tinha dito que já estava aparelhado o seu banquete,
por que torna a dizer que está aparelhado tudo? Porque antes da última
cláusula fez menção do que estava morto para o mesmo
banquete, e antes da primeira não; e para vir em conhecimento do que
é ou pode ser o banquete da glória, não se forma tão
grande conceito de dizer Deus que é seu: Prandium meum, quanto de se
entender que custou a morte de Deus: Tauri mei et altilia occisa sunt. Por
isso acrescentou depois: Et omnia parata, porque muito mais se encarece a
grandeza do banquete por custar o que custou, do que por ser de quem é.
É de Deus, e custou a morte de Deus: logo muito mais se engrandece
pelo preço que pelo autor, porque Deus que o fez, como onipotente,
pode fazer mais e menos; mas o mesmo Deus, que o pagou como justo, não
pode dar menos pelo que vale mais. Oh! Deus, sempre incompreensível,
mas nunca com tanto excesso como neste mistério! Sendo o Pai o que
fez as bodas, e o Filho o desposado, que houvesse de morrer o desposado para
o Pai fazer o banquete das bodas? Pare a consideração neste
pasmo, pois não pode passar daqui.

VI

Tem-nos mostrado o Evangelho dentro em si mesmo qual seja a magnificência
do banquete da glória, pelo Autor, pelo motivo e pelo preço
dela, tudo infinito: infinito quem a fez, infinito por quem se fez, e infinito
o que custou fazer-se. Mas somos chegados a ponto em que o mesmo Evangelho
parece que nos desfaz tudo o que com ele fizemos até agora. Não
querendo vir os convidados ao primeiro e segundo recado, mandou o rei chamar
outros, e, depois que estiveram assentados à mesa, qui-la honrar o
mesmo rei com a majestade de sua presença: Intravit, ut videre discumbentes.
Não há festa sem desar, e assim aconteceu nesta. Viu entre os
demais um homem que não estava vestido com a decência que convinha
à realeza do banquete, estranhou o atrevimento, e mandou a seus ministros
que o lançassem fora, e, atado de pés e mãos, o levassem
ao cárcere. As palavras que disse o rei foram: Quomodo huc intrasti,
non habens vestem nuptialem? Como entraste aqui sem vestidura nupcial? —
A vestidura nupcial, como declaram todos os Padres e expositores católicos,
é a graça de Deus. Sem graça de Deus, é de fé
que ninguém pode entrar no céu: logo este banquete, de que até
agora falamos, não é nem pode ser o banquete da glória.
Mais: a glória e bem-aventurança do céu, de sua própria
natureza é perpétua e eterna, porque doutra sorte não
seria bem-aventurança; e quem uma vez entrou na glória não
pode sair nem ser privado dela. Este homem que entrou e estava assentado à
mesa sem vestidura nupcial, foi lançado fora do banquete: logo este
banquete não é o da glória.

Este argumento é tão forte, que só o diviníssimo
Sacramento do Altar nos pode dar a solução deles, tão
verdadeira como admirável, e tão própria deste dia como
verdadeira. Respondo que esta mesma mesa no princípio e na continuação
da parábola era o banquete da glória; porém, no fim da
mesma parábola, a que agora chegamos, é o banquete do Sacramento.
E porque à mesa do Santíssimo Sacramento pode haver homens tão
atrevidos e sacrílegos que cheguem com consciência de pecado
— o qual só Deus conhece, e os outros que estão à
mesma mesa não — por isso o rei, que é Deus, viu que um
dos que estavam assentados a ela não tinha, como os demais, a vestidura
da graça: Et vidit ibi hominem non vestitum veste nuptiale. Aos que
não quiseram vir ao banquete, enquanto banquete da glória, disse
o rei que não eram dignos: Qui invitati erant, non fuerunt digni —
porque ao banquete do céu, que é o da glória, ninguém
pode entrar, senão somente os dignos; porém, no banquete da
terra, que é o Santíssimo Sacramento, bem pode entrar algum
que seja indigno; e por isso o rei, cujos olhos só vêem e penetram
as consciências, viu que um dos que estavam à mesa não
trazia vestidura nupcial: Non vestitum veste nuptiale.

A distinção e diferença bem vejo que estão vendo
todos que é muito verdadeira e muito acomodada. Mas também vejo
que igualmente duvidam da suposição dela, e que me estão
perguntando como pode, ou podia ser, que no mesmo dia e na mesma parábola
de Cristo, a mesma mesa e o mesmo banquete, que começou em banquete
da glória, acabasse em banquete do Sacramento? Aqui está o ponto
da maior dificuldade. Mas vede como naturalmente foi assim, nem podia ser
de outro modo. O banquete havia de ser ao jantar, que assim o disse o rei:
Ecce prandium meum paravi. E como os convidados não quiseram vir ao
primeiro recado, e foi necessário ir o segundo, em que houve más
respostas, prisões, injúrias e mortes, com estas dilações,
que não se fizeram na mesma corte do rei, senão na outra cidade
que refere o texto, passaram-se as horas do jantar. Depois disto despachou
o rei, e despediu os seus exércitos, para que fossem castigar os homicidas
e queimar a cidade rebelde, em que se gastou muito mais tempo. Finalmente
foram-se chamar outros homens, que viessem substituir os lugares dos convidados,
e estes não se trouxeram de junto ao paço do rei, mas foram-se
buscar, por seu mandado, ao fim da cidade e às saídas das ruas:
Ite ad exitus viarum (Ibid. 9). Nestas diligências, tantas e tão
detençosas, posto que feitas a toda a pressa, passou-se forçosamente
o resto do dia, com que o banquete veio a se fazer à noite, e já
não foi jantar, como estava, determinado, senão ceia. E como
foi ceia, e não jantar, e as iguarias eram as mesmas, por isso também
o que era o banquete da glória se mudou em banquete do Sacramento.

E qual é ou foi a razão desta tão notável mudança?
A razão clara e manifesta é porque entre a bem-aventurança
do céu e o Sacramento na terra, não há outra distinção
nem outra diferença de banquete a banquete, senão ser um de
dia, outro de noite; um com luz do sol, outro com luz de candeia; um com o
lume da glória, que é claro, outro com o lume da fé,
que é escuro; um que se goza e se vê, outro que se goza sem se
ver. Não é certo que o mesmo Deus que se goza no céu
é o que está no Sacramento? Sim. Não é também
certo que lá se vê esse mesmo Deus, e cá não? Também.
Pois essa é só a diferença que há entre o banquete
da glória no céu e o do Sacramento na terra. A glória
é o sacramento com as cortinas corridas; o Sacramento é a glória
com as cortinas cerradas. Lá come-se Deus exposto e descoberto: aqui
come-se coberto e encerrado. Se os que se assentaram hoje a esta mesma mesa,
parte foram cegos e parte não, que diferença havia de haver
entre uns e outros? Os que tivessem olhos haviam de comer e ver o que comiam;
os cegos não haviam de ver o que comiam, mas haviam de comer as mesmas
iguarias que os outros. O mesmo nos sucede a nós, em comparação
dos bem-aventurados do céu. Eles comem e vêem, porque comem de
dia: nós comemos e não vemos, porque comemos de noite. É
verdade que ainda que de noite, comemos à luz da candeia, que é
o lume da fé; mas este lume é de tal qualidade, que certifica
mas não mostra, porque, se mostrara o que certifica, já não
fora fé.

Quando o rei mandou ir preso o que se assentou à mesa sem vestidura
nupcial, disse que o levassem às trevas exteriores: Mittite eum in
tenebras exteriores (Ibid. 13). E por que disse nomeadamente às trevas
exteriores, ou trevas de fora? Para significar, como verdadeiramente era,
que também dentro na mesma sala, onde se fazia o banquete, havia trevas.
As trevas do cárcere, onde mandava levar o delinqüente, eram trevas
exteriores e de fora; as trevas da sala, onde comiam os convidados, eram trevas
interiores e de dentro. E quem fazia umas e outras trevas? As trevas do cárcere
fazia-as o escuro do lugar; as trevas do banquete fazia-as o escuro da fé:
mas este escuro, ou esta escuridade da fé, tem tal excelência,
que tanto nos assegura a nós da verdade do que não vemos, como
a vista certifica aos bem-aventurados da verdade do que vêem. Para ver
os convidados, diz o texto que entrou o rei: Intravit rex, ut videret discumbentes.
E nota Abulense que o fim e intento desta entrada foi: Ut laetificaret epulantes,
cum eis praesentiam suam exhiberet: Para alegrar, aos que comiam, com a sua
presença. — Com a sua presença, disse, e não com
a sua vista; e disse bem, porque o que nos alegra e satisfaz no banquete do
Sacramento não é a evidência da vista, senão a
certeza da presença. Por isso advertidamente o texto não diz
que entrou o rei para ser visto, senão para ver: Ut videret discumbentes.
No banquete do céu os que estão à mesa vê-nos Deus,
e eles vêem a Deus; no banquete do Sacramento, não é a
vista recíproca, senão de uma só das partes: Deus vê-nos
a nós, e nós não o vemos a ele, porque se a fé
nos certifica da presença, a mesma fé nos encobre a vista.

Mas, se o rei, como dissemos, é o Eterno Padre, e o que comemos no
banquete do Sacramento é o corpo de Cristo, como se diz que entrou
o Padre neste banquete? Porque não fora igual o banquete do Sacramento
ao banquete da glória, se o Eterno Padre também não entrara
nele. Os bem-aventurados não só vêem uma Pessoa divina,
senão todas, porque vêem a Deus como é, e Deus é
um em essência e trino em pessoas. E se no Sacramento só estivera
o corpo e sangue de Cristo, e não a divindade e a Pessoa do Verbo,
e as outras Pessoas divinas, encerrara mais em si o banquete da glória
que o do Sacramento. É, porém, certo e de fé, que tanto
encerra em si o Sacramento, quanto a glória de todos os bem-aventurados
e a do mesmo Deus, não ex vi verborum(5) — como falam os teólogos
— mas concomitanter. Ainda que por força das palavras da consagração
só esteja no Sacramento o corpo e sangue de Cristo, como este corpo
e sangue está unido à divindade, e a divindade, não por
união, mas por unidade e identidade, é inseparável das
Pessoas divinas, por isso todas as Pessoas divinas estão também
no Sacramento, não como partes essenciais de que o mesmo Sacramento
se componha, mas como partes — se assim se pode chamar — que necessariamente
o acompanham e entram nele. E esta é a verdade e propriedade com que
o rei, que é o Padre, se diz que entrou ao banquete: Intravit rex.

E se o Sacramento, quanto à substância, é o mesmo banquete
que o da gl&oacoacute;ria, quanto à grandeza e magnificência com
que se comunica aos convidados, em tudo é semelhante. No banquete da
glória repartem-se as iguarias sem se partirem, porque Deus é
indivisível, e o mesmo se passa no Sacramento: Non confractus, non
divisus, integer accipitur. No banquete da glória dá-se todo
Deus a todos, e todo a cada um; e no Sacramento tanto recebe um como todos:
Sic totum omnibus, quod totum singulis. No banquete da glória, por
mais que cresçam os convidados, não se gastam nem se diminuem
os manjares; e no Sacramento, ainda que sejam muitos os que o recebem, nem
por isso se diminui: Sumit unus, sumunt mille, nec samptus consumitur. No
banquete da glória, sendo Deus espírito, não só
faz bem-aventurados os espíritos, senão também os corpos;
e no Sacramento, dando-nos Cristo seu corpo, não só é
rejeição dos corpos, senão muito mais dos espíritos.
Ut duplicis substantiae totum cibaret hominem. No banquete da glória
os que vêem a Deus transformam-se no mesmo Deus; e no Sacramento os
que comem a Cristo também se transformam em Cristo, o qual para isso,
sendo Deus, se fez homem: Ut homines Deos faceret factus homo. No banquete
da glória enfim, gostam-se todos os deleites e delícias que
manam, como de fonte, da divindade; e no Sacramento também se gozam
e se gostam, porque a doçura e suavidade de todos se bebe ali na sua
própria fonte: In quo spiritualis dulcedo in proprio fonte gustatur
Assim o diz e ensina o Doutor Angélico, Santo Tomás, de quem
são todos os textos citados, e de quem os tomou e aprovou a Igreja.

VII

De tudo o que fica dito neste discurso, parece que bastantemente nos tem
mostrado o nosso Evangelho que o banquete que havia de ser jantar veio a ser
ceia, e que começando em convite da glória, acabou em convite
do Sacramento. O que agora resta é que todos nos aproveitemos de um
e outro, e que não sejamos tão ingratos a Deus, tão inimigos
de nós mesmos, e tão faltos de entendimento e juízo,
como os que uma e outra vez chamados não quiseram vir. A primeira razão
que nos deve animar a todos, é saber que a todos nos chama e está
chamando Deus, e que assim o banquete da glória como o do Sacramento,
para todos os fez e tem aparelhado igualmente, sem reserva nem exceção
de pessoas. Notou S. Pascásio que este mesmo rei da nossa parábola,
quando se diz que fez as bodas a seu filho, chama-se rei homem: Homini regi;
porém, depois que tratou do banquete, nunca mais se chamou homem, porque
os reis homens convidam só aos príncipes e aos grandes; o rei
Deus não é assim: a todos convida, a todos chama, todos quer
que se assentem à sua mesa, ou seja no céu a da glória,
ou na terra a do Sacramento.

Depois que os convidados descorteses ao primeiro e segundo recado não
quiseram vir, mandou o mesmo rei buscar outros que substituíssem os
seus lugares, e a instrução que deu aos criados, foi que saíssem
às ruas, e que chamassem para o banquete todos quantos achassem: Ite
ad exitus viarum, et quoscumque inveneritis, vocate ad nuptias (6). Pois,
para a mesa do rei, e em uma celebridade tão real como a das bodas
do príncipe seu primogênito, não se limitam as qualidades?
Não se assinalam os postos? Não se faz menção
de títulos ou estados, nem se distingue quais hão de ser os
chamados e quais os excluídos? Não. Chamai todos os que achardes
pelas ruas, porque assim como as ruas são públicas e comuns
a todos, assim quero que o seja a minha mesa: e assim foi. Diz o texto que
os criados ajuntaram todos quantos acharam, maus e bons: Congregaverunt omnes
quos invenerunt, malos et bonos (Ibid. 10). E destes achados e tirados das
ruas, se encheram os lugares do banquete: Et impletae sunt nuptiae discumbentium.
E que quer dizer bons e maus: malos et bonos? Quer dizer, como explica a glosa
e os doutores: Cujuscumque conditionis homines, cujuscumque gradus, cujuscumque
nationis: de qualquer nação, de qualquer condição,
de qualquer estado, de qualquer ofício, de qualquer fortuna. O hebreu
e o grego, o alto e o baixo, o grande e o pequeno, o rico e o pobre, o nobre
e o plebeu, o senhor e o escravo, o branco e o preto, todos, sem diferença
nem exclusão. E notai que antepõe o texto os maus aos bons:
malos et bonos, isto é, os menos nobres aos mais honrados, porque esta
é a maior honra e a maior magnificência da mesa de Deus. Assim
o canta ao mesmo Deus no mesmo banquete quem melhor lhe conhece a condição,
que é a sua Igreja: O res mirabilis, manducat Dominum pauper servus
et humilis: Coisa admirável que coma à mesa do Senhor, e ao
mesmo Senhor, o servo, o pobre, o humilde! — Mas se eu tivera licença
para mudar um advérbio, e trocar a ordem a estes versos, não
havia de dizer senão assim: Manducat Dominum pauper, servus et humilis?
Haud res mirabilis! Que o servo, o pobre e o humilde se assente à mesa
do Senhor? Não é isto maravilha! — Maravilha seria se
o banquete fosse de algum rei da terra; mas, sendo do Rei do Céu, que
criou a todos e morreu por todos, como havia de distinguir na mesa os que
igualou na natureza, no preço e na graça? Cá fazemos
estas distinções, e na outra vida veremos a vaidade delas. Que
confusão será dos grandes ver que o céu é dos
pequenos? E que confusão a dos que têm tantos escravos ver o
seu escravo assentado ao banquete da glória, e que o senhor ficou de
fora?

Suposto, pois, que um e outro banquete é para todos, e Deus nos chama
a todos para ambos, não nos descuidemos agora de freqüentar o
banquete da terra, para que o mesmo banquete da terra nos leve ao do céu.
Alberto Magno, tão grande na sabedoria como na piedade, em um excelente
livro que compôs do Santíssimo Sacramento, diz esta notável
sentença: Id quod nunc in Sacramenti specie percipiendo Christum agimus,
signum est, qualiter eumdem aliquando secundum dulcedinem suae deitatis in
coelesti beatitudine percipiemus: Quereis saber se haveis de ir ao céu,
e como lá haveis de ser recebido? Olhai se freqüentais cá
o Santíssimo Sacramento, e como o recebeis, porque o modo com que nesta
vida recebemos o corpo de Cristo no Sacramento, é sinal do modo com
que na outra vida receberemos a divindade do mesmo Cristo na glória:
Id quod nunc percipiendo Christum agimus, signum est, qualiter eumdem in beatitudine
recipiemus. Que esperança pode ter logo de gozar o banquete da glória,
ou quem despreza esta sagrada mesa, como os primeiros convidados desprezaram
a outra, ou quem chega à mesma mesa com tão pouca disposição
e pureza de consciência, como o que foi lançado dela e levado
ao cárcere das trevas, que é o inferno? Quando o rei deu esta
sentença, disse que naquele lugar escuro e subterrâneo haveria
choro e ranger de dentes: Ibi erit fletus et stridor dentium (Ibid. 13). Onde
se deve muito advertir que dois tormentos, de que só fez menção,
um é da boca, outro dos olhos. No inferno há muitos outros tormentos,
e mais terríveis, com que o fogo e os demônios atormentam os
condenados. Por que fez logo menção somente destes dois, com
que os mesmos condenados se atormentam a si mesmos, e um dos olhos, outro
da boca? Porque como o comer a Deus tem por prêmio o ver a Deus, e a
culpa de o comer indecentemente tem por castigo não o ver eternamente,
a culpa de o comer indecentemente aquele miserável foi castigada na
boca, e o castigo de o não ver eternamente foi executado nos olhos.
Chorem eternamente os olhos, pois não hão de ver a Deus enquanto
Deus for Deus: Ibi erit fletus. E pois a boca se atreveu a tocar e comer a
Deus como não devera, morder-se também eternamente de raiva
e desesperação com seus próprios dentes: Et stridor dentium.

Daqui inferiu Cristo, Senhor nosso, aquela tremenda conclusão: Multi
enim sunt vocati, pauci vero electi (Mt. 22,14): porque muitos são
os chamados e poucos os escolhidos. — Mas, se os escolhidos são
os que entraram com vestidura nupcial e ficaram no banquete, e o não
escolhido, que entrou indecentemente vestido, foi um só, como diz o
Senhor e infere do sucesso desta mesma parábola que os chamados são
muitos e os escolhidos poucos? Esta dúvida deu já muito em que
entender aos intérpretes, mas tem fácil solução.
Porque os chamados não foram só os que vieram ao banquete, senão
também os que não quiseram vir. E como todos os que vieram e
não vieram foram chamados, e ainda dos que vieram um não foi
escolhido, bem se infere que os chamados são muitos e os escolhidos
poucos. Poucos em respeito de todo o número dos chamados, e menos ainda
em respeito do desejo que Cristo tem, e do preço que despendeu para
que todos se salvem. Porém, o que sobretudo faz ao nosso intento, é
que todos os chamados que vieram com vestidura nupcial ao banquete do Sacramento,
todos foram escolhidos: pauci electi. Poucos sim, mas escolhidos todos. E
por que razão? Porque o fim dos chamados é a glória,
o pão dos escolhidos é o Sacramento, e todos os que usam bem
do pão dos escolhidos conseguem o fim dos chamados. Não há
fim sem meios, e todos os que se sabem aproveitar deste soberano meio, tão
aparelhado e tão fácil, todos os que freqüentam, com a
decência e disposição que convém, a mesa do Santíssimo
Sacramento, todos os que comem e se sustentam do pão dos escolhidos,
que é o banquete de Deus na terra, todos conseguem o fim dos chamados,
que é o do céu.

VIII

Grande consolação por certo, cristãos, para todos os
que assim o fazem, como igual desconsolação também, e
afronta e vergonha grande para os que por interesses ou apetites tão
vãos, como são todos os deste mundo, deixam o banquete divino
do Sacramento, e perdem o da glória. Aqueles descorteses e mal-entendidos,
que chamados ao banquete não quiseram vir, diz o texto que um se foi
para a sua lavoura, outro para a sua negociação: Alius in villam
suam, alius vero ad negotiationem suam (Ibid. 5). Vede o que perderam; e por
quê? Que podia granjear um na sua negociação e outro na
sua lavoura, que tivesse comparação com o que desprezaram: Illi
autem neglexerunt (Ibid. 5)? Chama-nos Deus para o descanso e para estarmos
assentados à sua mesa, e nós antes queremos trabalhar e suar
com o mundo, que descansar e regalar com Deus. Tanto podem conosco as aparências
do presente, e tão pouco a fé e esperança do futuro.
De ninguém se podia recear menos esta desatenção, que
dos mesmos a quem o rei mandou chamar. Mandou chamar lavradores, que são
os que foram para a sua lavoura, e mercadores, que são os que foram
para a sua negociação. E por que mais lavradores e mercadores
que gente de outro trato ou de outros ofícios? Porque assim o lavrador
como o mercador, são homens que têm por exercício e profissão
acrescentar o cabedal. O lavrador semeia pouco para colher muito; o mercador
compra por menos para vender por mais. E por isso mesmo assim aos lavradores
como aos mercadores os devia trazer à mesa do rei o seu próprio
interesse. Que melhor lavoura que semear na terra e colher no céu?
E que maior mercancia que vender o tempo e comprar a eternidade? Oh! eternidade
enjeitada! Oh! glória desprezada! Oh! céu nem querido nem crido!

Credes vós, que vos chamais cristãos, credes que há
céu? Credes que há glória? Credes que há eternidade?
Dizeis que sim, de que eu duvido. Mas, se é verdade que credes tudo
isto que tenho dito, como o não quereis? Assim o diz o Evangelho, que
não quiseram os que vós imitais: Et nolebant venire (Ibid. 3).
Se tanto pode convosco a lisonja do presente, e tão pouco a fé
do futuro, por que não considerais no presente esse mesmo presente
onde há de vir a parar? Coisa muito digna de admiração
é que dos primeiros e segundos chamados, todos se escusassem e nenhum
quisesse vir, e que os últimos todos viessem e nenhum se escusasse.
Os recados e os criados não eram do mesmo rei, e as bodas as mesmas?
Que homens foram logo estes, de juízos e vontades tão diferentes,
que nenhum repugnou, e todos quiseram vir? Olhai onde o rei os mandou buscar,
e onde estavam quando vieram: Ite ad exitus viarum (Ibid. 9): Ide aos fins
dos caminhos. Et quoscum que inveneritis, vocate: e todos os que ali achardes,
chamai a esses. — Sabeis por que não acudimos ao chamado de Cristo?
É porque não estamos nos fins dos caminhos. Os princípios
dos caminhos, que cada um toma para a sua vida, e também os meios deles,
são muito enganosos: os fins, e onde vão parar, esses são
os que desenganam. Todas as cidades, e mais as cortes — como esta era
— têm três estradas reais por onde vai o fio da gente, e
onde concorrem todas: a das riquezas, a das honras, a dos deleites. Mas os
que se põem com a consideração ou com os sucessos da
mesma vida onde estas estradas vão parar: Ite ad exitus viarum, estes
são os que Deus busca, e estes os que acha: Et quoscumque inveneritis,
vocate.

Também houve outra razão que muito moveu e obrigou as vontades
dos que vieram em último lugar. Quando foram chamados os primeiros
uma e outra vez, ainda o rei se não tinha irado: Iratus est rex; ainda
não tinba mostrado o rigor de sua justiça: Perdidit homicidas
illos, et civitatem illorum succendit (7). E por isso não aceitaram
o convite, nem respeitaram o recado, nem temeram o rei. Porém os outros,
que viram a benignidade do rei trocada em ira, os rebeldes feitos em quartos,
e a cidade em cinzas, que viram arder sem exceção as casas humildes,
os palácios soberbos e as torres mais altas, como lhes não haviam
de alumiar os olhos aquelas labaredas, e como lhes não haviam de abrandar
os corações, ainda que fossem de bronze, um tal incêndio?
Alguns, abstraindo da história, e tomando em geral a culpa e o castigo,
reconhecem neste fogo o do inferno, que é o último paradeiro
dos que desprezam o céu. E será bem que os interesses de tão
pouco momento, e os gostos tão leves e tão breves, com os desta
vida, se vão lá pagar no inferno eternamente? Pois, isto é
o que querem, sem querer, os que tanto caso fazem do presente, e tão
pouco do futuro, e por lograr o engano do que é — ou não
é — não reparam no que há de ser.

Disse o que querem sem querer, porque bem vejo que lá dentro nos vossos
corações estais dizendo que, se agora não quereis, haveis
de querer depois, e que se agora sois como os primeiros que não quiseram
vir, depois sereis como os últimos que vieram. Este é o engano
comum com que o demônio nos cega e nos vai entretendo, até que
nos leva, já perdidos, à condenação. Pede-nos
a vontade agora, e prometemo-la para depois. Deus nos livre de uma vontade
habituada a não querer, porque nunca quer. Olhai o que diz o texto:
Et nolebant venire: E eles não queriam vir. — Não diz:
nolerunt, senão: nolebant: não diz que não quiseram,
senão que não queriam. Se dissera não quiseram, significava
um ato de vontade; mas dizendo não queriam, não significa ato,
senão hábito; e vontade habituada a não querer, nunca
quer. Por isso não quiseram a primeira vez que foram chamados, nem
a segunda em que os tornaram a chamar, e se os chamassem a terceira, também
não haviam de querer. Mas se o rei foi tão bom e tão
benigno, que sem embargo de não quererem vir a primeira vez, os chamou
a segunda, por que os não mandou também chamar terceira vez?
Este é o mais tremendo ponto de toda esta matéria. Ninguém
se pode converter a Deus sem Deus o chamar com a sua inspiração
e o prevenir com o auxílio de sua graça. E Deus, ainda que nos
chama uma e outra vez, se nós desprezamos a vocação,
e não acudimos a esta, também ele subtrai as suas inspirações,
e nos nega justamente os seus auxílios. E que será da miserável
alma destituída dos auxílios de Deus. Ouvi a S. Gregório
Papa: Nemo contemnat, nedum vocatus excuset, cum voluerit intrare non valeat:
Ninguém despreze a vocação e inspiração
divina, porque, se quando é chamado, não quer ir, depois, ainda
que queira, não poderá.

E para que nos desenganemos, e conheçamos todos que podemos chegar
a tal estado, em que totalmente não possamos, ainda que quiséssemos,
confirmemos a verdade desta doutrina de São Gregório com a última
cláusula do nosso Evangelho, que só nos resta por ponderar.
Mandou o rei que o que tinha vindo ao banquete sem vestidura nupcial, atado
de pés e mãos, fosse lançado no cárcere das trevas:
Ligatis manibus et pedibus ejus, mittite eum in tenebras exteriores (8). E
diz o texto que ouvindo o miserável homem esta sentença, emudeceu,
e não disse palavra: At ilIe obmutuit. Este emudecer é o que
mais me assombra e atemoriza. Homem miserável, homem pusilânime,
homem inimigo de ti mesmo e sem juízo, por que não apelas da
sentença para o mesmo rei? Não vês que é tão
demente e piedoso, que ainda ofendido te chama amigo: Amice, quomodo huc intrasti
(9). Não vês que o mesmo dia de tanta celebridade é muito
aparelhado para o perdão? Se não tens com que escusar a tua
culpa, por que a não confessas? Por que te não lanças
aos pés do Pai, e lhe pedes misericórdia por amor do Filho,
e pela mesma humanidade, com que se desposou? Nada disto fez o miserável,
e nada disto podia fazer, ainda que quisesse, porque a mesma sentença
em pena da sua culpa o inabilitou para tudo. Nem podia ver, porque estava
condenado às trevas; nem se podia lançar aos pés do rei,
porque tinha presos os seus; nem podia bater nos peitos, porque tinha atadas
as mãos; nem podia confessar seu pecado e pedir perdão, porque
tinha emudecida a língua. E isto é o que acontece a quem, assim
como este entrou despido da graça de Deus, chegou a ser despedido dela.
Os pés e mãos da alma, como diz Santo Agostinho, são
o entendimento e vontade, de que se compõe o alvedrio, e este, em faltando
a graça de Deus, fica tão atado e escurecido, que nem tem luz
para ver, nem mãos para obrar, nem pés para se mover, nem língua
para dizer: pequei. — Vede se pode haver mais infeliz e mais tremendo
estado, mas justamente merecido. Oh! se Deus quisesse que ao menos nos fique
muito impressa nas almas, por último documento, a culpa, por que este
miserável homem perdeu o uso de todas as potências e movimentos,
e até a mesma fala, com que se pudera remediar de tudo. E qual foi
esta culpa? Não foi outra, senão entrar ao banquete sem vestidura
nupcial, isto é, chegar à mesa do Santíssimo Sacramento
não estando em graça. Por isso emudeceu de tal sorte, que não
pôde confessar sua culpa, porque é justo juízo de Deus
castigar nas confissões o que se peca nas comunhões. Já
que a boca se atreveu a comungar em pecado, não tenha língua
para confessar seus pecados: At ille obmutuit.

Emudeceu o homem por justo castigo: nós devemos emudecer de horror
e assombro; o Evangelho emudeceu, porque não tem palavra que não
esteja ponderada; e eu também emudeço, porque não tenho
mais que dizer. Se a minha ignorância e tibieza vos não soube
chamar para o banquete, como devia, espero que interiormente o tenha feito
a graça e inspirações divinas com tal eficácia,
que freqüentando nesta vida o do Santíssimo Sacramento, mereçamos
na outra alcançar o da glória.

(1) Mandou os seus servos a chamar os convidados para as bodas (Mt. 22,3).

(2) Eis aqui tenho preparado meu banquete: vinde às bodas (Mt. 22,4).

(3) Mas os que estavam convidados não foram dignos (Mt. 22,8).

(4) Outros, porém, lançaram mão dos servos que ele enviara,
e, depois de os haverem ultrajado, os mataram (Mt.22,6).

(5) Por força das palavras.

(6) Ide pois às saídas das ruas, e a quantos achardes, convidai-os
para as bodas (Mt. 22,9).

(7) Acabou com aqueles homicidas, e pôs fogo à sua cidade (Mt.
22,7).

(8) Atai-o de pés e mãos, e lançai-o nas trevas exteriores
(Mt. 22,13).

(9) Amigo, como entraste aqui? (Mt. 22,12)?

Sermão da Epifania (1662)

Cum natus esset Jesus in Bethlehem Juda in diebus Herodis regis, ecce Magi
ab oriente venerunt (1).

I

Para que Portugal na nossa idade possa ouvir um pregador evangélico,
será hoje, o Evangelho o pregador. Esta é a novidade que trago
do Mundo Novo. O estilo era que o pregador explicasse o Evangelho: hoje o
Evangelho há de ser a explicação do pregador. Não
sou eu o que hei de comentar o texto: o texto é o que me há
de comentar a mim. Nenhuma palavra direi que não seja sua, porque nenhuma
cláusula tem que não seja minha. Eu repetirei as suas vozes,
ele bradará os meus silêncios. Praza a Deus que os ouçam
os homens na terra, para que não cheguem a ser ouvidos no céu.

Havendo, porém, de pregar o Evangelho, e com tão novas circunstâncias
como os que promete o exórdio, nem por isso cuide alguém que
o pregador e o sermão há de faltar ao mistério. Antes,
pode bem ser que rara vez ou nunca se pregasse neste lugar a matéria
própria deste dia e desta solenidade senão hoje o mistério
próprio deste dia é a vocação da gentilidade à
fé. Até agora celebrou a Igreja o nascimento de Cristo; hoje
celebra o nascimento da Cristandade. Cum natus esset Jesus in Bethlehem Juda
(2) – este foi o nascimento de Cristo, que já passou: Ecce Magi
ab Oriente venerun (3) – este é o nascimento da Cristandade,
que hoje se celebra. Nasceu hoje a Cristandade, porque os três reis
que neste dia vieram adorar a Cristo foram os primeiros que o reconheceram
por Senhor, e por isso lhe tributaram ouro; os primeiros que o reconheceram
por Deus, e por isso lhe consagraram incenso, os primeiros que o reconheceram
por homem em carne mortal, e por isso lhe ofereceram mirra. Vieram gentios,
e tornaram fiéis, vieram idólatras, e tornaram cristãos;
e esta é a nova glória da Igreja, que ela hoje celebra, e o
Evangelho, nosso pregador, refere. Demos-lhe atenção.

II

Cum natus esset Jesus in Bethlehem Juda in diebus Herodis regis, ecce Magi
ab Oriente venerunt. Estas são as primeiras palavras do Evangelho,
e logo nelas parece que repugna o mesmo Evangelho a ser meu intérprete,
porque a sua história e o seu mistério é da Índia
Oriental: Ab oriente venerunt – e o meu caso é das Ocidentais.
Se apelo para os reis e para o sentido místico, também está
contra mim, porque totalmente exclui a América, que é a parte
do mundo donde eu venho. Santo Agostinho, S. Leão papa, S. Bernardo,
Santo Anselmo, e quase todos os Padres reparam, por diversos modos, em que
os reis que vieram adorar a Cristo fossem três, e a limitação
deste mesmo número é para mim, ou contra mim, o maior reparo.
Os profetas tinham dito que todos os reis e todas as gentes haviam de vir
adorar e reconhecer a Cristo: Adorabunt eum omnes reges terrae, omnes gentes
serviente ei (4):Omnes gentes quascumquefecisti veniente, et adorabunt te,
corai Dominet (5). Pois, se todas as gentes e todos os reis do mundo haviam
de vir adorar a Cristo, por que vieram somente três? Por isso mesmo,
respondem o Venerável Beda e Ruperto Abade. Foram três, e nem
mais nem menos que três, os Reis que vieram adorar a Cristo, porque
neles se representavam todas as partes do mundo, que também são
três: Ásia, África e Europa: Tres reges, tres partes mundi
significant: Asiam, Africam, et Europam, diz Beda. E Ruperto, com a mesma
distinção: Magi tribus partibus orbis, Asiae, Europae, atque
Africae, pidei, atque adorationis exemplar existere meruerunt. Isto é
o que dizem estes grandes autores, como intérpretes do Evangelho; mas
o mesmo Evangelho, para ser meu intérprete, ainda há de dizer
mais. Dizem que os três reis significavam a Ásia, a África
e a Europa, e onde lhes ficou a América? A América não
é, também, parte do mundo, e a maior parte? Se me disserem que
não apareceu no presépio, porque tardou e veio muitos séculos
depois, também as outras tardaram; antes, ela tardou menos, porque
se converteu e adorou a Cristo mais depressa e mais sem repugnância
que todas. Pois, se cada um das outras partes do mundo teve o seu rei que
as apresentasse a Cristo, por que lhe há de faltar pobre América?
Há de ter rei que receba e se enriqueça com os seus tributos,
e não há de ter rei que com eles ou sem eles a leve aos pés
de Cristo? Sei eu – e não o pode negar a minha dor que se a primeira,
segunda, e a terceira parte do mundo tiveram reis, também o teve a
quarta, e enquanto lhe não faltou o quarto (6). Mas vamos ao Evangelho,
e conciliemos com ele esta exposição dos Padres.

Ecce Magi ab oriente venerunt. Diz o Evangelista que os reis do Oriente vieram
a adorar a Cristo, e nesta mesma limitação, com que diz que
vieram nomeadamente os do Oriente, e não outros, se reforça
mais a dúvida, porque assim no Testamento Velho, como no Novo, está
expresso que não só haviam de vir a Cristo os gentios do Oriente,
senão também os do Ocidente. No testamento Velho, Isaías,
falando com a Igreja: Ab oriente adducam semen tuum, et ab occidente congregabo
te (7); e no Testamento Novo a profecia e oráculo de Cristo: Dico vobis,
quod multi ab oriente et occidente venient (8). Pois, se não só
haviam de vir a Cristo os reis e gentes do Oriente, senão também
as do Ocidente, como diz nomeadamente o evangelista que os que vieram eram
todos do Oriente, ou como vieram só os do Oriente, e os do Ocidente
não? A tudo satisfez o mesmo evangelista, e na simples narração
da história concordou admiravelmente o seu texto com o dos profetas.
Que diz o evangelista? Cum natus esset Jesus in diebus Herodis regis, ecce
Magi ab oriente venerunt. Diz que nos dias de Herodes, sendo nascido Cristo,
o vieram adorar os Reis do Oriente – e nestas mesmas circunstâncias
do tempo, do lugar e das pessoas, como que limitou a primeira vocação
da gentilidade, mostrou que não havia de ser só uma, senão
duas, como estava profetizado. A primeira vocação da gentilidade
foi nos dias de Herodes: In diebus Herodis regis – a segunda quase em
nossos dias. A primeira foi quando Cri sto nasceu: Cum natus esset Jesus –
a segunda quando já se contavam mil e quinhentos anos do nascimento
de Cristo. A primeira foi por meio dos reis do Oriente: Ecce Magi ab oriente
venerunt – a segunda por meio dos reis do Ocidente, e dos mais ocidentais
de todos, que são os de Portugal.

Para melhor inteligência destas duas vocações, ou destas
duas epifanias, havemos de supor que neste mesmo mundo em diferentes tempos
houve dois mundos: O Mundo Velho, que conheceram os antigos, e o Mundo Novo,
que eles e o mesmo mundo não conheceu, até que os portugueses
o descobriram. O mundo Velho compunha-se de três partes: Ásia,
África e Europa, mas de tal maneira que, entrando neste primeiro composto
toda a Europa, a Ásia e a África não entravam inteiras,
senão partidas, e por um só lado, a África com toda a
parte que abraça o Mar Mediterrâneo, e a Ásia com a parte
a que se estende o Mar Eritreu. O Mundo Novo, muito maior que o Velho, também
se compõe de três partes: Ásia, África e América,
mas de tal maneira também, que entrando neste segundo composto toda
a América, a Ásia e a África, só entram nele partidas,
e com os outros dois lados, tanto mais vastos e tanto mais dilatados, quanto
o mar Oceano que os rodeia excede ao Mediterrâneo e Eritreu. E como
os autores antigos só conheceram o Mundo Velho, e não tiveram
nem podiam ter conhecimento do novo, por isso Beda e Ruperto disseram com
muita propriedade que os três Reis do Oriente representavam as três
partes do mundo: Ásia, África e Europa. Contudo, S. Bernardo,
que foi contemporâneo de Ruperto, combinando o nosso Evangelho com as
outras Escrituras, conheceu com seu grande espírito, ou, quando menos,
argüiu com seu grande engenho que, assim como houve três reis do
Oriente que levaram as gentilidades a Cristo, assim havia de haver outros
três reis do Ocidente que as trouxessem à mesma fé: Vide
autem neforte ipsi sint et tres Magi venientes iam non ab Oriente sed etiam
ab Occidentel(9). Quem fossem ou quem houvessem de ser estes três reis
do Ocidente, que S. Bernardo anteviu, não o disse, nem o pôde
dizer o mesmo santo, posto que tão devoto de Portugal, e tão
familiar amigo do nosso primeiro rei. Mas o tempo, que é o mais claro
intérprete dos futuros, nos ensinou dali a quatrocentos anos que estes
felicíssimos reis foram el-rei D. João, o Segundo, el-rei D.
Manuel, e el-rei D. João, o Terceiro, porque o primeiro começou,
o segundo prosseguiu, e o terceiro aperfeiçoou o descobrimento das
nossas conquistas, e todos três trouxeram ao conhecimento de Cristo
aquelas novas gentilidades, como os três Magos as antigas. Os Magos
levando a luz da fé do Oriente para o Ocidente, eles do Ocidente para
o Oriente; os Magos apresentando a Cristo a Ásia, África e Europa,
e eles a Ásia, África e América: Os Magos estendendo
os raios da sua estrela por todo o Mundo Velho, até às gargantas
do Mediterrâneo, e eles alumiando com o novo sol a todo o Mundo Novo
até às balizas do Oceano.

Uma das coisas mais notáveis que Deus revelou e prometeu antigamente
foi que ainda havia de criar um novo céu, e uma nova terra. Assim o
disse por boca do profeta Isaías: Ecce ego creo caelos novos, et terram
novam (10). É certo que o céu e a terra foram criados no princípio
do mundo: In principio creavit Deus caelum et terram (11) – e também
é certo, entre todos os teólogos e filósofos, que depois
daquela primeira criação, Deus não criou nem cria substância
alguma material e corpórea porque somente cria de novo as almas, que
são espirituais. Logo, que terra nova, e que céus novos são
estes, que Deus tanto tempo antes prometeu que havia de criar? Outros o entendem
doutra maneira, não sei se muito conforme à letra. Eu, seguindo
o que ela simplesmente soa e significa, digo que esta nova terra e estes novos
céus são a terra e os céus do Mundo Novo, descoberto
pelos Portugueses. Não é verdade que, quando os nossos argonautas
começaram e prosseguiram as suas primeiras navegações,
iam juntamente descobrindo novas terras, novos mares, novos climas, novos
céus, novas estrelas? Pois esta é a terra nova e esses são
os céus novos que Deus tinha prometido, que havia de criar, não
porque não estivessem já criados desde o princípio do
mundo, mas porque era este Mundo Novo, tão oculto e ignorado dentro
do mesmo mundo, que quando de repente se descobriu e apareceu, foi como se
então começara a ser e Deus o criara de novo. E porque o fim
deste descobrimento, ou desta nova criação, era a Igreja, também
nova, que Deus pretendia fundar no mesmo Mundo Novo, acrescentou logo pelo
mesmo profeta e pelos, mesmos termos – que também havia de criar
uma nova Jerusalém, isto é, uma nova Igreja, na qual muito se
agradasse: Quia ecce creo Jerusalém exultationem, et populum ejus gaudium
(12).

Não tenho menos autor deste pensamento que o evangelista dos segredos
de Deus, S. João, no seu Apocalipse: Etvidi caelum novum etterram novam.
Primum enim caelum, et prima terra abiit, et mare jam non est. Et vidi civitatem
Jerusalém novam descendentem de caelo (13). Primeiramente, diz S. João
que viu um céu novo e uma terra nova: Vidi caelum novum et terram novam.
Esta é a terra nova e o céu novo que Deus tinha prometido por
Isaías. Logo, acrescenta o mesmo evangelista, como comentador do profeta,
que à vista deste céu novo e desta terra nova, o céu
e a terra antiga desapareceram, e que o mar já não era: Primum
enim caelum, et prima terra abiit, et mare iam non est – e assim aconteceu
no descobrimento do Mundo Novo. Desapareceu a terra antiga, porque a terra
dali por diante já não era a que tinha sido, senão outra
muito maior, muito mais estendida e dilatada em novas costas, em novos cabos,
em novas ilhas, em novas regiões, em novas gentes, em novos animais,
em novas plantas. Da mesma maneira o céu também começou
a ser outro. Outros astros, outras figuras celestes, outras alturas, outras
declinações, outros aspectos, outras influencias, outras luzes,
outras sombras, e tantas outras coisas todas outras. Sobretudo o mar, que
fora, já não é: Et mare jam non est – porque até
então o que se conhecia com nome de mar, e nas mesmas Escrituras se
chama mare magnum, era o Mediterrâneo; mas, depois que se descobriu
o Mundo Novo, logo se conheceu também que não era aquele o mar,
senão braço dele, e o mesmo nome, que injustamente tinha usurpado,
se passou sem controvérsia ao oceano, que é só o que
por sua imensa grandeza absolutamente, e sem outro sobrenome, se chama mar.
E porque toda esta novidade do novo céu, da nova terra e do novo mar,
se ordenava à fundação de outra nova Igreja, esta foi
a que logo viu o mesmo evangelista, com nome também de nova: Et vidi
civitatem Jerusalem novam descendentem de caelo. Finalmente, para que ninguém
duvidasse de toda esta explicação, conclui que a mesma Igreja
nova que vira se havia de compor de nações e reis gentios, que
nela receberiam a luz da fé, e sujeitariam suas coroas ao império
de Cristo: Et ambulabunt gentes in lumine ejus ei reges terrae afferent gloriam
suam ei honorem in illam (14). Que é tudo o que temos visto no descobrimento
do Mundo Novo, ou nesta nova criação dele: Ecce creo caelos
novos ei íerram novam.

Houve porém nesta segunda e nova criação do mundo, uma
grande diferença da primeira, e de nova e singular glória para
a nossa nação. Porque, havendo Deus criado o mundo na primeira
criação por si só, e sem ajuda ou concurso de causas
segundas, nesta segunda criação tomou por instrumento dela os
portugueses, quase pela mesma ordem e com as mesmas circunstâncias,
com que no princípio tinha criado o mundo. Quando Deus criou o mundo,
diz o sagrado texto que a terra não se via porque estava escondida
debaixo do elemento da água, e tudo escuro e coberto de trevas: Terra
autem erat invisibilis – como lêem os Setenta et tenebrae erani
super faciem abyssi (15). Então dividiu Deus as águas, e apareceu
a terra; criou a luz e cessaram as trevas: Divisit aquas; facta est lux; appareat
Arida (16). Este foi o modo da primeira criação do mundo. E
quem não vê que o mesmo observou Deus na segunda, por meio dos
portugueses? Estava todo o Novo Mundo em trevas e às escuras, porque
não era conhecido. Tudo o que ali havia, sendo tanto, era como se não
fosse nada, porque assim se cuidava e tinha por fábula. Terra autem
erat vanitas ei nihil, como diz o texto hebreu (17). O que encobria a terra
era o elemento da água, porque a imensidade do Oceano, que estava em
meio, se julgava por insuperável, como a julgaram todos os antigos,
e entre eles Santo Agostinho. Atreveu-se, finalmente, a ousadia e zelo dos
portugueses a desfazer este encanto e vencer este impossível. Começaram
a dividir as águas, nunca dantes cortadas, com as venturosas proas
dos seus primeiros lenhos: foram aparecendo e surgindo de uma e outra parte,
e como nascendo de novo, as terras, as gentes, o mundo que as mesmas águas
encobriam, e não só acabaram então no mundo antigo as
trevas desta ignorância, mas muito mais no novo e descoberto as trevas
da infidelidade, porque amanheceu nelas a luz do Evangelho e o conhecimento
de Cri sto, o qual era o que guiava e levava os portugueses, e neles, e com
eles navegava. Tudo estava vendo o mesmo profeta Isaías deste descobrimento,
quando, falando com aquela nova igreja, pelos mesmos termos da primeira criação
do mundo, lhe disse: Quia ecce tenebrae operient terram, ei caligo populos;
super te autem orietur Dominus, et gloria ejus in te videbitur. Et ambulabuní
gentes in lumine tuo, ei reges in splendore ortus tui(18).

III

Isto é o que fizeram os primeiros argonautas de Portugal, nas suas
tão bem afortunadas conquistas do Novo Mundo, e por isso bem afortunadas.
Este é o fim para que Deus, entre todas as nações, escolheu
a nossa com o ilustre nome de pura na fé, e amada pela piedade. Estas
são as gentes estranhas e remotas, aonde nos prometeu que havíamos
de levar seu Santíssimo Nome. Este é o império seu, que
por nós quis amplificar e em nós estabelecer. E esta é,
foi, e será sempre a maior e melhor glória do valor, do zelo,
da religião e cristandade portuguesa. Mas quem dissera ou imaginam
que os tempos e os costumes se haviam de trocar, e fazer tal mudança,
que esta mesma glória nossa se visse entre nós eclipsada, e
por nós escurecida? Não quisera passar a matéria tão
triste, e tão indigna – que por isso a fui dilatando tanto, como
quem rodeia e retarda os passos, por não chegar aonde muito repugna.
– Mas nem a força da presente ocasião mo permite, nem
a verdade de um discurso, que prometeu ser evangélico, o consente.
Quem imaginara, torno a dizer, que aquela glória tão heroicamente
adquirida nas três partes do mundo, e tão celebrada e esclarecida
em todas as quatro, se havia de escurecer e profanar em um rincão ou
arrabalde da América?

Levantou o demônio este fumo ou assoprou este incêndio entre
as palhas de quatro choupanas, que com nome da cidade de Belém puderam
ser pátria do anticristo. E verdadeiramente que, se as Escritoras nos
não ensinaram que este monstro há de sair de outra terra e de
outra nação, já pudéramos cuidar que era nascido.
Treme, e tem horror a língua de pronunciar o que viram os olhos, mas,
sendo o caso tão feio, tão horrendo, tão atroz, e tão
sacnlego que se não pode dizer, é tão público
e tão notório que se não deve calar. Ouçam, pois,
os excessos de tão nova e tão estranha maldade os que só
lhe podem pôr o remédio; e se eles – o que se não
crê – faltarem à sua obrigação, não
é justo, nem Deus o permitirá, que eu falte à minha.
O ofício que tive naquele lugar, e o que tenho neste – posto
que indigno de ambos – são os que, com dobrado vínculo
da consciência, me obrigam a romper o silencio, até agora observado
ou suprimido, esperando que a mesma causa, por ser de Cristo, falasse e perorasse
por si, e não por ela. Assim o fizeram em semelhantes, e ainda menores
casos, os Atanásios, os Basílios, os Nazianzenos, os Crisóstomos,
os Hilários, e todos aqueles grandes Padres e mestres da Igreja, cujas
ações, como inspiradas e aprovadas por Deus, não só
devemos venerar e imitar como exemplos, mas obedecer e seguir como preceitos.
Falarei, pois, com a clareza e publicidade com que eles falaram, e provarei
e farei certo o que disser, como eles o fizeram, porque, sendo perseguidos
e desterrados, eles eram o corpo do delito que acusavam, e eles mesmos a prova.
Assim permitiu a divina Providência que eu em tal forma, e as pessoas
reverendas de meus companheiros, viéssemos remetidos aos olhos desta
corte, para que ela visse e não duvidasse de crer o que doutro modo
pareceria incrível.

Quem havia de crer que em uma colônia chamada de portugueses se viesse
a Igreja sem obediência, as censuras sem temor, o sacerdócio
sem respeito, e as pessoas e lugares sagrados sem imunidade? Quem havia de
crer que houvessem de arrancar violentamente de seus claustros aos religiosos,
e levá-los presos entre beleguins e espadas nuas pelas ruas públicas,
e tê-los aferrolhados, e com guardas, até os desterrarem? Quem
havia de crer que com a mesma violência e afronta lançassem de
suas cristandades aos pregadores do Evangelho, com escândalo nunca imaginado
dos antigos cristãos, sem pejo dos novamente convertidos, e à
vista dos gentios atônitos e pasmados? Quem havia de crer que até
aos mesmos párocos não perdoassem, e que chegassem aos despojos
de suas igrejas, com interdito total do culto divino e uso de seus ministérios:
as igrejas ermas, os batistérios fechados, os sacrários sem
sacramento enfim, o mesmo Cristo privado de seus altares, e Deus de seus sacrifícios?
Isto é o que lá se viu então: e que será hoje
o que se vê, e o que se não vê. Não falo dos autores
e executores destes sacrilégios, tantas vezes, e por tantos títulos
excomungados, porque lá lhes ficam papas que os absolvam. Mas que será
dos pobres e miseráveis índios, que são a presa e os
despojos de toda esta guerra? Que será dos cristãos? Que será
dos catecúmenos? Que será dos gentios? Que será dos pais,
das mulheres, dos filhos, e de todo o sexo e idade? Os vivos e sãos
sem doutrina, os enfermos sem sacramentos, os monos sem sufrágios nem
sepultura, e tanto gênero de almas em extrema necessidade sem nenhum
remédio? Os pastores, parte presos e desterrados, parte metidos pelas
brenhas; os rebanhos despedaçados; as ovelhas, ou roubadas, ou perdidas;
os lobos famintos, fartos agora de sangue, sem resistência; a liberdade
por mil modos trocada em servidão e cativeiro; e só a cobiça,
a tirania, e sensualidade, e o inferno contentes. E que a tudo isto se atrevessem
e atrevam homens com nomes de portugueses, e em tempo de rei português?

Grandes desconcertos se lêem no mesmo capítulo do nosso Evangelho,
mas de todos acho eu a escusa nas primeiras palavras dele: In diebus Herodis
regis. Se sucederam semelhantes escândalos nos dias de el-rei Herodes,
o tempo os desculpava ou culpava menos; mas nos dias daquele monarca, que
com o nome e com a coroa herdou o zelo, a fé, a religião, a
piedade do grande Afonso I? Oh! que paralelo tão indigno do nome português
se pudera formar na comparação de tempo a tempo! Naquele tempo
andavam os portugueses sempre com as armas às costas contra os inimigos
da fé, hoje tomam as armas contra os pregadores da fé; então
conquistavam e escalavam cidades para Deus, hoje conquistam e escalam as casas
de Deus; então lançavam os caciques fora das mesquitas, hoje
lançam os sacerdotes fora das igrejas; então consagravam os
lugares profanos em casas de oração, hoje fazem das casas de
oração lugares profanos; então, finalmente, eram defensores
e pregadores do nome cristão, hoje são perseguidores e destruidores,
e opróbrio e infâmia do mesmo nome.

E para que até a corte e assento dos reis, que lhe sucederam, não
ficasse deste paralelo, então saíam pela barra de Lisboa as
nossas naus carregadas de pregadores, que voluntariamente se desterravam da
pátria para pregar nas conquistas a lei de Cristo, hoje entram pela
mesma barra, trazendo desterrados violentamente os mesmos pregadores, só
porque defendem nas conquistas a lei de Cristo. Não se envergonhe já
a barra de Argel de que entrem por elas sacerdotes de Cristo cativos e presos,
pois o mesmo se viu em nossos dias na barra de Lisboa. Oh! que bem empregado
prodígio fora neste caso, se, fugindo daquela barra o mar, e voltando
atrás o Tejo, lhe pudéssemos dizer, como ao rio e ao mar da
terra que então começava a ser santa: Quid est tibi, mare, quodfugisti?
Ei tu, Jordanis, quia conversus es retrorsum (19)? Gloriava-se o Tejo quando
nas suas ribeiras se fabricavam e pelas suas correntes saíam as armadas
conquistadoras do império de Cristo; gloriava-se, digo, de ser ele
aquele famoso rio de quem cantavam os versos de Davi: Dominabitur a mari usque
ad mare, ai a flumine usque ad terminas orbis terra rum (20); mas hoje, envergonhado
de tão afrontosa mudança, devera tornar atrás, e ir-se
esconder nas grutas do seu nascimento, se não é que de corrido
corre ao mar para se afogar e sepultar no mais profundo dele. Desengane-se,
porém, Lisboa que o mesmo mar lhe está lançando em rosto
o sofrimento de tamanho escândalo, e que as ondas, com que escumando
de ira batem as suas praias, são brados com que lhe está dizendo
as mesmas injúrias que antigamente a Sidônia: Erubesce, Sidon,
ah mare (21).

E não cuide alguém que estas vozes de tão justo sentimento
nascem de estranhar eu ou me admirar de que os pregadores de Cristo e o mesmo
Cristo seja perseguido, porque esta é a estrela em que o mesmo Senhor
nasceu: Cum natus esset Jesus in Bethlehem Juda in diebus Herodis regis. Ainda
Cristo não tinha quinze dias de nascido, quando já Herodes tinha
poucos menos de perseguidor seu, para que a perseguição e o
perseguido nascessem juntos. E não só nasceu Cristo com estrela
de perseguido em Belém, senão em todas as partes do mundo, porque
em todas teve logo seu Herodes que o perseguisse. Vou supondo, como verdadeiramente
é, que Cristo não só nasceu em Belém, mas que
nasceu e nasce em outras muitas partes, como há de nascer em todas.
Por isso o profeta Malaquias, muito discretamente, comparou o nascimento de
Cristo ao nascimento do sol: Orietur vobis Sol justitiae (22). O sol vai nascendo
sucessivamente a todo o mundo, e, ainda que a umas terras nasça mais
cedo, a outras mais tarde, para cada terra tem seu nascimento. Assim também
Cristo, verdadeiro sol. A primeira vez nasceu em Belém, depois foi
nascendo sucessivamente por todo o mundo, conforme o foram pregando os apóstolos
e seus sucessores: a umas terras nasceu mais depressa, a outras mais devagar,
a umas muito antes, a outras muito depois, mas para todas teve seu nascimento.
É a energia com que falou o anjo aos pastares: Natus est vobis hodie
Salvator (Lc. 2,11): Nasceu hoje para vós o Salvador – como se
dissera: Hoje nasceu para vós; os outros, também, terão
seu dia em que há de nascer para eles. – Assim havia de ser,
e assim foi, e assim tem nascido Cristo em diferentes tempos em tão
diversas partes do mundo, mas em nenhum tempo, e em nenhuma parte nasceu onde
logo não tivesse um Herodes que o perseguisse.

Viu S. João no Apocalipse aquela mulher celestial vestida de sol,
a qual estava em vésperas do parto, e diz que logo apareceu diante
dela um dragão feroz e armado, o qual estava aguardando que saísse
à luz o filho para o tragar e comer: Et draco stetit ante mulierem,
quae eratparitura: utcumpeperisset,fihium ejus devoraret(23). Que mulher,
que filho, e que dragão é este? A mulher foi a Virgem Maria,
e é a Igreja. O Filho foi e é Cristo, que assim como a primeira
vez nasceu da Virgem Santíssima, assim nasceu e nasce muitas vezes
da Igreja, por meio da fé e pregação de seus ministros
em diversas partes do mundo. E o dragão que apareceu com a boca aberta
para o tragar, tanto que nascesse, é cada um dos tiranos que logo mesmo
Crista tem armados contra si, tanto que nasce, e onde quer que nasce. De maneira
que não há nascimento de Cristo sem o seu perseguidor ou o seu
Herodes. Nasceu Cristo em Roma, pela pregação de S. Pedro, e
logo se levantou um Herodes, que foi o imperador Nero, o qual crucificou ao
mesmos. Pedro. Nasceu Cristo em Espanha, pela pregação de S.
Tiago, e logo se levantou outro Herodes, que foi el-rei Agripa, o qual degolou
ao mesmo S. Tiago. Nasceu Cristo em Etiópia, pela pregação
de S. Mateus, e logo se levantou outro Herodes, que foi el-rei Hirtaco, o
qual tirou, também, a vida ao mesmo S. Mateus, e, estando sacrificando
o corpo de Cristo, o fez vítima de Cristo, E para que dos exemplos
do Mundo Velho passemos aos do Novo, nasceu Cristo no Japão, pela pregação
e milagres de S. Francisco Xavier, e lago se levantaram, não um, senão
muitos Herodes, que foram os Nabunangas e Taicozamas, os quais tanta sangue
derramaram, e ainda derramam, dos filhos e sucessores do mesmo Xavier. Finalmente,
nasceu Cristo na conquista do Maranhão, que foi a última de
todas as nossas, e para que lhe não faltassem naquele Belém
e fora dele os seus Herodes, se levantaram agora e declaram contra Cristo
em si mesmo, e em seus pregadores, os que tão ímpia e barbaramente,
não sendo bárbaros, o perseguem. Assim que não é
coisa nova, nem matéria digna de admiração, que Cristo
e os pregadores de sua fé sejam perseguidos.

O que, porém, excede toda o espanto, e se não pode ouvir sem
horror e assombro, é que as perseguidores de Cristo e seus pregadores
neste casa não sejam os infiéis e gentios, senão os cristãos.
Se os gentios indômitos, se as tapuias bárbaros e feras daquelas
brenhas se armaram medonhamente contra as que lhes vão pregar a fé,
se os cobriram de setas, se os fizeram em pedaços, se lhes arrancaram
as entranhas palpitantes, e as lançaram no fogo, e as comeram, isso
é o que eles já têm feito outras vezes, e a que lá
vão buscar os que pelas salvar deixam tudo; mas que a estes homens,
com o caráter de ministras de Cristo, os persigam gentilicamente os
cristãos, quando essas mesmas feras se lhes humanam, quando esses mesmos
bárbaros se lhes rendem, quando esses mesmos gentios os reverenciam
e adoram, este é o maior extrema de perseguição, e a
perseguição, mais feia e afrontosa que nunca padeceu a Igreja.
Nas perseguições dos Neros e Dioclecianos os gentios perseguiam
os mártires, e as cristãos as adoravam; mas nesta perseguição
nova e inaudita, os cristãos são os que perseguem os pregadores,
e os gentios as que os adoram. Só na perseguição de Herades
e na paciência de Cristo se acham juntos estes extremos. No Evangelho
temos a Cristo hoje perseguido, e hoje adorada, mas de quem adorado, e de
quem perseguido? Adorado dos gentios, e perseguida dos cristãos, adorado
das Magos, que eram gentios, e perseguido de Herodes e de toda a Jerusalém,
que eram os cristãos daquele tempo.

Ninguém repare em eu lhes chamar cristãos, parque há
cristãos de fé e cristãos de esperança. Os filhos
da Igreja somos cristãos de fé, parque cremos que Cristo já
veio; os filhos da sinagoga eram cristãos de esperança, parque
criam e esperavam que Cristo havia de vir. E que homens que criam em Cristo,
e esperavam por Cristo, e eram da mesma nação e do mesmo sangue
de Cristo, persigam tão barbaramente a Cristo, e que no mesmo tempo,
para maior escândalo da fé e da natureza, os Magos o busquem,
os gentios o creiam, os idólatras o adorem? Bendito sejais, Senhor,
que tal contradição quisestes padecer, e bendito mil vezes pela
parte que vos dignastes comunicar dela aos que tão indignamente vos
servem: não debalde nos honrastes com o nome de Companhia de Jesus,
obrigando-nas a vos fazer companhia no que padecestes nascido debaixo do mesmo
nome: Cum natus esset Jesus in Bethlehem Juda. Vós em Belém
de Judá, para que os vossos perseguidores fossem da vossa mesma nação,
nós em Belém, não de Judá, para que os nossos
fossem, também, da nossa; vós na mesma terra, e no mesma tempo
perseguida de Herodes e adorado dos Magos, e nós também por
mercê vossa, no mesmo tempo e na mesma terra perseguidos dos cristãos,
e pouca menos que adorados dos gentios! Assim a experimentam hoje os que,
par escapar à perseguição, andam fugitivos por aquelas
brenhas, se bem fugitivas não por medo dos homens, senão por
amor de Cristo e por seguir seu exemplo. Daqui a poucas dias veremos fugir
a Cristo; mas de quem e para quem? De onde e para onde? Não se pudera
crer, se a não mandara Deus e o dissera um anjo: Fuge in Aegyptum (Mt.
2,13): Fugi para a Egito. Pois, de Israel para a Egito, da terra dos fiéis
para a terra das gentios, e para a terra daqueles mesmos gentios donde antigamente
fugiram os filhas de Israel? Sim. Que tão mudados estão os tempos
e as homens, e a tanto chega a força da perseguição.
Futurum est enim ut Herodes quaerat puerum ad perdendum eum (24). Foge Cristo,
e fogem as pregadores de Cristo das fiéis para os infiéis e
dos cristãos para os gentios, porque os cristãos os desterram,
e os gentios os amparam, porque os cristãos os maltratam e as gentios
as defendem, porque os cristãos os perseguem e os gentios os adoram.

Não foi grande maravilha que José, presa e vendido de seus
próprios irmãos, os egípcios a venerassem e estimassem
tanta e abaixa de seu rei o adorassem? Pois, muito maior é a diferença
que hoje experimentam entre aqueles gentios os venturosos homiziados da fé,
que, escapando das prisões dos cristãos se retiraram para eles.
Os egípcios, ainda que gentios, eram homens; aqueles gentios, que hoje
começam a ser homens, ontem eram feras. Eram aqueles mesmos bárbaros,
ou brutos, que sem uso da razão, nem sentido de humanidade, se fartavam
de carne humana; que das caveiras faziam taças para lhes beber o sangue,
e das canas dos ossos frautas para festejar os convites. E estas são
hoje as feras que, em vez de nos tirarem a vida, nos acolhem entre si, e nos
veneram coma os leões a Daniel; estas as aves de rapina que, em vez
de nos comerem, nos sustentam como os corvos a Elias; estes os monstros –
pela maior parte marinhos – que, em vez de nos tragar e digerir, nos
metem dentro nas entranhas, e nelas nos conservam vivos, cama a baleia a Jonas.
E se assim nos tratam os gentios, e tais gentios, quando assim nos tratam
os cristãos, e cristãos da nossa nação e do nosso
sangue, quem se não assombra de uma tão grande diferença?

IV

Veja que estão dizendo dentro de si todos os que me ouvem, e tanta
mais quanta mais admiradas desta mesma diferença que tão grandes
efeitos não podem nascer senão de grandes causas. Se os cristãos
perseguem os pregadores da fé, alguma grande causa têm para os
perseguir. E se os gentios tanto os amam e veneram, alguma causa têm,
também grande, para os venerar e amar. Que causas serão estas?
Isto é o que agora se segue dizer. E se alguma vez me destes atenção,
seja para estes dois pontos

Começando pelo amar e veneração dos gentios, aquela
estrela que trouxe os Magos a Cristo era uma figura celestial e muito ilustre
dos pregadores da fé. Assim o diz S. Gregório, e os outros padres
camumente mas a mesma estrela o disse ainda melhor. Que ofício foi
o daquela estrela? Alumiar, guiar e trazer homens a adorar a Cristo, e não
outros homens, senão homens infiéis e idólatras, nascidos
e criados nas trevas da gentilidade. Pois, esse mesmo é a ofício
e exercício, não de quaisquer pregadores, senão daqueles
pregadores de que falamos, e por isso propriamente estrelas de Cristo. Repara
muito S. Máximo, em que esta estrela, que guiou os magos, se chame
particularmente estrela de Cristo: Stella ejus e argúi assim: Todas
as outras estrelas não são, também, estrelas de Cristo,
que como Deus as criou? Sim, são. Pois, por que razão esta estrela,
mais que as outras, se chama especialmente estrela sua: Stella ejus? Porque
as outras estrelas foram geralmente criadas para tochas do céu e do
mundo: esta foi criada especialmente para pregadora de Cristo: Quia quamvis
omnes ab eo creatae stellae ipsius sint, haec tamen propna Christi erat, quia
specialiter Christi nuntiabat adventum. – Muitas outras estrelas há
naquele hemisfério muito claras nos resplendores e muita úteis
nas influências, coma as do firmamento, mas estas de que falamos são
própria e especialmente de Cristo, não só pelo nome de
Jesus, com que se professam por suas, mas porque afim, a instituto e o ofício
para que foram criadas, é o mesmo que o da estrela dos Magos, para
trazer infiéis e gentios à fé de Cristo. Ora, se estas
estrelas fossem tão diligentes, tão solícitas e tão
pontuais em acompanhar, e guiar, e servir aos gentios, como a que acompanhou,
guiou e serviu aos Magos, não teriam os mesmos gentios muita razão
de as quererem e estimarem, de sentirem muita sua falta, e de se alegrarem
e consolarem muita com sua presença? Assim o fizeram os Magos, e assim
o diz o evangelista, não acabando de encarecer este contentamento:
Videntes autem stellam, gavisi sunt gaudio magno valde (25). Pois, vamos agora
seguindo os passas daquela estrela, desde o oriente até ao presépio,
e veremos como as que hoje vemos tão mal vistas e tão perseguidas,
não só imitam e igualam em tudo a estrela dos Magos, mas em
tudo a excedem com grandes vantagens.

Primeiramente, dizemos Magos que onde viram a estrela foi no Oriente: Vidimus
stellam ejus in oriente (26). De maneira que, podendo a estrela ser vista
de muito longe, como se vêem as outras estrelas, ela as foi buscar à
sua terra. Nesta diligência e neste caminho se avantajou muito a estrela
dos Magos aos anjos que apareceram aos pastares. Os anjos também alumiaram
aos pastares: Claritas circumfulsit illos (27) e também lhes anunciaram
a nascimento de Cristo: Evangelizo vobis gaudium magnum, quia natus est vobis
adie Salvator (28) mas essa luz e esse Evangelho, aonde o levaram os anjos?
Não às terras do Oriente ou a outras remotas, como a estrela,
mas a quatro passas da cidade de Belém, e nos mesmos arrabaldes dela,
um trânsito muito breve: Transeamus usque Bethlehem (29). E quanto vai
de Belém ao Oriente, tanto vai de um evangelizar a outro. Isto é,
comparando a estrela com os anjos, e muito mais se a compararmos com os mesmos
pastares. Estes pastores de Belém são os mais celebrados da
Igreja, e os que ela alega por exemplo e propõe por exemplar aos pastares
das almas. Mas que fizeram ou que faziam estes bons pastores? Pastares erant
in regione eadem custodientes vigilias noctis super gregem suum (30). Eram
tão vigilantes e cuidadosos do seu gado, que com ser a meia noite não
dormiam, senão que o estavam guardando e velando sobre ele. Muita bem.
Mas não sei se advertis o que nota o evangelista acercada lugar e acerca
do gado. Acercada lugar diz que estavam na mesma região: Et pastares
erant in regione eadem e, acercado gado, diz que as ovelhas eram suas: super
gregem suum. E em ambas estas coisas consiste a vantagem que lhes fez a estrela.
Os pastares estavam na sua região, e a estrela foi a regiões
estranhas: eles guardavam as ovelhas suas, e ela foi buscar ovelhas para Cristo.
E guardar as suas ovelhas na sua região, ou ir buscar ovelhas para
Cristo a regiões estranhas, bem se vê quanto vai a dizer.

Mas, ainda que tudo isto fez a estrela dos Magos, faltou-lhe muito para se
igualar com as nassas estrelas. Ela foi buscar gentios a uma região
remota, mas distante somente treze dias de caminho: as nossas vão buscá-los
em distância de mais de mil léguas de mar e por rios, que só
o das Almazonas, sem se lhe saber nascimento, tem quatro mil de corrente.
A estrelados Magos nunca saiu do seu elemento: as nossas vão já
no da terra, já no água, já no do ar, e dos ventos, suportam
os perigos e rigores de todos. A dos Magos caminhou da Arábia à
Mesopotâmia sempre dentro dos mesmos horizontes: as nossas vão
do última cabo da Europa ao mais interior da América, dando
volta a meio mundo, e passando deste hemisfério aos antípodas.
Finalmente – para que ajuntemos à distância a diferença
das terras – a estrela dos Magas ia com eles para a Terra de Promissão,
a mais amena e deliciosa que criou a natureza: as nossas desterram-se para
toda a vida em companhia de degradados, não coma eles, para as colônias
marítimas, onde os ares são mais benignos, mas para os sertões
habitadas de feras e minados de bichas venenosos, nos climas mais nocivos
da zona tórrida, Não é porém este o maior trabalho.

Vidimus stellam ejus (31). Perguntam aqui os intérpretes porque mandou
Cristo aos Magos uma estrela, e não um anjo ou um profeta? Os profetas
são as embaixadores ordinários de Deus: os anjos os extraordinários,
e tal era esta embaixada. Por que não mandou logo Cristo aos Magas
um anjo ou um profeta, senão uma estrela? A razão foi –
dizem todos – porque era conveniente que aos Magos se enviasse um embaixador
que lhes falasse na sua própria língua. Os Magos eram astrólogas:
a língua por ande os astrólogas entendem o que diz o céu
são as estrelas, e tal era essa mesma estrela, à qual chama
Santo Agostinho lingua coeli, língua do céu: pois vá
uma estrela aos Magas, para que ela lhes fale na língua que eles entendem.
Se eu não entendo a língua do gentio, nem o gentio entende a
minha, como hei de converter e trazer a Cristo? Por isso temas por regra e
instituto aprender todas a língua ou línguas da terra ande imos
pregar, e esta é a maior dificuldade e o maior trabalho daquela espiritual
conquista, e em que as nossas estrelas excedem muito a dos Magas. Notai. Os
Magas entendiam a língua da estrela, e o que ela lhes dizia; mas par
que a entenderam? Porque, coma astrólogas que eram, pelos livros dos
caldeus sabiam que aquela estrela era nova e nunca vista, e como discípulos
que também eram de Balaão sabiam pelos livros da Escritura que
uma estrela nova, que havia de aparecer, era sinal da vinda e nascimento do
Messias, descendente de Jacó: Orietur stella ex Jacob(32) – :
e por esta ciência adquirida com dobrado estudo puderam alcançar
e entender a que a estrela significava e lhes dizia. Cá não
é assim, senão às avessas. Lá, para entender a
estrela, estudavam os Magos; cá, para entendera gentio, hão
de estudar as estrelas. Nós que os imos buscar somas os que lhes havemos
de estudar e saber a língua. E quanta dificuldade e trabalho seja haver
de aprender um europeu, não com mestres e com livras, cama os Magas,
mas sem livro, sem mestre, sem princípio, e sem documento algum, não
uma, senão muitas línguas bárbaras, incultas e hórridas:
só quem o padece, e Deus por quem se padece, o sabe.

Quando Deus confundiu as línguas na torre de Babel, ponderou Filo
Hebreu, que todos ficaram mudos e surdos, porque, ainda que todos falavam
e todas ouviam, a nenhum entendia o outro. Naantiga Babel houve setenta e
duas línguas: na Babel do ria das Almazonas já se conhecem mais
de cento e cinqüenta, tão diversas entre si coma a nossa e a grega;
e assim, quando lá chegamos, todos nós somas mudos, e todos
eles surdos. Vede, agora, quanto estuda e quanto trabalha será necessário,
para que estes mudos falem e estes surdos ouçam. Nas terras dos tírias
e sidônios, que também eram gentios, trouxeram a Cristo um mudo
e surdo para que o curasse, e diz S. Marcos que o Senhor se retirou com ele
a um lugar apartado, que lhe meteu os dedos nos ouvidos, que lhe tocou a língua
com saliva tirada da sua, que levantou as alhos ao céu e deu grandes
gemidos, e então falou o mudo e ouviu o surda: Apre hendens eum de
turba seorsum, misit digitos suas in auriculas ejta expuens, tetigit linguam
ejus: et suspiciens in caelum, ingemuit, et ait illi Ephpheta, quod est adaperire
(33). Pois, se Cristo fazia os outros milagres tão facilmente, este
de dar fala ao mudo e ouvidos ao surda, como lhe custa tanto trabalho e tantas
diligências? Porque todas estas são necessárias a quem
há de dar língua a estes mudos, e ouvidos a estes surdos. É
necessário tomara bárbaro à parte, e estar e instar com
ele muito só por só, e muitas horas, e muitos dias; é
necessário trabalhar comas dedos, escrevendo, apontando e interpretando
por acenos o que se não pode alcançar das palavras; é
necessário trabalhar com a língua, dobrando-a e torcendo-a,
e dando-lhe mil voltas para que chegue a pronunciaras acentos tão duros
e tão estranhos; é necessário levantaras olhos ao céu,
uma e muitas vezes com a oração, e outras quase com desesperação;
é necessário, finalmente, gemer, e gemer com toda a alma: gemer
com o entendimento, parque em tanta escuridade não vê saída,
gemer com a memória, porque em tanta variedade não acha firmeza,
e gemer até com a vontade, por constante que seja, porque no aperto
de tantas dificuldades desfalece, e quase desmaia. Enfim, com a pertinácia
da indústria, ajudado da graça divina, falamos mudos e ouvem
os surdos, mas nem por isso cessam as razões de gemer, porque, como
trabalho deste milagre ser tão semelhante ao de Cristo, tem mui diferente
ventura, e mui outra galardão do que ele teve. Venda as circunstantes
aquele milagre, começaram a aplaudir e dizer: Bene omnia fecit: et
surdos fecit audire, et mutos 1oqui (34): não há dúvida
que este profeta tudo faz bem, porque faz ouvir os surdos e falar os mudas.
– De maneira que a Cristo bastou-lhe fazer falar um muda e ouvir um
surda, para dizerem que tudo fazia bem feito, e a nós não nos
basta fazer o mesmo milagre em tantos mudas e tantos surdos, para que nos
não tenham por malfeitores. Mas vamos seguindo a estrela.

Quando os Magos chegaram à vista de Jerusalém, esconde-se a
estrela e esta foi a mais bizarra ação, e a mais luzida que
eu nela considero. Basta, luzeiro celestial, que sois estrela de reis, e escondei-vos
e fugis da corte? Ainda não entrastes nela, e já a conheceis?
Mas, bem mostrais quanta tendes de Deus e quanto o quereis servir e louvar
todas as estrelas, como diz Davi, louvam a Deus: Laud ate eum, omnes stellae
et lumem (35): – mas o mesmo Deus disse a Jó que as louvares
das estrelas da manhã eram os que mais lhe agradavam: Cum me laudarent
astra matutina (36). E parque agradam mais a Deus os louvares das estrelas
da manhã, que os das estrelas da noite? Porque as estrelas da noite
louvam a Deus luzindo, as estrelas da manhã louvam a Deus escondendo-se;
as estrelas da noite comunicam as influências, mas conservam a luz,
as estrelas da manhã perdem a luz para melhor lograr as influências;
enfim, as estrelas da noite luzem, parque estão mais longe do sol:
as estrelas da manhã escondem-se, porque esta o mais peito. Isto é
o que fez a estrelados Magos, mas por poucas horas: as nossas por toda a vida.
A estrela dos Magas, quando se escondeu, não luziu, mas não
alumiou: as nossas escondem-se onde alumiam, e não luzem; a dos Magas
alumiava, onde aviamos reis: Vidimus stellam ejus – as nossas alumiam
onde não são vistas, nem o podem ser: no lugar mais desluzido,
e no canto mais escuro de todo o mundo. E isto é verdadeiramente esconder-se
porque não é só desterrar-se para sempre, mas enterrar-se.

Assim esteve escondida a estrela, enquanto os Magas se detiveram em Jerusalém;
mas, tanto que saíram para continuar seu caminho, logo tomou a se descobrir
e aparecer: Ei ecce stella, quam viderant in Oriente, antecedebat eos (37).
Reparai na antecedebat. Ia a estrela adiante, mas de tal maneira diante, que
sempre se acomodava e em tudo ao passo dos que guiava. Ambulante Mago stella
ambulaí, sedente sial, dormiente excubat, diz S. Pedro Crisólogo:
Quando as Magos andavam, andava a estrela; quando se assentavam, parava; quando
dormiam, velava, mas dava um passo mais que eles. – Pudera a estrela
fazer todo aquele caminho do Oriente ao Ocidente em dois momentos: Sicut fulgur
exit ab Oriente, ei parei usque ad occidentem (38). E que ela, contra a sua
velocidade natural, já movendo-se vagarosa e tardamente, já
parando e ficando imóvel, se fosse acomodando e medindo em tudo com
a condição e fraqueza daqueles a quem guiava, quanto, quando,
e como eles podiam, grande violência! e mais se levantasse os olhos
ao firmamento, e visse que as outras do seu nome davam volta ao mundo em vinte
e quatro horas, e ela quase parada. Mas assim faz e deve fazer quem tem por
ofício levar almas a Cristo. Aqueles quatro animais do carro de Ezequiel,
que olhavam para as quatro partes do mundo, e significavam as quatro evangelistas,
todos tinham asas de asas de águia, mas nota o texto que os pés
com que andavam eram de boi: Et planta pedis eorum quasi plana pedis vituli
(39). E que se haja de mover a passa de boi quem tem asas e asas de águia?
Sim, que isso é ser evangelista, isso é ter ofício de
levar o Evangelho a gentes estranhas, e isso é o que fez a estrela:
antecedebat eos.

Mas estes – eos – quem eram? Aqui está a diferença
daquela estrela às nossas. A estrela dos Magos acomodava-se aos gentios
que guiava, mas esses gentios eram os Magos do Oriente, os homens mais sábios
da Caldéia, e os mais doutos do mundo; porém as nossas estrelas,
depois de deixarem as cadeiras das mais ilustres Universidades da Europa –
como muitos deles deixaram – acomodam-se à gente mais sem entendimento
e sem discurso, de quantas criou, ou abortou a natureza, e a homens, de quem
se duvidou se eram homens, e foi necessário que os Pontífices
definissem que eram racionais, e não brutos. A estrela dos Magos parava,
sim, mas nunca tornou atrás; as nossas estrelas tomam uma e mil vezes
a desandar o já andado, e a ensinar o já ensinado, e a repetir
o já aprendida, porque o bárbaro boçal e rude, o tapuia
cerrado e bruta, como não faz inteira entendimento, não imprime
nem retém na memória. Finalmente, para o dizer em uma palavra,
a estreladas Magas guiava a homens que caminhavam nos dromedários de
Madiã, coma anteviu Isaías: Dromedarii Madian et Epha; omnes
de Saba venient, aurum ei thus deferentest(40) – e acomodar-se ao passo
dos dromedários de Madiã, ou ao sono das preguiças do
Brasil, bem se vê a diferença.

Ainda a palavra eos nos insinua outra, que se não deve passar em silêncio.
A estrela, guia e pregadora dos Magos, converteu e trouxe a Cristo almas de
gentios: mas de que gentios e que almas? Almas ilustres, almas coroadas, almas
de gentios reis: as nassas estrelas também trazem a Cristo, e convertem
almas, mas almas de gente onde nunca se viu cetro, nem coroa, nem se ouviu
o nome de rei. A língua geral de toda aquela costa carece de três
letras: F, L, R: De F, porque não tem fé, de L, porque não
tem lei, de R, porque não tem rei: e esta é a polícia,
da gente com que tratamos. A estrela dos Magos fez sua missão entre
púrpuras e brocadas, entre pérolas e diamantes, entre âmbares
e calambucos, enfim, entre os tesouros e delícias do Oriente: as nossas
estrelas fazem as suas missões entre as pobrezas e desamparos, entre
os ascos e as misérias da gente mais inculta, da gente mais pobre,
da gente mais vil, da gente menos gente de quantos nasceram no mundo. Uma
gente com quem meteu tão pouca cabedal a natureza, com quem se empenhou
tão pouca a arte e a fortuna, que uma árvore lhe dá o
vestido e o sustento, e as armas, e a casa e a embarcação. Com
as folhas se cobrem, com o fruto se sustentam, com os ramos se armam, com
o tronco se abrigam, e sobre a casca navegam. Estas são todas as alfaias
daquela pobríssima gente, e quem busca as almas destes carpas busca
só almas. Mas, porque o mundo não sabe avaliar esta ação,
como ela merece, ouça o mesmo mundo o preço em que a estimou
quem só a pode pagar.

Quando o Batista mandou seus discípulas que fossem perguntar a Cristo
se era ele o Messias, a resposta do Senhor foi esta: Euníes renuntiate
Joanni quae audistis, ei vidistis (Mt. 11,4): Ide, dizei a João a que
vistes e ouvistes. – E que é o que tinham visto e ouvida? O que
tinham visto era que os cegas viam, os mancos andavam, os leprosas saravam,
os mortos ressuscitavam: Caeci vident, claudi ambulant, leprosi mundantur,
moriui resurgunt (Mt. 11,5). E não bastavam todos estes milagres vistos,
para prova de ser Cristo o Messias? Sim, bastavam; mas quis o Senhor acrescentar
ao que tinham visto o que tinham ouvido, porque ainda era maior prova, e mais
certa. O que tinham ouvido os discípulos do Batista ora que o Evangelho
de Cristo se pregava aos pobres: Pau peres evangelizaniur (41), e esta foi
a última prova com que o Redentor do mundo qualificou a verdade de
ser ele o Messias, porque pregar o Evangelho aos pobres, aos miseráveis,
aos que não têm nadado mundo, é ação tão
própria do espírito de Cristo, que depois do testemunho de seus
milagres a pôs o Filha de Deus par selo de todos eles. O fazer milagres,
pode-o atribuir a malícia a outro espírito: o evangelizar aos
pobres nenhuma malícia pode negar que é espírito de Cristo.

Finalmente, acabou a estrela o seu curso: parou; mas onde foi parar? Usque
dunz veniens starei supra, ubi erat puer (42). Foi parar em um presépio,
ande estava Cristo sobre palhas, e entre brutos, e alio deu a conhecer: Oh!
que estrela tão santa e tão discreta! Estrela que não
quer aparecer em Jerusalém, e se vai parar no presépio; estrela
que antes quer estas em uma choupana com Cristo, que em uma corte sem ele?
Discreta e santa estrela, outra vez! Discretas e mais santas as nossas. A
razão é clara. Cristo naquele tempo estava no Presépio,
mas não estava na corte de Jerusalém; de sorte que, se a estrela
quisesse ficar na corte, havia de ficar sem Cristo. Nas cortes da cristandade
não é assim. Em todas as cortes está Cristo, e em todas
se pode estar com Cristo. Agora vai a diferença e a vantagem. Trocar
Jerusalém pelo presépio, e querer antes estar em uma choupana
com Cristo, que em uma corte, sem ele, não é fineza, é
obrigação: e isto fez a estrela dos Magos. Mas querer antes
estar no presépio com Cristo que em Jerusalém com Cristo, querer
antes estar na choupana com Cristo entre brutos, que na corte com Cristo entre
príncipes; isto é não só deixar a corte pelo presépio,
senão deixar a Cristo por Cristo, e o seu maior serviço pelo
menor: deixar a Cristo onde está acompanhado, para a acompanhar onde
está só: deixa a Cristo onde está servido, para o servir
onde está desamparado; deixar a Cristo onde e conhecido, para o dar
a conhecer ande o não conhecem.

A estrela dos Magos também deu a conhecer a Cristo: mas a quantos
homens, e em quanto tempo? A três homens, e em dois anos. Esta foi a
razão por que Herodes mandou matar todos os inocentes de dois anos
para baixa, conforme o tempo em que a estrela tinha aparecido aos Magos: Secundum
íem pus, quod exquisierat a Magi (43). Vede, agora, quanto vai daquela
estrela às nossas estralas, e da sua missão às nossas.
Deixadas as mais antigas, fizeram-se ultimamente duas, uma pelo Rio dos Tocantins,
outra pela das Almazonas: e com que efeito? A primeira reduziu e trouxe a
Cristo a nação dos Tupinambás, e a dos pochiguaras; a
segunda pacificou e trouxe à mesma fé a nação
das neengaíbas e a dos mamaianazes; e tudo isto em espaço de
seis meses. De maneira que a estrela dos Magos em dois anos trouxe a Cristo
três homens, e as nossas em meio ano quatro nações. E
como estes pregadores da fé por ofício, por instituto, por obrigação,
e por caridade, e pelo conhecimento e fama geral que têm entre aqueles
bárbaros, os vão buscar tão longe com tanto zelo, e lhes
falam em suas próprias línguas com tanto trabalho, e se acomodam
à sua capacidade com tanta amor, e fazem por eles tantas outras finezas,
que até nos brutos animais costumam achar agradecimentos, não
é muito que eles os amem, que eles os estimem, que eles os defendam,
e que antes ou depois de conhecerem e adorarem a Cristo, quase os adorem.

V

Agora se segue, em contraposição admirável ou estupenda
– e por mais digna de atenção – ver as cansas por
que as cristãos perseguem, aborrecem e lançam de si estes mesmos
homens. Perseguirem os cristãos a quem defendem os gentios, aborrecerem
os do próprio sangue a quem amam os estranhos, lançarem de si
os que têm uso da razão a quem recolhem, abraçam, e querem
consigo os bárbaros, coisa era incrível, se não estivera
tão experimentada e tão vista. E, suposto que é assim,
qual pode ser a causa? Com serem tão notáveis as efeitos, ainda
a causa é mais notável. Toda a causa de nos perseguirem aqueles
chamados cristãos, é porque fazemos pelos gentios o que Cristo
fez pelos Magas: Procid entes adoraverunt eum. Etresponsoacceptone redirentadHerodem,
per aliam viam reversi suntin regionem suam (44). Toda a providência
divina para com os Magos consistiu em duas ações: primeira,
em os trazer aos pés de Cristo por um caminho; segunda, em os livrar
das mãos de Herudes por outro. Não fora grande sem-razão,
não fora grande injustiça, não fora grande impiedade
trazer os Magos a Cristo, e depois entregá-los a Herudes? Pois, estas
são as culpas daqueles pregadores de Cristo, e esta única causa
porque se vêem, e os vedes tão perseguidos. Querem que tragamos
os gentios à fé, e que os entreguemos à cobiça;
querem que tragamos as ovelhas ao rebanho, e que as entreguemos ao cutelo;
querem que tragamos os Magos a Cristo, e que os entreguemos a Herodes. E porque
encontramos esta sem-razão, nós somos os desanuzoados; porque
resistimos a esta injustiça, nós somos os injustos; porque contradizemos
esta impiedade, nós somos os ímpios.

Acabe de entender Portugal que não pode haver Cristandade nem cristandades
nas conquistas, sem os ministros do Evangelho terem abertos e livres estes
dois caminhos, que hoje lhes mostrou Cristo. Um caminho para trazerem os Magos
à adoração, e outra para os livrarem de perseguição,
um caminho para trazerem os gentios à fé, outro para os livrare
tirania um caminho para lhes salvarem as almas, outro para lhes libertarem
os corpos. Neste segundo caminho está toda a dúvida, porque
nele consiste toda a tentação. Querem que aos ministros do Evangelho
pertença só a cura das almas, e que a servidão e cativeiro
dos corpos seja dos ministros do Estado. Isto é o que Herodes queria.
Se o caminho, por onde se salvaram os Magos, estivera à conta de Herodes,
muito boa conta daria deles: a que deu dos Inocentes. Não é
esse o governo de Cristo. A mesma Providência, que teve cuidado de trazer
os Magos a Cristo por um caminho, essa mesma teve o cuidado de os livrar e
pôr em salvo por outro; e querer dividir estes caminhos e estes cuidados
é querer que não haja cuidado nem haja caminho. Ainda que um
destes caminhos pareça só espiritual, e o outro temporal, ambos
pertencem à Igreja e às chaves de S. Pedro, porque por um abrem-se
as portas do céu, e por outro fecham-se as do inferno. As igrejas novas
hão de se fundar e estabelecer, como Cristo fundou e estabeleceu a
Igreja universal, quando também era nova. Que disse Cristo a S. Pedro?
Super hanc petram aedqicabo ecclesiam meams libi dabo claves regni caelorum:
et portae inferi praevalebunt adversus eam(45). Que importa que Pedro tenha
chaves das portas do céu, se prevalecerem contra ele, e contra a Igreja
as portas do inferno? Isto não é fundar nova Igreja, é
destruí-la em seus próprios fundamentos.

Não sei se reparais em que deu Cristo a S. Pedro não só
chave, senão chaves: Jibi dabo claves. Para abrir as portas do céu
bastava uma só chave: pois, por que lhe dá Cristo duas? Porque
assim como há caminhos contra caminhos, assim há portas contra
portas: Portae inferi non praevalebuntadversus eam. Há caminhos contra
caminhos, porque um caminho leva a Cristo, e outro pode levar a Herodes; e
há portas, contra p porque umas são as portas do céu,
e outras as portas do inferno, que o encontram. Por isso, é necessário
que as chaves sejam duas, e que ambas estejam na mesma mão. Uma com
que Pedro possa abrir as portas do céu, e outra com que possa aferrolhar
as portas do inferno; uma com que possa levar os gentios a Cristo, e outra
com que os possa defender do demônio, e seus ministros. E toda a teima
do mesmo demônio e do mesmo inferno, é que estas chaves e estes
poderes se dividam, e que estejam em diferentes mãos.

Não o entenderam assim os senhores reis que fundaram aquelas cristandades,
e todas as das nossas conquistas, os quais sempre uniram um e outro poder,
e o fiaram somente dos ministros do Evangelho; e a razão cristã
ou política que para isso tiveram foi por terem conhecido e experimentado
que só quem converte os gentios, os zela e os defende, e que, assim
como dividir as almas dos corpos é matar, assim dividir estes dois
cuidados é destruir. Por isso estão destruídas e desabitadas
todas aquelas terras em tão poucos anos, e de tantas e tão numerosas
povoações, de que só ficaram os nomes, não se
vêem hoje mais que ruínas e cemitérios. Necessário
é, logo, não só para o espiritual, senão também
para o temporal das conquistas, que os mesmos que edificam aquelas novas igrejas,
assim como têm o zelo e a arte para as edificar, tenham juntamente o
poder para as defender. Quando os israelitas reedificavam o templo e a cidade
de Jerusalém, diz a Escritura Sagrada que cada um dos oficiais com
uma mão fazia a obra, e na outra tinha a espada: Una manufaciebat opus,
et altera tenebat gladium (2 Esdr. 4,17). Pois, não era melhor trabalhar
com ambas as mãos, e fariam muito mais? Melhor era, mas não
podia ser, porque naquela mesma terra moravam os samaritanos, os quais, ainda
que diziam que criam em Deus, resistiam e faziam cruel guerra à edificação
do Templo; e, como aos israelitas lhes impediam a obra, era força fazê-la
com uma mão e defendê-la com a outra, sob pena de não
ir a fábrica por diante. O mesmo lhes acontece aos edificadores daquelas
novas igrejas. Muito mais se obraria nelas, se não fosse entre amigos
e entre homens de meia fé, quais eram os samaritanos. Mas, como estes
com todas as forças do seu poder ou do poder que não é
nem pode ser seu – impedem o edifício, é necessário
trabalhar e juntamente defender. E se os mesmos trabalhadores não tiverem
espada com que defendam o que trabalham, não só parará,
como está parada a obra, mas perder-se-á, como se vai perdendo,
quanto com tanto trabalho se tem obrado.

Sim. Mas a espada é instrumento profano e leigo, e não diz
bem em mãos sagradas. Primeiramente quem pôs a espada na mão
dos que edificavam o Templo foi Neemias, o mais sábio, o mais santo
príncipe e o mais zelador da honra de Deus que então havia no
mundo. E se alguém tem os olhos tão delicados, que os ofenda
esta aparência – que não é razão, senão
pretexto – aparte-os um pouco de nós, e ponha-os em S. Paulo.
Não vedes a S. Paulo com a espada em uma mão, e o livro na outra?
Estes são os instrumentos e as insígnias, com que nos pinta
e representa a Igreja aquele grande homem, por antonomásia chamado
o Apóstolo. E por quê? Por que traz Paulo em uma mão o
livro, noutra a espada? Por que Paulo entre todos os outros apóstolos
foi o vaso de eleição escolhido particularmente por Cristo para
preparador dos gentios: Vas electionis est mihi iste, ut portet nomen meum
coram gentibus (46) – e quem tem por ofício a pregação
e conversão dos gentios há de ter o livro em uma mão,
e a espada na outra: o livro para os doutrinar, a espada para os defender.
E se esta espada se tirar da mão de Paulo, e se meter na mão
de Herodes, que sucederá? Nadará toda a Belém em sangue
inocente, e isso é o que vemos.

Mas, por que não faça dúvida o nome de espada, troquemos
a espada em cajado, que é instrumento próprio dos pastores –
como ali somos – e respondei-me: Quem tem obrigação de
apascentar as ovelhas? O pastor. E quem tem obrigação de defender
as mesmas ovelhas dos lobos? O pastor também. Logo o mesmo pastor,
que tem o cuidado de as apascentar, há de ter, também, o poder
de as defender. Esse é o ofício do pastor, e esse o exercício
do cajado. Lançar o cajado à ovelha para a encaminhar, e terçá-lo
contra o lobo para a defender. E vós quereis que este poder esteja
em uns, e aquele cuidado em outros? Não seja isso conselho dos lobos!
Quando Davi a andava no campo apascentando as suas ovelhas, e vinha o urso,
ou o leão para lhas comer, que fazia? Ia a Jerusalém buscar
um ministro de el-rei Saul, para que lhas viesse defender? Não seria
Davi, nem pastor, se assim o fizesse. Ele era o que as apascentava, e ele
quem as defendia. E defendia-as de tal sorte, que das gargantas e das entranhas
das mesmas feras as arrancava; porque se o lobo ou o leão lhe tinham
engolido o cordeiro pela cabeça, tirava-lho pelos pés, e se
lho engoliam pelos pés, tirava-lho pelas orelhas. Assim diz o profeta
Amós como quem tinha exercitado o mesmo ofício – que faz
e fazer quem é pastor: Quomodo si eruat pastor de ore leonis duo crura,
aut extremum rei auriculae (47).

E porque algum político, mau gramático e pior cristão,
não cuide que a obrigação do pastor é somente
apascentar, como parece o que significa a derivação do nome,
saiba que só quem apascenta e defende é pastor, e quem não
defende, ainda que apascente, não. Faz Cristo comparação
entre o pastor e o mercenário, e diz assim: Bonun pastor animam suam
dat pro ovibus suis (Jo. 10, 11 s): O bom pastor defende as suas ovelhas,
e dá por elas a vida, se é necessário. Mercenarius autem,
et qui non est pastor: Porém o mercenário, e o que não
é pastor, que faz? Videt lupum venientem, et lupus rapit, et dispergit
oves (Ibid. 12): Quando vê vir o lobo para o rebanho, foge, e deixa-o
roubar e comer as ovelhas. – O meu reparo agora, grande reparo, é
dizer Cristo que o mercenário não é pastor: Mercenarius
autem, et qui non est pastor. – O mercenário, como diz o mesmo
nome, é aquele que por seu jornal apascenta as ovelhas. Pois, se o
mercenário também apascenta as ovelhas, por que diz Cristo que
não é pastor? Porque ainda que as apascenta não as defende:
vê vir o lobo e foge. E é tão essencial do pastor o defender
as ovelhas, que se as defende é pastor, se as não defende não
é pastor: Non est pastor. Como Cristo tinha falado em bom pastor, cuidava
eu que havia de fazer a comparação entre bom pastor e mau pastor,
e dizer que o bom pastor é aquele que defende as ovelhas, e o mau pastor
é aquele que as não defende. Mas o Senhor não fez a comparação
entre ser bom ou ser mau, senão entre ser, ou não ser. Diz que
o que defende as ovelhas é bom pastor, e não diz que o que as
não defende é mau pastor: por quê? Porque o que não
defende as ovelhas não é pastor bom nem mau. Um lobo não
se pode dizer que é bom homem, nem que é mau homem, porque não
é homem. Da mesma maneira, o que não defende as ovelhas não
se pode dizer que é bom pastor nem mau pastor, porque não é
pastor: Non est pastor E sendo assim que a essência do pastor consiste
em defender as ovelhas dos lobos, não seria coisa muito para rir, ou
muito para chorar, que os lobos pusessem pleito aos pastores por que lhes
defendem as ovelhas? Lá dizem as fábulas que os lobos se quiseram
concertar com os rafeiros, mas que citassem aos pastores, se lhes quisessem
armar demanda, porque lhes defendiam o rebanho. Isto não o disseram
as fábulas: di-lo-ão as nossas histórias.

Mas quando disseram isto dos lobos, também dirão dos pastores
que muitos deram as vidas pelas ovelhas: uns afogados das ondas, outros comidos
dos bárbaros, outros mortos nos sertões, de puro trabalho e
desamparo. Dirão que todos expuseram e sacrificaram as vidas pelos
bosques, e pelos desertos entre as serpentes; pelos lagos e pelos rios entre
os crocodilos; pelo mar e por toda aquela costa, entre parcéis e baixios
os mais arriscados e cegos de todo o Oceano. Finalmente, dirão que
foram perseguidos, que foram presos, que foram desterrados, mas não
dirão, nem poderão dizer, que faltassem à obrigação
de pastores, e que fugissem dos lobos como mercenários: Mercenarius
autemfugit, E esta é a razão e obrigação, por
que eu falo aqui, e falo tão claramente. S. Gregório Magno,
comentando estas mesmas palavras: Mercenarius autem fugit, – diz assim:
Fugit, quia injustitiam vidit, et tacuit;fugit, quia se sub silentio abscondít:
Sabeis – diz o supremo Pastor da Igreja, – quando foge o que não
é verdadeiro pastor? Foge quando vê injustiças, e, em
vez de bradar contra elas, as cala; foge, quando, devendo sair a público
em defesa da verdade, se esconde, e esconde a mesma verdade debaixo do, silêncio.
– Bem creio que alguns dos que me ouvem teriam por mais modéstia
e mais decência que estas verdades e estas injustiças se calassem,
e eu o faria facilmente como religioso, sem pedir grandes socorros à
paciência; mas, que seria, se eu assim o fizesse? Seria ser mercenário,
e não pastor: Fugit, quia mercenarius est; seria ser consentidor das
mesmas injustiças que vi, e, estando tão longe, não pude
atalhar: Fugit, quia injustitiam vidit, et tacuit; seria ser proditor das
mesmas ovelhas que Cristo me e entregou, e de que lhe hei de dar conta, não
as defendendo, e escondendo-me onde só as posso defender: Fugit, quia
se sub silentio abscondit.

VI

E porque na apelação deste pleito, em que a injustiça
e violência dos lobos ficou vencedora, é justo que também
eles sejam ouvidos, assim como ouvistes balar as ovelhas, no que eu tenho
dito, ouvi também uivar os mesmos lobos, no que eles dizem. Dizem que
o chamado zelo com que defendemos os índios é interesseiro e
injusto: interesseiro, porque o defendemos para que nos sirvam a nós;
e injusto, porque defendemos que sirvam ao povo. Provam o primeiro, e cuidam
que com evidência, porque vêem que nas aldeias edificamos as Igrejas
com os índios; vêem que pelos rios navegamos em canoas equipadas
de índios; vêem que nas missões por água e por
terra nos acompanham e conduzem os índios: logo, defendemos e queremos
os índios para que nos sirvam a nós! Esta é a sua primeira
conseqüência, muito como sua, da qual, porém, nos defende
muito facilmente o Evangelho. Os Magos, que também eram índios,
de tal maneira seguiam, e acompanhavam a estrela, que ela não se movia,
nem dava passo sem eles. Mas, em todos estes passos, e em todos estes caminhos,
quem servia, e a quem? Servia a estrela aos Magos, ou os magos à estrela?
Claro está que a estrela os servia a eles, e não eles a ela.
Ela os foi buscar tão longe, ela os trouxe ao Presépio, ela
os alumiava, ela os guiava, mas não para que eles a servissem a ela,
senão para que servissem Cristo, por quem ela os servia. Este é
o modo com que nós servimos aos índios, e com que dizem que
eles nos servem.

Se edificamos com eles as suas Igrejas, cujas paredes são de barro,
as colunas de pau tosco, e as abóbadas de folhas de palma, sendo nós
os mestres e os obreiros daquela arquitetura, com o cordel, com o prumo, com
a enxada, e com a serra e os outros instrumentos – que também
nós lhes damos – na mão, eles servem a Deus a si, nós
servimos a Deus e a eles, mas não eles a nós. Se nos vem buscar
em uma canoa, como têm por ordem, nos lugares onde não residimos,
sendo isso, como é, para os ir doutrinar por seu turno, ou para ir
sacramentar os enfermos, a qualquer hora do dia ou da noite, em distância
de trinta, de quarenta e de sessenta léguas, não nos vêm
eles servir a nós: nós somos os que os imos servir a eles. Se
imos em missões mais largas a reduzir e descer os gentios, ou a pé,
e muitas vezes descalços, ou embarcados em grandes tropas à
ida, e muito maiores à vinda, eles e nós imos em serviço
da Fé e da República, para que tenha mais súditos a Igreja
e mais vassalos a Coroa; e nem os que levamos, nem os que trazemos, nos servem
a nós, senão nós a uns e a outros, e ao rei e a Cristo.
E porque deste modo, ou nas aldeias, ou fora delas, nos vêem sempre
com os índios, e os índios conosco, interpretam esta mesma assistência
tanto às avessas que, em vez de dizerem que nós os servimos,
dizem que eles nos servem.

Veio o Filho de Deus do céu à terra a salvar o mundo, e sempre
andava acompanhado e seguido dos mesmos homens a quem veio salvar. Seguiam-no
os apóstolos, que eram doze; seguiam-no os discípulos, que eram
setenta e dois; seguiam-no as turbas, que eram muitos milhares: e quem era
aqui o que servia ou era servido? O mesmo Senhor o disse: Non veni ministrari,
sed ministrare (Mt. 20, 28): Eu não vim a ser servido, senão
a servir. – E todos estes que me seguem e me assistem, todos estes que
eu vim buscar e me buscam, eu sou o que os sirvo a eles, e não eles
a mim. Era Cristo mestre, era médico, era pastor, como ele disse muitas
vezes. E estes são os mesmos são ofícios em que servem
aos gentios e cristãos aqueles ministros do Evangelho. São mestres,
porque catequizam e ensinam a grandes e pequenos, e não uma, senão
duas vezes ao dia; e quando o mestre está na aula ou na escola, não
são os discípulos os que servem ao mestre, senão o mestre
aos discípulos. São médicos, porque não só
lhes curam as almas, senão também os corpos, fazendo-lhes o
comer e os medicamentos, e aplicando-lhos por suas próprias mães
às chagas ou às doenças, por asquerosas que sejam; e
quando o médico cura os enfermos, ou cura deles, não são
os enfermos os que servem o médico, senão o médico aos
enfermos. São pastores, porque têm cuidado de dar o pasto às
ovelhas e a criação aos cordeiros, vigiando sobre todo o rebanho
de dia e de noite; e quando o pastor assim o faz, e nisso se desvela, não
são as ovelhas as que servem ao pastor, senão o pastor às
ovelhas. Mas, porque isto, não serve aos lobos, por isso dizem que
os pastores se servem.

Quanto aos interesses não tenho eu que dizer, porque todos os nossos
haveres eles os têm em seu poder. Assim como nos prenderam e desterraram,
assim se apoderaram também das nossas choupanas e de quanto nelas havia.
Digam, agora, o que acharam. Acharam ouro e prata, mas só a dos cálices
e custódias. Nos altares acharam sacrários, imagens e relíquias;
nas sacristias omamentos, não ricos, mas decentes e limpos; nas celas
de taipas pardas e telhas vã, alguns livros, catecismos, disciplinas,
cilícios, e uma tábua ou rede em lugar de camas, porque as que
levamos de cá se dedicaram a um hospital, que não havia; e se
nos nossos guarda-roupas se acharam alguns mantéus e sotainas remendadas,
eram de algodão, grosseiro, tinto na lama, como o calçado de
peles de veado e porco montês, que são as mesmas galas com que
aqui aparecemos. Finalmente, é certo que os Magos achariam no presépio
mais pobreza, mas mais provado desinteresse não. Diz o evangelista
que os Magos, abrindo os seus tesouros, ofereceram a Cristo ouro, incenso
e mirra:Apertis thesauris suis obtulerunt ei munera, aurum thus, et myrrham
(Mt. 2,11). Mas não sei se repamis que, dizendo-se que os tesouros
foram oferecidos, não se diz se foram aceitados ou não. A opinião
comum dos doutores é que sim; contudo, outros duvidam e com fundamento,
porque daí a poucos dias, indo a Virgem Mãe apresentar o seu
primogênito no Templo, conforme a lei, e dispondo a mesma lei que os
pobres oferecessem duas rolas ou dois pombinhos, e os que tivessem mais posses
um cordeiro, a Senhora não ofereceu cordeiro, senão, como diz
o texto: Par turturum, aut duos pullos co1umbarum (48), Donde parece se colhe
que a Santa Família do presépio não aceitou os tesouros
dos Magos, porque se tivera ouro, oferecera cordeiro. De maneira que é
certo e de fé que os tesouros se ofereceram, mas ficou em opinião
e em dúvida se se aceitaram ou não. Por isso eu digo que, sendo
tão grande a pobreza do presépio, a nossa naquelas terras está
mais provada. Na pobreza do presépio é certo que houve tesouros,
e é duvidoso se foram acertados: na nossa nem há esta certeza,
nem pode haver esta dúvida, porque os Magos que trazemos a Cristo,
e a gente a quem servimos é tão pobre e tão miserável
que nem eles têm que oferecer nem nós temos que aceitar.

Resta a segunda parte da queixa, em que dizem que defendemos os índios,
porque não queremos que sirvam ao povo. A tanto se atreve a calúnia,
e tanto cuida que pode desmentir a verdade! Consta autenticamente nesta mesma
corte, que no ano de 1655 vim eu a ela só, a buscar o remédio
desta queixa, e a estabelecer – como levei estabelecido por provisões
reais – que todos os índios, sem exceção, servissem
ao mesmo povo, e o servissem sempre, e o modo, a repartição
e a igualdade com que o haviam de servir para que fosse bem servido. Vede
se podia desejar mais a cobiça, se com ela pudesse andar junta a consciência.
Não posso, porém, negar que todos nesta parte, e eu em primeiro
lugar, somos muito culpados. E por quê? Porque, devendo defender os
gentios que trazemos a Cristo, como Cristo defendeu os Magos, nós,
acomodando-nos à fraqueza do nosso poder, e à força do
alheio, cedemos da sua justiça, e faltamos à sua defensa. Como
defendeu Cristo os Magos? Defendeu-os de tal maneira que não consentiu
que perdessem a pátria, nem a soberania, nem a liberdade; e nós
não só consentimos que os pobres gentios que convertemos percam
tudo isto, senão que os persuadimos a que o percam, e o capitulamos
com eles, só para ver se se pode contentar a tirania dos cristãos:
mas nada basta. Cristo não consentiu que os Magos perdessem a pátria,
porque reversi sunt in regionem suam (49); e nós, não só
consentimos que percam a sua pátria aqueles gentios, mas somos os que,
à força de persuasões e promessas que se lhes não
guardam os arrancamos das suas terras, trazendo as povoações
inteiras a viver ou a morrer junto das nossas. Cristo não consentiu
que os Magos perdessem a soberania, porque reis vieram e reis tornaram, e
nós não só consentimos que aqueles gentios percam a soberania
natural, com que nasceram e vivem isentos de toda a sujeição,
mas somos os que, sujeitando-os ao jugo espiritual da Igreja, os obrigamos
também ao temporal da coroa, fazendo-os jurar vassalagem. Finalmente,
Cristo não consentiu que os Magos perdessem a liberdade, porque os
livrou do poder e tirania de Herodes, e nós não só não
lhes defendemos a liberdade, mas pacteamos com eles, e por eles, como seus
curadores, que sejam meios cativos, obrigando-se a servir alternadamente a
metade do ano. Mas nada disto basta para moderar a cobiça e tirania
dos nossos caluniadores, porque dizem que são negros, e hão
de ser escravos.

Já considerei algumas vezes por que permitiu a divina Providência,
ou ordenou a divina Justiça, que aquelas terras e outras vizinhas fossem
dominadas dos hereges do Norte. E a razão me parece que é porque
nós somos tão pretos em respeito deles, como os índios
em respeito de nós e era justo que, pois fizemos tais leis, por ela
se executasse em nós o castigo. Como se dissera Deus: já que
vós fazeis cativos a estes, porque sois mais brancos que eles, eu vos
farei cativos de outros, que sejam também mais brancos que vós.
A grande sem-razão desta injustiça declarou Salomão em
nome alheio com uma demonstração muito natural. Introduz a etiopisa,
mulher de Moisés, que era preta, falando com as senhoras de Jerusalém,
que eram brancas, e por isso a desprezavam, e diz assim: Filiae Jerusalem,
nolite considerare quod fusca sim, quia decoloravit me sol (50): Se me desestimais
porque sois brancas, e eu preta, não considereis a cor, considerai
a causa: considerai que a causa desta cor é o sol, e logo vereis quão
inconsideradamente julgais. – As nações, umas são
mais brancas, outras mais pretas, porque umas estão mais vizinhas,
outras mais remotas do sol. E pode haver a maior inconsideração
do entendimento, nem maior erro do juízo entre homens, que cuidar eu
que hei de ser vosso senhor, porque nasci mais longe do sol, e que vós
haveis de ser meu escravo, porque nascestes mais perto?

Dos Magos, que hoje vieram ao presépio, dois eram brancos e um preto,
como diz a tradição; e seria justo que mandasse Cristo que Gaspar
e Baltasar, porque eram brancos, tornassçm livres para o Oriente, e
Belchior, porque era pretinho, ficasse em Belém por escravo, ainda
que fosse de S. José? Bem o pudera fazer Cristo, que é Senhor
dos senhores; mas quis-nos ensinar que os homens de qualquer cor todos são
iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé, se crêem e adoram
a Cristo, como os Magos. Notável coisa é que, sendo os Magos
reis, e de diferentes cores, nem uma nem outra coisa dissesse o Evangelista.
Se todos eram reis, por que não diz que o terceiro era preto? Porque
todos vieram adorar a Cristo, e todos se fizeram cristãos, e entre
cristão e cristão não há diferença de nobreza,
nem diferença de cor. Não há diferença de nobreza,
porque todos são filhos de Deus; nem há diferença de
cor, porque todos são brancos. Essa é a virtude da água
do batismo. Um etíope, se se lava nas águas do Zaire, fica limpo,
mas não fica branco, porém na água do Batismo sim, uma
coisa e outra: Asperges me hyssopo, et mundabor (51): ei-lo aí limpo.
– Lavabis me, et super nivem dealbabor (52): ei-lo aí branco.
Mas é tão pouca a razão e tão pouca a fé
daqueles inimigos dos índios, que, depois de nós os fazermos
brancos pelo batismo, eles os querem fazer escravos por negros.

Não é minha tenção que não haja escravos,
antes procurei nesta corte, como é notório e se pode ver da
minha proposta, que se fizesse, como se fez, uma junta dos maiores letrados
sobre este ponto, e se declarassem, como se declararam por lei – que
lá está registada – as causas do cativeiro lícito.
Mas, porque queremos só os lícitos, e defendemos os ilícitos,
por isso nos não querem naquela terra, e nos lançam dela. O
mesmo sucedeu aS. Paulo, se bem a terra não era de cristãos.
Em Filipos, cidade de Macedônia, havia uma escrava possuída do
demônio, o qual falava nela e dava oráculos, e adivinhava muitas
coisas, e por esta habilidade ganhava muito a escrava a seus senhores. Compadeceu-se
dela S. Paulo, que ali se achava em missão com seu companheiro Sila;
lançou fora o demônio daquele corpo duas vezes cativo. E que
prêmio ou agradecimento teve ele e seu companheiro deste benefício?
Amotinou-se contra eles todo o povo, prenderam-nos, maltrataram-nos, e lançaram-nos
da cidade. Pois, por que os apóstolos lançam o demônio
fora da escrava, por isso os lançam a eles fora da terra? Porventura
Paulo e Sila tiraram a escrava a seus senhores, ou disseram que não
era escrava, e que os não servisse? Nem por pensamento. Pois, por que
os maltratam, por que os prendem, por que os desterram? Porque os senhores
da escrava não só queriam a escrava, senão a escrava
e mais o demônio. Aqui bate o ponto de toda a controvérsia, e
por isso não concordamos, Nós queremos que tenham escravos,
mas sem demônio: eles não querem escravos senão com o
demônio. E por quê? O mesmo texto dá a razão, que
em uns e outros é a mesma: Quia exivitspes quaestus eorum (At. 16,19):
Porque, tendo a escrava sem o demônio, perdiam toda a esperança
dos seus interesses. Os escravos lícitos e sem demônio, são
r poucos: os ilícitos, e com o demônio, são quantos eles
querem cativar, e quantos cativam; e como o seu interesse posto que interesse
infernal consiste em terem escravos como demônio, por isso querem antes
o demônio que os apóstolos, e por isso os lançam de si:
Quia exivit spes quaestus eorum, perduxerunt Paulum et Si1am (53).

Convencidos e confundidos desta evidência, ainda falam, ainda replicam.
E que dizem? O que se não atreveu a dizer Herodes, posto que o fez.
Dizem que se não podem sustentar, nem o Estado se pode conservar doutro
modo. Vede que razão esta para se ouvir com ouvidos católicos,
e para se articular e apresentar diante de um tribunal ou rei cristão!
Não nos podemos sustentar doutra sorte, senão com a carne e
sangue dos miseráveis índios! Então eles são os
que comem gente? Nós, nós somos os que os imos comer a eles.
Esta era a fome insaciável dos maus criados de Jó: Quis det
de carnibus ejus, ut saturemur(54) e esta era a injustiça e crueldade
de que Deus mais se sentia em seus maus ministros: Qui devorant plebem meam
sicut escam panis (55). E porque os pregadores do Evangelho, que são
os que vão buscar estas inocentes vítimas, e as não querem
entregar ao açougue e matadeiro: fora, fora das nossas terras. Quando
Cristo chamou aos apóstolos, disse-lhes que os havia de fazer pescadores
de homens: Faciam vos fieri piscatores hominum (Mt. 4,19). Assim nos fez,
e assim o fazemos nós, e nisso se ocupam as nossas redes e se cansam
os nossos braços. Mas, para que entendem e se desenganem todos, lá
e cá, que esses homens não os havemos nós de pescar para
que eles os comam, advirtam e notem bem que se Cristo chamou aos apóstolos
pescadores, também lhes chamou sal: Vos estis sal terrae (56). Pois
os pescadores hão de ser sal, e os apóstolos sal, e juntamente
pescadores? Sim. O pescador pesca, o sal conserva. E esta é a diferença
que há entre os pescadores de homens e os pescadores de peixes: os
pescadores de peixes pescam os peixes para que se comam; os pescadores de
homens hão de pescar os homens para que se conservem. Veja-se em todo
o resto daquela América se houve alguns índios que se conservassem,
senão os da nossa doutrina. Por isso nos não querem a nós,
por isso querem os que lhos ajudam a comer: e estas são as nossas culpas.

O justo castigo que os homens nos dão por elas bem se vê: o
que Deus lhes há de dar a eles, e o prêmio com que nos há
de pagar a nós, o mesmo castigo também o tem prometido. Antevia
Cristo, como sabedoria infinita, que os seus apóstolos, a quem mandava
pregar pelo mundo, haviam de encontrar com homens tão inimigos da verdade
e da justiça, que os não consentiriam consigo, e os lançariam
das suas terras – bem assim como os gerasenos lançaram das suas
ao mesmo Cristo – e, para que estivessem e fossem prevenidos, primeiramente
deu-lhes a instrução do modo com que se haviam de haver em semelhantes
casos: Quicum que non receperint vos, neque audirint sermones vestros, exeuntes
foras de domo, vel civitate, excutite pulverem de pedibus vestris, in testimonium
illis (Mt. 10, 14; Lc. 9,5; Mc. 6,11): Quando os homens, quaisquer que sejam,
nao receberem vossa doutrina, e vos lançarem de suas casas e cidades,
o que haveis de fazer autenticamente diante de todos é sacudir o pó
dos sapatos, para que esse pó seja testemunha de que pusestes os pés
naquela terra, e ela vos lançou de si. – Assim o fizeram S. Paulo
e S. Barnabé, quando foram lançados de Pisídia, e assim
o fiz eu também. E que mais diz Cristo para que os mesmos apóstolos
se não desconsolassem, antes se gloriassem muito destes desterros,
e da causa deles? – Sabeis, lhes diz o mesmo Senhor, que quando os homens
assim vos aborrecerem, e vos apartarem e lançarem de si, então
sereis bem-aventurados, porque então sereis meus verdadeiros discípulos;
e depois o sereis também, porque no céu tereis o galardão
que vos não sabe nem pode dar a terra: Beati eritis cum vos oderint
homines, et cum separa verint vos, et exprobraverint, etejecerint nomen vestrum
tanquam malum propter Filium hominis. Gaudete, etexultate: ecce enim merces
vestra multa es incaelo (57).

Este é o prêmio com que Cristo – bendito ele seja –
nos há de pagar, e paga já de contado, a paciência destas
injúrias, remunerando de antemão, no seguro de sua palavra,
estes trabalhos com aquele descanso, estes desterros com aquela pátria,
e estas afrontas com aquela glória, para que ninguém nos tenha
lástima quando o céu nos tem inveja. Mas, por que os autores
de tamanhos escândalos não cuidem que eles e suas terras hão
de ficar sem o devido castigo, conclui, finalmente, o justo juiz com esta
temerosa sentença: Amen dico vobis. Tolerabilius erit terrae Sodomorum,
et Gomorrhaeorum, quam illi civitati (Mt. 10,15): De verdade vos digo que
o castigo das cidades de Sodoma e Gomorra, sobre as quais choveram raios,
ainda foi mais moderado e mais tolerável do que será o que está
aparelhado, não só para as pessoas, senão para as mesmas
terras donde os meus pregadores forem lançados. – Tal é
a sentença que tem decretada a divina justiça contra aquela
mal aconselhada gente, por cujo bem e remédio eu tenho passado tantos
mares e tantos perigos. Praza à divina misericórdia perdoar-lhes,
pois não sabem o que fazem. E para que lhes não falte o perdão
da parte assim como meus companheiros e eu lho temos já dado muito
de coração, assim, agora, lho torno a ratificar aqui publicamente:
Coram Deo, et hominibus, em nome de todos.

VII

Suposto, pois, que não peço nem pretendo castigo, e o que só
desejo é o remédio, quero acabar este largo, mas forçoso
discurso, apontando brevemente os que ensina o Evangelho. O primeiro e fundamental
de todos era que aquelas terras fossem povoadas com gente de melhores costumes,
e verdadeiramente cristã. Por isso no Regimento dos Governadores a
primeira coisa que muito se lhes encarrega é que a vida e procedimento
dos portugueses seja tal que com o seu exemplo e imitação se
convertamos gentios. Assim está disposto santissimamente, porque, como
diz S. João Crisóstomo, se os cristãos viveram conforme
a lei de Cristo, toda a gentilidade estivera já convertida: Nemo profecto
gentilis esset, si ipsi, ut oportet, Christiani esse cura remus. – Mas
é coisa muito digna, não sei se de admiração,
se de riso, que no mesmo tempo em que se dá este regimento aos governadores,
e nos mesmos navios em que eles vão embareados, os povoadores que se
mandam para as mesmas terras são os criminosos e malfeitores tirados
do fundo das enxovias, e levados a embarcarem grilhões, a quem já
não pode fazer bons o temor de tantas justiças! E estes degradados,
por suas virtudes, e talvez marcados por elas, são os santinhos que
lá se mandam, para que com o seu exemplo se convertam os gentios, e
se acrescente a cristandade. Aqueles samaritanos, que acima dissemos impediam
a edificação do Templo, eram degradados por el-rei Salmanazar,
de Assíria e Babilônia, para povoadores da Samaria, que ele tinha
conquistado e diz a História Sagrada que o que lã fizeram foi
ajuntar os costumes que levavam da sua terra com os que acharam em Sarnaria,
e assim eram meios fiéis, e meios gentios: Et cum Dominum colerent,
diis quoque suis serviebant juxta consuetudinem genti um, de quibus translati
fuerant Samariam (58). Isto mesmo se experimenta, e é força
que suceda nas nossas conquistas, com semelhantes povoadores. Mas, como este
erro fundamental já não pode ter remédio, vamos aos que
de presente e para o futuro nos ensina o Evangelho.

O primeiro é a boa eleição dos sujeitos a quem se comete
o governo. E para que a eleição seja boa, que parte hão
de ter os eleitos? Eu me contento com uma só. E qual? Que sejam ao
longe o que prometem ao perto. Herodes encomendou muito aos Magos que fizessem
diligência pelo Rei nascido que buscavam, e que, tanto o achassem, lhe
fizessem logo aviso, para que também ele o fosse adorar: Ut et ego
veniens adorem eum (59). Ah! hipócrita! Ah! traidor! E para tu adorares
a Cristo é necessário que vás onde ele estiver: Ut et
ego veniens? Tanto podia Heiudes adorar a Cristo desde Jerusalém, onde
ele estava, como em Belém, ou em qualquer outra parte onde o Senhor
estivesse; mas estes são e estes costumam ser os Herodes. Em Belém
e ao perto adoram; desde Jerusalém, e ao longe, não adoram.
Antes de ir, e quando vem, adoram: Ut et ego veniens: – mas enquanto
estão lá tão longe, nem adoram, nem têm pensamentos
de adorar, como Herodes; e se não maquinam contra orei em sua pessoa,
maquinam contra ele e suas leis, à custa da vida e sangue dos inocentes.
Bom Daniel e fiel ministro de seu Senhor. Estava Daniel em Babilônia,
e diz o texto sagrado que todos os dias três vezes abria as janelas,
que ficavam para a parte de Jerusalém, e prostrado de joelhos adorava:
Apertisfenestris in coenaculo suo contra Jerusalem, tribus temporibus in die
flectebat genua sua, et adorabat (Dan. 6, 10). De Babilônia não
se podia ver Jerusalém, distante tantos centos de léguas quantas
há desde o Monte Sion ao Rio Eufrates; pois, por que adorava Daniel
para a parte de Jerusalém? Porque Jerusalém naquele tempo era
a corte de Deus, o Templo o seu palácio, e o Propiciatório,
sobre asas de querubins, o seu trono; e essa era a obrigação
de fiel ministro: adorar a seu Senhor, e adorá-lo sempre, e adorá-lo
de toda a parte, ainda que fosse tão distante como Babilônia.
Em Jerusalém adorava Daniel de perto, em Babilônia adorava de
longe; isto é o que nota e encarece a Escritura, não que adorasse
de perto, que isso fazem todos, mas que adorasse de longe, e de tão
longe. E porque ao longe há poucos Daniéis e muitos Herodes,
por isso convém que os que hão de governar em leiras tão
remotas sejam aqueles que façam ao longe o que prometem ao peito.

Mas costuma isto ser tanto pelo contrário, que só o verem-se
tão longe lhes tira todo o temor do rei e toda a reverência do
seu nome. Entraram os Magos por Jerusalém perguntando: Ubi est qui
natus est rex Judaeorum (60)? E que efeitos causou em Herodes esta voz do
nome real?Audiens autem Herodes rex, turbatus est (Mt. 2,3): Tanto que ouviu
nomear rei, turbou-se, perdeu as corés, e ficou fora de si de medo.
– Assim havia de ser o nome de rei, ou pronunciado, ou escrito, em qualquer
parte da sua monarquia, por distante que seja. Havia de ser um trovão
prenhe de raios, que fizesse tremer as cidades, as fortalezas, os portos,
os mares, os montes, quanto mais os homens. Mas os que se vêem além
da linha ou debaixo dela, fazem tão pouco caso destas trovoadas que,
em vez de tomarem do coração de Herodes o turbatus est, tomam
da boca dos Magos o Ubi est. Onde está el-rei? Em Portugal? Pois se
ele lá está, nós estamos cá. lua se jactet in
au1a (61). Mande ele de lá o que mandar, nós faremos cá
o que nos bem estiver. São como aqueles hereges que, construindo a
seu sabor o verso de Davi, diziam: Caelum caeli Domino, terram autem dedit
filiis hominum(62): Esteja-se Deus no seu ‘céu, que nós
estamos cá na nossa leira. – E que há de fazer a pobre
leira com tais governadores? O que eles quiserem, ainda que seja muito contra
si, e muito a seu pesar. Não temos o texto longe.

Turbatus estllerodes, et omnis Jerosolyma cum lllo (Ml. 2,3): Perturbou-se
Herodes e toda a Jerusalém com ele. Perturbar-se Herodes, rei intruso
e tirano, temendo que o legítimo Senhor o privasse da coroa, que não
era sua, razão tinha; mas que se perturbe juntamente Jerusalém,
quando era a melhor e mais alegre nova que podia ouvir? Não suspirava
Jerusalém e toda a Judéia pela vinda do Messias? Não
gemia debaixo da violência de Herodes? Não desejava sacudir o
jugo, e libertar-se de sua tirania? Pois, por que se perturba, ou mostra perturbada,
quando Herodes se perturba? Porque tão despótica como isto é
a sujeição dos tristes povos debaixo do domínio de quem
os governa, e mais quando são tiranos. Hão de fazer o que eles
querem, e hão de querer o que eles fazem, ainda que lhes pese. Dizem
que os que governam são espelho da república; não é
assim, senão ao contrário. A república é o espelho
dos que a governam. Porque, assim como o espelho não tem ação
própria, e não é mais que uma indiferença de vidro,
que está sempre exposta a retratar em si os movimentos de quem tem
diante, assim o povo, ou república sujeita, se se move, ou não
se move, é pelo movimento ou sossego de quem a governa. Se Herodes
se não perturbara, não se havia de perturbar Jerusalém:
perturbou-se porque ele se perturbou: Turbatus est Herodes, et omnis Jerosolyma
cum illo. O perturbado foi um, e as perturbações foram duas:
Uma em Herodes e outra em Jerusalém: em Herodes foi ação,
em Jerusalém reflexo, como em espelho. Por isso o Evangelista exprimiu
só a primeira: Turbatus est – e debaixo dela entendeu ambas.
Assim que, todas as vezes que Jerusalém se inquieta, Herodes tem a
culpa, e se acaso a não tem toda, tem a primeira. Et omnis Jerosolyma
cum illo: ou com ele, porque ele faz a inquietação ou com ele,
porque a manda; ou com ele, porque a consente, ou com ele, porque a dissimula,
ou com ele, quando menos, porque, devendo e podendo, a não impede,
mas sempre e de qualquer modo com ele: cum illo. De maneira, enfim, que na
eleição destes eles consiste a paz, o sossego e o bom governo
das conquistas. E este é o primeiro remédio do Evangelho, ou
o primeiro Evangelho do remédio.

O segundo remédio é que as congregações eclesiástiças
daquele estado sejam compostas de tais sujeitos, que saibam dizer a verdade,
e que a queiram dizer. Para Herodes responder à proposta e pergunta
dos Magos, que fez? Congregans omnes principes sacerdotum, et scribas populi,
sciscitabatur ab eis ubi Christus nasceretur(63). A proposta e pergunta era
em que lugar havia de nascer o Messias, e para isso fez uma congregação
ou junta, em que entraram as pessoas eclesiásticas de maior autoridade
e letras que havia em Jerusalém. Era Herodes tirano, e contudo, mostrou
estas duas grandes partes de príncipe que perguntava, e perguntava
a quem havia de perguntar: as matérias eclesiástica aos eclesiásticos,
e as das letras aos letrados, e destes aos maiores. Por isso compôs
a congregação de sacerdotes e professores de letras, mas não
de quaisquer sacerdotes, nem de quaisquer letrados, senão dos que no
sacerdócio e na ciência, na sinagoga e no povo, tinham os primeiros
lugares: Congregans omnes príncipes sacerdotum, et scribas populi.
E que se seguiu desta eleição de pessoas tão acertada?
Tudo o que se pretendia.

O primeiro efeito, e muito notável, foi que, sendo tantos, todos concordaram.
Raramente se vê uma junta em que não haja diversidade de pareceres,
ainda contra a razão e verdade manifesta, principalmente quando se
conhece a inclinação do rei, como aqui estava conhecida a de
Herodes na sua perturbação; e, contudo, todos os desta grande
junta concordaram na mesma resposta, todos alegaram o mesmo texto e todos
o entenderam no mesmo sentido: At iIli dixerunt ei: ln Bethlehem Judae: sic
enim scriptum est per projhetam: Ei tu Bethlehem terra Juda, etc. (64). E
porque todos concordaram sem discrepância, deste primeiro efeito se
seguiu o segundo, e principalmente pretendido, que era encaminhar os Magos
com certeza ao lugar do nascimento de Cristo, para que infalivelmente o achassem
e adorassem, como acharam e adoraram. Tanto importa que semelhantes congregações
sejam compostas de homens que tenham letras. Cuida-se cá que para aquelas
partes bastam eclesiásticos que saibam a forma do batismo e a doutrina
cristã, e não se repara que eles são os que nos púlpitos
pregam de público, eles os que absolvem de secreto nos confessionários
onde é maior o perigo e que eles, por disposição das
leis reais, são os intérpretes das mesmas leis, de que dependem
as liberdades de uns, as consciências de outros e a salvação
de todos. E se estes, como sucede ou pode suceder, não tiveram mais
letras que as do A B C, que conselhos, que resoluções, que sentenças
hão de ser as suas? Pergunto: se os sacerdotes e letrados de Jerusalém
se dividissem em opiniões, se uns dissessem que o Messias havia de
nascer em Belém, outros em Nazaré, outros em Jericó,
se uns voltassem para Galiléia, outros para Judéia, outros para
Sarnaria, que haviam de fazer os Magos? É certo que neste caso ou desesperados
se haviam de tornar para as suas terras, como muitos se tornam, ou que, perseverando
em buscar a Cristo, no meio de tanta confusão o não achariam,
Uma das principais causas por que está Cristo tão pouco achado,
ou porque está tão perdido naquelas conquistas, é pela
insuficiência dos sujeitos eclesiásticos que lá se mandam.
Cristo, uma vez que se perdeu, achou-se entre os doutores, e onde estes faltam,
que lhe há de suceder? Entre doutores achou-se depois de perdido; onde
eles faltam, perder-se-á depois de achado. E isto é o que vemos.
Por isso Herodes, depois que fez aquela congregação de homens
tão doutos, logo supôs que os Magos sem dúvida haviam
de achar a Cristo: Ei cum inveneritis, renuntiate mihi (65).

Este é, como dizia, o segundo remédio que nos descobre o Evangelho.
E se acaso nos descontenta, por ser praticado de tão ruim autor como
Herodes – sem advertir que muitas vezes os maus governam tão
bem como os bons, e melhor que os muito bons – imitemos ao menos o exemplo
do nosso grande conquistador el-rei Dom Manoel, de felicíssima memória,
tão amplificador do seu império, como do de Cristo, de quem
lemos que o primeiro sacerdote que enviou às conquistas foi o seu próprio
confessor. Não fio a salvação daquelas almas senão
de quem fiava a própria consciência, porque sabia que estava
igualmente obrigado em consciência a tratar delas, e dos meios proporcionados
à sua salvação. Mas, para que é recorrer a exemplo
meramente humano, onde temos presente o do mesmo Rei e Salvador do Universo?
No tempo do nascimento de Cristo dividiu-se o mundo em duas nações,
em que se compreendiam todas: a judaica e a gentílica; e para o Senhor
fundar em ambas a nova Igreja cristã, que vinha edificar e propagar,
bem sabemos quais foram os sujeitos que escolheu. Aos pastores, que eram judeus,
mandou um anjo: aos Magos, que eram gentios, mandou uma estrela. E por que
estrelas e anjos entre todas as criaturas? Porque as estrelas são luz,
os anjos são espíritos. Quem não tem luz, não
pode guiar: quem não tem espírito, não pode converter.
E nós queremos converter o mundo sem anjos e com trevas. Notou muito
bem aqui a glosa, que assim o anjo como a estrela foram missionários
trazidos do céu: e de lá era bem que viessem todos; mas já
que os não podemos trazer do céu, como Cristo, por que não
mandaremos os melhores ou menos maus da leira?

O terceiro e último remédio, e que sendo um abraça muitos
e que todos os que forem necessários para a boa administração
e cultura daquelas almas, se lhes devem, não só conceder, mas
aplicar efetivamente, sem os mesmos gentios, ou novamente cristãos
– nem outrem por eles – o pedirem ou procurarem. Diz com advertência
e mistério particular o nosso texto que, estando os Magos dormindo,
se lhes deu a resposta do que haviam de fazer para se livrarem das mãos
de Herodes: Ei responso acce pio in somnis ne redirent ad Herodem (66). Na
palavra responso accepto reparo muito. Os Magos em Belém perguntaram
alguma coisa? Pediram alguma coisa? Falaram alguma coisa? Ao menos no ponto
particular de Herodes, sobre que foram respondidos, é certo que nem
uma palavra só disseram. Pois, se não falaram, se não
pediram, se não propuseram ou perguntaram, como se diz que foram respondidos:
Responso accepto? Esse é o mistério e o documento admirável
de Cristo a todos os reis que trazem gentios à fé. Os Magos
eram gentios ou cristãos novamente convertidos da gentilidade, e os
gentios ou cristãos novamente convertidos, onde há fé,
razão, e justiça, hão de ser respondidos, sem eles falarem,
hão de ser despachados, sem eles requererem, hão de ser remediados,
sem eles pedirem. Não há de haver petição, e há
de haver despacho, não há de haver requerimento, e há
de haver remédio, não há de haver proposta e há
de haver resposta: Responso accepto.

Sim. Mas se eles não requerem, quem há de requerer por eles?
Muito bom procurador: quem requereu neste caso. S. Jerônimo diz que
o autor da resposta foi o mesmo Cristo por sua própria pessoa; Santo
Agostinho diz que foi por medição e mistério de anjos,
e tudo foi. Foi Cristo como verdadeiro rei, e foram os anjos como verdadeiros
ministros. Nos outros casos, e com os outros vassalos, os reis e os ministros
são os requeridos: neste caso e com esta gente, os reis e os ministros
hão de ser os requerentes. Eles são os que lhes hão de
requerer a fé, eles os que lhes hão de requerer a liberdade,
eles os que lhes hão de requerer a justiça, eles, finalmente,
os que lhes hão de requerer, negociar e fazer efetivo tudo quanto importar
à sua conversão, quietação e segurança,
sem que aos mesmos gentios, ou antes ou depois de convertidos, lhes custe
o menor cuidado. Que cuidavam ou que faziam os Magos, quando foram respondidos?
É circunstância muito digna de que a considerem os que têm
a seu cargo este encargo: Et responso accepto in somnis. Os Magos estavam
dormindo, bem ignorantes do seu perigo e bem descuidados do seu remédio,
e no mesmo tempo o bom rei, e os bons ministros estavam traçando e
dispondo os meios, não só da salvação de suas
almas, senão da conservação, descanso e segurança
de suas vidas.

E se alguém me perguntar a razão desta diferença e da
maior obrigação deste cuidado, acerca dos gentios e novos cristãos
das conquistas, em respeito ainda dos mesmos vassalos portugueses e naturais,
muito me espanto que haja quem a ignore. A razão é porque o
reino de Portugal, enquanto reino e enquanto monarquia, está obrigado,
não só de caridade, mas de justiça, a procurar efetivamente
a conversão e salvação dos gentios, à qual muitos
deles, por sua incapacidade e ignorância invencível, não
estão obrigados. Tem esta obrigação Portugal enquanto
reino, porque este foi o fim particular para que Cristo o fundou e instituiu,
como consta da mesma instituição. E tem esta obrigação
enquanto monarquia, porque este foi o intento e contrato com que os Sumos
Pontífices lhe concederam o direito das conquistas, como consta de
tantas bulas apostólicas. E como o fundamento e base do Reino de Portugal,
por ambos os títulos, é a propagação da fé
e conversão das almas dos gentios, não só perderão
infalivelmente as suas todos aqueles sobre quem carrega esta obrigação,
se se descuidarem ou não cuidarem muito dela, mas o mesmo reino e monarquia,
tirada e perdida a base sobre que foi fundado, fará naquela conquista
a ruína que em tantas outras partes tem experimentado, e no-lo tirará
o mesmo Senhor que no-lo deu, como a maus colonos: Auferetur a vobis regnum
Dei, et dabitur genti facienti fructus ejus (67).

Mas, para que é falar nem trazer à memória reino, quando
se trata de remédio de tantos milhares de almas, cada uma das quais
pesa mais que todo o reino? Tomemos o exemplo naquele Rei que hoje chamou
os reis, e naquele Pastor que ontem chamou os pastores. Falando lsaías
de Cristo como rei, diz que trazia o seu império ao ombro: Cujus imperium
super humerum ejus (68)e falando S. Lucas do mesmo Cristo como Pastor, diz
que foi buscar a ovelha perdida sobre os ombros: Imponii in humeros suos gaudens(69).
Pois, um império sobre um ombro, e uma ovelha sobre ambos os ombros?
Sim. Porque há mister mais ombros uma ovelha que um império.
Não pesa tanto um império como uma ovelha. Para o império
basta meio rei: para uma ovelha é necessário todo, E que pesando
tanto uma só ovelha, que pesando tanto uma só alma, haja consciências
eclesiásticas e seculares que tomem sobre seus ombros o peso da perdição
de tantas mil? Venturoso Herodes, ou menos desventurado, que já de
hoje em diante não serás tu o exemplo dos cruéis! Que
importa que tirasse a vida Herodes a tantos inocentes, se lhes salvou as almas?
Os cruéis e os tiranos são aqueles por cuja culpa se estão
indo ao inferno tantas outras; e se um momento se dilatar o remédio
das demais, lá irão todas. No céu viu S. João
que estava as almas dos inocentes pedindo a Deus vingança do seu sangue:
Usquequo, Domine, non vindicas san guinem nostrum (70)? E se almas que estão
no céu vendo e gozando a Deus, pedem vingança, tantas almas
que estão ardendo no inferno, e arderão por toda a eternidade,
que brados darão a Deus? As almas também tem sangue, que é
o que Cristo derramou por elas, e que brados dará à Justiça
Divina este divino sangue, quando tão ouvidos foram os do sangue de
Abel?

VIII

Nos ecos destes mesmos brados queria eu ficasse suspensa a minha oração,
mas não é bem que ela acabe em brados e clamores, quando o Evangelho
nos mostra o céu tão propício, que se ouvem na terra
os silêncios. Assim lhes aconteceu aos Magos, e assim espero eu me suceda
a mim, pois sou tão venturoso como eles foram, que no fim da sua viagem
acharam muito mais do que esperavam. Buscavam o Rei nascido: Ubi est qui natus
est rex (71) – e acharam o Rei nascido, e a Rainha Mãe: Ivenerunt
puerum cum Maria Matre ejus (72). E como a soberana Mãe era a voz do
rei na sua menoridade, e a volta que os Magos fizeram para as suas terras,
correu por conta da mesma Senhora foi esta missão que tomou por sua,
tão bem instruída, tão bem fundada, e tão gloriosa
em tudo, que dela e das que dela se foram propagando, disse Salomão
nos seus Cânticos: Emissiones tuae paradisus (73). Até agora,
Senhora, porque as missões se não fizeram em nome e debaixo
da real proteção de Vossa Majestade, os tormentos de pena e
dano que aquelas almas padeceram se podiam chamar missões do inferno;
agora as mesmas missões, por serem de Vossa Majestade, serão
paraíso: Emissiones, tuae paradisus. Assim o ficam esperando da real
piedade, justiça e grandeza de Vossa Majestade, aquelas tão
perseguidas e desamparadas almas, e assim o confiam e têm por certo
os que, tendo-se desterrado da pátria por amor delas, padecem hoje
na pátria tão indigno desterro. E para acabar corno comecei,
com a última cláusula do Evangelho, o que ele finalmente diz
é que os Magos tornaram para a sua terra por outro caminho: Per aliam
viam reversi sunt in regionem suam (Mi. 2,12). A terra foi a mesma, mas o
caminho diverso; e isto é o que só desejam os que não
têm por suas outras terras mais que as daquela gentilidade, a cuja conversão
e doutrina, por meio de tantos trabalhos, têm sacrificado a vida. Voltar
para as mesmas terras, sim, que o contrário seria inconstância,
mas em forma que o caminho seja tão diverso que triunfe e seja servido
Cristo, e não Herodes. Se os Magos voltassem pelo mesmo caminho, triunfaria
o tirano, perigaria Cristo; e os Magos, quando escapassem, não fariam
o fruto que fizeram nas mesmas terras, convertendo-as, como as converteram
todas, à fé e obediência do Rei que vieram adorar, e de
cujos pés não levaram nem quiseram outro despacho. Tudo isto
se conseguiu, e tão felizmente, e se conseguirá também
agora com a mesma felicidade, se o oráculo for o mesmo. Mande o soberano
oráculo tornem para a mesma região, e mande eficazmente que
seja outro o caminho: Per aliam viam reversi sunt in regionem suam.(74)

Sermão da Glória de Maria, Mãe de Deus

Bem se concordam, neste dia e neste lugar, o título da casa com o
da festa e o da festa com o da casa: a casa da Senhora da Glória e
a festa da glória da Senhora. O Evangelho, que deve ser o fundamento
de tudo que se há-de dizer, também eu o quisera concordar com
essa glória; mas o que dele e dela se tem dito atègora não
concorda com o meu desejo, nem com o meu pensamento. O Evangelho diz que «
escolheu Maria a melhor parte» : Maria optimam partem elegit; e os santos
e teólogos, que mais se alargaram, aplicando essa escolha e essa parte
á glória da senhora, se alargaram, aplicando esta escolha e
esta parte à gloria da Senhora, só dizem que verdadeiramente
foi a melhor; porque a glória a que a Senhora hoje subiu e está
gozando no Céu, é melhor e maior glória que a de todos
os bem-aventurados. Os bem-aventurados da Glória, ou são homens
ou anjos, e não só em cada uma destas comparações,
senão em ambas, dizem que é maior a glória de Maria que
a de todos os homens e a de todos os anjos, e não divididos, mas juntos.

Grande glória! grande, incomparável, imensa! O Sol não
só excede na luz a cada uma das estrelas, e a cada um dos planetas,
senão a todas e a todos incomparavelmente. Por isso a Senhora neste
dia se chama «escolhida como o Sol»: Quae est ista quae ascendit,
electa ut Sol? O mar não só excede na grandeza a cada uma das
fontes e a cada um dos rios, senão a todas e a todos imensamente; por
isso a Senhora se chama Maria, que quer dizer mar, e só por este nome
(que não tem outra cousa no Evangelho) se lhe aplicam as palavras dele:
Maria optimam partem elegit. Isto é, como dizia, tudo o que dizem os
santos e teólogos; mas nem o Evangelho assim entendido, nem a glória
da Senhora assim declarada, nem a comparação dela assim deduzida,
concordam com o meu pensamento. O Evangelho, dizendo: optimam partem, parece-me
que quer dizer muito mais. A glória de Maria, sendo de Maria Mãe
de Deus, parece-me que é muito maior, e a comparação
com os outros bem-aventurados sòmente, parece-me muito estreita e quase
indigna. O meu pensamento é (Deus me ajude nele!) que a comparação
de glória a glória, não se deve fazer só entre
a glória de Maria com a glória do todas as outras criaturas
humanas e angélicas, senão com a glória do mesmo Criador
delas, a quem Maria criou. O texto e a palavra optimam a tudo se estende,
porque sendo superlativa, põe as cousas no sumo lugar, do qual se não
exclui Deus, antes se inclui essencialmente. Neste tão remontado sentido,
pretendo provar e mostrar hoje que, comparada a glória de Maria com
a glória do mesmo Deus e fazendo da glória de Deus e da glória
de Maria duas partes, a melhor parte é a de Maria: Maria optimam partem
elegit. Até não me ouvirdes, não me condeneis. E espero
que me não haveis de condenar, se a mesma Senhora da Glória
me assistir com sua graça. Ave Maria.

II
Maria optimam partem elegit. Suspensos considero todos os que me ouvem, na
expectação do assunto que propus: os curiosos com indiferença,
os devotos com alvoroço, os críticos com a censura já
prevenida, e todos com razão. É certo e de fé que, por
grande e grandíssima que seja a glória de Maria Senhora nossa,
a glória de Deus é infinitamente maior, assim como ele ( que
só se compreende ) é por natureza infinito. Pois se a glória
de Maria, como glória de pura criatura, posto que criatura a mais excelente
de todas, é glória finita, e infinitamente menor que a glória
de Deus; como me atrevo eu a afirmar, e como se pode entender que, ainda em
comparação da glória do mesmo Deus, se verifiquem as
palavras do Evangelho na glória de Maria, e que goze Maria a melhor
parte? Maria optimam partem elegit?

Para inteligência desta verdade, nas mesmas palavras do Evangelho temos
outra dúvida não menos dificultosa, que se deve averiguar primeiro.
Esta, que o texto chama a melhor parte, diz o mesmo texto que Maria a escolheu:
Maria optimam partem elegit; e também esta escolha não tem lugar
nem se pode verificar na glória da Senhora. A eleição
para a glória é só de Deus: Deus é o que elegeu
e escolheu para a glória todos os bem-aventurados, que por isso se
chamam escolhidos; e ainda que entre todos os escolhidos a Senhora tenha o
primeiro e mais sublime lugar, ela também foi escolhida, e não
a que escolheu. Assim o canta a Igreja, quando canta a mesma entrada da Senhora
no Céu: Elegit eam Deus et præ elegit eam, in tabernáculo
suo habitare facit eam.

Pois se Maria foi a escolhida para a glória que tem no céu,
e a escolha foi de Deus e não sua; como diz a mesma Igreja, nas palavras
que lhe aplica, que a Senhora foi a que escolheu e elegeu esta melhor parte?
Maria optimam partem elegit?

__ Na inteligência desta segunda dúvida consiste a solução
da primeira. Ora vede e com atenção.

É certo que a Senhora foi escolhida por Deus para a glória
e também é certo que a glória de Deus é infinitamente
maior que a glória da Senhora; e contudo diz o Evangelho que Maria
foi a que escolheu e que escolheu a melhor parte, uma e outra cousa com grande
mistério e energia. Diz que Maria foi a que escolheu; porque ainda
que a eleição não foi da Senhora, a grandeza de sua glória
é tão imensa, que não parece que foi a glória
escolhida para ela, senão que ela foi a que a escolheu para si. E diz
que Maria escolheu a melhor parte; porque ainda que a glória de Deus
é infinitamente maior que a sua, a melhor parte que pode escolher uma
mãe é que a glória de seu Filho seja a maior. Como Maria
é mãe de Deus, e Deus Filho de Maria, mais se gloria a Senhora
de que seu Filho goze esta infinidade de glória, e de ela a gozar em
seu filho, do que se a gozara em si mesma. E daqui se segue que considerada
a glória de Deus e a glória de Maria em duas partes, porque
a parte de Deus é a máxima, por isso a parte de Maria é
a óptima: Maria optimam partem elegit.

Para todos os que sois pais e mães, não hei mister maior, nem
melhor prova do que digo, que os vossos próprios afectos e o ditame
natural dos vossos corações. Dizei-me: se houvera neste mundo
uma dignidade, uma honra, uma glória maior que todas, e se pusera na
vossa eleição e na vossa escolha querê-la para vós
ou para vosso filho, para quem a havíeis de querer? __ Não há
dúvida que para vosso filho. Pois isto mesmo é o que devemos
considerar na glória da Senhora. É verdade que a glória
de Deus é infinitamente maior que a de sua Mãe; mas como todo
esse excesso de glória é de seu Filho e está em seu filho,
ela a possui e goza em melhor parte, que se a gozara em si mesma. Assim entendo
e suponho que o entendem todos os que são pais e mães. Mas porque
muitos dos que me ouvem não têm esta experiência, e porque
em algum coração humano, ainda que paterno ou materno, pode
estar este mesmo afecto menos bem ordenado; para glória da Senhora
da Glória, e para maior evidência de que mais gloriosa é
pela glória de seu Filho que pela sua, e que gozando nele toda essa
glória, a goza na melhor parte, ouçamos e provemos esta mesma
verdade, pelo testemunho universal e concorde de todas as letras sagradas,
eclesiásticas e profanas. No primeiro lugar ouviremos os filósofos,
no segundo os Santos Padres da Igreja, no terceiro as Escrituras divinas,
e no último ao mesmo Deus na pessoa do Pai; e veremos quão conforme
foi o seu afecto com o desta Soberana Mãe, pois ambos são Pai
e Mãe do mesmo Filho.

.

III
Comecemos pelos filósofos. Põe em questão Séneca
e disputa subtilìssimamente no Livro III dos cinco que intitulou De
Beneficiis, se pode um filho vencer em algum benefício a seu pai? A
razão de duvidar é porque o primeiro e maior benefício
é o ser, e havendo o pai dado o ser ao filho, o filho não pode
dar o ser a seu pai. Mas esta diferença não tem lugar no nosso
caso, porque falamos de um Pai, e de uma Filha, em. que o Pai é juntamente
Pai e Filho da mesma Mãe e a Mãe é juntamente Mãe
e Filha do mesmo Pai. Abstraindo, porém deste impossível da
natureza, que os filósofos gentios não conheceram, resolve o
mesmo Séneca que bem pode um filho vencer no maior benefício
a seu pai, e o prova com o exemplo de Eneias, o qual, por meio das lanças
dos Gregos e do incêndio e labaredas de Tróia, levando sobre
seus ombros ao velho Anquises, deu mais heròicamente a vida a seu pai
do que dele a recebera . À vista deste famoso espectáculo de
valor e de piedade, não há dúvida que venceu o filho
ao pai. Mas qual foi então mais glorioso: o filho vencedor ou o pai
vencido? A este exemplo ajunta o mesmo filósofo o de Antíloco
e de outros que deram a seus pais mais ainda que o ser e a vida que lhes deviam,
e conclui assim: Felices qui vicerint, felices qui vincentur: quid autem est
felicius quam sic cedere? Quando os filhos vencem aos pais e se ostentam maiores
que eles, « felizes são os que vencem e felizes os vencidos;
mas muito mais felizes os pais vencidos que os filhos vencedores, porque não
pode haver maior gosto, nem maior glória para um pai, que ver-se vencido
de seu filho.» Grande glória é do filho que vença
ao pai, que lhe deu o ser; mas muito maior glória é do mesmo
pai, ver que deu o ser a um tal filho que o vença a ele.

Isto que disse Séneca, falando dos benefícios, corre igualmente,
e muito mais em todas as outras acções ou grandezas, em que
os pais se vêem vencidos dos filhos. Ouçamos a. outro filósofo,
que: melhor ainda que Séneca, conheceu os afetos naturais, e não
só em mais harmonioso estilo, mas com mais profunda especulação
que todos, penetrou a anatomia do coração humano.

Faz paralelo Ovídio entre os dois primeiros Césares, Júlio
e Augusto, aquele pai, e este filho; e depois de assentar que « a maior
obra de Júlio César foi ter um tal filho como Augusto: Nec enim
de Cæ saris actis ullum maius opus, quam quod pater extitit hujus, supõe
com a comum opinião de Roma, que um cometa que na morte de Júlio
César apareceu, era a alma do mesmo Júlio colocada entre os
deuses como um deles. E no meio daquela imaginada bem-aventurança,
qual vos parece que seria a maior glória de um homem que nesta vida
tinha logrado todas as que pode dar o Mundo? __ Diz o mesmo Ovídio,
(tão falso na. suposição como poeta, mas tão certo
no discurso como filósofo) que o que fazia lá de cima. Júlio
César era olhar para sen filho Augusto, e que, « considerando
as grandezas do mesmo filho e reconhecendo e confessando que eram maiores
que ar suas, o seu maior gosto e a sua maior glória era ver-se vencido
dele» : Natique videns benefacta, fatetur esse suis maiora, et vinci
gaudet ab illo.

Ah Virgem gloriosíssima, no Céu estais verdadeiramente, como
crê e adora a nossa Fé, mas nas sombras escuras e falsas deste
fabuloso pensamento, que consideração haverá que não
reconheça quais são lá os mais intensos afectos e as
maiores glórias do vosso? Estais vendo e contemplando, como em um espelho
claríssimo, o infinito ser, os infinitos atributos, a infinita e imensa
majestade de vosso Unigénito Filho; conheceis e « confessais
que as suas grandezas excedem, e são também infinitamente maiores
que as vossas» : Fatetur esse suis maiora; mas a mesma evidência
de que vosso Filho vos vence e excede na glória, é a melhor
parte da mesma glória vossa, e a de que mais vós gozais e gozareis
eternamente com ele: Et vinci gaudet ab illo.

Quem pudera imaginar que Júlio César, vencedor de Cipião
e de Pompeu __ e de tantos outros capitães famosos, que junto a estes
perdem o nome __ triunfador da África, do Egipto, das Gálias
e das Espanhas e da mesma Roma; aquele enfim, de tão altivo coração
que ninguém sofreu lhe fosse superior ou igual no Mundo; quem pudera
imaginar, digo, que havia de gostar e gloriar-se de ser vencido de outro?
Mas como Augusto que o vencia era filho seu, o ser vencido dele era a sua
maior vitória, este o maior triunfo de seus triunfos, esta a maior
glória de suas glórias: Et vinci gaudet ab illo.

Mas porque neste exemplo nos não fique o escrúpulo de ser adulação
poética, posto que tão conforme ao afecto natural, confirmemo-lo
com testemunho histórico e verdadeiro, em nada menor que passado, e
porventura mais notável.

Celebra Plutarco, tão insigne historiador como filósofo, o
grande extremo com que Filipe, rei de Macedónia, amava a seu filho
Alexandre, já digno do nome de Grande em seus primeiros anos, pela
índole e generosidade real que em todos seus pensamentos, ditos e ações
resplandecia. E para prova deste extremado afecto, refere uma experiência
que nos vassalos pudera ser tão arriscada, como do rei mal recebida,
se o amor de pai a filho a não interpretara de outra sorte. Foi o caso
que os Macedónios, sem embargo da fé que deviam a Filipe, pùblicamente
chamavam a Alexandre o rei e a Filipe o capitão. Mas como castigaria
Filipe este agravo? __ Não há ciúmes mais impacientes,
mais precipitados e mais vingativos que os que tocam no ceptro e na coroa.
Apenas tem havido púrpura antiga nem moderna, que por leves suspeitas
neste género se não tingisse em sangue. E que sofra Filipe,
aquele que tanto tinha dilatado o império de Macedónia, que
seus próprios vassalos em sua vida, e em sua presença lhe tirem
o nome de rei e o dêem a Alexandre!

Muito fora que o sofresse, mas muito mais foi, que não só o
sofria., senão que o estimava e se gloriava muito disso. Ouvi a Plutarco:
Hinc filium non immerito Philippus dilexit, ut etiam gauderet, cum Alexandrum
Macedones regem, Philippum appellarent Ducem. Era Filipe pai e Alexandre filho,
e tão fora estava o pai de sentir que lhe antepusessem o filho, que
antes o tinha por lisonja e glória, e esse era o seu maior gosto: Ut
etiam gauderet. quando lhe tiravam a coroa para a darem a. seu filho, então
se tinha Filipe por mais coroado; quando já faziam a Alexandre herdeiro
do reino, antes de lhe esperarem pela morte, então se tinha por imortal;
quando o apelidavam com menor nome, então se tinha por maior. E quando
lhe diziam que ele só era capitão, então aceitava esta
gloriosa injúria, como os vivas e aplausos da mais ilustre vitória;
porque a maior glória de um pai é ser vencido de seu filho:
Et vinci gaudet ab illo.

A razão e filosofia natural deste afecto é porque ao maior
desejo, quando se consegue, segue-se naturalmente o maior gosto; e o maior
desejo que têm e devem ter os pais, é serem tais seus filhos,
que não só os igualem, mas os vençam e excedam a eles.
Assim o disse ou cantou ao Imperador Teodósio Claudiano, tão
insigne na filosofia como na poética. Descreve copiosamente as virtudes
imperiais, militares e políticas com que seu filho Honório se
adiantava admiràvelmente aos anos, e não só igualava,
mas excedia a seu pai; e fazendo uma apóstrofe a Teodósio, lhe
diz confiadamente assim: Aspice nunc quacumque micas, seu circulus austri,
magne parens, gelidi seu te meruere Triones, aspice, completur votum, jam
natus adæ quat te meritis, et quod magis est optabile, vincit: «
De lá onde como estrela, de Marte ilustrais o Mundo com vossas vitórias,
ou seja no círculo do astro, ou no frio Setentrião, olhai, felicíssimo
César, para Honório vosso filho, e se como imperador tendes
conseguido o nome de Grande, chamando-vos a voz pública Teodósio
o Magno, a minha (diz Claudiano) não vos invoca com o nome de grande
imperador, senão com o de grande pai: Magne parens; e o que celebro
mais entre todas as glórias de vossa felicidade e o que tenho por mais
digno do emprego de vossa vista, é que vejais e torneis a ver: Aspice,
aspice; que chegastes a ter um filho, o qual não só vos iguala,
que é o que desejam os pais, mas que já vos excede e vence,
que é o que mais devem desejar: Et quod magis est optabile, vincit»
.

Notai muito as palavras: Quod magis est optabile, e aplicai-as ao nosso caso.
O que mais se deve desejar é o melhor que se pode escolher; e como
o que mais devem desejar os pais é que os filhos os vençam e
os excedam, bem se conclui que, se entre a glória de Deus e a de sua
Mãe fora a escolha da mesma Mãe, o que a Senhora havia de escolher
para si é que seu Filho a excedesse e vencesse na mesma Gloria, como
verdadeiramente a excede e vence: Et quod magis est optabile, vincit. Vence
Deus incomparàvelmente a sua Mãe na glória infinita que
goza, mas como este mesmo excesso é o mais que Maria podia desejar
e o melhor que devia escolher como Mãe, por isso se diz com razão
que Maria escolheu hoje a melhor parte: Maria optimam partem elegit.

IV
Temos ouvido os filósofos, que falam pela boca da natureza; ouçamos
agora os santos padres, que falam pela da Igreja.

São Sidónio Apolinar, bispo arvernense e padre do V Século,
escrevendo a Audaz, prefeito dos reis godos no tempo em que dominaram Itália,
promete-lhe suas orações e conclui com estas palavras: Deum
posco, ut te filii consequantur, et quod magis decet velle, transcendant:
« Rogo a Deus por vós e por vossos filhos, diz o eloquentíssimo
Padre, e o que peço para eles é que vos imitem; o que peco para
vós é que vos excedam, porque vos imitem, porque isso é
~ que eles devem fazer; que vos excedam, porque isto é o que vós
deveis desejar: Et quod magis decet velle, transcendant» .

Oh quisesse Deus que fossem hoje tais os pais, e tal a criação
dos filhos, que por uns e outros lhes pudéssemos fazer esta oração!
Mas é tanto pelo contrário que podemos chorar da nossa idade
o que o outro gentio lamentava da sua: Æ tas parentum peior avis tulit
nos nequiores, mox daturos progeniem vitiosiorem: « Os avós foram
maus, os filhos são piores, os netos serão péssimos»
. Haviam-se de prezar os pais, não só de ser bons, mas de dar
tal criação aos filhos, que se pudessem gloriar de serem eles
melhores. Mas deixadas estas lamentações, que não são
para dia tão alegre, continuemos a ouvir os Santos Padres, e sejam
os dois maiores da Igreja grega e latina __ Nazianzeno e Agostinho.

Faz duas elegantes epístolas S. Gregório Nazianzeno, uma a
Nicóbulo, famoso letrado, em nome de um seu filho, em nome do mesmo
Nicóbulo; e na primeira, pedindo o filho ao pai que lhe dê licença
para frequentar as escolas e seguir as letras, diz assim: Gratia quam posco,
genitor charissime, patris est mage, quam nati: « a graça que
vos peço, pai meu, é mais para vós que para mim, e mais
é vossa que minha» . Se isto dissera o moço, que ainda
não tinha mais que o desejo de saber, não me admirara o dito;
mas falando por boca dele o grande Nazianzeno, do qual com singular elogio
elogia a Igreja, que em nenhuma cousa da que escreveu, errou; como pode ser
que a glória do filho seja mais do pai que do mesmo filho: Patris est
mage quam nati? E se esta preposição é verdadeira, segue-se
dela, aplicada ao nosso intento, que a glória de Deus é mais
de Maria que do mesmo Deus, porque Deus é filho e ela é Mãe.
E porque não faça dúvida o falarmos da glória
de um de outro, com a mesma palavra explica o santo Padre nas que logo acrescenta:
Glória namque patris natorum est fama, decusque, ut rursus natis est
glória fama parentum. Como pode ser logo neste caso, ou em algum outro,
que a glória do filho seja mais do pai que do filho: Patris est mage,
quam nati ?

Não há dúvida que falou nesta sentença Nazianzeno
como quem tão altamente penetrava e distinguia a subtileza dos afectos
humanos, entre os quais o amor paterno, como é o mais eficaz e muito
forte, é também o mais fino. Diz que a glória do filho
é glória do pai, que do mesmo filho; porque mais se gloriam
os pais de a gozarem seus filhos ou de a gozarem neles, que se a gozaram em
si mesmos. E neste sentido se pode dizer com verdade e propriedade natural
que a glória de Deus em certo medo é mais de Maria que do mesmo
Deus; porque, não sendo sua, como não é, é do
filho ùnicamente seu, em quem ela mais estima, e da qual mais se gloria
que se pudera ser, ou fora sua.

Isto é o que o disse Nazianzeno ao pai por boca do filho; vejamos
agora o que diz e responde ao filho por boca do pai: Sis sane præ stantior
ipse parente: Queres, filho, seguir-me na profissão e ser grande, como
o mundo e a fama diz que sou, na ciência e nas letras? Sou contente;
mas não me contento só com isso: o que peço a Deus é
que « saias tão eminente nelas, que me faças grandes vantagens,
e sejas muito maior que teu pai: « Sis sane præ stantior ipse
parente» . Assim diz Nicóbulo, ou Nazianzeno por ele, e dá
a razão tão própria no nosso caso, como se eu a dera:
« Gaudet enim genitor, cum palmam præ ripit ipsi virtutis sua
progenies: maiorque voluptas hinc oritur, quam si reliquos præ verteret
omnes: Desejo, filho, que sejas maior que eu; porque « não há
gosto para um pai, como ver que seu filho lhe leva a palma, e de se ver assim
vencido dele, se gloria muito mais que se vencera, e se avantajara a todos
quantos houve no Mundo» .

Mudai, agora o nome de Genitor em Genitrix, e entendei que falou Nazianzeno
da glória de Maria no Céu, onde tão gloriosamente se
vê vencida da glória de seu Filho: Gaudet enim Genitrix, cum
palmam præ ripit virtutis sua progenies. Vê-se Maria, quando vê
a Deus, infinitamente vencida da imensidade de sua glória; mas como
é glória, não de outrem, senão de seu Filho: Sua
progenies, o ver-se vencida dele é a sua vitória e a sua palma:
Cum palmam præ ripit ipsi. Nas outras contendas a palma é do
vencedor, mas quando contende o filho com o pai ou com a mãe, a palma
é do pai ou da mãe vencida; porque a sua maior glória
é ter um filho que a vença nela.

Este dia da Senhora da Glória chama-se também da Senhora da
Palma; porque, como é tradição dos que assistiram a seu
glorioso trânsito, o anjo embaixador de seu Filho, que lhe trouxe a
alegre nova, lhe meteu juntamente na mão uma palma, com a qual, como
vencedora da Morte e do Mundo, entre as aclamações e vivas de
toda a corte beata, entrasse triunfante no Céu. Subi, Senhora, subi,
subi ao trono da glória que vos está aparelhado sobre todas
as jerarquias, que lá vos espera outra palma infinitamente mais gloriosa.
E que palma? Não aquela com que venceis em glória a todos os
espíritos bem-aventurados, senão aquela com que na mesma glória
sois vencida de vosso filho: Cum palmam præ ripit ipse sua progenies.
Grande glória da Senhora é, como lhe canta a Igreja, ver-se
exaltada no Céu sobre todos os coros e jerarquias dos espíritos
angélicos; grande glória que os principados e potestades que
os querubins e serafins lhe ficam muito abaixo, e que no lugar, na dignidade,
na honra, na glória excede incomparàvelmente a todos; porém
o ver que neste mesmo excesso de glória é excedida infinitamente
de seu Filho; isso é o de que naquele mar imenso de glória mais
se gloria, isto é o de que naquele verdadeiro paraíso dos deleites
eternos mais a deleita: Maiorque voluptas hinc oritur, quam si reliquos præ
verteret omnes.

Mas ouçamos já a Agostinho, que mais subtilmente ainda penetrou
os efeitos e causas desta tão verdadeira, como racional complacência.
Escreve Santo Agostinho em seu nome e no de Elvídio a Juliana, mãe
da virgem Demetríade, bem celebrada nas epístolas de S. Jerónimo;
e porque esta senhora romana de nobreza consular, desprezadas as grandezas,
riquezas e pompas do Mundo, se tinha dedicado toda a Deus no estado mais sublime
da perfeição evangélica, dá o parabém Agostinho
à mãe com estas ponderosas palavras: Te volentem, gaudentemque
vincit: genere ex te, honore supra te: in qua etiam tuum esse cæ pit,
quod in te esse non potuit: « Vossa filha Demetríade, ó
Juliana, vence-vos, sim, na alteza do estado, a que a vedes sublimada; mas
muito por vossa, vontade e muito por vosso gosto vos vence» : Volentem,
gaudentemque vincit; « porque é filha vossa aquela de quem vos
vedes vencida» : Genere ex te, honore supra te. « A honra que
goza é muito sobre vós, mas como a geração que
tem é de vós, também esta mesma honra é vossa;
porque o que não podeis ter, nem alcançar em vós e por
vós, já o tendes e gozais nela por ser vossa filha»: In
qua etiam tuum esse cæ pit, quod in te esse non potuit. Vai por adiante
Agostinho, ainda com mais profundo pensamento: Illa carnaliter non nupsit
ut non tantum sibi, sed etiam tibi, ultra te, spiritualiter augeretur, quoniam
tu ea compensatione minor illa es, quod ita nupsisti, ut nasceretur: «
Demetríade, vossa filha, é maior que vós, e vós
menor que ela; mas se ela vos excedeu a vós no que tem de maior, não
vos excedeu só para si, senão também para vós;
porque esse excesso se compensa com nascer de vós: Non tantum sibi,
sed etiam tibi, ultra te, ea compensatione ut nasceretur.

Em uma só cousa não vem própria a semelhança,
porque Maria pode ser Mãe como Juliana e Virgem juntamente como Demetríade;
mas em tudo o mais especulou e ponderou a agudeza de Agostinho, quanto se
pode dizer no nosso caso.

Te volentem, gaudentemque vincit. « Venceu-nos vosso Filho na glória,
Virgem Mãe, mas muito por vossa vontade e por vosso gosto» ;
porque « esse mesmo excesso de glória por ser sua, é o
que mais quereis e de que mais vos gozais»: Genere ex te, honore supra
te. A sua honra, a sua grandeza, a sua majestade, a sua glória imensa
e infinita, é muito sobre vós, porque ele é Deus, e vós
criatura: Honore supra te; mas a geração desse mesmo Deus, que
é tanto sobre vós, é de vós: Genere ex te. E que
se segue de aqui? Segue-se que « tendes o que não podíeis
ter, e que toda a glória sua, começa também a ser vossa»
: Etiam tuum esse cæ piet, quod in te esse non potuit. Vós não
podíeis ser Deus, mas como Deus pode fazer que fôsseis sua Mãe,
tudo o que não podíeis ter em vós, tendes nele. Ele é
maior que vós, e vós menor: Minor est: mas tudo o que tem de
maior, (que é tudo) « não só o tem para si senão
também para vós»: Non tantum sibi, sed tibi, ultra te.

Oh quem pudera declarar dignamente a união destes termos, ultra te
et tibi! Enquanto a glória de Deus é infinita e imensa, estende-se
muito «além de vós»: Ultra te; mas em quanto é
glória de vosso Filho, toda se contrai e reflecte a vós: Tibi.
Para os raios do sol fazerem reflexão, é necessário que
tenham limite onde parem; mas a glória da Divindade de vosso Filho,
que não tem nem pode ter limite, por isso se limitou à Humanidade
que recebeu de vós, para reflectir sobre vós, nascendo de vós:
Ea compensatione, ut nasceretur. E chama-se este nascer de vós compensação
ou recompensa com que Deus vos compensou toda a grandeza e glória,
que tem mais que vós; porque, nascendo de vós, é vosso
verdadeiro Filho; e sendo toda essa glória de vosso Filho, também
é vossa, e vossa naquela parte onde a tendes por melhor: Optimam partem
elegit.

V
Parece que não podia falar mais concordemente ao nosso intento, nem
a filosofia dos Gentios, nem a teologia dos Santos Padres. Vejamos agora o
que dizem as Escrituras Sagradas.

O primeiro exemplo que elas nos oferecem, é o famoso do Barcelay.
No tempo em que Absalão se rebelou contra David, (que tão mal
pagam os filhos a seus pais o amor que lhes devem) um dos senhores que seguiram
as partes do rei foi este Barcelay, o qual o assistiu sempre tão liberal
e poderosamente, que ele só, como refere o texto, lhe sustentava os
arraiais. Restituído pois David à coroa e lembrado deste serviço
ou gentileza, de que outros príncipes se esquecem com a mudança
da fortuna, qui-lo ter junto a si na corte e fazer-lhe a mercê e honra
que sua fidelidade merecia; e para o vencer na liberalidade ou não
ser vencido dele, disse-lhe que ele mesmo se despachasse, porque « tudo
quanto quisesse lhe concederia» : Quidquid tibi placuerit, quod petieris
a me, impetrabis. Generoso rei! Venturoso vassalo! Mas para quem vos parece
que quereria toda esta ventura? Era Barcelay pai, tinha um filho que se chamava
Caimam, escusou-se de aceitar o lugar e mercê que o rei lhe oferecia,
e o que só lhe pediu foi que a fizesse a seu filho: Est servus tuus
Caimam, ipse vadat tecum, et fac ei quidquid tibi bonum videtur.

Dirão os que têm lido esta história, que se escusou Barcelay
porque se via carregado de anos, como ele mesmo disse; mas isso só
foi um desvio e modo de não aceitar cortêsmente, e não
é razão que satisfaça, pois vemos tantas velhices decrépitas,
tão enfeitiçadas das paredes de palácio, que, tropeçando
nas escadas, sem vista e sem respiração, as sobem todos os dias,
bem esquecidos dos que lhes restam de vida. E quando Barcelay não fosse
tocado deste contágio, ao menos podia dividir a mercê entre si
e o filho, e aparecerem ambos na corte, como vemos muitos títulos com
duas caras (a modo do Deu), uma com muitas cãs e outra sem barba. Mas
a verdadeira razão por que este honrado pai não aceitou a mercê
do rei para si e a pediu para seu filho, nem a dividiu entre ambos, podendo,
pois estava na sua eleição, foi (como dizem literalmente Lira
e Abulense) porque era pai, e entendeu que tanto lograva aquela honra em seu
filho, como em si mesmo, porque nele era mais sua, como acima disse S. Gregório
Nazianzeno. E porque o santo não deu a razão da sua sentença,
nós a daremos e provaremos agora como outro mais notável exemplo
da. Escritura.

Quando Abraão sacrificou seu filho Isaac, é cousa mui notável
e mui notada que, sendo Isaac a vítima do sacrifício, os louvores
desta ação e desta obediência, todos se dêem a Abraão
e não a Isaac. Isaac, não se ofereceu com grande prontidão
ao sacrifício? Não se deixou atar? Não se inclinou sobre
o altar e se lançou sobre a lenha? Não viu sem horror desembainhar
a espada? Não aguardou sem resistência o golpe? Que mais fez
logo Abraão, para que a obediência de Isaac se passe em silêncio
e a de Abraão se estime, se louve, se encareça com tanto excesso?
Nenhuma diferença houve no caso, senão ser Abraão pai
e Isaac filho. Amava Abraão mais a vida de Isaac que a sua, e vivia
mais nela que Em si mesmo; e posto que ambos sacrificaram a vida e a mesma
vida, o sacrifício de Abraão foi maior e mais heróico
que o de Isaac, porque se Isaac sacrificou a sua vida, Abraão sacrificou
a vida que era mais que sua, porque era de seu filho.

Atèqui está dito e bem dito; mas eu passo àvante e noto
o que, a meu ver, é digno ainda de maior reparo: Premiou Deus esta
famosa ação de Abraão, e como a premiou, e em quem? Não
a premiou no mesmo Abraão, senão em Isaac: Quia fecist rem hanc,
benedicentur in semine tuo omnes gentes: in Isaac vocabitur tibi semem. Pois
se a ação do sacrifício foi celebrada em Abraão
e não em Isaac, porque foi premiada em Isaac e não em Abraão?
__ Por isso mesmo. A ação foi celebrada em Abraão e não
em Isaac, porque Isaac sacrificou a sua vida e Abraão sacrificou a
vida que estimava mais que a sua, porque era de seu filho; e da mesma maneira
foi premiada em Isaac e não em Abraão, para que o prémio,
sendo de seu filho, fosse também mais estimado dele do que se fora
seu. A vida que sacrificastes era mais que vossa, porque era de vosso filho?
Pois seja o prémio também de vosso filho, para que seja mais
que vosso. E como os pais estimam mais os bens dos filhos que os seus próprios,
e os logram e gozam mais neles que em si mesmos, vede se escolheria ou quereria
a Senhora a imensa glória de seu Filho antes para ele que para si,
se a terá por sua e mais que sua, e se as mesmas vantagens de glória,
em que infinitamente se vê excedida., serão as que mais gloriosa
a fazem e de que mais se gloria!

O mesmo Filho de Maria, por ser Filho seu, se chama também Filho de
David; e na história do mesmo David nos dá a Escritura Sagrada
o maior e mais universal testemunho, que para prova desta verdade, se pode
desejar nem ainda inventar. Chegado David ao fim da vida, quis nomear sucessor
do reino, e mandou ungir a seu filho Salomão por rei. Deu esta ordem
a Banaias, capitão dos guardas da pessoa real, o qual lhe beijou a
mão pela eleição, que não era pouco controversa,
e o cumprimento com que falou ao rei, foi este: Quomodo fuit Dominus cum Domino
meo rege, sic sit cum Salomone, et sublimius faciat solium ejus a solio Domini
mei regis David: « Assim como Deus assistiu sempre e favoreceu a Vossa
Majestade, assim assista e favoreça o reinado de Salomão, e
sublime e exalte o seu trono muito mais que o trono de Vossa Majestade»
. Executou-se prontamente a ordem, ungirarn a Salomão no monte Gion
com todas as cerimónias que então se usavam em semelhante celebridade;
entrou o novo rei por Jerusalém a cavalo, com trombetas e atabales
diante, entre vivas e aclamações de todo o povo e exército;
vieram todos os príncipes e ministros maiores dos doze tribos congratular-se
com David, e as palavras com que lhe deram o parabém, foram outra vez
as mesmas: Amplificet Deus nomen Salomonis super nomen tuum, et magnificet
thronum ejus super thronum tuum: « Seja maior o maior o nome de Salomão,
Senhor, que o vosso nome, e mais alto e glorioso o seu trono, do que foi o
vosso.

O que me admira sobretudo neste caso, é que todos dissessem a mesma
cousa. Estas são as ocasiões em que a discrição,
o engenho e a cortesania dos que dão o parabém aos reis, se
esmera em buscar cada um novos modos de congratulação, novos
motivos de alegria, e ainda novos conceitos de lisonja, e mais os que fazem
a fala em nome dos seus tribunais ou repúblicas. Como logo em tantos
tribos, tantos ministros, tantos príncipes e senhores, (que, como diz
o texto, vieram todos) não houve quem falasse por outro estilo, nem
dissesse outra cousa a David, senão que Deus fizesse a seu filho maior
que ele e sublimasse e exaltasse o trono de Salomão, mais que o seu
trono? Isto disseram todos. porque a um rei tão famoso e glorioso corno
David, nenhuma outra felicidade nem glória lhe restava para desejar,
senão que tivesse um filho que em tudo se lhe avantajasse e o excedesse,
e que o trono do mesmo filho fosse muito mais levantado e sublimado que o
seu. A David, em quanto David, bas- tava-lhe por glória ter sido David;
mas em quanto pai, não lhe bastava. Ainda lhe restava outra maior glória
que desejar, e esta era ter um tal filho, que na majestade, na grandeza, na
glória e no mesmo trono, o vencesse e excedesse muito: Et magnificet
thronum ejus super thronum tuum.

Dois tronos há no Céu mais sublimes que todos: o de Deus e
o de sua Mãe; o de Deus infinitamente mais alto que o de sua Mãe,
e o de sua Mãe infinitamente mais alto que o de todas as criaturas.
Mas a maior glória. de Maria, não consiste em que o seu trono
exceda o de todas as jerarquias criadas, senão em ter um Filho cujo
trono exceda infinitamemte o. Este é o parabém que no Céu
lhe estão dando hoje e lhe darão por toda a, eternidade todos
os espíritos bem-aventurados, sem haver em todos os coros de homens
e anjos quem diga nem possa. dizer outra cousa, senão: Thronus ejus
super thronum tuum. Vence Maria no Céu a. todas as Virgens, na glória
que se deve à pureza.; a todos os confessores, na que se deve à
humildade; a todos os mártires, na que se deve à paciência;
todos os apóstolos, patriarcas e profetas, na que se deve à
Fé, à Religião, ao zelo e culto da honra de Deus. Mas
assim os confessores como as virgens, assim os mártires como os apóstolos,
assim os patriarcas como os profetas, deixadas todas essas prerrogativas em
que gloriosamente se vêem vencidos, os louvores e euges eternos com
que exaltam a Gloriosíssima Mãe, é ser inferior o seu
trono ao de seu Filho: Thronus ejus super thronum tuum. Vence Maria a todos
os, anjos e arcanjos, a todos os principados e potestades, a todos os querubins
e serafins, na virtude, no poder, na ciência, no amor, na graça,
na glória. Mas todos estes espíritos angélicos, passando
em silêncio os outros dons sobrenaturais que tocam a cada urna das jerarquias,
em que veneram e reconhecem a soberana superioridade com que a Senhora, como
rainha de todas, incomparàvelmente as excede; todos, como tão
discretos e entendidos o que só dizem e sabem dizer; o que sobre tudo
admiram e apregoam, é: Thronus ejus super thronum tuum. Assim que,
homens e anjos, unidos no mesmo conceito e enlevados no mesmo pensamento,
o que cantam, o que louvam, o que celebram, prostrados diante do trono da
segunda Majestade da Glória, e os vivas que lhe dão concordemente,
é ser Mãe de um Filho que, excedendo ela a todos em tão
sublime grau na mesma glória, ele a vence e excede infinitamente. E
isto é o que, divididos em dois coros de inumeráveis vozes e
unidos em urna só voz, aplaudem, aclamam, festejam, e tudo o mais calam,
conformando-se nesta eleição com a parte da mesma glória
que a Senhora elegeu por melhor: Optimam partem. elegit.

VI
E porque a preferência desta eleição não fique
só no juízo dos entendimentos criados, subamos aos arcanos do
entendimento divino, e vejamos como o Eterno Pai, em tudo o que teve liberdade
para eleger e escolher, também escolheu esta parte e a teve por melhor.

Para inteligência. deste ponto havemos de supor que tudo quanto tem
e goza, o Filho de Deus o recebeu de seu Padre, mas por diferente modo. O
que pertence à natureza e atributos divinos recebeu o Verbo Eterno
do Eterno Padre, não por eleição e vontade livre do mesmo
Padre, senão natural e necessàriamente. E a razão é
porque a geração do Divino Verbo procede por acto do entendimento,
antecedente a todo acto da vontade. sem o qual não há eleição.
É verdade que, ainda que a geração do Verbo não
procede por vontade nem é voluntária, nem por isso é
involuntária ou contra vontade. E daqui se ficará entendendo
a energia e propriedade daquelas dificultosas palavras de S. Paulo, onde diz:
que a igualdade que o Filho tem com o Padre na natureza e atributos divinos,
não foi furto, nem o mesmo Verbo o reputou por tal: Non rapinam arbitratus
est esse se æ qualem Deo. E porque declarou S. Paulo o modo da geração
do Verbo pela semelhança ou metáfora do furto, dizendo que não
foi furto, nem como furtado ou roubado o que recebeu do Padre? __Divinamente,
por certo, e não se podia declarar melhor. O furto é aquilo
que se toma ou se retém e possui, invito domino __ « contra vontade
de seu dono. E a Divindade que o Verbo recebeu do Padre, ainda que da parte
do mesmo Padre não fosse voluntária, contudo não foi
invita; não foi voluntária, sim, mas não foi contra vontade.
E como o Padre não foi invito na geração do Verbo e na
comunicação da sua Divindade (posto que fosse necessária
e não livre, por isso a igualdade que o Verbo tem com ele, é
verdadeiramente sua e não roubada: Non rapinam arbitratus est esse
se æ qualem Deo.

Atèqui o que o Filho recebeu do Padre necessariamente, e sem eleição
sua. E que é o que recebeu por vontade livre e por verdadeira e própria
eleição? __ O que logo se segue e acrescentou o mesmo S. Paulo:
Sed semetipsum exinanivit, formam servi accipiens, in similitudinem hominum
factus, et habitu inventus ut homo, propter quod et Deus exaltavit illum et
donavit illi nomen, quod est super omne nomen: Recebeu o Filho do Padre; por
verdadeira e própria eleição, o ofício e dignidade
de Redentor do género humano, « fazendo-se juntamente homem,
e com esta nova e inefável dignidade recebeu um nome sobre todo nome»
, que é o nome: de Jesus, mais sublime e mais venerável, pelo
que é e pelo que significa, que o mesmo nome de Deus: Ut in nomine
Jesus omne genu flectatur. Recebeu a potestade judiciária que o Padre
demitiu de si, « competindo ao Filho privativamente o juízo universal
e particular de vivos e mortos» : Pater non judicat quemquam, sed omne
judicium dedit filio. Recebeu o primeiro trono entre as três Pessoas
da Santíssima Trindade, assentando-se à mão direita do
mesmo Padre: Dixit Dominus Domino meo: sede a dextris meis. Tudo isto, e o
que disto se segue, com imensa exaltação e glória recebeu
o Filho de seu de seu Eterno Padre, por vontade livre e própria eleição.

Mas se toda esta nova exaltação e toda esta nova glória
não era devida à Pessoa do Filho por força ou direito
da geração eterna, em que sòmente era igual ao Padre
na natureza e atributos divinos, e a eleição livre de dar ou
tomar a mesma exaltação e glória estava e dependia da
vontade do mesmo Padre, porque a não tomou para si? Assim como encarnou
a Pessoa do Filho, assim pudera encarnar a Pessoa do Padre; e no tal caso
a nova dignidade de Redentor, o nome sobre todo o nome, a maior veneração
e adoração de homens e anjos, e todas as outras prerrogativas
e glórias que pelo mistério da Encarnação e Redenção
sobrevieram e acresceram ao Filho, não haviam de ser do Filho, senão
do mesmo Padre. Pois se a eleição voluntária e livre
de tudo isso estava na mão do Padre e podia tomar para si toda essa
exaltação e glória; porque; a quis antes para a Pessoa
do Filho? Por nenhuma outra razão, senão porque era Filho e
ele Pai: Ego autem constitutus sum rex ab eo super Sion montem sanctum ejus.
Dominus dixit ad me: Filius meus es tu. Assim como o Eterno Padre, para encarecer
o amor que tinha aos homens, não se nos deu a si, senão a seu
Filho: Sic Deus dilexit mundum, ut Filium suum Unigenitum daret; assim para
manifestar o amor que tinha ao mesmo Filho, não tomou para si estas
novas glórias, senão que todas as quis para ele e lhas deu a
ele, entendendo que, quando fossem de seu Filho, então eram mais suas,
e que mais e melhor as gozava nele que em si mesmo.

E que Filho é este, Virgem Gloriosíssima, senão o mesmo
Filho vosso, Filho Unigénito do Eterno Padre e Filho Unigénito
de Maria? E se o Eterno Padre, em tudo o que pode ter eleição
própria., escolheu os excessos de sua glória para seu Filho,
essa mesma glória, que ele goza em si e vós nele, em que infinitamente
vos vedes excedida, quem pode duvidar, se tem inteiro juízo, que seria
também vossa a mesma eleição? Toda a Igreja Triunfante
no Céu e toda a Militante na Terra, reconhece e confessa que entre
todas as puras criaturas, ou sobre todas elas, nenhuma há mais parecida
a Deus Padre, que aquela singularíssima Senhora, que ele criou e predestinou
ab æ terno para Mãe do seu Unigénito Filho; porque era
justo que o Pai e a Mãe de quem ele recebeu as duas naturezas de que
inefàvelmente é composto, fossem, quanto era possível,
em tudo semelhantes. E se o amor do Pai, por ser amor de Pai, e Pai sem Mãe,
escolheu para seu Filho e não para si as glórias que cabiam
na sua eleição, não há dúvida que o amor
da Mãe, e Mãe sem Pai, escolheria para o mesmo Filho também,
e não para si, toda a glória infinita que ele goza. E esta é
a eleição que teria por melhor: Maria optimam partem elegit.

Assim o entendeu da mesma Mãe o mesmo Pai; e o provou maravilhosamente
o juízo e amor da mesma Senhora para com seu Filho, onde a eleição
foi pròpriamente sua. Quando o Eterno Padre quis dar Mãe a seu
Unigénito, foi com tal miramento e atenção à grandeza
e majestade da que sublimava a tão estreito e soberano parentesco,
que não só quis que fosse sua, isto é, do mesmo Pai,
a eleição da Mãe, senão que também fosse
da Mãe a eleição do Filho. Bem pudera o Eterno Padre
formar a Humanidade de seu Filho nas entranhas puríssimas da Virgem
Maria, sem consentimento nem ainda conhecimento da mesma Virgem, assim como
formou a Eva da costa de Adão, não acordado e estando em si,
senão dormindo. Mas para que o Filho que havia de ser seu, posto que
era Deus, não só fosse seu, senão da sua eleição,
por isso (como diz S. Tomás) lhe destinou antes por embaixador um dos
maiores príncipes da sua corte, o qual de sua parte lhe pedisse o sim
e negociasse e alcançasse o consentimento, e o aceitasse em seu nome.
Este foi, como lhe chamou São Paulo, o maior negócio que nunca
houve nem haverá entre o Céu e a Terra, dificultado primeiro
pela Senhora, e depois persuadido e concluído por S. Gabriel. Mas quais
foram as razões e os motivos de que usou o anjo para o persuadir e
concluir? __ É caso digno de admiração, e que singularmente
prova da parte de Deus, do anjo e da, mesma Virgem, qual é na sua eleição
a melhor parte.

Repara Maria na embaixada, insta o célebre embaixador, e as promessas
que alegou para conseguir o consentimento, foram estas: Ecce concipies et
paries Filium, et vocabis nomem ejus Jesum; hic erit magnus, et Filius Altissimi
vocabitur; dabit illi Dominus Deus sedem David patris ejus, et regnabit, in
domo Jacob, et regni ejus non erit finis: « O filho de que sereis Mãe,
terá por nome Jesus, que quer dizer, o Redentor do Mundo; este será
grande, chamar-se-á Filho de Deus, dar-lhe-á o mesmo Deus o
trono de David seu pai; reinará em toda a casa de Jacob; e seu reino
e império não terá fim» .

Não sei se advertis no que diz o anjo e no que não diz; no
que promete e no que não promete. Tudo o que promete, são grandezas,
altezas e glórias do Filho; e da Mãe, com quem fala, nenhuma
cousa diz; e à mesma a quem pretende persuadir nada lhe promete. Não
pudera Gabriel dizer à Senhora com a mesma verdade, que ela seria a
florescente vara de Jessé; que nela ressuscitaria o ceptro de David;
que a sua casa se levantaria, e estenderia mais que a de Jacob; que seria
rainha sua e de todas as jerarquias dos anjos, Senhora dos homens, Imperatriz
de todo o criado; e que esta majestade e grandeza também a lograria
sem fim? __Tudo isto, e muito mais, podia e sabia dizer o anjo. Pois porque
diz e promete só o que há-de ser o Filho, e não diz nem
promete o que há-de ser a Mãe? Porque falou como anjo, conforme
a sua ciência; e como embaixador, conforme as suas instruções;
por isso, nem ele diz, nem Deus lhe manda dizer senão o que há-de
ser seu Filho; porque nas matérias onde Maria tem a eleição
livre, o que mais pesa no seu juízo e o que mais move e enche o seu
afecto, são as grandezas e glórias de seu Filho e não
as suas. As de seu Filho, e não as suas, porque as tem mais por suas,
sendo de seu Filho; as de seu Filho e não as suas, porque as estima
mais nele e as goza mais nele que em si mesma.

Isto é o que, segundo o conhecimento de Deus, e o do anjo, e o seu,
elegeu Maria, na terra; e isto é o que na presença de Deus,
dos anjos e de todas os bem-aventurados tem por melhor no Céu: Maria
optimam partem elegit.

VII
E nós, Senhora, que, como filhos de Eva, ainda gememos neste desterro,
e como filhos, posto que indignos, vossos, esperamos subir convosco e por
vós a essa bem-aventurança pátria, o que só nos
resta depois desta consideração de vossa glória, é
dar-vos o parabém dela. Parabém vos seja a eleição,
que, ainda que não foi nem podia ser vossa, na predestinação
com que fostes escolhida para a glória de Mãe de Deus, foi vossa
no consentimento voluntário e livre que se vos pediu e destes para
o ser. Parabém vos seja a parte que compreende aquele todo incompreensível
de glória, que só pode abarcar e abraçar o ser imenso,
e conter dentro em si o infinito, que vós também com maior capacidade
que a do Céu tivestes dentro em vós. Parabém vos seja
finalmente a melhoria, por melhor vos está como Mãe, que toda
essa imensidade e infinidade de glória seja de vosso Filho, e melhor
a gozais por este modo, segundo as leis do perfeito amor, que se a gozáreis
em vós mesma. E assim como vos damos o parabém e nos alegramos
com todo o afecto de nossos corações, de que a estejais gozando
e hajais de gozar por toda a eternidade; assim vos pedimos, humildemente postados
ao trono de vossa gloriosíssima Majestade, que, como Senhora da Glória
e liberalíssima dispensadora de todas as graças de vosso benditíssimo
filho, alcançadas e merecidas pelo sangue preciosíssimo que
de vós recebeu, nos comuniqueis, aumenteis e conserveis até
o último dia, em que passarmos, como vós hoje, desta vida àquela
graça que nos é necessária para vos louvarmos eternamente
na Glória.

Sermão da Primeira Dominga do Advento 1650

Abrasado finalmente o Mundo e reduzido a um mar de cinzas tudo o que o esquecimento
deste dia edificou sobre a terra… (Dou princípio a este sermão
sem princípio, porque já disse Quintiliano que as grandes ações
não hão mister exórdio: elas per si mesmas, ou supõem
a atencão ou conciliam. Também passo em silêncio a narração
portentosa dos sinais que precederão ao juízo, porque esta parte
do Evangelho pertence aos que hão-de ser vivos naquele tempo, e não
a nós; e o dia de hoje é muito de tratar cada um só do
que Ihe pertence). Abrasado, pois, o Moundo, e consumido pela violência
do fogo o que a sabedoria dos homens e o esquecimento deste dia levantou e
edificou na terra; quando já não se verão nesse formoso
e dilatado mapa senão umas poucas cinzas, relíquias de sua grandeza
e desengano de nossa vaidade, «soará no ar uma trombeta»
espantosa, não metafórica, mas verdadeira (que isso quer dizer
a repetição de São Paulo: Canet enim tuba; e obedecendo
aos impérios daquela voz o Céu, o Inferno, o Purgatório
o Limbo, o mar, a terra, abrir-se-ão em um momento as sepulturas e
aparecerão no Mundo os mortos vivos.

Parece-vos muito, que a voz de uma trombeta haja de achar obediência
nos mortos? Ora reparai em outro milagre maior, e não vos parecerá
grande este. Entrai pelos desertos do Egipto, da Tebaida da Palestina; penetrai
o mais interior e retirado daquelas soledades. Que é o que vedes? Naquela
cova vereis metido um Hilarião, naquela outra um Macário, na
outra mais apartada um Pacómio; aqui um Paulo, ali um Jerónimo,
acolá um Arsénio; da outra parte, uma Maria Egipcíaca,
uma Thais, uma Pelágia, uma Teodora. Homens, mulheres, que é
isto ? Quem vos trouxe a esse estado ? Quem vos antecipou a morte? Quem vos
amortalhou nesses cilícios? Quem vos enterrou em vida? Quem vos meteu
nessas sepulturas? Quem? Responderá por todos São Jerónimo:
Semper mihi videtur insonare tuba illa terribilis: surgite mortui, venite
ad judicim. Sabeis quem nos vestiu destas mortalhas, sabeis quem nos fechou
nestas sepulturas?__«A lembrança daquela trombeta temerosa que
há-de soar no último dia: levantai-vos, mortos, e vinde a juizo».
Pois se a voz desta trombeta só imaginada, (pesai bem a consequência)
se a voz desta trombeta só imaginada, bastou para enterrar os vivos,
que muito que, quando soar verdadeiramente, seja poderosa para desenterrar
os mortos?

O meu espanto não é este. O que me espanta, e o que deve assombrar
a todos, é que haja de bastar esta trombeta para ressuscitar os mortos,
e que não baste para espertar os mortais! Credes, mortais, que há-de
haver juízo? Uma de duas é certa: ou o não credes, ou
o não tendes. Virá o dia final, e então sentirá
nossa insensibilidade sem remédio o que agora pudera ser com proveito.
Quanto melhor fora chorar agora e arrepender agora, como faziam aqueles e
aquelas penitentes do ermo, do que chorar e arrepender depois, quando para
as lágrimas não há-de haver misericórdia, nem
para os arrependimentos perdão. Agora vivemos como queremos; e ainda
mal, porque depois havemos de ressuscitar como não quiséramos.

II
Grandes cousas e lastimosamente grandes haverá que ver e considerar
naquele acto da ressurreição universal! Mas entre todas as considerações
a que me parece mais própria deste lugar e mais digna de sentimento,
é esta. E quanta gente bem nascida se verá naquele dia mal ressuscitada!
Entre a ressurreição natural e a sobrenatural há uma
grande diferença: que na ressurreição natural cada um
ressuscita como nasce; na ressurreição sobrenatural, cada um
ressuscita como vive; na ressurreição natural nasce Pedro e
ressuscita Pedro; na ressurreição sobrenatural nasce pescador,
e ressuscita príncipe: Sedebitis in regeneratione judicantes duodecim
tribus Israel. Oh que grande consolação esta para aqueles a
quem não alcançou a fortuna dos altos nascimentos! Bem me parecia
a mim que não podia faltar Deus a dar uma grande satisfação
no dia do juízo à desigualdade com que nascem os homens, sendo
todos da mesma natureza. Não se faz agravo na desigualdade do nascer,
a quem se deu a eleição de ressuscitar. A ressurreição
é um segundo nascimento com alvedrio.

Tanta propriedade considerou Job neste segundo nascimento, que até
outro pai, outra mãe disse que tínhamos na sepultura: Putredini
dixi: pater meus es tu; mater mea et soror mea, vermibus. Temos outro pai
e outra mãe na sepultura em que jazem nossos ossos, porque ali somos
outra vez gerados, de ali saímos outra vez nascidos. Notai agora: Statutum
est hominibus semel mori: «Quis Deus que morrêssemos uma só
vez», e que nascêssemos duas, porque, como o morrer bem dependia
de nosso alvedrio, bastava uma só morte; mas como o nascer bem não
estava na nossa mão, eram necessários dois nascimentos, para
que pudéssemos emendar no segundo tudo o que nos faltasse no primeiro.
Bem pudera Deus fazer que nascessem os homens todos iguais, mas ordenou sua
providência, que houvesse no Mundo esta mal sofrida desigualdade, para
que a mesma dor do primeiro nascimento nos excitasse à melhoria do
segundo.

Homens humildes e desprezados do povo, boa nova! Se a natureza ou a fortuna
foi escassa convosco no nascimento, sabei que ainda haveis de nascer outra
vez, e tão honradamente como quiserdes; então emendareis a natureza,
então vos vingareis da fortuna.

Que maior vingança da fortuna que as mudanças tão notáveis,
que se verão naquele dia! Virão naquele dia as almas do grande
e do pequeno buscar seus corpos à sepultura, e talvez à mesma
Igreja: e que sucederá pela maior parte? O pequeno achará seus
ossos em um adro sem pedra nem letreiro, e ressuscitará tão
ilustre como as estrelas. O grande, pelo contrário, achará seu
corpo embalsamado em caixas de pórfiro, aos ombros de leões,
ou elefantes de mármore, com soberbos e magníficos epitáfios,
e ressuscitará mais vil que a mesma vileza. Oh que metamorfose tão
triste, mas que verdadeira! Vede se há-de dar Deus boa satisfação
aos homens da desigualdade com que hoje nascem. O ser bem nascido, que é
uma vaidade que se acaba com a vida, é verdade que o não pôs
Deus na nossa mão; mas o ser bem ressuscitado, que é aquela
nobreza que há-de durar por toda a eternidade, essa deixou Deus no
alvedrio de cada um. No nascimento somos filhos de nossos pais, na ressurreição
seremos filhos de nossas obras. E que seja mal ressuscitado por culpa sua
quem foi bem nascido sem merecimento seu! Lástima grande. Ressuscitar
bem sobre haver nascido mal, é emendar a fortuna; ressuscitar mal sobre
haver nascido bem, é pior que degenerar da natureza. Que ressuscite
bem David sobre nascer de Jessé, grande glória do filho de um
pastor; mas que ressuscite mal Absalão sobre nascer de David, grande
afronta do filho de um rei! Se os homens se prezam tanto de ser bem nascidos,
como fazem tão pouco caso de ser bem ressuscitados? Nenhuma cousa trazem
na boca os grandes mais ordinàriamente, que as obrigações
com que nasceram. E aposto eu que mui poucos sabem quais são estas
obrígações. Nascer bem é obrigacão de ressuscitar
melhor. Estas são as obrigações com que nascestes.

O mais bem nascido homem que houve, nem pode haver, foi Cristo; ninguém
teve melhor pai, nem melhor mãe; e foi notar Santo Agostinho que, se
Cristo nasceu bem, ressuscitou melhor: Gloriosior est ista ,nativitas, quam
illa: illa cortus mortale genuit, ista redidit immortale. Cristo, diz Santo
Agostinho, «nasceu mais nobremente no segundo nascimento que no primeiro:
no primeiro nascimento nasceu mortal e passível; no segundo, que foi
a sua ressurreição, nasceu impassível e imortal»
Eis aqui as obrigações dos bem nascidos—nascerem a segunda
vez melhor do que nasceram a primeira. Se Deus pusera na mão do homem
o nascer, quem houvera, por bom que fosse, que não se fizesse muito
melhor? Pois este é o caso em que estamos. Se havemos de tornar a nascer,
porque não trabalharemos muito por nascer muito honradamente? Não
nascer honrado no primeiro nascimento, tem a desculpa de que «Deus nos
fez» Ipse fecit nos, Não nascer honrado no segundo, nenhuma desculpa
tem: tem a glória de sermos nós os que nos fizemos: Ipsi nos.
Que glória será naquele dia para um homem poder tomar para si
em melhor sentido o elogio do grande Baptista: Inter natos mulierum non surrexit
major:«Entre os nascidos das mulheres nenhum ressuscitou maior».
Ser o maior dos nascidos, em quanto nascido, é pequeno louvor e de
pouca dura; ser o maior dos nascidos, em quanto ressuscitado, isso éverdadeiramente
o ser maior. Na nossa mão está, se o quisermos ser. Nesta vida
o mais venturoso pode nascer filho do rei; na outra vida todos os que quiserem
podem nascer filhos do mesmo Deus: Dedit eis potestatem filios Dei fieri.
E que não sejam isto considerações, senão verdade
e Fé católica! Bendito seja aquele Senhor, que é nossa
ressurreição e nossa vida: Ego sum resurrectio et vita.

III
Unidas as almas aos corpos e restituidos os homens à sua antiga inteireza,
os bem ressuscitados alegres, os mal ressuscitados tristes, começarão
a caminhar todos para o lugar do juízo. Será aquela a vez primeira
em que o género humano se verá a si mesmo, porque se ajuntarão
ali os que são, os que foram, os que hão-de ser, e todos pararão
no vale de Josafat. Se o dia não fora de tanto cuidado, muito seria
para ver os homens grandes de todas as idades juntos. Mas vejo que me estão
perguntando, como é possível que uma multidão tão
excessiva como a de todo género humano, os homens que se continuaram
desde o princíplo até agora, e os que se irão multiplicando
sucessivamente até o fim do Mundo; como é possível que
aquele número inumerável, aquela multidão quase infinita
de homens caiba em um vale? A dúvida é boa, queira Deus que
o seja a resposta. Primeiramente digo que nisto de lugares há grande
engano: cabe muito mais nos lugares do que nós cuidamos.

No primeiro dia da criação, criou Deus o Céu e a Terra
e os elementos, e é certo em boa filosofia, que não ficou nenhum
vácuo no Mundo, tudo estava cheio. Com isto ser assim, e parecer que
não havia já lugar para caber mais nada, ao terceiro dia vieram
as ervas, as plantas, e as árvores; e com serem tantas em número
e tão grandes, couberam todas. Ao quarto dia veio o Sol, e sendo aquele
imenso planeta cento e sessenta e seis vezes maior que a Terra, coube também
o Sol; vieram no mesmo dia as estrelas tantas mil, e cada uma de tantas mil
léguas, e couberam as estrelas. Ao quinto dia vieram as aves ao ar,
e couberam as aves; vieram os peixes ao mar, e com haver neles tantos monstros
de disforme grandeza, couberam os peixes. No sexto dia vieram os animais tantos
e tão grandes à Terra, e couteram os animais: finalmente veio
o homem, e foi o homem o primeiro que começou a não caber; mas
se não coube no Paraiso, coube fora dele. De sorte que, como dizia.
nisto de lugares vai grande engano: cabe neles muito mais do que nos parece.
E senão, passemos a um exemplo moral, e vejamo-lo em qualquer lugar
da república. O dia é do juízo, seja o lugar de um julgador.

Antigamente em um lugar destes que é o que cabia? Cabia o doutor com
os seus textos e umas poucas de postilhas, muito usadas, e por isso muito
honradas. Cabia mais uma mula mal pensada, se a casa estava muito longe do
Limoeiro. Cabiam os filhos honestamente vestidos; mas a pé e com a
arte debaixo do braço. Cabia a mulher com poucas jóias, e as
criadas, se passavam da unidade, não chegavam ao plural dos gregos.
Isto é o que cabia naquele lugar antigamente; e feitas boas contas,
parece que não podia caber mais. Andaram os anos, o lugar não
cresceu, e tem mostrado a experiência que é muito mais sem comparação
o que cabe no mesmo lugar. Primeiramente cabem umas casas, ou pacos, que os
não tinham tão grandes os condes do outro tempo; cabe uma livraria
de Estado, tamanha como a vaticana, e talvez com os livros tão fechados
como ela os tem; cabe um coche com quatro mulas, cabem pajens, cabem lacaios,
cabem escudeiros; cabe a mulher em quarto apartado, com donas, com aias e
com todos os outros arremedos da fidalguia; cabem os filhos com cavalos e
criados, e talvez com o jogo e com outras mocidades de preço; cabem
as filhas maiores com dotes e casamentos de mais de marca, as segundas nos
mosteiros com grossas tenças; cabem tapeçarias, cabem baixelas,
cabem comendas, cabem benefícios, cabem moios de renda; e sobretudo
cabem umas mãos muito lavadas e uma consciência muito pura, e
infinitas outras cousas, que só na memória e no entendimento
não cabem. Não é isto assim? Lá nessas terras
por onde eu agora andei, assim é. Pois se tudo isto cabe em um lugar
tão pequeno, que grande serviços fazemos nós à
Fé em crer que caberemos todos no vale de Josafat? Havemos de caber
todos, e se vierem outros tantos mais, para todos há de haver vale
e milagre.

De mais desta razão geral que há da parte do lugar, há
outras duas da parte das pessoas; uma da parte dos bons, outra da parte dos
maus. Os bons poderão caber ali em muito pouco lugar, porque terão
o dote da subtileza. Entre os quatro dotes gloriosos há um que se chama
subtileza, O qual comunica tal propriedade aos corpos dos bem-aventurados,
que todos quantos se hão-de achar no dia do juízo podem caber
neste lugar onde eu estou, sem me tirarem dele. Cá no Mundo também
há este dote da subtileza, mas com mui diferentes propriedades. A subtileza
do Céu introduz a um sem afastar a outro; as subtilezas do Mundo, todo
seu cuidado é afastar os outros para se introduzir a si. Por isso não
há lugar que dure nem lugar que baste. Muito é que Jacob e Esaú
não coubessem em uma casa; mais é que Lot e Abraão não
coubessem em uma cidade; muito mais é que Saul e David não coubessem
em um reino; mas o que excede toda a admiração é que
Caim e Abel não coubessem em todo o Mundo. E porque não cabiam
dois homens em tão imenso logar? Pior é a causa que o caso.
Caim não cabia com Abel, porque Abel cabia com Deus. Em um homem cabendo
com seu Senhor, logo os outros não cabem com ele. Alguma vez será
isto soberba dos Abéis, mas ordinàriamente é inveja dos
Cains. Se é certo que com a morte se acaba a inveja, fàcilmente
caberemos todos no Dia do Juízo. Quereis caber todos? Não acrescenteis
lugares, diminuí invejas. Este é o dote da subtileza dos bons.

Da parte dos maus também não há-de haver dificuldade
em caber no vale; porque ainda que os maus são tantos, e hoje tão
grandes e tão inchados, naquele dia hão-de estar todos muito
pequeninos. que no tempo do Dilúvio coubessem na arca de Noé
todos os animais do Mundo em suas espécies, crê-o a Fé,
porque o diz a Escritura; mas não o compreende o entendimento porque
o não alcança a razão. Como pode ser que coubessem em
tão pequeno lugar tantos animais, tão grandes e tão feros?
O leão, para quem toda a Líbia era pouca campanha; a águia,
para quem todo o ar era pouca esfera; O touro, que não cabia na praça;
O tigre, que não cabIa no bosque; o elefante, que não cabia
em si mesmo. Que todos estes animais e tantos outros de igual fereza e grandeza
coubessem juntos em uma arca tão pequena?! Sim, cabiam todos, porque,
ainda que a arca era pequena, a tempestade era grande. Alagava Deus naquele
tempo a terra com dilúvio universal, que foi a maior calamidade que
padeceu o Mundo; e nos tempos dos grandes trabalhos e calamidades até
o instinto faz encolher os animais, quanto mais a razão aos homens!
Caberão os homens no vale de Josafat, assim como couberam os animais
na arca de Noé: Sicut fuit in diebus Noe, sic erit in consummatione
saculi. Diz o texto que só com os sinais do fim do Mundo hão-de
andar todos os homens secos e mirrados: Arescentibus hominibus pra timore:
Se aos homens os há de apertar tanto o receio, quanto os estreitará
o juízo! Oh como nos encolheremos todos naquele dia! Oh como estarão
pequenos ali os maiores gigantes! A maior maravilha do Dia do Juízo,
não é haver de caber todo o Mundo em todo o vale de Josafat;
a maravilha maior será que caberão então em uma pequena
parte do vale muitos que não cabiam em todo o Mundo. Um Nabucodonosor,
um Alexandre Magno, um Júlio César, para quem era estreita a
redondeza da Terra, caberão ali em um cantinho.

Uma das cousas notáveis que diz Cristo do Dia do Juízo é
que «cairão as estrelas do céu» . StelIæ cadent
de cæelo. Se dermos vista aos matemáticos, hão-de achar
grande dificuldade neste texto (eu Ihes darei a razão natural dele,
quando ma peçam). Todas as estrelas, menos duas, são maiores
que a Terra, e algumas há que são quarenta, oitenta e cento
e dez vezes maiores. Pois se as estrelas são maiores que a terra, como
hão-de cair e caber cá em baixo? Hão-de caber, porque
hão-de cair. Não sabeis que os levantados e os caídos
não têm a mesma medida? Pois assim Ihes há-de suceder
às estrelas. Agora que estão levantadas, ocupam grandes espaços
do Céu; como estiverem caídas, hão-de caber em poucos
palmos da Terra. Não há cousa que ocupe menor lugar que um caído.
A Terra, em comparação do Céu, é um ponto; o centro,
em comparação da Terra, é outro ponto; e Lúcifer,
que levantado não cabia no Céu, caído cabe no centro
da Terra. Ah Lucíferes do Mundo! Aqueles que levantados nas asas da
prosperidade humana em nenhum lugar cabeis hoje, caídos e derribados
naquele dia. cabereis em muito pouco lugar. Estaremos todos ali encolhidos
e sumidos dentro em nós mesmos cuidando na conta que havemos de dar
a Deus; e quando não houvera outra razão, esta só bastava
para não faltar lugar a ninguém. Deem os homens em cuidar na
conta que hão-de dar a Deus, e eu vos prometo que sobejem lugares.
O que importa é que o lugar seja bom, que quanto é lugar, vale
de Josafat haverá para todos.

IV
Presente enfim no vale todo o género humano, correr-se-ão as
cortinas do Céu, e aparecerá o Supremo Juiz sobre um trono de
resplandecentes nuvens, acompanhado de todas as jerarquias dos anjos, e muito
mais de sua própria Majestade. A primeira cousa que fará será
mandar apartar os maus dos bons; e os ministros desta execução
serão os anjos: Exibunt angeli, et separabunt malos de medio justorum.
Para se entender melhor esta separação havemos de supor com
o Profeta Zacarias que, antes dela, não hão-de estar os homens
ali juntos confusamente; mas para maior grandeza e distinção
do acto, hão-de estar repartidos todos por seus estados: Familia et
familia seorsum. A uma parte hão-de estar os papas; a outra os imperadores;
a outra os reis; a outra os bispos; a outra os religiosos; e assim dos demais
estados do Mundo. Separados todos por esta ordem, conforme o lugar que tiveram
nesta vida, então se começará a segunda separação,
segundo o estado que hão-de ter na outra, e que há-de durar
para sempre.

Sairão pois os anjos; vede que suspensão e que tremor será
o dos corações dos homens naquela hora! Sairão os anjos
e irão primeiramente ao lugar dos papas. Et separabunt (faz horror
só imaginar, que em uma dignidade tão divina e em homens eleitos
pelo Espírito Santo há-de haver também que separar).
Et separabunt malos de medio justorum: «E separarão os pontífices
maus de entre os pontífices bons». Eu bem creio que serão
muito raros os que se hão-de condenar; mas haver de dar conta a Deus
de todas as almas do Mundo, é um peso tão imenso que não
será maravilha que, sendo homens, levasse alguns ao Profundo. Todos
nesta vida se chamaram padres santos; mas o Dia do Juízo mostrará
que a santidade não consiste no nome, senão nas obras. Nesta
vida beatíssimos, na outra malaventurados. Oh que grande miséria!

Sairão após estes outros anjos e irão ao lugar dos bispos
e arcebispos: Et separabunt malos de medio justorum. Lá vai aquele
porque não deu esmolas; aquele porque enriqueceu os parentes com o
património de Cristo; aquele porque, tendo uma esposa, procurou outra
melhor dotada; aquele porque faltou com o pasto da doutrina a suas ovelhas;
aquele porque proveu as igrejas nos que não tinham mais merecimento
que o de serem seus criados; aquele porque na sua diocese morreram tantas
almas sem sacramentos; aquele por não residir; aquele por simonias;
aquele por irregularidades; aquele por falta de exemplo da vida, e também
algum por falta da ciência necessária; empregando o tempo e o
estudo em divertimentos, ou da corte e não de prelado, ou do campo
e não de pastor. Valha-me Deus, que confusão tão grande!
Mas que alegres e que satisfeitos estarão neste passo, um São
Bernardino de Sena, um São Boaventura, um São Domingos, um São
Bernardo, e muitos outros varões santos e sesudos, que quando Ihes
ofereceram as mitras, não quiseram subir à alteza da dignidade,
porque reconheceram a do precipicio. Pelo contrário que tais levarão
os corações aqueles miseráveis condenados? Quantas vezes
dirão dentro em si mesmos e a vozes: Maldito seja o dia em que nos
elegeram e maldito quem nos elegeu! Maldito seja o dia em que nos confirmaram,
e maldito quem nos confirmou! Se um homem mal pode dar conta de sua alma,
como a dará boa de tantas? Se este peso deu em terra com os maiores
atlantes da Igreja, quem não temerá e fugirá dele?

Grande desconsolação é hoje para as igrejas de Portugal
não terem bispos; mas pode ser que no dia do juízo seja grande
consolação para os bispos de Portugal não chegarem a
ter igrejas. De um sacerdote que não quis aceitar um bispado, conta
São Jerónimo que, aparecendo depois da morte a um seu tio religioso
que assim Iho aconselhara, lhe disse estas palavras: Gratias, Pater, tibi
refero ex dissuasione episcopatus: «Dou-vos, Padre, muitas graças
porque me persuadistes que não aceitasse aquele bispado»; nam
scito quia nunc essem de numero damnatorum si fuissem de numero episcoporum:
«Porque sabereis que hoje havia eu de ser do número dos condenados,
se então fora do número dos bispos».

Oh quantos sem saberem o que fazem, debaixo do nonte lustroso de uma mitra,
andam feitos pretendentes de sua condenação! A este e a muitos
outros que não quiseram aceitar bispados, revelou Deus que se haviam
de condenar, se chegassem a ser bispos. E quem vos disse a vós que
estáveis privilegiados desta condicional? De chegardes a ser bispo,
pode ser que não dependa a salvação de outras almas;
e de não chegardes a o ser. pode ser que dependa a salvação
da vossa. O mais seguro é encolher os ombros e deixar governar a Deus.

Do lugar dos bispos passarão os anjos ao lugar dos religiosos; e entrando
naquela multidão infinita das ordens regulares, sem embargo de resplandecerem
nelas como sóis as maiores santidades do Mundo, contudo haverá
muito que separar; começarão por Judas: Et separabunt malos
de medio justorum. Não o digo por me tocar; mas por todas as razões
me parece que será este o mais triste espectáculo do Dia do
Juízo. Que vão os homens ao Inferno pelo caminho do Inferno,
desgraça é, mas não é maravilha; porém
ir ao Inferno pelo caminho do Céu, é a maior de todas as misérias
Que o rico avarento, vestindo púrpuras e holandas e gastando a vida
em banquetes, seja sepultado nos fogos eternos. por seu preço leva
o Inferno: Recepisti bona in vita tua; mas que o religioso, amortalhado em
um saco, com os seus jejuns, com as suas penitencias, com a sua clausura,
com a sua vontade sujeita a outrem, por ter os olhos nas migalhas dos do Mundo,
como Lázaro, vá parar nas mesmas penas! Brava desaventura! O
secular distraído, que lhe não veio nunca à memória
a conta que havia de dar a Deus, que a não dê boa e se perca,
não podia parar noutra cousa o seu descuido; mas que o mesmo religioso
que por estes púlpitos vos vem pregar o juízo, possa ser e haja
de ser um dos condenados daquele dia! Triste estado é o nosso, se nos
não salvamos. Mas de aqui podeis vós também inferir que
se isto passa no porto, que será no pego! Se nós (falo dos melhores
que eu) se nós, sobre tanto meditar na outra vida, nos perdemos, o
vosso descuido e o vosso esquecimento, onde vos há-de levar? Se as
Cartuxas, se os Buçacos, se as Arrábidas hão-de tremer
no Dia do Juízo, as cortes e vossa corte em que estado se achará?

V

Em todos os estados da corte haverá mais que separar que em nenhuns
outros. Mas deixando por agora os demais, em que cada um se pode pregar a
si mesmo: chegarão finalmente os anjos ao lugar dos reis. Não
se verão ali sitiais, nem outros aparatos de majestade, mas todos sós,
e acompanhados sòmente de suas obras, estarão em pé,
como réus. Conhecer-se-ão distintamente quais foram os reis
de cada reino: quais os de Hungria, quais os de França, quais os de
Inglaterra, quais os de Castela, quais os de Portugal. E desta maneira irão
os anjos tirando de cada coroa aqueles que foram maus reis: Et separabun malos
de medio justorum. Espero eu em Deus que neste dia há-de ser o nosso
reino singular entre os do Mundo, e que só dele não hão-de
achar os anjos que apartar. Se eu estudara só pelo meu desejo e pela
minha esperança, assim o havia de crer; mas quando leio as Escrituras,
acho muito que temer e muito que duvidar. Dos reis, como dos outros homens,
nós não sabemos quais se salvam nem quais se perdem. Só
uma nação houve antigamente, da qual nos consta do texto sagrado
quantos foram os reis que se salvaram e quantos os que se perderam. Tremo
de o dizer, mas é bem que se saiba distintamente: No povo hebreu, em
tempo que era povo de Deus, houve tres reinos: o primeiro foi o reino das
Doze Tribos; teve três reis e durou cento e vinte anos; o segundo foi
o reino de Judá; teve vinte reis e durou trezentos e noventa e quatro
anos o terceiro foi o reino de Israel; teve dezanove reis, e durou duzentos
e quarenta e dois anos. Saibamos agora quantos reis foram os que se salvaram
e quantos os que se perderam nestes reinos.

No reino das Doze Tribos, de três reis perdeu-se Saul, salvou-se David,
de Salomão não se sabe. No reino de Judá, de vinte reis
salvaram-se cinco, perderam-se treze, de dois é incerto. No reino de
Israel, nem estas tão pequenas excepções teve a desgraça;
foram os reis dezanove e todos os dezanove se condenaram. No Dia do Juízo
não se poderá cumprir neste reino o Separabunt malos de medio
justorum: chegarão os anjos ali não terão que separar,
levarão a todos. Oh desgraçados ceptrós! Oh desgraçadas
coroas! Oh desgraçados pais! Oh desgraçada descendência!
Desde Jeroboão a Oseas dezanove reis coroados: dezanove reis condenados.

Pois por certo que não foi por falta de doutrina nem de auxílios:
tinham estes reis conhecimento do verdadeiro Deus; tinham um povo, que era
o povo escolhido de Deus, tinham templo, tinham sacerdotes, tinham sacrifícios,
viam milagres, ouviam profecias, recebiam favores do Céu, e quando
era necessário, não lhes faltavam também castigos; e
nada disto bastou. Muito arriscada cousa deve ser o reinar, pois em tantos
tempos e em tantos reis, se salvam, ou tão poucos, ou nenhum. Julguem
lá agora os príncipes quais serão as causas disto, que
Deus não é injusto. Examinem mais escrupulosamente suas consciências,
e olhem a quem as comunicam; considerem muito de vagar as suas obrigações,
que são muito mais estreitas do que ordinàriamente cuidam; inquiram
muito de propósito sobre os danos públicos e particulares de
seus vassalos, e vejam, pondo de parte todo o afecto, se suas orações
ou suas omissões podem ser a causa; persuadam-se que hão-de
aparecer como qualquer outro homem diante do tribunal da Justica Divina, onde
se Ihes há-de pedir rigorosíssima conta, dia por dia e hora
por hora, de quanto fizeram e de quanto o deixaram de fazer. Cuide finalmente
e pese, convém, cada um dos príncipes, quão grande desaventura
e confusão sua será naquele cadafalso universal do Dia do Juízo,
se depois de tanta majestade e adoração nesta vida, vier um
anjo e o tomar pela mão, e o tirar para sempre do número dos
que se hão-de salvar: Separabunt malos de medio justorum.

Por este modo se irá continuando a separação dos maus
em todos os estados do Mundo; e naqueles em que por razão do sangue
e do amor é mais natural a união, será mais lastimoso
o apartamento. Verdadeiramente, todas as outras circunstancias daquele acto
terão muito de rigorosas, esta parecerá cruel. Apartar-se-ão
ali os pais dos filhos: irá para uma parte Abraão e para outra
Ismael; apartar-se-ão os irmãos dos irmãos: irá
para uma parte Jacob e para outra Esaú; apartar-se-ão as mulheres
dos maridos: irá para uma parte Ester e para outra Assuero; apartar-se-ão
os amigos dos amigos: (seja o exemplo incerto, já que há tão
poucos de verdadeira amizade) irá para uma parte Jónatas e para
outra David. Assim se apartarão para nunca mais os que se amam nesta
vida e os que tinham tantas razões para se amarem também na
outra.

Para nunca mais! Oh! que lastimosa palavra! Se apartar-se de uma terra para
outra terra, com esperança de se tornar a ver, causa tanta dor nos
que se amam; se apartar-se desta vida para a outra vida, com probabilidade
de se verem eternamente, é um transe tão rigoroso; que dor será
apartarem-se para nunca mais, com certeza de se não verem em quanto
Deus for Deus, aqueles a que a natureza e o amor tinham feito quase a mesma
cousa! Certo que tem assaz duro coração quem só pelo
não meter nestes apertos não ama a Deus com todo ele.

VI
Feita a separação dos maus e bons, e sossegados os prantos daquele
último apartamento que serão tão grandes como a multidão
e tão lastimosos como a causa, posto todo o juízo em silêncio
e suspensão, começará a se fazer o exame das culpas.
Neste passo me havia eu de descer do púlpito, e subir a ele… Quem?
Não um anjo, não um profeta, não um apóstolo,
mas algum dos condenados do Inferno, como queria o rico avarento que viesse
pregar a seus irmãos. Delicta quis intelligit? Quem há neste
Mundo que entenda nem conheça os pecados? Isto dizia David, aquele
Profeta tão alumiado do Céu. Só um condenado do Inferno,
só quem foi julgado por Deus, só quem assistiu ao rigor daquele
tribunal tremendo, só quem viu o exame inexcrutável com que
ali se penetram e se apuram as consciências, só quem viu a anatomia
tão miúda, tão delicada, tão exquisita, que ali
se faz do menor pecado e da menor circunstancia, só quem viu a subtileza
não imaginada com que ali se pesam átomos, se medem instantes,
se partem indivisíveis; só este, e nem ainda este bastantemente,
poderá declarar o que naquele dia há-de ser.

Muitas vezes me resolvi a deixar totalmente este ponto, contentando-me com
confessar que não sei nem me atrevo a falar nele; porque ninguém
possa dizer no Dia do Juízo que eu o enganei. Mas como a matéria
é tão importante e a principal obrigação deste
dia, já que se não pode dizer tudo, nem parte, ao menos quisera
que Deus me ajudasse a vos meter hoje na alma dois escrúpulos, que
me parecem os mais necessários ao auditório a quem falo: pecados
de omissão e pecados de consequência. Estes são os dois
escrúpulos que vos quisera hoje advertir e intimar da parte de Deus.

Sabei, Cristãos, sabei príncipes, sabei ministros, que se vos
há-de pedir estreita conta do que fizestes, mas muito mais estreita
do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram, se hão-de condenar muitos;
pelo que não fizeram, todos. As culpas por que se condenam os réus
são as que se contêm nos relatórios das sentenças:
lede agora o relatório da sentença do Dia do Juízo e
notai o que diz: Discedite a me, maledicti in ignem æternum: «Ide,
malditos, ao fogo eterno».—E porque?—Non dedistis mihi manducare
non dedistis mihi potum, non collegistis me, non cooperuistis me, non visitastis
me. Cinco cargos, e todos omissões: «porque não destes
de comer, porque não destes de beber, porque não recolhestes,
porque não visitastes, porque não vestistes». Em suma,
que os pecados que ùltimamente hão-de levar os condenados ao
Inferno, são os pecados de omissão.

Não se espantem os doutos de uma proposiçao tão universal
como esta; porque assim é verdadeira em todo o rigor da teologia. O
último pecado e a última disposição por que se
hão-de condenar os precitos, é a impenitencia final; e a impenitência
final é pecado de omissão. Vede que cousas são omissões,
e não vos espantareis do que digo. Por uma omissão perde-se
uma inspiração, por uma inspiração perde-se um
auxílio, por um auxílio perde-se uma contrição,
por uma contricão perde-se uma alma; dai conta a Deus de uma alma,
por uma omissão.

Desçamos a exemplos mais públicos. Por uma omissão perde-se
uma maré, por uma maré perde-se urna viagem, por uma viagem
perde-se uma armada, por uma armada perde-se um estado. Dai conta a Deus de
uma Índia, dai conta a Deus de um Brasil, por uma omissão. Por
uma omissão perde-se um aviso, por um aviso perde-se uma ocasião,
por uma ocasião perde-se um negócio, por um negócio perde-se
um reino. Dai conta a Deus de tantas casas, dai conta a Deus de tantas vidas,
o dai conta a Deus de tantas fazendas, dai conta a Deus de tantas honras,
por uma omissão. Oh que arriscada salvação! Oh que arriscado
ofício é o dos príncipes e o dos ministros. Está
o príncipe, está o ministro divertido, sem fazer má obra,
sem dizer má palavra, sem ter mau nem bom pensamento; e talvez naquela
mesma hora, por culpa de uma omissão, está cometendo maiores
danos, maiores estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores
do Mundo em muitos anos. O salteador na charneca com um tiro mata um homem;
o príncipe e o ministro com uma omissão, mata de um golpe uma
monarquia. Estes são os escrúpulos de que se não faz
nenhum escrúpulo; por isso mesmo são as omissões os mais
perigosos de todos os pecados.

A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete e com
mais dificuldade se conhece; e o que fàcilmente se comete e dificultosamente
se conhece, raramente se emenda. A omissão é um pecado que se
faz não fazendo; e pecado que nunca é má obra, e algumas
vezes pode ser obra boa, ainda os muito escrupulosos vivem muito arriscados
em este pecado. Estava o Profeta Elias em um deserto metido em uma cova, aparece-lhe
Deus e diz-lhe: Quid hic agis, Elia? « E bem Elias, vós aqui?
» — Aqui, Senhor! Pois aonde estou eu? Não estou metido
em uma cova? Não estou retirado do Mundo? Não estou sepultado
em vida? Quid hic agis? E que faço eu? Não me estou disciplinando,
não estou jejuando, não estou contemplando e orando a Deus?—Assim
era. Pois se Elias estava fazendo penitência em uma cova, como o repreende
Deus e lho estranha tanto? Porque ainda que eram boas obras as que fazia,
eram melhores as que deixava de fazer. O que fazia era devoção,
o que deixava de fazer era obrigação. Tinha Deus feito a Elias
profeta do povo de Israel, tinha-lhe dado ofício público; e
estar Elias no deserto quando havia de andar na corte; estar metido em uma
cova, quando havia de aparecer na praça; estar contemplando no Céu,
quando havia de estar emendando a terra, era muito grande culpa.

A razão é fácil, porque no que fazia Elias salvava a
sua alma; no que deixava de fazer perdiam-se muitas. Não digo bem:
no que fazia Elias, parecia que salvava a sua alma; no que deixava de fazer,
perdia a sua e as dos outros: as dos outros, porque faltava à doutrina;
a sua, porque faltava à obrigação. É muito bom
exemplo este para a corte e para os ministros que tomam a ocupação
por escusa da salvação. Dizem que não tratam de suas
almas, porque se não podem retirar. Retirado estava Elias e perdia
se; mandam-no vir para a corte para que se salve. Não deixe o ministro
de fazer o que tem de obrigação, e pode ser que se salve melhor
em um conselho, que em um deserto. Tome por disciplina a diligência,
tome por cilício o zelo, tome por contempla,cão o cuidado e
tome por abstinência o não tomar, e ele se salvará.

Mas porque se perdem tantos? Os menos maus perdem-se pelo que fazem, que
estes são os menos maus; os piores perdem-se pelo que deixam de fazer,
que estes são os piores: por omissões, por negligências,
por descuidos, por desatenções, por divertimentos, por vagares,
por dilações, por eternidades. Eis aqui um pecado de que não
fazem escrúpulo os ministros, e um pecado por que se perdem muitos.
Mas percam-se eles embora, já que assim o querem; o mal é que
se perdem a si e perdem a todos, mas de todos hão-de dar conta a Deus.

Uma das cousas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo os
ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram no mês que
vem o que se havia de fazer no passado; porque fizeram amanhã o que
se havia de fazer hoje; porque fizeram depois,.o que se havia de fazer agora;
porque fizeram logo, o que se havia de fazer já. Tão delicadas
como isto hão-de ser as consciências dos que governam, em matérias
de momento. O ministro que não faz grande escrúpulo de momentos
não anda em bom estado: a fazenda pode-se restituir; a fama, ainda
que mal, também se restitui, o tempo não tem restituição
alguma.

E a que mandamento pertencem estes pecados do tempo? Pertencem ao sétimo;
porque ao sétimo mandamento pertencem os danos que se fazem ao próximo
e à república, e a uma república não se lhe pode
fazer maior dano que furtar-lhe instantes. Ah omissões, ah vagares,
ladrões do tempo! Não haverá uma justiça exemplar
para estes ladrões? Não haverá quem ponha um libelo contra
os vagares? Não haverá quem enforque estes ladrões do
tempo, estes salteadores da ocasião, estes destruidores da república?
Mas porque na Ordenação não há pena contra estes
delinquentes e porque eles às vezes se acolhem a sagrado, por isso
a sentença do Dia do Juízo há-de cair principalmente
sobre as omissões.

VII
Pecados de consequência é o segundo escrúpulo. Há
uns pecados que acabam em si mesmos; ha outros que, depois de acabados, ainda
duram em suas consequências. Dizia Job a Deus: Vestigia pedum meorum
considerasti: «Considerastes, Senhor, as pegadas de meus pés».
Não diz que Ihe considerou os passos, senão as pegadas; porque
os passos passam, as pegadas ficam. O que fica dos pecados, é o que
Deus mais particularmente examina. Não só se nos há-de
pedir conta dos passos, senão das pegadas. Não só se
nos há-de pedir conta dos pecados, senão das consequências.
Oh que terrível conta será esta! Converteu Cristo, Senhor nosso,
a Zaqueu, que era um mercante rico, e as resoluções de sua conversão
foram estas: Ecce dimidium bonorum meorum do pauperibus et si quid aliquem
defraudavi, reddo quadruplum: «Senhor, eu dou ametade de meus bens aos
pobres, e da outra ametade pagarei quatro vezes em dobro tudo o que houver
tomado.

Aqui reparo: as leis da justa restituição mandam que se pague
o alheio em tanta quantidade como se tomou. Pois porque quer Zaqueu que da
sua fazenda se paguem e se acrescentem três tantos mais: Et si quid
aliquem defraudavi reddo quadruplun? Se para a restituição basta
uma parte, as outras três a que fim se dão? Eu o direi: dá-se
uma parte para satisfação do pecado, as outras três para
satisfação das consequências. Entrou Zaqueu em exame escrupuloso
de sua consciência sobre o que tinha roubado, e fez estas contas: Se
eu não roubara a Fulano, tivera ele a sua fazenda; se a tivera, não
perdera o que perdeu, aquirira o que não aquiriu, não padecera
o que padeceu. Ah sim! Pois para que a minha satisfação seja
igual à minha culpa, dê-se a cada um quatro vezes tanto como
lhe eu houver defraudado. Com a primeira parte se pagará o que Ihe
tomei, com a segunda o que perdeu, com a terceira o que não aquiriu,
com a quarta o que padeceu.

Eis aqui o que fez Zaqueu. E que se seguiu daqui? Hodie salus huic domui
facta est.: «hoje se pôs em estado de salvação esta
casa». E se a casa de Zaqueu, para se pôr em estado de salvação,
paga três vezes mais do que tomou, em que estado de salvação
estarão tantas casas de Portugal, onde se deve tanto, e se gasta tanto,
e se esperdiça tanto, e nenhuma cousa se paga? Ora o caso é
que muita gente deve de se condenar. Porque na vida poucos pagam, na hora
da morte os mais escrupulosos mandam pagar o capital; das consequências,
nem na vida, nem na morte há quem faça caso.

E se isto passa na justiça comutativa, onde enfim há número,
há peso e há medida; que será na distributiva e na vendicativa?
Se isto Ihe sucede à justiça na mão das balanças,
que será na mão da espada? Quais serão as consequências
de um voto injusto em um tribunal? Quais serão as consequências
de um voto apaixonado em um conselho? Ajude-me Deus a saber-vo-las representar,
pois é matéria tão oculta e de tanta importância.

Consulta-se em um conselho o lugar de um vice-rei, de um general, de um governador,
de um prelado, de um ministro superior da fazenda ou justiça. E que
sucede? Vota o conselheiro no parente, porque é parente; vota no amigo,
porque é amigo; vota no recomendado, porque é recomendado; os
mais dignos e os mais beneméritos, porque não têm amizade,
nem parentesco, nem valia, ficam de fora. Acontece isto muitas vezes? Queira
Deus que alguma vez deixe de ser assim. Agora quisera eu perguntar ao conselheiro
que deu este voto e que o assinou, se lhe remordeu a consciência ou
se soube o que fazia? Homem cego, homem precipitado, sabes o que fazes? Sabes
o que firmas? Sabes que, ainda que o pecado que cometeste contra o juramento
de teu cargo seja um só, as consequências que dele se seguem
são infinitas e maiores que o mesmo pecado? Sabes que com essa pena
te escreves réu de todos os males que fizer, que consentir, e que não
estorvar esse homem indigno por quem votaste, e de todos os que deles se seguirem
até o fim do Mundo? Oh grande miséria! Miserável é
a república onde há tais votos, miseráveis são
os povos onde se mandam ministros feitos por tais eleições;
mas os conselheiros que neles votaram são os mais miseráveis
de todos: os outros levam o proveito, eles ficam com os encargos. Ide comigo.

Se o que elegestes furta (não o ponhamos em condicional, porque claro
está que há-de furtar) furta o que elegestes, e furta por si
e por todos os seus, como costumam os semelhantes; e Deus há-vos de
pedir a conta a vós, porque o vosso voto foi causa de todos aqueles
roubos. Prove o que elegestes os ofícios de paz e guerra, nos que têm
mais que peitar, deixando os que merecem e os que serviram; e vós haveis
de dar a conta a Deus; porque o vosso voto foi causa de todas aquelas injustiças.
Oprime o que elegestes os pobres choram as viúvas, padecem os órfãos,
clamam os inocentes; e Deus vos há-de condenar a vós, porque
o vosso voto foi causa de todas aquelas opressões, de todas aquelas
tiranias. Matam-se os homens no governo dos que elegestes, arruínam-se
as casas, desonram-se as famílias, vive-se como em Turquia; e vós
o haveis de ir pagar ao Inferno, porque o vosso voto foi causa de todos aqueles
homicídios, de todas aquelas afrontas, de todos aqueles escandalos.
Quebram-se as imunidades da Igreja, maltratam-se os ministros do Evangelho,
impedem-se as conversões da Gentilidade para a propagacão da
Fé; e vós haveis de penar por isso eternamente, porque o vosso
voto foi causa de todos aqueles sacrilégios, de todas aquelas impiedades
e da perda irreparável de tantos milhares de almas. Estas são
as consequências da parte do indigno que elegestes.

E da parte dos beneméritos que deixastes de fora, quais serão?
Ficarem os mesmos beneméritos sem o prémio devido a seus serviços;
ficarem seus filhos e netos sem remédio e sem honra, depois de seus
pais e avós Iho terem ganhado com o sangue, porque vós lha tirastes;
ficar a república mal servida, os bons escandalizados, os príncipes
murmurados, o governo odiado, o mesmo conselho em que assistis ou presidis,
infamado, o merecimento sem esperança, o prémio sem justi,ca,
o descontentamento com culpa, Deus ofendido, o Rei enganado, a Pátria
destruída.

São pesadas e pesadíssimas consequências estas? Pois
todas elas nascem daquele voto ou daquela eleição de que vós
porventura ficastes sem escrúpulo e de que recebestes as graças
(e talvez a propina) com muita alegria. Dir-me-eis que não advertistes
tais cousas. Boa escusa para um conselheiro sábio! Se o não
advertistes, pecastes, porque o devêreis advertir. Tomara poder confirmar
tudo o que tenho dito em particular com exemplos das Escrituras; mas bastara
por todos um, que em matérias de pecados de consequência é
verdadeiramente formidável.

Matou Caim a Abel, e diz a Escritura, conforme o texto onginal: Vox sanguinum
fratris tui clamantium ad me: «Caim, a voz dos sangues de teu irmão
Abel está bradando a mim». Notável dizer! O sangue de
Abel era um, como era um o mesmo Abel morto. Pois se Abel morto e o sangue
de Abel derramado era um, como diz Deus que clamaram contra Caim muitos sangues?
Vox sanguinum? Declarou o mistério o Parafraste caldaico temerosamente:
Vox sanguinum generationum, quæ futuræ erant de fatre tuo, clamat
ad me: Se Caim não matara a Abel, haviam de nascer de Abel quase tantas
outras gerações como nasceram de Adão, com que dobradamente
se propagasse o género humano; e o sangue ou sangues de todos estes
homens que haviam de nascer de Abel, e não nasceram, eram os que clamaram
a Deus e pediam vingança contra Caim; porque, matando Caim e arrancando
da terra a árvore de que eles haviam de nascer, o mesmo dano lhes fez
que se os matara. De sorte que Caim parecia homicida de um só homem,
e era homicida de um género humano; o pecado era um, as consequências
infinitas. Pois se Deus castiga nos pecados até as consequências
possíveis; e os possíveis hão-de aparecer e ressuscitar
no dia do juízo contra vós, não porque foram, nem porque
deixaram de ser. senão porque haviam de ser; se os possíveis
têm sangue e vozes que clamam ao Céu, que clamores serão
os do verdadeiro sangue derramado de verdadeiras veias? Que vozes serão
, as de verdadeiras lágrimas, choradas de verdadeiros olhos? Que gemidos
serão os de verdadéira dor, saldos de verdadeiros corações?
Que serão as viudezas, as orfandades, os desamparos? Que serão
as opressões, as destruições, as tiranias? E que serão
as consequências de tudo isto, multiplicadas em tantas pessoas, continuada
em tantas idades e propagadas em tantas descendências, ou futuras ou
possíveis, até o fim do mundo! Há quem faça escrúpulo
disto?

Agora entendereis com quanta razão disse São João Crisóstomo:
Miror, an fieri possit ut aliquis ex rectoribus sit salvus. É uma das
mais notáveis sentenças que se acham escritas nos Santos Padres.
Torno a repeti-la: Miror, an fieri possit, ut aliquis ex rectoribus sit salvus:
«Admiro-me (diz o grande Crisóstomo) e cheio de espanto considero
comigo: se será possível que algum dos que governam se salve!»
Esta proposição, e a suposição em que ela se funda,
está julgada comummente por hipérbole e encarecimento retórico.
Eu, contudo, digo que não é hipérbole nem encarecimento
senão verdade moralmente universal em todo o rigor teológico.
Impossível moral chamam os teólogos àquilo que muito
dificultosamente pode ser e que nunca ou quase nunca sucede.

Neste sentido disse São Paulo: Impossibile est, eos qui semel illuminati
et prolapsi sunt, renovari ad poenitentiam. E no mesmo sentido disse Cristo,
Senhor nosso: Facilius est camelum per foramen acus transire, quam divitem
intrare in regnum coelorum. Donde os Apóstolos tiraram a mesma admiração
que São João Crisóstomo, e inferiram a mesma impossibilidade:
Auditis autem his, discipuli mirabantur valde, dicentes: quis ergo poterit
salvus esse? E o Senhor confirmou a sua ilação, dizendo que
«humanamente era impossível, como eles diziam, mas que para Deus
tudo é possível»: Apud homines hoc impossibile est.: apud
Deum autem omnia possibilia sunt, que foi o mesmo que distinguir o impossível
moral e humano, do impossível absoluto, que até em respeito
da omnipotência divina não é possível. E como os
que governam, pelas obrigações de seus mesmos ofícios
e pelas omissões que neles cometem, e pelos danos que por vários
modos causam a tantos, os quais danos não param ali, mas se continuam
e multiplicam em suas consequências, têm tão dificultosa
a salvação, por isso São Crisóstomo, falando lisa,
sincera e moralmente, sem encarecimento nem hipérbole, disse que ele
se admirava muito e não podia entender como era possível que
algum dos que governam se salve: Miror, an fieri possit, ut aliquis ex rectoribus
sit salvus.

E para que nós nos não admiremos, e os que governam ou desejam
governar tenham tanto medo dos seus ofícios como dos seus desejos,
reduzindo a verdade desta sentença à evidência da prática,
argumento assim:

Todo o homem que é causa gravemente culpável de algum dano
grave, se o não restitui quando pode, não se pode salvar; todos
ou quase todos os que governam, são causas gravemente culpáveis
de graves danos, e nenhum ou quase nenhum restitui o que pode; logo, nenhum
ou quase nenhum dos que governam se pode salvar. Colhe bem a consequência?
Pois ainda mal, porque a segunda premissa, de que só se podia duvidar,
está tão provada na experiência. Eu vi governar muitos,
e vi morrer muitos; nenhum vi governar que não fosse causa culpável
de muitos danos; nenhum vi morrer que restituísse o que podia. Sou
obrigado, secundum praesentem justitiam, a crer que todos estão no
Inferno. Assim o creio dos mortos, assim o temo dos vivos.

VIII
Pedida e tomada a conta a todo o género humano, olhará o Senhor
para a mão direita, e com o rosto cheio de glória e alegria,
dirá aos bons: Venite benedicti Patris mei, possidete paratum vobis
regnum à constitutione mundi. «Vinde, benditos de meu Pai, e
possuí o Reino que vos está aparelhado desde o princípio
do Mundo!» Quem serão os venturosos sobre que há-de cair
esta ditosa sentença? Bendito seja Deus, que todos os que estamos presentes
o podemos ser, se quisermos. Como se darão então por bem empregados
todos os trabalhos da vida, e quão verdadeiramente parecerá
então jugo suave a Lei de Cristo, que hoje julgamos por dificultosa
e pesada! Mas ainda mal, porque muitos dos que aqui estamos… Não
me atrevo a o dizer; entendei-o vós. Multi sunt vocati, pauci vero
electi. Arcta via est, quae ducit ad vitam, et pauci sunt, qui inveniunt eam.
Voltando-se depois o Senhor… (não digo bem) não se voltando
o Senhor para a mão esquerda, com rosto severo e não compassivo
(o que me não atrevera eu a crer, se o não disseram as Escrituras),
dirá desta maneira para os maus: Discedite a me, muledicti, in ignem
æternum, qui paratus est diabolo, et angelis ejus: «Ide, malditos,
ao fogo eterno, que estava aparelhado, não para vós, senão
para o Demónio e seus anjos» ; mas já que assim o quisestes,
ide. Abriu-se a terra, caíram todos, tornou-se a cerrar para toda a
eternidade. Eternidade! eternidade! eternidade!

Sermão da Primeira Dominga do Advento – 1655

I

Passará o céu e a terra, mas o que dizem as minhas palavras
não passará. Com esta notável, e não usada sentença
conclui Cristo Redentor nosso, a narração do Evangelho que acabamos
de ouvir. Diz que há de vir julgar e pedir conta ao mundo no último
dia dele: e porque antes de o mundo ser julgado há de ser abrasado
primeiro, e convertido em cinzas; sobre o incêndio, que o há
de consumir, cai a primeira parte da conclusão: Cœlum et terra
transibunt; e sobre a conta que depois promete há de tomar a todo o
gênero humano, cai a segunda: Verba autem mea non transibunt. Estes
são os dois maiores portentos, que no teatro universal do Juízo
verão naquele dia homens e anjos. Ali se verá o princípio
do mundo junto com o fim, e o fim junto com o princípio: o princípio
com o fim, em tudo o que passou, e o fim com o princípio, em tudo o
que não há de passar. Parece dificultosa esta união em
tanta distância de séculos; mas esse é, e será
um dos maiores milagres daquele dia, porque tudo o que passou, e deixou de
ser, e desapareceu com o tempo, como se não tivera passado, ou tornara
a ser de novo, há de aparecer com a conta. Se olharmos para todas as
coisas quantas houve, há, e há de haver no mundo, então
se verá, que todas passaram, transibunt. Mas se olharmos para essas
mesmas coisas, as quais como ressuscitada com o gênero humano hão
de ser citadas com ele para aparecer em Juízo; então se verá
também, e com maior assombro, que nenhuma delas passou, non transibunt.
Estas duas verdades, pois, cuja fé o mesmo Supremo Juiz com tanta expressão
nos ratifica; estes dois desenganos, a que tão mal nos persuadimos
os mortais enquanto vivemos; e estas duas considerações do que
passou e do que não há de passar, transibunt et non transibunt,
serão hoje os dois pólos, ou pontos do meu discurso. No primeiro,
que tudo passa para a vida: no segundo, que nada passa para a conta. Em dia
tão grande não pode o sermão ser breve. Aos ouvintes
não peço atenção, mas paciência. Deus, a
quem tomo por testemunha de que procurei não lhe dar conta do que hoje
disser, se sirva de nos assistir a todos com sua graça em matéria
que tanto toca a todos.

II

Tudo passa, e nada passa. Tudo passa para a vida, e nada para a conta. A
verdade e desengano de que tudo passa (que é o nosso primeiro ponto)
posto que seja por uma parte tão evidente, e que parece não
há mister prova., é por outra tão dificultoso, que nenhuma
evidência basta para o persuadir. Lede os filósofos, lede os
profetas, lede os apóstolos, lede os santos padres, e vereis como todos
empregaram a pena, e não uma senão muitas vezes, e com todas
as forças da eloqüência, na declaração deste
desengano, posto por si mesmo tão claro.

Sabiamente falou quem disse que a perfeição não consiste
nos verbos, senão nos advérbios: não em que as nossas
obras sejam honestas e boas, senão em que sejam bem feitas. E para
que esta condicional tão importante se estendesse também às
coisas naturais e indiferentes, inventou o apóstolo S. Paulo um notável
advérbio. E qual foi? Tanquam non, como senão: Ut qui habent
uxores, tanquam non habentes sint: et qui flent, tanquam non flentes: et qui
gaudent, tanquam nan gaudentes: et qui emunt, tanquam non possidentes: et
qui utuntur hoc mundo, tanquam non utantur. Sois casado? (diz o apóstolo)
pois empregai todo o vosso cuidado em Deus, como se o não fôreis.
Tendes ocasiões de tristezas? pois chorai, como se não choráreis.
Não são de tristeza, senão de gosto? pois alegrai-vos,
como se não vos alegráreis. Comprastes o que havíeis
mister, ou desejáveis? pois possuí-o, como se não possuíreis.
Finalmente usais de alguma outra coisa deste mundo? pois usai dela, como se
não usáreis. De sorte que quanto há, ou pode haver neste
mundo, por mais que nos toque no amor, na utilidade, no gosto, a tudo quer
S. Paulo que acrescentemos um, como se não, tanquam non. Como se não
houvera tal coisa, como se não fora nossa, como se não nos pertencera.
E por quê? Vede a razão:Præterit enim figura hujus mundi
(3) . Porque nenhuma coisa deste mundo pára, ou permanece; todas passam.
E como todas passam e são como se não foram, assim é
bem que nós usemos delas, como se não usáramos: Tanquam
non utantur. Por isso a essas mesmas coisas não lhes chamou o oráculo
do terceiro céu coisas, senão aparências, e ao mundo não
lhe chamou mundo, senão figura do mundo:Præterit enim figura
hujus mundi.

Considerai-me o mundo desde seus princípios, e vêlo-eís
sempre, como nova figura no teatro, aparecendo e desaparecendo juntamente,
porque sempre está passando. A primeira cena deste teatro foi o paraíso
terreal, no qual apareceu o mundo vestido de imortalidade, e cercado de delícias;
mas quanto durou esta aparência? Estendeu Eva o braço à
fruta vedada, e no brevíssimo espaço em que o bocado fatal passou
pela garganta do homem, passou também com ele o mundo do estado da
inocência ao da culpa, da imortalidade à morte, da pátria
ao desterro, das flores aos espinhos, do descanso aos trabalhos, e da felicidade
suma ao sumo da infelicidade e miséria. Oh miserável mundo,
que se pararas assim, e te contentaras com comer o teu pão com o suor
do teu rosto, foras menos miserável! Mas não serias mundo, se
de uma miséria grande não passasses sempre, e por tua natural
inclinação, a outra maior. Os homens naquela primeira infância
do mundo todos vestiam de peles, todos eram de uma cor, todos falavam a mesma
língua, todos guardavam a mesma lei. Mas não foi muita o tempo
em que se conservaram na harmonia desta natural irmandade. Logo variaram e
mudaram as peles com tanta diferença de trajos, que cada dia, dos pés
à cabeça, aparecem com nova figura. Logo variaram e mudaram
as línguas com tanta dissonância e confusão, como a da
torre de Babel. Logo variaram e mudaram as cores com a diversidade das terras
e climas, e com a mistura do sangue, posto que todo vermelho. Logo variaram
e mudaram as leis, não com as de Platão, Sólon, ou Licurgo,
mas com a do mais imperioso e violento legislador, que é o próprio
alvedrio. Tudo mudaram, ou tudo se mudou, porque tudo passa.

As vidas naquele princípio costumavam ser de sete, de oito, de novecentos
e quase de mil anos; e que brevemente se acabou este bom costume? Então
o viver muitos séculos era natureza, hoje chegar, não a um século,
mas perto dele, é milagre. Tardaram em passar até Noé,
e também passaram. Com aquelas vidas não só cresciam
os anos, senão também os corpos: e dos filhos de Deus, que eram
os descendentes de Set, e das filhas dos homens, que eram as descendentes
de Caim, nasceram os gigantes, de quem diz a Escritura: Erant gigantes super
terram .Alguns ossos que ainda duram destes que o mesmo texto sagrado chama
varões famosos, demonstraram pela simetria humana, que não podiam
ser menos que de vinte, e mais côvados: e ainda na história das
batalhas de Davi temos memória de outros quatro, posto que de muito
menor estatura Mas, enfim, acabou a era dos gigantes; porque tudo nesta vida,
e mais depressa o que é grande, acaba e passa.

Diminuídos os homens nos corpos e nas idades, quando tinham a morte
mais perto da vista (quem tal crera! ) então cresceram mais na ambição
e soberba. E sendo todos iguais e livres por natureza, houve alguns que entraram
em pensamento de se fazer senhores dos outros por violência, e o conseguiram.
O primeiro que se atreveu a pôr coroa na cabeça, foi Membroth,
que também como o nome de Nino, ou Belo, deu princípio aos quatro
impérios, ou monarquias do mundo. O primeiro foi o dos assírios
e caldeus; e onde está o império caldaico? O segundo foi o dos
persas; e onde está o império persiano? O terceiro foi o dos
gregos; e onde está o império grego? O quarto, e maior de todos,
foi o dos romanos; e onde está o império romano? Se alguma coisa
permanece deste, é só o nome: todos passaram, porque tudo passa.
Em três famosas visões representou Deus estes mesmos impérios
a um rei, e a dois profetas. A primeira visão foi a Nabucodonosor na
estátua de quatro metais; a segunda a Zacarias em quatro carroças
de cavalos de diferentes cores; a terceira a Daniel em um conflito dos quatro
ventos principais, que no meio do mar se davam batalha. Pois se todas estas
visões eram de Deus e todas representavam os mesmos impérios,
por que variou tanto a sabedoria divina as figuras, e sobre a primeira da
estátua, tão clara e manifesta, acrescentou outras duas tão
diversas em tudo? Porque a estátua, na dureza dos metais de que era
composta, e no mesmo nome de estátua, parece que representava estabilidade
e firmeza: e porque nenhum daqueles impérios havia de preservar firme
e estável, mas todos se haviam de mudar sucessivamente, e ir passando
de umas nações a outras; por isso os tornou a representar na
variedade das carroças na inconstância das rodas, e na carreira
e velocidade dos cavalos. Mas não parou aqui a energia da representação,
como não encarecida ainda bastantemente. A estátua estava de
pé, e as carroças podiam estar paradas. E porque aqueles impérios
correndo mais precipitadamente que a rédea solta, não haviam
de parar no mesmo passo, nem por um só momento, e sempre se haviam
de ir mudando, e passando; por isso, finalmente, os representou Deus na causa
mais inquieta, mudável, e instável, quais são os ventos,
e muito mais quando embravecidos e furiosos: Et ecce quatuor venti cœli
pugnabant in mari magno.

III

Enquanto passaram estes quatro impérios, que foi a terceira, quarta,
quinta e sexta idade do mundo, entrando, também, pela sétima:
quem haverá que possa compreender quanto passou no mesmo mundo? Quando
começou o primeiro império, então começou também
a idolatria, digno castigo do céu, que pois os homens se fizeram adorar,
chegassem os mesmos a adorar paus e pedras. Os reis, porém, que eram,
ou tinham sido os idólatras, canonizados depois pela adulação
e lisonja, ou na vida, ou depois da morte, vinham também eles a ser
ídolos. Assim Saturno, assim Júpiter, assim Mercúrio,
assim Apolo, assim Marte, assim Vênus, assim Diana; e posto que todos
estes deixaram os seus nomes gravados nas estrelas, elas permanecem, mas eles
passaram. Passaram os ídolos, e também passaram os oráculos
com que neles respondia o pai da mentira, porque ao som da verdade do Evangelho
todos emudeceram.

Então começaram as guerras: e que direi dos exércitos
inumeráveis, das batalhas campais e marítimas, das vitórias.
e triunfos de umas nações, e da ruína, abatimento e servidão
de outras, tão vária e alternada sempre? Só digo, que
assim a glória e alegria dos vencedores, como a dor e afronta dos vencidos,
tudo passou; porque tudo passa. O exército de Xerxes, que foi o maior
que viu o mundo, constava de cinco mil naus, e cinco milhões de combatentes;
e porque de uma e outra parte fez continente o Helesponto, e cavou e fez navegável
o monte Ato, disse dele Marco Túlio, que caminhava os mares a pé,
e navegava os montes: Tantis classibus Xerxes in Grœciam transia, ut
Hellesponto juncto. Athoque monte perfosso, maria ambularit, terramque navigarit
maria pedibus peragrans, classibus montes. Mas todo aquele intenso e formidável
aparato, que visto fez tremer o mar e a terra, tão brevemente passou
e desapareceu sendo desbaratado e vencido, que só ficou dele este dito.
O mesmo Temístocles, que com muito desigual poder o desfez e pôs
em fugida, também passou, como na Grécia e fora dela passaram
todos os famosos capitães e suas vitórias. Passou Pirro, passou
Miltrídates, passou Filipe de Macedônia: passaram Heitor e Aquiles,
passaram Aníbal e Cipião, passaram Pompeu e Júlio César,
passou o grande Alexandre, nome singular e sem parelha, e até Hércules,
ou fosse um, ou muitos todos passaram, porque tudo passo.

Costumam às letras seguir-se as armas, porque tudo leva após
si o maior poder; e assim floresceram variamente, em diversas partes no tempo
destes impérios, todas as ciências e artes. Floresceu a filosofia,
floresceu a matemática, floresceu a teologia, floresceu a astrologia,
floresceu a medicina, floresceu a música, floresceu a oratória,
floresceu a poética, floresceu a história, passou o a arquitetura,
floresceu a pintura, floresceu a estatuária; mas assim como as flores
se murcham e se secam, assim passaram todos os autores mais celebrados das
mesmas ciências e artes. Na estatuária passou Fídias e
Lisipo; na pintura passou Timantes e Apeles; na arquitetura passou Meliagenes
e Demócrates; na música passou Orfeu e Amphion; na história,
Tucídides e Lívio; na eloqüência, Demóstenes
e Túlio; na poética, Homero e Virgílio; na astrologia,
Anaxágoras e Ptolomeu; na medicina, Esculápio e Hipócrates;
na matemática, Euclides e Arquimedes; na filosofia, Platão e
Aristóteles; na teologia, Mercúrio Trismegisto e Apolônio
Tiâneo; e por junto em todas as ciências passaram no mesmo tempo
os sete sábios da Grécia, porque, ou junto ou dividido, tudo
passa. Só a ética e a moral, como tão necessárias
ó, vida e à virtude, parece que não haviam de passar;
mas os platônicos, os peripatéticos, os epicureus, os cínicos,
os pitagóricos, os estóicos, os acadêmicos, eles, e suas
escolas e seitas, todos passaram.

Nenhuma coisa é mais própria desta consideração
em que vamos, que os jogos e espetáculos públicos, que os homens
inventaram a título de passatempo, como se o mesmo tempo não
passara mais velozmente que tudo quanto passa. Uns jogos foram os circenses,
outros os dionisíos, outros os juvenais, outros os nemeus, outros os
maratoneus, todos cheios de diferentes divertimentos, em que, ou se perdia
a honestidade, como nos de Vênus; ou o Juízo, como nos de Baco;
mas nenhuns mais indigno dos olhos humanos e piedade natural, que os gladiatórios.
Saía toda Roma ao anfiteatro, a quê? a ver e festejar como se
matavam homens a homens; saíam uns, e sobrevinham outros, e outros,
sem estar o posto vago um só momento, aclamando a cabeça do
mundo, com aplausos mais carniceiros que cruéis, assim no dar, como
no receber das feridas, tanto a intrepideza dos mortos, como a fúria
dos matadores. Os jogos seculares se chamavam assim, porque se celebravam
uma só vez de século a século; e dizia o pregão
público que convidava para eles: Venite ad ludos, quos nemo vìdit
unquam, nec visurus est: Vinde ver os jogos, que ninguém viu, nem há
de tornar a ver. E com este desengano da vida passada e desesperação
da futura, os iam todos ver, e se chamavam jogos. Os olímpicos foram
os mais célebres e famosos de todos, em que de cinco em cinco anos,
concorria todo o mundo a uma cidade do mesmo nome, ou levar, ou ver quem levava
uma coroa de louro. Por estes jogos, mais que pelo curso do sol, se contavam
e distinguiam os anos. Mas como toda a competência era a correr, e o
que mais corria era o que triunfava, não podiam deixar de passar as
Olimpíadas, como passaram todos os outros jogos daqueles tempos, ou
todos os passatempos daqueles jogos.

Só uma coisa há que não pode passar, porque o que nunca
foi, não pode deixar de ser, e tais parece que foram as fábulas
que neste mesmo tempo se inventaram e fingiram. Mas se elas não passaram
em si mesmas, passaram naqueles casos e coisas que deram ocasiões a
se fingirem. Na seca universal que abrasou todo o mundo, passou a fábula
de Faetonte: no dilúvio particular que inundou grande parte dele, passou
a fábula de Deucalion; no estudo com que el-rei Atlante contemplava
o curso e movimento das estrelas, passou a fábula de trazer o céu
aos ombros; na especulação contínua de todas as noites,
com que Endimion observava os efeitos do planeta mais vizinho à Terra,
passou a fábula dos seus amores com a Lua. E porque também os
nossos vícios, a nossa fraca virtude, e a nossa mesma vida passam como
fábula; o amor e complacência de nós mesmos passou na
fábula de Narciso; a riqueza sem juízo, na fábula de
Midas; a cobiça insaciável, na fábula de Tântalo;
a inveja do bem alheio, na fábula e abutre de Tício; a inconstância
da fortuna mais alta, na fábula e roda de Ixion; o perigo de acertar
com o meio da virtude, e não declinar aos vícios dos extremos,
na fábula de Cila e Caribde; e finalmente a certeza da morte, a incerteza
da vida, pendente sempre de um fio, passou e está continuamente passando
na fábula das Parcas. Assim envolveram e misturaram os sábios
daquele tempo o que há com o que não há, e o certo com
o fabuloso; para que nem o louvor nos desvaneça, nem a calúnia
nos desanime, pois o verdadeiro e o falso, a verdade e a mentira, tudo passa.

Mas não é justo que nesta passagem de tudo o que passou no
tempo dos quatro impérios profanos do mundo, passemos nós em
silêncio aquela república sagrada, que alcançou a todos
quatro, e por ser fundada por Deus, parece que tinha direito a não
passar. Nasceu a república hebréia no cativeiro do Egito; e
quem então lhe levantasse figura, facilmente lhe podia prognosticar
os três cativeiros e transmigrações com que foi arrancada
da pátria. Uma vez cativa por Salmanasar, em que passou desterrada
aos assírios; outra vez cativa por Nabucodonosor, em que passou desterrada
aos babilônios; e a terceira e última vez cativa por Tito e Vespasiano,
em que passou desterrada a todas as terras e nações do mundo.
Começou no famoso triunvirato de Abraão, Isaac, e Jacó,
tantas vezes nomeado e honrado por boca do mesmo Deus; mas nem por isso deixaram
de passar todos três. Sucedeu-1he José, o que sonhou as suas
felicidades e as adorações de seu pai e irmãos; e posto
que todas se cumpriram, todas passaram como se foram sonho. Teve o mesmo povo
três estados de governo: o dos juizes, o dos reis, o dos capitães;
e se bem subindo e descendo, as varas se trocaram com os cetros, e os cetros
com os bastões, nenhum daqueles estados foi estável, todos passaram.
Nos juizes passou a espada de Gedeão, o arado de Sangar, e a queixada
de Sansão. Nos reis passou a valentia de Davi, a sabedoria de Salomão,
e a piedade e religião de Josias. Nos capitães passou o braço
invencível de Judas Macabeu, vencedor de tantas batalhas; passou a
façanha imortal de Eleazar, que metendo-se debaixo do elefante, cavou
a sua própria sepultura: e passou mais gloriosa que todos o honrado
e glorioso testamento do velho Matias, digno de ser escrito em branzes. E
porque não fiquem totalmente em silêncio as heroínas da
mesma nação, quatro houve nela insignes na formosura: Sara,
Raquel, Ester e Judite, todas porém fatais a quem as amou. Sara a um
peregrino com perigos; Raquel a um pastor com trabalhos; Ester a um rei com
desgostos; e Judite a um general com a morte. Este acabou miseravelmente a
vida; mas as formosuras antes de se acabarem as vidas, já tinham passado.
Floresceram no mesmo povo, além de outros igualmente verdadeiros, dezesseis
profetas canônicos, quatro maiores, e doze menores; mas em espaço
de três séculos os maiores e menores, desde Oséias a Malaquias,
todos passaram: Passaram os milagres da vara, passaram os da serpente de metal,
passaram os de Elias e Eliseu: e porque só faltava passar a lei de
Moisés, e o sacerdócio de Arão, a lei e o sacerdócio
também passaram, porque tudo passa.

Agora quisera eu perguntar ao mundo, se como me enche a memória de
tantas coisas, que todas passaram, me mostrará alguma aos olhos que
não passasse? As sete fábricas a que a fama deu o nome de maravilhas,
acrescentaram alguns como oitava o anfiteatro romano. Mas a maravilha oitava,
ou nona, é que todas essas maravilhas, que pareciam eternas, passaram.
A primeira maravilha foram as pirâmides do Egito, a segunda os muros
de Babilônia, a terceira a torre de Faros, a quarta o colosso de Rodes,
a quinta o mausoléu de Cária, a sexta o Templo de Diana Efesina,
a sétima o simulacro de Júpiter Olímpico. E deixando
o anfiteatro, de que só se vêem as ruínas, as pirâmides
caíram, os muros arrasaram-se, o colosso desfez-se, o mausoléu
sepultou-se, a torre sumiu-se, o farol apagou-se, o templo ardeu, e o simulacro
como simulacro, desvaneceu-se em si mesmo. Tem mais que dizer, ou que opor
o mundo? Só pode apelar para as mais fortes e bem fundadas cidades,
cortes e metrópoles dos mais poderosos impérios: argumento verdadeiramente
de grande boato, antes de se lhe tomar o peso. Nínive, corte de Nino,
foi a maior cidade do mundo: andava-se de porta a porta, não menos
que em três dias de caminho; edificada de propósito com arrogância
de que nenhuma outra a igualasse, como não igualou. Mas onde está
essa Nínive? Ecbátana, corte de Arfaxad, e cidade que o texto
sagrado chama potentíssima, era cercada de sete ordens de muros, todos
de pedras quadradas, cada uma com vinte e sete palmos por todas as faces,
e as portas com a prodigiosa. altura de cem côvados. Mas onde está
essa Ecbátana? Susa, corte de Assuero, e metrópole de cento
e vinte e sete Províncias, cujo palácio representava um céu
estrelado, fundado sobre colunas de oiro e pedras preciosas, e cujos muros
eram de mármores brancos e jaspes de diferentes cores; bem se deixa
ver quão forte e inexpugnável seria, pois defendia tão
grande monarca, dominava tantos reinos e guardava tantos tesouros. Mas onde
está essa Suas? Se houvéssemos de fazer a mesma pergunta às
ruínas de Tebas, de Memphis, de Bactra, de Cartago, de Corinto, de
Sebaste, e da mais conhecida de todas, Jerusalém, necessário
seria dar volta a toda a redondeza da Terra. De Tróia disse Ovídio:
Jam seges est ubi Troia fuit .E o mesmo podemos dizer das planícies,
vales e montes, donde se levantavam às nuvens aqueles vastíssimos
corpos de casas, muralhas e torres. De umas se não sabem os lugares
onde estiveram; doutras se lavram, semeiam, e plantam os mesmos lugares, sem
mais vestígios de haverem sido, que os que encontram os arados, quando
rompem a terra. Para que os homens compostos de carne e sangue se não
queixem da brevidade da vida, pois também as pedras morrem; e para
que ninguém se atreva a negar, que tudo quanto houve, passou, e tudo
quanto é, passa.

IV

A razão deste curso, ou precipício geral com que tudo passa,
não é uma só, senão duas: uma contrária
a toda a estabilidade, e outra repugnante ao mesmo ser. E quais são?
O tempo, e antes do tempo, o nada. Que coisa mais veloz, mais fugitiva, e
mais instável que o tempo? Tão instável, que nenhum poder,
nem ainda o divino 0 pode parar. Por isso os quatro animais, que tiravam pela
carroça da . glória de Deus neste mundo, não tinham rédeas.
Descreveu o Tempo no palácio do Sol o mais engenhoso de todos os poetas,
e dividindo-o em suas partes, disse assim elegantemente:

A dextra, lœvaque dies, et mensis, et annus,
Sœculaque et positœ spatiis aqualibus horœ:

Verque novum stabat cinctum florente corona;

Stabat nuda oestas, et spicea serta gerebat

Stabat et Autumnus calcatis sodidus uvis;

Et glacialis Hyems canis hirsuta capillis.

Elegantemente, torno a dizer, mas falsa e impropriamente. Aquele stabat tantas
vezes repetido, é o que tirou toda a semelhança de verdade à
engenhosa pintura. Porque nem a primavera com as suas flores, nem o estio
com as suas espigas, nem o outono com os seus frutos, nem o inverno com os
seus frios e neves, por mais tolhido e entorpecido que pareça, podem
estar parados um momento. Passam as horas, passam os dias, passam os anos,
passam os séculos, e se houvesse hieroglífico com que se pudessem
pintar, haviam de ser todos com asas, não só correndo e fugindo,
mas voando e desaparecendo. Nem escusa esta impropriedade estar o Sol assentado:
Sedebat in solio Pœbus ; porque o Sol pode parar, como no tempo de Josué,
ou tornar atrás, como no tempo de Ezequias; mas o tempo em nenhum tempo,
pode deixar de ir por diante sempre, e com a mesma velocidade. Bem emendou
esta sua impropriedade o mesmo poeta, quando depois disse:

Ipsa quoque assiduo labuntur motu
Non secus ac flumen, neque enim consistere flumen

Aut levis hora potest.

E como o tempo não tem, nem pode ter consistência alguma, e
todas as coisas desde seu princípio nasceram juntamente com o tempo,
por isso nem ele, nem elas podem parar um momento, mas com perpétuo
moto, e revolução insuperável passar, e ir passando sempre.

A segunda razão ainda é mais natural e mais forte: o nada.
Todas as coisas se resolvem naturalmente, e vão buscar com todo o peso
o ímpeto da natureza, o princípio donde nasceram. O homem porque
foi formado da terra, ainda que seja como dispêndio da própria
vida, e suma repugnância da vontade, sempre vai buscar a terra, e só
descansa na sepultura. Os rios esquecidos da doçura de suas águas,
posto que as do mar sejam amargosas, como todos nasceram do mar, todos vão
buscar o mesmo mar, e só nele se desafogam, e param como em seu centro.
Assim todas as coisas deste mundo, por grandes e estáveis que pareçam,
tirou-as Deus com o mesmo mundo do não ser ao ser; e como Deus as criou
do nada, todas correm precipitadamente, e sem que ninguém lhes possa
ter mão, ao mesmo nada de que foram criadas. Vistes a torrente formada
da tempestade súbita, como se despenha impetuosa, e com ruído;
e tanto que cessou a chuva, também ela se secou, e sumiu subitamente,
e tornou a ser o nada que dantes era? Pois assim é tudo, e somos todos,
diz Davi: Ad nihilum devenient tanquam aqua decurrens .Sonhastes no último
quarto da noite, quando as representações da fantasia são
menos confusas, que possuíeis grandes riquezas, que gozáveis
grandes delícias, e que estáveis levantado a grandes dignidades;
e quando depois acordastes, vistes com os olhos abertos, que tudo era nada?
Pois assim passam a ser nada em um abrir de olhos todas as aparências
deste mundo, diz o mesmo profeta: Velut somnium surgentium, Domine, imaginem
ipsorum ad nihilum rediges . De sorte que estas são as duas razões
por que todas. as coisas passam. Passam, porque voam com o tempo, e passam,
parque vão caminhando para o nada donde saíram. Por isso, como
disse o Espírito Santo, quando umas passaram, ou têm passado;
é necessário que venham outras para também passar: Generatio
praeterit, et generatio advenit: terra autem in oeternum stat.

Mas se bem se repara nesta mesma sentença, sendo tão poucas
as suas palavras, assim como umas confirmam assim outras parece que impugnam,
e destroem quanto vínhamos dizendo. Porque se a Terra está sempre
firme, e estável: terra autem ín aeternum stat; segue-se que
ao menos a mesma Terra não passa, e que há no mundo alguma coisa,
que não passe. Concederemos pois esta exceção ao nosso
assunto, e diremos que passam as figuras, como diz S. Paulo, mas que a Terra,
que é o teatro, não passa? Não digo, nem concedo tal.
A Terra toda não passa, mas passam, e sempre estão passando
todas as partes dela. A Terra compõe-se de reinos, os reinos compõem-se
de cidades, as cidades compõem-se de casas e campos, e principalmente
de homens, e tudo isto, que tudo é terra (e toda a Terra) perpetuamente
está passando. Daniel revelando a Nabucodonosor a inteligência
da sua estátua, disse que Deus muda os tempos, e as idades, e conforme
elas passa os reinos de uma parte para outra: Ipse mutat tempora, et aetates:
transfert regna, atque constituit ). Assim passou o reino do mesmo Nabuco
para a Pérsia, o dos persas para a Grécia, o dos gregos para
Roma, e dos romanos para tantos outros, quantos hoje coroam outras cabeças,
as quais se devem lembrar daquela infalível sentença: Regnum
a gente in gentem transfertur propter injustitias . O nosso reino não
sendo no sítio original dos maiores, quantas vezes passou a outras
gentes? Passou aos suevos, passou aos álanos, passou aos cartagineses,
passou aos romanos, passou aos árabes e sarracenos e, dentro da mesma
Espanha, também passou, e tornou a passar. Os terremotos, que se geram
do ar violentado nas entranhas da Terra, são muito raros, mas os que
se fazem na superfície dela, sempre a trazem em perpétuo movimento.

E se os grandes reinos e impérios não são estáveis,
e passam; que serão as cidades particulares, para que não é
necessário, que a roda da fortuna dê toda a volta? Não
falo daquelas que acabaram como de morte súbita, abrasadas até
à última cinza no incêndio de uma noite, como Tróia
e Lugduno. Desta disse judiciosamente Sêneca: Quando una nox fuit inter
urbem maximam, et nullam, nihil privatim, nihil publice stabile est: tam hominum,
quam urbium fata volvuntur . Deixadas pois estas, que subitamente passaram
do ser ao não ser; só falo das que por seus passos contados
vieram de um domínio a outro domínio. E quantas vezes as pombas
de Babilônia, quantas os leões de Jerusalém, quantas as
águias de Roma e de Constantinopla viram sobre suas muralhas outras
bandeiras? O maior teatro de Marte no nosso século, e porventura, que
em nenhum outro, foram as guerras bélgicas; e na grande Província
de Holanda, exceta Dorth, por isso chamada a Virgem, nenhuma cidade houve,
que não fosse conquistada e alternasse o domínio. Que direi
dos confins sempre incertos, e tão freqüentemente mudados, de
Espanha com França, de França com Germânia, de Germânia
com a Turquia, e da Turquia com Itália? Anos há, que a antiga
Creta, hoje Cândia, sem ser das ilhas errantes do arquipélago,
tem posto em dúvida o mundo para onde há de ir, e se há
de reconhecer as cruzes, ou as meias-luas.

E quanto às casas, membros menores de que se compõem inumeravelmente
as cidades; quem poderá compreender o inextricável labirinto,
com que, à maneira de peixes do mar, se andam sempre movendo, e passando
de um dono para outro dono? Ouçam a familiar evidência com que
o grande juízo de Santo Agostinho demonstrou a um deles esta perpétua
instabilidade. Introduz um rico, que, jactancioso de ser senhor da sua casa,
dizia: Domum meam habeo; e pergunta-lhe o santo assim: Quam domum tuam? Quam
Pater meus mihi dimisit. Et unde ille habuit? Avus noster illam reliquit.
Recurre ad Proavum, inde ad Abavum et jam nomina nan potes dicere. Pater tuus
hic eam dimisit transivit per illam, sic et tu transibis. Esta casa de que
vos jactais ser senhor, por que é vossa? Porque a herdei de meu pai;
e vosso pai de quem a houve? De meu avô; e de quem a houve vosso avô?
De meu bisavô; e vosso bisavô de quem? De meu trisavô. Já
não tendes palavras com que prosseguir de quem mais foi, e a quem mais
passou essa casa, que chamais vossa. Pois assim como ela passou, e, vossas
antepassados passaram por ela, assim ela e vós também haveis
de passar. Por este modo sem firmeza, nem estabilidade alguma, estão
sempre passando neste mundo as casas, as quintas, as herdades, os morgados:
uns, porque os faz passar a morte, outros, porque os manda passar a justiça,
outros, porque os convida a passar a riqueza dos que os compram, outros, porque
os obriga á necessidade dos que os vendem, outros, porque a força
e poder os rouba e senhoreia por violência: em suma, que não
há pedra, nem telha, nem planta, nem raiz, nem palmo de terra na Terra,
que não esteja sempre passando, porque tudo passa.

V

Deste tudo que está sempre passando, é o homem não só
a parte principal, mas verdadeiramente o tudo do mesmo tudo. E vendo o homem
com os olhos abertos e, ainda os cegos, como tudo passa, só nós
vivemos como se não passáramos. Somos como os que navegando
com vento e maré, e correndo velocissimamente pelo Tejo acima, se olham
fixamente para a terra, parece-lhes que os montes, as torres, e a cidade é
a que passa; e os que passam, são eles. É o que disse o poeta:
Montes, urbesque recedunt. Mas demos volta a esta mesma comparação,
e veremos na Terra outro gênero de engano ainda maior. A maior ostentação
de grandeza e majestade que se viu neste mundo, e uma das três que Santo
Agostinho desejara ver foi a pompa e magnificência dos triunfos romanos.
Entravam por uma das portas da cidade, naquele tempo vastíssimo, encaminhados
longamente ao Capitólio: precediam os soldados vencedores com aclamações:
seguiam-se, representadas ao natural, as cidades vencidas, as montanhas inacessíveis
escaladas, os rios caudalosos vadeados com pontes: as fortalezas e armas dos
inimigos, e as máquinas com que foram expugnadas: em grande número
de carros os despojos e riquezas, e todo o raro e admirável das regiões
novamente sujeitas: depois de tudo isto a multidão dos cativos, e talvez
os mesmos reis manietados; e por fim em carroça de ouro e pedraria,
tirada por elefantes, tigres, ou leões domados, o famoso triunfador,
ouvindo a espaços aquele glorioso e temeroso pregão: Memento
te esse mortalem. Enquanto esta grande procissão (que assim lhe chama
Sêneca) caminhava, estavam as ruas, as praças, as janelas e os
palanques, que para este fim se faziam, cobertos de infinita gente, todos
a ver. E se Diógenes então perguntasse, quais eram os que passavam,
se os do triunfo, se os que o estavam vendo, não há dúvida,
que pareceria a pergunta digna de riso. Mas o certo é que tanto os
da procissão e do triunfo, como os que das janelas e palanques os estavam
vendo, uns e outros igualmente passavam, porque a vida e o tempo nunca param:
e ou indo, ou estando ou caminhando ou parados, todos sempre com igual velocidade
passamos.

Declarou esta verdade tão mal advertida com uma semelhança
muito própria Santo Ambrósio elegantemente: Et si non videmur
ire corporaliter, progredimus. Nam sicut in navibus dormientes ventis aguntur
ir portus; sic vitae nostroe spatio defluente, ad proprium unusquisque finem,
cursu labente deducimur. Tu enim dormis, et tempus tuum ambulat. Todos vamos
embarcados na mesma nau, que é a vida, e todos navegamos com o mesmo
vento, que é o tempo; e assim como na nau uns governam o leme, outros
mareiam as velas; uns vigiam, outros dormem; uns passeiam, outros estão
assentados;uns cantam, outros jogam, outros comem, outros nenhuma coisa fazem,
e todos igualmente caminham ao mesmo porto; assim nós, ainda que o
não pareça, insensivelmente vamos passando sempre, e avizinhando-se
cada um ao seu fim; porque tu, conclui Ambrósio, dormes, e o teu tempo
anda: Tu dormis, et tempus tuum ambulat. Disse pouco em dizer que o tempo
anda, porque corre e voa; mas advertiu bem em notar que nós dormimos;
porque tendo os olhos abertos para ver que tudo passa, só para considerar
que nós também passamos, parece que os temos fechados.

Dito foi do grande filósofo Heráclito, alegado e celebrado
por Sócrates: Non posse quenquam bis in eumden fluvium descendere:
que nenhum homem podia entrar duas vezes em um rio: e por quê? Porque
quando entrasse a segunda vez, já o rio, que sempre corre e passa,
é outro. E daqui infiro eu, que o mesmo sucederia se não fosse
rio, senão lago ou tanque aquele em que o homem entrasse; porque ainda
que a água do lago e do tanque não corre, nem se muda, corre
porém, e sempre se está mudando o homem, que nunca permanece
no mesmo estado: Et nunquam in eodem statu permanet: Assim o disse Jó,
e quem o não disser assim de todo o homem, e de si mesmo, não
se conhece. Admira-se Philo Hebreu, de que perguntando Deus a Adão
ande estava: Adam, ubi es? ele não respondesse. Mas logo escusa ao
mesmo Adão, e a qualquer outro homem a quem Deus fizesse a mesma pergunta;
porque, como pode responder onde está, quem não está?
Se dissera, estou aqui (como sutilmente argúi Santo Agostinho) entre
a primeira. sílaba e a segunda já o estou não seria estou,
nem o aqui seria o mesmo lugar; porque como tudo está passando, tudo
se teria mudado. Por isso conclui o mesmo Philo, que se Adão houvesse
de responder própria e verdadeiramente onde estava, haveria de dizer:
nusquam, em nenhuma parte; porque em nenhuma parte está aquilo que
nunca está, mas sempre passa: Ad quod proprie respondere poterat, nusquam:
eo quod humana res nunguam in eodem statu maneat

Considerando este contínuo passar do homem (não fora de si,
senão onde verdadeiramente parecer que está e permanece, que
é dentro em si mesmo) diziam os sábios da Grécia, como
refere Eusébio Cesariense, que todo 0 homem que chega a ser velho,
morre seis vezes. E como? Passando da infância à puerícia,
morre a infância; passando da puerícia à adolescência,
morre a puerícia; passando da adolescência à juventude
morre a adolescência; passando da juventude a idade do varão
morre a juventude; passando da idade de varão à velhice, morre
a idade de varão; e, finalmente, acabando de viver por tanta continuação
e sucessão de morte, com a última, que só chamamos morte,
morre a velhice. Assim o consideravam aqueles sábios, mais larga e
menos sabiamente do que deveram, aos quais por isso emendou S. Paulo, dizendo
que morria todos os dias: Quotidie morior. E já pode ser que da comunicação
que Sêneca teve com S. Paulo, ensinou ele esta mesma lição
ao seu discípulo, quando lhe diz: Singulus dies, singulas vitas puta.
Se o Sol, que sempre é o mesmo, todos os dias tem um novo nascimento,
e um novo ocaso, quanto mais o homem por sua natural inconstância tão
mudável, que nenhum é hoje o que foi ontem, nem há de
ser amanhã o que é hoje! Desenganemo-nos pois todos, e diga,.ou
diga-se cada um com el-rei Ezequias: De mane usque ad vesperam finies me .
E seja o última conclusão deste largo discurso; que então
definiremos bem e conheceremos o que é esta vida e este mundo, quando
entendermos que não só estamos nele em perpétua passagem,
mas em perpétuo passamento.

VI

Assim passamos todos, e assim passa tudo para a vida; desengano verdadeiramente
não só triste, mas tristíssimo, se este superlativo e
outros de maior horror não foram mais devidos ao que, e depois de tudo
passar, se segue. Depois da vida segue-se a conta; e sendo a conta que se
há de dar, de tudo o que se passou na vida; tristíssima e terribilíssima
consideração é que, passando tudo para a vida, nada passe
para a conta. O que faz, e há de fazer dificultosa a conta são
os pecados da vida, e de toda a vida. E que confusão será naquele
dia tão cheio de horror e assombro, olhar para a vida, e para os pecados
de toda ela, e ver que a vida passou e os pecados não passaram!

Desse passar e não passar, não só temos os documentos
da Escritura, mas grandes e manifestos exemplos da mesma natureza. Cristo,
Redentor e Juiz universal nosso, comparou o dia do Juízo a uma rede
lançada no mar: Sagenoe missae in mare . O mar é este mundo;
a rede é a compreensão da ciência e justiça divina;
os que nela andam nadando já presos, ou com maior ou menor larqueza,
são todos os homens. E assim como na rede, quando a malha é
muito estreita, só a água pode passar e nenhuma outra coisa;
assim passa somente por ela a vida, e tudo o mais (que são os pecados)
fica dentro, e nada passa. Oh quão apertada e estreita é esta
malha de rede de Deus; e quão fácil de passar, ainda por ela,
a vida, que, como água, sempre está passando! Omnes morimur,
et quasi aqua dilabimur. O mesmo Cristo comparou este passar e não
passar ao crivo, quando disse a seus discípulos: Satanás expetivit
vos ut cribraret sicut triticum . Assim como no crivo (diz S. João
Crisóstomo, comentando estas palavras) , assim como no criva dando
uma e muitas voltas passa o grão, e só fica a palha, assim neste
mundo (que é todo furado) com a volta que dão os dias e os anos,
passa a vida e os gostos dela: Et in novíssimo nihil remanet, nisi
solum peccatum, e no fim, e para o fim só fica o pecado. De outro crivo
fala Davi, que é o das nuvens, por onde se coa a água da chuva,
o qual mais altamente nos inculca este mesmo documento: Cribrans aquas de
nubibus coelorum . Desce a nuvem como esponja a beber no mar, e sendo a água
do mar salgada e amargosa, passada porém pela nuvem, o que lá
fica é o amargoso, e o que cá desce, o doce. Por isso com grande
propriedade este passar e não passar se compara na nuvem ao crivo,
e na vida e na conta à nuvem. O que passa por ela e cá logramos,
é o doce da vida; o que fica lá em cima e não vemos,
é o amargoso da conta.

Não podia Jó faltar a enobrecer este mesmo assunto, como tão
próprio das suas experiências, com alguma semelhança que
mais ainda no-lo declare. Diz que observou Deus todos os seus caminhos, e
considerou as pegadas dos seus pés: Observasti omnes semitas meas,
et vestigia pedum meorum considerasti. E por que considera Deus não
os passos, senão as pegadas? Porque os passos passam, as pegadas ficam;
os passos pertencem à vida que passou, as pegadas à conta, que
não passa. Mas que diferentemente não passa Deus pelo que nós
tão facilmente passamos! Nós deixamos as pegadas detrás
das costas, e Deus tem-nas sempre diante dos olhos, com que as nota e observa:
as pegadas para nós apagam-se, como formadas em pó, para Deus
não se apagam, como gravadas em diamante. Tal é a consideração
dos pecados, que na nossa memória logo se perde, e na ciência
divina sempre está presente. O Setenta, em lugar de pegadas, trasladaram
raízes: Et radices pedum meorum considerasti. Assim como os pés
se chamam plantas, assim às pegadas lhes quadra. bem o nome de raízes.
E por que deu este nome Jó às pegadas dos seus passos? Não
só porque os passos passam, e as pegadas ficam; mas porque ficam como
raízes fundas e firmes, e que sempre permanecem. As pegadas estão
manifestas e vêem-se; as raízes estão escondidas e não
se vêem: e assim tem Deus guardados invisivelmente todos os nossos pecados,
os quais no dia da conta rebentarão como raízes, e brotarão
nos castigos, que pertencem à natureza de cada um. Isto é o
que tanto cuidado dava a Jó.

Finalmente, o apóstolo S. Paulo, pregando contra os que abusam da
paciência e benignidade de Deus, e em vez de se aproveitarem do espaço
que lhes dá para a penitência, gastam a vida em acumular pecados
sobre pecados: não vês (diz), ó homem, que desprezas as
riquezas do sofrimento e longanimidade divina, e que pelo contrário,
segundo a dureza do teu coração, entesouras para ti a ira e
vingança, que te espera no dia do Juízo? An divitias bonitatis
ejus, et patientiae et longanimitatis contemnis? Secundum autem duritiam tuam,
et revelationis justi judicii Dei? De maneira que ao pecar sobre pecar chama
S. Paulo entesourar: thesaurizas tibi; porque ainda que a vida e os dias em
que pecamos passam, os pecados que neles cometemos, não passam, mas
ficam depositados nos tesouros da ira divina. Fala o apóstolo por boca
do mesmo Deus, o qual diz no Deuteronômío: Nonne hoec condíta
sunt apud me, et signata in thesauris meis? Mea est ultio, et ego retribuam
in tempore. Estes tesouros, pois, que agora estão cerrados, se abrirão
a seu tempo, e se descobrirão para a conta no dia do Juízo,
que isso quer dizer, in dïe iroe, et revelationis justi judicii Dei.
Considerai-me um homem rico, e que tem mais rendas cada ano do que há
mister para se sustentar que faz este homem? Uma parte do que tem gasta, e
outra parte entesoura. Pois isto é o que fazemos todos. Todos gastamos,
e todos entesouramos; todos gastamos o que passa, e todos entesouramos a que
não passa; o que gastamos, é o da vida; o que entesouramos,
o da conta.

Infinita matéria seria, se agora houvéramos de reduzir à
prática uma e outra parte desta demonstração, e pô-las
ambas em teatro. Mas por isso nos detivemos tanto no primeiro ponto do nosso
discurso. Não vimos nele, desde o principio do mundo, como tudo passou?
Não vimos, como todos os que em tantos séculos viveram, passaram?
Pois esse tudo que então passou para a vida, é o nada que não
passou para a conta; e esses todos que então morreram, e agora estão
sepultados, são os que ressuscitados neste mesmo dia hão de
aparecer vivos diante do tribunal divino, para dar essa conta estreitíssima
de quanto fizeram, Neste tribunal viu S. João assentado sobre um trono
de admirável majestade o Supremo Juiz, e com aspecto tão terrível,
que afirma fugiu dele o céu e a terra: Et vidi thronum magnum candidum,
et sedentem super eum, a cujus conspectu fugit terra, et coelum . Diz mais,
que viu a todos os mortos, grandes e pequenos, em pé, como réus,
diante do mesmo trono: Et vidi mortuos magnos et pusillos stantes in conspectu
throni. E finalmente conclui, que então apareceram e se abriram um
livro e muitos livros, e que pelo que estava escrito nestes livros foram julgados
todos, cada um conforme suas obras: Et libri aperti sunt; et alius liber apertus
est, qui est vitae; et judicati sunt mortui ex his quoe scripta erant in libris
secundum opera ipsorum. Desta distinção que o evangelista faz
de livro a livros, se vê claramente, que o livro era da vida, liber
qui est vitae, e que os livros eram da conta, porque pelos livros foram julgados
os mortos: Et judicati sunt mortui ex his quoe scripta erant in libris. Assim
entendem literalmente estes textos como soam, Beda e outros padres. Mas por
que razão o livro da vida, era livro, e os livros da conta, livros?
Porque o livro da vida contém os dias da mesma vida, que são
poucos, e os livros da conta contêm os pecados cometidos nos mesmos
dias, que são muitos. Assim que postos à vista no tremendo tribunal,
de uma parte o livro, e, da outra os livros, então se verão
juntas e concordes as duas combinações do nosso assunto: no
livro, como tudo passa para a vida; nos livros, como nada passa para a conta.

VII

Este nada, do qual dizemos que nada passa para a conta, é o que agora
havemos de examinar. Pergunto: se nada passa para a conta, parece que também
o nada pode ser chamado a Juízo? E se acaso for chamado, escapará
da conta o nada por ser nada? Creio que todos estão dizendo que sim.
Mas é certo, e de fé, que também o nada, por mais qualificado
que seja, há de ser chamado a Juízo, e porque nada passa para
a conta, nem o mesmo nada há de passar sem ela, e mui rigorosa. Ninguém
foi mais qualificado na lei da natureza que Jó, e ninguém mais
qualificado na lei da graça que S. Paulo: e que dizia de si um e outro?
Jó dizia que nada tinha feito contra Deus: Quia nihil impium fecerim.
S. Paulo dizia que nada havia na sua consciência, de que ela o acusasse:
Nihil mihi conscius sum . E este nada de Jó, e este nada de S. Paulo
escaparam porventura da conta e do Juízo? Eles mesmos confessam, que
de nenhum modo. Jó dizia que Deus o tinha posto a questão de
tormento, como réu, para averiguar se o que ele tinha por nada, verdadeiramente
era nada: Ut quoeras iniquitatem meam, ei peccatum meum scruteris, et scias,
quia nihil impium fecerim. E S. Paulo dizia, que ele se não dava por
justificado do que na sua consciência reputava por nada, porque desse
nada não havia ele de ser o juiz, senão Deus: Nihil mihi conscius
sum, sed non in hoc justificatus sum; qui autem judicat me, Dominus est. Eis
aqui quão manifesta e provada verdade é, que nada passa para
a conta, pois até do mesmo nada a há de tomar Deus, e tão
estreita.

Mas qual é, ou pode ser a razão por que onde dois homens tão
grandes, tão qualificados e tão santos, como Jó e S.
Paulo, não reconhecem nada de culpa, lha haja, de argüir Deus,
e pedir-lhes conta? A primeira razão e da parte de Deus (a qual só
pode ignorar quem o não conhece) é, porque ainda nas coisas
mais interiores nossas, conhece Deus muito mais de nós, do que nós
de nós. Quando Cristo na mesa da última Ceia revelou aos apóstolos,
que um deles o havia de entregar: Amen dico vobis, quia uns vestrum me traditurus
est, diz o evangelista, que muito tristes todos com tal notícia, começou
cada um a perguntar: Nunquid ego num, Domine? Porventura, Senhor, sou eu esse?
Pedro, André, João e os demais, exceto Judas, bem sabia cada
um de si, que não era o traidor, nem tal coisa lhe passara pelo pensamento;
pois por que se não deixam estar muito seguros na boa fé da
sua lealdade, mas pondo em dúvida o que não duvidavam, pergunta
cada um a Cristo se é ele o traidor: Nunquid ego sum? Porque ainda
que a própria consciência os não acusava, sabiam todos
que sabia Cristo mais de cada um deles, do que eles de si. Eles conheciam-se,
como homens, Cristo conhecia-os, como Deus. Esse foi o erro e engano de S.
Pedro, que estava à mesma mesa! Pedro disse, que se fosse necessário
daria a vida por Cristo; Cristo pelo contrário disse, que três
vezes o havia de negar naquela noite. E por que foi esta a verdade? Porque
Pedro falou pelo que ignorava de si, e Cristo pelo que conhecia dele. Hoc
illi Christus pracnuntiabat qued in se ipse ignorabat, diz Santo Agostinho.
E como o juiz daquele dia conhece mais de nós, do que nós de
nós, não é muito que ele nos condene pelo que nós
ignoramos, e que no seu juízo seja culpa, o que no nosso parece inocência.

A segunda razão, e da parte nossa é, porque assim como Deus
sabe tanto de nós, assim nós sabemos muito pouco de Deus; e
por isso as nossas razões não podem alcançar as suas.
Um dia, depois de Cristo entrar triunfante em Jerusalém, vindo de Betânia
para a mesma cidade, esuriit, teve fome; e como visse ao longe uma figueira
verde e copada, encaminhou as passos até ela, para ver se acaso tinha
algum fruto: Si quid forte inveniret in ea. Mas porque não achou mais
que folhas, lançou-lhe o Senhor maldição de que eternamente
não desse fruta: Nunquam ex te fructus nascatur in sempiternum; e no
mesmo momento se secou a árvore desde as folhas até as raízes.
É porém muita de notar neste caso, coma nota S. Marcos, que
não era tempo de figos: Non enim erat tempus ficorum. Pois se não
era tempo de aquela árvore ter fruto, por que a amaldiçoa Cristo,
e a seca, não só para aquele ano, senão para sempre?
Podia haver causa, ou desculpa mais natural de não ter fruto, que não
ser tempo dele? Da árvore a que é comparado o justo, diz Davi,
que dará o seu fruto no seu tempo: Et fructum suum dabit in tempore
suo. Pois se é louvor nas melhores árvores darem a seu fruto,
como foi culpa nesta não se achar nela fruto, quando não era
tempo? O mesmo evangelista S. Marcos diz que esta sentença de Crista
foi resposta que o Senhor deu à árvore: Et respondens dixit
ei: Jam non amplius in aeternum ex te fructum quisquam manducet . Se a sentença
de Cristo foi resposta que deu à árvore, sinal é que
a ouviu primeiro, e ela alegou de sua justiça. Reparem aqui os juizes,
ou condenadores, que nem a um tronco irracional e insensível condena
Deus sem o ouvir. Mas que é a que alegou a árvore? Alegou o
mesmo texto do evangelista; e estava. como dizendo maduramente ao Senhor:
Eu bem tomara estar carregada de frutos maduros e sazonados, para os oferecer
a meu Criador; porém a causa e impedimento natural de me achar sem
eles, é por não ser ainda chegado o tempo: Non erat tempus ficorum.
E que sem embargo desta réplica, ao parecer tão justificada,
a condenasse Cristo, e com condenação eterna: in sempiternum!
Assim foi. Mas com que fundamento, ou justiça? Entre todos os expositores
da Escritura, mais letrados e de maior engenho, nenhum houve até agora
que desse satisfação cabal a esta dúvida. E a razão
de se lhe não achar razão, é porque as razões
dos homens não alcançaram as de Deus, e onde não sabe
descobrir culpa o juízo humano, a pode achar o divino. Por que não
compreende o homem a Deus? Porque Deus é incompreensível. Pois
também por isso os juízos humanos não compreendem os
divinos, porque os divinos são incompreensíveis: Quam incomprehensibilia
judicia ejus!

Sobre estes dois princípios tão manifestos, um da ciência
de Deus para conosco, outro da nossa ignorância para com Deus, fica
satisfeita e emudecida toda a admiração de que Deus haja de
julgar até o que reputamos por nada, e nesse mesmo nada haja de argüir
e achar culpas de que pedir e tomar conta no dia do Juízo. Só
resta um escrúpulo, que ainda não acaba de se aquietar, e não
menos que acerca da justiça com que Deus nos haja de castigar pelo
que não conhecemos. É verdade que Deus sabe de nós o
que nós ignoramos de nós, mas essa mesma ignorância nossa
não só parece que nos desculpa, mas nos livra de ser pecado
o que não conhecemos como tal. Sem vontade não há culpa,
sem conhecimento não há vontade; como logo pode ser pecado,
e castigado como pecado o que eu não conheço? Bem tinha decifrado
esta teologia o autor do nosso provérbio: Quem ignorantemente peca,
ignorantemente vai ao inferno. Uma só ignorância escusa do pecado,
que é a invencível. Mas esta poucas vezes se acha. Os demais
não só pecam no pecado, mas na ignorância com que o não
conhecem. Não pecaram gravissimamente os judeus na morte de Cristo?
E contudo diz S. Pedro que eles e os seus príncipes o fizeram ignorantemente:
Scio quia per ignorantiam fecistis, sicut et Principes vestri . E o mesmo
Cristo quando disse: Pater, ignosce illis, non enim sciunt quid faciunt ;
justamente alegou por eles a ignorância, e pediu para eles o perdão.
Se a ignorância os livrara do pecado, não tinham necessidade
de perdão; mas pediu-lhes o Senhor o perdão, quando lhe confessou
a ignorância, porque tão fora estiveram de ficar isentos do pecado,
pela ignorância com que o cometeram, que antes a mesma ignorância
lhes acrescentou um pecado sobre outro pecado. Um pecado, porque tiraram a
vida. ao Messias não conhecido, e outro pecado, porque o não
conheceram, tendo tanta obrigação como evidência para
o conhecer.

Isto mesmo é o que se vê hoje entre os que conhecem e adoram
Cristo; e não por acontecimento raro, senão comumente; nem só
nas vidas, serão também nas mortes. Quantos pecados vemos, e
quão grandes, nem emendados na vida, nem confessados na morte, os quais
não só Deus, mas todo o mundo está conhecendo, e só
os mesmos que os cometem os não conhecem! Não os conhecem, porque
a largueza e relaxação da vida escurece a consciência
e cega a alma; não os conhecem, porque o amor-próprio sempre
escusa e aligeira o que nos condena; não os conhecem, porque os interesses
e conveniências deste mundo trazem consigo o esquecimento do outro;
não os conhecem, porque os não querem examinar, nem consultar
com quem deviam; não os conhecem, finalmente, porque com ignorância
afetada os não querem conhecer para os não emendar: Noluit inteligere,
ut bene ageret, vede agora se castigará Deus justamente no dia do Juízo
os pecados não conhecidos, se por cometidos merecem um castigo, e por
não conhecidos outro maior? Porém se até aquele dia estarão
desconhecidos e sepultados nas trevas desta maliciosa e ignorante ignorância,
então ressuscitarão, sairão à luz, porque o mesmo
juiz universal, como diz S. Paulo, com os resplendores de sua presença
alumiará as consciências de todos os homens, e descobrirá
manifestamente a cada um tudo o que nelas estava escondido e às escuras:
Quoadusque veniat Domínus, qui et illuminabit abscondita tenebrarum.
Por meio desta luz, desenganadas então, e assombradas as mesmas consciências
do muito que verão sair debaixo do nada, que não viam ou não
quiseram ver, nenhuma terá que estranhar, nem replicar à sentença,
ainda que seja de eterna condenação, e todas dirão convencidas:
Justus es, Domine, et rectum judicium tuum .

VIII

Oh que grande mercê de Deus fora, se hoje, que estamos na representação
do mesmo dia do Juízo, o mesmo soberano juiz nos comunicara um raio
daquela luz, para que víramos agora o que então havemos de ver,
e com os pecados conhecidos nos presentáramos antes ao tribunal de
sua misericórdia, que depois ao de sua justiça! Mas bendita
seja a bondade do mesmo Senhor, que não só nos deixou comunicado
na sua doutrina um raio daquela luz, senão três, se nós
lhe não cerramos os olhos. Sendo a matéria de tudo o que passou
para a vida, e não há de passar para a conta, tão imensa
à capacidade humana, só a sabedoria divina a poderá compreender;
e assim o fez Cristo Senhor Nosso, reduzindo-a, repartindo-a em três
parábolas, nas quais nos ensinou em suma toda a conta que nos há
de pedir, e de quê. A primeira parábola é dos ofícios,
a segunda dos talentos, a terceira das dívidas. E este mesmo número
e ordem seguiremos para maior distinção e clareza.

Quanto aos ofícios, diz a primeira parábola (que é a
do Vilico) que houve um homem rico, o qual deu a superintendência das
suas herdades a um criado, com nome de administrador delas. E porque não
teve boa. informação de seus procedimentos, o chamou à
sua presença, e lhe pediu conta, dizendo: Redde rationem villicationis
tuae; jam enim non poteris villicare. Dai conta da vossa administração,
porque desde esta hora estais excluído dela. Esta circunstância
de ser a conta a última, e não se poder emendar, é uma
das mais rigorosas do dia do Juízo. Vindo pois ao sentido da parábola:
o homem rico é Deus; as suas herdades são as igrejas e as províncias;
o administrador no espiritual é o papa, no temporal é o rei,
e, abaixo destes dois supremos, todos os outros ministros eclesiásticos
e seculares, que repartidamente têm inferior jurisdição
sobre os mesmos súditos. A todos estes, pois, há de pedir Deus
estreita conta, não só quanto às pessoas, senão
também, e muito mais, quanto aos ofícios. Quanto à pessoa,
há de dar cada um conta de si, e quanto aos ofícios, há
de dar a mesma conta de todos aqueles que governou e lhe foram sujeitos. De
sorte que o papa há de dar conta de toda a cristandade, o rei de toda
a monarquia, o bispo de toda a diocese, o governador de toda a Província,
o pároco de toda a freguesia, o magistrado de toda a cidade, e o cabeça
da casa de toda a família. Oh, se os homens souberam o peso que tomam
sobre si, quando com tanta ânsia e negociação pretendem
e procuram os ofícios, ou seculares ou eclesiásticos, como é
certo que haviam de fugir e benzer-se deles! Mas não os procuram pelo
peso, senão pela dignidade, pelo poder, pela honra, pela estimação,
e, mais que tudo hoje, pelo interesse. Porém, quando no dia de Juízo
se lhes tomar a conta pelo peso, então verão onde os leva a
balança.

Se é tão dificultoso dar boa conta da alma própria,
que é uma, quão difícil e quão impossível
será dá-la boa de tantas mil? Como é certo, que não
temos fé, nem sabemos a que nos obriga! Vedes quantas almas há
nesta cidade, quantas almas há nesta Província, quantas almas
há em todo o reino? Pois sabei, se o ignorais, ou não advertis,
que de todas essas almas hão de dar conta a Deus os que governam a
cidade, a Província e o reino. Porque assim como sobre todos e cada
um tem poder e mando, assim em todos e cada um são obrigados a lhes
fazer guardar as leis, não só humanas, senão também
as divinas. Não é isto encarecimento meu, senão doutrina
sólida e de fé, pronunciada por boca de S. Paulo: Obedite praepositis
vestris, et subjacete eis; ipsi enim pervigilant, quasi rationem pro animabus
vestris reddituri . Obedecei, diz o apóstolo, a vossos superiores e
sede-lhes muito sujeitos, porque a sua obrigação é zelar
e vigiar sobre as vossas vidas, como aqueles que hão de dar conta a
Deus de vossas almas. Vede quanto maior é a sujeição
dos superiores que a dos súditos. Quantos são os súditos
que estão sujeitos ao superior, tantas são as almas de que está
sujeito o superior a dar conta a Deus. E posto que este oráculo bastava
para nenhum homem que tem fé querer tomar sobre si uma tal sujeição,
ouvi agora o que nunca ouviste. Nem todas as sentenças de Cristo estão
escritas no Evangelho, algumas ficaram somente impressas na tradição
de seus discípulos, entre as quais é tão notável
como terrível esta: Omne peccatum, quod remissus, et indisciplinatus
admiserit frater, ad negligentem protinus revertitur seniarem. Quer dizer:
todos os pecados que cometem os súditos, se escrevem e carregam logo
no livro das culpas do superior, porque há de dar conta deles. De modo
que segundo esta sentença e revelação do mesmo Cristo,
todos os homicídios, todos os adultérios, todos os furtos, todos
os sacrilégios e mais pecados que os vassalos cometem na vida e reinado
de um rei, e as ovelhas e súditos na vida e governo de um prelado,
todos estes pecados se lançam logo e escrevem nos livros de Deus, debaixo
do título do tal rei e debaixo do título do tal prelado, para
se lhes pedir conta deles, no dia do Juízo.

Ponhamos agora este rei, e depois poremos também este prelado diante
do tribunal divino, e vejamos que respondem a estes cargos. O rei é
a cabeça dos vassalos; e quem há de dar conta dos membros, senão
a cabeça? O rei é a alma do reino; e quem há de dar conta
do corpo, senão a alma? Pedirá, pois, conta Deus a qualquer
rei, não digo dos pecados seus e da sua pessoa, senão dos alheios
e do ofício. E que responderá já não rei, mas
réu? Parece que poderá dizer: Eu, Senhor, bem conhecia que era
obrigado a evitar os pecados dos meus vassalos, quanto me fosse possível,
mas a minha corte era grande, o meu reino dilatado, a minha monarquia estendida
pela África, pela Ásia e pela América; e como eu não
podia estar em tantas partes, e tão distantes, na corte tinha provido
os tribunais de presidentes e conselheiros, no reino de ministros de justiça
e letras, nas conquistas de vice-reis e governadores, instruídos de
regimentos muito justos e aprovados. E isto ë tudo o que fiz e pude fazer.
Também poderá meter nesta conta o seu próprio palácio,
e aqueles de que se servia mais familiar e interiormente. Mas sobre todos
cai a réplica. E estes que elegestes (dirá Deus) por que os
elegestes? Não foram alguns por afeição, e outros por
intercessão, e outros por adulação, e outros por ruim
e apaixonada informação? E os que ficaram de fora com mais conhecido
merecimento, por que os excluístes? Mas dado que todos fossem eleitos
com os olhos em mim, e justamente, depois que na administração
de seus ofícios conhecestes que não procediam como eram obrigados,
por que os não removestes logo, por que os dissimulastes e conservastes,
e, o que pior é, por que os despachastes de novo, e com mais autorizados
postos? Se o que assolou uma Província o deixastes continuar na mesma
assolação, e depois o promovestes a outro governo maior, como
não fostes cúmplice das suas injustiças, e das culpas
que ele em vez de remediar acrescentou com as suas, e com o exemplo delas?
Se as suas tiranias vos foram manifestas, como as deixastes sem castigo, e
os danos dos ofendidos sem restituição? Quantas lágrimas
de órfãos, quantos gemidos de viúvas, quantos clamores
de pobres chegavam ao céu no vosso reinado, porque para suprir superfluidades
vãs, e doações inoficiosas, vossos ministras (por isso
premiados e louvados) com impiedade mais que desumana, não os despojavam,
mas despiam. Isto é o que poderá replicar Deus, emudecendo,
e não tendo que responder o triste rei. E qual será a sua sentença?
No dia do Juízo se ouvirá. O certo é que Davi, rei santo
antes de pecador e depois de pecador exemplo de penitência, o que pedia
perdão a Deus, era dos pecados ocultos e dos alheios: Ab occultis meis
munda me, et ab alenis parce servo tuo. Mas os pecados ocultos naquele dia
são manifestos, e dos alheios, por ter sido rei, se lhe pedirá
tão estreita conta como dos próprios.

Entre agora o prelado a dar conta, e a ouvir em estátua o processo
que depois da ressurreição lhe será notificado em carne.
Oh que espetáculo será aparecer descoroado da mitra, e despido
dos paramentos pontificiais diante da majestade de Cristo Jesus, aquele a
quem o mesmo Senhor autorizou com o nome e poderes de seu vigário,
e cuja humana e divina pessoa representou nesta vida! O pastor, et Idolum!
lhe dirá Cristo: Tu que foste pastor no nome, e como ídolo te
contentaste com a adoração exterior que não merecias,
dá conta. Não ta peço das misérias ocultas, senão
das públicas e escandalosas de tuas mal guardadas e desprezadas ovelhas.
Eram miseráveis no temporal, e não trataste de remediar suas
pobrezas, e eram muito mais miseráveis no espiritual, e não
cuidaste de curar nem de preservar seus pecados. Se as rendas, que com tanta
cobiça recolhias, e com tantas avarezas guardavas, eram o mou patrimônio,
que eu adquiri, não menos que com o meu sangue, por que o não
distribuíste aos meus verdadeiros credores, que são os pobres?
Por que o dispendeste em carroças, criados e cavalos regulados, estando
eles morrendo de fome, e em vestir as suas paredes de oiro e seda, andando
elés despidos e tremendo de frio? Se o zelo de teus ministros visitava
as vidas dos pequeninos, tratando mais de se aproveitar das condenações,
que de lhes emendar as consciências; os pecados monstruosos dos grandes,
que tão soberba e escandalosamente viviam na face do mundo, como os
deixaste triunfar com perpétua imunidade, como se foram superiores
às leis da minha Igreja?

Confesso, Senhor, responderá o prelado, que em uma e outra coisa faltei’
mas não sem eausa. O que dispendi com minha casa e pessoa’ foi para
satisfazer aos olhos do vulgo, que só se leva destes exteriores, e
para conservar a autoridade do ofício e veneração da
dignidade. E se contra os pecados dos grandes me não atrevi, foi porque
os seus poderes são inexpugnáveis; e julguei por menos inconveniente
não entrar com eles em batalha, que com afronta e desprezo das mesmas
leis da Igreja, ficar no fim da peleja vencido: e finalmente, Senhor em uma
e outra omissão segui o exemplo universal, e o que usam neste ofício
os que com mais poderosas armas, e com maiores jurisdições que
a minha, costumam em toda a parte fazer o mesmo. ó ignorante! ó
covarde! replicará Cristo. Tão ignorante e covarde, como se
não tiveras lido as Escrituras, nem os Canones, e exemplos da mesma
Igreja. Porventura Pedro, e Paulo, e os outros apóstolos que me imitaram
a mim, e os seus verdadeiros sucessores, que os imitaram a eles, conciliavam
a autoridade das pessoas e do ofício, ainda entre gentios, com os aparatos
exteriores? Não sabes que esse mesmo povo, com cujos olhos te escusas,
se por dares tudo aos pobres, te vissem desacompanhado, só, e a pé
pelas ruas, e ainda com os pés descalços, então se ajoelhariam
todos diante de ti, e te adorariam? E quanto à covardia de te não
atreveres com os grandes, tendo a teu lado a espada de Pedro; contra quem
se atrevia Davi, que foi o exemplar dos meus pastores? Entre as feras tomava-se
com os leões, e entre os homens com os gigantes. Que fera mais fera
que a imperatriz Eudóxia, e vê como a não temeu Crisóstomo;
e que leão mais coroado que o imperador Teodósío, e vê
como o humilhou e pôs a seus pés Ambrósio. Finalmente,
se não seguiste o valor destes, senão 0 que chamas costume dos
outros, agora verás em ti e neles, que se eles o costumam fazer assim,
2u também costumo mandar ao inferno os que assim o fazem. Isto baste
quanto à conta dos ofícios, e tomem exemplo os ministros seculares
na conta do rei, e os eclesiásticos na do prelado.

IX

Quanto à conta dos talentos, esta temos na parábola dos criados,
a quem o rei encomendou diferentes cabedais, para que negociassem com eles
enquanto fazia certa jornada: Negotiamini dum venio O rei é Cristo,
a jornada foi a de sua subida ao céu, e a tornada há de ser
no dia do Juízo ,em que há de pedir conta a cada um, do que
negociou com os talentos que lhe deu, e do que lucrou e ganhou com eles: Post
multum vero temporis venit dominus servorum illorum , et possuit rationem
cum eis. Os talentos são os meios assim universais como particulares,
com. que a providência divina assiste a todos os homens, e a cada um
para sua salvação e perfeição; e os avanços
ou ganâncias, são o aumento das virtudes, merecimentos e graça,
que no exercício, agência e indústria, com que se aplicam
os mesmos meios, alcançam os que não são negligentes.
Quão exata pois haja de ser esta conta, e quão rigorosa para
os que usarem mal do talento, na mesma história o temos. Os criados,
a quem o rei fiou os talentos, eram três: ao primeiro entregou cinco,
o qual granjeou outros cinco: ao segundo entregou dois, o qual granjeou outros
dois; e ambos foram louvados; ao terceiro deu um só talento, o qual
ele enterrou. E posto que na conta o ofereceu outra vez, e restituiu inteiro,
porque não tinha negociado com ele, nem adquirido coisa alguma, o senhor
não só o lançou fora de sua casa, e o mandou privar de
talento, mas o pronunciou por mau criado: serve nequam, que foi a sentença
de sua condenação. E se quem na conta torna a entregar o talento
que Deus lhe deu, inteiro e sem defraudo, e condena, que será dos que
o desbaratam e perdem, e talvez o convertem contra si, e contra o mesmo Deus?

Para inteligência desta gravíssima e perigosa matéria,
havemos de supor o que se não cuida; e é que, não só
são talentos os dotes da natureza, os bens da fortuna e os dons particulares
da graça, senão também os contrários, ou privações
de tudo isto. Não só é dote da natureza a formosura,
senão também a fealdade; não só as grandes forças,
senão a fraqueza; não só o agudo entendimento, senão
o rude; não só a perfeita vista, senão a cegueira; não
só a saúde, senão a enfermidade; não só
a larga vida, senão a breve. Do mesmo modo nos bens que chamam da fortuna,
não só é bem o ilustre nascimento senão o humilde;
não só as dignidades altas, senão o lugar e ofício
abatido; não só as riquezas, senão a pobreza; não
só o descanso, senão os trabalhos; não só os sucessos
prósperos, senão os adversos, não só os mandos,
senão o ser mandado; nem só as vitórias e triunfos, senão
o ser vencido. Finalmente, nas graças, ou dons da graça, não
só é graça o dom das línguas, mas o não
saber falar, ou ser mudo; não só o das letras e ciências,
senão o da ignorância; não só o do conselho e discrição,
senão o de não ter nem poder dar voto; não só
o da ostentação e boato dos milagres, senão o de não
ser em coisa alguma maravilhoso, senão totalmente desconhecido e desprezado.

A razão desta verdade interior e providência verdadeiramente
divina, é, porque todas estas coisas, posto que entre si contrárias,
podem ser meios que igualmente nos levem à salvação e
promovam à virtude, principalmente sendo distribuídos por Deus
e aplicados conforme o gênio de cada um, que por isso diz o texto, que
foram dados os talentos: Uniquique secundum propriam virtutem . Assim que,
tanto se podia aproveitar Raquel da sua formosura, como Lia da sua deformidade:
tanto Aquitofel do seu entendimento, como Nabal da sua rudeza; tanto Matusalém
dos seus novecentos anos, como o moço de Naim dos seus vinte; tanto
Crasso dos seus tesouros como Jó da sua pobreza, tanto Júlio
César da sua fortuna, como Pompeu da sua desgraça; tanto Alexandre
Magno das suas vitórias, como Dario e Poro de ele os ter vencido; tanto
Arão da soltura e eloqüência da sua língua, como
Moisés do impedimento da sua; tanto o sutilíssimo Escoto da
sua ciência, como frei Junípero da sua simplicidade; tanto S.
Pedro dos seus milagres, como o Batista de nunca fazer milagre. Daqui se segue,
que tanta conta há de pedir Deus ao rico da sua riqueza, como ao pobre
da sua pobreza; tanta ao são da sua saúde, como ao doente da
sua enfermidade; tanta ao honrado da sua estimação, como ao
afrontado da sua injúria; e tanta a todos do que deu a uns, como do
que negou a outros; porque se o rico pode granjear com o seu talento por meio
da esmola, o pobre também pode com o seu por meio da paciência.
E assim dos demais. Antes é certo que entre as coisas, que se chamam
prósperas, ou adversas, mais eficazes são para o merecimento
as que mortificam a natureza, que as que lisonjeiam o apetite; e mais seguras
para a salvação as que pesam e carregam para a humildade, que
as que elevam e desvanecem para a soberba. Só souberam manejar uns
e outros meios e aproveitar-se com igualdade de ambos os talentos um S. Paulo,
que dizia: Scio abundasse et scio esurire. E um Jó, que na mesma volta
da sua primeira para a segunda fortuna, disse: Si bona suscepimus de manu
Dei, mala quare non suscipiamus?Mas estes homens quadrados nascem poucas vezes
no mundo. Os dados tão firmes se assentam com poucos pontos, como com
muitos; e tão direitos estão com as sortes, como com os azares.

Desta maneira (e seja esta a única e importantíssima advertência)
, desta maneira devemos aceitar como da não de Deus, e contentar-nos,
com o talento, ou talentos, que Ele foi servido dar-nos, ou sejam como os
cinco, ou como os dois, ou como um somente; e se pudera ser nenhum, ainda
fora mais seguro. Quando o rei distribuiu os talentos aos criados, não
lemos que algum deles se descontentasse da repartição. Se os
que Deus deu a outros, são maiores que os vossos, eles terão
mais, e vós menos de que dar conta ao mesmo Deus. Mas somos como os
que lançam nas rendas dos reis, que só olham para o que recebem
de presente, e não para a conta, que hão de dar de futuro. Admirável
foi neste gênero a variedade e repartição de fortunas,
com que Jacó (digamo-lo assim) fadou a seus filhos quando na hora da
morte lhes lançou a bênção. Usou dos nomes de diferentes
animais, e a Judas chamou leão: Catulus leonis Juda ; a Dan serpente:
Fiat Dan coluber in via; a Benjamim lobo: Benjamin lupus rapax; a Nephtali
cervo. Nephtali cervas emissus; A Issachar jumento: Issachar asinus fortis.
Os animais todos têm suas inclinações, instintos e propriedades,
e todos suas como virtudes, ou vícios naturais: o leão generoso,
a serpente astuta, o lobo voraz, o cervo ligeiro, o jumento sofredor do trabalho.
E debaixo destas metáforas significava Jacó aos filhos os talentos
de cada um e o uso deles, e quais haviam de ser as ações e sucessos
de suas vidas e descendências. E sendo assim, que estes mesmos irmãos
sofreram tão mal ao mesmo pai fazer uma túnica a um deles de
melhor estofa, que por isso a quiseram tingir em seu próprio sangue;
como agora nenhum deles se queixa de o pai os vestir de tão diferentes
peles e pêlos, e de lhes dar ou chamar tão diferentes nomes,
e de tão diferente nobreza, quanto vai de lobo a cervo, de serpente
a leão, e de leão a jumento? Por que na diferença da
túnica obrava Jacó como pai em seu nome: na diferença
e repartição o dos talentos, falava como profeta em nome de
Deus; e como a distribuição era feita por Deus e os talentos
dados por ele, posto que fossem tão diversos na estimação
e crédito, quanto vai do império à servidão, e
do leão ao jumento, todos abaixando a cabeça se contentaram
e conformaram com a sua sorte, e nenhum houve que abrisse a boca para se queixar,
ou metesse os olhos debaixo das sobrancelhas para mostrar descontentamento.
E que dirão a isto os que tantas vezes deixaram a religião e
a mesma fé, por não terem humildade, nem paciência para
sofrer que se lhes antepusessem os que não podiam igualar no talento?

Todo o talento é arriscado á o perder, ou não dar boa
conta dele a presunção humana. Os maiores pela soberba, os menores
pela inveja, e os mínimos pela desesperação e pusilanimidade.
Das casta destes últimos foi o que enterrou o talento, podendo ser
melhor e mais celebrado que todos se o não enterrara. Puseram alguns
teólogos em questão qual dos criados se mostrara mais industrioso,
se o que com dois talentos granjeara dois, ou o que com cinco granjeara cinco;
e como entre eles se não decidisse a questão, devolveu-se a
uma academia de mercadores, os quais todos resolveram, que mais industrioso
fora o que com dois negociara dois, que o que com cinco granjeara cinco; porque
mais dificultoso é ganhar pouco com pouco, que muito com muito. E sobre
esta, que é primeira máxima dos negociantes, provada com a experiência,
acrescentaram que se o que teve um só talento granjeara outro, excederia
sem comparação na indústria ao dos dois, e ao dos cinco.
Grande consolação, e verdadeira, se a quisessem aceitar os talentos
meridianos. Mas quem poderá curar a cegueira, e contentar a inveja
dos que se vêem excedidos? Saul porque ouviu (vede a quem? porque ouviu
que as chacotas lhe preferiam a Davi, tantas vezes e por tantos modos o quis
matar, e por isso perdeu a coroa. E Dédalo, aquele famoso artífice,
que preso em uma torre, inventou e formou as asas com que fugiu dela voando,
vendo que Perdiz, seu discípulo, inventara o compasso e da imitação
de uma espinha a serra, temendo que o havia de exceder no talento, o despenhou
primeiro da mesma torre.

Mas ainda são mais arriscados os talentos, que na iminência
se estremam sobre todos. Que havia de ser de Saulo se o mesmo Cristo descera
do céu, e o derribara do cavalo para lhe enfrear o orgulho? Que havia
de ser de Agostinho, de quem se rezava nas escolas católicas: A logica
Augustini libera nos Domine; se amolecida com as lágrimas de sua mãe,
ela (como um lírio que se gera das lágrimas de outro) o não
tornara a gerar? Suceder-lhe-ia o que ao profundíssimo engenho de Tertuliano,
e ao imenso de Orígines, os quais venerados como oráculos da
sua idade, e primeiros mestres da Igreja, a perderam e se perderam. Mas que
muito é que o barro caia, e se quebre, se o entendimento de Lúcifer,
sendo o maior que Deus criou, excedendo-o só o do mesmo Deus, antes
quis cair do céu, que ver-se nele excedido! Tanta conta têm como
isto os talentos menores, e só por isso poderão dar boa conta.

X

A das dívidas é a que só nos resta, última, maior,
e mais dificultosa de todas. Esta se contém na parábola do outro
rei, o qual fez o que muitos não fazem, que é tomar conta aos
criados de sua casa: Qui voluit rationem ponere cum servis suis. Do que logo
se segue, no princípio das contas se mostra bem, que este chamado rei,
seria o mais poderoso e rico monarca de quantos houve, ou não houve
no mundo; porque o primeiro criado foi convencido de que era devedor à
fazenda ou erário real de cento e vinte milhões de oiro. Tanto
vêm a montar os que o texto chama decem millia talenta; porque falando
Cristo com os hebreus, e na língua hebraica, também o cômputo
e valor da dívida se há de entender de talentos, não
gregos, senão hebraicos. Mas como era possível que um criado
devesse a seu rei cento e vinte milhões? Respondo que quando a parábola
dissera dez mil vezes outros tantos, ainda diria muito menos dó que
queria significar. Porque este rei é Deus, e esta dívida é
a dos benefícios que Deus tem feito ao homem; e como o menor benefício
divino, por si mesmo, ou por seu autor, é de valor infinito, não
há número em toda a aritmética, nem preço em todas
as criaturas, com que se possa comparar, quanto mais igualar.

Santo Agostinho, para representar mais claro e mais patentemente esta conta,
introduz ao mesmo Cristo fazendo-nos por sua própria pessoa os cargos
do que lhe devemos, como fará no dia do Juízo: Quid est quod
debui ultra facere vineae meae, et non feci ei? Que coisa há, que eu
devesse fazer-te, ó homem, ou devesse fazer por ti, que não
tenha feito? De nada te era. devedor, e como se o fora, de quanto tenho, de
quanto posso, e de quanto sou, tudo empreguei e dispendi contigo. Criei-te
quando não eras, tirando-se dos abismos do não ser ao ser; dei-te
um corpo formado com minhas mãos, o mais perfeito; dei-te uma alma
tirada de minhas entranhas, e feita à imagem e semelhança; ornei,
e habilitei um e outro, com as mais excelentes potências, e os mais
nobres sentidos, para que fossem os instrumentos com que me servisses e amasses;
e tu, ingrato, que fizeste? Dá conta dos cuidados, pensamentos e máquinas
do teu entendimento; das lembranças e esquecimentos da tua memória;
dos desejos e afeições da tua vontade. Dá conta de todos
os passos de teus pés, de todas as obras de tuas mãos, de todas
as vistas dos teus olhos, de todas as atenções dos teus ouvidos,
de todas as palavras de tua língua, e de tudo mais que tu sabes, e
não cabe em palavras. Depois de criado, que seria de ti, se eu com
o mesmo poder e providência te não conservara? De repente perderias
o ser e tornarias ao nada donde saíste. Para tua conservação,
te dei não só o necessário, senão o superabundante,
e tanta imensidade de criaturas no céu e na terra, todas sujeitas a
ti, e ocupadas em teu serviço. Dei-te um anjo, que de dia e de noite,
velando e dormindo, te assistisse e guardasse, como sempre assistiu e guardou.
Agora te revelo os perigos secretos e ocultos, de que foste livre por seu
meio; e tu lembra-te dos públicos e manifestos, que experimentaste
e viste. Quantos pereceram em outros muito menores? Quantos mais moços
que tu, acabaram de mortes desastradas e repentinas, sem tempo, nem lugar
de arrependimento e emenda que eu, sempre te concedi? Dá, pois, conta
da vida, dá conta da saúde, dá conta dos anos, dá
conta dos dias, dá conta das horas, sendo mui poucas, e contadas as
que não empregaste em me ofender.

Até agora te referi as dívidas exteriores do poder; agora me
responderás às interiores e pessoais do amor, e do muito que
fiz e padeci por ti. Por ti depois de te fazer à minha imagem e semelhança,
me fiz à tua, fazendo-me homem; por ti nasci nos desamparos de um presépio;
por ti fui desterrado ao Egito; por ti vivi trinta anos sujeito à obediência
de um oficial, ajudando o trabalho de suas mãos com as minhas, e acompanhando
o suor do seu rosto com o meu; por ti, e para ti, saí ao mundo a pregar
o reino do céu; por ti nas pereginações de toda a Judéia
e Galiléia, sempre a pé, e muitas vezes descalço, padeci
fomes, sedes, pobrezas, sem ter lugar de descanso, nem onde reclinar a cabeça,
por ti recebi ingratidões por benefícios, ódios por amor,
perseguições por boas obras; por ti suei sangue; por ti fui
preso; por ti fui afrontado; por ti esbofeteado; por ti cuspido; por ti açoitado;
por ti escarnecido; por ti coroado de espinhos; por ti, enfim, crucificado
entre ladrões, aberto em quatro fontes de sangue, atormentado e afligido
de angústias e agonias mortais, e ainda depois de morto, atravessado
o coração com uma lança. De tudo isto pedi por ti perdão
a Deus, e o pago que tu me deste, foi não me perdoar tornando-me a
crucificar tantas vezes, quantas gravemente pecaste, como te mandei declarar
pelo meu apóstolo: Rursum crucifigentes Filium Dei. Se as gotas de
sangue que derramei por ti, tiveram conta, nem de uma só me pudera
dar boa conta, ainda que padeceras por mim mil mortes; mas os milhares e os
milhões foram das vezes que pisaste o mesmo sangue, sacrificando o
infinito valor e merecimento dele, aos ídolos do teu apetite.

Ainda em certo modo a maior dívida, a de que agora te pedirei conta
é a da vocação. Reservei o saíres à luz
deste mundo para o tempo da lei da graça; chamei-te à fé
antes de me poderes ouvir, antecipou-se o meu amor ao teu uso da razão,
e fiz-te meu amigo pelo batismo. Com o leite e doutrina da Igreja, te dei
o verdadeiro conhecimento de mim, benefício que por meus justos juízos
em quatro e cinco mil anos não concedi a tantos, e de que ainda nos
teus dias careceram muitos. Não tiveste juízo, nem consideração,
para ponderar e pasmar, de que tendo a minha justiça razões
para condenar um gentio que me não conheceu, as tivesse minha misericórdia
para perdoar a um cristão, que conhecendo-me, tanto me ofendia. Perdida
a graça da primeira vocação, caíste, e tornei-te
a chamar, e dar a mão, para que te levantasses; levantado tornaste
a reincidir uma e tantas vezes, e eu, posto que tão repetidamente ofendido,
e com tão continuadas experiências da pouca firmeza de teus propósitos,
e falsidade de tuas promessas, não cessei de te oferecer de novo meus
braços, e te receber sempre com eles abertos; até que infiel,
rebelde, e obstinado, cerrando totalmente os ouvidos a minhas vozes, te deixaste
jazer no profundo letargo da impenitência final. Dá agora conta
de tantas inspirações interiores minhas, de tantos conselhos
dos confessores e amigos, de tantas vozes e ameaças dos pregadores,
que ou não querias ouvir, ou ouvias por curiosidade e cerimônia;
e também ta pudera pedir, de eu mesmo te não chamar eficazmente
na hora da morte, porque o desmereceste na vida.

Sete fontes de graça deixei na minha Igreja (que é o benefício
da justificação) para que nelas se lavassem as almas de seus
pecados, e com elas se regassem e crescessem nas virtudes. Em uma te facilitei
em tal forma o remédio para todas as culpas, que só com as confessar
te prometi o perdão, que tu não quiseste aceitar, fugindo da
benignidade daquele sacramento como rigoroso, e amando mais as mesmas culpas,
que estimando o perdão. Em outra te dei a comer minha carne e a beber
meu sangue, e juntamente os tesouros infinitos de toda a minha divindade,
em penhor da glória e bem-aventurança eterna, que foi o altíssimo
fim para que te criei. Desprezaste o fim, não quiseste usar dos meios;
e porque escolheste antes estar para sempre sem mim no inferno, que comigo
no céu; tua é, e não minha, a sentença que logo
ouvirás com os outros mal-aventurados: Ite maledicti in ignem aeternum.

XI

Aqui parou a conta das dívidas, que era a última e maior partida
que só estava para as contas. E aqui virão a parar todos os
que tão descuidados vivem de as dar boas naquele dia. ó dia
de ira! ó dia de furor! ó dia de vingança! ó dia
de amargura! ó dia de calamidade! ó dia de miséria! ó
dia estupendo! ó dia tremendo! ó dia sobre toda a compreensão
terrível! Assim lhe chamam, com horror, os clamores dos profetas, pela
estreitíssima conta que nele se nos há de pedir a todos. E se
tudo passa para a vida, e nada passa para a conta; que cegueira, e que insânia
é a dos que todos seus cuidados empregam no que passa, sem memória
nem cuidado do que não há de passar? Pode caber em entendimento
com juízo, maior loucura, que trabalhar de dia e de noite um homem,
e cansar-se, e desvelar-se e matar-se, pelo que passa com a vida, e há
de deixar com a morte, e não ser o único cuidado e desvelo,
tratar só da que há de levar consigo, e do que só se
lhe há de pedir conta? Ouçam estes loucos a Santo Agostinho:
Peccas propter pecuniam? hic dimittenda est. Peccas propter villam? hic dimittenda
est. Peccas prapter mulierem? hic dimittenda est. Et quidquid est propter
quod peccas, hic dimittis, et ipsum peccatum, quod committis, tecum portas.
Pecas, homem, por amor do dinheiro? e cá há de ficar o dinheiro.
Pecas por amor da herdade? e cá há de ficar a herdade. Pecas
por amor da mulher, ou tua, ou não tua? e cá há de ficar
a mulher. Mas havendo de ficar cá tudo aquilo por que pecaste, o que
só hás de levar contigo é o pecado. Toda a matéria
dos pecados cá há de ficar, porque passou com a vida, e só
o pecado há de ir conosco, porque não passou para a conta.

Parece-me, que para desenganar a quem tem fé, basta a evidência
destes pontos. O que só quisera alcançar de Deus, e pedir aos
que me ouvirem, é que tomem este desengano enquanto vivem neste mundo,
e não 0 guardem para o inferno. Descreve o Espírito Santo no
livro da Sabedoria, uma prática que tiveram entre si no inferno os
que lá foram, depois de ter gastado a vida em tudo o que passa com
a mesma vida; e o que falavam, era desta maneira: Ergo erravimus a via veritatis,
et sol intelligentiae non est ortus nobis. O certo é (diziam) que erramos
o caminho, e que andávamos às escuras, e que em tantos dias
quantos vivemos, nunca nos amanheceu a luz do sol. Quid nobis profuit superbia:
que nos aproveitaram a soberba, e glória vã das honras do mundo?
Divitiarum jactantia quid contulít nobís: de que nos serviu
a jactância das riquezas? E os gostos, delícias e passatempos
em que elas se consomem, de que nos aproveitaram? Todas essas coisas passaram
como a sombra: Transierunt omnia illa tanquam umbra. Todas passaram como o
correio, que sempre caminha, e não pára: Tanquam nuntius percurrens.
Todas passaram como a nau que vai cortando as ondas, e depois que passou,
se lhe não acha rasto: Et tanquam navis, quoe pertransit fluctuantem
aquam; cujus, cum praeterierit, non est vestigium invenire. Todos passaram
como a ave, que voando e batendo o leve vento, que corta, nem sinal deixa
do seu caminho: Aut tanquam avis quoe transvolat in aere verberans levem ventum,
et nullum signum invenitur itineris illius. Todas passaram como a seta despedida
do arco ao lugar destinado, que dividindo o ar, o qual logo se cerra e une,
não se pode conhecer por onde passou: Aut tanquam saggitta emissa in
locum destinatum, divisus aere in se reclusus est, ut ignoretur transitus
ilIíus . Agora, agora, conhecem bem no inferno, e não acham
comparação, com que bastantemente declarar a suma velocidade
com que todas as coisas passam, e com a mesma pressa (dizem) passamos nós,
porque apenas nascidos logo deixamos de ser, e sem deixar sinal algum de virtude,
em nossos próprios vícios nos consumimos: Sic et nos nati continua
desivimus esse: et virtutis quidem nullum signum voluimus ostendere: in malignitate
autem nostra consumpti sumus .

Isto conferiam entre si naquela triste e tarde desenganada conversação
os miseráveis condenados, os quais para maior dor, levantando os olhos
ao céu, e vendo lá gloriosos e triunfantes os que trataram mais
da estreiteza da conta, que da largueza da vida: Paenitentiam agentes, et
proe angustia spiritus gementes ; com vozes quelhes saíam do interior
angustiado, e com arrependimento e gemidos, que já não aproveitavam
, dicentes infra se, diziam entre si e consigo: que é o que diziam?
Hi sunt quos habuimus aliquando in derisum, et in similitudinem impraperii.
Aqueles são os de que nós zombávamos, rindo-nos dos seus
escrúpulos de consciência, e das penitências e rigores
com que mortificavam seus corpos, quando nós só tratávamos
de regalar os nossos, e satisfazer nossos apetites; e agora vemos que eles
foram os prudentes e sisudos, e nós os loucos e insensatos, pois eles,
pondo os olhos no fim e no prêmio de que nós não fizemos
caso, estão gozando da glória entre os santos, coma nós
padecendo as penas entre os condenados: Nos insensati vitam illorum cestimabamus
insaniam, et finem illorum sine hanare: ecce quomodo computati sunt inter
filios Dei, et inter santos sor illorum est . Tais são as coisas que
disseram, conclui o Espírito Santo, e tais os discursos que fizeram
no inferno os maus quando lá se viram. Talia dixerunt in inferno hi
qui peccaverunt . Vejamos agora, e consíderemos bem, o que por misericórdia
de Deus ainda temos tempo e vida, se é melhor aproveitar deste desengano
neste mundo, ou guardá-lo para o inferno, e se folgaremos no dia da
conta de ter imitado os prudentes, que eternamente hão de gozar a vista
de Deus no céu, ou acompanhar as insensatos, que hão de padecer
as penas do inferno por toda a eternidade?

Sermão da Primeira Oitava de Páscoa

Na ocasião em que chegou a nova de se ter desvanecido a esperança
das minas, que com grandes empenhos se tinham ido descobrir.
Qui sunt hi sermones, quos confertis ad invicem ambulantes, et estis tristes?
Nos autem sperabamus quia ipse esset redempturus Israel (1).

§ I

A tragédia dos dois primeiros atos da famosa comédia de Páscoa.
As lágrimas da Madalena, a tristeza dos discípulos de Emaús
e o malogro da expedição em busca das minas. Assuntos do sermão:
Muito melhor foi não se descobrirem as minas esperadas, que descobrirem-se;
em lugar das minas incertas, que se não descobriram, descobrirá
Deus outras certas, e muito mais ricas. Em um dia tão alegre como o
de Páscoa, em que, pela gloriosa Ressurreição de Cristo,
Redentor nosso, se revogou com a mesma glória a antiga sentença
de morte fulminada contra Adão e Eva, digna coisa de admirar é
que nem nas filhas de Eva, nem nos filhos de Adão, se achem efeitos
de alegria. Amanheceu o sol neste formoso dia mais arraiado que nunca, acrescentando
tantos raios a seus naturais resplendores, quantos tinha eclipsado e escondido
no dia da Paixão: e que é o que achou no mundo o mesmo sol,
ou quando nasceu no Oriente, ou quando se foi pôr no Ocaso? Quando nasceu
achou a terra orvalhada das lágrimas da Madalena, como se ela fora
a aurora daquele dia: Mulier, quid ploras (2)?

E quando se ia pôr, achou a tristeza dos dois discípulos de
Emaús: Et estis tristes(3) – como se neles se multiplicara, coberta
de sombras, a estrêla da tarde, ou Vésper: Quoniam advesperascit(4).
Tão trágicos como isto foram os dois primeiros atos ou aparências
desta famosa comédia!

Para eu vos declarar quão naturais fossem as causas de um e outro
sentimento, não me é necessário ir buscar o exemplo mais
longe, pois a fortuna nestes mesmos dias vo-lo trouxe a casa. Não é
grande desconsolação buscar, e não achar? Pois essa era
a desconsolação da Madalena e das outras Marias: Non invento
corpore ejus(5). Não é bastante motivo de tristeza esperar,
e não suceder o que se esperava? Pois essa era a causa por que os dois
discípulos iam tristes: Non autem sperabamus(6). Enquanto os cuidados
e esperanças se põem na terra, não podem faltar desconsolações
e tristezas à terra. As Marias desconsoladas, porque não acharam
o que buscavam debaixo da terra: Veniunt ad monumentum(7) – e os discípulos
tristes, porque lhes não sucedeu o que esperavam para remédio
da sua terra: Quia ipse esset redempturus Israel(8).

Tais considero, senhores, nesta ocasião, ou tais são, ainda
que se não considerem, as causas que parece nos fizeram menos alegres
estas páscoas, as quais eu desejo a todos, e para todos peço
a Deus tão liberais dos bens do céu, e também dos que
não são do céu, quando o mesmo Senhor sabe que nos convém.
Foram-se buscar debaixo da terra as minas de ouro ou prata, e, não
se tendo achado depois de tanto trabalho, assim como as Marias se desconsolaram
de verem malogradas as suas diligências, as suas prevenções,
e ainda as suas despesas: Emerunt aromata(9) – assim confesso vos pode desconsolar
o muito que nesta infeliz jornada se tem gasto de tempo, de cuidado e de fazenda.
E assim como os discípulos iam tristes por ver baldadas e perdidas
as esperanças, com que desejavam ver melhorada a sua pátria
e restaurado o seu reino: Quia ipse esset redempturus Israel – assim vos concedo
que é para entristecer e sentir não se ter conseguido a opulência
própria, e da monarquia, que das mesmas minas desvanecidas, com tanto
boato se esperavam. É, contudo, tão bom consolador Cristo, e
tão apressado, que na mesma manhã enxugou as lágrimas
das Marias, e na mesma tarde serenou a tristeza dos discípulos, como
eu também determino aliviar a vossa hoje.

Resumindo-se, pois, à história do Evangelho, que, sendo sucedida
ontem, reservou a Igreja para este segundo dia, dois afetos ou duas paixões
naturais do ânimo consolou ou curou Cristo, Senhor nosso, nos dois discípulos
de Emaús: a tristeza declarada e a esperança perdida: a tristeza
declarada: Et estis tristes; a esperança perdida: Nos autem sperabamus.
E sendo estes os mesmos dois afetos com que os corações da nossa
cidade se acham menos quietos e satisfeitos, assim como o Senhor, mostrando-se
vivo aos discípulos, sepultou a sua tristeza e ressuscitou a sua esperança,
assim eu, para consolar uma e alentar outra, vos mostrarei vivamente duas
verdades. A primeira, que muito melhor vos esteve não se descobrirem
as minas esperadas que descobrirem-se. A segunda que, em lugar das minas incertas,
que se não descobriram, vos descobrirá Deus outras certas, e
muito mais ricas. Ambos estes assuntos parecem temporais, como também
eram por causas temporais a tristeza e desesperação dos dois
discípulos à ida; mas nem por serem temporais deixou de as consolar
o divino Mestre, para as converter a elas e a eles em espirituais, como tornaram
à volta. O mesmo pretendo eu com a graça do céu, que
me ajudareis a alcançar: Ave Maria.

§ II

Nos autem sperabamus: Esperávamos de ter minas, e estamos desenganados
de que as não há. Muitas vezes está a nossa perdição
em sucederem as coisas como esperamos. Maldição de Jó
à noite. O ouro e a prata as mais das vezes são como os dois
cabritinhos de Jacó, com que enganou ao pai cego para levar a benção
de Esaú.

Qui sunt hi sermones, quos confertis ad invicem ambalantes, et estis tristes?

Que práticas são estas que ides conferindo entre vós,
e de que estais tristes? – Esta foi a pergunta que fez Cristo, Redentor nosso,
aos dois discípulos que iam de Jerusalém para Emaús.
E se eu fizesse a mesma no nosso Belém, e perguntasse às vossas
conversações por que estais tristes, é certo que me havíeis
de responder como eles responderam: Nos autem sperabamus: Esperávamos
de ter minas, e estamos desenganados de que as não há, ou esperávamos
que se descobrissem, e não se descobriram. E se eu instasse mais em
querer saber o discurso ou conseqüência com que sobre este desengano
fundais a vossa tristeza, também é certo havíeis de dizer,
como eles disseram, que no sucesso que se desejava e supunha, estavam livradas
as esperanças da redenção, não só desta
vossa cidade, e de todo o Estado, senão também do mesmo Reino:
Nos autem sperabamus quia ipse esset redempturus Israel. Ora, ouvi-me atentamente,
e – contra o que imagináveis, e porventura ainda imaginais – vereis
como nesta, que vós tendes por desgraça, consistiu a vossa redenção,
e de quantos trabalhos, infortúnios e cativeiros vos reuniu e vos livrou
Deus em não suceder o que esperáveis.

Primeiramente, havemos de supor que muitas vezes está a nossa perdição
em sucederem as coisas como esperamos, e, pelo contrário, está
o nosso remédio e a nossa conservação em não terem
o sucesso que se pretendia. Em uma maldição muito encarecida
de Jó, temos o mais claro e mais notável espelho que se pode
imaginar desta verdade: Pereat nox, in qua dictum est: Conceptus est homo!
Expectet lucem, et non videat, nec ortum surgentis aurorae (Jó 3, 3.
9): Maldita seja a noite em que fui concebido – diz Jó; – espere pela
luz, e nunca amanheça; espere pela aurora, e nunca venha. – Parecer-vos-á
– como pareceu a quem o disse – que esta era a maior desgraça que podia
suceder à noite, e a maior praga que se lhe podia rogar, mas, bem considerando
o caso, não era senão a maior dita e a maior ventura. O maior
inimigo que tem a noite é a aurora: enquanto não amanhece, conserva-se
e persevera a noite; tanto que amanheceu, ficou acabada e perdida. Logo, aquela
que parecia maldição não era maldição,
antes era o maior bem, a maior felicidade que se podia desejar e imprecar
à noite, porque, se a noite esperasse pela manhã, em lhe suceder,
como esperava, estava a sua perdição e o seu fim, e em lhe não
suceder, como esperava, estava a sua conservação, o seu aumento
e o seu ser.

O mesmo digo, senhores, da esperança das vossas minas, a qual eu nunca
tive por bem fundada, e, perguntado, assim o disse. Lá se mostrou ouro
e prata, mas estes dois metais as mais das vezes são como os dois cabritinhos
de Jacó, com que enganou ao pai cego para levar a bênção
de Esaú (10). Disse Jacó que o guisado que presentava ao pai
era da caça, e ele não era do mato, senão do rebanho.
Assim é o ouro e prata que lá levam: dizem que foi cavado da
beta, e ele é fundido da bolsa. Por isso as minas não são
minas para quem faz as despesas, e só são minas, como a bênção
de Jacó, para os mesmos que as fingiram, e vêm ricos de mercês
e salários, e cheios de jurisdições e onipotência,
com que se fazem mais ricos. Mas, ou se não descobrissem as minas,
porque as não há, ou porque, havendo-as, não quis Deus
que se descobrissem, vede de quantos perigos e trabalhos vos remiu e livrou
a misericórdia e providência divina em não suceder este
descobrimento como esperáveis!

§ III

O que sucede ao campo que esconde tesouros. Em que param as amizades, as
pazes e as confederações em havendo descobrimento de tesouros.
Conselho das nações de Gog e Magog contra os hebreus. Advertência
de Jeremias. Os tesouros de Ezequias e a cobiça dos babilônios.
As minas de ouro e prata de Espanha e a conquista romana.

E para que comecemos pelos perigos que podem vir de fora e de mais longe,
se este Estado, sem ter minas, foi já tão requestado e perseguido
de armas e invasões estrangeiras, que seria se tivesse esses tesouros?
Lá traz Cristo, Senhor nosso, a comparação de um campo,
que era cultivado somente na superfície da terra, fértil de
flores e frutos, porém, sabendo um homem, acaso, que no mesmo campo
estava enterrado e escondido um tesouro: Thesauro abscondito in apro (Mt 13,
44) – o que fez com todo o segredo e diligência foi ir logo comprar
o campo a todo custo, e deste modo ficou senhor, não do campo por amor
do campo, senão do campo por amor do tesouro. De sorte que toda a desgraça
do campo em mudar de senhorio, e passar de um dono a outro dono, esteve em
ter tesouro dentro em si, e saber-se que o tinha. Contentemo-nos de que nos
dêem os nossos campos pacificamente o que a agricultura colhe da superfície
da terra, e não lhes desejemos tesouros escondidos nas entranhas, que
espertem a cobiça alheia, principalmente quando os mesmos campos não
estão cercados de tão fortes muros que lhe possam facilmente
defender entrada.

Conta a Sagrada Escritura, no capítulo trinta e oito de Ezequiel –
ou seja história do passado, ou profecia do futuro – que, sabendo as
nações de Gog e Magog que os hebreus viviam ricos e descansados
nas suas terras, fizeram conselho entre si de os irem conquistar, fundando
esta deliberação em dois motivos: o primeiro, que tinham ouro
e prata; o segundo, que não tinham muros. Um motivo os excitou à
conquista, e outro lha facilitou. O que os excitou foi o ouro e a prata: Ecce
ad diripiendam praedam congregasti multitudinem tuam, ut tollas argentum et
aurum(11) – e o que os facilitou foi serem terras habitadas, sem muros nem
fortificações: Ascendam ad terram absque muro; vectes, et portae
non sunt eis(12). E terras que têm ouro e prata, e não têm
muros fortes que as defendam, naturalmente estão expostas à
cobiça e invasão dos inimigos, porque o ouro e a prata que têm,
excita a cobiça, e os muros e fortificações que não
têm, facilitam a invasão.

É verdade que os hebreus naquele tempo estavam muito seguros com a
paz das outras nações, e já livres de suas armas: Ad
terram, quae reversa est a gladio ad quiescentes, habitantesque secure(13).
Mas esta segurança é muito enganosa. Onde há nova ocasião
de interesse, não há confederação que dure. Ouvi
um dito notável de Jeremias: Nunquid foederabitur ferram ferro ab aquilone,
et aes (Jer 15, 12)? Cuidais que o ferro do norte – do norte diz nomeadamente:
ab aquilone – cuidais que o ferro do norte se pode confederar com outro ferro,
e o seu bronze com outro bronze? – Enganais-vos – diz o profeta àqueles
com quem falava – e o mesmo vos certifico eu, sem ser profeta. Livrou-vos
Deus da prata, porque vos quis livrar do ferro. A arte, com a prata, liga
os outros metais; e a cobiça, com a prata, desfaz e rompe todas as
ligas.

Confederados estavam os israelitas com os babilônios, e era tanta a
amizade e boa correspondência entre um e outro rei, que Baradac, rei
de Babilônia, soberbíssimo e potentíssimo, sabendo que
Ezequias, rei de Israel, tinha convalescido daquela grave enfermidade em que
esteve à morte, lhe mandou embaixadores com grandes presentes a lhe
dar o parabém da saúde. Quis-se mostrar agradecido Ezequias,
e, em sinal de benevolência e confiança, levou os mesmos embaixadores
ao mais secreto do seu palácio, e ali lhes descobriu e manifestou todos
os seus tesouros. Ele e eles ficaram mui satisfeitos; mas não eram
passadas vinte e quatro horas, quando Deus mandou anunciar a Ezequias as perigosas
e tristes conseqüências daquele descobrimento: Ecce dies venient,
et auferentur omnia, quae in domo tua sunt, et quae thesaurizaverunt patres
tui usque ad diem hanc, in Babylonem; non relinquetur quidquam, dicit Dominus.
Et de filiis qui exibunt de te, quos genueris, tollent, et erunt eunuchi in
palatio regis Babylonis (Is 39, s): E vós, Ezequias, fostes tão
inconsiderado, que manifestastes os vossos tesouros aos embaixadores de Babilônia?
Pois sabei, diz Deus, que os babilônios os virão buscar, e não
só se farão senhores dos mesmos tesouros, sem deles deixar coisa
alguma, senão que até a vossos próprios filhos cativarão
e levarão presos a Babilônia, para lá se servirem deles.-
Eis aqui em que param as amizades, as pazes e as confederações,
em havendo descobrimento de tesouros. Dai graças a Deus de se frustrarem
as vossas esperanças, e não lhe sejais ingratos com vos entristecer,
pois assim vos quis livrar de tamanhos perigos.

Se em Espanha não houvera minas de ouro e prata – das quais, diz Estrabo,
que eram as mais ricas do mundo – nunca os romanos iriam a lhe fazer guerra
de tão longe, nem com tanto empenho e pertinácia. Assim o dá
a entender a mesma Escritura Sagrada no primeiro livro dos Macabeus, referindo
as conquistas dos romanos e a fama das suas vitórias: Et quanta fecerunt
in regione Hispaniae, et quod in potestatem redegerunt metalla argenti et
auri, quae illic sunt(14). Não diz que conquistaram os homens, senão
as minas, porque as minas foram o motivo da guerra e da conquista. Como a
gente de Espanha era tanta, tão remota e tão forte, gastou a
potência romana na pertinência desta conquista duzentos e trinta
e cinco anos – vede se serão cá necessários tantos!
– até que finalmente a terra, as minas e os moradores, ficaram
todos sujeitos ao jugo e domínio estranho, presidiados de suas legiões,
tributários à sua cobiça, governados e oprimidos da sua
tirania, e o mesmo ouro e prata – que, como diz o Espírito Santo,
muitas vezes é redenção do homem – para eles foi
a causa da servidão, e o reclamo que chamou de tão longe e lhes
meteu em casa o cativeiro.

§ IV

Um dos maiores castigos que Deus podia dar ao Maranhão era descobrirem-se
nele minas. Quais são os escondidos de Deus, de que fala Davi? As minas
e seus descobrimentos são castigos escondidos debaixo de aparências
contrárias. As minas do Cabo de S. Vicente, o promontório sagrado,
sepulcro de Tubal e de Hércules.

Mas, dado que as minas tão esperadas e apetecidas não tivessem,
por conseqüência de sua fama, estes perigos de fora, bastava a
consideração dos trabalhos e misérias domésticas,
que com elas se vos haviam de levantar de debaixo dos pés, para que
o vosso juízo, se o tivésseis, tratasse antes de sepultar as
mesmas minas depois de achadas, que procurar de as desenterrar e descobrir,
ainda que foram muito certas. Um dos maiores castigos que Deus podia dar a
esta cidade, e a este Estado, era descobrirem-se nele minas. E não
sou eu o que o digo, senão a prudência e verdade de quem se não
podia enganar.

No Salmo dezesseis pede Davi a Deus lhe faça justiça, e dê
a seus inimigos o castigo que merecem, pela desumanidade de feras com que
perseguiam sua inocência. E, depois de dizer que Deus tinha ouvido sua
petição, profetiza o castigo que o justo Juiz havia de dar aos
mesmos inimigos; e como se já lhos tivera dado, refere-o assim em poucas
palavras: De absconditis tuis adimpletus est venter eorum (Sl 16, 14): Fartastes,
Senhor, a sua fome, com os encher dos vossos escondidos. – Entram agora os
intérpretes a examinar quais são os escondidos de Deus. E o
sentido mais próprio e mais literal, com Símaco e outros, é
que os escondidos de Deus são as minas de ouro e prata. O ouro e a
prata tem-nos Deus escondidos lá no profundo da terra, onde os criou,
e quando o mesmo Senhor é servido que se descubram as minas, então
aparecem e se manifestam estes escondidos de Deus: De absconditis tuis. –
Mas se Davi tinha pedido a Deus que lhe fizesse justiça, e castigasse
a seus inimigos, e o mesmo Deus lhe tinha prometido de o fazer assim e de
os castigar, como diz que lhes há de descobrir o ouro e a prata que
tem escondidos nas minas, e os há de fartar delas: De absconditis tuis
adimpletus est venter eorum? – Mais apertadamente ainda. Neste salmo, que
todo é profético, assim como na pessoa de Davi é figurado
Cristo, assim nas perseguições de Davi são significadas
a crueldade e ingratidão com que Cristo foi tratado em vida por seus
inimigos, e as maldades e pecados com que ainda hoje é desacatado e
ofendido. Pois, em prêmio dessas ofensas, dessas maldades e desses pecados
descobre Deus os seus tesouros que tem escondidos debaixo da terra, e enche
e farta de ouro e prata aos que estão famintos de minas? Sim, porque
essas minas que tanto se desejam e estimam, ordinariamente não as descobre,
nem as dá Deus por merecimentos, senão em castigo de grandes
pecados. Ouvi o comento de todos os padres gregos sobre o mesmo texto, divididos
em duas opiniões, mas ambas concordes no que tenho dito: Illud autem
de absconditis, alii quidem intellexerunt de suppliciis, alii vero de fussilibus
metallis (15): Aqueles que o profeta chama os escondidos de Deus, uns dos
santos padres entenderam que significam castigos, e outros que significam
minas – e uns e outros não discrepam, mas concordam admiravelmente
na mesma diferença de um e outro sentido. Por quê? Porque as
minas, quando Deus as descobre, são castigos; e um dos maiores castigos
que Deus dá por pecados é o descobrimento de minas: De metallis
fussilibus, de supliciis.

E notai a misteriosa propriedade com que este gênero de castigos se
chamam também os escondidos de Deus: De absconditis tuis – porque Deus
umas vezes castiga com castigos manifestos, e outras vezes com castigos escondidos.
Os castigos manifestos são os que todos temem e reconhecem por castigos,
como são as fomes, as pestes, as guerras, e outras calamidades temporais;
os castigos escondidos e ocultos são aqueles que não se reputam
nem temem como tais, antes se estimam e desejam como felicidades e boas fortunas:
e deste gênero são as minas e seus descobrimentos. São
castigos escondidos debaixo de aparências contrárias, porque
se apetecem, estimam e festejam enganosa e enganadamente, sendo certo que
debaixo do preço e esplendor do ouro e prata se ocultam e escondem
grandes trabalhos, aflições e misérias, com que a justiça
divina, por pecados, quer castigar e açoitar as mesmas terras onde
as veias destes metais se descobrem. Deus tanto pode açoitar com varas
de ferro, como com varas de ouro e de prata; antes estes açoites são
muito mais pesados, quanto a prata e ouro pesam mais que o ferro.

Aquela ponta de terra montuosa, que hoje chamamos Cabo de S. Vicente, antigamente
se chamava Promontório Sagrado, por estar ali o sepulcro de Tubal,
primeiro pai da nossa nação, e também o de Hércules,
um dos mais famosos e amados reis da Lusitânia. Havia minas neste promontório,
as quais, por causa da mesma veneração, também era vedado
cavarem-se; e dizem as histórias daquele tempo que só em um
caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do ouro e da prata das ditas
minas. Mas qual era este caso? Coisa verdadeiramente admirável, e muito
digna de se notar. O caso era quando caía do céu algum raio
que penetrasse a terra, e descobrisse os preciosos metais que nela estavam
escondidos. De sorte que naquela terra, também nossa, o abrirem-se
minas e o caírem raios do céu, tudo vinha junto, como se o céu
nos pregara que o descobrimento de minas na terra não são felicidades
e boas fortunas, como se imagina, senão execuções da
ira de Deus, e castigos do céu.

§ V

Os martírios e horrores das minas de Potosi. Os anacoretas das minas
de ouro e prata. Quais haviam de ser enterrados vivos naquelas furnas caso
se descobrissem as minas? A pior de todas as ameaças: os ministros
reais e quantos oficiais de justiça, de fazenda e de guerra que viriam,
mandados ao Maranhão, para extração, segurança
e remessa do ouro e da prata.

E para que vos não pareça que são isto encarecimentos
lenitivos, inventados para divertir a tristeza, e dar espécie à
consolação, troquemos este ouro e prata em miúdos, e
vejamos os proveitos e interesses que do descobrimento de minas haviam de
resultar à vossa terra, no caso em que se tivessem achado. Eu nunca
fui ao Potosi, nem vi minas, porém nos livros que descrevem o que nelas
passa, não só causa espanto, mas horror, ler a fábrica
e as máquinas, os artifícios e a força, o trabalho e
os perigos com que as montanhas se cavam, e as betas se seguem, e, perdidas,
se tornam a buscar; os encontros de pedernais impenetráveis, ou de
águas subterrâneas, que rebentam das penhas, as quais ou se hão
de esgotar com bombas, ou abrir-lhes novo caminho, furando por outra parte
os mesmos montes; o estrondo dos maços, das cunhas, das alavancas,
e dos outros instrumentos de ferro, alguns dos quais têm cento e cinqüenta
libras de peso, com que se batem, cortam e arrancam as pedras, ou se precipitam
com maior perigo do alto: e tudo isto naquelas profundíssimas concavidades,
ou infernos, onde nunca entrou o raio do sol, alumiados malignamente aqueles
infelizes ciclopes só com a luz escassa e contrafeita de alguns fogos
artificiais, cujo hálito, fumo e vapor ardente lhes toma a respiração,
e muitas vezes os afoga.

Faz aqui padecer a cobiça muito mais do que profetiza Isaías
que fará em algum tempo a penitência: Introibunt in speluncas
petrarum, et in voragines terrae; projiciet homo idola argenti sui, et simulacra
auri sui, quae fecerat sibi ut adoraret, talpas et vespertiliones (Is 2, 19
s): Meter-se-ão os homens pelas covas e pelas concavidades mais profundas
da terra, não para buscar ouro ou prata, mas, abominando e lançando
de si os ídolos, que do ouro e da prata tinham feito, toupeiras e morcegos.
– Vede agora estas mesmas figuras como as ajunta e introduz toda a cobiça
neste escuro e horrendo teatro da paciência sem virtude. Ali os penitentes
arrependidos entram pelas grutas e concavidades da terra; aqui os cobiçosos
e enganados também se metem, não pelas covas que a terra tem
aberto, senão pelas que eles cavam e rompem à viva força,
muito mais penetrantes e profundas. Ali desprezam-se os ídolos de ouro
e prata, conhecida sua mentira e vaidade; aqui, estima-se e adora-se tanto
a mesma vaidade que, por novos e ocultos caminhos de tantos estádios,
se vai buscar e desenterrar o ouro e prata, para se fundirem e lavrarem ídolos.
Ali as figuras dos ídolos são toupeiras e morcegos: talpas et
vespertiliones – e aqui os homens, desfigurados como toupeiras, vivem debaixo
da terra, sem ter olhos para ver a luz, e como morcegos fogem do sol e do
dia, e se vão mais sepultar que viver naquela escura e perpétua
noite. Ainda tem outra propriedade, porque uns, como toupeiras, com os pés
e mãos na terra andam cavando, revolvendo e mudando continuamente,
e outros, como morcegos suspensos no ar, estão picando as pedras e
sangrando as suas veias com o corpo e com a vida pendente de uma corda. Houve
jamais algum anacoreta, dos que habitavam as covas, que fizesse tal penitência?
Pois ainda não ouvistes o mais temeroso dela.

Solapadas por baixo aquelas grandes montanhas, todo o peso imenso delas se
sustenta sobre pilares da mesma matéria, que vão deixando a
espaços, os quais, se enfraquecem ou quebram, como acontece muitas
vezes, qual é o efeito? Toda a montanha, ou grande parte dela, cai
de repente, e a multidão que andava desenterrando a prata, fica sepultada
com ela, em um momento, sem outra notícia de tamanho e tão miserável
estrago, que a que deu aos de muito longe o estrondo da ruína, e o
tremor de toda a terra. Isto é o que se escreve, e se escreve muito
menos do que verdadeiramente é. Baste, por prova, que a sevícia
e crueldade dos Neros e Dioclecianos comutavam a morte e os tormentos dos
cristãos em os mandar servir e trabalhar nas minas, e a Igreja, que
com tanta dificuldade e consideração examina e avalia os merecimentos
dos santos, canonizava e venerava por mártires aos que nelas acabavam
a vida.

Agora vos pergunto eu: e estes martírios das minas, se as vossas se
descobrissem, quem os havia de padecer? Dos degradados não falo, porque
os que hoje se degradam para o Maranhão, então se haviam de
degradar todos, e muitos mais para as minas. Os cavadores não seríeis
os mais nobres e ricos da terra, mas quem haviam de ser senão os seus
escravos? Quem havia de induzir todos aqueles instrumentos e máquinas
por esses sertões dentro? Quem havia de contribuir o sustento, e levá-lo
aos trabalhadores? Quem havia de cortar e acarretar àquelas serras
estéreis – como são todas – as lenhas para as fornalhas e fundições?
E aqueles lumes perpétuos e subterrâneos, com que óleos
se haviam de sustentar, senão com os dos frutos agrestes que aqui se
estilassem, e não com os dos olivais que de lá viessem? Sobretudo,
se tantos milhares de índios se têm acabado e consumido em tão
poucos anos, e com tão leve trabalho, como o das vossas lavouras, onde
se haviam de ir buscar outros, que suprissem e suportassem quanto tenho dito?
E quais haviam de ser os que, vendo-se enterrados vivos naquelas furnas, não
fugissem para onde nunca mais aparecessem, levando o mesmo medo com eles aos
demais? Tudo isto não o haviam de fazer nem padecer os que passeiam
em Lisboa, porque também estas minas são como as da pólvora,
que sempre arruinam, derrubam e põem por terra o que lhes fica mais
perto. E isto é o que vós desejáveis para a vossa, e
vos entristece, porque não sucedeu como esperáveis?

Ainda falta por dizer o que mais vos havia de destruir e assolar. Quantos
ministros reais, e quantos oficiais de justiça, de fazenda, de guerra,
vos parece que haviam de ser mandados cá, para a extração,
segurança e remessa deste ouro ou prata? Se um só destes poderosos
tendes experimentado tantas vezes que bastou para assolar o Estado, que fariam
tantos? Não sabeis o nome do serviço real – contra a tenção
dos mesmos reis – quanto se estende cá ao longe, quão violento
é, e insuportável? Quantos administradores, quantos provedores,
quantos tesoureiros, quantos almoxarifes, quantos escrivães, quantos
contadores, quantos guardas no mar e na terra, e quantos outros ofícios
de nomes e jurisdições novas se haviam de criar ou fundir com
estas minas, para vos confundir e sepultar nelas? Que tendes, que possuís,
que lavrais, que trabalhais, que não houvesse de ser necessário
para serviço de el-rei, ou dos que se fazem mais que reis com este
especioso pretexto? No mesmo dia havíeis de começar a ser feitores,
e não senhores de toda a vossa fazenda. Nem havia de ser vosso o vosso
escravo, nem vossa a vossa canoa, nem vosso o vosso carro e o vosso boi, senão
para o manter e servir com ele. A roça haviam-vo-la de embargar para
os mantimentos das minas; a casa haviam-vo-la de tomar de aposentadoria para
os oficiais das minas; o canavial havia de ficar em mato, porque os que o
cultivassem haviam de ir para as minas; e vós mesmo não havíeis
de ser vosso, porque vos haviam de apenar para o que tivésseis ou não
tivésseis préstimo, e só os vossos engenhos haviam de
ter muito que moer, porque vós e vossos filhos havíeis de ser
os moídos.

§ VI

A proposição de Horácio: o ouro é melhor não
se achar nem se descobrir que achar-se. As coisas naturais, enquanto estão
no seu próprio lugar, em que as situou a natureza, nenhum dano fazem.
Enquanto no mundo não houve ouro, então foi a Idade de Ouro:
depois que apareceu o ouro no mundo, então começou a Idade de
Ferro. Que quer dizer o Gênesis quando diz que no princípio do
mundo a terra estava vazia e vazia? Se na doação universal dos
bens do Paraíso, Deus entrega como por lista a Adão todas as
outras coisas, as minas de ouro e prata por que deixa de fora? O ouro e a
prata, pedra de toque dos homens. Plínio e a felicíssima idade
em que as coisas se contavam umas por outras: Os discípulos de Cristo
e o perigo do dinheiro.

Parece-me que vos vejo dar assenso a tudo o que digo – que por isso desci
a coisas tão particulares e domésticas – e também creio
que já vossa esperança terá mudado de conceito à
vista deste descobrimento de minerais, tão diversos do que ela desejava
e supunha, os quais é certo que haviam de ser maiores e mais duros
na experiência, do que os pode representar o meu discurso. Fique, logo,
por conclusão que muito maior mercê vos fez Deus, e muito mais
bem afortunados fostes em não se acharem as minas, que se o ouro e
prata, que se supunha e esperava delas, se descobrisse. Ouvi a sentença
de um gentio, fundado só na razão natural e experiência,
sem nenhum princípio de fé, que a nós nos devia levantar
mais da terra: Auram irrepertum, et sic melius situm cum terra celat: O ouro
– diz Horácio – é melhor não se achar nem se descobrir,
que achar-se: auram irrepertum. E por que? Porque, enquanto a terra o esconde
e encobre: cum terra celat – está ele no sítio e lugar que lhe
deu a natureza, que é o melhor: et melius situm. – Excelente razão.
As coisas naturais, enquanto estão no seu próprio lugar em que
as sitiou a natureza, nenhum dano fazem; tiradas dele, são muito danosas.
A água no seu centro não pesa; o fogo na sua esfera não
queima; a terra, se sobe ao ar, faz raios; o ar, se se mete debaixo da terra,
faz terremotos, derruba casas e cidades; assim também o ouro e prata
das minas. Enquanto estão escondidos lá no centro da terra,
onde as pôs a natureza, conservam-se inocentes, e não fazem mal
a ninguém; mas se se cavam e se tiram fora, então são
muito perniciosas, e fazem grandes estragos. Olhai para o passado, se vos
não quereis enganar com o presente.

Aquela idade dourada, tão célebre nos primeiros tempos, quem
a fez? Parece que a havia de fazer o ouro, e não a fez o ouro que havia,
senão o ouro que não havia, porque ainda se não tinha
descoberto. Enquanto no mundo não houve ouro, então foi a Idade
de Ouro: depois que apareceu o ouro no mundo, então começou
a Idade de Ferro: Jamque nocens ferrum, ferroque nocentius aurum prodierat(
* ). O que era necessário e útil para a vida e conservação
dos homens, notou Sêneca, Demócrito, e ainda o mesmo Epicuro,
que o pôs a natureza muito perto de nós, e muito descoberto e
patente, como são as plantas, os frutos, os animais, pelo contrário,
o que não só era inútil, mas pernicioso, pô-lo
muito longe de nós, oculto e escondido, onde o não víssemos:
e este é o ouro e a prata. Houve-se em tudo a natureza como mãe.
A mãe dá a maçã ao filhinho, e esconde-lhe a faca.
Por que? Porque quer que coma, mas não quer que se fira, e se o menino
chora pelo que o há de ferir, não é justo que os homens
de razão e de juízo tenham sentimento de meninos.
Esta mesma doutrina, como tão necessária – porque não
cuideis que é só de filósofos – foi a primeira
que nos ensinou a Sagrada Escritura logo no princípio do mundo: In
principio creavit Deus caelum et terram. Terra autem erat inanis et vacua.
(Gên 1, 1 s): No princípio criou Deus o céu e a terra;
porém a terra estava vazia e vazia. – E que quer dizer que a
terra estava vazia e vazia: inanis et vacua? Quer dizer que estava vazia por
dentro e vazia por fora: vazia por dentro: inanis – porque ainda não
tinha Deus criado no interior da terra os minerais; e vazia por fora: et vacua
– porque também não tinha criado na superfície
da mesma terra as plantas, as árvores e os animais. Criou, pois, Deus
todas estas coisas naqueles primeiros seis dias, e, fazendo a Escritura muito
particular e miúda relação das plantas, das árvores
e dos animais, das minas e dos metais não faz menção
alguma. Pois, se a Escritura tinha dito que a terra, em sua primeira criação,
nascera vazia por dentro e por fora, e relata com tanta distinção
e engrandece com tanto aparato como Deus a encheu e povoou por fora, por que
cala totalmente, e não diz como a encheu e enriqueceu por dentro? Mais.
Depois que Deus teve criado todas as coisas, e o homem, que foi a última,
mostrou-lhe as ervas, as plantas, as árvores e seus frutos, e disse-lhe:
– Eis aqui toda esta variedade, a qual criei, e vos dou para vosso sustento
e regalo. – E fazendo vir diante do mesmo Adão todos os animais,
disse-lhe da mesma maneira: – Também de todos estes vos dou o domínio,
os quais criei para que vos ajudem e sirvam. – Agora cuidava eu que
havia que acrescentar o Senhor: E não só tenho provido e aparelhado,
para vosso sustento, serviço e conservação, todas estas
coisas que vedes na superfície da terra, mas também lá
no centro e entranhas dela, criei muitas minas de metais preciosos, para maior
riqueza, grandeza e utilidade vossa, e de vossos descendentes. Mas nada disso
disse Deus: tudo passou em silêncio, sem fazer das minas a menor insinuação.
Pois, se Deus nesta doação universal entrega, como por lista,
a Adão todas as outras coisas que tinha criado para ele, as minas de
ouro e prata, que parecia – como hoje parece – que era a melhor
e mais rica partida de todas, por que as deixa de fora? Porque todas as outras
coisas que estão à face da terra, e o domínio e uso delas,
era útil e necessário ao homem para sua conservação
e sustento, e ainda para seu regalo; porém as minas, o ouro e a prata,
não só não eram necessários nem úteis,
mas supérfluos e perniciosos, e ocasião que lhe podia e havia
de ser de gravíssimos danos. Por isso, assim como as tinha sepultado
e escondido debaixo da terra, assim lhe escondeu e encobriu também
a notícia delas, passando totalmente em silêncio, e não
fazendo menção de tal coisa.

Mas vejo que me perguntam os curiosos, e me argúem os críticos:
se as minas eram tão danosas e perniciosas ao homem, e por isso lhas
escondeu e encobriu Deus, por que as criou, ou para que? Para responder a
esta pergunta, faço-vos primeiro outra. E a Arvore da Ciência
que foi a ocasião e origem de todos os males do mundo, por que a criou
Deus no paraíso? Ou aquela árvore era boa ou má – como
argumenta Santo Agostinho. – Se era má, para que a plantou Deus? Se
era boa, para que a proibiu? Ameaça ao homem com a morte se comer daquele
fruto, e pinta o mesmo fruto com tais cores, que levava após si os
olhos- Pulchrum oculis, aspectaque delectabile(16)? Sim. Porque aquele fruto
tão formoso não foi criado para que Adão comesse ou provasse
dele, senão para que Deus tentasse a Adão, e o provasse com
ele. E esta é também a razão por que Deus criou o ouro
e a prata, e lhes deu tanta formosura de cores. Quílon, um dos sete
sábios da Grécia, dizia que, assim como a pedra de toque prova
o ouro e a prata, assim o ouro e a prata são a pedra de toque dos homens.
Quereis provar quem são os homens? Tentai-os com ouro e com prata.
Do ouro disse o Eclesiástico: Qui post aurum non abiit, probatus est
in illo (17); e da prata disse Davi: Ut excludant eos, qui probati sunt argento.

E notai que o que nesta sentença ficou aprovado foi um só:
Qui probatus est in illo – e os que ficaram reprovados e excluídos
foram muitos: Ut excludant eos, qui probati sunt argento. Ora já que
todos os dias pedimos a Deus que nos livre das tentações, ou
que nos não meta nelas: Ne nos inducas intentationem – demos-lhe
muitas graças, pois nos livrou desta, em que nós nos tínhamos
metido.

E porque vos não fique a última desconsolação
de não terdes com que bater moeda na vossa terra, saibam os que tanto
a desejam e procuram que, posto que seja com boa tenção e bom
zelo, é esta a maior traição que podem fazer à
sua pátria. É possível que vos dê Deus uma terra
tão abundante e tão fértil, que só com a comutação
dos frutos e drogas dela vos sustentais e conservais há tantos anos,
tão abastada e tão nobremente, sem haver nem correr nela dinheiro,
e que desejeis e suspireis por dinheiro, sem o qual, e por isso mesmo, vos
fez a vossa fortuna singulares no mundo? Plínio, que foi o homem que
maior conhecimento teve de todo ele, entre outras muitas sentenças
com que condena o uso do dinheiro, e louva o da comutação dos
frutos naturais, diz estas notáveis palavras: Quam innocens, quam beata,
imo vero et delicata esset vita, si nihil aliud quam supra terras concupisceret?
Utinamque posset e vita totum abdicari aurum, ad perniciem vitae repertum,
quantum feliciore aevo, cum res ipsae permatabuntur, inter se (18)? Quer dizer:
que inocente, que bem-aventurada, e que deliciosa seria a vida dos homens,
se eles se contentaram com o que nasce sobre a terra! Oxalá se pudera
desterrar de todo o mundo o ouro descoberto para destruição
da vida, e se trocaram os tempos e uso presente por aquela idade felicíssima,
em que as coisas se comutavam uma por outras. – Até aqui o parecer
daquele grande juízo, que ajuntou em si a ciência e compreensão
de todos os séculos. E que, tendo-vos Deus feito mercê de que
gozeis esta inestimável riqueza e felicidade natural, queirais abrir
as portas a um inimigo tão universal e pernicioso como o dinheiro,
que, no dia em que entrar na terra, vos há de empobrecer a todos de
repente? Ouvi um caso admirável de Cristo, Senhor nosso, com seus discípulos.

Mandou-os o Senhor pregar pelo mundo, e proibiu-lhes nomeadamente que não
tivessem ouro nem prata, nem levassem bolsa nem dinheiro consigo: Nolite possidere
aurum, neque argentum, neque pecuniam in zonis vestris (Mt 10, 9). Vieram
os discípulos da jornada, e fez-lhes o Divino Mestre esta pergunta:
Quando misi vos sine sacculo, et pera, numquid aliquid defuit vobis (Lc 22,
35)? Quando vos mandei sem bolsa nem alforje, faltou-vos alguma coisa? –
Responderam todos que nenhuma coisa lhe faltara: At illi dixerunt: nihil (Lc
22, 36). – Pois agora vos digo, replicou o Senhor, que quem tiver bolsa
e dinheiro o leve consigo, e se tiver alforje, também: Sed nunc, qui
habet sacculum, tollat similiter et peram (Lc 22, 36). – Com razão
chamei a este caso admirável. Se Cristo tinha mandado aos discípulos
sem bolsa nem dinheiro, e eles experimentaram e confessaram que nenhuma coisa
lhes faltara, como depois desta experiência e desta confissão,
lhes manda agora o contrário, e que levem dinheiro? Se eles tiveram
dito que, por não levarem dinheiro, lhes tinham faltado muitas coisas
necessárias à vida, então se seguia bem que o Senhor
lho concedesse. Mas, tendo-lhes proibido o dinheiro, quando foram a primeira
vez, e não lhes tendo faltado nada, agora lhes diz que o levem? Responde,
depois de grandes admirações, S. João Crisóstomo.
Cristo, Senhor nosso, queria exercitar seus discípulos na paciência,
e que padecessem pobreza e falta do que lhes fosse necessário; e como
quando foram sem dinheiro, nenhuma destas coisas lhes faltou, mandou-lhes
que levassem dinheiro, para que tudo lhes faltasse. Ac si eis dixerit: hactenus
cuncta vobis uberrine affluebant, nunc autem volo vos et inopiam experiri
(19): Como se dissera o Senhor – diz Crisóstomo: – Até
agora, sem dinheiro, tudo vos sobeja; pois agora quero que tenhais dinheiro,
para que tudo vos falte, e sejais pobres. – Isto é o que querem,
sem entender o que querem, os que desejam que entre e corra dinheiro nesta
vossa terra. Se sem dinheiro, e só com uma comutação
dos frutos naturais da terra, tendes abundantemente tudo o que é necessário
para a vida, e muitos de vós o supérfluo, para que quereis dinheiro,
senão para que tudo custe dinheiro, e, custando tudo dinheiro, todos
sejais pobres? Benzei-vos desta tentação como da outra: lograi
o que Deus vos deu tão abundantemente sobre a terra, e debaixo dela
nem queirais minas, nem o que delas se bate.

§ VII

As minas, causa de opressão e ruína do Reino. Que utilidades
se têm seguido à Espanha do seu famoso Potosi? Que faziam os
rios de ouro do reinado de Salomão, provenientes das minas do Peru
e do Brasil? Os magnetes atraem o ferro e os magnates o ouro.

Mas, antes que acabemos este ponto – com promessa de que o segundo será
muito breve – não quero que me acuseis de pouco zeloso da opulência
do Reino. E assim como vos tenho mostrado que as minas, no caso em que se
descobrissem, seriam de grande dano, em particular para este Estado, assim
acrescento agora que também para o mesmo Reino em geral antes haviam
de ser de maior opressão e ruína, que de utilidade e aumento.
E para que comecemos pelos exemplos mais vizinhos, que utilidades se têm
seguido à Espanha do seu famoso Potosi, e das outras minas desta mesma
América? A mesma Espanha confessa e chora que lhe não tem servido
mais que de a despovoar e empobrecer. Eles cavam e navegam a prata, e os estrangeiros
a logram. Para os outros é a substância dos preciosos metais,
e para eles a escória. Lá disse Isaías, falando do Reino
de Israel: Argentum tuum versum est in scoriam (20): e o mesmo se poderá
dizer sem metáfora da prata de Espanha. Ainda, com mais doméstica
propriedade, se lhe pode aplicar o dito do seu mesmo patrão, Santiago
: Argentum vestrum aeruginavit(21) – pois a prata se lhe tem convertido em
cobre, e a fama e opulência de tanto milhão em belhão.

E para que se n&atatilde;o engane alguém com me dizer ou cuidar que
a evidência deste mesmo exemplo nos servirá de doutrina e emenda,
passemos a outro reino, ou a outro reinado mais sábio, qual foi, sem
injúria dos presentes nem futuros, o de Salomão. Salomão,
com a sua universal sabedoria, descobriu riquíssimas minas, e não
outras, segundo opinião de graves autores, senão as mesmas deste
Novo Mundo. As do Peru, que os espanhóis descobriram sem as buscar,
e as do Brasil, que nós buscamos, e não descobrimos. Funda-se
esta sentença no capítulo terceiro do segundo Livro dos Paralipômenos,
onde, falando do ouro que daquelas partes vinha a Salomão, diz o texto
hebreu: Aurum erat Paruaim (22). A qual palavra Paruaim é um nome do
plural, cujo singular é Peru, com que vem a dizer o mesmo texto que
aquele ouro se trazia de ambos os Perus, ou de um e outro Peru. Assim os declara
Genebrardo, peritíssimo na língua hebraica: Aurum Paruaim in
hebraeo appellatur quasi allatum ex utroque Peru(23). E daqui infere, como
coisa evidente, que era tirado das minas deste novo Mundo: Quis non cernit
novum hunc orbem nominari? E para que se veja que um destes Perus era o que
hoje conserva o mesmo nome, e o outro este nosso, que chamamos Brasil – onde
só podiam vir aportar as frotas de Salomão – diz o mesmo texto
sagrado que uma das coisas novas, e nunca vistas na Ásia, que levavam
as mesmas frotas, eram certos paus chamados ligna thyina, os quais, dizem
os hebreus, citados por Tirino, que eram lignum Brasilium: pau do Brasil(24)
. O Caldeu traslada coralium: coral, donde parece-lhe deram este nome pela
semelhança da cor vermelha. Mas as obras, que o texto aponta se faziam
deste pau, não podiam ser do que vulgarmente se chama Brasil, senão
de outra madeira preciosa, das muitas que nele nascem.

Isto suposto – e não suposto também – ou fossem desta terra
as minas de Salomão, ou de qualquer outra, vamos ao que rendiam, e
em que se empregava, que é o que faz ao meu caso. O que traziam as
suas frotas a Salomão, só em ouro, eram seiscentos e sessenta
e seis talentos, que montam oito milhões, menos oito mil cruzados.
Assim o conta pontualmente a Escritura: Pondus auri, quod afferebatur Salomoni
per annos singulos, sexcentorum sexaginta sex talentorum auri(25). E não
só traziam as frotas ouro, senão também muita prata,
cuja quantidade era tão imensa na corte de Jerusalém, que, afirma
a mesma Escritura, igualava às pedras da rua: Fecitque ut tanta esset
abundantia argenti in Jerusalém, quanta et lapidum(26). Esta é
a imensidade de ouro e prata que rendiam aquelas minas. Mas antes que vejamos
em que todo este ouro e toda esta prata se gastava, deixai-me fazer um reparo,
digno não só de admiração, mas de assombro e de
pasmo.

Morto Salomão, sucedeu-lhe na coroa Roboão, seu filho, e a
primeira proposta que lhe fizeram os povos juntos em cortes foi que tivesse
piedade deles, e os aliviasse dos tributos com que estavam oprimidos em tempo
de seu pai, porque eram insuportáveis. E chegou esta instância
a termos tão apertados, e do cabo, que, não querendo Roboão
condescender no que tão justamente pediam, das doze Tribos de que constava
todo o reino, as dez lhe negaram a obediência e se rebelaram, e fizeram
outro rei e outro reino, que nunca mais se sujeitou nem restituiu aos herdeiros
de Salomão. Agora entra o meu reparo. Se o peso de ouro e a quantidade
da prata que contribuíam as minas era tão excessiva – além
dos direitos ordinários do reino, de que também faz menção
a Escritura – com toda esta imensidade de tesouros, com todos estes rios de
prata e ouro, que estavam sempre a correr: Per singulos annos – como não
se aliviava a opressão dos vassalos, como se não levantavam
ou diminuíam os tributos dos povos, antes cresciam e se multiplicavam
ao mesmo passo, com tal excesso que os obrigavam a uma tal desesperação,
e reduziram o reino a extrema ruína? Aqui vereis qual é o fruto
das minas, e o que fazem esses rios de ouro e prata, trazidos de tão
longe. Com as suas enchentes inundam a terra, oprimem os povos, arruinam as
casas, destroem os reinos.

As causas naturais destes efeitos tão lamentáveis não
são ordinariamente outras, senão as mesmas que precederam no
reinado de Salomão. E quais foram estas? O luxo, a vaidade, a ostentação,
a delícia, os palácios, as casas de prazer, as fábricas
e máquinas esquisitas, e outras coisas tão notáveis como
supérfluas, que chamavam à corte de Jerusalém os olhos
do mundo, e vistas, desmaiavam a admiração, como aconteceu à
rainha Sabá. As baixelas todas eram de ouro – porque da prata não
se fazia caso – as mesas, e todas as outras alfaias, também de ouro,
e, o que se não pudera crer, se o não referira a História
Sagrada, até as lanças e escudos, em grande número, de
ouro. Nestes monstros da vaidade – que sempre é maior que o poder –
se consumiam aqueles imensos tesouros, e onde não chegavam os milh&ototilde;es
das frotas, supriam os tributos dos vassalos. Quando as frotas haviam de partir,
uns concorriam com o préstimo de suas artes para os aprestos, outros
com as contribuições das suas herdades para os bastimentos,
outros com o dinheiro amoedado para os soldos, outros com as próprias
pessoas, embarcando-se forçados a uma tão dilatada, tão
nova e tão perigosa navegação. E quando as mesmas frotas
voltavam carregadas de ouro e prata, nada disto era para alívio ou
remédio dos povos, senão para mais se encherem e incharem os
que tinham mando sobre eles, e para se excogitarem novas artes de esperdiçar,
e novas invenções de destruir. E se isto sucedia no reinado
e governo de Salomão, vede se se pode esperar ou temes outro tanto,
quando não forem Salomões os que tenham o governo!

Dos futuros condicionais e contingentes, ninguém é sabedor,
senão Deus e os seus profetas. E assim não quero que me creiais
a mim, senão a Isaías: Repleta est terra argento et auro, et
non est finis thesaurorum ejus (Is 2, 7): Vejo a terra – diz Isaías
– toda cheia de ouro e prata, e são tantos e tão grandes os
seus tesouros que não têm fim. – Oh! ditosa e bem afortunada
terra, em que não haverá já pobreza nem miséria,
pois, estando toda cheia, a todos abrangerá a riqueza, e não
haverá quem não tenha com que remediar a sua necessidade! Assim
parece verdadeiramente. Mas vejamos se vê mais alguma coisa o profeta,
e se é isto mesmo que nós inferimos. Vai por diante Isaías,
e às palavras que tinha dito acrescenta as seguintes: Et repleta est
terra ejus equis, et innumerabiles quadrigae ejus, et repleta est terra ejus
idolis: opus manuum suarum adoraverunt (Is 2, 8): Depois de ver a terra cheia
de ouro e prata, o que mais vi – diz o profeta – foi que a mesma terra
estava cheia de cavalos, e que as suas carroças eram inumeráveis,
e que os homens adoravam as obras de suas mãos, e faziam delas ídolos.
– Eis aqui os aumentos que havia de ter o reino com os haveres que lhe prometiam
as vossas minas. Encher-se-ia a terra de ouro e prata mas esse ouro e prata,
posto que naturalmente desce para baixo, havia de subir para cima. Não
havia de chegar aos pequenos e pobres, mas todo se havia de abarcar e consumir
nas mãos dos grandes e poderosos, porque, como bem disse o outro, os
magnetos atraem o ferro, e os magnates o ouro; e as obras pias em que esses
tesouros se haviam de despender, eram, mais cavalos, e mais carroças,
e mais galas, e mais palácios, e obras magníficas e ostentosas;
e também haviam de ter parte nele os ídolos batizados, que lá
se adoram, e que tantas vidas e fazendas têm destruído. E se
estes eram os proveitos com que se havia de adiantar o reino no descobrimento
das vossas minas , à custa da vossa fazenda, do vosso trabalho, da
vossa opressão e do vosso cativeiro, vede se foi grande favor e providência
do céu, que se não descobrissem, e se, tanto no particular como
no geral, ia desencaminhada e errada a vossa esperança: Nos autem sperabamus.

§ VIII

Em lugar das minas incertas, que se não descobriram, descobrirá
Deus outras certas e mais ricas. O milagre prometido por Cristo aos escribas
e fariseus. Que foi buscar Cristo ressuscitado nas concavidades escuras e
subterrâneas do interno? O que disseram os autores gentios dos mineiros
do ouro e da prata, e o que Cristo fez penetrando o mais escondido e interior
da terra. As almas dos patriarcas, tesouros inestimáveis que o Redentor
do mundo tirou das suas minas. A profecia de Isaías e o descobrimento
das minas secretas e dos tesouros ocultos. O preço por que foram compradas
nossas almas. El-rei D. João, o Segundo, e as minas da Costa de África.

Desenganado assim e desvanecido o falso descobrimento das vossas minas, segue-se
o verdadeiro das minhas, que vos prometi descobrir. E porque é certo
e infalível, não necessita de tão largo discurso. Prometendo
Cristo, Redentor nosso, aos escribas e fariseus, em lugar de um milagre do
céu, que lhe pediam, outro milagre maior na terra, disse que, assim
como Jonas estivera três dias e três noites no ventre da baleia,
assim ele havia de estar no coração da terra outros tantos dias
e noites, que foram os que se contaram desde a tarde de sua sagrada morte,
até à manhã da sua gloriosa ressurreição.
Alguns dizem que se cumpriu esta promessa e profecia na sepultura do Senhor.
Mas esta interpretação é insuficiente e imprópria,
porque, ainda que Cristo na sepultura esteve debaixo da terra, não
esteve no coração da terra: In corde terrae (Mt 12, 40). O coração
da terra não é junto à superfície, onde estava
o sepulcro, senão o meio e centro dela, e o lugar mais interior e inferior,
onde o Senhor desceu e se deteve aqueles três dias, e isso é
o que cremos e significamos, quando dizemos não só que foi sepultado,
senão que desceu ao inferno. Mas a que fim desceu Cristo ao inferno,
estando já em estado glorioso, a que naturalmente é devido o
céu? Que foi buscar àquelas concavidades escuras e subterrâneas,
onde nunca entrou o sol? Foi buscar e descobrir umas minas mais ricas que
toda a prata e todo o ouro, cujo preço e lugar só ele conhecia,
e nenhum homem, nem anjo, senão ele as podia descobrir.

Quando os autores, ainda gentios, querem encarecer o extremo da cobiça
furiosa e cega, com que os homens não duvidam de se meter e penetrar
o mais profundo da terra, e ter sobre si as montanhas para chegar ao escondido
das minas, dizem que até ao inferno vão buscar e desenterrar
o ouro e a prata:

Itum est ad viscera terrae.
Quasque recondiderat, Stygiisque advexerat undis,
Effodiuntur opes irritamenta malorum (27),

disse com elegantes versos Ovídio. E não com menos elegante
prosa, nem com menor ressentimento e juízo, Plínio: Imus in
viscera ejus, et in sede manium opes quaerimus. Illa nos premunt, illa nos
ad inferos agunt, quae occultavit, atque demersit (28). Isto, pois, que aqueles
homens, que não tiveram conhecimento de Cristo, disseram por exageração
e encarecimento dos mineiros do ouro e prata, isto mesmo, e em próprios
termos, é o que realmente e em pessoa fez Cristo, penetrando o mais
escondido e inferior da terra, e descendo verdadeiramente ao inferno, para
descobrir, romper e abrir as suas minas, não de ouro ou prata, que
acrescentam os males da terra, senão de outros muito mais preciosos
metais, com que se acrescenta, ilustra e enriquece o céu.

A montanha onde começaram a romper-se estas minas foi o Monte Calvário,
os instrumentos a cruz e os cravos; o sítio subterrâneo, onde
elas estavam escondidas, o seio de Abraão; e as riquezas que delas
tirou Cristo depois de tantos trabalhos, as almas. Tirou a alma do mesmo Abraão,
que deu nome ao lugar. Tirou a alma de Abel, que foi a primeira que ali entrou.
Tirou as almas de Adão e Eva, que, por um apetite, foram a causa de
que eles, e seus filhos, do paraíso da terra não fossem tresladados
ao céu. Tirou as almas dos antigos Patriarcas, Set, Noé, Isaac,
Jacó, José e Moisés, cuja lei, posto que foi disposição,
não teve virtude para levar os homens à glória, privilégio
só da lei da graça. Tirou a alma de Jó, que no mesmo
tempo se salvou na lei da natureza, e também – segundo parece – as
dos outros amigos que tinham a mesma fé do verdadeiro Deus. Tirou as
almas dos reis que foram justos e santos – muito menos porém em número
do que foram as coroas – a alma de Josias, a alma de Ezequias, a de Josafá,
a de Manassés, a de Davi. E se também não foi com ele
a de Salomão, vede que desgraça? Tirou as almas dos profetas
Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel e os demais, e com cada um deles
em triunfo, as almas que com suas pregações tinham livrado do
inferno. E por que não fiquem de fora as mulheres – cujas almas não
faltou quem dissesse que não foram criadas à imagem e semelhança
de Deus – tirou as almas de Sara, de Rebeca, de Raquel, a de Maria, irmã
de Moisés, a de Ester, a de Rute, a da casta Susana, a da valente Judite.
E com estas de mais conhecido nome, todas as outras que naquele escuro depósito
estavam esperando longamente a vinda do Messias.

Das que lá entraram depois de Deus feito homem – se a história
do rico avarento não foi mais antiga – tirou o Senhor singularmente
a alma do pobre Lázaro, de que só se faz menção
no Evangelho, a qual levaram ao mesmo seio de Abraão os anjos, ficando
para sempre no inferno, ardendo em fogo e em inveja, a alma do mesmo rico,
cuja fortuna neste mundo fora tão invejada. Também foi notável
entre as almas deste tempo a de Simiano, aquele velho venturoso que teve a
Cristo em seus braços, e, despedindo-se da vida, foi o que lá
levou as primeiras novas, de que já ficava no mundo o Redentor dele.
Os antigos tiveram para si que havia almas grandes e almas pequenas; e se
isto assim fora, muito acrescentaram o número das almas pequenas às
dos inocentes de Belém, os quais o Senhor não livrou da espada
de Herodes, para agora as levar gloriosas consigo. Finalmente, sobre todo
aquele numerosíssimo esquadrão, avultaram com excesso entre
todas as almas grandes, quatro maiores – a de S. João Batista, a de
S. Joaquim, a de Santa Ana, e a do que mereceu ser chamado pai do mesmo Cristo,
o incomparável S. José.

Estes foram os tesouros inestimáveis que o Redentor do mundo tirou
daquelas suas minas, que em espaço de quatro mil anos, desde o princípio
do mesmo mundo, se foram multiplicando e crescendo sempre. Então se
cumpriu a promessa que delas lhe tinha feito Deus por boca de Isaías,
dizendo que lhe daria os tesouros escondidos e mais secretos e encobertos
de toda a terra, e quebraria para isso portas de bronze e fechaduras de ferro:
Portas aereas conteram, et vectes ferreos confringam; et dabo tibi thesauros
absconditos, et arcana seeretorum(29) . Bem sei que estas palavras foram dirigidas
exteriormente a el-rei Ciro, mas é certo que o interior da profecia
falava expressamente com Cristo. Assim como o que tem diante de si a imagem
de um santo parece que fala com a imagem, e fala com o santo, assim Isaías,
falando no exterior com Ciro, que era figura e imagem de Cristo, com o mesmo
Cristo é que falava propriamente, e de Cristo profetizava, e não
de Ciro. O mesmo profeta se explicou logo, e se comentou a si mesmo e com
tal individuação de palavras, que de nenhum modo se podem entender
de Ciro, nem de outro algum homem, senão daquele que era homem e Deus
juntamente: Vere tu es Deus absconditus, Deus Israel, salvator(30). Este,
de quem falo debaixo do nome de Ciro, é verdadeiramente Deus escondido,
Deus escondido e Salvador, Deus escondido, porque em Cristo estava a divindade
escondida debaixo da humanidade; e Deus assim escondido Salvador, porque para
Deus nos salvar se fez homem. E para tirar toda a dúvida, e que este
Salvador não era homem como os outros homens da terra, senão
Deus descido do céu, continua o mesmo profeta pedindo e instando ao
mesmo céu que acabasse já de chover lá de cima o Justo,
para que nascesse na terra o Salvador: Rorate, caeli, desuper, et nubes pluant
justum; aperiatur terra, et germinet Salvatorem(31) – Assim que aquele príncipe,
a quem Deus prometeu o descobrimento das minas secretas, e as riquezas dos
tesouros mais ocultos e escondidos, não era Ciro, nem outro rei da
terra, senão Cristo, verdadeiro Deus, também escondido, que
desceu do céu, e que desceu, não para outro fim, senão
para ser Salvador.

Mas, se Cristo, quando desceu do céu e veio à terra, nasceu
na pobreza de um presépio; se como Filho escolheu Mãe pobre,
e como Mestre discípulos pobres; se a primeira coisa que ensinou e
pregou foi a pobreza; se viveu de esmolas como pobre, se morreu sem casa nem
cama, é despido como extremamente pobre, se o que sempre condenou foram
as riquezas, e, prometendo o céu aos pobres, só o dificultou
e quase impossibilitou aos ricos: que tesouros são estes que Deus lhes
prometeu, e que minas secretas e escondidas as que havia de descobrir? Não
foram sem dúvida, nem são outras, senão aquelas almas
tão preciosas como prezadas, que no seio de Abraão, como em
tesouro, se iam depositando por todos os séculos, não só
escondidas e encerradas, mas verdadeiramente cativas, para cujo descobrimento,
liberdade e redenção desceu Cristo, como diz S. Paulo, às
partes mais inferiores da terra: Ascendens in altum captivam duxit captivitatem.
Quod autem ascendit, quid est, nisi quia et descendit primum in inferiores
partes terrae(32)? E porque as mesmas almas não podiam sair daquele
lugar subterrâneo, onde estavam presas e aferrolhadas, como em um cárcere
de bronze, por isso juntamente com a promessa destes tesouros e destas minas,
assegurou Deus ao mesmo Cristo, descobridor e conquistador delas, que primeiro
quebraria as portas de bronze, e romperia as fechaduras de ferro: Portas aereas
conteram, et vectes ferreos confringam, et dabo tibi thesauros absconditos,
et arcana secretorum (33).

Assim comentam este lugar literalmente S. Jerônimo e Santo Agostinho.
Mas quem poderá declarar dignamente o preço destes tesouros
e o valor destas minas? Só por comparação do ouro e prata,
que o mundo tanto preza e estima nas outras, se pode de algum modo rastear,
e assim o fez S. Pedro, falando daquelas almas, e das nossas. Exorta-nos S.
Pedro a que conservemos puras as nossas almas, com a obediência dos
preceitos divinos, que todos se encerram na caridade: Animas vestras castificantes
in obedientia charitatis(34) – e o motivo principal que para isso nos propõe
é o preço e valor das mesmas almas : Scientes quod non corruptibilibus
auro vel argento redempti estis, sed pretioso sanguine quasi agni immaculati
Christi (1 Pdr 1 , 18): Advertindo e considerando – diz o Príncipe
dos apóstolos – que essas almas não foram compradas com ouro
ou prata, senão com o precioso sangue do mesmo Filho de Deus. – Não
sei se reparais que não só diz S. Pedro o preço com que
foram compradas as almas, senão também o preço com que
não foram compradas. Não foram compradas, diz, com ouro nem
com prata, senão com o sangue de Cristo. E não bastava dizer
que foram compradas com o sangue de Cristo unido à divindade, e por
isso de preço infinito? Bastava e sobejava. Mas como falava com a baixeza
e vileza dos homens, que, como feitos de terra, não sabem levantar
os pensamentos da terra, e tanto prezam e estimam o ouro e a prata, por isso
ajuntou e ponderou que não foram compradas as almas com ouro nem com
prata, senão com o preço infinito do sangue de Cristo, para
que acabem de entender e de crer todos os que têm fé que são
infinitamente mais preciosas as almas, e infinitamente mais ricas as minas,
donde Cristo as foi buscar debaixo da terra, que todo o ouro e toda a prata
que se tira ou pode tirar das outras.

Que bem o entendeu assim el-rei D. João, o Segundo, quando se descobriram
as minas da Costa de África, que deram nome à mesma terra! Edificou-se
ali o famoso castelo de S. Jorge; mas porque as despesas eram muitas, e a
terra doentia, pôs-se em conselho de Estado, se se largaria. E como
muitos dos conselheiros votassem que sim, que responderia el-rei? Respondeu
que de nenhum modo se largasse. Porque eu – diz – não mandei edificar
aquele castelo tanto para a defesa e conservação das minas,
quanto para a conversão das almas dos gentios, e basta-me a esperança
da salvação de uma só daquelas almas, para ter por bem
empregadas todas essas despesas.

§ IX

O Rio das Almazonas e o Rio das Almazinhas. O desamparo e desprezo com que
se estão perdendo as almas do Estado do Maranhão. O inferno
superior e o inferno interior. Há casos em que a felicidade consiste,
não em se achar o que se busca e deseja, senão em se não
achar. O exemplo de Pedro, correndo ao sepulcro, e de Adão, enquanto
se não achava entre todas as criaturas quem lhe fosse semelhante. Os
tesouros do céu e os tesouros da terra. Peroração.

Estas são, senhores meus, as minas de que Cristo hoje subiu tão
rico do centro da terra, estas as que eu vos prometi descobrir, e estas, e
não outras, as minas do vosso Maranhão. Se Deus vos não
deu as de ouro e prata, como esperáveis, ou vos fez mercê de
que não se descobrissem, para vos livrar de tantas desgraças,
como ouvistes, contentai-vos de vos ter dotado e enriquecido daquelas que
na sua estimação – que só é a certa e verdadeira
– foram dignas de ser compradas com seu próprio sangue. Este grande
rio, rei de todos os do mundo, que deu o nome à vossa cidade, e a todo
o estado, que ribeira tem na sua principal e maior corrente, ou nas de seus
tão dilatados braços, que, em lugar das areias de ouro, de que
outros fabulosamente se jactam, não esteja rico destas pérolas,
que assim chamou Cristo às almas? Outros lhe chamam Rio das Almazonas,
mas eu lhe chamo Rio das Almazinhas, não por serem menores, nem de
menos preço – pois todas custaram o mesmo – mas pelo desamparo e desprezo
com que se estão perdendo, quando o ouro e a prata se deseja com tanta
ânsia, se procura com tanto cuidado e se busca com tanto empenho? Oh!
almas remidas com o sangue do Filho de Deus, que pouco conhecido é
o vosso preço, e que pouco sentida a vossa perda, digna só de
se chorar com lágrimas de sangue! Mas os que tão pouco caso
fazem da alma própria, como o farão das alheias?

Ora, já que o Senhor do mundo nos descobriu estas minas, e nos encareceu
tanto o preço delas, e as pôs tanto à flor da terra, nesta
terra de que vos fez senhores para este mesmo fim, não as desprezeis.
Vede que injúria seria da fé e da caridade, e do mesmo sangue
de Cristo, se, descendo ele ao centro da terra a buscar almas, nós
as deixássemos perder e ir ao inferno, quando as podemos salvar para
si, para nós e para o mesmo Cristo, sem cavar nem romper montanhas.
E para que se anime o nosso zelo neste pequeno trabalho, e de tanto lucro,
só quero que advirtamos todos que, fazendo-o assim, faremos em certo
modo mais, sem sair da superfície da terra, do que fez o mesmo Cristo
descendo ao centro dela. E de fé que Cristo desceu aos infernos: Descendit
ad inferos. Também é de fé que há dois infernos,
um inferior, e muito mais baixo, onde estava o rico avarento, e outro superior,
e mais acima, onde estava Abraão e Lázaro. Deste inferno superior
tirou Cristo todas as almas que lá estavam, mas do inferno inferior
– ou Cristo descesse lá presencialmente, ou não – não
tirou alma alguma. Contudo, Davi diz de si que o Senhor tirou a sua alma do
inferno inferior: Eruisti animam meam ex inferno inferiori(35). Pois, se a
alma de Davi, como a dos outros patriarcas, foi tirada do seio de Abraão,
que é o inferno superior, como diz que a tirou Deus do inferno inferior,
que é o inferno dos condenados, e que propriamente se chama inferno?
Porque a alma de Davi livrou-a Deus duas vezes, e dois infernos: uma vez em
vida, e outra vez depois da morte. Depois da morte, livrou-a do inferno superior,
quando, com as outras almas santas, a tirou do seio de Abraão; e na
vida livrou-a do inferno inferior, ao qual estava condenada a alma de Davi
pelo pecado do adultério e homicídio, e onde havia de penar
eternamente, se Deus, por sua grande misericórdia, a não livrara,
como ele mesmo diz: Quia misericordia tua magna est super me, et eruisti animam
meam ex inferno inferiore(36).
Eis aqui o estado em que estão toda essa infinidade de almas, cujo
remédio e salvação fiou Deus do nosso zelo e da nossa
cristandade. Os inocentes pelo pecado original irão ao Limbo, que também
é inferno, pois não hão de ver a Deus para sempre. Porém,
os adultos, assim pelos pecados atuais, como pela falta de fé e batismo,
todos vão e estão indo continuamente ao inferno inferior. E
deste inferno, donde Cristo hoje não tirou alma alguma, podemos nós
tirar, sem sair da terra onde Deus nos pôs, tantos milhares de almas,
e fazer delas um tesouro inestimável, tanto mais rico e precioso, quanto
vale mais uma só alma que todo o ouro e prata, e todos os haveres do
mundo. Ou cremos esta verdade, cristãos, ou não cremos? Se a
não cremos, onde está a nossa fé, a nossa esperança
e o nosso entendimento? Diga-se do nosso entendimento e da nossa fé
o que hoje disse Cristo aos discípulos desesperados: O sulti, et tardi
corde ad credentum! Mas, se temos fé e juízo, como não
há de prevalecer a alegria, o gosto e a felicidade de Deus nos ter
descoberto estas minas do céu, à falsa e mal entendida tristeza,
de não termos achado as da terra que nela buscávamos?
Notou Santo Agostinho uma coisa digna do seu entendimento, que hoje sucedeu
a S. Pedro: quando a Madalena esta manhã não achou o corpo do
Senhor, que buscava na sepultura, veio toda a diligência dar conta a
S. Pedro, o qual, não andando, senão correndo, foi logo a certificar-se
e ver por seus olhos se era assim o que ouvia. E qual vos parece que seria
o desejo que S. Pedro levava no coração? Santo Agostinho o diz:
Ad sepulchrum celeri cursu festinat, laetior rediturus, si non inveniret quem
quaerebat (37): Corria S. Pedro ao sepulcro, não com desejo de achar,
senão de não achar, e para tornar da jornada muito mais alegre,
se não achasse o que buscava. – Assim se alegra quem olha para
as coisas com são juízo, e quem entende – como S. Pedro
entendia – que há casos em que a felicidade consiste, não
em se achar o que se busca e deseja, senão em se não achar.
Enquanto se não achava entre todas as criaturas quem fosse semelhante
a Adão: Adae vero non inveniebatur adjutor similis ejus(38) – foi Adão
feliz; e tanto que se achou o que se não achava, daí lhe procederam
todos os seus desgostos, todas as suas perdas, e todas as suas e nossas infelicidades.
Alegrem-se, pois, com S. Pedro os que estavam tristes, por se não achar
o que se buscou, e alegrem-se também, e muito mais com os dois discípulos
de Emaús, de acharem, e de se descobrir tanto mais do que esperavam.
Eles esperavam um bem particular e temporal, que era a redenção
do reino de Israel: Nos autem sperabamus, quod ipse esset redempturus Israel
– e o que acharam, sem o buscarem, foi a redenção espiritual
e eterna do mundo, em que consistia a salvação das suas almas,
e a de todas.

Todas devemos desejar que se salvem, e por todas havemos de oferecer nossos
sacrifícios e orações a Deus. Mas, pois, não podemos
cooperar à salvação de todas, ao menos não faltemos
a estas tão desamparadas, às quais, por mais vizinhas, é
mais devedora a nossa caridade. Sobretudo trate cada um, com verdadeiro zelo
cristão, da doutrina e salvação, ao menos daquelas almas
que têm em sua casa, e muito particularmente da sua, de que muitos vivem
tão esquecidos. Acabemos de entender, e de nos desenganar, que só
estes são os verdadeiros tesouros, e que não há outros,
posto que a nossa cegueira lhes dê este nome. Concedo-vos que se descobrissem
as minas que desejáveis, e que esta vossa cidade estivesse lajeada
de barras de prata, e coberta de telhas de ouro: que importava tudo isto à
alma? Havia de levar alguma coisa destas consigo? Havia-lhe de importar alguma
coisa para a conta? Pois, se tudo cá há de ficar, por que não
tomamos o conselho de Cristo, que tantas vezes nos disse que fizéssemos
o nosso tesouro no céu: Thesaurizate vobis thesauros in caelo(39)?
E notai que diz: Thesaurizate vobis: Entesourai para vós – porque todos
os outros tesouros são para os que cá ficam. Costumavam os antigos
mandar enterrar os tesouros debaixo das suas sepulturas, e por isso diz Jó
que os que cavam tesouros se alegram quando acham algum sepulcro: Effodientes
thesaurum gaudent vehementer cum invenerint sepulchrum (Jó 3, 21 s)
(40) . E não é melhor que a alma ache os seus tesouros no céu,
e se alegre com eles, do que alegrarem-se outros com a vossa sepultura e com
à vossa morte, para se lograrem do que vós não podeis
levar convosco? Ora, tenhamos, tenhamos fé, e entristeçam-nos
somente nossos pecados, e alegre-nos somente a esperança bem fundada
de nossa salvação. E para que até das minas que não
achastes tireis algum fruto, seja o primeiro a confusão de fazermos
tantas diligências pelos tesouros da terra, quando tão pouca
fazemos pelos do céu, que hão de durar para sempre; e o segundo,
o exemplo e resolução de fazer ao menos outro tanto pela salvação
da alma e graça de Deus, a qual nos promete o mesmo Deus que acharemos
sem dúvida, se assim a buscarmos: Si quaesieris eam quasi pecuniam,
et sicut thesauros effoderis illam: tunc intelliges timorem Domini, et scientiam
Dei invenies(41).

(1) Que é isso que vós ides praticando e conferindo um com
o outro, e por que estais tristes? Ora, nós esperávamos que
ele fosse o que resgatasse a Israel (Lc 24, 17. 21).

(2) Mulher, por que choras (Jo 20, 13)?

(3) E estais tristes (Lc 24, 17)?

(4) Porque é já tarde (ibid. 29).

(5) Não tendo achado o seu corpo (ibid. 23).

(6) Ora, nós esperávamos (Lc 24, 21).

(7) Chegaram ao sepulcro (Mc 16, 2).

(8) Que se ele fosse o que resgatasse a Israel (Lc 24, 21).

(9) Compraram aromas (Mc 16, 1).

(10) Gên 27, 9.

(11) Eis aí congregaste tu essa tua multidão para levares a
prata e o ouro (Ez 28, 13).

(12) Eu virei sobre uma terra que está sem muros; não tem ferrolhos
nem portas (Ez 28, 11).

(13) A esta terra, que foi salva da espada, a umas gentes que estão
em paz, e se acham estabelecidas com segurança (Ez 28, 8. 11).

(14) E quanto tinham feito no país de Espanha, e como puseram debaixo
do seu poder as minas de prata e de ouro, que ali há (l Mac 8, 3).

(15) Graeci PP. apud Cord.

(*) Assim o ferro pernicioso, como o ouro, mais pernicioso ainda (Ovid. Met.
lib. I).

(16) Formosa aos olhos e deleitável à vista (Gên 3, 6).

(17) 0 que não correu atraído pelo ouro foi provado por ele
(Eelo 31, 8. 10).

(18) Plin. in proem. lib. 33, et cap. 1.

(19) Chrysost. apud Caten.

(20) A tua prata se mudou em escória (IS 1, 22).

(21) A vossa prata se enferrujou (Tg 5, 3).

(22) 2 Par 3, 7.

(23) Genebrard. lib. I, Chronol.

(24) Tirin. in cap. 10, 3 Reg.

(25) O peso de ouro que se trazia a Salomão cada ano era de seiscentos
e sessenta e seis talentos (3 Rs 10, 14).

(26) E: fez que houvesse tanta abundância de prata em Jerusalém
quanta era também a das pedras (3 Rs 10, 27).

(27) 0 texto das Metamorfoses citado pelo autor é exatamente o seguinte:

Itum est in viscera terrae
Quasque recondiderat, Stygiisque admoverat umbris,
Effodiuntur opes, inritamenta malorum:
Penetramos nas entranhas da terra, arrancando dali o que ela ocultara, o que
ela havia escondido nas sombras do Estige, tesouros que provocam nossos males
(Ovid. Met. Lib. I, 138).

(28) Penetramos em suas entranhas, procurando riquezas na morada dos deuses.
As substâncias que ela escondeu em suas profundezas nos atraem e nos
impelem para as regiões infernais (Plin. H. N. lib. 33, §I).

(29) Arrombarei as portas de bronze, e quebrarei as trancas de ferro, e dar-te-ei
os tesouros escondidos e as riquezas aferrolhadas (Is 45, 2s).

(30) Tu verdadeiramente és um Deus escondido, o Deus de Israel, o
salvador (Is 45, 15).

(31) Destilai, ó céus, lá dessas alturas o vosso orvalho,
e as nuvens chovam ao justo; abra-se a terra, e brote o Salvador (Is 45, 8).

(32) Quando ele subiu ao alto, levou cativo o cativeiro. Ora, que significa
subiu, senão que também antes havia descido aos lugares mais
baixos da terra (Ef 4, 8s).

(33) Ver nota 29, pág. 213.

(34) Fazendo puras as vossas almas na obediência da caridade (1 Pdr
1, 22).

(35) Livraste a minha alma do inferno inferior (Sl 85, 13).

(36) Porque a tua misericórdia é grande sobre mim, e livraste
a minha alma do inferno inferior (ibidem).

(37) August. Serm. 132, de Temp.

(38) Mas não se achava para Adão adjutório semelhante
a ele (Gên 2, 20).

(39) Mas entesourai para vós tesouros no céu (Mt 6, 20).

(40) Os que cavam em busca de um tesouro ficam transportados de alegria quando
acham um sepulcro (Jó 3, 21s).

(41) Se a buscares como o dinheiro, e cavares pela achar, como os que desenterram
tesouros, então compreenderás tu o temor do Senhor, e acharas
a ciência de Deus (Prov 2, 4 s).

Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma – 1644

Diligite inimicos vestros (1).

I

Temos hoje em controvérsia os dois mais poderosos afetos, e os dois
mais perigosos da vontade humana. Tão poderosos que, se a vontade o
vence, é senhora; tão perigosos que, se eles vencem a vontade,
é escrava. E que dois afetos são estes? Amor e ódio.
O amor tem por objeto o bem, para o abraçar; o ódio tem por
objeto o mal, para o fugir; e este é o poder universal, que se estende
sem limite a quanto tem o mundo. Mas, como o mal muitas vezes anda bem trajado,
e o bem, pelo contrário, mal vestido, daqui vem que, enganada a vontade
com as aparências, facilmente ama o mal, como se fora bem, e aborrece
o bem, como se fora mal: e aqui está o perigo. Os antigos diziam: amai
a quem vos ama, e aborrecei a quem vos aborrece, isto é: querei bem
a quem vos quer bem, e querei mal a quem vos quer mal. Mas este mesmo ditame,
ainda hoje tão seguido, posto que parece fundado em igualdade e justiça,
é o maior e mais perigoso erro que a Sabedoria divina veio alumiar
e reformar ao mundo. Neste Evangelho nos manda Cristo amar aos inimigos, e
em outro nos manda aborrecer os amigos; neste nos manda amar aos que nos têm
ódio, em outro nos manda ter ódio aos que nos amam; e sendo
o mesmo legislador divino o autor destes dois preceitos tão encontrados,
daqui se deve persuadir a nossa pouca capacidade, que nem sabemos o que é
amor, nem sabemos o que é ódio; nem sabemos amar, nem sabemos
aborrecer; nem sabemos querer bem, nem sabemos querer mal. Engana-nos o mal
com aparências de bem, e leva-nos o amor; engana-nos o bem com aparências
de mal, e mete-nos no coração o ódio. E que fará
a triste vontade enganada assim, e cativa? O desengano destes dois erros é
o que eu determino pregar hoje, e ensinar, não às más,
senão às boas vontades, como hão de saber amar, e como
hão de saber aborrecer. É matéria em que, depois de disputada
a controvérsia, vos hei de descobrir um admirável segredo. Ajudai-me
a pedir a graça. Ave Maria.

II

Diligite inimicos vestros.

Amai vossos inimigos. Santo Agostinho, com o peso do seu singular juízo,
sondando a profundidade deste preceito, diz assim: Recole in omnibus justificationibus
Domini, nulla esse mirabiliora, nec difficiliora, quam ut suos quisque diligat
inimicos (2). Lede todas as Escrituras Sagradas, ponderai todos os preceitos,
conselhos e documentos divinos, e nenhum achareis — diz Agostinho —
nem mais admirável, nem mais dificultoso que mandar Deus a um homem
de carne e sangue, que ame a seus inimigos. — Admirável e dificultoso,
diz o santo; e deixando o admirável para depois — como prometi
— reparemos primeiro no dificultoso. É tão dificultoso
este preceito, que os gentios o tiveram por impossível, e muitos hereges
também, aos quais refuta doutissimamente e convence S. Jerônimo.
Porém, em ser dificultoso, e muito, o mesmo S. Jerônimo concorda
com Santo Agostinho, e com Jerônimo e Agostinho, todos os outros Santos
Padres e Doutores da Igreja. Todos dizem e confessam que este é o mais
rigoroso preceito da lei evangélica, e esta a mais árdua e dificultosa
empresa da religião cristã. Se entre os homens se acham tão
poucos que amem verdadeiramente a seus amigos, quão dificultosa e repugnante
coisa será à natureza humana chegar a amar os próprios
inimigos?

Ora, com isto se representar e praticar assim, eu cuido que esta doutrina,
quando menos, é muito duvidosa, e que padece uma grande instância.
Santo Agostinho, nas mesmas palavras que já referi, diz que leiamos
todas as Escrituras, e que em nenhuma delas se achará preceito ou documento
mais dificultoso; e eu digo que para achar preceito e documento mais dificultoso,
não é necessário ler todas as Escrituras, nem muitas,
porque basta só um texto do Evangelho. O mesmo Cristo que disse: Diligite
inimicos vestros, diz assim no capítulo catorze de S. Lucas: Qui non
odit patrem suum, et matrem, et uxorem, et filios, et fratres, et sorores,
adhuc autem et animam suam, non potest meus esse discipulus (Lc. 14,26): Quem
não aborrece a seu pai e a sua mãe, a sua mulher e a seus filhos,
a seus irmãos e a suas irmãs, e, o que é mais, a si mesmo,
não pode ser meu discípulo. — Este preceito obriga em
todos aqueles casos em que o amor dos pais e parentes se encontra com a observância
da lei de Deus. E geralmente é obrigação de todo o cristão
não corresponder a quem o ama, se ilicitamente é amado, ainda
que não fosse com perda da graça, senão da perfeição
que professa. De maneira que, combinados os cânones da lei de Cristo,
em uma parte manda-nos que amemos a quem nos aborrece: Diligite inimicos vestros,
e em outra que aborreçamos a quem nos ama: Qui non odit patrem, et
matrem, non potest meus esse discipulus. Agora pergunto eu: e qual destes
dois preceitos é mais dificultoso: aborrecer um homem a quem o ama,
ou amar a quem o aborrece? Responder com ódio ao amor, ou com amor
ao ódio? Antes de resolver a questão, disputemo-la primeiro,
e ouvi com atenção o que alegar por uma e por outra parte, porque
vós haveis de ser os juízes.

III

Primeiramente parece que é mais dificultoso amar a quem me aborrece,
do que aborrecer a quem me ama. Provo. O agravo com que me ofende o inimigo
é dor no coração próprio: a correspondência
com que falto ao amigo é dor no coração alheio; e no
remédio das dores sempre se acode primeiro à que mais lastima,
e sempre é mais sensitiva a que está mais perto. Logo, mais
natural é no homem o ódio ao inimigo que o amor ao amigo, porque
no ódio ao inimigo acode-se à dor própria, com a vingança,
no amor ao amigo acode-se à dor alheia, com a correspondência.
Mais. Quando amamos a quem nos ama, governa-se a vontade pela razão;
quando aborrecemos a quem nos aborrece, move-se o apetite pela ira, e os ímpetos
da ira sempre são mais fortes que os impulsos da razão; sempre
obram mais eficazmente os ofendidos que os obrigados, porque a ofensa corre
por conta da honra, a obrigação por conta do agradecimento,
e mais sofrível é o nome de desagradecido, que a nota de afrontado.
Mais ainda. Quando amo a quem me ama, pago o que devo; quando me vingo de
quem me ofendeu, pagam-me o que me devem. E quem há que não
seja mais inclinado a receber a satisfação, que a pagar a dívida?
Mais dificultoso é logo deixar de aborrecer a quem nos aborrece, que
deixar de amar a quem nos ama. Só parece que está a experiência
contra esta resolução, porque, sendo no mundo mais as ofensas
que os benefícios, são mais as ingratidões que as vinganças:
logo os homens, naturalmente, parece que são mais ingratos que vingativos.
Mas não é assim, porque para a vingança é necessário
poder, e para a ingratidão basta a vontade. E se é menor o número
das vinganças, é por serem os homens menos poderosos, e não
por serem menos inimigos.

Por outra parte, parece que é mais dificultoso aborrecer a quem nos
ama, que amar a quem nos aborrece. Provo: Amar a quem me aborrece, é
ser humano com quem o não é comigo; aborrecer a quem me ama,
é ser cruel com quem mo não merece: o ser humano é ser
homem, o ser cruel é ser fera. Logo, aborrecer a quem nos ama, tanto
mais dificultoso é quanto mais repugnante à natureza. Mais,
e é forte razão esta. Da parte do objeto tanto provoca o ódio
a aborrecer, como o amor a amar; porém, da parte da potência,
a vontade é mais inclinada a amar que a aborrecer, porque o amar é
ato natural, o aborrecer violento. Donde se segue que, convidada igualmente
a vontade do ódio do inimigo para aborrecer, e cio amor do amigo para
amar, naturalmente se há de inclinar mais a amar ao amigo que a aborrecer
ao inimigo. Logo, maior violência padece a vontade em aborrecer a quem
nos ama que em amar a quem nos aborrece. Mais. Amar a quem nos aborrece, é
ato de generosidade; aborrecer a quem nos ama, é ato de ingratidão.
E que coração haverá tão irracional, que queira
antes ser ingrato que generoso? Quem há de trocar a nobreza e fidalguia
de uma generosidade pela vileza e baixeza de uma ingratidão? Finalmente,
mais dificultoso é aborrecer sem causa que amar com razão. Em
quem me aborrece há razão para o amar, porque se o aborrecer
como inimigo, posso-o amar como próximo. Em quem me ama não
há causa para o aborrecer, porque se o devo amar por próximo,
por que o hei de aborrecer por amigo? Logo, mais dificultoso é aborrecer
a quem nos ama, que amar a quem nos aborrece.

IV

Posta a questão nestes termos, para eu continuar o sermão,
é necessário tomar primeiro os votos aos ouvintes, porque onde
eles reconhecerem a maior dificuldade aí se devem empregar todas as
forças do discurso. Que dizeis pois nestes dois casos? Tendes por mais
dificultoso o amor dos inimigos ou o ódio dos amigos? Amar aos que
vos aborrecem, ou aborrecer aos que vos amam? Todos se calam, ninguém
me responde. Mas já vejo que quereis que os votos sejam secretos, para
serem mais livres e mais verdadeiros. Vede se os interpreto e distingo bem.
Destas grades para fora pode ser que haja alguns ânimos tão briosos
ou vingativos, que tenham por mais dificultoso amar inimigos e perdoar agravos.
Mas das mesmas grades para dentro — que é a melhor e principal
parte do auditório — como os corações naturalmente
são mais benignos, cuido eu que o amor há de ter por si os mais
votos, e tanto mais e melhores, quanto mais bem entendidos. Do amor —
dizem as almas mais discretas e de melhor coração — do
amor me livre a mim Deus, que pelo ódio não me há de
levar o diabo ao inferno. O estado religioso, como livre das injúrias
do mundo, quase é incapaz de ódio; mas para o isentar do amor,
que tem penas e asas, não bastam cercas nem muros. Dado pois, e não
concedido, que algum amor modesto e comedido pudesse aqui entrar ou entrasse,
não haver de amar neste caso, nem corresponder com amor um coração
que é amado, não há dúvida que este é o
ponto mais estreito e dificultoso, e este o preceito mais árduo da
lei de Deus. Assim me parece, senhoras, que o está votando geralmente
e concedendo o vosso silêncio. Com que vem a distinguir sutilmente,
na segunda parte da nossa mesma questão, outro terceiro caso, tanto
mais escrupuloso quanto mais delicado, e tanto mais dificultoso quanto mais
repugnante. Não amar é menos que aborrecer a quem nos ama; e
como no preceito de aborrecer se inclui também o de não amar,
neste não amar, que é menos, consiste o mais da dificuldade.
Assim entendo que o entendem e estão votando os melhores juízos.
E por que não pareça que dissimulo a força da vossa razão,
para mais facilmente a desfazer, pondo-me primeiro da vossa parte, a quero
fortificar e defender quanto ela merece.

Primeiramente, o mesmo legislador desta sagrada república, S. Bernardo,
sobre aquelas palavras dos Cânticos: Dilectus meus mihi, et ego illi
(3), ainda das telhas acima diz que o amor com que a alma ama a Deus, nasce
do amor com que Deus ama a alma: Amor Dei amorem animae parit. E acrescenta
que por isso a alma ama, porque sabe que é amada: Nec dubitat se amari
quae amat (4). No amor natural e cá da terra passa o mesmo. Um amor
naturalmente chama por outro. E não há coração
nem tão surdo, que se é chamado não ouça, nem
tão mudo, que se ouviu não responda. Até as penhas dos
desertos respondem às vozes, e o mesmo eco, que parece que é
repulsa, é correspondência. A correspondência não
é outra coisa que a reflexão do mesmo amor, que torna dobrado
para donde veio. E assim como não há mármore nem bronze
tão duro que, ferido do raio do sol, não responda ao mesmo sol
com a reflexão do seu raio, assim não há coração
tão de mármore na dureza, e tão de bronze na resistência,
que, prevenido no amor, o não redobre e corresponda com outro.

É tão certa e experimentada esta força do amor, e tão
constante no juízo de todos os sábios, que poetas, oradores,
filósofos, e os mesmos Santos Padres a confessam e encarecem. Entre
os poetas, todos sabem o epigrama de Marcial: Ut ameris, ama. Deixo outras
citações de autores desta casta, porque são gente que
mais professa a lisonja que a verdade. Entre os oradores, o príncipe
de todos, Marco Túlio, escrevendo a Bruto, diz assim: Clodius valde
me amat, quod cum mihi persuasum sit, non dubito quin illum quoque judices
a me amari. Quer dizer: Clódio me ama muito, e como eu estou persuadido
a isso, não duvido que vós também julgareis que eu o
amo. — E por quê? Nihil enim minus homini ea, quam non respondere
in amore us a quibus provocere: Porque não há coisa —
diz — mais alheia do ser de homem, que não responder com amor
a quem o amou primeiro. — De maneira que, em sentença daquele
homem, de cuja língua estavam pendentes as sentenças de todos,
o homem que foi amado de outro, ou o há de amar também, ou deixar
de ser homem.

Entre os filósofos, Hecaton, referido e seguido por Sêneca —
que é dobrada autoridade — disse o mesmo, mas com coturno filosófico
e confiança de mestre dos mestres. As suas palavras, como se apregoasse
e vendesse amor, são estas: Ego tibi monstrabo amatorium sine medicamento,
sine herba, sine ullius veneficae carmine. Se alguém deseja que o amem,
não peça ervas à natureza, nem confeições
à medicina, nem feitiços à arte mágica: venha-se
a mim, que eu lhe descobrirei um segredo de mais virtude que todas as ervas,
de mais eficácia que todos os medicamentos, e de mais e maior força
que todos os feitiços. E que segredo é este tão poderoso?
Si vis amari, ama: Se queres ser armado, ama. — Não disse mais
o filósofo, e nestas duas palavras compreendeu toda a filosofia do
amor. Amar e ser amado, são relações mútuas e
recíprocas que, posta ou suposta uma, logo naturalmente resulta a outra.
E assim como o amor só com amor se conquista, assim não há
amor tão forte, ou tão fortificado, que se não renda
a outro amor. Vamos aos Santos Padres.

V

São João Crisóstomo, sem alegar a Hecaton, também
grego, disse como própria a sua mesma proposição: Si
vis amari, ama. Mas provou o que ele não tinha provado, com a natureza
do mesmo amor. O amor essencialmente é união, e a união
não pode unir um extremo sem que una também outro. Porventura,
se vos atardes a um homem pode ele deixar de ficar também atado convosco?
Não. Pois, da mesma maneira — diz Crisóstomo — se
amastes, não podeis deixar de ser amado: Quomodo enim, si velis te
ipsum alteri alligari, non aliter poteris, nisi ipsum quoque tibi ipsi alliges.
Assim se uniu e atou Jônatas a Davi, e Davi logo ficou unido e atado
com Jônatas. Os mesmos termos com que o conta a Escritura declaram o
amor e mais a comparação: Anima Jonathae conglutinata est animae
David (5). Não diz que Jônatas amou a Davi, e Davi a Jônatas,
senão que a alma de Jônatas se grudou com a alma de Davi. Porque
assim como uma tábua se não pode grudar com outra sem que ambas
fiquem unidas, assim uma alma não pode amar outra alma sem que ambas
se amem. O valor de Davi moveu a alma de Jônatas a que o amasse, e o
amor de Jônatas obrigou a alma de Davi a que o correspondesse. Jônatas,
não amado, amou; mas Davi, depois de amado, não pôde deixar
de amar. O primeiro amor foi livre, o segundo necessário. Finalmente,
conclui o mesmo S. Crisóstomo, que a vontade de cada um é a
lei da vontade alheia: Voluntas tibi sit lex, porque, segundo cada um quiser
ou não quiser amar, assim será ou não será amado.
De sorte que o amar eu é mandar e obrigar a que me amem. O amor é
o preceito, a correspondência a obrigação: o amar império,
o ser amado obediência.

Santo Agostinho, em menos palavras não disse menos. Nulla major est
ad amorem invitatio, quam amantem amore praevenire. Et nimis durus est animus,
qui si dilectionem nolebat impendere, nolit rependere: O maior e mais certo
motivo de ser amado, é antecipar o seu amor quem quer alcançar
o alheio. Todos os outros motivos, por mais fortes que pareçam, e por
mais usados que sejam, conquistam vaidade e engano, mas não verdadeiro
amor. A formosura entretém os olhos, as dádivas enchem as mãos,
a discrição lisonjeia os ouvidos, os regalos saboreiam o gosto,
o poder e a majestade faz dobrar os joelhos; mas sujeitar e render o coração,
só o amor. E o coração humano tão generoso, que
não se rende senão a seu igual, nem há outro interesse,
força ou arte com que se possa conquistar, senão amando: Nulla
major ad amorem invitatio, quam amore praevenire. A palavra invitatio soa
a invite, e o praevenire é ganhar por mão. Quem tomou a mão
em amar primeiro, esse levou o resto ao amor. A razão é —
diz Agostinho — porque se no mundo houver algum coração
tão duro e duríssimo, que nem ame nem queira amar, nenhum haverá
tão alheio de toda a humanidade — ainda que seja esse mesmo —
o qual, depois de amado, não queira responder com amor: Et nimis durus
est animus, qui si dilectionem nolebat impendere, nolit rependere. Notai muito
aquele nolebat e este nolit. Antes de o amarem, poderá haver coração
tão duro que não ame nem queira amar; mas, depois de se ver
amado, há de amar e querer amar, ainda que não quisesse.

É tanto isto assim — para que eu também fizesse meu encarecimento
– é tanto isto assim, que se Deus criara um coração
de ferro, e este coração fosse amado, natural e necessariamente
havia também de amar. Falando Plínio do magnete, ou calamita,
ou pedra-ímã — que me não cabe na boca o nome do
nosso vulgo descreve o seu amor com o ferro, ou os seus amores, desta maneira:
Quid ferri duritia pugnatius? Sed cedit, et patitur amores. Trahitur namque
a magnete lapide, dominatrixque illa rerum omnium materia, ut proprius venit,
assistit, teneturque, et complexu haeret: Que dureza mais dura que a do ferro?
E contudo esta matéria, domadora de todas as coisas, também
se deixa penetrar e padecer de amor. É o ferro amado da pedra-ímã
— a quem os franceses discretamente chamam pedra amante — e é
tão milagrosa ou tão amorosa entre ambos a força desta
natural simpatia, que a pedra, como amante, sempre está atraindo, e
o ferro, como amado, sempre correspondendo. Ela o chama, ele se move; ela
o guia, ele a segue; ela o eleva, ele se suspende; ela o ata, ele se deixa
prender; se ela pára, ele pára; se sobe, sobe; se desce, desce;
se anda à roda, rodeia; sempre juntos, sempre conformes, sempre unidos,
e tão pegados entre si, como se um e outro foram de cera. E se isto
obra no ferro uma qualidade oculta, que seria no coração, ainda
que fosse de ferro, um amor declarado? Um ferro amado de uma pedra não
pode deixar de pagar amor com amor. E poderá um coração
humano amado não amar? Todos estais dizendo que não, e parece
que dizeis bem.

Só tem esta regra ou opinião geral uma exceção
contra si, a qual notou Santo Ambrósio, e, depois dele, Santo Agostinho,
ambos pelas mesmas palavras. Ponderam o caso de José, e o valor mais
que de homem com que fugiu e largou a capa nas mãos da senhora, e o
que sobre tudo encarecem, é que, amado, não amou: Adamatus,
non redamavit. Logo, não é tão certa nem tão universal
a proposição que até agora pretendemos provar, nem tão
repugnante e quase impossível ao coração humano não
responder com amor quando é prevenido com outro, ou deixar de amar
quando é amado. Bem pudera eu aqui responder que a exceção
de um exemplo, quando é um só, ou raríssimo, não
desfaz a regra geral, antes a confirma. E a mesma admiração
com que os santos celebram este caso e lhe chamam prodigioso, vem a ser nova
e maior prova de quão próprio e natural é da vontade
e propensão humana, seguir sempre e obrar o contrário. Mas,
com licença de Ambrósio e Agostinho, eu não consinto
em que José amado não amasse, antes digo, que não só
amou, mas com muito maior excesso do que foi amado. A egípcia, como
vil, acusou a José, e o que começou amor, degenerou em vingança;
José, pelo contrário, como honrado, estando inocente, não
se desculpou, e o que parecia desamor, mostrou que era fineza. Fino com Deus,
porque não quis pecar, fino com seu senhor, porque o não quis
ofender, e mais fino com a mesma que o amou, porque, preso, carregado de ferros,
e quase condenado à morte, não se desculpou a si pela não
culpar a ela. Pagou-lhe o amor com lhe encobrir o delito. Ela cobriu-o com
a capa, e este com o silêncio. Tão impossível é
que o amor, ainda na terra mais dura e mais estéril, e ainda rejeitado
e rebatido, não produza amor.

Mas, admitido que a egípcia amasse e não fosse amada, e José
fosse amado e não amasse, falando em termos somente naturais e humanos,
neste caso, ou noutro semelhante, qual estado ou qual fortuna seria mais cruel
e mais detestável: a do que ama, e não é amado, ou a
do que é amado, e não ama? Respondo que no tal acontecimento
— de que Deus livre a todo o coração humano — o
que ama e não é amado seria digno de maior compaixão,
e o que é amado e não ama, de maior horror. Amar e não
ser amado é o maior tormento; ser amado e não amar é
a maior injustiça. Mas aquilo é padecer a sem-razão;
isto é fazê-la: logo, melhor é amar e não ser amado,
que ser amado e não amar, porque amar e não ser amado, é
ser mártir; ser amado e não amar, é ser tirano. Sendo
pois um excesso tão alheio da razão, tão indigno da humanidade,
e tão contrário a toda a inclinação natural, não
pagar amor com amor, quem duvida ou pode duvidar que não só
o aborrecer a quem nos ama — que é ato — mas ainda o não
amar somente — que é mera suspensão — seja a maior
violência da liberdade humana, o maior aperto do coração,
e a maior tirania da natureza?

VI

Ponderadas assim de qualquer modo as três dificuldades em que até
agora nos detivemos — cujo peso e energia mais se pode sentir que declarar
— que faria a vontade humana cercada ou sitiada por todas as partes,
e combatida juntamente de três violências tão fortes? Um
preceito lhe manda amar os inimigos, outro lhe manda aborrecer os amigos,
e o terceiro, que deste se segue, lhe manda não amar nem corresponder
— para que o digamos por seu nome — aos amantes. E, bastando qualquer
destas obediências por si a fazer desmaiar e estremecer o mais animoso
coração, todas juntas, que será? Pela parte do vivente,
pela parte do sensitivo e pela parte do racional se vê o homem aqui
nas mais apertadas angústias. Quem o manda amar o inimigo, parece que
o quer insensível; quem o manda aborrecer o amigo, parece que lhe tira
o racional; e quem o manda que, amado, não ame, parece que o supõe
pedra ou morto. Que remédio, logo, para satisfazer tantas e tão
dificultosas obrigações juntas, e para que não fique
nelas o entendimento esmorecido, a vontade desesperada, e toda a alma oprimida?
Não é tampouco suave a lei de Deus, que, se dificulta os preceitos,
não facilite os remédios. Todas estas dificuldades, que tão
feias e tão medonhas se representam ao coração humano,
assim como elas são três, assim se vencem com três palavras,
que são as que tomei por tema: Diligite — inimicos — vestros.
Manda Cristo, Senhor nosso, que amemos nossos inimigos. E só com a
imitação deste preceito, que tem alguma dificuldade, se observam
os outros dois, sem nenhuma dificuldade. Disse só com a imitação,
porque não é necessária a observância deste preceito
para observar os outros. Mas, se este preceito trata dos inimigos, e os outros
dois dos amigos, se este preceito manda amar, e um dos outros aborrecer, se
este diz: amai a quem vos tem ódio, e o outro diz: não ameis
a quem vos ama, como pode ser que na imitação deste preceito
consista a observância dos outros? Não vos parece isto que digo
uma coisa muito maravilhosa? Pois este é o segredo admirável
que vos prometi.

Para inteligência dele havemos de supor, em primeiro lugar, que há
dois gêneros de inimigos: uns inimigos que nos querem mal, e nos fazem
mal com ódio, e outros inimigos que nos querem mal, e nos fazem mal
com amor. Os inimigos que nos querem e fazem mal com ódio, são
os que Cristo nos manda amar, e estes todos sabemos quais são; os inimigos
que nos querem e fazem mal com amor, são os que o mesmo Cristo nos
manda aborrecer, e estes porventura não sabeis nem imaginais quais
sejam, e agora o sabereis. Sabeis quem são estes inimigos? São
todos aqueles que por sangue e parentesco mais ou menos estreito, ou por inclinação
natural, ou por trato, ou por benefícios, ou por esperanças
e dependências, ou por graças e prendas pessoais, ou por qualquer
outro motivo de afeição vos amam desordenadamente. A esposa
santa dizia: Ordinavit in me charitatem (6). O amor ordenado é caridade,
e o amor desordenado, ainda que a desordem seja ou pareça leve, nem
é caridade, nem é amor: é ódio. Como pode ser
amar nem querer bem o que me priva ou aparta do sumo bem?

Daqui se segue a segunda coisa que havemos de supor, e é que assim
como há dois gêneros de inimigos, assim há dois gêneros
de amar e dois gêneros de aborrecer. Há amar bem e amar mal,
e há aborrecer mal e aborrecer bem. E em que se distinguem ou diferençam
este amar e este aborrecer? Distinguem-se pelos afetos e também pelos
efeitos, porque o amar mal é aborrecer, e o aborrecer bem é
amar. Os antigos pintavam o amor e o ódio igualmente armados, ambos
com arco e aljava; mas o amor diziam que atirava com setas de ouro, as quais
tinham por efeito dar vida, e o ódio com setas de ferro, que tinham
por efeito matar. Agora pergunto: e se o amor e o ódio trocassem as
aljavas, que sucederia neste caso? Sucederia sem dúvida o que conta
Anacreonte que sucedeu ao mesmo amor com a morte. Caminhavam — diz —
o amor e a morte, cada um a seus intentos, e vieram ambos a fazer noite e
albergar na mesma estalagem; levantaram-se muito cedo para continuar seus
caminhos, e como havia ainda pouca luz, sucedeu que as aljavas se trocaram;
e porque o amor levou as setas da morte, daqui veio que dali por diante as
suas feridas foram mortais. O mesmo digo eu que sucederia no nosso caso, não
fabulosa, senão verdadeiramente. Se o amor atirasse com as setas do
ódio, o amar seria aborrecer; e se o ódio atirasse com as setas
do amor, o aborrecer seria amar. Pois isto mesmo que sucederia é o
que sucede, e isto mesmo que havia de ser, é o que é, diz Santo
Agostinho. Porque o amor, amando mal, aborrece como se fora ódio; e
o ódio, aborrecendo bem, ama como se fora amor: Si male amaveris, tunc
odisti: si bene oderis, tunc amasti: Se amastes mal, então aborrecestes;
se aborrecestes bem, então amastes. — É sentença
expressa e sem variação alguma, tirada do mesmo texto de Cristo.
E por que não pareça que o nome de admirável, que eu
dei a este segredo, é posto por mim, o mesmo Agostinho lhe deu o mesmo
nome: Magna et mira sententia.

Supostas estas duas verdades certas e evidentes, em que muitos corações
andam tão enganados e tão cegos, cuidando que amam e são
amados, quando aborrecem e são aborrecidos, vede quão fácil
fica a execução, e quão natural e leve o exercício
de todas aquelas que ao princípio nos pareciam dificuldades, violências
e tiranias. Pergunto: não é muito fácil não amar
eu a quem me não ama, e aborrecer a quem me aborrece? Sim. Pois isto
é o que Deus nos manda. Se os que me amam, me amam mal, daqui se segue
que tão fácil é não amar eu a quem me ama, como
não amar a quem me não ama, porque quem me ama mal, não
me ama. E do mesmo modo, tão fácil é aborrecer a quem
me ama, como aborrecer a quem me aborrece, porque o amor de quem me ama mal,
tão fora está de ser amor, que antes é aborrecimento
e ódio. E se alguém disser que ao menos por esta via não
guardo o preceito de amar aos inimigos, também infere mal e se engana,
porque esse mesmo aborrecê-los e não os amar, é amá-los.
A prova é manifesta, mas há mister atenção. Amar
mal é aborrecer: Si male amaveris, tunc odisti: logo quem me ama mal,
aborrece-me, e porque me aborrece, é meu inimigo. É meu inimigo?
Logo, tenho obrigação de o amar: Diligite inimicos vestros.
Tenho obrigação de o amar como inimigo? Logo sou obrigado a
o aborrecer bem, assim como ele me ama mal; e se eu o aborreço bem,
já o amo, porque aborrecer bem é amar: Si bene oderis, tunc
amasti.

VII

Parece-me que temos filosofado assaz, posto que toda esta especulação
foi necessária para chegarmos ao ponto em que estamos. Agora desçamos
à prática dele, que é o que mais importa, e ponhamos
o exemplo nas amizades, afeições e correspondências que
no mundo se usam — e também nas que se abusam fora do mundo —
para que a doutrina chegue a todos. Nenhum amor há mais natural, mais
lícito e menos suspeitoso que o dos pais para com os filhos; e contudo
é coisa que excede toda a admiração, dizer o divino Mestre,
como referimos no princípio, que quem não aborrecer seu pai
e sua mãe, não pode ser seu discípulo: Qui non odit patrem
et matrem, non potest meus esse discipulus. Abaixo de Deus devemos amar os
pais, que depois dele nos deram o ser. Como diz logo o mesmo Deus, que para
ser seu discípulo é necessário aborrecer e ter ódio
aos próprios pais? Bem se está vendo que este texto há
mister declaração, e nenhum lha deu melhor que S. Gregório
Papa. Muitas vezes o amor dos pais é desordenado, e não conforme
a lei e amor de Deus. Não são todos como Jefté, que sacrificou
a filha única, nem todos como Abraão, que não duvidou
levar também ao sacrifício o seu primogênito. Quantos,
por estabelecer a sucessão da casa, impedem o estado religioso às
filhas, e quantos, por terem perto de si os filhos, não fazem caso
de que eles andem muito longe de Deus? E pais que querem mais à sua
casa que à minha alma, pais que estimam mais o seu gosto que a minha
salvação, pais que, porque me deram a vida temporal, me apartam
de segurar eu a eterna, vede se são merecedores de amor ou de ódio?
Ditosas vós, que por amor do esposo do céu tivestes valor para
deixar os pais da terra; ditosas, se por vontade sua os deixastes, e muito
mais ditosas, se contra sua vontade fugistes deles. Eles, voluntariamente
deixados, sacrificaram em vós o seu amor; e vós, violentamente
fugindo deles, consagrastes neles o vosso ódio. Este é o ódio
santo com que Cristo manda aborrecer pai e mãe, aos que se quiserem
fazer dignos de sua escola; e este o verdadeiro aborrecimento com que lhe
devem pagar os filhos o seu falso amor. Nem se encontra o preceito de amar
os mesmos pais com este preceito ou conselho de os aborrecer — diz S.
Gregório — porque, se eles me aborrecem com amor, justo é
que eu os ame com ódio: Quasi enim per odium diligitur, qui dum prava
non suggerit, non oditur. Eles aborrecem-me com amor, porque me amam mal:
Si male amaveris, tunc odisti; e eu amo-os com ódio, porque os aborreço
bem: Si bene oderis, tunc amasti.

Depois do amor dos pais — em que se compreendem todos os graus do sangue
— debaixo do nome comum de amigos entrarão geralmente, e com
maior decoro, todos os outros que amam e são amados. Quando os amigos
eram verdadeiros amigos, era também o nome desta profissão sagrada
e venerável: Illud amicitiae sanctum et venerabile nomem. Mas, depois
que a sincera amizade, a qual entre o coro das virtudes tinha tão honrado
lugar, se desceu de sua dignidade, e acompanhou com os vícios, que
amigo ou chamado amigo há hoje que, assim como é o maior inimigo
de si mesmo, o não seja também do seu amigo? Tertuliano, falando
de certos hereges que negavam a ressurreição da carne, sendo
porém grandes amadores dela, chamou-lhes discretamente os amicíssimos
inimigos da carne: Inimicos carnis, et nihilominus amicissimos ejus. E, posta
de parte a heresia, quem são os amigos do uso, sem lhes fazermos agravo,
senão amigos inimicíssimos, ou amicíssimos amigos? E,
se não, dizei-me os mais moços — para que guardemos esse
respeito às cãs — dizei-me e confessai sem rebuço:
de que vos servem esses que tendes por amigos mais íntimos, e que amizades
são as suas? Irem convosco ao passeio e à comédia, levarem-vos
à casa de jogo e às casas ou serralhos da ruim conversação;
acompanharem-vos de noite aos furtos da honra alheia, ou à vingança
oculta; serem vossos padrinhos no desafio a que vos levam já excomungado,
e vos trazem morto ou mal ferido; serem os secretários de todos vossos
cuidados e pensamentos, e os conselheiros de todas as traças, enredos
e execuções de vossas loucuras e apetites sem freio; enfim,
os cúmplices inseparáveis de todos vossos vícios e pecados,
e as guias mais certas para o inferno, cujas estradas vos alargam e asseguram:
e tudo isto com tal esquecimento da fé e desprezo da razão,
como se não houvera outra vida, nem conta, nem consciência, nem
alma, nem Deus. E se quanto tenho dito é menos do que calo e vós
sabeis, julgai se pode haver algum inimigo mais cruel e mais inimigo que estes
amigos? Não só são os maiores inimigos, mas muito maiores
que o maior, porque o maior inimigo pode-vos tirar uma vez a vida do corpo,
e estes tiram-vos mil vezes a vida da alma. Ouvi o que lhes diz, e como os
trata o apóstolo São Tiago.

Adulteri, nescitis quia amicitia hujus mundi inimica est Dei (7)? Adúlteros,
não sabeis que a amizade deste mundo, qual é a vossa, é
inimiga de Deus? — Amizade inimiga lhe chama, porque debaixo do nome
de amigos, são os mais cruéis inimigos, e não há
amizade tão contrária, nem hostilidade tão fera, tão
nociva e tão inimiga, como são estas amizades. Mas, reparemos
no nome extraordinário de adúlteros, com que o apóstolo
ou nomeia ou afronta estes amigos! O qual nome, não só parece
impróprio de amigos ou inimigos, mas incapazes eles mesmos de se lhes
poder aplicar. O adultério não se pode cometer ou executar,
senão entre três: o adúltero, a mulher própria,
a quem se nega o legítimo amor, e a estranha, que ilicitamente se busca
e ama. Pois, se este ato trágico se não pode representar com
menos de três figuras, se o adultério se não pode cometer
senão entre três, como pode haver adultério entre dois
amigos somente, e esses amados e conformes entre si, e nenhum ofendido do
outro, nem aborrecido? Por isso o apóstolo, quando lhes chamou adúlteros,
lhes chamou também ignorantes: Adulteri, nescitis? — porque não
sabem que o seu amor é aborrecimento, a sua união discórdia,
a sua fidelidade traição, e toda a sua amizade o maior ódio.
O adúltero divide os seus afetos ou a sua paixão entre duas:
a uma aborrece, a outra ama; a uma despreza, a outra estima; a uma ofende,
a outra regala; a uma é infiel, a outra mostra fidelidade; a uma trata
em tudo como amiga, e a outra como inimiga. E estas mesmas contrariedades,
que no adultério se repartem por dois sujeitos, nesta falsa e adulterina
amizade, todas se ajuntam e acumulam em um só, que é reciprocamente
cada um dos falsos amigos. Como a sua amizade é inimiga e o seu amor
não é amor, senão ódio, o mesmo que, enquanto
amigo, é amado, estimado, defendido, favorecido e servido, e goza aparentemente
os bens do amor, esse mesmo, enquanto inimigo, é aborrecido, ofendido,
perseguido, maltratado e destruído, e padece verdadeiramente todos
os males do ódio. E a razão destes efeitos tão encontrados
e tão unidos não é outra, por última conclusão,
senão a que temos dito. A amizade de tais amigos, e o amor dos que
assim se amam, porque se amam mal, é verdadeiro ódio; que muito
logo, que tendo-se verdadeiro ódio, se queiram mal e se façam
mal? O mesmo que se querem, isto se fazem, assim como se fariam bem, se se
quisessem bem. Mas quem se quer mal e se faz mal porque se ama mal, não
se pode querer bem, nem fazer bem, senão aborrecendo-se bem: Si bene
oderis, tunc amasti; si male amaveris, tunc odisti.

VIII

Tempo é já de colhermos as redes. E quantos corações
se acharão — pode ser — enredados e presos nelas? Mas,
se os peixes, que entre todos os animais são os mais brutos, fazem
tanta força pelas romper e se libertar, que alma haverá tão
irracional e tão insensível, que sendo a prisão mortal
como é, queira antes a prisão que a liberdade? O que se possui
com amor — diz o nosso São Bernardo — não se pode
deixar sem dor. E que dor seria a de hoje — mas que lágrimas
tão venturosas e tão alegres! — se de todos os corações
que se amam se houvesse de fazer um apartamento geral? Este é, e este
foi o meu intento em todo o discurso que ouvistes. E se lhe destes a atenção
que vos pedi, bem creio tereis entendido quão fácil resolução
será a que vos pretendo persuadir. Não digo que se deixem de
amar os que se amavam, nem de querer-se bem os que se queriam bem: só
digo que se se amavam, se amam, e se se queriam bem, não se queriam
mal. Concordem-se logo em se amar os que se amam, mas amem-se como devem e
como convém a ambas as partes. Quem diz que me ama, porque assim o
cuida, ou me quer bem, ou me quer mal. Se me quer mal, quero-o amar como cristão:
Diligite inimicos vestros; se me quer bem, quero-o amar como homem, porque
todo homem, diz Cristo, ainda que seja gentio, ama a quem o ama: Si enim diligitis
eos qui vos diligunt, nonne et ethnici hoc faciun (8)? Na nossa doutrina —
que toda é do mesmo Cristo — uma e outra coisa vem a ser muito
mais fácil. Se amar mal é aborrecer, que dificuldade tem aborrecer
a quem me aborrece? E se aborrecer bem é amar, que dificuldade há
em amar a quem me ama? Por isso digo que se amem os que se amam, mas de modo
que se queiram bem e não se façam mal.

E porque neste apartamento — que é forçoso — das
pessoas e nesta troca — que há de ser voluntária —
de um amar, ou modo de amar, em outro, nem os mal-amados se queixem dos que
bem os aborrecem, nem os bem aborrecidos dos que mal os amavam: consolem-se
uns e outros com a queixa que fazia Davi dos que, pelo mesmo caso, se queixavam
dele: Perfecto odio orderam illos, et inimici facti sunt mihi (Sl. 138, 22):
Aborreci com perfeito ódio aos que devia aborrecer — diz Davi
— e eles entenderam isto tão mal, que por isso se fizeram meus
inimigos. — Pois, se vós os aborrecestes, que muito é
que eles vos aborreçam? E se vós lhes tivestes ódio,
que muito que eles também vos pagassem com ódio, e de amigos
vossos se trocassem em inimigos? Muito é — diz Davi — e
de quem entende pouco, o que vai de ódio a ódio. O ódio
com que eu os aborreci foi ódio perfeito: Perfecto odio oderam illos;
e ódio perfeito é verdadeiro amor. Pois, se eu os amei com verdadeiro
amor, e essa é a perfeição do ódio com que os
aborreci, que causa tiveram eles para se fazerem meus inimigos: Et inimici
facti sunt mihi? Nenhuma causa tem logo de se queixar ou agravar deste ódio
perfeito, nem os que não professam perfeição —
porque também eles são obrigados à consciência
— nem, e muito menos, os que a professam, porque seria cometer um sacrilégio,
e consentir e concorrer para outro com dobrada ofensa e injúria —
por não lhe chamar escândalo — da mesma perfeição.
O que devem fazer nesta troca de amor imperfeito e ilícito com o ódio
perfeito e santo, todos os que, amando-se mal, se aborrecem, é darem-se
o parabém a si e ao seu mesmo amor, pois não pode haver parabém
mais justo e bem-aceito, que quando o que era mal se trocou em bem, e quando
se começam a querer bem sem engano os que, enganados e cegos, se queriam
mal.

E se o nome de ódio — que sempre é odioso — ainda
com ser perfeito, lhes causa algum horror, ouçam a suavidade divina
com que a suprema verdade e sabedoria do mesmo Cristo lhe tirou todo este
medo com outro maior: Qui amat animam suam, perdet eam; et qui odit animam
suam, in vitam aeternam custodit eam (Jo. 12,25): Quem ama a sua alma, perdê-la-á,
e quem lhe tiver ódio, salvá-la-á para sempre. —
Não é melhor o ódio que me salva, que o amor que me perde?
Não é melhor a triaga amargosa que me dá vida, que o
veneno doce que me mata? Pois este é o amor e o veneno que o médico
divino condena, e este o ódio e a triaga que receita, aprova e persuade.
Oh! como é louco e sem juízo todo o amor desordenado! Pode haver
maior loucura que estimar mais a enfermidade que a saúde, e mais a
morte que a vida? Se vós amais mal, ao menos não mateis a quem
vos ama. Animam suam, na língua em que falava Cristo, quer dizer a
alma, a vida e a pessoa. E por que se não contentará quem vos
ama, de ser amado como vós amais a vossa alma, como amais vossa vida,
e como vos amais a vós mesmo? Não é isto desamar, nem
pretendeu Cristo, quando o disse, que nos amássemos menos, mas que
fizéssemos verdadeiros os encarecimentos vãos dos que se amam.
Então amareis a quem vos ama como a vossa vida, como a vossa alma,
e como a vós mesmo em alma e corpo, quando amardes e zelardes igualmente
tanto a sua salvação como a vossa, a qual se não consegue
nem pode conseguir senão por beneficio deste ódio: Qui odit
animam suam, in vitam aeternam custodit eam.

Reparai se tendes fé naquele aeternam. A vida que depende deste ódio
não é outra que a eterna. Esta é a que se perde por quatro
dias de amor, e esta a que, por outros tantos de ódio, se assegura
para sempre. E então, que digam e cuidem que se querem bem os que,
só por se quererem, não querem o sumo bem! E que creiamos que
nos amamos e não nos aborrecemos, quando nos aborrecemos para o céu
e nos amamos para o inferno? Se vos amais, e estimais tanto o ser amado, por
amor do vosso mesmo amor deveis fazer estas tréguas e esta suspensão
de afetos, entre vós e com ele. Porque, se fordes ao céu, os
mesmos que agora vos amais, lá vos haveis de amar eternamente. E, pelo
contrário, se fordes ao inferno — o que Deus não permita
— lá vós haveis de aborrecer com ódio imortal,
enquanto o mesmo Deus for Deus. Será logo bem que, por um falso amor
de poucos dias, percais o verdadeiro amor de toda a eternidade, e que este
mesmo amor com que vos amais — e só porque vos amais —
se haja de converter em ódio eterno?

IX

Mas ainda que não houvera inferno, nem paraíso, nem cristandade,
nem religião, bastava só ter entendimento e juízo para
que esta apreensão e quimera que se chama amor fosse aborrecida e detestada
como rematada loucura. Se no mundo houvera amor, ainda que acima do mesmo
mundo — como dizia — não houvera céu, nem abaixo
dele inferno, eu vos concedera que amásseis; mas perder, não
digo já a alma, de que agora não falo, mas a liberdade, a quietação,
o sossego, o descanso e a vida, e condenar o triste coração
ao perpétuo martírio de cuidados, confusões e tormentos,
e a estar ou andar sempre penando fora de si, por uma imaginação
fantástica do que não há nem é, nem o nome de
loucura e cegueira basta a declarar o desvario de tão custoso engano.

E para que vos desenganeis que não há amor, e que este nome
especioso, ainda nos que parece mais fino, é falso, ponhamos o exemplo
em ambos os sexos, para que chegue o desengano a todos, e nem os homens se
enganem com as mulheres, nem as mulheres com os homens. Entre os homens houve
porventura algum amante mais perdido que Adão e Eva? Tão perdido
que por ametade de uma maçã deu um mundo inteiro, e não
pelo que era a maçã, senão pela mão de quem vinha.
Tão perdido que perdeu o paraíso, se perdeu a si, e nos perdeu
a nós e todos seus descendentes, por não perder um leve agrado
de quem imaginava então que amava muito. Mas, assim como Adão
se enganou com o pomo, se enganou também com o seu próprio amor.
Chegou a ocasião de mostrar qual ele era, e logo desfez a mesma fineza
tão grosseiramente que, sendo o preceito sob pena de morte, para ele
se livrar a si, acusou a Eva: Mulier quam dedisti mihi (9). Enquanto cuidou
que a pena da lei era somente cominação, grandes aparências
de fineza — que tudo o que dissemos foram só aparências
— mas tanto que viu que a devassa ia deveras, livre-me eu uma vez, e
padeça Eva embora. Pois estes eram, Adão, os vossos amores,
estas as vossas finezas, estes os vossos extremos tão afetuosos? Estes
eram. Estes eram os de Adão, e estes são os de seus filhos,
para que na primeira mulher aprendam as mulheres, e no primeiro homem se desenganem
de todos.

E os homens, onde conheceram o amor das mulheres? Não é necessário
repetir o exemplo, porque já o vimos na amante de José. Não
reparou na autoridade, sendo princesa, nem na lealdade, sendo casada, nem
na desigualdade, sendo ela senhora e ele escravo, porque nada disto via. Por
isso diz a Escritura, não que pôs os olhos em José, senão
que lhos lançou ou lhe atirou com eles: Injecit oculos in Joseph (10),
para significar que em tudo o que fez e pretendeu obrou como cega. Mas, tanto
que recuperou a vista, logo viu a falsidade de seu amor, e como se quisesse
vingar a Eva, o mesmo que Adão disse a Deus disse ela ao marido: Ingressus
est servus Hebraeus, quem adduxisti, ut illuderet mihi (Gên. 39,17):
Eis aqui para que me trouxestes a casa o servo hebreu, para que ele se atrevesse
a me querer descompor. — Oh! falsa! Oh! desleal! Oh! fementida! Oh!
traidora! Agora, porém, só verdadeira, quando descobriste o
avesso do teu coração, e nele o interior inconstante e já
mudado com que a José enganavas e a ti mesma mentias. Mas, que muito
é que mudasse tão de repente a cena de amor de uma mulher, quando
o primeiro autor de semelhante tragédia foi o primeiro homem? Se os
homens querem outro exemplo, lembrem-se do amor de Dalila para com Sansão.
E se as mulheres quiserem também outro, não se esqueçam
do amor de Amon para com Tamar, no mesmo dia com os maiores extremos amada,
e no mesmo com muito maiores aborrecida. Assim tratou um homem, que tinha
obrigações de ser honrado, a mulher mais ilustre de Israel;
e assim pagou uma mulher, de que se tinha feito a maior confiança,
ao homem mais famoso do mundo.

Eu bem ouço que as mulheres, e não os homens, têm a opinião
da inconstância; mas eles são filhos delas. Olhai que bem o notou
Jó com ser homem: Homo natus de muliere, nunquam in eodem statu permanet
(Jó 14,1 s): O homem filho da mulher é tão vário,
tão mudável e tão inconstante, que nunca permanece nem
dura no mesmo estado. — Mas, se todo o homem nasce de mulher e de homem,
por que lhe chama Jó neste caso só nascido de mulher: Homo natus
de muliere? Porque os homens no sexo saem aos pais, e na inconstância
às mães. Porém daqui mesmo se colhe que tão inconstantes
são os homens como as mulheres: os homens, por filhos de tais mães,
e as mulheres por mães de tais filhos: Homo natus de muliere. A mulher
inconstante por condição, o homem inconstante por nascimento;
a mulher, como a lua, por natureza; o homem, como o mar, por influência.
Vede o que disse Cristo a uma mulher, a samaritana. Era ela não só
a mais discreta de que se lê no Evangelho, senão também
a mais sábia, pelas questões que altercou com o mesmo Cristo.
E que lhe disse o Senhor? Quinque viros habuisti, et hunc quem habes non est
tuus vir (11). Além do amigo que agora tens, já tiveste outros
cinco. — Pois cinco amigos, um depois dos outros, uma só mulher,
e não de muita idade? Aí vereis a inconstância do amor
humano. Mas, reparai no que porventura não advertis. Ou a samaritana
deixou aos cinco, ou os cinco a deixaram a ela: se eles a deixaram a ela,
fiai-vos lá de amor de homens? E se ela os deixou a eles, quem se fiará
de amor de mulher?

Bem digo eu logo que isto que no mundo se chama amor é uma coisa que
não há nem é. É quimera, é mentira, é
engano, é uma doença da imaginação, e por isso
basta para ser tormento. Pode haver maior tormento que amar, quando menos
em perpétua dúvida, amar em perpétua suspeita de ser
ou não ser amado? Pois este é o inferno sem redenção
a que se condenam todos os que amam humanamente, e tanto mais, quanto mais
amarem. Ouvi umas palavras que tendes ouvido muitas vezes, mas com uma consideração
em que nunca reparastes — Fortis est ut mors dilectio, dura sicut infernus
aemutatio (Cân. 8,6): O amor é forte como a morte, e o ciúme
cruel como o inferno. — Assim o declara o texto original hebreu, o grego,
o siro e o arábico: Crudelis sicut infernus zelotipia. Todos sabeis
que à morte, a qual é trânsito e passagem, se seguem outros
dois termos de que se não passa: ou inferno ou paraíso. Pois,
se o amor é como a morte: Fortis est ut mors dilectio, por que se não
segue também depois do amor ou paraíso, ou inferno, senão
inferno somente: Dura sicut infernus aemulatio? Porque o amor desta vida e
deste mundo é uma morte que só tem precitos, e não tem
predestinados; é uma morte pela qual sempre se vai ao inferno e nunca
ao paraíso. O paraíso do amor — se o houvera — havia
de ser amar e ser amado, e amado com certeza de nunca ser aborrecido. Mas
como não há, nem pode haver no mundo, nem este amor, nem esta
certeza, senão as dúvidas, os escrúpulos, as desconfianças,
os receios e as suspeitas de se me amam ou não me amam, ou de que já
me ama menos que dantes, ou que trocam o meu amor por outro, ou de que outrem
pretende o que eu amo, em que consiste por vários modos o tormento
crudelíssimo do ciúme, este ciúme sempre duvidoso, sempre
crédulo, sempre fixo na imaginação, e nunca satisfeito,
este é o inferno inevitável e sem redenção a que
todos os que amam se condenam, e em que são atormentados duramente,
sem fim e sem remédio: Dura sicut infernus aemulatio.

Pois, se o que neste mundo se chama amor, bem considerado e conhecido, e
visto com os olhos abertos, é um inferno, que será se a este
inferno ajuntarmos o da outra vida, no qual estão ardendo e arderão
por toda a eternidade tantas almas infelizes, que por amarem o que não
deviam, e como não deviam, não repararam em se condenar para
sempre. Mas, graças ao divino Mestre e luz de nossas cegueiras, que
se quisermos sair do abismo e labirinto delas, ainda estamos em tempo de trocarmos
estes dois infernos por outros dois paraísos, um aqui, outro no céu.
Aborreçamos com verdadeiro amor o que amávamos com verdadeiro
ódio; queiram-se o verdadeiro bem os que verdadeiramente se queriam
mal. E para que desde logo entremos no paraíso presente, livre de penas
e cuidados, amemos só aquele soberano Amante — e mais os que
o têm por Esposo — o qual é certo e de fé, que paga
uma nossa vontade com duas suas, a divina e a humana, tão fiel, tão
constante, tão amoroso, que a todos os que o amam com verdadeiro amor,
posto que limitado, ele não deixou jamais de amar com amor imenso e
infinito. Ego diligentes me diligo (Prov. 8, 17), diz o mesmo Cristo: Eu,
Deus e Homem, amo a todos os que me amam. — E o nosso S. Bernardo, pregando
aos seus religiosos, e ajuntando à certeza da fé as evidências
do que tinha experimentado, dizia: Ego amans amari me dubitare non possum,
non plusquam amare: Eu, quando amo a Jesus, de nenhum modo posso duvidar que
também sou amado dele, tão seguro do seu amor, que não
vejo com os olhos, como do meu, que sinto no coração.

E sendo isto assim, e o mesmo Cristo quem é, e nós cristãos,
e tendo fé, que seja tal a nossa demência que o não amemos
a ele, e empreguemos nosso coração em outro amor? E que haja
almas racionais tão sem juízo e tão inimigas de Deus
e de si, que contra si cometam uma tal desumanidade, e contra Deus um tão
descomedido desprezo? Desprezo digo, porque, com nome de desprezado e enjeitado,
se lamenta de nós o mesmo Senhor. Apareceu Cristo, Senhor nosso, a
Santa Brígida, com rosto compungido e cheio de confusão, e como
envergonhado e corrido lhe disse estas sentidas palavras: Ab omnibus neglectus
sum, ab omnibus repulsus sum, quia nemo me in sua dilectione habere desiderat:
Não estranhes, filha, que me saiam ao rosto estes sinais da mágoa
e sentimento, porque todos me desprezam, todos me enjeitam e lançam
de si, e não há quem aceite o meu amor. — Verdadeiramente
que quem se não enternece com estas palavras e não se compadece
do Filho de Deus, e não tem lástima ao seu amor, tão
justamente queixoso e magoado, nem é cristão, nem é homem.
E que seria se nós entrássemos também neste número
dos que o enjeitam e desprezam?

Senhor, Senhor, não permita vossa bondade tal, nem nos castigue tão
severamente a justa indignação de vosso amor. Todos prostrados
a vossos pés nos arrependemos, não de o ter desprezado, não,
que sempre o estimamos e adoramos como nosso, mas de o ter tão cegamente
ofendido. Confessamos nossa cegueira, confessamos nossa ingratidão,
só menor que vossa misericórdia. Ela nos valha com vosso piedosíssimo
coração, e nós, com todos os nossos, desde esta hora,
para sempre, abjuramos, renunciamos e condenamos a perpétuo esquecimento
todo o outro afeto, todo o outro desejo e todo o outro pensamento, que não
for de só a vós amar e querer. Morra nesta hora, e acabe-se
nesta geral despedida, para sempre, todo o amor que não for de Jesus.
E desengane-se toda a outra afeição, vista, conversação
ou correspondência humana, que só com o aborrecimento daqui por
diante será amada na terra, para que o falso e breve amor, convertido
em verdadeiro, se continue eternamente, e dure sem fim no céu.

(1) Amai a vossos inimigos (Mt. 5,44).

(2) Aug. in Ps. 118.

(3) O meu amado é para mim e eu para ele (Cânt. 2,16).

(4) Bernard. Serm. 69.

(5) A alma de Jônatas se conglutinou com a de Davi (1 Rs. 18,1).

(6) Ordenou em mim a caridade (Cânt. 2,4).

(7) Adúlteros, não sabeis que a amizade deste mundo é
inimiga de Deus (Tg. 4,4)?

(8) Por que se vós não amais senão os que vos amam,
não fazem também assim os gentios (Mt. 5,46 s)?

(9) A mulher, que tu me deste (Gên. 3, 12).

(10) Lançou os olhos sobre José (Gên. 39,7).

(11) Tiveste cinco maridos, e o que agora tens não é teu marido
(Jo. 4,18).

Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma – 1651

Ego autem dico vobis: Diligite inimicos vestros, benefacile his qui oderunt
vos (1).

I

Que depressa nos leva a Igreja a Deus, e com toda a alma! Anteontem nos excitou
a memória, ontem nos ilustrou o entendimento, hoje nos aperfeiçoa
a vontade. Excitou-nos a memória com a lembrança da morte: Memento
homo quia pulvis es (2); ilustrou-nos o entendimento com o maior exemplo da
fé: Non inveni tantam fidem in Israel (3); aperfeiçoa-nos a
vontade com o ato mais heróico da caridade, que é o amor dos
inimigos: Diligite inimicos vestros. Este ato, como tão singular da
lei e tão próprio da profissão cristã, será
o assunto único de todo o meu discurso. E, posto que a matéria
do amor dos inimigos seja tão pregada e tão batida, o que determino
tratar sobre ela é uma questão muito nova e muito própria
deste lugar. Funda-se toda sobre aquele Vós do nosso texto: Ego autem
dico vobis. E a questão ou dúvida é: se debaixo deste
vós se entendem também as altezas e as majestades. As pessoas
soberanas são superiores a toda a lei, e por isso será necessário
examinar exatamente até onde se estende o preceito de Cristo, e resolver
com a graça do mesmo Senhor, e sem lisonja de nenhum outro, se são
obrigados também os reis a amar seus inimigos.

II

Primeiramente parece que não são obrigados. E está por
esta parte toda a autoridade de Salomão em uma obra famosa de sua sabedoria
e grandeza. No capítulo terceiro dos Cânticos descreve ele a
fábrica de uma carroça triunfal, em que saía a passear
pela corte de Jerusalém nos dias de maior solenidade. A matéria
era dos lenhos mais preciosos e cheirosos do Líbano, as colunas de
prata, o trono de ouro, as almofadas de púrpura, e no estrado onde
punha os pés estava esculpida a caridade: Ferculum fecit sibi Rex Salomon
de lignis Libani: columnas ejus fecit argenteas, reclinatorium aurem, ascensum
purpureum; media charitate constravit (4). Nestas últimas palavras
está o reparo, não só grande, mas digno de suma admiração.
É possível que um rei tão sábio como Salomão,
e não gentio, senão fiel, quando faz a maior ostentação
de sua grandeza e majestade, leve a caridade debaixo dos pés? O rei
assentado no trono, e a caridade debaixo dos pés do rei? O rei entronizado,
e a caridade pisada: Media charitate constravit? Sim, porque cuidam alguns
reis — ou obram como se o cuidaram — que tão fora estão
de serem sujeitos às leis da caridade, que antes a mesma caridade e
todas suas leis lhes estão sujeitas a eles. Não falo dos Neros,
nem dos Calígulas, e muito menos dos Sardanapalos, que semelhantes
monstros da natureza humana eram tiranos crudelíssimos, e não
reis nem homem. Falo dos que são como Salomão naquele tempo,
e do mesmo Salomão particularmente, o qual, para a pompa e vaidades
inúteis, e para fazer a sua corte inveja das outras e ostentação
de todo mundo, carregou e oprimiu os seus povos com tal excesso, que chegaram
por desesperação a sacudir o jugo e privar da obediência
e do reino a Roboão, seu primogênito. Se se antojava o apetite
e vaidade de Salomão já perdido, que houvesse prata e mais prata:
columnas argenteas, que houvesse ouro e mais ouro: reclinatorium aureum, que
houvesse púrpura e mais púrpura: ascensum purpureum. —
Tudo isto há de haver, dizia ele, por qualquer via, por mais violenta
que seja. E, se a caridade o contradisser, mete-se a caridade debaixo dos
pés. — Pois, não vês, ó rei sábio,
a opressão e opressões do teu povo? Não ouves os gemidos
dos pobres? Não te lastimam as lágrimas dos miseráveis?
Não consideras que o nome de rei te obriga a ser pai dos vassalos?
Não reconheces no seu mesmo sofrimento que todos te amam como filhos,
e que, quando te aborreceram e foram teus inimigos, os deveras, contudo, amar?
Onde está a proximidade? Onde está a humanidade? Onde está
a caridade? Onde? Lá está, debaixo dos pés do rei, porque
os reis não são sujeitos à caridade nem a suas leis:
Media charitate constravit.

A este hieroglífico de Salomão se ajunta um argumento para
mim de muito formal conseqüência. Os reis não são
obrigados a amar os amigos: logo, muito menos, a amar os inimigos. Quem não
tem amor para o amor, como há de ter amor para o ódio? Não
há entre todos os corações humanos e entre todos os estados
do mundo nem vontades mais desamoráveis que as soberanas, nem coisa
mais oposta ao amor que a majestade. E por que razão, se razão
se pode chamar? Por duas. Pela desigualdade e pela obrigação
dos vassalos. O amor recíproco, que por outro nome se chama amizade,
diz Aristóteles que o não pode haver senão entre iguais;
e como entre os reis e os vassalos há uma desigualdade tão distante,
como do inferior ao supremo, a mesma soberania, que os remonta sobre a igualdade,
os desobriga da correspondência. E porque amaremos vassalos ao rei é
obrigação natural, esta é a segunda isenção
ou regalia que logram as majestades para nem lhes ser necessário amar
para ser amados, nem depois de ser amados, ficarem obrigados a amar. Como
o amor dos vassalos é dívida, nem os reis ficam obrigados à
paga, nem os vassalos têm ação para a desejar nem pedir.
Daqui se segue aquela grande dor — por lhe não chamar injustiça
— de que tenha mais ventura com os reis o servir que o amar, porque
os serviços alguma vez são premiados, o amor nunca é
correspondido. Não seriam as majestades majestades se se sujeitassem
a amar. Por quê? Por outras duas razões da sua parte. Amar é
inclinar-se à vontade primeiro, e depois render-se; e o render-se é
contra a potência da majestade, o inclinar-se contra a soberania. Por
isso disse bem quem lhe conhecia esta condição, que nem pode
haver majestade com amor, nem amor com majestade: Non bene conveniunt, nec
in una sede morantur majestas et amor E se os reis, como dizia, nem amados
se inclinam a amar os amigos, odiados e aborrecidos, como se hão de
sujeitar a amar inimigos?

Seja exemplo o rei de melhor coração de quantos empunharam
cetro. Teve Davi muitos e grandes inimigos — que não fora Davi
se os não tivera. — E como os amava? Ele mesmo o diga: Persequar
inimicos meos, et comprehendam illos, et non convertar; donec deficiant. Confringam
illos, nec poteterunt stare; cadent subtus pedes meos (5). A meus inimigos
hei-os de perseguir até os tomar às mãos, nem hei de
desistir ou descansar até os desfazer e consumir de todo. Eu lhes quebrarei
o orgulho e lhes torcerei o pescoço, até os meter debaixo dos
pés. E se Cristo manda que não só façamos bem
aos inimigos, mas que oremos por eles: Et orate pro persequentibus et calumniantibus
vos (6), ouvi como os encomendava o mesmo Davi a Deus em suas orações:
Averte mala inimicis meis, et in veritate tua disperde illos (7):O mal que
me desejam meus inimigos, peço-vos, Senhor, que o convertais contra
eles, e que pela má vontade que me têm, vós lhes ponhais
as mãos e a boa vontade, destruindo-os e aniquilando-os — que
isso quer dizer disperde. Finalmente, chegado à hora da morte, tempo
em que até os corações mais duros não só
perdoam a seus inimigos, mas lhes pedem perdão, duas mandas do testamento
de Davi foram deixar muito encarregado a seu filho Salomão que de nenhum
modo se esquecesse de mandar matar a Joab e a Semei, por certos agravos que
lhe tinham feito. E se desta maneira amava a seus inimigos um rei canonizado,
que se levantava à meia-noite a rezar o saltério, e debaixo
da púrpura vestia cilícios, os que não são tão
santos nem tão beatos, vede como guardaram o diligite inimicos vestrost
(8), e como tomaram por si o dico vobist(9)?

III

Isto é o que se oferece pela primeira parte, e mais aparente que sólida
da nossa questão; a segunda não só defende, mas define
que também as altezas e majestades, por mais altas e soberanas que
sejam, se entendem e compreendem debaixo daquele vobis, e que todas igualmente,
como os outros cristãos, sem nenhuma exceção nem privilégio,
estão sujeitos ao preceito de Cristo, e obrigados a amar seus inimigos
e a lhes fazer bem: Diligite inimicos vestros, et benefacite his qui oderunt
vos.

O fundamento desta obrigação está na primeira palavra
do mesmo texto: Ego autem dico vobis. Ego: Eu. E quem é esse eu? Não
é Platão, nem Licurgo, nem Numa Pompílio, cujas leis,
contudo, por serem racionais, as veneravam e obedeciam todos os reis que alcançaram
fama de justos; mas é aquele Eu que disse a Moisés: Ego sum
qui sum (Êx. 3,14): Eu sou o que sou — o que só tem o ser
de si, e o deu a todas as coisas; aquele Eu que faz os reis e também
os desfaz, quando eles não fazem o que devem: Per me reges regnant
(10); aquele Eu que traz escrito na orla da opa real: Rex Regum, et Dominus
dominantium (Apc. 19,16): Rei dos reis, e Senhor dos senhores; aquele Eu de
quem os reis são mais súditos do que os vassalos dos reis, porque
os reis todos receberam o domínio e jurisdição da mão
e consenso dos povos e, se conservam em si, e perpetuam na sua posteridade
o mesmo poder e soberania, é por mercê e à mercê
de Deus, enquanto ele for servido, e com um aceno da sua vontade não
mandar o contrário. E este Eu: Ego autem dico vobis — este Eu
é o que diz a todos, sem distinção nem exceção
de pessoas ou dignidades: Diligite inimicos vestros, para que entendam os
reis da terra e de terra: Et nunc, reges, intelligite: erudimini qui judicatis
terram (11) — que este e qualquer outro preceito de Deus o devem receber
não pesadamente, senão com alegria, e observar com temor e tremor:
Servite Domino in timore, et exultate ei cum tremore (12), sob pena de que,
se eles não amarem os inimigos, Deus os terá por inimigos a
eles, e os destruirá, e perecerão como tais: Ne quandeo irascatur
Dominus, et pereatis de via justa (13).

Nem faz contra isto o exemplo alegado de Davi, antes persuade o contrário,
porque Davi era soldado de Deus e capitão general de seus exércitos,
e aqueles, a quem chamava seus inimigos, eram os inimigos de Deus, observando
tal diferença e distinção entre uns e outros, que aos
inimigos seus amava e fazia bem, e só aos de Deus perseguia e fazia
cruel guerra, tão insigne vingador das injúrias divinas, como
perdoador das próprias. Assim perdoou tantas vezes a Saul, e desejou
perdoar a Absalão, e sentiu e lamentou sua morte, como a de Abner,
alegando sempre a Deus que a nenhum seu inimigo dera mal por mal: Si reddidi
retribuentibus mihi mala (14), sendo eles tão ingratos que lhe davam
mal por bem: Retribuebant mihi mala pro bonisti (15). E se mandou matar a
Joab e a Semei, foi por justiça, como rei, e não por vingança,
guardando estas duas sentenças e execuções para o testamento
e para a hora da morte, para que se visse que o fazia por escrúpulo,
e não por ódio. Este era o coração de Davi, e,
por isso, coração verdadeiramente real e digno de que Deus tirasse
a coroa da cabeça de Saul para lha pôr na sua, como o mesmo Saul
confessou.

Andava Saul pelos montes à caça de Davi para lhe tirar a vida,
quando acaso entrou só em uma gruta onde o mesmo Davi estava escondido
com os poucos que seguiam sua fortuna. Todos lhe disseram e instaram que lograsse
a ocasião que Deus lhe tinha metido nas mãos, e, com a morte
de Saul, se livrasse de uma vez das suas perseguições. Mas ele,
contentando-se com lhe cortar um retalho da roupa para amostra da sua fidelidade,
depois que Saul saiu da gruta apareceu subitamente diante dele, e mostrando-lhe
aquele testemunho tão claro do perigo em que estivera e da vida que
lhe não quisera tirar nem consentir que lha tirassem, prostrado a seus
pés lhe disse desta sorte: — Eis aqui, ó Rei de Israel,
a quem andas buscando pelos desertos para o matar. Eis aqui aquele bichinho
vil da terra, à caça do qual sai da sua corte em pessoa um tão
grande monarca. Eis aqui como te merece que o persigas com tão mortal
ódio, e o faças andar desterrado e fugitivo de ti por estes
montes. -Ficou assombrado do que via e do que ouvia Saul, e, compungido, e
com as lágrimas nos olhos, lhe disse: Agora conheço, Davi —
e não só lhe chamou Davi, senão filho — agora conheço,
filho, e sei certissimamente que hás de reinar, e que deste mesmo Reino
de Israel, que eu chamo meu, hás de ser tu o rei. Nunc scio quod certissime
regnaturus sis, et habiturus in manu tua regnum Israel (1 Rs. 24, 21). O que
só te peço, é que me prometas e jures diante de Deus
que a mesma piedade que usaste comigo, a terás da minha casa e descendência,
e não extinguirás do mundo o meu nome: Jura mihi ne deleas semen
meum post me, neque auferas nomem meum de domo patris mei (16). Tão
certa e infalivelmente conheceu e creu Saul que havia Davi de ser rei. Mas
aonde tirou esta certeza, que chama certíssima, e não antes,
senão agora e neste mesmo caso: Nunc scio quod certissime regnaturus
sis?

Abulense, e todos os outros expositores dizem que o inferiu Saul da generosidade
de ânimo com que, sendo tão capital inimigo de Davi, ele lhe
perdoara. Mas não é necessário que o digam expositores,
porque o mesmo Saul o ponderou e o disse. Notai todas as palavras: Tu enim
tribuisti mihi bona; ego autem reddidi tibi mala (Ibid. 18): Porque tu, Davi,
deste-me bem por mal, sendo que eu sempre te dei mal por bem. Et tu indicasti
hodie quae feceris mihi bona: quomodo tradiderit me Dominus in manum tuam,
et non occideris me (Ibid. 19): E bem mostraste e provaste hoje isto que digo,
pois, entregando-me Deus nas tuas mãos, e podendo-me matar, me deste
a vida. Quis enim, cum invenerit inimicum suum, dimittet eum in via bona:
Por que que homem há que, tendo seu inimigo debaixo da lança,
lhe perdoe e o deixe ir em paz? Sed Dominus reddat tibi vicissitudinem hanc
pro eo quod hodie operatus es in me (Ibid. 20): Mas eu confio e estou certo
— concluiu Saul — que Deus não há de deixar sem
prêmio esta diferença que hoje usaste comigo. E como? Tirando-me
a mim a coroa da cabeça, e pondo-a na tua: Quia scio quod certissime
regnaturus sis (17). Assim entendeu Saul, posto que obrava o contrário,
que um homem que, tendo na sua mão a vingança, não sabia
vingar agravos, um homem que, podendo fazer mal a seu maior inimigo, lhe fazia
os maiores bens, um homem que pagava o ódio com amor, e a morte, que
lhe queriam dar, com a vida, um tal homem como este, não o tinha Deus
dotado de um coração tão generoso e tão real,
senão porque o queria e havia de fazer rei: Quod regnaturus sis.

Reparem muito os reis no que inferiu com tanta certeza este rei, e reparem
também no que eu agora quero inferir, não com menor certeza.
Assim como é certo que Deus deu a coroa a Davi porque se não
vingou de Saul, assim digo, e tenho por certo que, se Davi pelo contrário
se vingara, ainda que Deus o tivesse destinado para a coroa, lha não
havia de dar. Caso notável é que repartindo Jacó na hora
da morte a bênção que tocava ou havia de tocar a cada
um de seus filhos, a do cetro e coroa de Israel a desse e colocasse no quarto.
Este quarto filho era então Judas, do qual descenderam os Davis, os
Salomões e outros reis do reino por isso chamado de Judá, e
do qual também descendeu Cristo. Mas, por que razão? O reino
e a primeira bênção, segundo o uso dos patriarcas e conforme
a lei natural que ainda hoje se observa, pertence ao primogênito, que
era Rúben. E, posto que Rúben perdeu este direito e se fez indigno
da coroa pela gravíssima injúria que cometeu contra seu pai,
no incesto que todos sabem, a Rúben seguia-se, com o mesmo direito,
Simeão, que era o filho segundo, e a Simeão se seguia Levi,
que era o terceiro. Pois, por que não deu Jacó a bênção
ou investidura do reino nem a Simeão, nem a Levi, senão a Judas,
e, deixando deserdados daquele grande e supremo morgado ao segundo e ao terceiro
filho, o assentou e instituiu no quarto?

Também aqui não havemos mister doutores, porque na bênção
de ambos os deserdados dá o mesmo texto e o mesmo Jacó a causa:
Simeon et Levi fratres, vasa iniquitatis bellantia. In consilium eorum non
veniat anima mea, et in caetu illorum non sit gloria mea, quia in furore suo
occiderunt virum, et in voluntate sua suffoderunt murum. Maledictus furor
eorum, quia pertinax, et indignatio eorum, quia durat (18). Simeão
e Levi foram aqueles dois irmãos que, para vingar a injúria
que o príncipe Siquém tinha feito à sua irmã,
mataram ao mesmo Siquém e a todos os siquemistas, e lhes destruíram
e assolaram a cidade. E homens tão duros de coração,
homens tão furiosos, pertinazes e vingativos — posto que a causa
parecesse justificada — não só não são dignos
de reinar, nem de ter o supremo domínio sobre os outros homens, mas
merecem justissimamente que, se por outra qualquer via lhes pertence o cetro
e a coroa, de nenhum modo, e em nenhum tempo a logrem, antes sejam para sempre
privados e deserdados do reino, como eu, com a minha maldição,
em nome de Deus os deserdo. — Isto disse e fez Jacó, deserdando
e privando do reino aos dois filhos, a quem de direito pertencia, só
por serem vingativos e não perdoarem agravos. E o mesmo sucederia sem
dúvida a Davi, se ele, como perdão de Saul, lhe não tirara
da cabeça a coroa de que, por inimigo, era indigno, e a pusera na sua.

De tão longe ia Deus estabelecendo e fundando já o preceito
que hoje havia de promulgar por sua própria boca, ensinando, com tão
graves e temerosas experiências, aos reis que quando dissesse: Ego dico
vobis, também falava com eles. E notem os que de presente reinam que
com muito maior razão lho diz hoje Cristo do que o disse antigamente,
porque aquele Eu: Ego autem, ainda então não era o que hoje
é. Era Deus, era supremo Legislador, era Rei dos Reis, mas ainda não
era Rei que tivesse pedido perdão pelos que o crucificavam, nem Rei
que tivesse tomado por título Rei dos que lhe tiraram a vida. Lendo
Santo Agostinho no título da cruz Rex Judaeorum (Jo. 19,19), admira-se
muito de que Cristo tomasse título de Rei dos judeus, sendo Rei de
todo o mundo e de todas as nações dele. Nos quatro braços
da mesma cruz se significava o domínio que tinha o Rei crucificado
sobre as quatro partes do mundo; e nas letras hebraicas, gregas e latinas,
que eram as mais universais, o senhorio e império de todas as nações.
Pois, se Cristo era Rei de todo o mundo e de todos os homens, por que toma
só por título o de Rei dos judeus? Porque, ainda que era Rei
de todos, e morrera por todos, só os judeus foram aqueles que lhe tiraram
a vida, e onde foi maior o amor dos inimigos, ali assentou melhor o título
de Rei. Rei de todos, Redentor de todos, e o que perdoou os pecados de todos;
mas dos judeus, de quem recebeu os maiores agravos, dos judeus que lhe tiveram
o maior ódio, dos judeus que mais que todos foram seus inimigos, desses
particularmente Rei: Rex Judaeorum. Para que acabem de entender os que são
e se chamam reis, que não só pelo preceito que lhes pus, senão
pelo exemplo que lhes dei, e para perpetuarem os seus reinos, como eu eternizei
o meu, todos sem exceção, são obrigados ao amor dos inimigos,
e todos a fazer bem aos que lhes tiverem ódio: Diligite inimicos vestros,
et benefacite his qui oderunt vos.

IV

Declarado o dico vobis, e provado como também aos reis compreende
o preceito de amar os inimigos, segue-se a declaração do diligite,
e o modo com que os hão de amar, cuja prática, se for como se
usa, não tem menos dificuldade nem menor perigo. Mas, antes que cheguemos
a este ponto, é necessário averiguar outro, e saber e distinguir
quem são os inimigos dos reis. Perguntando um doutor da lei a Cristo,
Senhor nosso, que havia de fazer para se salvar, respondeu o Senhor que amar
a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo, fazendo-lhe
primeiro repetir o texto: Diliges Dominum Deum tuum ex toto corde tuo, et
proximum tuum sicut te ipsum (19). Porém o doutor, para se justificar,
como diz S. Lucas: Volens justificare seipsum (20), desta mesma resposta de
Cristo levantou outra questão, dizendo: Et quis est meus proximus (Lc.
10,29)? Bem está que seja eu obrigado a amar a meu próximo,
mas esse meu próximo, quem é? O mesmo digo eu, ou me podem dizer
e perguntar a mim. Bem provado está que os reis têm obrigação
de amar a seus inimigos; mas esses inimigos dos reis, quem são? A resposta
não é fácil, antes tal e de tão mau gosto, que
se eu a der, como devo, também pode granjear inimigos.

Começando pelos de mais longe, parece que os inimigos dos reis são
os que lhes impugnam o reino, os que lhes sitiam as cidades, os que lhes infestam
os mares, os que lhes roubam as conquistas, e os outros, que por qualquer
modo lhes fazem guerra. Mas estes não são os de que mais propriamente
fala Cristo. Os que nos fazem guerra -posto que a nossa língua equivocamente
lhes dê o mesmo nome — não se chamam propriamente inimicos,
chamam-se hostes. Inimicos são os inimigos por inimizade e ódio,
como costumam ser os de dentro: hostes são os inimigos por hostilidade
e por guerra, que só podem ser os estranhos e os de fora. Isto posto
Tertuliano teve para si que nenhum cristão podia ser hoste: Christianus
nullius est hostis. E, persistindo coerentemente neste seu parecer, chegou
a afirmar que nenhum rei podia ser cristão, nem algum homem, que fosse
cristão, podia ser rei: Si christiani Caesares esse possent, aut Caesares
christiani. E que fundamento teve ou podia ter este antiquíssimo autor,
e de muito são e profundo juízo em outras matérias —
ao qual S. Cipriano chamava o Mestre — para ensinar uma doutrina tão
alheia do que hoje se pratica em toda a cristandade? O fundamento que teve
foi o exemplo da humildade e paciência de Cristo, persuadindo-se que
as armas do cristão não podia ser a espada, que o mesmo Senhor
mandara embainhar a S. Pedro, senão a mansidão e a paciência.
E como via, pelo contrário, que à obrigação e
oficio dos reis e imperadores eram necessárias as armas e os exércitos
para defender seus estados e vingar as injúrias que lhes fizessem ou
intentassem fazer seus inimigos, esta mesma vingança dos inimigos julgou
que os excluía da lei do Evangelho e os fazia incapazes de ser cristãos,
definindo como por conclusão e vidente que todo aquele que por este
modo fizesse mal a seus inimigos, e, por conseqüência, os não
amasse, se fosse rei, não podia ser cristão, e, se quisesse
ser cristão, havia de deixar de ser rei.

Este erro de Tertuliano — que ainda hoje seguem os hereges anabatistas
— se refutou e desfez publicamente daí a cento e vinte anos,
com a conversão e batismo do imperador Constantino Magno, que foi o
primeiro príncipe cristão que houve no mundo, o qual, contudo,
sendo convertido pelo mesmo São Pedro, nem por isso desistiu da guerra
e empresas militares, armando, como dantes, exércitos, dando batalhas,
alcançando vitórias, conquistando cidades e províncias.
Nem daqui se segue que ele ou outro imperador e rei cristão pudesse
ter ódio a seus inimigos e fazer-lhes mal, porque — como bem
supunha Tertuliano nesta parte — seria obrar direitamente contra o preceito
expresso de Cristo, que manda amar e fazer bem a todos e quaisquer inimigos:
Diligite inimicos vestros, et benefacite his qui oderunt vos.

Mas, se esses reis cristãos, na invasão das terras de seus
inimigos, talam os campos, arrasam castelos, escalam cidades e derramam tanto
sangue, matando homens a milhares, como podem fazer tudo isto e amar juntamente
aos mesmos seus inimigos? Eu o direi, e respondo a uma pergunta com outra.
Quando o legítimo juiz, segundo o merecimento dos autos, condena à
morte e à confiscação de bens um réu, e manda
executar nele a sentença, pode fazer isto sem ódio? É
certo que não só sem ódio, senão amando muito
ao mesmo homem, e não procedendo àquele rigor senão muito
a seu pesar, e obrigado somente das leis da justiça, de que é
ministro. Pois, do mesmo modo obra o rei cristão na guerra que faz
a seus inimigos, porque naqueles casos ele e só ele é o legítimo
juiz. Qual cuidais que é a maior dignidade e autoridade do rei? Porventura
o domínio e superioridade suprema sobre tantas cidades e povos, de
quantos se compõe um reino ou muitos reinos? Não. A maior autoridade
e soberania dos reis é que nas controvérsias com outros príncipes
estranhos eles sejam, e Deus fiasse deles o serem, juízes em causa
própria. E como os reis são juízes, e juízes postos
por Deus em seu lugar, assim como o juiz inferior pode sentenciar o réu
a perdimento da vida e da fazenda, sem ódio, antes com amor, assim
o rei, na guerra justa e julgada por sua própria autoridade, pode mandar
matar e despojar seus inimigos, amando-os juntamente, e observando o preceito
de os amar: Diligite inimicos vestros.

Isto quanto à primeira parte do preceito está claro; mas quanto
à segunda ainda parece dificultoso, porque Cristo não só
manda que amemos aos inimigos, senão que lhes façamos bem: Et
benefacite his qui oderunt vos. Pois, se o rei cristão, com a guerra
e hostilidades dela, faz a seus inimigos o maior mal desta vida, antes os
dois maiores males, que é despojá-los dos bens que possuem e
da mesma vida se resistirem, como pode estar com isto o não lhes fazer
mal — que não basta — mas o fazer-lhes positivamente bem,
que é o que manda o preceito: Diligite, et benefacite? Também
a esta pergunta respondo com outra dentro no mesmo exemplo. Quando o juiz,
entre dois litigantes, condena o injusto possuidor, e o executa com violência,
privando-o do que injustamente possuía, faz-lhe bem ou mal? Não
há dúvida que lhe não faz mal, senão bem, e o
maior de todos os bens. Por quê? Porque o obriga a restituir por força
o que nunca havia de restituir por vontade, e por meio desta restituição,
sem a qual se não podia salvar, o põe em estado de salvação.
Tal é o bem e grandíssimo bem que os reis cristãos fazem
aos outros príncipes seus inimigos, quando, por meio da guerra justa
e poderosa, recuperam deles as terras, cidades ou reinos que eles ou seus
maiores lhes tinham usurpado. Porque, obrigando-os por força a restituir
o alheio, os desobrigam da restituição que nunca haviam de fazer
de grado, sendo, nestes casos, mais venturosos os despojados e vencidos do
que cuidam e festejam os vencedores. A espada antigamente era a insígnia
do juiz, por onde disse São Paulo: Non enim sine causa gladium portat(21);
e como os juízes inferiores não têm jurisdição
nem alçada sobre os pleitos dos reis, o que eles não podem com
a espada da justiça, fazem os reis com a justiça da espada.
É verdade que derramam sangue, e muito sangue; mas, assim como o médico
o tira sem querer mal nem fazer mal, assim o podem fazer os reis, não
por ódio, senão com boa vontade, e não para matar o corpo
mal afecto, senão para o descarregar do humor que o mata, e o reduzir
à saúde. Esta é a reta intenção com que
deve proceder na guerra todo o rei justo, por duas razões: a primeira,
para obedecer ao preceito de Deus, que é o Senhor dos exércitos;
a segunda, para o fazer propício a suas armas que, movidas por ódio
ou vingança, nunca podem ter bom sucesso. Assim o entendeu e deixou
escrito aquele tão grande rei como soldado, Davi: Si reddidi retribuentibus
mihi mala, decidam merito ab inimicis meis inanis (22).

V

Temos visto e distinguido quais são os inimigos que se chamam hostes,
e declarado em todo o rigor da Teologia como se podem amar e devem amar, ainda
quando se lhes faz ou faça guerra — matéria muito própria
do tempo presente, e não menos necessária a purificar a emulação
nacional, que entre gente de pouca nobreza e entendimento passa talvez a ser
ódio. — Agora, recolhendo-nos dos muros ou das raias a dentro,
segue-se ver quais sejam os outros que propriamente se chamam inimicos:

Diligite inimicos vestros. E, suposto que não falamos de inimigos
em geral, senão dos inimigos dos reis, dentro dos limites da nossa
questão, uma coisa entendo neste ponto, e outra parece que se não
pode entender. Entendo que os inimigos dos reis, neste caso, não podem
ser outros senão os vassalos; mas não entendo, nem sei como
se pode entender nem imaginar — ao menos entre nós — que
haja homem tão indigno e tão vil que mereça tão
abominável nome. Se o primeiro e maior amor dos vassalos é o
do seu rei; se os mortos suspiravam por este nome, e nele se sustentam os
vivos; se, para o sustentar, defender e conservar, todo o outro amor já
não é amor, desprezando-se a fazenda, o sangue, a vida, a mulher,
os filhos, como pode ser que haja ainda, ou possa haver, não digo homens,
senão monstros que sejam e se possam chamar inimigos dos reis? Eu não
direi quais são, porque o não sei entender, como já disse;
mas referirei e me referirei somente aos que os nomeiam, e são testemunhas
todas legais, e a quem a opinião do mundo dá grande crédito.

Entre os políticos, Xenofonte, Tácito, Cassiodoro; entre os
históricos, Tito Lívio, Suetônio, Quinto Cúrcio;
entre os filósofos, Sêneca, Plutarco, Severino Boécio;
entre os Santos Padres, Jerônimo, Crisóstomo, Gregório,
Agostinho, Bernardo — deixando os demais -todos, só com discrepância
no encarecimento, dizem e ensinam concordemente que os inimigos dos reis,
e os maiores inimigos, são os aduladores. E, suposto que sejam os aduladores,
como logo se provará largamente, onde vivem, ou onde estão encastelados
estes inimigos dos reis? É certo que não são os que lavram
os campos, nem os que aram os mares, nem os que presidiam as torres, nem os
que pleiteiam nos tribunais, nem os que comerciam nas praças, nem menos
todos os outros que, com o trabalho de suas mãos, servem à república
e só conhecem de palácio as paredes, e as adoram de fora. Logo,
se não são os que somente as vêem de fora, devem de ser
sem dúvida os que as freqüentam de dentro, verificando-se também
dos reis o que Cristo pronunciou geralmente de todos os homens: Inimici hominis
domestici ejus (23). Os domésticos, os familiares, os que só
são admitidos a ouvir e ser ouvidos, estes são os aduladores
e por isso, os inimigos. Assim comenta o texto de Cristo S. Bernardino de
Sena, declarando que a razão de serem inimigos os domésticos,
é por serem aduladores, e que esta pensão ou desgraça
é a mais perniciosa dos príncipes: Nihil principi pernitiosius
esse potest, quam domesticus inimicus, hujusmodi autem sunt adulatores.

S. Gregório Magno que, depois de grandes cargos políticos nas
duas maiores cortes, de Roma e Constantinopla, foi cabeça suprema de
toda a Igreja, e por si mesmo e seu juízo, ciência e experiência,
uma das mais eminentes cabeças do mundo, não só diz que
os aduladores secretos são públicos inimigos dos reis, mas dá
por regra e cautela aos mesmos reis, que quando virem que são maiores
os louvores com que forem adulados deles, tanto os reconheçam por maiores
inimigos, e creiam que o são: Tanto majores hostes credendi sunt, quanto
magis laudibus adulantur. E se isto não vêem claramente todos
os reis, é porque é tal o doce veneno da lisonja que, entrando
pelos ouvidos, lhes cega também os olhos. Por isso S. Pedro Damião,
tão prático e desenganado das cortes, que por fugir muito longe
delas, renunciou à púrpura, a que compararia os aduladores de
palácio? Comparou-os às andorinhas de Tobias, as quais, fazendo
o ninho na sua casa, lhe pagaram a hospedagem com lhe tirar a vista. Tais
— diz ele — são os aduladores: Quidum adulationis oleo
audientis caput impinguant, interiores oculos, ne solida lucefruantur, excaecant.

Santo Agostinho, autor em toda a matéria primaz, com doutrina tirada
da escolha de el-rei Davi, ensina que há dois gêneros de inimigo:
uns que perseguem, outros que adulam; mas que mais se há de temer a
língua do adulador que as mãos do perseguidor: Duo sunt genere
enim eorum, persequentium et adulantium, sed plus persequitur lingua adulatoris,
quam manus persecutoris. A mão do perseguidor arma-se com a espada,
com a lança, com a seta, com o veneno, e com todos os outros instrumentos
de ferir e matar, que a fúria e violência do fogo acrescentou
à dureza do ferro; e, contudo, diz o maior doutor da Igreja que mais
se há de temer a língua desarmada do adulador, que todas as
armas do perseguidor e inimigo. Mas, porque dirão os palacianos —
como dizem aos da nossa profissão — que falou Santo Agostinho
como teólogo e como santo, e não como político, ponhamos-lhe
de um lado a Pitágoras e do outro a Sócrates, que nem foram
teólogos, nem santos, mas ambos famosíssimos mestres da república
mais política, qual foi a de Atenas. Que diz Pitágoras? Gaude
potius arguentibus quam adulantibus, et tanquam deteriores inimicis adulatores
aversare: Gosta antes dos que te arguem que dos que te adulam, e tem maior
aversão aos aduladores que aos inimigos, porque são piores.
— E Sócrates, que diz? Adulatorum benevolentiae tanquam hostibus
dato terga, fuge infortunium: A benevolência dos aduladores dá-lhe
logo as costas, e foge deles como de inimigos, por que te não suceda
algum infortúnio dos que a adulação traz sempre consigo.
— Creiam ao menos a Sócrates e a Pitágoras os que não
quiserem dar crédito a Santo Agostinho.

Sinésio, aquele insigne varão que compôs os livros De
Regno e, depois de governar prudentissimamente o mundo, com igual zelo e santidade
governou e ilustrou a Igreja, escrevendo ao imperador Arcádio, o conselho
que lhe dá sobre todos, exortando a que o observe como primeiro e maior
cuidado, é que não consinta junto a si aduladores, e se guarde
e vigie deles, porque, por mais cercado que esteja de guardas o seu palácio,
a adulação se sabe introduzir sutilissimamente sem ser sentida,
e bastará ela só para primeiro o sujeitar e dominar a ele, e
depois o despojar do império: Sola quippe alulatio nec quicquam vigilantibus
satellitibus in ima usque conclavia sensim penetrat, et imperium depraedatur.
Coisa dificultosa parece que, tendo Arcádio presidiado o seu império
com as legiões romanas, e não havendo então inimigo estranho
que com poderosos exércitos lhe fizesse guerra, houvesse de bastar
poucos homens desarmados para, dentro em sua própria casa, destruírem
o imperador e mais o império. Mas tão oculta e poderosa guerra
é a que faz aos príncipes a adulação, e tão
perniciosos inimigos, mais que todos, são os aduladores. Ouçam
os políticos o texto da sua Bíblia: Adulatio perpetuum malum
regum, quorum opes saepius assentatio, quam hostis evertit: A adulação
é aquele perpétuo mal ou achaque mortal dos reis, cuja grandeza,
opulência e impérios muitas mais vezes destruiu a lisonja dos
aduladores que as armas dos inimigos.

Comentando este texto de Cornélio Tácito outro Cornélio
de maior erudição, de melhor juízo e de mais largas experiências
que ele, confirma a verdade do seu dito com a falta da verdade, de que só
carecem os que são senhores de tudo, e com os exemplos de Nero, César
e Roboão, todos desastradamente perdidos, não por inimigos de
fora, mas pelos aduladores domésticos: Et quidem reges abundant rebus
omnibus in aula, excepta veritate. Quid Neronem castissime educatum crudelem
fecit? Adulatio. Quid Caesarem contra patriam rebellare fecit? Adulatio. Quid
Roboam tyrannum reddit? Adulatio. Nem a Roboão aproveitou ter por pai
a Salomão, nem a Nero ter por mestre a Sêneca, nem a César
ter-se esmerado nele a natureza em o dotar de uns espíritos tão
generosos e verdadeiramente reais, para que a adulação de seus
próprios familiares a um não corrompessem as virtudes, a outro
não despojassem do reino, a outro não tirasse a vida, e a todos
não destruísse tão infausta e miseravelmente, como todos
sabem. Esta mesma conclusão inferiram sobre a lição de
todas as histórias do mundo aqueles dois grandes historiadores, que
em sentença de Lípsio, depois de Salústio e Lívio,
merecem os dois seguintes lugares: entre os latinos Cúrcio, e entre
os espanhóis Mariana. Regnum saepius ab assentatoribus quam ab hostibus
everti solet — diz Cúrcio na história de Alexandre. —
Vide hic ut magis adulatio, quam hostis, reges et principes perdat —
diz Mariana no Comentário de Oséias. — De sorte que tudo
o que se sabe por vista ou por memória dos períodos e catástrofes
dos reinos e dos fins mal-afortunados dos reis e causas deles, as menos vezes
se deve atribuir aos inimigos de fora, que são os que só se
temem, senão a quem? Aos lisonjeiros e aduladores de dentro, aos que
têm as entradas francas e as chaves tão douradas como as línguas,
aos que participam os segredos e arcanos da monarquia, e os que só
são admitidos a dizer e a ser ouvidos; enfim, aos inimigos interiores
e domésticos, que são os que mais se deveram temer.

VI

Antes, porém, que refira o que dizemos demais — pois somente
sou relator neste ponto — para que se ouça com maior atenção
e se dê inteiro crédito ao que eles disserem, é necessário
sossegar primeiro um escrúpulo ou suspensão com que estou vendo
que este nome de inimigo dos reis, ou se reputa por injusta censura, ou, quando
menos, por demasiado encarecimento. Todas as pessoas que os reis admitem assistência
mais interior de palácio, além das qualidades e talentos que
os fazem dignos de tão soberana eleição, ninguém
pode duvidar que o seu maior cuidado e desvelo é servir e agradar ao
seu príncipe, e que eles são os que mais lhes desejam a vida
e procuram a saúde; eles os que mais solicitam o bem, a conservação
e aumento do reino; eles os que, de dia e de noite, sem descansar, mais se
empregam e mais trabalham no que mais que tudo importa. E, posto que as suas
palavras — como pede o respeito e reverência real -se pronunciem
vestidas ou adornadas com algum daqueles enfeites que popularmente se chamam
lisonjas, nem por isso desmerece o afeto de seus corações o
nome de amigos, e verdadeiros amigos: com que vem a ser afronta, não
só injusta e caluniosa, mas indigna de se dizer nem ouvir, que sujeitos
tão ilustres e tão leais sejam chamados inimigos dos reis, e
se lhes aplique no texto de Cristo a censura de inimicos vestros.

Tudo isto digo eu também, e geralmente assim, é. Mas, porque
nesta regra, como em todas, pode haver alguma exceção, ouçamos
sobre ela o mesmo legislador, que é o melhor intérprete das
suas leis. E assim o mesmo Cristo que diz Diligite inimicos vestros, será
também o que nos declare estes inimigos quem são, e como são,
e como não podem deixar de o ser. Nemo potest duobus dominis servire
(Mt. 6,24), diz Cristo: Ninguém pode servir a dois senhores. —
E por quê? Porque, se tiver amor a um, há de ter ódio
ao outro: Aut enim unum odio habebit, et alterum diliget. Suposta esta definição
infalível da suma verdade, pergunto agora: e os que servem aos reis
em palácio, a quantos senhores servem? Se alguns se não quiserem
lisonjear também a si mesmos, é força que confessem que
servem a dois senhores: ao senhor rei, e ao senhor interesse próprio.
Logo, segue-se que, se amam a um, têm ódio a outro, e que se
de um destes senhores são amigos, do outro são inimigos: Aut
enim unum odio habebit, et alterum diliget. Notai que não diz Cristo:
Unum diliget et alterum non diliget, senão: Unum odio habebit, et alterum
diliget porque se não pode servir e amar a um, sem ser inimigo do outro.
E, se em algum dos que servem ao rei se provasse que ama mais o seu interesse
que o rei, provado estava que este tal é inimigo do rei.

O Papa chama-se Servus Servorum, é, creio eu, que a muitos reis se
pudera estender o mesmo título sem ofensa da Sé Apostólica.
Por que há tantos que queiram servir de perto aos reis? Por que querem
que também os reis os sirvam a eles? Não digo tanto. Servem
aos reis porque lhes serve o servi-los. Arrima-se a hera à torre, não
por amor da torre, senão por amor de si, não porque queira coroar
a torre — que as coroas de hera não são as dos reis —
mas porque a hera não pode crescer sem arrimo, e ela quer crescer e
subir. Por isso vemos tão subidos e tão crescidos os que talvez,
antes de chegarem a este arrimo, mal se levantavam da terra. Pelo contrário,
vemos também que muitos se retiraram do serviço do rei, porque
lhe negaram ou dilataram a subida. Logo, ao senhor interesse é que
serviam, e não ao rei. Sete anos de pastor servira Jacó a Labão,
pai de Raquel, mas não servia a ele: servia a ela. E por que servia
Jacó a Raquel, e não a Labão? Porque Raquel era a que
amava. Porque amava a Raquel, por isso servia a Labão, e o amor não
está no por isto, está no porquê. Porque amam o seu interesse,
por isso servem ao rei. Indigna coisa, por certo, que seja o rei o Labão,
quando o vil interesse é a Raquel. Mas ouçamos a outro melhor
autor.

Stellio manibus nititur, et moratur in aedibus regis (Prov. 30,28): A aranha
— diz Salomão — não tem pés, e, sustentando-se
sobre as mãos, mora nos palácios dos reis. — Bom fora
que moraram nos palácios dos reis e tiveram neles grande lugar os que
só têm mãos. Mas a aranha não tem pés, e
tem pequena cabeça, e sabe muito bem o seu conto. Sobe-se mão
ante mão a um canto dessas abóbadas douradas, e a primeira coisa
que faz é desentranhar-se toda em finezas. Com estes fios tão
finos, que ao princípio mal se divisam, lança suas linhas, arma
seus teares, e toda a fábrica se vem a rematar em uma rede para pescar
e comer. Tais são — diz o rei que mais soube — as aranhas
de palácio. Quem vir ao princípio as finezas com que todos se
desfazem e desentranham em zelo do serviço do príncipe, parece
que o amor do mesmo príncipe é o que unicamente os trouxe ali;
mas, depois que armaram os teares como tecedeiras, e as redes como pescadores,
lago se descobre que toda a teia, por mais fina que parecesse, era urdida
e endereçada a pescar, e não a pescar moscas. E se não,
veja-se o que todos pescam: as melhores comendas, os títulos, as presidências,
os senhorios, e, talvez, diz o mesmo Salomão, que sendo a malha tão
miúda, pescam o mesmo dono da casa. Homo, qui blandis fictis que sermonibus
loquitur amico suo, recte expandit gressibus ejus (24), As palavras brandas
do adulador são redes que ele arma para tomar nelas ao mesmo adulado.
— E este é o artifício sem arte dos aduladores reais.
Servem lisonjeiramente aos príncipes para os ganhar ou lhes ganhar
a graça, e para se servirem da mesma graça para os fins que
só pretendem de seus próprios interesses. E como, por declaração
do mesmo legislador do nosso texto, ninguém pode servir a dois senhores
sem amar a um e ser inimigo do outro, provado fica, sem réplica, e
concluído, que quantos forem em palácio os amigos de seus interesses,
tantos são os inimigos dos reis.

VII

E se eles disserem que são isto discursos, também eu folgara
muito que não só foram discursos, senão muito mal fundados
e muito falsos; mas no nosso mesmo texto o benefacere é prova do diligere:
Diligite, et benefacite. Vejamos, pois, o bem ou mal que os aduladores fazem
aos reis, e logo se verá claramente se os amam ou são seus inimigos.
A maior fatalidade dos reis é nascerem todos em signo de ser louvados.
Lançou Jacó a bênção a Judas, seu quarto
filho, e as palavras por onde começou foram estas: Juda, te laudabunt
fratres tui (Gên. 49,8): Judas, a ti louvarão teus irmãos.
— Os irmãos eram onze, e muitos deles tiveram muito que louvar;
pelo contrário, Judas não deixou de fazer muitas ações
dignas de ser vituperadas. Pois, se nos outros houve também coisas
merecedoras de louvor, e em Judas merecedoras de vitupério, por que
se dá por bênção só a Judas que ele será
o louvado, e que todos o louvarão: Te laudabunt? Porque Judas, como
vimos ao princípio, ainda que era o filho quarto, foi o que levou o
cetro e a coroa, e em quem se fundou o direito hereditário da casa
e sucessão real, e é bênção ou fatalidade
dos reis que tudo o que fizerem ou quiserem, ainda que não seja louvável,
seja louvado: Te laudabunt. Se o rei, como Saul, tomar para si os despojos
de Amalec consagrados a Deus, e os aplicar a usos profanos: Te laudabunt.
Se o rei, como Davi, por uma simples informação suspeitosa,
singular e sem nenhuma legalidade, privar do patrimônio a Mefiboset,
e o der ao seu criado Siba: Te laudabunt. Se o rei, como Salomão, para
edificar soberba e deliciosamente o bom ou mau retiro do Líbano, derrubar
as casas dos poucos poderosos, e queimar as choupanas dos miseráveis:
Te laudabunt. Se o rei, como Roboão, sobre o jugo pesadíssimo
e intolerável de seu pai, acrescentar tributos sobre tributos, opressões
sobre opressões, e rigores sobre rigores, nadando todo o reino em rios
de lágrimas: Te laudabunt. E quem são os panegiristas destes
louvores? Não são os que padecem o dilúvio fora da arca,
não são os que moram e morrem fora das paredes de palácio,
senão os que vivem e reinam de portas a dentro. Estes são os
aduladores, que louvam o que não deveram louvar, e aplaudem o que não
deveram aplaudir; e ajudam o que deveram estorvar, atentos somente a não
desgostar ou entristecer o agrado em que têm fundado seus interesses,
sem atenção ao crédito e à fama, nem talvez à
consciência dos mesmos reis, como verdadeiros inimigos: In malitia sua
laetificaverunt regem (25).

Eu bem creio do bom entendimento de alguns, que no mesmo tempo em que louvam
e aplaudem com a boca, gemem e choram com o coração. Nem eles
deixam de o confessar assim, onde não é perigoso o sigilo. Mas,
como servem mais ao próprio interesse que ao rei, esta covarde dependência
lhes equivoca a dor com a alegria, e o coração com a língua.
Caso verdadeiramente lamentável e trágico, mas já representado
no teatro de Roma. Depois que o imperador Nero se esqueceu de si, e da temperança
e compostura real em que fora criado, fez tão pouco caso da própria
autoridade e decência, que, entre os citaredos e estriões, saía
no teatro público a competir com eles em todas as baixezas ridículas
daquelas artes, próprias de gente vil e infame. A este espetáculo
ou ludíbrio da maior fortuna, assistiam todas as ordens, senatória,
consular e eqüestre; assistiam os centuriões, os tribunos, e toda
a flor das legiões romanas; assistiam principalmente todos os familiares
do palácio imperial, e, entre eles, diz com grande ponderação
Tácito: Et maerens Burrhus, ac laudans. Era Afrânio Burro homem
de grave e maduro juízo, mestre ou aio que tinha sido, com Sêneca,
do mesmo Nero. E, quando todos os outros faziam grandes aplausos às
mudanças, saltos e gestos do imperador citaredo, como se foram outros
tantos triunfos, só Afrânio estava triste, mas também
louvava como os demais: Et maerens Burrhus, ac laudans. Pois, homem ou animal
— que te não quero chamar com o nome próprio, por não
parecer que o faço apelativo — se conheces a indecência,
a desautoridade e a afronta do teu príncipe, se estás engolindo
as lágrimas e afogando os gemidos, por que ao menos não emudeces
e calas, para que veja Nero na tua tristeza a tua dor, e leia no teu silêncio
o teu voto? Mas no mesmo tempo em que estás chorando o que condenas,
hás de louvar o que choras: Et maerens Burrhus, ac laudans? Sim, que
tais são os aduladores de palácio, ainda os de maiores obrigações
e de menos corrupto juízo.

Uns autores comparam estes aduladores ao camaleão que, não
tendo cor certa nem própria, se reveste e pinta de todas as cores,
quaisquer que sejam as do objeto vizinho. Outros os comparam à sombra,
que não tem outra ação, figura ou movimento que a do
corpo interposto à luz, do qual nunca se aparta, e sempre, e para qualquer
parte o segue. Outros o comparam ao espelho, retrato natural e recíproco
de quem nele se vê, porque, se lhe pondes os olhos, olha para vós,
se rides, ri, se chorais, chora, lágrimas, porém, sem dor, e
riso sem alegria, que não fora o espelho adulador se assim não
fora. Mas, como o camaleão, a sombra e o espelho tudo são assistentes
mudos, a comparação de Santo Agostinho é a mais própria
e semelhante de todas, porque os comparou ao eco: Jucundum est, ac volupe
cum clamantibus nobis responsant sylvae, et, acceptas, voces, numerosiori
repercussu reddunt. Talis echo adulator. — O eco sempre repete o que
diz a voz, nem sabe dizer outra coisa; e onde as concavidades são muitas,
é cena verdadeiramente aprazível ver como os ecos se vão
respondendo sucessivamente uns aos outros, e todos sem discrepância
dizendo o mesmo. O que disse a primeira voz é o que todos uniformemente
repetem. E isto que fez a natureza nos bosques, faz a adulação
nos palácios, diz Agostinho. Diz o rei que quer fazer uma guerra, e,
ainda que a empresa seja pouco provável, e o sucesso de perigosas conseqüências,
que respondem os ecos? Guerra, guerra, guerra. Diz que quer fazer uma paz,
e, ainda que a ocasião seja intempestiva e os pactos e condições
pouco decorosos, que respondem os ecos? Paz, paz, paz. Diz que quer enriquecer
o erário, e para isso multiplica os tributos, e, ainda que os fins
ou pretexto tenham mais de vaidade que de utilidade, que respondem os ecos?
Tributos, tributos, tributos.

E para que eu também acrescente a minha comparação,
são parecidos os aduladores aqueles quatro animais do Apocalipse, os
quais cercavam o trono do cordeiro dominador da terra, e tendo cada um deles
quatro rostos e quatro línguas, nenhuma coisa diziam nem sabiam dizer,
senão amém: Et quatuor animalia dicebant: Amen (26). Pois, para
isto assistem ao trono, para isto os tem junto a si o supremo dominante? Para
isto tanta diversidade de rostos e tanto aparato de línguas? Sim, para
isto, e só para isto; para quando sair do trono a voz, eles dizerem
os améns. E para que os améns digam com o rosto, e o rosto não
desdiga do que eles dizem, por isso, sendo a voz uma só, os rostos
são muitos, e tão vários quantos podem ser os afetos
da majestade adulada. Se o rei está benigno e humano, para isso tem
rosto de homem: facies hominis. Se está colérico e irado, para
isso tem rosto de leão: facies leonis. Se está sobrelevado e
altivo, para isto tem rosto de águia: facies aquilae. Se está
melancólico e carregado, para isto tem rosto de bezerro: facies bovis
(Ez. 1,10). Enfim, muitos rostos e uma só voz, porque sempre a língua
e os gestos estão aparelhados, ou na vontade, declarada para a aprovar,
ou na inclinação, só presumida para a prevenir.

VIII

A intenção reta dos príncipes não é esta,
senão que cada um diga livremente o que entende, e aconselhem o que
mais importa; mas, como o norte sempre fixo do adulador é o interesse
e conveniência própria, nenhum há que se fie deste seguro
real, e todos temem arriscar a graça onde têm posta a esperança
Dizia Sêneca — e dizia o que obrava -que antes queria ofender
com a verdade que agradar com a lisonja: Maluerim veris offendere, quam placere
adulando. Mas, quem era Sêneca? Era aquele grande estóico, em
cuja estimação a maior riqueza era o desprezo de todas. Era
tão opulento o seu patrimônio que só ele pudera fundar
e enriquecer muitas casas, e tão grandes como as que hoje são
titulares, e tudo renunciou Sêneca, e aplicou ao fisco real. E quem
com a sua fazenda quer acrescentar os tesouros do rei, escolhe antes ofender
com a verdade que agradar com a adulação. Porém, aqueles
que com os tesouros do rei querem acrescentar a sua casa e enriquecer a sua
pobreza ou a sua vaidade, que se pode crer ou esperar que façam? Que
digam cinqüenta lisonjas para granjear uma comenda, e que não
se atrevam a dizer meia verdade por se não arriscar a perdê-la.
Oh! reis! Oh! monarcas do mundo, que por esta causa, e só por esta,
é digna de compaixão a vossa suprema fortuna!

O Salmo Miserere mei, Deus não só o fez Davi para lamentar
a sua miséria como pecador, senão também como rei. Esse
foi o seu pensamento e o seu sentimento quando disse: Tibi soli peccavi (Sl.50,6):
Eu, Senhor, só para vós pequei. — E por que só
para vós, e não para os outros? Porque só vós
me estranhastes o meu pecado, porque fui pecador, e nenhum dos outros mo estranhou,
porque era rei. — Em próprios termos Esíquio: Quoniam
reliquis omnibus ei tanquam regis indulgentibus, solus Deus misit Nathan,
et nefarium scelus neprehendit. O pecado de Davi só para Deus foi pecado,
porque para todos os outros, como era rei, foi indulgência Eis aqui
de que serve aos reis o ser rei, e quão lisonjeiramente o servem os
que o servem. Se alguma vez na antecâmara de Davi — onde ele o
não ouvisse — se tocou no seu pecado, o que os palacianos discorriam
era desta maneira. Que o amor de Bersabé fora um galanteio de príncipe
soldado; que o casar-se com ele fora uma honrada restituição
de sua fama; que o matar a Urias fora um conselho necessário, prudente
e generoso, porque o fez morrer nobremente na guerra: prudente, porque pareceu
acaso o que foi indústria, e necessário, porque o modo mais
seguro de sepultar o agravo é meter debaixo da terra o agravado. Tão
levemente se falava em palácio em um caso, mais que escandaloso, atroz,
chamando ao adultério galanteio, ao homicídio necessidade, e
à aleivosia prudência. No capítulo oitavo do Segundo Livro
dos Reis se nomeiam as pessoas de que constava a casa e família superior
de Davi, e é coisa que excede todo o encarecimento da lisonja, que
em tantos homens de tão grandes qualidades e suposições
se não achasse nem um só que, ou por zelo da honra, ou por escrúpulo
da consciência, ou por obrigação do ofício, ou
por memória de benefícios e mercês recebidas, se atrevesse
a acudir a um rei na sua desgraça, e lhe abrir os olhos com a verdade
em tão perigosa cegueira (2 Rs. 8,16 ss). Por isso ele, considerando
o seu desamparo, e conhecendo o risco da própria salvação,
orava e clamava a Deus dizendo: Salvum me fac, Domine, quoniam defecit sanctus,
quoniam diminutae sunt veritates a filiis hominum (Sl. 11,2): Salvai-me vós,
Senhor; acudi-me e socorrei-me como Deus, porque entre os homens já
não acho nem um só que tenha virtude e valor para me dizer a
verdade.

Dois porquês aponta Davi nestas palavras, muito dignos de reparo: porque
faltaram os santos: Quoniam defecit sanctus e porque faltaram homens que com
inteireza lhe dissessem a verdade: Quoniam diminutae sunt veritates a filiis
hominum: Filii hominum, em frase da Escritura, significa os homens de ilustre
geração, quais são os que assistem ao lado dos reis;
e de lhes faltarem estes se lamenta Davi. Pois, por que faltaram os santos,
por isso não há quem fale verdade aos reis? Sim: de um porquê
se segue o outro porquê. Porque faltaram os santos, que são os
que não querem nada deste mundo, essa é a razão por que
Davi e os outros reis não têm quem lhes diga a verdade, estando
cercados de tantos que os lisonjeiam e adulam. Até entre os gentios
era verdadeira esta conseqüência. Entre os gentios também,
por seu modo, havia santos, os quais eram os filósofos, principalmente
estóicos e cínicos. Diógenes, filósofo cínico,
queria tão pouco das coisas deste mundo, que nem uma choupana tinha
em que viver; e morava dentro em uma cuba. Foi-o ver por maravilha Alexandre
Magno, e, dizendo-lhe com sua natural magnificência que pedisse quanto
quisesse, que responderia Diógenes? — Peço-te que não
tires o que me não podes dar. — E disse isto porque era inverno,
e Alexandre, com a sombra do corpo, lhe tirava o sol. Parece-vos que adularia
aos reis um homem que tão pouco queria deles? Bem o mostrou em uma
famosa resposta sua, que refere Valério Máximo. No tempo em
que reinava Dionísio em Sicília, estava Diógenes à
porta ou à boca da sua cuba, lavando umas ervas para comer, e disse-lhe
um dos que passavam: — Se tu adularas a Dionísio, não
comeras ervas. — E ele respondeu: — E se tu te contentaras com
comer ervas, não adularas a Dionísio: Si tu Dionysio adulati
velles, isto non ederes. Cui respondit: Si tu ista edere velles, Dionysio
adulari nolles. Porque os reis se não servem de homens que se contentem
com comer ervas, por isso estão comidos de aduladores, e cercados de
inimigos: Quoniam defecit sanctus. Para ser santo deste gênero não
é necessário que faça milagres o que serve ao rei: basta
ser homem que se contente com o seu pouco, e não aspire a ter mais
do que tem, nem a ser mais do que é.

Mas, se há algum destes — que sim há — o primeiro
cuidado dos quatro animais que estão in circuito throni, e nele têm
cercados ou sitiados os reis, o primeiro e maior cuidado dos aduladores é
que Dionísio não ouça a Diógenes, antes se asseste
contra ele toda a artilharia, para que não suceda romper as linhas
da circunvalação, e, por força ou por vontade, se retire
muito longe da corte. É texto e caso expresso da Escritura Sagrada,
não já em homem filósofo, senão profeta El-rei
Jeroboão, depois da divisão das coroas de Israel e Judá,
tinha o seu palácio em Betel, e junto dele a mesquita que edificara
aos dois bezerros de ouro, para divertir o povo de irem sacrificar ao templo
de Jerusalém. Vivia na mesma cidade de Betel o profeta Amós,
o qual dizia a Jeroboão algumas verdades das que Deus revelava acerca
daquele reino e seu perigo. E, como os aduladores de Jeroboão se temessem
da eficácia e energia de Amós, ao qual caluniavam com o rei,
que totalmente lhe não tinha perdido o amor e reverência, um
deles chamado Amasias, se foi ter com o profeta, e lhe disse em termos de
amizade estas palavras: Qui vides, gradere, fuge in terram Juda, et comede
ibi panem, et prophetabis ibi. Et in Bethel non adjicies ultra ut prophetes,
quia sanctificatio regis est, et domus regni est (Am. 7,12 s) (27). Quer dizer:
Tu Amós, que vês os futuros, põe-te e logo a caminho,
e foge daqui, e vai-te e para a tua pátria: lá comerás
o teu pão, e profetizarás; porém, aqui não te
aconteça falar mais palavra, porque Betel é a casa e palácio
do reino, a santificação do rei. — Reparai muito nesta
última cláusula, que em moral e político sentido fecha
admiravelmente todo o nosso discurso: Quia sanctificatio regis est, et domus
regni est. De maneira que exortando Amasias ao profeta Amós, ou cominando-lhe
que se saia da corte e fuja dela, o motivo que alega para isso é que
a casa e palácio real é a santificação do rei.
E por quê? Não pudera melhor definir um adulador o que é
palácio. E o palácio, na definição dos aduladores,
a santificação do rei, porque ali são santificados os
reis e todas as suas ações; e quanto o rei faz, ordena, deseja
ou imagina, tudo é santo. Se Jeroboão se divide de Roboão,
seu legítimo senhor, ainda que seja rebelião, santo. Se proíbe
ao povo que apareça no Templo de Jerusalém três vezes
no ano, ainda que seja contra a lei expressa de Deus, santo. Se levanta altares
aos bezerros de ouro, e os manda adorar, ainda que seja manifesta e pública
idolatria, santo. — E por que tu, Amós — dizia Amasias
— aconselhas outra coisa ao rei, contra o que todos seus criados lhe
aprovamos, e não queres ajuntar atua voz com as nossas, dizendo também
conosco: santo, santo, santo — não só não hás
de entrar mais em palácio, mas sair logo da corte e de todo o reino:
Gradere, et fuge in terram Juda, et in Bethel non adjicies ultra ut prophetes.

Tal é a sagacidade dos aduladores e sua potência. E tão
tiranizadas andam entre eles as mesmas majestades aduladas, que não
só lhes não dizem a verdade, nem querem que outros lha digam,
mas afastam e lançam muito longe da corte a todos os que lha podem
dizer. Não é isto manifesta tirania? Biantes, um dos sete sábios
da Grécia, perguntado qual era o animal mais venenoso, respondeu que,
dos bravos, o tirano, dos mansos, o adulador. Em chamar veneno à adulação
acertou-lhe o nome; mas em distinguir o tirano do adulador não disse
bem, porque todo o adulador é tirano. O maior tirano que houve no mundo
foi Herodes; mas os seus aduladores ainda foram maiores tiranos, porque o
rei foi tirano dos vassalos, e os aduladores foram tiranos do rei. O texto
de Miquéias, que lhe explicaram acerca do nascimento do novo rei, fala
expressamente de dois nascimentos do Messias, um temporal, como homem, e outro
eterno, como Deus: o temporal, como homem: Ex te enim exiet dux qui regat
populum meum (28); o eterno, como Deus: Et egressus ejus ab initio, a diebus
aeternitatis(29). E os aduladores, que fizeram? Calaram totalmente o segundo
nascimento, e só fizeram menção do primeiro, com que,
enganado Herodes, e supondo que o nascido em Belém era somente homem,
e não Deus, entendeu que o podia matar, e assim deliberou a morte dos
inocentes. Mas qual foi o motivo deste engano? O que os aduladores têm
em todos os seus, que é o próprio interesse. Divinamente São
João Crisóstomo: In adulationem profecto regis, ut ad humanae
gratiale lucrum veritatis damna proficerent. Sendo a matéria tão
grave, e a mais grave que podia haver, pois envolvia a coroa e a salvação,
não duvidaram, contudo, os aduladores de mentir e lisonjear ao rei,
para que os danos da verdade fossem lucros do interesse: Ut ad humanae gratiae
lucrum damna veritatis proficenent. Tão certa é a proposição
do nosso assunto, e tão verdadeira e sólida a razão fundamental
dele, que todos os que em palácio são amigos do seu interesse,
são inimigos do rei: Inimicos vestros.

IX

Suposto, pois, que os aduladores são inimigos dos reis, como todos
os outros cristãos têm também obrigação
de amar a seus inimigos e fazer-lhes bem, seguia-se agora exortar os príncipes
a este amor e beneficência: Diligite inimicos vestros, et benefacite
his qui oderunt vos. Mas este meu sermão hoje será a primeira
oração evangélica que, contra todas as leis da retórica,
acabará sem peroração. Se a cristandade de todos os príncipes
católicos na observância deste preceito de Cristo é tão
comum, geralmente, e tão notória, que sendo os aduladores de
palácio os seus maiores inimigos, esses são os maiores validos,
os mais favorecidos e os mais amados conforme o diligite, e esses os mais
cheios de honras, mercês e benefícios, conforme o benefacite,
nenhum lugar nos fica para a peroração do discurso, pois os
mesmos exemplos deste amor e beneficência real excedem todos os limites
da eficácia a que se podia estender a exortação. Assim
víramos estimados, premiados e satisfeitos os que não servem
à sombra de telhados de ouro nem ao calor de braseiros de prata, senão
ao sol e ao frio, lidando com as ondas e com as balas.

Uma só invectiva me ocorria para poder acabar o sermão, mas
essa contra el-rei Davi, estranhando-lhe e repreendendo muito o modo tão
alheio desta caridade com que ele tratava aos aduladores seus inimigos. No
Salmo sessenta e nove diz Davi estas palavras, ou as torna a repetir, porque
já tinha dito as mesmas no Salmo trinta e nove: Avertantur retrorsum,
et erubescant, qui volunt mihi mala; avertantur statim erubescentes, qui dicunt
mihi; Euge, euge (30)! Primeiro que tudo se deve advertir, em confirmação
do que fica dito, que aqueles qui dicunt mihi: Euge, euge são os mesmos
qui volunt mihí mala, porque adular é querer mal, e ser adulador
é ser inimigo, e quantos são os euges que vos dizem, tantos
são os males que vos querem. E a estes aduladores, que Davi reconhecia
por seus inimigos, que é o que lhes fazia ou resolvia fazer como rei?
Quatro coisas. Primeira, que experimentassem a grande aversão que lhes
tinha: Avertantur, avertantur. Segunda, que logo saíssem de sua casa,
e não aparecessem mais em sua presença: Avertantur statim. Terceira,
que não fossem adiantados em nada, senão abatidos e atrasados:
Avertantur retrorsum. Quarta e última, que pois se não envergonharam
de ser aduladores, padecessem a vergonha de ser conhecidos publicamente e
tratados como tais: Avertantur et erubescant; avertantur statim erubescentes.
— Isto é, Davi, o que vós fazíeis aos aduladores,
vossos inimigos como rei; mas não é isto o que lhes devíeis
fazer como profeta, que tão clara luz tivestes do Evangelho de Cristo.
Pois, se Cristo vos manda que ameis a vossos inimigos: Diligite inimicos vestros
— como vós os aborreceis tanto que os não podeis ver,
e os lançais de vossa casa e de vossa presença? E se Cristo
vos manda que lhes façais bem: Et benefacite his qui odenunt vos —
como vós lhes fazeis tanto mal que os afrontais e envergonhais, não
secretamente, mas com infâmia pública, que para homens que tiveram
tantos postos, é o maior vitupério?

Responde Davi, e a invectiva que eu fazia contra ele, revolta ele contra
mim. — E tu, pregador, és filósofo e teólogo, e
ainda não sabes a definição do amor? Amare est valle
bonum alicui: Amar é querer bem àquele a quem se ama. —
E que maior bem posso eu querer a um adulador, que fazer que não continue
em tão vil exercício? E que maior benefício pode esperar
de mim um amigo do seu interesse, e inimigo da verdade, que tirá-lo
da ocasião de fazer traições à mesma verdade e
a vender infamemente pelo interesse? Se eles, adulando-me, são meus
inimigos, maiores inimigos são de si mesmos, e eu quero que cessem
deste ódio que se têm, tanto maior quanto menos conhecido. E
se, adulando-me, podem fazer mal ao meu governo e à minha coroa, muito
maior é o mal que se fazem às suas consciências e às
suas almas, e eu quero que desistam deste grande mal contra seu gosto, pois
o não hão de fazer por vontade. Se Assuero, depois que conheceu
a cobiça e falso amor de Amã, o lançara de sua graça
e de sua casa, não chegara ele a ser tão mofino, que viesse
a morrer em um pau; e o que aquele rei não soube fazer a tempo a seus
aduladores, faço eu logo aos meus, sem o dissimular, porque os amo
e lhes desejo o verdadeiro bem, e quero observar neles o preceito de Cristo:
Diligite inimicos vestros, et benefacite his qui oderunt vos. — Deste
modo rebateu Davi a minha invectiva, e, ajuntando eu ao exemplo que me alegou
de Amã, o de Sejano em Roma, o de Olivato em França, o de Wolsey
em Inglaterra, o de Álvaro de Luna em Espanha, e os da antiga e fresca
memória no nosso Portugal, conheci a verdade sobre-humana da razão
de Davi, e fiquei convencido dela.

Mas, porque eu em todo este sermão só professei e protestei
referir, e não ajuizar, posto finalmente agora entre dois extremos
tão contrários, como o de el-rei Davi e o dos outros reis, acabarei
com o exemplo do primeiro fundador da nossa corte, o qual, entre um e outro
extremo, tomou um tal meio de composição, que, parece, satisfez
a ambos. E que meio foi este? Ouvir os aduladores, mas não se mover
por eles. S. Pedro Damião e outros santos comparam os aduladores às
sereias, as quais com a suavidade das suas vozes de tal modo encantavam os
navegantes, que voluntariamente se lançavam e precipitavam às
ondas, e se afogavam no mar em que elas viviam. Houve de passar por este mesmo
mar — que era junto a Sila e Caribdes, — o fundador de Lisboa,
Ulisses, e, usando da sua ciência e sagacidade, que fez? Navegava em
uma formosa galé da Grécia, e para que a chusma não faltasse
à voga dos remos, nem a outra gente náutica à mareação
das velas, e todos escapassem do encanto das sereias, tampou-lhes a todos
os ouvidos, de tal sorte que as não ouvissem. Ele, porém, para
que pudesse ouvir as vozes, deixou os ouvidos abertos, e para não padecer
os efeitos do encanto, nem se precipitar ao mar, como acontecia a todos, mandou-se
atar ao mastro tão fortemente, que, ainda que quisesse, não
se pudesse bulir nem mover. Esta é a história ou fábula
engenhosamente fingida por Homero para ensinar que os varões sábios
e constantes, como Ulisses, ainda que ouçam os aduladores e o contraponto
doce das suas lisonjas, nem por isso se hão de deixar vencer de seus
enganos e artifícios, mas persistir e continuar a derrota certa, sem
mudar, deter nem torcer a carreira do bom governo. Assim o pudera fazer também
quem tanto confiar ou presumir de sua constância, e não conhecer
que isto mesmo, ainda somente dito, é fábula. Mas, se eu tivera
autoridade para emendar a Homero, e confiança para aconselhar a Ulisses,
não o havia de querer com os ouvidos abertos e as mãos atadas,
senão com os ouvidos tapados e as mãos soltas, porque, com os
ouvidos tapados não daria entrada à adulação,
e com as mãos soltas seriam todas as ações suas, e, como
suas, verdadeiramente reais. Deste modo se conquista no mundo a fama imortal,
e se assegura também no céu a glória eterna.

(1) Mas eu vos digo: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos têm
ódio (Mt. 5,44).

(2) Lembra-te homem que és pó.

(3) Não achei tamanha fé em Israel (Mt. 8,10).

(4) O rei Salomão fez uma cadeirinha de madeira do Líbano:
fez-lhe as colunas de prata, o reclinatório de ouro, a subida de púrpura;
o meio de tudo ornou-o do que há de mais precioso (Cânt. 3,9
s). — Trad. de Pe. Antônio Pereira de Figueiredo.

(5) Perseguirei os meus inimigos, e apanhá-los-ei, e não me
volverei até que eles acabem. Eu lhes quebrarei as forças, e
eles não poderão ter-se em pé, e cairão debaixo
de meus pés (Sl. 17,38 s).

(6) E orai pelos que vos perseguem e caluniam (Mt. 5,44).

(7) Faze voltar os males sobre os meus inimigos, e na tua verdade destrói-os
(Sl. 53,7).

(8) Amai a vossos inimigos (Mt. 5,44)

(9) Eu vos digo.

(10) Por mim reinam os reis (Prov. 8,15).

(11) E agora, ó reis, entendei; instruí-vos, os que julgais
a terra (Sl. 2, 10).

(12) Servi ao Senhor em temor, e alegrai-vos nele com tremor (Sl. 2, 11).

(13) Para que não suceda que se ire o Senhor, e pereçais do
caminho da justiça (Sl. 2, 12).

(14) Se paguei com mal aos que mo faziam (SI. 7, 5).

(15) Tomavam-me a mim males por bens (SI. 34, 12).

(16) Jura-me que não hás de aniquilar a minha geração
depois de mim, nem hás de extinguir o meu nome da casa de meu pai (1
Rs. 24,22).

(17) Porque sei que certissimamente hás de reinar(l Rs. 24,21).

(18) Simeão e Levi, irmãos, instrumentos de uma carniceria
cheia de injustiça. Não permita Deus que nos seus conselhos
intervenha a minha alma, e que a minha glória entre nos seus conluios,
porque na sua sanha mataram aquele homem, e conforme a sua vontade arrombaram
um muro. Maldito o seu furor, porque é obstinado, e maldita a sua ira,
porque é inflexível (Gên. 49,5 ss).

(19) Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração,
e ao teu próximo como a ti mesmo (Lc. 10,27).

(20) Querendo justificar-se a si mesmo (Lc. 10,29).

(21) Porque não é debalde que ele traz a espada (Rom. 13,4).

(22) Se paguei com mal aos que mo faziam, caia eu com razão debaixo
de meus inimigos, sem esperan-ça (Sl. 7,5).

(23) Os inimigos do homem serão os seus mesmos domésticos (Mt.
10,36).

(24) O homem que, quando fala ao seu amigo, usa de uma linguagem lisonjeira
e fingida, arma uma rede aos seus passos (Prov. 29,5).

(25) Eles alegraram ao rei com a sua malícia (Os. 7,3).

(26) E os quatro animais respondiam: Amém (Apc. 5,14).

(27)-Sai daqui, homem de visões, foge para a terra de Judá,
e come lá o teu pão, e ali profetizarás. Mas não

aconteça mais profetizar em Betel, porque aqui é a religião
do rei e o assento do seu estado (Am. 7,12 s).

(28) Porque de ti sairá o condutor que há de comandar o meu
povo (Mt. 2,6).

(29) Cuja geração é desde o princípio, desde
os dias da eternidade (Miq. 5,2)

(30) Voltem-se atrás e sejam envergonhados os que me desejam males.
Voltem-se logo, cheios de confusão os que me dizem: Bem, bem (Sl. 69,
4)!

Sermão da Primeira

Na ocasião em que chegou a nova de se ter desvanecido a esperança
das minas, que com grandes empenhos se tinham ido descobrir.
Qui sunt hi sermones, quos confertis ad invicem ambulantes, et estis tristes?
Nos autem sperabamus quia ipse esset redempturus Israel (1).

§ I

A tragédia dos dois primeiros atos da famosa comédia de Páscoa.
As lágrimas da Madalena, a tristeza dos discípulos de Emaús
e o malogro da expedição em busca das minas. Assuntos do sermão:
Muito melhor foi não se descobrirem as minas esperadas, que descobrirem-se;
em lugar das minas incertas, que se não descobriram, descobrirá
Deus outras certas, e muito mais ricas. Em um dia tão alegre como o
de Páscoa, em que, pela gloriosa Ressurreição de Cristo,
Redentor nosso, se revogou com a mesma glória a antiga sentença
de morte fulminada contra Adão e Eva, digna coisa de admirar é
que nem nas filhas de Eva, nem nos filhos de Adão, se achem efeitos
de alegria. Amanheceu o sol neste formoso dia mais arraiado que nunca, acrescentando
tantos raios a seus naturais resplendores, quantos tinha eclipsado e escondido
no dia da Paixão: e que é o que achou no mundo o mesmo sol,
ou quando nasceu no Oriente, ou quando se foi pôr no Ocaso? Quando nasceu
achou a terra orvalhada das lágrimas da Madalena, como se ela fora
a aurora daquele dia: Mulier, quid ploras (2)?

E quando se ia pôr, achou a tristeza dos dois discípulos de
Emaús: Et estis tristes(3) – como se neles se multiplicara, coberta
de sombras, a estrêla da tarde, ou Vésper: Quoniam advesperascit(4).
Tão trágicos como isto foram os dois primeiros atos ou aparências
desta famosa comédia!

Para eu vos declarar quão naturais fossem as causas de um e outro
sentimento, não me é necessário ir buscar o exemplo mais
longe, pois a fortuna nestes mesmos dias vo-lo trouxe a casa. Não é
grande desconsolação buscar, e não achar? Pois essa era
a desconsolação da Madalena e das outras Marias: Non invento
corpore ejus(5). Não é bastante motivo de tristeza esperar,
e não suceder o que se esperava? Pois essa era a causa por que os dois
discípulos iam tristes: Non autem sperabamus(6). Enquanto os cuidados
e esperanças se põem na terra, não podem faltar desconsolações
e tristezas à terra. As Marias desconsoladas, porque não acharam
o que buscavam debaixo da terra: Veniunt ad monumentum(7) – e os discípulos
tristes, porque lhes não sucedeu o que esperavam para remédio
da sua terra: Quia ipse esset redempturus Israel(8).

Tais considero, senhores, nesta ocasião, ou tais são, ainda
que se não considerem, as causas que parece nos fizeram menos alegres
estas páscoas, as quais eu desejo a todos, e para todos peço
a Deus tão liberais dos bens do céu, e também dos que
não são do céu, quando o mesmo Senhor sabe que nos convém.
Foram-se buscar debaixo da terra as minas de ouro ou prata, e, não
se tendo achado depois de tanto trabalho, assim como as Marias se desconsolaram
de verem malogradas as suas diligências, as suas prevenções,
e ainda as suas despesas: Emerunt aromata(9) – assim confesso vos pode desconsolar
o muito que nesta infeliz jornada se tem gasto de tempo, de cuidado e de fazenda.
E assim como os discípulos iam tristes por ver baldadas e perdidas
as esperanças, com que desejavam ver melhorada a sua pátria
e restaurado o seu reino: Quia ipse esset redempturus Israel – assim vos concedo
que é para entristecer e sentir não se ter conseguido a opulência
própria, e da monarquia, que das mesmas minas desvanecidas, com tanto
boato se esperavam. É, contudo, tão bom consolador Cristo, e
tão apressado, que na mesma manhã enxugou as lágrimas
das Marias, e na mesma tarde serenou a tristeza dos discípulos, como
eu também determino aliviar a vossa hoje.

Resumindo-se, pois, à história do Evangelho, que, sendo sucedida
ontem, reservou a Igreja para este segundo dia, dois afetos ou duas paixões
naturais do ânimo consolou ou curou Cristo, Senhor nosso, nos dois discípulos
de Emaús: a tristeza declarada e a esperança perdida: a tristeza
declarada: Et estis tristes; a esperança perdida: Nos autem sperabamus.
E sendo estes os mesmos dois afetos com que os corações da nossa
cidade se acham menos quietos e satisfeitos, assim como o Senhor, mostrando-se
vivo aos discípulos, sepultou a sua tristeza e ressuscitou a sua esperança,
assim eu, para consolar uma e alentar outra, vos mostrarei vivamente duas
verdades. A primeira, que muito melhor vos esteve não se descobrirem
as minas esperadas que descobrirem-se. A segunda que, em lugar das minas incertas,
que se não descobriram, vos descobrirá Deus outras certas, e
muito mais ricas. Ambos estes assuntos parecem temporais, como também
eram por causas temporais a tristeza e desesperação dos dois
discípulos à ida; mas nem por serem temporais deixou de as consolar
o divino Mestre, para as converter a elas e a eles em espirituais, como tornaram
à volta. O mesmo pretendo eu com a graça do céu, que
me ajudareis a alcançar: Ave Maria.

§ II

Nos autem sperabamus: Esperávamos de ter minas, e estamos desenganados
de que as não há. Muitas vezes está a nossa perdição
em sucederem as coisas como esperamos. Maldição de Jó
à noite. O ouro e a prata as mais das vezes são como os dois
cabritinhos de Jacó, com que enganou ao pai cego para levar a benção
de Esaú.

Qui sunt hi sermones, quos confertis ad invicem ambalantes, et estis tristes?

Que práticas são estas que ides conferindo entre vós,
e de que estais tristes? – Esta foi a pergunta que fez Cristo, Redentor nosso,
aos dois discípulos que iam de Jerusalém para Emaús.
E se eu fizesse a mesma no nosso Belém, e perguntasse às vossas
conversações por que estais tristes, é certo que me havíeis
de responder como eles responderam: Nos autem sperabamus: Esperávamos
de ter minas, e estamos desenganados de que as não há, ou esperávamos
que se descobrissem, e não se descobriram. E se eu instasse mais em
querer saber o discurso ou conseqüência com que sobre este desengano
fundais a vossa tristeza, também é certo havíeis de dizer,
como eles disseram, que no sucesso que se desejava e supunha, estavam livradas
as esperanças da redenção, não só desta
vossa cidade, e de todo o Estado, senão também do mesmo Reino:
Nos autem sperabamus quia ipse esset redempturus Israel. Ora, ouvi-me atentamente,
e – contra o que imagináveis, e porventura ainda imaginais – vereis
como nesta, que vós tendes por desgraça, consistiu a vossa redenção,
e de quantos trabalhos, infortúnios e cativeiros vos reuniu e vos livrou
Deus em não suceder o que esperáveis.

Primeiramente, havemos de supor que muitas vezes está a nossa perdição
em sucederem as coisas como esperamos, e, pelo contrário, está
o nosso remédio e a nossa conservação em não terem
o sucesso que se pretendia. Em uma maldição muito encarecida
de Jó, temos o mais claro e mais notável espelho que se pode
imaginar desta verdade: Pereat nox, in qua dictum est: Conceptus est homo!
Expectet lucem, et non videat, nec ortum surgentis aurorae (Jó 3, 3.
9): Maldita seja a noite em que fui concebido – diz Jó; – espere pela
luz, e nunca amanheça; espere pela aurora, e nunca venha. – Parecer-vos-á
– como pareceu a quem o disse – que esta era a maior desgraça que podia
suceder à noite, e a maior praga que se lhe podia rogar, mas, bem considerando
o caso, não era senão a maior dita e a maior ventura. O maior
inimigo que tem a noite é a aurora: enquanto não amanhece, conserva-se
e persevera a noite; tanto que amanheceu, ficou acabada e perdida. Logo, aquela
que parecia maldição não era maldição,
antes era o maior bem, a maior felicidade que se podia desejar e imprecar
à noite, porque, se a noite esperasse pela manhã, em lhe suceder,
como esperava, estava a sua perdição e o seu fim, e em lhe não
suceder, como esperava, estava a sua conservação, o seu aumento
e o seu ser.

O mesmo digo, senhores, da esperança das vossas minas, a qual eu nunca
tive por bem fundada, e, perguntado, assim o disse. Lá se mostrou ouro
e prata, mas estes dois metais as mais das vezes são como os dois cabritinhos
de Jacó, com que enganou ao pai cego para levar a bênção
de Esaú (10). Disse Jacó que o guisado que presentava ao pai
era da caça, e ele não era do mato, senão do rebanho.
Assim é o ouro e prata que lá levam: dizem que foi cavado da
beta, e ele é fundido da bolsa. Por isso as minas não são
minas para quem faz as despesas, e só são minas, como a bênção
de Jacó, para os mesmos que as fingiram, e vêm ricos de mercês
e salários, e cheios de jurisdições e onipotência,
com que se fazem mais ricos. Mas, ou se não descobrissem as minas,
porque as não há, ou porque, havendo-as, não quis Deus
que se descobrissem, vede de quantos perigos e trabalhos vos remiu e livrou
a misericórdia e providência divina em não suceder este
descobrimento como esperáveis!

§ III

O que sucede ao campo que esconde tesouros. Em que param as amizades, as
pazes e as confederações em havendo descobrimento de tesouros.
Conselho das nações de Gog e Magog contra os hebreus. Advertência
de Jeremias. Os tesouros de Ezequias e a cobiça dos babilônios.
As minas de ouro e prata de Espanha e a conquista romana.

E para que comecemos pelos perigos que podem vir de fora e de mais longe,
se este Estado, sem ter minas, foi já tão requestado e perseguido
de armas e invasões estrangeiras, que seria se tivesse esses tesouros?
Lá traz Cristo, Senhor nosso, a comparação de um campo,
que era cultivado somente na superfície da terra, fértil de
flores e frutos, porém, sabendo um homem, acaso, que no mesmo campo
estava enterrado e escondido um tesouro: Thesauro abscondito in apro (Mt 13,
44) – o que fez com todo o segredo e diligência foi ir logo comprar
o campo a todo custo, e deste modo ficou senhor, não do campo por amor
do campo, senão do campo por amor do tesouro. De sorte que toda a desgraça
do campo em mudar de senhorio, e passar de um dono a outro dono, esteve em
ter tesouro dentro em si, e saber-se que o tinha. Contentemo-nos de que nos
dêem os nossos campos pacificamente o que a agricultura colhe da superfície
da terra, e não lhes desejemos tesouros escondidos nas entranhas, que
espertem a cobi&cceccedil;a alheia, principalmente quando os mesmos campos não
estão cercados de tão fortes muros que lhe possam facilmente
defender entrada.

Conta a Sagrada Escritura, no capítulo trinta e oito de Ezequiel –
ou seja história do passado, ou profecia do futuro – que, sabendo as
nações de Gog e Magog que os hebreus viviam ricos e descansados
nas suas terras, fizeram conselho entre si de os irem conquistar, fundando
esta deliberação em dois motivos: o primeiro, que tinham ouro
e prata; o segundo, que não tinham muros. Um motivo os excitou à
conquista, e outro lha facilitou. O que os excitou foi o ouro e a prata: Ecce
ad diripiendam praedam congregasti multitudinem tuam, ut tollas argentum et
aurum(11) – e o que os facilitou foi serem terras habitadas, sem muros nem
fortificações: Ascendam ad terram absque muro; vectes, et portae
non sunt eis(12). E terras que têm ouro e prata, e não têm
muros fortes que as defendam, naturalmente estão expostas à
cobiça e invasão dos inimigos, porque o ouro e a prata que têm,
excita a cobiça, e os muros e fortificações que não
têm, facilitam a invasão.

É verdade que os hebreus naquele tempo estavam muito seguros com a
paz das outras nações, e já livres de suas armas: Ad
terram, quae reversa est a gladio ad quiescentes, habitantesque secure(13).
Mas esta segurança é muito enganosa. Onde há nova ocasião
de interesse, não há confederação que dure. Ouvi
um dito notável de Jeremias: Nunquid foederabitur ferram ferro ab aquilone,
et aes (Jer 15, 12)? Cuidais que o ferro do norte – do norte diz nomeadamente:
ab aquilone – cuidais que o ferro do norte se pode confederar com outro ferro,
e o seu bronze com outro bronze? – Enganais-vos – diz o profeta àqueles
com quem falava – e o mesmo vos certifico eu, sem ser profeta. Livrou-vos
Deus da prata, porque vos quis livrar do ferro. A arte, com a prata, liga
os outros metais; e a cobiça, com a prata, desfaz e rompe todas as
ligas.

Confederados estavam os israelitas com os babilônios, e era tanta a
amizade e boa correspondência entre um e outro rei, que Baradac, rei
de Babilônia, soberbíssimo e potentíssimo, sabendo que
Ezequias, rei de Israel, tinha convalescido daquela grave enfermidade em que
esteve à morte, lhe mandou embaixadores com grandes presentes a lhe
dar o parabém da saúde. Quis-se mostrar agradecido Ezequias,
e, em sinal de benevolência e confiança, levou os mesmos embaixadores
ao mais secreto do seu palácio, e ali lhes descobriu e manifestou todos
os seus tesouros. Ele e eles ficaram mui satisfeitos; mas não eram
passadas vinte e quatro horas, quando Deus mandou anunciar a Ezequias as perigosas
e tristes conseqüências daquele descobrimento: Ecce dies venient,
et auferentur omnia, quae in domo tua sunt, et quae thesaurizaverunt patres
tui usque ad diem hanc, in Babylonem; non relinquetur quidquam, dicit Dominus.
Et de filiis qui exibunt de te, quos genueris, tollent, et erunt eunuchi in
palatio regis Babylonis (Is 39, s): E vós, Ezequias, fostes tão
inconsiderado, que manifestastes os vossos tesouros aos embaixadores de Babilônia?
Pois sabei, diz Deus, que os babilônios os virão buscar, e não
só se farão senhores dos mesmos tesouros, sem deles deixar coisa
alguma, senão que até a vossos próprios filhos cativarão
e levarão presos a Babilônia, para lá se servirem deles.-
Eis aqui em que param as amizades, as pazes e as confederações,
em havendo descobrimento de tesouros. Dai graças a Deus de se frustrarem
as vossas esperanças, e não lhe sejais ingratos com vos entristecer,
pois assim vos quis livrar de tamanhos perigos.

Se em Espanha não houvera minas de ouro e prata – das quais, diz Estrabo,
que eram as mais ricas do mundo – nunca os romanos iriam a lhe fazer guerra
de tão longe, nem com tanto empenho e pertinácia. Assim o dá
a entender a mesma Escritura Sagrada no primeiro livro dos Macabeus, referindo
as conquistas dos romanos e a fama das suas vitórias: Et quanta fecerunt
in regione Hispaniae, et quod in potestatem redegerunt metalla argenti et
auri, quae illic sunt(14). Não diz que conquistaram os homens, senão
as minas, porque as minas foram o motivo da guerra e da conquista. Como a
gente de Espanha era tanta, tão remota e tão forte, gastou a
potência romana na pertinência desta conquista duzentos e trinta
e cinco anos – vede se serão cá necessários tantos!
– até que finalmente a terra, as minas e os moradores, ficaram
todos sujeitos ao jugo e domínio estranho, presidiados de suas legiões,
tributários à sua cobiça, governados e oprimidos da sua
tirania, e o mesmo ouro e prata – que, como diz o Espírito Santo,
muitas vezes é redenção do homem – para eles foi
a causa da servidão, e o reclamo que chamou de tão longe e lhes
meteu em casa o cativeiro.

§ IV

Um dos maiores castigos que Deus podia dar ao Maranhão era descobrirem-se
nele minas. Quais são os escondidos de Deus, de que fala Davi? As minas
e seus descobrimentos são castigos escondidos debaixo de aparências
contrárias. As minas do Cabo de S. Vicente, o promontório sagrado,
sepulcro de Tubal e de Hércules.

Mas, dado que as minas tão esperadas e apetecidas não tivessem,
por conseqüência de sua fama, estes perigos de fora, bastava a
consideração dos trabalhos e misérias domésticas,
que com elas se vos haviam de levantar de debaixo dos pés, para que
o vosso juízo, se o tivésseis, tratasse antes de sepultar as
mesmas minas depois de achadas, que procurar de as desenterrar e descobrir,
ainda que foram muito certas. Um dos maiores castigos que Deus podia dar a
esta cidade, e a este Estado, era descobrirem-se nele minas. E não
sou eu o que o digo, senão a prudência e verdade de quem se não
podia enganar.

No Salmo dezesseis pede Davi a Deus lhe faça justiça, e dê
a seus inimigos o castigo que merecem, pela desumanidade de feras com que
perseguiam sua inocência. E, depois de dizer que Deus tinha ouvido sua
petição, profetiza o castigo que o justo Juiz havia de dar aos
mesmos inimigos; e como se já lhos tivera dado, refere-o assim em poucas
palavras: De absconditis tuis adimpletus est venter eorum (Sl 16, 14): Fartastes,
Senhor, a sua fome, com os encher dos vossos escondidos. – Entram agora os
intérpretes a examinar quais são os escondidos de Deus. E o
sentido mais próprio e mais literal, com Símaco e outros, é
que os escondidos de Deus são as minas de ouro e prata. O ouro e a
prata tem-nos Deus escondidos lá no profundo da terra, onde os criou,
e quando o mesmo Senhor é servido que se descubram as minas, então
aparecem e se manifestam estes escondidos de Deus: De absconditis tuis. –
Mas se Davi tinha pedido a Deus que lhe fizesse justiça, e castigasse
a seus inimigos, e o mesmo Deus lhe tinha prometido de o fazer assim e de
os castigar, como diz que lhes há de descobrir o ouro e a prata que
tem escondidos nas minas, e os há de fartar delas: De absconditis tuis
adimpletus est venter eorum? – Mais apertadamente ainda. Neste salmo, que
todo é profético, assim como na pessoa de Davi é figurado
Cristo, assim nas perseguições de Davi são significadas
a crueldade e ingratidão com que Cristo foi tratado em vida por seus
inimigos, e as maldades e pecados com que ainda hoje é desacatado e
ofendido. Pois, em prêmio dessas ofensas, dessas maldades e desses pecados
descobre Deus os seus tesouros que tem escondidos debaixo da terra, e enche
e farta de ouro e prata aos que estão famintos de minas? Sim, porque
essas minas que tanto se desejam e estimam, ordinariamente não as descobre,
nem as dá Deus por merecimentos, senão em castigo de grandes
pecados. Ouvi o comento de todos os padres gregos sobre o mesmo texto, divididos
em duas opiniões, mas ambas concordes no que tenho dito: Illud autem
de absconditis, alii quidem intellexerunt de suppliciis, alii vero de fussilibus
metallis (15): Aqueles que o profeta chama os escondidos de Deus, uns dos
santos padres entenderam que significam castigos, e outros que significam
minas – e uns e outros não discrepam, mas concordam admiravelmente
na mesma diferença de um e outro sentido. Por quê? Porque as
minas, quando Deus as descobre, são castigos; e um dos maiores castigos
que Deus dá por pecados é o descobrimento de minas: De metallis
fussilibus, de supliciis.

E notai a misteriosa propriedade com que este gênero de castigos se
chamam também os escondidos de Deus: De absconditis tuis – porque Deus
umas vezes castiga com castigos manifestos, e outras vezes com castigos escondidos.
Os castigos manifestos são os que todos temem e reconhecem por castigos,
como são as fomes, as pestes, as guerras, e outras calamidades temporais;
os castigos escondidos e ocultos são aqueles que não se reputam
nem temem como tais, antes se estimam e desejam como felicidades e boas fortunas:
e deste gênero são as minas e seus descobrimentos. São
castigos escondidos debaixo de aparências contrárias, porque
se apetecem, estimam e festejam enganosa e enganadamente, sendo certo que
debaixo do preço e esplendor do ouro e prata se ocultam e escondem
grandes trabalhos, aflições e misérias, com que a justiça
divina, por pecados, quer castigar e açoitar as mesmas terras onde
as veias destes metais se descobrem. Deus tanto pode açoitar com varas
de ferro, como com varas de ouro e de prata; antes estes açoites são
muito mais pesados, quanto a prata e ouro pesam mais que o ferro.

Aquela ponta de terra montuosa, que hoje chamamos Cabo de S. Vicente, antigamente
se chamava Promontório Sagrado, por estar ali o sepulcro de Tubal,
primeiro pai da nossa nação, e também o de Hércules,
um dos mais famosos e amados reis da Lusitânia. Havia minas neste promontório,
as quais, por causa da mesma veneração, também era vedado
cavarem-se; e dizem as histórias daquele tempo que só em um
caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do ouro e da prata das ditas
minas. Mas qual era este caso? Coisa verdadeiramente admirável, e muito
digna de se notar. O caso era quando caía do céu algum raio
que penetrasse a terra, e descobrisse os preciosos metais que nela estavam
escondidos. De sorte que naquela terra, também nossa, o abrirem-se
minas e o caírem raios do céu, tudo vinha junto, como se o céu
nos pregara que o descobrimento de minas na terra não são felicidades
e boas fortunas, como se imagina, senão execuções da
ira de Deus, e castigos do céu.

§ V

Os martírios e horrores das minas de Potosi. Os anacoretas das minas
de ouro e prata. Quais haviam de ser enterrados vivos naquelas furnas caso
se descobrissem as minas? A pior de todas as ameaças: os ministros
reais e quantos oficiais de justiça, de fazenda e de guerra que viriam,
mandados ao Maranhão, para extração, segurança
e remessa do ouro e da prata.

E para que vos não pareça que são isto encarecimentos
lenitivos, inventados para divertir a tristeza, e dar espécie à
consolação, troquemos este ouro e prata em miúdos, e
vejamos os proveitos e interesses que do descobrimento de minas haviam de
resultar à vossa terra, no caso em que se tivessem achado. Eu nunca
fui ao Potosi, nem vi minas, porém nos livros que descrevem o que nelas
passa, não só causa espanto, mas horror, ler a fábrica
e as máquinas, os artifícios e a força, o trabalho e
os perigos com que as montanhas se cavam, e as betas se seguem, e, perdidas,
se tornam a buscar; os encontros de pedernais impenetráveis, ou de
águas subterrâneas, que rebentam das penhas, as quais ou se hão
de esgotar com bombas, ou abrir-lhes novo caminho, furando por outra parte
os mesmos montes; o estrondo dos maços, das cunhas, das alavancas,
e dos outros instrumentos de ferro, alguns dos quais têm cento e cinqüenta
libras de peso, com que se batem, cortam e arrancam as pedras, ou se precipitam
com maior perigo do alto: e tudo isto naquelas profundíssimas concavidades,
ou infernos, onde nunca entrou o raio do sol, alumiados malignamente aqueles
infelizes ciclopes só com a luz escassa e contrafeita de alguns fogos
artificiais, cujo hálito, fumo e vapor ardente lhes toma a respiração,
e muitas vezes os afoga.

Faz aqui padecer a cobiça muito mais do que profetiza Isaías
que fará em algum tempo a penitência: Introibunt in speluncas
petrarum, et in voragines terrae; projiciet homo idola argenti sui, et simulacra
auri sui, quae fecerat sibi ut adoraret, talpas et vespertiliones (Is 2, 19
s): Meter-se-ão os homens pelas covas e pelas concavidades mais profundas
da terra, não para buscar ouro ou prata, mas, abominando e lançando
de si os ídolos, que do ouro e da prata tinham feito, toupeiras e morcegos.
– Vede agora estas mesmas figuras como as ajunta e introduz toda a cobiça
neste escuro e horrendo teatro da paciência sem virtude. Ali os penitentes
arrependidos entram pelas grutas e concavidades da terra; aqui os cobiçosos
e enganados também se metem, não pelas covas que a terra tem
aberto, senão pelas que eles cavam e rompem à viva força,
muito mais penetrantes e profundas. Ali desprezam-se os ídolos de ouro
e prata, conhecida sua mentira e vaidade; aqui, estima-se e adora-se tanto
a mesma vaidade que, por novos e ocultos caminhos de tantos estádios,
se vai buscar e desenterrar o ouro e prata, para se fundirem e lavrarem ídolos.
Ali as figuras dos ídolos são toupeiras e morcegos: talpas et
vespertiliones – e aqui os homens, desfigurados como toupeiras, vivem debaixo
da terra, sem ter olhos para ver a luz, e como morcegos fogem do sol e do
dia, e se vão mais sepultar que viver naquela escura e perpétua
noite. Ainda tem outra propriedade, porque uns, como toupeiras, com os pés
e mãos na terra andam cavando, revolvendo e mudando continuamente,
e outros, como morcegos suspensos no ar, estão picando as pedras e
sangrando as suas veias com o corpo e com a vida pendente de uma corda. Houve
jamais algum anacoreta, dos que habitavam as covas, que fizesse tal penitência?
Pois ainda não ouvistes o mais temeroso dela.

Solapadas por baixo aquelas grandes montanhas, todo o peso imenso delas se
sustenta sobre pilares da mesma matéria, que vão deixando a
espaços, os quais, se enfraquecem ou quebram, como acontece muitas
vezes, qual é o efeito? Toda a montanha, ou grande parte dela, cai
de repente, e a multidão que andava desenterrando a prata, fica sepultada
com ela, em um momento, sem outra notícia de tamanho e tão miserável
estrago, que a que deu aos de muito longe o estrondo da ruína, e o
tremor de toda a terra. Isto é o que se escreve, e se escreve muito
menos do que verdadeiramente é. Baste, por prova, que a sevícia
e crueldade dos Neros e Dioclecianos comutavam a morte e os tormentos dos
cristãos em os mandar servir e trabalhar nas minas, e a Igreja, que
com tanta dificuldade e consideração examina e avalia os merecimentos
dos santos, canonizava e venerava por mártires aos que nelas acabavam
a vida.

Agora vos pergunto eu: e estes martírios das minas, se as vossas se
descobrissem, quem os havia de padecer? Dos degradados não falo, porque
os que hoje se degradam para o Maranhão, então se haviam de
degradar todos, e muitos mais para as minas. Os cavadores não seríeis
os mais nobres e ricos da terra, mas quem haviam de ser senão os seus
escravos? Quem havia de induzir todos aqueles instrumentos e máquinas
por esses sertões dentro? Quem havia de contribuir o sustento, e levá-lo
aos trabalhadores? Quem havia de cortar e acarretar àquelas serras
estéreis – como são todas – as lenhas para as fornalhas e fundições?
E aqueles lumes perpétuos e subterrâneos, com que óleos
se haviam de sustentar, senão com os dos frutos agrestes que aqui se
estilassem, e não com os dos olivais que de lá viessem? Sobretudo,
se tantos milhares de índios se têm acabado e consumido em tão
poucos anos, e com tão leve trabalho, como o das vossas lavouras, onde
se haviam de ir buscar outros, que suprissem e suportassem quanto tenho dito?
E quais haviam de ser os que, vendo-se enterrados vivos naquelas furnas, não
fugissem para onde nunca mais aparecessem, levando o mesmo medo com eles aos
demais? Tudo isto não o haviam de fazer nem padecer os que passeiam
em Lisboa, porque também estas minas são como as da pólvora,
que sempre arruinam, derrubam e põem por terra o que lhes fica mais
perto. E isto é o que vós desejáveis para a vossa, e
vos entristece, porque não sucedeu como esperáveis?

Ainda falta por dizer o que mais vos havia de destruir e assolar. Quantos
ministros reais, e quantos oficiais de justiça, de fazenda, de guerra,
vos parece que haviam de ser mandados cá, para a extração,
segurança e remessa deste ouro ou prata? Se um só destes poderosos
tendes experimentado tantas vezes que bastou para assolar o Estado, que fariam
tantos? Não sabeis o nome do serviço real – contra a tenção
dos mesmos reis – quanto se estende cá ao longe, quão violento
é, e insuportável? Quantos administradores, quantos provedores,
quantos tesoureiros, quantos almoxarifes, quantos escrivães, quantos
contadores, quantos guardas no mar e na terra, e quantos outros ofícios
de nomes e jurisdições novas se haviam de criar ou fundir com
estas minas, para vos confundir e sepultar nelas? Que tendes, que possuís,
que lavrais, que trabalhais, que não houvesse de ser necessário
para serviço de el-rei, ou dos que se fazem mais que reis com este
especioso pretexto? No mesmo dia havíeis de começar a ser feitores,
e não senhores de toda a vossa fazenda. Nem havia de ser vosso o vosso
escravo, nem vossa a vossa canoa, nem vosso o vosso carro e o vosso boi, senão
para o manter e servir com ele. A roça haviam-vo-la de embargar para
os mantimentos das minas; a casa haviam-vo-la de tomar de aposentadoria para
os oficiais das minas; o canavial havia de ficar em mato, porque os que o
cultivassem haviam de ir para as minas; e vós mesmo não havíeis
de ser vosso, porque vos haviam de apenar para o que tivésseis ou não
tivésseis préstimo, e só os vossos engenhos haviam de
ter muito que moer, porque vós e vossos filhos havíeis de ser
os moídos.

§ VI

A proposição de Horácio: o ouro é melhor não
se achar nem se descobrir que achar-se. As coisas naturais, enquanto estão
no seu próprio lugar, em que as situou a natureza, nenhum dano fazem.
Enquanto no mundo não houve ouro, então foi a Idade de Ouro:
depois que apareceu o ouro no mundo, então começou a Idade de
Ferro. Que quer dizer o Gênesis quando diz que no princípio do
mundo a terra estava vazia e vazia? Se na doação universal dos
bens do Paraíso, Deus entrega como por lista a Adão todas as
outras coisas, as minas de ouro e prata por que deixa de fora? O ouro e a
prata, pedra de toque dos homens. Plínio e a felicíssima idade
em que as coisas se contavam umas por outras: Os discípulos de Cristo
e o perigo do dinheiro.

Parece-me que vos vejo dar assenso a tudo o que digo – que por isso desci
a coisas tão particulares e domésticas – e também creio
que já vossa esperança terá mudado de conceito à
vista deste descobrimento de minerais, tão diversos do que ela desejava
e supunha, os quais é certo que haviam de ser maiores e mais duros
na experiência, do que os pode representar o meu discurso. Fique, logo,
por conclusão que muito maior mercê vos fez Deus, e muito mais
bem afortunados fostes em não se acharem as minas, que se o ouro e
prata, que se supunha e esperava delas, se descobrisse. Ouvi a sentença
de um gentio, fundado só na razão natural e experiência,
sem nenhum princípio de fé, que a nós nos devia levantar
mais da terra: Auram irrepertum, et sic melius situm cum terra celat: O ouro
– diz Horácio – é melhor não se achar nem se descobrir,
que achar-se: auram irrepertum. E por que? Porque, enquanto a terra o esconde
e encobre: cum terra celat – está ele no sítio e lugar que lhe
deu a natureza, que é o melhor: et melius situm. – Excelente razão.
As coisas naturais, enquanto estão no seu próprio lugar em que
as sitiou a natureza, nenhum dano fazem; tiradas dele, são muito danosas.
A água no seu centro não pesa; o fogo na sua esfera não
queima; a terra, se sobe ao ar, faz raios; o ar, se se mete debaixo da terra,
faz terremotos, derruba casas e cidades; assim também o ouro e prata
das minas. Enquanto estão escondidos lá no centro da terra,
onde as pôs a natureza, conservam-se inocentes, e não fazem mal
a ninguém; mas se se cavam e se tiram fora, então são
muito perniciosas, e fazem grandes estragos. Olhai para o passado, se vos
não quereis enganar com o presente.

Aquela idade dourada, tão célebre nos primeiros tempos, quem
a fez? Parece que a havia de fazer o ouro, e não a fez o ouro que havia,
senão o ouro que não havia, porque ainda se não tinha
descoberto. Enquanto no mundo não houve ouro, então foi a Idade
de Ouro: depois que apareceu o ouro no mundo, então começou
a Idade de Ferro: Jamque nocens ferrum, ferroque nocentius aurum prodierat(
* ). O que era necessário e útil para a vida e conservação
dos homens, notou Sêneca, Demócrito, e ainda o mesmo Epicuro,
que o pôs a natureza muito perto de nós, e muito descoberto e
patente, como são as plantas, os frutos, os animais, pelo contrário,
o que não só era inútil, mas pernicioso, pô-lo
muito longe de nós, oculto e escondido, onde o não víssemos:
e este é o ouro e a prata. Houve-se em tudo a natureza como mãe.
A mãe dá a maçã ao filhinho, e esconde-lhe a faca.
Por que? Porque quer que coma, mas não quer que se fira, e se o menino
chora pelo que o há de ferir, não é justo que os homens
de razão e de juízo tenham sentimento de meninos.
Esta mesma doutrina, como tão necessária – porque não
cuideis que é só de filósofos – foi a primeira
que nos ensinou a Sagrada Escritura logo no princípio do mundo: In
principio creavit Deus caelum et terram. Terra autem erat inanis et vacua.
(Gên 1, 1 s): No princípio criou Deus o céu e a terra;
porém a terra estava vazia e vazia. – E que quer dizer que a
terra estava vazia e vazia: inanis et vacua? Quer dizer que estava vazia por
dentro e vazia por fora: vazia por dentro: inanis – porque ainda não
tinha Deus criado no interior da terra os minerais; e vazia por fora: et vacua
– porque também não tinha criado na superfície
da mesma terra as plantas, as árvores e os animais. Criou, pois, Deus
todas estas coisas naqueles primeiros seis dias, e, fazendo a Escritura muito
particular e miúda relação das plantas, das árvores
e dos animais, das minas e dos metais não faz menção
alguma. Pois, se a Escritura tinha dito que a terra, em sua primeira criação,
nascera vazia por dentro e por fora, e relata com tanta distinção
e engrandece com tanto aparato como Deus a encheu e povoou por fora, por que
cala totalmente, e não diz como a encheu e enriqueceu por dentro? Mais.
Depois que Deus teve criado todas as coisas, e o homem, que foi a última,
mostrou-lhe as ervas, as plantas, as árvores e seus frutos, e disse-lhe:
– Eis aqui toda esta variedade, a qual criei, e vos dou para vosso sustento
e regalo. – E fazendo vir diante do mesmo Adão todos os animais,
disse-lhe da mesma maneira: – Também de todos estes vos dou o domínio,
os quais criei para que vos ajudem e sirvam. – Agora cuidava eu que
havia que acrescentar o Senhor: E não só tenho provido e aparelhado,
para vosso sustento, serviço e conservação, todas estas
coisas que vedes na superfície da terra, mas também lá
no centro e entranhas dela, criei muitas minas de metais preciosos, para maior
riqueza, grandeza e utilidade vossa, e de vossos descendentes. Mas nada disso
disse Deus: tudo passou em silêncio, sem fazer das minas a menor insinuação.
Pois, se Deus nesta doação universal entrega, como por lista,
a Adão todas as outras coisas que tinha criado para ele, as minas de
ouro e prata, que parecia – como hoje parece – que era a melhor
e mais rica partida de todas, por que as deixa de fora? Porque todas as outras
coisas que estão à face da terra, e o domínio e uso delas,
era útil e necessário ao homem para sua conservação
e sustento, e ainda para seu regalo; porém as minas, o ouro e a prata,
não só não eram necessários nem úteis,
mas supérfluos e perniciosos, e ocasião que lhe podia e havia
de ser de gravíssimos danos. Por isso, assim como as tinha sepultado
e escondido debaixo da terra, assim lhe escondeu e encobriu também
a notícia delas, passando totalmente em silêncio, e não
fazendo menção de tal coisa.

Mas vejo que me perguntam os curiosos, e me argúem os críticos:
se as minas eram tão danosas e perniciosas ao homem, e por isso lhas
escondeu e encobriu Deus, por que as criou, ou para que? Para responder a
esta pergunta, faço-vos primeiro outra. E a Arvore da Ciência
que foi a ocasião e origem de todos os males do mundo, por que a criou
Deus no paraíso? Ou aquela árvore era boa ou má – como
argumenta Santo Agostinho. – Se era má, para que a plantou Deus? Se
era boa, para que a proibiu? Ameaça ao homem com a morte se comer daquele
fruto, e pinta o mesmo fruto com tais cores, que levava após si os
olhos- Pulchrum oculis, aspectaque delectabile(16)? Sim. Porque aquele fruto
tão formoso não foi criado para que Adão comesse ou provasse
dele, senão para que Deus tentasse a Adão, e o provasse com
ele. E esta é também a razão por que Deus criou o ouro
e a prata, e lhes deu tanta formosura de cores. Quílon, um dos sete
sábios da Grécia, dizia que, assim como a pedra de toque prova
o ouro e a prata, assim o ouro e a prata são a pedra de toque dos homens.
Quereis provar quem são os homens? Tentai-os com ouro e com prata.
Do ouro disse o Eclesiástico: Qui post aurum non abiit, probatus est
in illo (17); e da prata disse Davi: Ut excludant eos, qui probati sunt argento.

E notai que o que nesta sentença ficou aprovado foi um só:
Qui probatus est in illo – e os que ficaram reprovados e excluídos
foram muitos: Ut excludant eos, qui probati sunt argento. Ora já que
todos os dias pedimos a Deus que nos livre das tentações, ou
que nos não meta nelas: Ne nos inducas intentationem – demos-lhe
muitas graças, pois nos livrou desta, em que nós nos tínhamos
metido.

E porque vos não fique a última desconsolação
de não terdes com que bater moeda na vossa terra, saibam os que tanto
a desejam e procuram que, posto que seja com boa tenção e bom
zelo, é esta a maior traição que podem fazer à
sua pátria. É possível que vos dê Deus uma terra
tão abundante e tão fértil, que só com a comutação
dos frutos e drogas dela vos sustentais e conservais há tantos anos,
tão abastada e tão nobremente, sem haver nem correr nela dinheiro,
e que desejeis e suspireis por dinheiro, sem o qual, e por isso mesmo, vos
fez a vossa fortuna singulares no mundo? Plínio, que foi o homem que
maior conhecimento teve de todo ele, entre outras muitas sentenças
com que condena o uso do dinheiro, e louva o da comutação dos
frutos naturais, diz estas notáveis palavras: Quam innocens, quam beata,
imo vero et delicata esset vita, si nihil aliud quam supra terras concupisceret?
Utinamque posset e vita totum abdicari aurum, ad perniciem vitae repertum,
quantum feliciore aevo, cum res ipsae permatabuntur, inter se (18)? Quer dizer:
que inocente, que bem-aventurada, e que deliciosa seria a vida dos homens,
se eles se contentaram com o que nasce sobre a terra! Oxalá se pudera
desterrar de todo o mundo o ouro descoberto para destruição
da vida, e se trocaram os tempos e uso presente por aquela idade felicíssima,
em que as coisas se comutavam uma por outras. – Até aqui o parecer
daquele grande juízo, que ajuntou em si a ciência e compreensão
de todos os séculos. E que, tendo-vos Deus feito mercê de que
gozeis esta inestimável riqueza e felicidade natural, queirais abrir
as portas a um inimigo tão universal e pernicioso como o dinheiro,
que, no dia em que entrar na terra, vos há de empobrecer a todos de
repente? Ouvi um caso admirável de Cristo, Senhor nosso, com seus discípulos.

Mandou-os o Senhor pregar pelo mundo, e proibiu-lhes nomeadamente que não
tivessem ouro nem prata, nem levassem bolsa nem dinheiro consigo: Nolite possidere
aurum, neque argentum, neque pecuniam in zonis vestris (Mt 10, 9). Vieram
os discípulos da jornada, e fez-lhes o Divino Mestre esta pergunta:
Quando misi vos sine sacculo, et pera, numquid aliquid defuit vobis (Lc 22,
35)? Quando vos mandei sem bolsa nem alforje, faltou-vos alguma coisa? –
Responderam todos que nenhuma coisa lhe faltara: At illi dixerunt: nihil (Lc
22, 36). – Pois agora vos digo, replicou o Senhor, que quem tiver bolsa
e dinheiro o leve consigo, e se tiver alforje, também: Sed nunc, qui
habet sacculum, tollat similiter et peram (Lc 22, 36). – Com razão
chamei a este caso admirável. Se Cristo tinha mandado aos discípulos
sem bolsa nem dinheiro, e eles experimentaram e confessaram que nenhuma coisa
lhes faltara, como depois desta experiência e desta confissão,
lhes manda agora o contrário, e que levem dinheiro? Se eles tiveram
dito que, por não levarem dinheiro, lhes tinham faltado muitas coisas
necessárias à vida, então se seguia bem que o Senhor
lho concedesse. Mas, tendo-lhes proibido o dinheiro, quando foram a primeira
vez, e não lhes tendo faltado nada, agora lhes diz que o levem? Responde,
depois de grandes admirações, S. João Crisóstomo.
Cristo, Senhor nosso, queria exercitar seus discípulos na paciência,
e que padecessem pobreza e falta do que lhes fosse necessário; e como
quando foram sem dinheiro, nenhuma destas coisas lhes faltou, mandou-lhes
que levassem dinheiro, para que tudo lhes faltasse. Ac si eis dixerit: hactenus
cuncta vobis uberrine affluebant, nunc autem volo vos et inopiam experiri
(19): Como se dissera o Senhor – diz Crisóstomo: – Até
agora, sem dinheiro, tudo vos sobeja; pois agora quero que tenhais dinheiro,
para que tudo vos falte, e sejais pobres. – Isto é o que querem,
sem entender o que querem, os que desejam que entre e corra dinheiro nesta
vossa terra. Se sem dinheiro, e só com uma comutação
dos frutos naturais da terra, tendes abundantemente tudo o que é necessário
para a vida, e muitos de vós o supérfluo, para que quereis dinheiro,
senão para que tudo custe dinheiro, e, custando tudo dinheiro, todos
sejais pobres? Benzei-vos desta tentação como da outra: lograi
o que Deus vos deu tão abundantemente sobre a terra, e debaixo dela
nem queirais minas, nem o que delas se bate.

§ VII

As minas, causa de opressão e ruína do Reino. Que utilidades
se têm seguido à Espanha do seu famoso Potosi? Que faziam os
rios de ouro do reinado de Salomão, provenientes das minas do Peru
e do Brasil? Os magnetes atraem o ferro e os magnates o ouro.

Mas, antes que acabemos este ponto – com promessa de que o segundo será
muito breve – não quero que me acuseis de pouco zeloso da opulência
do Reino. E assim como vos tenho mostrado que as minas, no caso em que se
descobrissem, seriam de grande dano, em particular para este Estado, assim
acrescento agora que também para o mesmo Reino em geral antes haviam
de ser de maior opressão e ruína, que de utilidade e aumento.
E para que comecemos pelos exemplos mais vizinhos, que utilidades se têm
seguido à Espanha do seu famoso Potosi, e das outras minas desta mesma
América? A mesma Espanha confessa e chora que lhe não tem servido
mais que de a despovoar e empobrecer. Eles cavam e navegam a prata, e os estrangeiros
a logram. Para os outros é a substância dos preciosos metais,
e para eles a escória. Lá disse Isaías, falando do Reino
de Israel: Argentum tuum versum est in scoriam (20): e o mesmo se poderá
dizer sem metáfora da prata de Espanha. Ainda, com mais doméstica
propriedade, se lhe pode aplicar o dito do seu mesmo patrão, Santiago
: Argentum vestrum aeruginavit(21) – pois a prata se lhe tem convertido em
cobre, e a fama e opulência de tanto milhão em belhão.

E para que se não engane alguém com me dizer ou cuidar que
a evidência deste mesmo exemplo nos servirá de doutrina e emenda,
passemos a outro reino, ou a outro reinado mais sábio, qual foi, sem
injúria dos presentes nem futuros, o de Salomão. Salomão,
com a sua universal sabedoria, descobriu riquíssimas minas, e não
outras, segundo opinião de graves autores, senão as mesmas deste
Novo Mundo. As do Peru, que os espanhóis descobriram sem as buscar,
e as do Brasil, que nós buscamos, e não descobrimos. Funda-se
esta sentença no capítulo terceiro do segundo Livro dos Paralipômenos,
onde, falando do ouro que daquelas partes vinha a Salomão, diz o texto
hebreu: Aurum erat Paruaim (22). A qual palavra Paruaim é um nome do
plural, cujo singular é Peru, com que vem a dizer o mesmo texto que
aquele ouro se trazia de ambos os Perus, ou de um e outro Peru. Assim os declara
Genebrardo, peritíssimo na língua hebraica: Aurum Paruaim in
hebraeo appellatur quasi allatum ex utroque Peru(23). E daqui infere, como
coisa evidente, que era tirado das minas deste novo Mundo: Quis non cernit
novum hunc orbem nominari? E para que se veja que um destes Perus era o que
hoje conserva o mesmo nome, e o outro este nosso, que chamamos Brasil – onde
só podiam vir aportar as frotas de Salomão – diz o mesmo texto
sagrado que uma das coisas novas, e nunca vistas na Ásia, que levavam
as mesmas frotas, eram certos paus chamados ligna thyina, os quais, dizem
os hebreus, citados por Tirino, que eram lignum Brasilium: pau do Brasil(24)
. O Caldeu traslada coralium: coral, donde parece-lhe deram este nome pela
semelhança da cor vermelha. Mas as obras, que o texto aponta se faziam
deste pau, não podiam ser do que vulgarmente se chama Brasil, senão
de outra madeira preciosa, das muitas que nele nascem.

Isto suposto – e não suposto também – ou fossem desta terra
as minas de Salomão, ou de qualquer outra, vamos ao que rendiam, e
em que se empregava, que é o que faz ao meu caso. O que traziam as
suas frotas a Salomão, só em ouro, eram seiscentos e sessenta
e seis talentos, que montam oito milhões, menos oito mil cruzados.
Assim o conta pontualmente a Escritura: Pondus auri, quod afferebatur Salomoni
per annos singulos, sexcentorum sexaginta sex talentorum auri(25). E não
só traziam as frotas ouro, senão também muita prata,
cuja quantidade era tão imensa na corte de Jerusalém, que, afirma
a mesma Escritura, igualava às pedras da rua: Fecitque ut tanta esset
abundantia argenti in Jerusalém, quanta et lapidum(26). Esta é
a imensidade de ouro e prata que rendiam aquelas minas. Mas antes que vejamos
em que todo este ouro e toda esta prata se gastava, deixai-me fazer um reparo,
digno não só de admiração, mas de assombro e de
pasmo.

Morto Salomão, sucedeu-lhe na coroa Roboão, seu filho, e a
primeira proposta que lhe fizeram os povos juntos em cortes foi que tivesse
piedade deles, e os aliviasse dos tributos com que estavam oprimidos em tempo
de seu pai, porque eram insuportáveis. E chegou esta instância
a termos tão apertados, e do cabo, que, não querendo Roboão
condescender no que tão justamente pediam, das doze Tribos de que constava
todo o reino, as dez lhe negaram a obediência e se rebelaram, e fizeram
outro rei e outro reino, que nunca mais se sujeitou nem restituiu aos herdeiros
de Salomão. Agora entra o meu reparo. Se o peso de ouro e a quantidade
da prata que contribuíam as minas era tão excessiva – além
dos direitos ordinários do reino, de que também faz menção
a Escritura – com toda esta imensidade de tesouros, com todos estes rios de
prata e ouro, que estavam sempre a correr: Per singulos annos – como não
se aliviava a opressão dos vassalos, como se não levantavam
ou diminuíam os tributos dos povos, antes cresciam e se multiplicavam
ao mesmo passo, com tal excesso que os obrigavam a uma tal desesperação,
e reduziram o reino a extrema ruína? Aqui vereis qual é o fruto
das minas, e o que fazem esses rios de ouro e prata, trazidos de tão
longe. Com as suas enchentes inundam a terra, oprimem os povos, arruinam as
casas, destroem os reinos.

As causas naturais destes efeitos tão lamentáveis não
são ordinariamente outras, senão as mesmas que precederam no
reinado de Salomão. E quais foram estas? O luxo, a vaidade, a ostentação,
a delícia, os palácios, as casas de prazer, as fábricas
e máquinas esquisitas, e outras coisas tão notáveis como
supérfluas, que chamavam à corte de Jerusalém os olhos
do mundo, e vistas, desmaiavam a admiração, como aconteceu à
rainha Sabá. As baixelas todas eram de ouro – porque da prata não
se fazia caso – as mesas, e todas as outras alfaias, também de ouro,
e, o que se não pudera crer, se o não referira a História
Sagrada, até as lanças e escudos, em grande número, de
ouro. Nestes monstros da vaidade – que sempre é maior que o poder –
se consumiam aqueles imensos tesouros, e onde não chegavam os milhões
das frotas, supriam os tributos dos vassalos. Quando as frotas haviam de partir,
uns concorriam com o préstimo de suas artes para os aprestos, outros
com as contribuições das suas herdades para os bastimentos,
outros com o dinheiro amoedado para os soldos, outros com as próprias
pessoas, embarcando-se forçados a uma tão dilatada, tão
nova e tão perigosa navegação. E quando as mesmas frotas
voltavam carregadas de ouro e prata, nada disto era para alívio ou
remédio dos povos, senão para mais se encherem e incharem os
que tinham mando sobre eles, e para se excogitarem novas artes de esperdiçar,
e novas invenções de destruir. E se isto sucedia no reinado
e governo de Salomão, vede se se pode esperar ou temes outro tanto,
quando não forem Salomões os que tenham o governo!

Dos futuros condicionais e contingentes, ninguém é sabedor,
senão Deus e os seus profetas. E assim não quero que me creiais
a mim, senão a Isaías: Repleta est terra argento et auro, et
non est finis thesaurorum ejus (Is 2, 7): Vejo a terra – diz Isaías
– toda cheia de ouro e prata, e são tantos e tão grandes os
seus tesouros que não têm fim. – Oh! ditosa e bem afortunada
terra, em que não haverá já pobreza nem miséria,
pois, estando toda cheia, a todos abrangerá a riqueza, e não
haverá quem não tenha com que remediar a sua necessidade! Assim
parece verdadeiramente. Mas vejamos se vê mais alguma coisa o profeta,
e se é isto mesmo que nós inferimos. Vai por diante Isaías,
e às palavras que tinha dito acrescenta as seguintes: Et repleta est
terra ejus equis, et innumerabiles quadrigae ejus, et repleta est terra ejus
idolis: opus manuum suarum adoraverunt (Is 2, 8): Depois de ver a terra cheia
de ouro e prata, o que mais vi – diz o profeta – foi que a mesma terra
estava cheia de cavalos, e que as suas carroças eram inumeráveis,
e que os homens adoravam as obras de suas mãos, e faziam delas ídolos.
– Eis aqui os aumentos que havia de ter o reino com os haveres que lhe prometiam
as vossas minas. Encher-se-ia a terra de ouro e prata mas esse ouro e prata,
posto que naturalmente desce para baixo, havia de subir para cima. Não
havia de chegar aos pequenos e pobres, mas todo se havia de abarcar e consumir
nas mãos dos grandes e poderosos, porque, como bem disse o outro, os
magnetos atraem o ferro, e os magnates o ouro; e as obras pias em que esses
tesouros se haviam de despender, eram, mais cavalos, e mais carroças,
e mais galas, e mais palácios, e obras magníficas e ostentosas;
e também haviam de ter parte nele os ídolos batizados, que lá
se adoram, e que tantas vidas e fazendas têm destruído. E se
estes eram os proveitos com que se havia de adiantar o reino no descobrimento
das vossas minas , à custa da vossa fazenda, do vosso trabalho, da
vossa opressão e do vosso cativeiro, vede se foi grande favor e providência
do céu, que se não descobrissem, e se, tanto no particular como
no geral, ia desencaminhada e errada a vossa esperança: Nos autem sperabamus.

§ VIII

Em lugar das minas incertas, que se não descobriram, descobrirá
Deus outras certas e mais ricas. O milagre prometido por Cristo aos escribas
e fariseus. Que foi buscar Cristo ressuscitado nas concavidades escuras e
subterrâneas do interno? O que disseram os autores gentios dos mineiros
do ouro e da prata, e o que Cristo fez penetrando o mais escondido e interior
da terra. As almas dos patriarcas, tesouros inestimáveis que o Redentor
do mundo tirou das suas minas. A profecia de Isaías e o descobrimento
das minas secretas e dos tesouros ocultos. O preço por que foram compradas
nossas almas. El-rei D. João, o Segundo, e as minas da Costa de África.

Desenganado assim e desvanecido o falso descobrimento das vossas minas, segue-se
o verdadeiro das minhas, que vos prometi descobrir. E porque é certo
e infalível, não necessita de tão largo discurso. Prometendo
Cristo, Redentor nosso, aos escribas e fariseus, em lugar de um milagre do
céu, que lhe pediam, outro milagre maior na terra, disse que, assim
como Jonas estivera três dias e três noites no ventre da baleia,
assim ele havia de estar no coração da terra outros tantos dias
e noites, que foram os que se contaram desde a tarde de sua sagrada morte,
até à manhã da sua gloriosa ressurreição.
Alguns dizem que se cumpriu esta promessa e profecia na sepultura do Senhor.
Mas esta interpretação é insuficiente e imprópria,
porque, ainda que Cristo na sepultura esteve debaixo da terra, não
esteve no coração da terra: In corde terrae (Mt 12, 40). O coração
da terra não é junto à superfície, onde estava
o sepulcro, senão o meio e centro dela, e o lugar mais interior e inferior,
onde o Senhor desceu e se deteve aqueles três dias, e isso é
o que cremos e significamos, quando dizemos não só que foi sepultado,
senão que desceu ao inferno. Mas a que fim desceu Cristo ao inferno,
estando já em estado glorioso, a que naturalmente é devido o
céu? Que foi buscar àquelas concavidades escuras e subterrâneas,
onde nunca entrou o sol? Foi buscar e descobrir umas minas mais ricas que
toda a prata e todo o ouro, cujo preço e lugar só ele conhecia,
e nenhum homem, nem anjo, senão ele as podia descobrir.

Quando os autores, ainda gentios, querem encarecer o extremo da cobiça
furiosa e cega, com que os homens não duvidam de se meter e penetrar
o mais profundo da terra, e ter sobre si as montanhas para chegar ao escondido
das minas, dizem que até ao inferno vão buscar e desenterrar
o ouro e a prata:

Itum est ad viscera terrae.
Quasque recondiderat, Stygiisque advexerat undis,
Effodiuntur opes irritamenta malorum (27),

disse com elegantes versos Ovídio. E não com menos elegante
prosa, nem com menor ressentimento e juízo, Plínio: Imus in
viscera ejus, et in sede manium opes quaerimus. Illa nos premunt, illa nos
ad inferos agunt, quae occultavit, atque demersit (28). Isto, pois, que aqueles
homens, que não tiveram conhecimento de Cristo, disseram por exageração
e encarecimento dos mineiros do ouro e prata, isto mesmo, e em próprios
termos, é o que realmente e em pessoa fez Cristo, penetrando o mais
escondido e inferior da terra, e descendo verdadeiramente ao inferno, para
descobrir, romper e abrir as suas minas, não de ouro ou prata, que
acrescentam os males da terra, senão de outros muito mais preciosos
metais, com que se acrescenta, ilustra e enriquece o céu.

A montanha onde começaram a romper-se estas minas foi o Monte Calvário,
os instrumentos a cruz e os cravos; o sítio subterrâneo, onde
elas estavam escondidas, o seio de Abraão; e as riquezas que delas
tirou Cristo depois de tantos trabalhos, as almas. Tirou a alma do mesmo Abraão,
que deu nome ao lugar. Tirou a alma de Abel, que foi a primeira que ali entrou.
Tirou as almas de Adão e Eva, que, por um apetite, foram a causa de
que eles, e seus filhos, do paraíso da terra não fossem tresladados
ao céu. Tirou as almas dos antigos Patriarcas, Set, Noé, Isaac,
Jacó, José e Moisés, cuja lei, posto que foi disposição,
não teve virtude para levar os homens à glória, privilégio
só da lei da graça. Tirou a alma de Jó, que no mesmo
tempo se salvou na lei da natureza, e também – segundo parece – as
dos outros amigos que tinham a mesma fé do verdadeiro Deus. Tirou as
almas dos reis que foram justos e santos – muito menos porém em número
do que foram as coroas – a alma de Josias, a alma de Ezequias, a de Josafá,
a de Manassés, a de Davi. E se também não foi com ele
a de Salomão, vede que desgraça? Tirou as almas dos profetas
Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel e os demais, e com cada um deles
em triunfo, as almas que com suas pregações tinham livrado do
inferno. E por que não fiquem de fora as mulheres – cujas almas não
faltou quem dissesse que não foram criadas à imagem e semelhança
de Deus – tirou as almas de Sara, de Rebeca, de Raquel, a de Maria, irmã
de Moisés, a de Ester, a de Rute, a da casta Susana, a da valente Judite.
E com estas de mais conhecido nome, todas as outras que naquele escuro depósito
estavam esperando longamente a vinda do Messias.

Das que lá entraram depois de Deus feito homem – se a história
do rico avarento não foi mais antiga – tirou o Senhor singularmente
a alma do pobre Lázaro, de que só se faz menção
no Evangelho, a qual levaram ao mesmo seio de Abraão os anjos, ficando
para sempre no inferno, ardendo em fogo e em inveja, a alma do mesmo rico,
cuja fortuna neste mundo fora tão invejada. Também foi notável
entre as almas deste tempo a de Simiano, aquele velho venturoso que teve a
Cristo em seus braços, e, despedindo-se da vida, foi o que lá
levou as primeiras novas, de que já ficava no mundo o Redentor dele.
Os antigos tiveram para si que havia almas grandes e almas pequenas; e se
isto assim fora, muito acrescentaram o número das almas pequenas às
dos inocentes de Belém, os quais o Senhor não livrou da espada
de Herodes, para agora as levar gloriosas consigo. Finalmente, sobre todo
aquele numerosíssimo esquadrão, avultaram com excesso entre
todas as almas grandes, quatro maiores – a de S. João Batista, a de
S. Joaquim, a de Santa Ana, e a do que mereceu ser chamado pai do mesmo Cristo,
o incomparável S. José.

Estes foram os tesouros inestimáveis que o Redentor do mundo tirou
daquelas suas minas, que em espaço de quatro mil anos, desde o princípio
do mesmo mundo, se foram multiplicando e crescendo sempre. Então se
cumpriu a promessa que delas lhe tinha feito Deus por boca de Isaías,
dizendo que lhe daria os tesouros escondidos e mais secretos e encobertos
de toda a terra, e quebraria para isso portas de bronze e fechaduras de ferro:
Portas aereas conteram, et vectes ferreos confringam; et dabo tibi thesauros
absconditos, et arcana seeretorum(29) . Bem sei que estas palavras foram dirigidas
exteriormente a el-rei Ciro, mas é certo que o interior da profecia
falava expressamente com Cristo. Assim como o que tem diante de si a imagem
de um santo parece que fala com a imagem, e fala com o santo, assim Isaías,
falando no exterior com Ciro, que era figura e imagem de Cristo, com o mesmo
Cristo é que falava propriamente, e de Cristo profetizava, e não
de Ciro. O mesmo profeta se explicou logo, e se comentou a si mesmo e com
tal individuação de palavras, que de nenhum modo se podem entender
de Ciro, nem de outro algum homem, senão daquele que era homem e Deus
juntamente: Vere tu es Deus absconditus, Deus Israel, salvator(30). Este,
de quem falo debaixo do nome de Ciro, é verdadeiramente Deus escondido,
Deus escondido e Salvador, Deus escondido, porque em Cristo estava a divindade
escondida debaixo da humanidade; e Deus assim escondido Salvador, porque para
Deus nos salvar se fez homem. E para tirar toda a dúvida, e que este
Salvador não era homem como os outros homens da terra, senão
Deus descido do céu, continua o mesmo profeta pedindo e instando ao
mesmo céu que acabasse já de chover lá de cima o Justo,
para que nascesse na terra o Salvador: Rorate, caeli, desuper, et nubes pluant
justum; aperiatur terra, et germinet Salvatorem(31) – Assim que aquele príncipe,
a quem Deus prometeu o descobrimento das minas secretas, e as riquezas dos
tesouros mais ocultos e escondidos, não era Ciro, nem outro rei da
terra, senão Cristo, verdadeiro Deus, também escondido, que
desceu do céu, e que desceu, não para outro fim, senão
para ser Salvador.

Mas, se Cristo, quando desceu do céu e veio à terra, nasceu
na pobreza de um presépio; se como Filho escolheu Mãe pobre,
e como Mestre discípulos pobres; se a primeira coisa que ensinou e
pregou foi a pobreza; se viveu de esmolas como pobre, se morreu sem casa nem
cama, é despido como extremamente pobre, se o que sempre condenou foram
as riquezas, e, prometendo o céu aos pobres, só o dificultou
e quase impossibilitou aos ricos: que tesouros são estes que Deus lhes
prometeu, e que minas secretas e escondidas as que havia de descobrir? Não
foram sem dúvida, nem são outras, senão aquelas almas
tão preciosas como prezadas, que no seio de Abraão, como em
tesouro, se iam depositando por todos os séculos, não só
escondidas e encerradas, mas verdadeiramente cativas, para cujo descobrimento,
liberdade e redenção desceu Cristo, como diz S. Paulo, às
partes mais inferiores da terra: Ascendens in altum captivam duxit captivitatem.
Quod autem ascendit, quid est, nisi quia et descendit primum in inferiores
partes terrae(32)? E porque as mesmas almas não podiam sair daquele
lugar subterrâneo, onde estavam presas e aferrolhadas, como em um cárcere
de bronze, por isso juntamente com a promessa destes tesouros e destas minas,
assegurou Deus ao mesmo Cristo, descobridor e conquistador delas, que primeiro
quebraria as portas de bronze, e romperia as fechaduras de ferro: Portas aereas
conteram, et vectes ferreos confringam, et dabo tibi thesauros absconditos,
et arcana secretorum (33).

Assim comentam este lugar literalmente S. Jerônimo e Santo Agostinho.
Mas quem poderá declarar dignamente o preço destes tesouros
e o valor destas minas? Só por comparação do ouro e prata,
que o mundo tanto preza e estima nas outras, se pode de algum modo rastear,
e assim o fez S. Pedro, falando daquelas almas, e das nossas. Exorta-nos S.
Pedro a que conservemos puras as nossas almas, com a obediência dos
preceitos divinos, que todos se encerram na caridade: Animas vestras castificantes
in obedientia charitatis(34) – e o motivo principal que para isso nos propõe
é o preço e valor das mesmas almas : Scientes quod non corruptibilibus
auro vel argento redempti estis, sed pretioso sanguine quasi agni immaculati
Christi (1 Pdr 1 , 18): Advertindo e considerando – diz o Príncipe
dos apóstolos – que essas almas não foram compradas com ouro
ou prata, senão com o precioso sangue do mesmo Filho de Deus. – Não
sei se reparais que não só diz S. Pedro o preço com que
foram compradas as almas, senão também o preço com que
não foram compradas. Não foram compradas, diz, com ouro nem
com prata, senão com o sangue de Cristo. E não bastava dizer
que foram compradas com o sangue de Cristo unido à divindade, e por
isso de preço infinito? Bastava e sobejava. Mas como falava com a baixeza
e vileza dos homens, que, como feitos de terra, não sabem levantar
os pensamentos da terra, e tanto prezam e estimam o ouro e a prata, por isso
ajuntou e ponderou que não foram compradas as almas com ouro nem com
prata, senão com o preço infinito do sangue de Cristo, para
que acabem de entender e de crer todos os que têm fé que são
infinitamente mais preciosas as almas, e infinitamente mais ricas as minas,
donde Cristo as foi buscar debaixo da terra, que todo o ouro e toda a prata
que se tira ou pode tirar das outras.

Que bem o entendeu assim el-rei D. João, o Segundo, quando se descobriram
as minas da Costa de África, que deram nome à mesma terra! Edificou-se
ali o famoso castelo de S. Jorge; mas porque as despesas eram muitas, e a
terra doentia, pôs-se em conselho de Estado, se se largaria. E como
muitos dos conselheiros votassem que sim, que responderia el-rei? Respondeu
que de nenhum modo se largasse. Porque eu – diz – não mandei edificar
aquele castelo tanto para a defesa e conservação das minas,
quanto para a conversão das almas dos gentios, e basta-me a esperança
da salvação de uma só daquelas almas, para ter por bem
empregadas todas essas despesas.

§ IX

O Rio das Almazonas e o Rio das Almazinhas. O desamparo e desprezo com que
se estão perdendo as almas do Estado do Maranhão. O inferno
superior e o inferno interior. Há casos em que a felicidade consiste,
não em se achar o que se busca e deseja, senão em se não
achar. O exemplo de Pedro, correndo ao sepulcro, e de Adão, enquanto
se não achava entre todas as criaturas quem lhe fosse semelhante. Os
tesouros do céu e os tesouros da terra. Peroração.

Estas são, senhores meus, as minas de que Cristo hoje subiu tão
rico do centro da terra, estas as que eu vos prometi descobrir, e estas, e
não outras, as minas do vosso Maranhão. Se Deus vos não
deu as de ouro e prata, como esperáveis, ou vos fez mercê de
que não se descobrissem, para vos livrar de tantas desgraças,
como ouvistes, contentai-vos de vos ter dotado e enriquecido daquelas que
na sua estimação – que só é a certa e verdadeira
– foram dignas de ser compradas com seu próprio sangue. Este grande
rio, rei de todos os do mundo, que deu o nome à vossa cidade, e a todo
o estado, que ribeira tem na sua principal e maior corrente, ou nas de seus
tão dilatados braços, que, em lugar das areias de ouro, de que
outros fabulosamente se jactam, não esteja rico destas pérolas,
que assim chamou Cristo às almas? Outros lhe chamam Rio das Almazonas,
mas eu lhe chamo Rio das Almazinhas, não por serem menores, nem de
menos preço – pois todas custaram o mesmo – mas pelo desamparo e desprezo
com que se estão perdendo, quando o ouro e a prata se deseja com tanta
ânsia, se procura com tanto cuidado e se busca com tanto empenho? Oh!
almas remidas com o sangue do Filho de Deus, que pouco conhecido é
o vosso preço, e que pouco sentida a vossa perda, digna só de
se chorar com lágrimas de sangue! Mas os que tão pouco caso
fazem da alma própria, como o farão das alheias?

Ora, já que o Senhor do mundo nos descobriu estas minas, e nos encareceu
tanto o preço delas, e as pôs tanto à flor da terra, nesta
terra de que vos fez senhores para este mesmo fim, não as desprezeis.
Vede que injúria seria da fé e da caridade, e do mesmo sangue
de Cristo, se, descendo ele ao centro da terra a buscar almas, nós
as deixássemos perder e ir ao inferno, quando as podemos salvar para
si, para nós e para o mesmo Cristo, sem cavar nem romper montanhas.
E para que se anime o nosso zelo neste pequeno trabalho, e de tanto lucro,
só quero que advirtamos todos que, fazendo-o assim, faremos em certo
modo mais, sem sair da superfície da terra, do que fez o mesmo Cristo
descendo ao centro dela. E de fé que Cristo desceu aos infernos: Descendit
ad inferos. Também é de fé que há dois infernos,
um inferior, e muito mais baixo, onde estava o rico avarento, e outro superior,
e mais acima, onde estava Abraão e Lázaro. Deste inferno superior
tirou Cristo todas as almas que lá estavam, mas do inferno inferior
– ou Cristo descesse lá presencialmente, ou não – não
tirou alma alguma. Contudo, Davi diz de si que o Senhor tirou a sua alma do
inferno inferior: Eruisti animam meam ex inferno inferiori(35). Pois, se a
alma de Davi, como a dos outros patriarcas, foi tirada do seio de Abraão,
que é o inferno superior, como diz que a tirou Deus do inferno inferior,
que é o inferno dos condenados, e que propriamente se chama inferno?
Porque a alma de Davi livrou-a Deus duas vezes, e dois infernos: uma vez em
vida, e outra vez depois da morte. Depois da morte, livrou-a do inferno superior,
quando, com as outras almas santas, a tirou do seio de Abraão; e na
vida livrou-a do inferno inferior, ao qual estava condenada a alma de Davi
pelo pecado do adultério e homicídio, e onde havia de penar
eternamente, se Deus, por sua grande misericórdia, a não livrara,
como ele mesmo diz: Quia misericordia tua magna est super me, et eruisti animam
meam ex inferno inferiore(36).
Eis aqui o estado em que estão toda essa infinidade de almas, cujo
remédio e salvação fiou Deus do nosso zelo e da nossa
cristandade. Os inocentes pelo pecado original irão ao Limbo, que também
é inferno, pois não hão de ver a Deus para sempre. Porém,
os adultos, assim pelos pecados atuais, como pela falta de fé e batismo,
todos vão e estão indo continuamente ao inferno inferior. E
deste inferno, donde Cristo hoje não tirou alma alguma, podemos nós
tirar, sem sair da terra onde Deus nos pôs, tantos milhares de almas,
e fazer delas um tesouro inestimável, tanto mais rico e precioso, quanto
vale mais uma só alma que todo o ouro e prata, e todos os haveres do
mundo. Ou cremos esta verdade, cristãos, ou não cremos? Se a
não cremos, onde está a nossa fé, a nossa esperança
e o nosso entendimento? Diga-se do nosso entendimento e da nossa fé
o que hoje disse Cristo aos discípulos desesperados: O sulti, et tardi
corde ad credentum! Mas, se temos fé e juízo, como não
há de prevalecer a alegria, o gosto e a felicidade de Deus nos ter
descoberto estas minas do céu, à falsa e mal entendida tristeza,
de não termos achado as da terra que nela buscávamos?
Notou Santo Agostinho uma coisa digna do seu entendimento, que hoje sucedeu
a S. Pedro: quando a Madalena esta manhã não achou o corpo do
Senhor, que buscava na sepultura, veio toda a diligência dar conta a
S. Pedro, o qual, não andando, senão correndo, foi logo a certificar-se
e ver por seus olhos se era assim o que ouvia. E qual vos parece que seria
o desejo que S. Pedro levava no coração? Santo Agostinho o diz:
Ad sepulchrum celeri cursu festinat, laetior rediturus, si non inveniret quem
quaerebat (37): Corria S. Pedro ao sepulcro, não com desejo de achar,
senão de não achar, e para tornar da jornada muito mais alegre,
se não achasse o que buscava. – Assim se alegra quem olha para
as coisas com são juízo, e quem entende – como S. Pedro
entendia – que há casos em que a felicidade consiste, não
em se achar o que se busca e deseja, senão em se não achar.
Enquanto se não achava entre todas as criaturas quem fosse semelhante
a Adão: Adae vero non inveniebatur adjutor similis ejus(38) – foi Adão
feliz; e tanto que se achou o que se não achava, daí lhe procederam
todos os seus desgostos, todas as suas perdas, e todas as suas e nossas infelicidades.
Alegrem-se, pois, com S. Pedro os que estavam tristes, por se não achar
o que se buscou, e alegrem-se também, e muito mais com os dois discípulos
de Emaús, de acharem, e de se descobrir tanto mais do que esperavam.
Eles esperavam um bem particular e temporal, que era a redenção
do reino de Israel: Nos autem sperabamus, quod ipse esset redempturus Israel
– e o que acharam, sem o buscarem, foi a redenção espiritual
e eterna do mundo, em que consistia a salvação das suas almas,
e a de todas.

Todas devemos desejar que se salvem, e por todas havemos de oferecer nossos
sacrifícios e orações a Deus. Mas, pois, não podemos
cooperar à salvação de todas, ao menos não faltemos
a estas tão desamparadas, às quais, por mais vizinhas, é
mais devedora a nossa caridade. Sobretudo trate cada um, com verdadeiro zelo
cristão, da doutrina e salvação, ao menos daquelas almas
que têm em sua casa, e muito particularmente da sua, de que muitos vivem
tão esquecidos. Acabemos de entender, e de nos desenganar, que só
estes são os verdadeiros tesouros, e que não há outros,
posto que a nossa cegueira lhes dê este nome. Concedo-vos que se descobrissem
as minas que desejáveis, e que esta vossa cidade estivesse lajeada
de barras de prata, e coberta de telhas de ouro: que importava tudo isto à
alma? Havia de levar alguma coisa destas consigo? Havia-lhe de importar alguma
coisa para a conta? Pois, se tudo cá há de ficar, por que não
tomamos o conselho de Cristo, que tantas vezes nos disse que fizéssemos
o nosso tesouro no céu: Thesaurizate vobis thesauros in caelo(39)?
E notai que diz: Thesaurizate vobis: Entesourai para vós – porque todos
os outros tesouros são para os que cá ficam. Costumavam os antigos
mandar enterrar os tesouros debaixo das suas sepulturas, e por isso diz Jó
que os que cavam tesouros se alegram quando acham algum sepulcro: Effodientes
thesaurum gaudent vehementer cum invenerint sepulchrum (Jó 3, 21 s)
(40) . E não é melhor que a alma ache os seus tesouros no céu,
e se alegre com eles, do que alegrarem-se outros com a vossa sepultura e com
à vossa morte, para se lograrem do que vós não podeis
levar convosco? Ora, tenhamos, tenhamos fé, e entristeçam-nos
somente nossos pecados, e alegre-nos somente a esperança bem fundada
de nossa salvação. E para que até das minas que não
achastes tireis algum fruto, seja o primeiro a confusão de fazermos
tantas diligências pelos tesouros da terra, quando tão pouca
fazemos pelos do céu, que hão de durar para sempre; e o segundo,
o exemplo e resolução de fazer ao menos outro tanto pela salvação
da alma e graça de Deus, a qual nos promete o mesmo Deus que acharemos
sem dúvida, se assim a buscarmos: Si quaesieris eam quasi pecuniam,
et sicut thesauros effoderis illam: tunc intelliges timorem Domini, et scientiam
Dei invenies(41).

(1) Que é isso que vós ides praticando e conferindo um com
o outro, e por que estais tristes? Ora, nós esperávamos que
ele fosse o que resgatasse a Israel (Lc 24, 17. 21).

(2) Mulher, por que choras (Jo 20, 13)?

(3) E estais tristes (Lc 24, 17)?

(4) Porque é já tarde (ibid. 29).

(5) Não tendo achado o seu corpo (ibid. 23).

(6) Ora, nós esperávamos (Lc 24, 21).

(7) Chegaram ao sepulcro (Mc 16, 2).

(8) Que se ele fosse o que resgatasse a Israel (Lc 24, 21).

(9) Compraram aromas (Mc 16, 1).

(10) Gên 27, 9.

(11) Eis aí congregaste tu essa tua multidão para levares a
prata e o ouro (Ez 28, 13).

(12) Eu virei sobre uma terra que está sem muros; não tem ferrolhos
nem portas (Ez 28, 11).

(13) A esta terra, que foi salva da espada, a umas gentes que estão
em paz, e se acham estabelecidas com segurança (Ez 28, 8. 11).

(14) E quanto tinham feito no país de Espanha, e como puseram debaixo
do seu poder as minas de prata e de ouro, que ali há (l Mac 8, 3).

(15) Graeci PP. apud Cord.

(*) Assim o ferro pernicioso, como o ouro, mais pernicioso ainda (Ovid. Met.
lib. I).

(16) Formosa aos olhos e deleitável à vista (Gên 3, 6).

(17) 0 que não correu atraído pelo ouro foi provado por ele
(Eelo 31, 8. 10).

(18) Plin. in proem. lib. 33, et cap. 1.

(19) Chrysost. apud Caten.

(20) A tua prata se mudou em escória (IS 1, 22).

(21) A vossa prata se enferrujou (Tg 5, 3).

(22) 2 Par 3, 7.

(23) Genebrard. lib. I, Chronol.

(24) Tirin. in cap. 10, 3 Reg.

(25) O peso de ouro que se trazia a Salomão cada ano era de seiscentos
e sessenta e seis talentos (3 Rs 10, 14).

(26) E: fez que houvesse tanta abundância de prata em Jerusalém
quanta era também a das pedras (3 Rs 10, 27).

(27) 0 texto das Metamorfoses citado pelo autor é exatamente o seguinte:

Itum est in viscera terrae
Quasque recondiderat, Stygiisque admoverat umbris,
Effodiuntur opes, inritamenta malorum:
Penetramos nas entranhas da terra, arrancando dali o que ela ocultara, o que
ela havia escondido nas sombras do Estige, tesouros que provocam nossos males
(Ovid. Met. Lib. I, 138).

(28) Penetramos em suas entranhas, procurando riquezas na morada dos deuses.
As substâncias que ela escondeu em suas profundezas nos atraem e nos
impelem para as regiões infernais (Plin. H. N. lib. 33, §I).

(29) Arrombarei as portas de bronze, e quebrarei as trancas de ferro, e dar-te-ei
os tesouros escondidos e as riquezas aferrolhadas (Is 45, 2s).

(30) Tu verdadeiramente és um Deus escondido, o Deus de Israel, o
salvador (Is 45, 15).

(31) Destilai, ó céus, lá dessas alturas o vosso orvalho,
e as nuvens chovam ao justo; abra-se a terra, e brote o Salvador (Is 45, 8).

(32) Quando ele subiu ao alto, levou cativo o cativeiro. Ora, que significa
subiu, senão que também antes havia descido aos lugares mais
baixos da terra (Ef 4, 8s).

(33) Ver nota 29, pág. 213.

(34) Fazendo puras as vossas almas na obediência da caridade (1 Pdr
1, 22).

(35) Livraste a minha alma do inferno inferior (Sl 85, 13).

(36) Porque a tua misericórdia é grande sobre mim, e livraste
a minha alma do inferno inferior (ibidem).

(37) August. Serm. 132, de Temp.

(38) Mas não se achava para Adão adjutório semelhante
a ele (Gên 2, 20).

(39) Mas entesourai para vós tesouros no céu (Mt 6, 20).

(40) Os que cavam em busca de um tesouro ficam transportados de alegria quando
acham um sepulcro (Jó 3, 21s).

(41) Se a buscares como o dinheiro, e cavares pela achar, como os que desenterram
tesouros, então compreenderás tu o temor do Senhor, e acharas
a ciência de Deus (Prov 2, 4 s).

Sermão da Quinta Dominga da Quaresma

Si dixero quia non scio eum, ero similis vobis, mendax (1).

§ I

A verdade e a mentira: a verdade do pregador e a mentira dos ouvintes. As
três espécies de mentiras com que os escribas e fariseus hoje
contradisseram, caluniaram e quiseram afrontar e desonrar o Filho de Deus.

Temos juntamente hoje no Evangelho duas coisas que nunca podem andar juntas:
a verdade e a mentira. E por que não podem andar juntas, por isso as
temos divididas; a verdade no pregador, a mentira nos ouvintes; o pregador
muito verdadeiro, o auditório muito mentiroso. Uma e outra coisa disse
Cristo aos escribas e fariseus, com quem falava. O pregador muito verdadeiro:
Si veritatem dico vobis (2); o auditório muito mentiroso: Ero similis
vobis, mendax (3).

De três modos – que há muitos modos de mentir – mentiram hoje
estes maus ouvintes. Mentiram, porque não creram a verdade; mentiram,
porque impugnaram a verdade; mentiram, porque afirmaram a mentira. Não
crer a verdade é mentir com o pensamento; impugnar a verdade é
mentir com a obra; afirmar a mentira é mentir com a palavra. Tudo isto
lhe tinha profetizado a Cristo seu pai Davi, quando disse: In multitudine
virtutis tuae mentientur tibi inimici tui (4). De muitos modos mostrareis
eficazmente a verdade de vosso ser, mas vossos inimigos vos mentirão
também por muitos modos; mentir-vos-ão não crendo; mentir-vos-ão
impugnando; mentir-vos-ão mentindo, como hoje fizeram. Disse-lhes Cristo
que era Filho de Deus verdadeiro, a quem eles chamavam Pai sem o conhecerem:
disse-lhes que os que recebessem e observassem sua doutrina viveriam eternamente,
e aqui mentiram não crendo a verdade: Si veritatem dico vobis, quare
non creditis mihi ( 5)? Disse-lhes mais, que Abraão desejara ver o
seu dia, isto é, o dia em que havia de descer do céu à
terra, e nascer homem entre os homens, e que, finalmente, o vira com grande
júbilo e alegria da sua alma, e aqui mentiram impugnando a verdade:
Quinquaginta annos nondum habes, et Abraham vidisti (Jo 8, 57)? Tu não
tens ainda cinqüenta anos, e viste Abraão? – E o bezerro que vós
dissestes que vos livrara do Egito, quantos anos tinha? Não era nascido
e gerado naquele mesmo dia? O ditame com que o tivestes por Deus era falso,
mas a suposição com que entendestes que em Deus podia haver
duas gerações, uma antes e outra depois, era verdadeira. Respondeu
Cristo: Antequam Abraham fieret, ego sum (Jo 8, 58): Antes que Abraão
fosse, eu já era. – Mas este era, declarou-o pela palavra Ego sum:
eu sou para que entendessem que era aquele mesmo Deus, que quando se definiu
a Moisés disse: Ego sum qui sum (Êx 3, 14): Eu sou o que sou
porque no eterno não há passado, nem futuro: tudo é presente.
Enfim, mentiram afirmando a mentira, porque disseram que Cristo era samaritano
e endemoninhado: Samaritanus es, et daemonium habes (6). E para mentirem duas
vezes em uma mentira, repetiram a mesma blasfêmia ratificando o que
tinham dito e alegando-se a si mesmos: Nonne bene dicimus nos ( 7)? Mal é
dizer mal, mas depois de o haverdes dito, dizerdes ainda que dizeis bem, é
um mal maior sobre outro mal, porque é estar obstinado nele.

Estas são as mentiras com que os escribas e fariseus hoje contradisseram,
caluniaram e quiseram afrontar e desonrar ao Filho de Deus, como o Senhor
lhes disse: Ego honorifico Patrem meum, et vos inhonorastis me (8). Mas, posto
que a Sabedoria eterna fosse caluniada e injuriada por semelhante gente, nem
por isto ficou afrontado nem desonrado Cristo, porque tudo o que disseram
dele e lhe fizeram foi por inveja, por ódio, por raiva, por vingança,
e quando as causas são estas, as injúrias não injuriam,
as afrontas desafrontam, as desonras honram. Não está muito
honrado Cristo? Dizei-o vós. Ora eu, que pregarei neste dia, em que
tanto se espera o assunto dos pregadores? Hei também de dizer-vos uma
grande injúria, uma grande afronta e uma grande desonra da vossa terra.
Contudo, ainda que as verdades causam ódio, espero que não haveis
de ficar mal comigo, porque hei de afrontar todos para desafrontar a cada
um. O discurso dirá como. Ave Maria.

§II

O Domingo das verdades. No Maranhão a corte da mentira. O galante
apólogo do diabo. O M de Maranhão. No Maranhão até
o sol e os céus mentem.

Si dixero quia non scio eum, ero similis vobis, mendax (9).

A este Evangelho do Domingo Quinto da Quaresma chamais comumente o domingo
das verdades. Para mim todos os domingos têm este sobrenome, porque
em todos prego verdades, e muito claras, como tendes visto. Por me não
sair, contudo, do que hoje todos esperam, estive considerando comigo que verdades
vos diria, e, segundo as notícias que vou tendo desta nossa terra,
resolvi-me a vos dizer uma só verdade. Mas que verdade será
esta? Não gastemos tempo. A verdade que vos digo é que no Maranhão
não há verdade.

Cuidavam e diziam os sábios antigos, que em diferentes ilhas do mundo
reinavam diferentes deidades: que em Creta reinava Júpiter, que em
Delos reinava Apolo, que em Samos reinava Juno, que em Chipre reinava Vênus,
e assim de outras. Se o império da mentira não fora tão
universal no mundo, pudera-se suspeitar que nesta nossa ilha tinha a sua corte
a mentira. Todas as terras, assim como tem particulares estrelas, que naturalmente
predominam sobre elas, assim padecem também diferentes vícios,
a que geralmente são sujeitas. Fingiram a este propósito os
alemães uma galante fábula. Dizem que quando o diabo caiu do
céu, que no ar se fez em pedaços, e que estes pedaços
se espalharam em diversas províncias da Europa, onde ficaram os vícios
que nelas reinam. Dizem que a cabeça do diabo caiu em Espanha, e que
por isso somos furiosos, altivos, e com arrogância graves. Dizem que
o peito caiu em Itália, e que daqui lhes veio serem fabricadores de
máquinas, não se darem a entender, e trazerem o coração
sempre coberto. Dizem que o ventre caiu em Alemanha, e que esta é a
causa de serem inclinados à gula, e gastarem mais que os outros com
a mesa e com a taça. Dizem que os pés caíram em França,
e que daqui nasce serem pouco sossegados, apressados no andar, e amigos de
bailes. Dizem que os braços com as mãos e unhas crescidas, um
caiu na Holanda, outro em Argel, e que daí lhes veio – ou nos veio
– o serem corsários. Esta é a substância do apólogo,
nem mal formado, nem mal repartido, porque, ainda que a aplicação
dos vícios totalmente não seja verdadeira, tem contudo a semelhança
de verdade, que basta para dar sal à sátira. E, suposto que
à Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela que
nos toca ao nosso Portugal é a língua, ao menos assim o entendem
as nações estrangeiras que de mais perto nos tratam. Os vícios
da língua são tantos, que fez Drexélio um abecedário
inteiro e muito copioso deles. E se as letras deste abecedário se repartissem
pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não
há dúvida, que o M. M – Maranhão, M – murmurar, M – motejar,
M – maldizer, M – malsinar, M – mexericar, e, sobretudo, M – mentir: mentir
com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos
e por todos os modos aqui se mente. Novelas e novelos, são as duas
moedas correntes desta terra (10), mas têm uma diferença, que
as novelas armam-se sobre nada, e os novelos armam-se sobre muito, para tudo
ser moeda falsa.

Na Bahia, que é a cabeça desta nossa província do Brasil;
acontece algumas vezes o que no Maranhão quase todos os dias. Amanhece
o sol muito claro, prometendo um formoso dia, e dentro em uma hora tolda o
céu de nuvens, e começa a chover como no mais entranhado inverno.
Sucedeu-lhe um caso como este a D. Fradique de Toledo, quando veio a restaurar
a Bahia no ano de mil seiscentos e vinte e cinco. E tendo toda a gente da
armada em campo para lhe passar mostra, admirado da inconstância do
clima, disse: En el Brasil hasta los cielos mientem. Não sei se é
isto descrédito, se desculpa. Que mais pode fazer um homem, que ser
tão bom como o céu da terra em que vive? Outra terra há
em Europa ( * ), na qual eu estive há poucos anos, em que se experimentaram
cada dia as mesmas mudanças, pelas quais Galeno não quis curar
nela; porém, ali há outra razão, porque como a terra
tem jurisdição sobre o céu, segue o céu as influências
da terra. Mas o que se disse do Brasil por galanteria, se pode afirmar do
Maranhão com toda a verdade. É experiência inaudita a
que agora direi, e não sei que fé lhe darão os matemáticos
que estão mais longe da linha. Quer pesar o sol um piloto nesta cidade
onde estamos, e não no porto, onde está surto o seu navio, senão
com os pés em terra: toma o astrolábio na mão com toda
a quietação e segurança. E que lhe acontece? Coisa prodigiosa!
Um dia acha que está o Maranhão em um grau, outro dia em meio,
outro dia em dois, outro dia em nenhum. E esta é a causa por que os
pilotos que não são práticos nesta costa, areiam, e se
têm perdido tantos nelas. De maneira que o sol, que em toda a parte
é a regra certa e infalível por onde se medem os tempos, os
lugares, as alturas, em chegando à terra do Maranhão, até
ele mente. E terra onde até o sol mente, vede que verdade falarão
aqueles sobre cujas cabeças e corações ele influi. Acontece-lhes
aqui aos moradores o mesmo que aos pilotos, que nenhum sabe em que altura
está. Cuida o homem nobre hoje que está em altura de honrado,
e amanhã acha-se infamado e envilecido. Cuida a donzela recolhida que
está em altura de virtuosa, e amanhã acha-se murmurada pelas
praças. Cuida o eclesiástico que está em altura de bom
sacerdote, e amanhã acha-se com reputação de mau homem.
Enfim, um dia estais aqui em uma altura, e ao outro dia noutra, porque os
lábios são como o astrolábio. É isto assim? A
vós mesmos o ouço, que eu não o adivinhei. vede se é
certa a minha verdade: que não há verdade no Maranhão.

§ III

A influência do clima no nascimento de vícios e virtudes. Os
dois vícios dos cretenses: mentira e preguiça. As mais desfechadas
mentiras que nunca se ouviram nem imaginaram. A mentira, filha primogênita
do ócio. A proposição de Davi. O juízo temerário.
A língua, a fera mais dificultosa de enfrear.

Ora, eu me pus a especular a causa por que o clima e o céu desta terra
influi tanta mentira, e parece-me que achei a causa verdadeira e natural.
Assim como o céu com uma virtude influi outra virtude, assim o clima,
que também se chama céu, com um vício influi outro vício.
Ponhamos o exemplo na verdade, que é a virtude contrária da
mentira: Veritas de terra orta est (Sl 8, 12), diz Davi: A verdade nasceu
da terra. – E logo advertiu que a terra de que falava não era toda
a terra, senão a sua: Et terra nostra dabit fructum suum (11). Mas
donde lhe veio aquela terra – que era a de Promissão – donde veio uma
virtude tão singular no mundo, que nascesse dela a verdade? O mesmo
profeta o disse: Veritas de terra orta est, et justitia de coelo prospexit
( 12). Toda esta virtude da terra veio-lhe do céu. Influiu o céu
na terra a justiça, e nasceu nela a verdade. A verdade é filha
legítima da justiça, porque a justiça dá a cada
um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao
contrário da mentira. A mentira, ou vos tira o que tendes, ou vos dá
o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena. A verdade não:
a cada um dá o seu, como a justiça. E porque o céu influiu
naquela terra a justiça, por isso influiu e nasceu nela a verdade.
Influiu uma virtude, e nasceu outra.

O mesmo passa nos vícios. Se o clima influi soberba, nasce a inveja;
se influi gula, nasce a luxúria; se influi cobiça, nasce a avareza;
se influi ira, nasce a vingança. E para nascer a mentira, que é
o que influi? Ociosidade. Onde o clima influi ócio, dá-se a
mentira a perder. Nasce, cresce, espiga, e de um não-sei-quê,
tamanho como um grão de trigo, podeis colher mentiras aos alqueires.
Estes são os dois vícios do Maranhão, e estas as duas
influências deste clima – ócio e mentira. – O ócio é
a primeira influência, a mentira a segunda; o ócio a causa, a
mentira o efeito. Não há terra no mundo que mais incline ao
ócio ou à preguiça, como vós dizeis, e esta é
a semente de que nasce tão má erva. Ouvi a S. Paulo. Fala o
apóstolo da Ilha de Creta, que é a Cândia, que hoje vai
conquistando o turco, e diz assim : Cretenses semper mendaces, ventres pigri
(13): os cretenses têm dois vícios, que sempre se acham neles:
mentirosos e preguiçosos. Pudera dizer mais, se falara da nossa ilha,
e de toda esta terra? Digam-no os naturais. Nem a sua diligência nem
a sua verdade o pode negar. Não há gente mais mentirosa nem
mais preguiçosa no mundo. Deitados na sua rede: Ventres pigri; ouvidos
nas suas palavras: semper mendaces. Mas como estas virtudes vêem do
céu, como são influências do clima, pegaram-se também
aos portugueses. Falta a verdade, porque sobeja a ociosidade. Dai-me vós
homens ociosos, que eu vo-los darei mentirosos. E se não, vamos ao
Evangelho.

As mais desfechadas mentiras, que nunca se ouviram nem imaginaram, foram
as que hoje lhe disseram a Cristo na cara os escribas e fariseus, pelas quais
o mesmo Senhor lhes chamou mentirosos: Ero similis vobis, mendax (Jo 8, 55).
Disseram que era samaritano e endemoninhado. E não só o disseram
esta vez, como advertiu Orígenes, mas assim o diziam publicamente;
Nonne bene dicimus nos, quia samaritanus es tu, et daemonium habes ( 14 )
? E notai o que disseram mais abaixo: Nunc cognovimus, quia samaritanus est
tu, et daemonium habes (Jo 8, 52): (15). Agora conhecemos que és samaritano
e endemonhinhado. – Pois, se agora o conhecestes, como o dizíeis dantes?
Porque os mentirosos dizem as coisas antes de as saberem. Mas, tornemos à
substância da mentira. Cristo lançava os demônios de todos
os corpos, e eles chamam-lhe endemoninhado; Cristo era galileu natural de
Nazaré, e chamam-lhe samaritano. E se o diziam pela religião
e pelos costumes, os samaritanos eram idólatras e apóstatas
da lei, e Cristo era o legislador e reformador dela. Estas eram as mentiras
que diziam os escribas e fariseus. E o povo, que dizia? Dizia a verdade: que
Cristo era um grande profeta, que era o Rei prometido de Israel, que era o
Messias. Pois, se o povo simples e sem letras conhecia e dizia a verdade,
os escribas e fariseus, que se prezavam de sábios, como cuidavam e
diziam tão desatinadas mentiras? Porque os escribas e fariseus era
gente abastada e ociosa, e o povo não. Ide-lhe ver as mãos,
achar-lhas-eis cheias de calos. Quem trabalha, trata da sua vida; quem está
ocioso, trata das alheias. Quem trabalha, como cuida no que faz, fala verdade,
porque diz as coisas como são. O ocioso, como não tem que fazer,
mente, porque diz o que imagina.

Esta é a razão por que a mentira é filha primogênita
do ócio. Vede como se forma dentro em vós mesmos este monstruoso
parto. Quem está ocioso não tem mais que fazer que pôr-se
a imaginar; da ociosidade nasce a imaginação, da imaginação
a suspeita, da suspeita a mentira. É a imaginação no
ocioso como a serpente de Eva. Estava ociosa Eva no paraíso, entrou
a serpente coleando-se mansamente sem pés, mas com cabeça; começou
pela especulação, e acabou pela mentira. Começou pela
especulação: Cur praecepit vobis Deus ( 16); e acabou pela mentira,
e duas mentiras: Nequaquam moriemini: eritis sicut dii (17). Consentiu Eva
na mentira peçonhenta: de Eva passou a Adão, de Adão
ao gênero humano. Não sucede assim às mentiras imaginadas,
que vós, como bicho da seda, gerastes dentro em vós mesmos,
fabricando de vossas entranhas a mortalha para vós e o vestido para
os outros? Meterá a língua a tesoura; e sem tomar as medidas
à verdade, vós lhes cortareis de vestir. Por que cuidais que
se dizem tantas coisas mal feitas? Por que se fizeram? Não, que a mim
me consta do contrário. É porque se imaginaram; e tanto que
vieram à imaginação, já estão na prancha
da língua.

Que bem o disse Davi: Tota die iniquitatem cogitavit lingua tua (Sl 51, 4):
Todo o dia a vossa língua estava cuidando e imaginando maldades (18).
Tota die: todo o dia. Vede se era ocioso aquele de quem falava Davi: todo
o dia não tinha outra coisa que fazer. E que fazia? Estava a sua língua
cuidando e imaginando maldades. Não sei se reparais na impropriedade
das palavras. O cuidar, o imaginar, é obra do entendimento, não
é da língua: a língua fala, o entendimento imagina. Pois,
se a imaginação está no entendimento, como diz Davi que
estes fabricadores de maldades imaginavam com a língua: Tota die iniquitatem
cogitavit lingua tua? Falou Davi com esta que parece impropriedade, para declarar
com toda a propriedade o que queria dizer. Não diz que imagina com
a língua, porque a língua imagine, que isso não pode
ser; mas diz que imaginam com a língua, por duas razões: primeira,
porque a sua língua não diz o que é senão o que
imagina; segunda, porque quanto lhes vem à imaginação,
logo o põe na língua. O mesmo Davi: Cogitaverunt et locuti sunt
iniquitatem (19): Em imaginando a maldade, logo a dizem, sem outra causa para
a dizerem mais que a sua maldade, sem outro fundamento mais que a sua imaginação.
Por isso lhes chama o profeta verba praecipitationis (20), tão precipitados
em afirmar quanto imaginam sem consideração, sem advertência,
sem reparo, sem escrúpulo, sem temor de Deus, sem meter espaço
nem fazer diferença entre o imaginar e o dizer, como se tiveram a imaginação
na língua, ou a língua na imaginação, como se
a língua fôra a que imagina, ou a imaginação a
que fala: Cogitavit injustitiam lingua tua. Quantas vezes se diz do honrado
e da honrada, do inocente e da inocente o que nunca lhes passou pela imaginação?
Mas basta que o maldizente o imagine ou o queira imaginar, para o pôr
na conversação e na praça, e o afirmar com tanta certeza,
como se o lêra em um Evangelho. Deus nos livre de tais línguas,
e muito mais de tais imaginações, porque se a vossa honra lhes
entrou na imaginação, nenhum remédio tendes: não
há de parar aí, há de passar à língua:
Cogitaverunt, et locuti sunt (21).

Daqui entendereis a razão de um notável preceito de Deus, que
por uma parte parece rigoroso, e, por outra, menos necessário. Proíbe
Deus, sob pena de pecado mortal e de inferno, que ninguém tenha juízo
temerário do seu próximo. Juízo temerário é
cuidar eu e julgar mal de meu próximo dentro do meu pensamento. Pois,
se o meu juízo fica dentro do meu pensamento, e não sai fora,
nem pode fazer bem nem mal ao próximo, por que o proíbe Deus
com tanta severidade? Primeiramente notai e adverti quão estimada é,
e quão delicada para com Deus a honra e a reputação de
cada um de nós. Nem cá dentro no meu entendimento, nem cá
dentro na minha imaginação quer Deus que estejais mal reputado.
Zela Deus e cia a vossa honra e a vossa reputação, até
de mim para comigo. Vede quanto ciará e sentirá que passe aos
ouvidos, e ande pelas bocas de uns e outros. Daqui nasce a razão por
que Deus proíbe tão rigorosamente os juízos temerários.
Não quer que haja juízos temerários, para que não
haja falsos testemunhos. Os falsos testemunhos formam-se na língua:
os juízos temerários formam-se na imaginação;
e como da imaginação à língua há tão
pouca distância, para que não haja falsos testemunhos na língua,
proíbe que não haja juízos temerários na imaginação.
Não se contentou Deus com meter o inferno entre a imaginação
e a língua, com um preceito de pecado mortal, mas meteu outra vez o
inferno entre o entendimento e a imaginação, para que com estes
dois muros de fogo tivesse defendida a nossa honra das nossas línguas.
E, contudo, isto não basta. Por que? Porque em se passando a primeira
muralha, está vencida a segunda; em chegando à imaginação,
já está na língua: Cogitaverunt, et locuti sunt.

Senhores meus, vivemos em uma terra muito ociosa, e por isso muito sujeita
a imaginaçccedil;ões. Aqui se há de pôr o remédio.
Diz o apóstolo S. Tiago que não há fera mais dificultosa
de enfrear que a língua. Para se pôr o freio na língua,
hão-se de meter as cabeçadas na imaginação. Nos
vossos engenhos, para que não corra a levada, pondes o resisto no açude.
O primeiro a quem mentis é a vós. Não mentiram as línguas
a todos se as imaginações não mentiram a cada um. Aqui
é que se há de pôr o resisto. Jó, que conhecia
muito bem a simpatia das potências com os sentidos, dizia: Pepigi faedus
cum oculis meis, ut ne cogitarem de virgine (22): Fiz concerto com os meus
olhos, para estar seguro dos meus pensamentos. – Concertai-vos com os vossos
pensamentos, se quereis estar seguro das vossas línguas. Mas porque
dais entrada a quanto quereis no pensamento, por isso dizeis tantas coisas
que nunca passaram pelo pensamento.

§ IV

Quantas voltas dão as palavras desde a boca até os ouvidos.
O exemplo dos apóstolos. Os que ouvem pelos ouvidos e os que ouvem
pelos corações. O que ouviram Moisés e Josué ao
descer do Sinai. As mentiras e as formas do fundidor. O notável artifício
com que a natureza formou os nossos ouvidos. Como saíram torcidas da
boca dos fariseus as palavras de Cristo. A quimera e a mentira. A primeira
mentira que no mundo se disse foi feita de duas verdades. As falsas testemunhas
diante de Pilatos.

Vejo que estão agora alguns no auditório mui contentes, dizendo
consigo que isto não fala com eles, porque é verdade que não
são mudos, e que quando se acham em conversação também
falam nas vidas alheias; mas que não são homens que digam o
que imaginam: dizem o que ouvem, e quem diz o que ouve não mente. Ora,
estai comigo. Se vós soubéreis quantas voltas dão as
palavras desde a boca até os ouvidos, não houvéreis de
dizer isso, ainda que foreis mui verdadeiros. Quero-vos pôr o exemplo
na melhor boca e nos melhores ouvidos do mundo. Perguntou S. Pedro a Cristo
que havia de ser de S. João. Respondeu o Senhor: Sic eum volo manere
(Jo 21, 22): Quero que fique assim. – Isto é o que Cristo disse. E
os apóstolos que disseram? Exiit sermo inter fratres, quod discipulus
ille non moritur: Começaram a dizer uns com os outros que S. João
não havia de morrer. – E acrescenta o Evangelista: Et non dixit Jesus
non moritur, sed sic eum volo manere (Jo 21, 23): E Cristo não disse
que ele não havia de morrer, senão que queria que ficasse assim.
– Pois, se Cristo o não disse, como o disseram os apóstolos?
Eles é certo que não quiseram dizer uma coisa por outra, mas
desde a boca aos ouvidos são tantas as voltas que dão as palavras,
ou no que soam, ou no que significam, que o que na boca de Cristo é
ficar, nos ouvidos dos apóstolos é não morrer. Não
podia haver nem melhor boca que a de Cristo, nem melhores ouvidos que os dos
apóstolos; e se entre o dizer de tal boca e o perceber de tais ouvidos
sucedem estas contradições, que será quando a boca não
é de Cristo, e quando os ouvidos não são de S. Pedro
nem de S. João? Quantas vezes vos disseram uma coisa e percebestes
outra? Quantas vezes ouvis o que não ouvis? Quantas vezes entre a boca
do outro e os nossos ouvidos ficou a honra alheia pendurada por um fio? E
queira Deus que não ficasse enforcada. Isto acontece quando os homens
ouvem com os ouvidos; mas quando ouvem com os corações, ainda
é muito pior. E os corações também ouvem? Nunca
vistes corações? Os corações também têm
orelhas, e estai certos que cada um ouve, não conforme tem os ouvidos,
senão conforme tem o coração e a inclinação.

Enquanto Moisés estava no Monte Sinai recebendo a lei de Deus, pediram
os judeus a Arão que lhes fundisse um bezerro de ouro. E como era o
primeiro dia da dedicação daquela imagem, celebraram-no eles
com grandes festas. Desce do monte Moisés com Josué, ouviram
as vozes ao longe: disse Moisés: – Eu ouço cantar a coros; –
disse Josué: – Não é senão tumulto de guerra (Êx
32, 18). Aqui temos choros castrorum (23). Se as vozes eram as mesmas, como
a um parecem música e a outro parecem trombetas? A razão é
clara. Moisés era religioso, Josué era soldado: ao religioso,
parecem-lhe as vozes do côro; ao soldado, de guerra. Cada um ouve conforme
o seu coração e a sua inclinação. Deus nos livre
de um coração mal inclinado. Se ouvir um Te Deum laudamus há
de dizer que ouviu uma carta de excomunhão. Os que ouvem são
os ouvidos, mas os que ouvem bem ou mal são os corações.
Tudo o que entra pelo ouvido faz eco no coração, e conforme
está disposto o coração, assim se formam os ecos. Ainda
vos hei de declarar isto com outra comparação mais própria.
Na fundição de Arão a temos.

Quer um fundidor formar uma imagem. Suponhamos que é de S. Bartolomeu
com o seu diabo aos pés. Que faz para isto? Faz duas formas de barro,
uma do santo e outra do diabo, e deixa aberto um ouvido em cada uma. Depois
disto derrete o seu metal em um forno, e, tanto que está derretido
e preparado, abre a boca ao forno, corre o metal, entra por seus canais no
ouvido de cada forma, e em uma sai uma imagem de S. Bartolomeu muito formosa,
noutra uma figura do diabo, tão feia como ele. Pois, valha-me Deus,
que diferença é esta? O metal era o mesmo, a boca por onde saiu
a mesma, e, entrando por um ouvido faz um santo, entrando por outro ouvido
faz um diabo? Sim, que não está a coisa nos ouvidos, senão
nas formas que estão lá dentro. Onde estava a forma do diabo,
saiu um diabo; onde estava a forma do santo, saiu um santo. Senhores meus,
todos os nossos ouvidos vão a dar lá dentro em uma forma, que
é o coração. Se o coração é forma
do santo, tudo o que entra pelo ouvido é santo; se é forma do
diabo, tudo o que entra pelo ouvido é diabólico.

Querei-lo ver? Olhai para o nosso Evangelho. Disse Cristo aos escribas e
fariseus: Ego honorifico Patrem meum (Jo 8, 49): Eu honro a meu Pai: Ego non
quaero gloriam meam (ibid. 50): Eu não busco a minha glória:
Si quis sermonem meum servaverit, mortem non videbit in aeternum (ibid. 51
): Se alguém guardar os meus preceitos, viverá eternamente.
– Ouvidas estas palavras, quem não diria, quando menos, que era um
santo quem as dizia, principalmente tendo provado a sua doutrina com tantos
milagres? E os escribas e fariseus que disseram? Nunc cognovimus quia daemonium
habes (ibid. 52): Agora conhecemos que trazes dentro em ti o demônio.
– Pois, também de umas palavras tão santas e tão divinas
formam estes homens um conceito tão diabólico? Sim, também,
porque tais eram as formas em que receberam o que lhes entrou pelos ouvidos.
Aqueles malditos homens eram filhos do diabo, como Cristo lhes disse nesta
mesma ocasião: Vos ex patre diabolo estis (24) – e de uns corações
diabólicos, de umas formas endemoninhadas, ainda que o metal fosse
tão divino, que havia de sair senão um demônio: daemonium
habes? Isto sucedeu às palavras de Cristo, para que vejamos o que pode
suceder às demais. É verdade que as formas não são
todas umas. Assim como sai um diabo e outro diabo, pode sair também
um S. Bartolomeu; mas, ainda assim, o melhor é não entrar por
ouvidos de homens, posto que as formas não sejam do diabo, senão
do santo, porque se a forma é do diabo, ficais diabo, e se é
de S. Bartolomeu, ficais esfolado. Ninguém passou pelos dois estreitos
da boca e ouvidos humanos que não deixasse neles, quando menos, a pele.

Notável é o artifício, com que a natureza formou os
nossos ouvidos. Cada ouvido é um caracol, e de matéria que tem
sua dureza. E como as palavras entram passadas pelo oco deste parafuso, não
é muito que quando saem pela boca, saiam torcidas. Tornemos às
de Cristo hoje. Disse o Senhor aos seus ouvintes: Abraham exsultavit ut videret
diem meum vidit, et gavisus est (Jo 8, 56): Abraão desejou ver minha
vinda ao mundo, viu-a, e alegrou-se. – Isto é o que entrou pelos ouvidos
dos escribas e fariseus. E que é o que saiu pelas bocas? Quinquaginta
annos nondum habes, et Abraham vidisti (Jo 8, 57 )? Ainda não tens
cinqüenta anos, e viste Abraão? – Vede como saíram torcidas
as palavras dos ouvidos à boca. Cristo disse que Abraão vira
a ele, e os fariseus dizem que dissera que ele vira a Abraão: Et Abraham
vidisti. Assim torceram o nome, e mais o verbo. Ao nome mudaram-lhe o caso,
e ao verbo a pessoa. Cristo disse o nome em nominativo, e eles puseram-no
em acusativo; Cristo disse o verbo na terceira pessoa, e eles puseram-no na
segunda. De Abraham vidit, formaram Abraham vidisti. Eis aqui como saem as
palavras dos ouvidos à boca, torcidas e retorcidas: torcidos os nomes,
torcidos os verbos, torcidas as pessoas; torcidos os casos. Então dizeis
que dissestes o que ouvistes.

Mais sucede nesta passagem dos ouvidos à boca. Como os ouvidos são
dois, e a boca uma, sucede que, entrando pelos ouvidos duas verdades, sai
pela boca uma mentira. Parece coisa de trejeito, mas é tão certa,
que a primeira mentira que se disse no mundo foi desta casta: uma mentira
feita de duas verdades. Antes que vo-la diga, quero-vos mostrar como isto
pode ser. Quando quereis dizer que fulano é grande mentiroso, dizeis
que é uma quimera. Mas que coisa é quimera? Mui poucos de vós
deveis de o saber. Quimera é um animal fingido, composto de dois animais
verdadeiros: um monstro, meio homem, meio cavalo, é quimera; um monstro,
meio águia, meio serpente, é quimera; um monstro, meio leão,
meio peixe, é quimera; mas não há tais monstros nem tais
quimeras no mundo. De maneira que as ametades são verdadeiras; os todos,
ou monstros que delas se compõem, são fingidos. As ametades
são verdadeiras, porque há homem e cavalo, há águia
e serpente, há leão e peixe; os monstros que se compõem
destas ametades são fingidos, porque não há tal coisa
no mundo. Isto mesmo fazem os mentirosos: partem duas verdades pelo meio,
e, sem mudar nem acrescentar nada ao que dissestes, de duas verdades partidas
fazem uma mentira inteira. Tal foi a mentira que disse o diabo a nossos primeiros
pais, e foi a primeira mentira que no mundo se disse: Cur praecepit vobis
Deus, ut non comederetis de omni ligno paradisi (Gên 3, 1 ) ? Por que
vos mandou Deus – diz o diabo a Eva – que de todas as árvores, quantas
há no paraíso, não comêsseis? – Há tal mentira
como esta? E foi feita de duas verdades. Deus deu a nossos primeiros pais
uma permissão e um preceito: a permissão foi: comei de todas
as árvores; o preceito foi: não comais desta árvore.
E que fez o diabo? Do comei de todas as árvores, tomou o de todas as
árvores, e do não comais desta árvore, tomou o não
comais, e, ajuntando o não comais com o de todas as árvores,
disse que mandara Deus que de todas as árvores não comessem.
Pode haver maior mentira? Pois foi grudada de duas verdades. Defendei-vos
lá agora das vossas mentiras, com dizer que dissestes as mesmas palavras
que ouvistes e que não acrescentastes nada. Que importa que não
acrescenteis, se diminuístes? Pior é uma verdade diminuída,
que uma mentira mui declarada, porque a verdade diminuída na essência
é mentira, e tem aparências de verdade; e mentiras que parecem
verdades são as piores mentiras de todas.

Mas por que acabemos de uma vez com as mentiras de ouvidas, para que seja
mentira o que dizeis, não é necessário que oiçais
mal nem que diminuais ou acrescenteis o que ouvistes: pode um homem dizer
pontualmente o que ouviu, e ouvir pontualmente o que disseram, e com tudo
isso mentir. Quando os judeus acusaram a Cristo diante de Pilatos, buscavam
diversos falsos testemunhos, e nenhum concluía. Ultimamente, diz o
Evangelista que vieram duas testemunhas falsas, as quais disseram que ouviram
dizer a Cristo que, se o Templo de Jerusalém se desfizesse, ele o reedificaria
em três dias. Para inteligência deste testemunho havemos de saber
que, entrando Cristo no Templo de Jerusalém, e achando que nele estavam
comprando e vendendo, fez um azorrague das cordas que ali estavam, e a açoites
lançou fora os que compravam e vendiam. Espantados eles da resolução
de Cristo, disseram que lhes desse algum sinal do poder com que fazia aquilo.
Respondeu o Senhor: Solvite templum hoc, et in tribus diebus excitabo illud
(25). Pois, se Cristo disse, derribai o Templo, e em três dias o levantarei,
e eles testemunharam o que lhe ouviram, como eram testemunhas falsas: Venerunt
duo falsi testes (26)? O Evangelista o declarou: Ille autem dicebat de templo
corporis sui (Jo 2, 21 ): Falava do templo do seu corpo – o qual templo o
Senhor excitou três dias depois de derrubado, que foi no dia da ressurreição.
E como Cristo disse aquelas palavras em um sentido, e eles as referiram em
outro, ainda que as palavras eram as mesmas que tinham ouvido, sem mudar,
nem acrescentar, nem diminuir, as testemunhas eram falsas. Cuidais que para
mentir e para dizer testemunhos falsos é necessário mudar, diminuir
ou acrescentar as palavras que ouvistes? Não é necessário
nada disso: basta mudar-lhes o sentido, ou a intenção, ainda
que as não entendais, porque haveis supor que as podem ter, e mais
quando as pessoas são tais – como era a de Cristo – que podem falar
com mistério. Quantas vezes se dizem as palavras sinceramente com uma
tenção muito sã, e vós as interpretais e corrompeis
de maneira que de um louvor fazeis um agravo, de uma confiança uma
injúria, de uma galantaria uma blasfêmia, e de uma graça
levantais uma tal labareda, que se originaram dela muitas desgraças.
E se isto sucede quando os homens dizem o que ouviram, e só o que ouviram,
que será quando dizem o que imaginaram, e o que sonharam, ou que ninguém
imaginou nem sonhou?

§V

A mentira dos olhos. Quais toram as coisas de que se formou o engano dos
moabitas na campanha contra os reis de Israel. O cego do Evangelho. O que
aconteceu aos cegos vigiadores, que vão estudar de noite o que hão
de rezar de dia. O negrume das nuvens e da água.

Também contra este segundo discurso há quem cuide que está
adargado. Dizem alguns, ou diz algum: não sou eu daqueles, porque a
mim nunca me saiu pela boca coisa que me entrasse pelos ouvidos: para afirmar,
hei de ver com os olhos primeiro; e se para isso for necessário que
os olhos não durmam quarenta noites, estando vigiando a uma esquina,
hei-o de fazer sem descansar, até ver averiguada a minha suspeita.
Ah! ronda do inferno! Ah! sentinela de Satanás! Este mesmo, se lhe
mandar o confessor que faça exame de consciência meio quarto
de hora antes de se deitar, não o há de poder fazer com o sono.
Mas, para destruir honras, para abrasar casas, estará feito um Argos
quarenta noites inteiras. Não cuidem, porém, estes malignos
vigiadores, que por aí se livrarão de mentirosos. Fostes, vigiastes,
observastes, vistes, dissestes, e tendes para vós que falastes verdade?
Pois mentistes muito grande mentira. Os olhos mentem de dia, quanto mais de
noite. Grande caso! No Livro quarto dos Reis, capítulo terceiro ( 4
Rs 3, 22) : Saíram em campanha contra os moabitas el-rei de Israel,
el-rei de Judá e el-rei de Edon. Estavam ainda os exércitos
para dar batalha na manhã seguinte: eis que, ao romper do sol, olharam
os moabitas para os arraiais dos inimigos, e viram que pelo meio deles corria
um rio de sangue. Começaram a aclamar com grande alegria: – Sangue,
sangue, sem dúvida que os três reis pelejaram esta noite entre
si, e mataram-se uns aos outros: vamos a recolher os despojos. – Saíram
os moabitas correndo tumultuariamente; mas eles foram os despojados e os vencidos,
porque o sangue que viram, ou se lhes afigurou que viram, não era sangue.
Foi o caso que passava um rio por meio dos arraiais dos três reis, e
como ao sair do sol feriram os raios na água que ia correndo, fez tais
reflexos a luz, que parecia sangue. E esta aparência de sangue, tão
enganosamente visto, e tão falsa, e tão facilmente crido, foi
o que precipitou aos moabitas, e os levou a meterem-se nas mãos de
seus inimigos. Se reparais no caso, as duas coisas mais claras que há
no mundo é o sol e a água. Os nossos provérbios o dizem:
Claro como a água, claro como a luz do sol. E quais foram as coisas
de que se formou aquele engano nos olhos dos moabitas, com que cuidaram que
o rio era sangue? Uma coisa foi o sol, e outra coisa foi a água: o
sol, porque feriu com seus raios as águas, e as águas porque,
feridas, deram com os reflexos aparências de sangue. De sorte que se
enganaram os olhos nas duas coisas mais claras que há no mundo. Pois,
se os olhos se enganam nas coisas mais claras, como se não enganarão
nas mais escuras, e às escuras? De dia, engana-vos o sol, e, de noite,
quereis-vos desenganar com as trevas?

Dir-me-eis que havia lua e estrelas quando vistes. Essa pequena luz é
a que cega mais, porque faz que umas coisas pareçam outras. Trouxeram
um cego a Cristo, pos-lhe o Senhor as mãos nos olhos, e perguntou-lhe
se via? Respondeu o cego: Video homines velut arbores ambulantes (Mar 8, 24):
Senhor, vejo os homens como árvores que andam. – Mais cego estava agora
este cego que dantes, porque dantes não via nada, agora via umas coisas
por outras. Os homens que são de tão diferente figura e estatura,
via-os como árvores, e as árvores que estão presas com
raízes na terra, via que andavam como homens. Eis aqui o que tem ver
com pouca luz. O mesmo acontece a estes cegos vigiadores, que vão estudar
de noite o que hão de rezar de dia: Video homines velut arbores ambulantes.
O cego de Cristo, figurava-se-lhe que os homens eram árvores, e estes
cegos do diabo, figura-se-lhes que as árvores são homens. Põem-se
a espreitar, veem uma árvore em um quintal: eis lá vai um homem.
A árvore está tão pregada pelas raízes que dois
cavadores a não arrancarão em um dia, e ele há de jurar
aos Santos Evangelhos, que viu entrar e sair aquele vulto; arbores ambulantes.
Oh! maldito ofício! oh! infernal curiosidade! Já se os olhos
levarem alguma nuvenzinha, como sempre levam, ou de desconfiança, ou
de ódio, ou de inveja, ou de suspeita, ou de vingança, ou de
outra qualquer paixão, aí vos gabo eu: Tenebrosa aqua in nubibus
aeris (27). Notou Davi admiravelmente que a água nas nuvens é
negra. Vedes lá vir um aguaceiro escuro mais que a mesma noite: que
negrume é aquele? Não é mais que água e nuvem:
a nuvem é um volante, a água é um cristal; e destes dois
ingredientes tão puros e tão diáfanos se faz uma escuridade
tão negra e tão espessa. Se quem vai vigiar e espreitar a vossa
vida e a vossa honra levar alguma nuvem diante dos olhos, ainda que seja tão
delgada como um volante, por mais que a vossa vida e a vossa honra seja tão
clara e tão pura como um cristal, há-lhe de parecer escura e
tenebrosa: Tenebrosa aqua in nubibus aeris. Finalmente, reduzindo todo o discurso,
ou discursos: mentem as línguas, porque mentem as imaginações;
mentem as línguas, porque mentem os ouvidos; mentem as línguas,
porque mentem os olhos; e mentem as línguas, porque tudo mente, e todos
mentem.

§ VI

A consolação e a desafronta da mentira. Bem-aventurados vós,
quando os homens disserem todo o mal de vós, mentindo. A razão
por que Cristo, quando o diabo o nomeou por Filho de Deus, lhe mandou que
calasse. O engano e a falsa suposição em que estão os
que não tem prática interior da terra. A confissão dos
falsos testemunhos.

Tenho acabado de provar a matéria que propus. Mas parece-me que estais
dizendo – como disse no princípio – que tenho dito muitas afrontas
à vossa terra. Porém eu digo – como também prometi –
que antes a tenho desafrontado. E senão, pergunto: Qual vos está
melhor: que seja verdade o que se diz, ou que sejam mentiras? Não há
dúvida que vos está melhor que sejam mentiras. Pois isto é
o que eu tenho dito. Se fora verdade o que se diz, era grande afronta vossa;
mas, como tenho mostrado que tudo são mentiras, ficais todos muito
honrados.Hoje vos restituí vossa honra, porque provei que mentem todos
os que dizem mal de vós. Vós bem sabeis melhor que eu que tudo
são mentiras; mas eu tomei por minha conta este manifesto por amor
dos forasteiros que me ouvem, que não são práticos nos
costumes da terra. Dos apóstolos de Cristo se diziam e se haviam de
dizer muitos males, porque é uso do mundo dizer mal dos bons. E o Senhor,
para os desafrontar e animar disse-lhes esta divina sentença: Beati
eritis cum maledixerint vobis homines, et dixerint omne malum adversum vos
mentientes (Mt 5, 11): Bem-aventurados vós, quando os homens disserem
todo o mal de vós mentientes: mentindo. Nesta palavra está a
consolação e a desafronta. Se os homens dizem mal, falando verdade,
é grande desgraça; mas se eles dizem mal mentientes: mentindo,
não importa nada. Por isso disse, e quero que saibam todos, que o que
nesta terra se diz são mentiras. O mentiroso conhecido há de
se entender às avessas; e entendido às avessas, nem afronta,
nem mente, porque diz verdade. E assim haveis de entender tudo o que ouvis.
Guarde-vos Deus de que o mentiroso diga bem de vós, porque é
sinal que sois o contrário do que ele diz. Essa foi a razão
porque Cristo, quando o diabo o nomeou por Filho de Deus, lhe mandou que calasse,
porque, como o diabo é pai da mentira, em dizer que era Filho de Deus
dizia que o não era. E esse foi também o modo geral com que
o mesmo Senhor hoje se desafrontou de todas as injúrias que os escribas
e fariseus lhe tinham dito, qualificando-os por mentirosos: Ero similis vobis,
mendax. ( 28 )

É verdade que os forasteiros a quem eu prego esta doutrina fazem um
terrível argumento contra a nossa terra. Chegam a este porto, põem
os pés em terra, e, ouvindo dizer mal de todos e de tudo, fazem este
discurso: Ou estes homens mentem, ou falam a verdade; se falam verdade, esta
é a mais má terra de todo o mundo, pois, nela se cometem tantas
maldades; e se mentem também a terra é muito má, pois
os homens tem tão pouca consciência, que levantam tantos falsos
testemunhos. – Este é o argumento que parece não tem fácil
solução. Mas eu respondo a uma e outra parte dele. Quanto à
primeira, digo que as maldades que se dizem são falsas, e que, como
falsas, não se devem crer. São falsas? – insta a outra parte
– logo onde os homens levantam tantos falsos testemunhos, não pode
ser senão a pior terra do mundo. Eis aí o engano e a falsa suposição
em que estão os que não têm prática interior da
terra. No Maranhão é verdade que há muitas mentiras,
mas mentirosos, isso não; muito falso testemunho, sim, mas quem levante
falso testemunho, por nenhum caso. Pois, como pode isto ser? Como pode ser
que haja falsos testemunhos, sem haver quem os levante? Eu vo-lo direi. Nas
outras terras os homens levantam os falsos testemunhos; nesta terra os falsos
testemunhos levantam-se a si mesmos. Se vos parece dificultosa a proposição,
vamos à prova. Confessa-se um homem, e, chegando ao quinto mandamento,
diz: Padre, acuso-me que eu desejei a morte a um homem, e o busquei para o
matar, e propus de lhe fazer todo o mal que pudesse. – E por quê? –
Porque me tirou a minha honra com um falso testemunho de que eu estava tão
inocente como S. Francisco. – Irmão, perdoai-lhe, para que Deus vos
perdoe. – Passamos adiante, chegamos ao oitavo mandamento: – Levantastes algum
falso testemunho? – Não, Padre, pecado é de que nunca me acusei,
seja Deus louvado. – Vem uma mulher, chega ao quinto: Digo a Deus minha culpa,
que eu há tantos meses que tenho ódio a uma mulher, e roguei-lhe
muitas pragas, que a fala e a confissão lhe faltasse na hora da morte,
e que nem nesta vida nem na outra lhe perdoava; que seus filhos visse ela
mortos diante de si a estocadas frias. – Por quê? – Porque me levantou
um aleive a mim e a uma filha minha, com que nos infamou em toda esta terra,
e não me atrevo a lhe perdoar. – Ora, senhora, estamos em Quaresma;
alguma coisa havemos de fazer por amor de um Deus que padeceu tantas afrontas
e se pôs em uma cruz por amor de nós. – Enfim, compungiu-se,
prometeu de perdoar. Chega o confessor ao oitavo mandamento. – E vossa mercê
levantou algum falso testemunho? – Senhor padre, melhor estréia me
dê Deus: muito grande pecadora sou, mas nunca Deus permita que eu diga
das pessoas o que nelas não há; se ouço alguma coisa,
ajudo também, mas levantar falso testemunho, nunca em minha vida o
fiz. – Isto que aqui vos pus em dois, acontece infinitas vezes. De maneira
que no quinto todos se queixam que lhes levantam falsos testemunhos; no oitavo
ninguém se acusa de levantar falso testemunho. Logo, bem dizia eu que
nesta terra os falsos testemunhos se levantam a si mesmos. Em suma, que temos
aqui os pecados, mas não temos os pecadores: temos os falsos testemunhos,
mas não temos as falsas testemunhas. Isto é o que posso cuidar.
Mas, se acaso é o contrário, miseráveis daqueles que
assim vivem! Grande miséria é que os falsos testemunhos se levantem;
mas maior miséria é, que, depois de levantados, se faça
deles tão pouco caso e tão pouco escrúpulo. Ou deixais
de confessar o falso testemunho, conhecendo que o levantastes ou não
o conhecendo: se o deixastes de confessar conhecendo-o, mentis a Deus; se
o deixais de confessar pelo não conhecer, mentis-vos a vós.
E uma e outra cegueira, é bem merecido castigo: que minta a Deus e
que se minta a si mesmo, quem mentiu tão gravemente contra seu próximo,
e que de um ou de outro modo se vá ao inferno!

§ VII

Aborrecer a mentira não só por consciência mas por conveniência.
Quantas mentiras se dirão cada dia no Maranhão? Quantas cabem
a cada casa? O pecado que mais facilmente se comete e com mais dificuldade
se restitui. Exortação.

Senhores meus, se algum sermão não tinha necessidade de exortação
era este. Só vos digo, como a homens e como a cristãos, que
não só por consciência, mas por conveniência se
deve aborrecer a mentira e amar a verdade. Por conveniência, porque
viveis em uma terra muito pequena. Em toda a parte fazem muito mal as mentiras,
mas nas terras grandes têm saca e têm muito por onde se espalhar;
nas terras pequenas, todas ali ficam. Em Lisboa muita mentira se diz, mas
repartem-se as mentiras por todo o reino e por todo o mundo. Chegou navio
de Levante, fala-se nas guerras do turco, nas do veneziano, nas do tártaro,
nas do polaco; fala-se no Papa, nos cardeais, nos outros príncipes
e potentados de Itália: dizem-se muitas mentiras, mas repartem-se;
umas caem em Constantinopla, outras em Veneza, outras em Roma, outras na Toscana,
Sabóia, etc. Vem navio do Norte, fala-se em el-rei de França,
no imperador, no sueco, no parlamento de Inglaterra, nos Estados de Holanda
e Flandres: dizem-se muitas mentiras, mas repartem-se, por Paris, por Londres,
por Viena de Áustria, por Amsterdam, por Estocolmo, etc. Partem também
os nossos correios todos os sábados, e levam grande cópia das
mentiras por todo o reino e o mesmo é das frotas do Brasil e da Índia;
porém as mentiras do Maranhão não têm nem outra
parte donde vir nem outra parte para onde ir: aqui nascem e aqui ficam; e
quando as mentiras todas ficam na terra, e todas vos caem em casa, ainda por
conveniência e razão de estado as haveis de lançar fora.
E se não, fazei-me por curiosidade duas contas, as quais eu agora não
posso fazer. Uma é: quantas mentiras se dirão cada dia no Maranhão?
A outra: quantas casas há nesta cidade, e logo reparti as mentiras,
e vereis quantas cabem a cada casa! E que será em uma semana, que será
em um mês, que será em um ano?

Pois, se tudo isto vos fica em casa, e é força que assim seja,
não é muito pouca razão de estado, e muito grande sem-razão,
que vos andeis levantando falsos testemunhos, que vos andeis infamando e afrontando
uns aos outros? Não fora muito melhor serdes todos muito amigos, muito
conformes, amardes-vos todos, honrardes-vos todos, autorizardes-vos todos,
e poupardes todos desgostos? Há outros pecados que parece que os pode
desculpar o gosto ou o interesse; mas o mentir e o levantar falso testemunho?
Que dão a um homem por mentir? Que gosto se pode ter em levantar um
falso testemunho? Se é por me vingar de meu inimigo, muito maior mal
me faço a mim que a ele, porque a ele, quando muito, tiro-lhe a honra:
a mim condeno-me a alma. Ora, cristãos, por reverência daquele
Senhor – que sendo Deus se preza de se chamar Verdade – que façamos
hoje uma muito firme e muito verdadeira resolução de não
haver paixão nenhuma, nem respeito, nem interesse que vos faça
torcer nem faltar um ponto à verdade; quanto ao passado, que examinemos
muito devagar e muito escrupulosamente se temos faltado à verdade em
alguma coisa, principalmente em matéria da honra de nossos próximos.
Olhai, senhores, que este, este é o pecado que mais facilmente se comete,
e com mais dificuldade se restitui. Olhai, cristãos, que as balanças
em que se pesam as consciências na outra vida são muito delicadas,
e que será grande desgraça ir ao inferno para sempre por um
falso testemunho. O remédio está em uma consciência muito
bem examinada, em uma confissão muito bem feita, e em uma satisfação
muito verdadeira, advertindo-vos e protestando-vos da parte de Deus, que sem
estas três condições, nem nesta vida podeis alcançar
a graça, nem na outra merecer a glória.

(1)Se disser que o não conheço serei como vós, mentiroso
(Jo 8,55)

(2) Se eu vos digo a verdade (Jo 8, 46).

(3) Serei como vós, mentiroso (Jo 8, 55).

(4) Por ocasião do teu grande poder se convencerão de mentira
os teus inimigos (Sl 65, 3).

(5) Se eu vos digo a verdade, por que me não credes (Jo 8; 46)?

(6) Tu és um samaritano, e tens o demônio (Jo 8, 48).

(7) Não dizemos nós bem (Jo 8, 48)?

(8) Eu dou honra a meu Pai, e vós a mim desonrastes-me (Jo 8, 49).

(9) Se disser que o não conheço, serei como vós, mentiroso
(Jo 8, 55).

(10) A moeda corrente nesta terra são novelos de fio de algodão.

(*) Roma.

(11) E a nossa terra produzirá o seu fruto (Sl 84, 13).

(12) A verdade nasceu da terra, e a justiça olhou desde o céu
(Sl 84, 12).

( 13) Os de Creta sempre são mentirosos, ventres preguiçosos
(Tit 1, 12).

( 14) Não dizemos nós bem que tu és um samaritano e
que tens demônio (Jo 8, 48)?

(15) A Vulgata (Jo 8, 52) traz apenas: Nunc cognovimus quia daemonium habes.

(16) Por que vos mandou Deus (Gên 3, 1)?

(17) Bem podeis estar seguros que não morrereis de morte: sereis como
uns deuses (Gên 3, 4 s).

(18) A Vulgata traz injustitiam e não iniquitatem (Sl 51, 4).

(19) Cogitaram e falaram iniqüidade (Sl 72, 8).

(20) Palavras de precipitação (Sl 51, 6).

(21) Cogitaram, e falaram (Sl 72, 8).

( 22 ) Fiz concêrto com os meus olhos de certamente não cogitar
nem ainda em uma virgem (Jó 31, 1).

(23) Coros de música no campo dos exércitos (Cânt 7,
1)

(24) Vós sois filhos do diabo (Jo 8, 44).

(25) Desfazei este templo, e eu o levantarei em três dias (Jo 2, 19).

(26) Chegaram duas testemunhas falsas (Mt 26, 60).

(27) Água tenebrosa nas nuvens do ar (Sl 17, 12).

(28) Serei semelhante a vós, mentiroso (Jo 8, 55).

Sermão da Segunda Dominga da Quaresma – 1651

Resplenduit facies ejus sicut sol: vestimenta autem ejus facta sunt alba
sicut nix (1).

I

O quinto Domingo da Quaresma chama-se vulgarmente, na nossa terra, o Domingo
das Verdades; e este segundo Domingo em que estamos, se é lícito
falar assim, chamara-lhe eu o Domingo das Mentiras. Mas que fundamento posso
eu ter — me dirão todos, e com razão — que fundamento
ou motivo posso eu ter para dar um nome tão novo, e ainda tão
mal soante e indecente a um dia tão sagrado, como são entre
todos os do ano os domingos, e a um domingo tão singular, como é
entre todos os desta santa quarentena aquele a que a Igreja dedicou o mistério
altíssimo da Transfiguração do Senhor. As causas por
que Cristo, Senhor nosso, se transfigurou com tantas circunstâncias
de resplendor, grandeza e majestade, descendo do céu o Padre, subindo
do seio de Abraão Moisés, e vindo do Paraíso Terreal
Elias, e assistindo a tudo os três maiores apóstolos —
como notam com Santo Agostinho os Padres, e com Santo Tomás os teólogos
— foram duas: a primeira, para nos dar algumas mostras na terra da glória
que havemos de gozar no céu; a segunda, para que a verdade da mesma
glória ficasse provada e estabelecida com o testemunho universal de
todas as três leis: a da natureza em Moisés, a da escrita em
Elias, e a da graça nos apóstolos, e, sobretudo, com a voz infalível
do mesmo Deus, que de todos foi ouvida. Pois, se no mistério e testemunho
da Transfiguração de Cristo não só se contém
a glória da bem-aventurança em si mesma, senão também
a verdade da mesma glória para conosco, e esta glória e esta
verdade é o que hoje celebra e manda pregar a todos os fiéis
a Igreja Católica, como me atrevo eu a dizer que um dia tão
solene e glorioso, e mais do céu que da terra, se pode ou podia chamar
o Domingo das Mentiras? Respondo que por isso mesmo, e que em sentido bem
entendido e decente se pode chamar assim. E por quê? Porque o que hoje
se prega são as excelências da glória do céu, e
tudo o que se apregoa e encarece da glória do céu, posto que
no que se quer dizer seja verdade, no que se diz é mentira.

Agora vereis se é arrojamento o que digo. Entre os extraordinários
favores que Deus fez a Davi, como homem tanto do seu coração,
um deles foi, e porventura o maior, arrebatá-lo um dia, e levá-lo
em espírito ao céu, onde, correndo as cortinas ao trono da majestade
divina e a todo o teatro da glória, lhe mostrou a que ele havia de
gozar depois, quando o Filho de Deus, e Filho do mesmo Davi, a comprasse com
seu sangue. Vendo, pois, Davi a glória dos bem-aventurados, que havia
de ser também sua, que conceito vos parece que faria da glória?
Ele mesmo o disse, e foi admirável: Ego dixi in excessu meo: Omnis
homo mendax (2). Naquele êxtase em que fui arrebatado e levado ao céu,
que fiz depois de ver o que vi, foi dizer e exclamar que todo o homem mente.
— Notável conseqüência! Pedro vendo a glória
do Tabor, diz: Bonum est nos hic esse (3), e Davi, vendo a glória do
céu, diz: Omnis homo mendax? Sim, e com admirável discurso.
Como se dissera: é possível que esta é a bem-aventurança
do céu, é possível que isto é o que lá
no mundo chamamos glória? Ora, o certo é que nenhum homem há
que falando da glória não diga uma coisa por outra; nenhum homem
há que falando da glória diga o que ela é, senão
o que não é; enfim que, falando da glória, todo o homem
mente: Omnis homo mendax. Este foi o conceito que fez Davi quando foi arrebatado
ao céu, e nem eu tinha habilidade para dar em tão alto pensamento,
nem tivera confiança para sair com ele a público, se o não
dissera primeiro, comentando as mesmas palavras, Teodoro Heracleota, insigne
entre os Padres gregos, que floresceu a mil e trezentos anos, bispo, de Heracléia,
na Trácia, e doutíssimo intérprete das Escrituras Sagradas,
como dele escreve S. Jerônimo no catálogo dos escritores eclesiásticos
(4). As suas palavras são estas: Exclamavit David in excessu suo: Omnis
homo mendax: qui enim voce ineffabilia hortatur; mendax est, non quod oderit
veritatem, sed quia deficit in rei intellectae expositione: Exclamou Davi
no seu êxtase — diz o grande Heracleota — e não duvidou
dizer que todo o homem mente, porque todo o homem que quis explicar com palavras
as coisas que são inefáveis, e não tem termos com que
se declarar, necessariamente há de mentir, não porque seja inimigo
da verdade, mas porque a não pode dizer como ela é. —
E esta é a razão e o sentido verdadeiro com que eu digo que
o dia em que os pregadores falamos das excelências da glória
é o dia das mentiras.

II

Mas, antes que passemos adiante, deixai-me provar que o sentido que acabo
de referir é o próprio e genuíno do texto de Davi. A
regra certa de conhecer o verdadeiro sentido de qualquer texto, como ensinam,
com Santo Agostinho, todos os teólogos e intérpretes das Escrituras,
é a coerência que tem o texto com os antecedentes e conseqüentes
dele. Se o que fica atrás e o que se segue adiante correm naturalmente
e concordam com o que diz o texto, é sinal certo e evidente de que
aquele é o seu próprio, literal e verdadeiro sentido. Vejamos
agora que diz Davi antes e depois de referir o seu êxtase e a exclamação
que nele fez.

As palavras antecedentes são estas, e nenhuma outra mais, porque assim
começa o Salmo: Credidi propter quod locutus sum: ego autem humiliatus
sum nimis (Sl. 115,10): Eu — diz Davi — falei conforme o que cri,
e fiquei muito humilhado. — Pois, de falar conforme o que cria podia
ficar humilhado um tão grande profeta? Só no caso presente,
sim. O que cria Davi era o que lhe ensinava a fé, e nenhuma coisa pode
humilhar a fé, senão a vista. Foi arrebatado ao céu,
viu lá o que é a glória, e como as evidências claras
da glória excedem infinitamente todas as apreensões escuras
da fé, ficou humilhado, e como envergonhado Davi do pouco que tinha
dito da mesma glória, quando falou dela guiado somente pelo que cria:
Credidi propter quod locutus sum, ego autem humiliatus sum nimis. Aquele cego
de seu nascimento, a quem Cristo deu vista, muitas vezes tinha ouvido falar
no sol; mas quando, com os olhos abertos, viu verdadeiramente o que é
o sol, então conheceu quão diferente e quão baixo conceito
era o que tinha feito da sua luz e da sua formosura, que só conhecia
de ouvidas. O mesmo lhe sucedeu a Davi. Tinha falado da glória só
pelo que tinha ouvido à fé, e por isso, quando a viu com seus
olhos, ficou tão humilhado, tão confuso e tão corrido
do pouco que tinha dito, que não duvidou de se desdizer e se desmentir
a si mesmo e a todos os homens que dela falaram: Ego dixi in excessu meo:
Omnis homo mendax.

As palavras que logo acrescenta e se seguem imediatamente ao mesmo texto
são estas: Quid retribuam Domino pro omnibus quae retribuir mihi(5)?
Não pode haver maior coerência nem maior propriedade. Com que
pagarei — diz — a Deus o muito com que Deus me pagou? —
Pois, Davi, já Deus vos pagou, estando vós ainda nesta vida?
Sim, porque já me mostrou no meu êxtase a glória que me
tem aparelhado, e com que me há de pagar no céu. Por isso lhe
chama propriamente, não dádiva nem mercê, senão
retribuição: Pro omnibus quae retribuit mihi. A glória
é a retribuição, o prêmio e a paga com que Deus
paga no céu os serviços que lhe fazemos na terra; e como Deus
naquele êxtase mostrou a Davi a glória com que lhe havia de pagar
seus serviços, por isso ele, com afeto de agradecimento e com desejo
de fazer algum novo serviço a Deus, que fosse digna correspondência
de tamanho prêmio, querendo pagar uma retribuição com
outra retribuição, rompeu naquelas palavras: Quid retribuam
Domino pro omnibus quae retribuit mihi? Mas, como desejava Davi pagar a Deus
esta mesma paga, se os bem-aventurados, quando a recebem, nem a pagam nem
a podem pagar? A razão e diferença é porque os bem-aventurados
do céu já não estão em estado de merecer nem servir.
Porém Davi, depois de arrebatado e levado ao céu, tornou a este
mundo, e por isso era capaz de pagar a Deus a mesma paga que lhe tinha mostrado,
e uma retribuição com outra.

Duvidoso pois Davi, e excogitando o modo que podia ter nesta vida para pagar
a Deus com paga equivalente à mesma glória que lhe tinha aparelhado
no céu, alumiado pelo mesmo Deus, deu em um pensamento altíssimo,
com que milagrosamente se confirma tudo o que dizemos: Calicem salutaris accipiam,
et nomem Dommi invocabo (Sl. 115,13): Oferecerei a Deus em sacrifício
o cálix do Salvador, invocando seu santo nome. E deste modo lhe agradecerei
e pagarei a mesma glória que me tem aparelhado no céu. Pois,
o cálix do Salvador é o agradecimento e a paga com que Davi
há de pagar a Deus a glória com que o mesmo Deus há de
pagar e remunerar a Davi os seus serviços? Sim. Nem pode haver outra
igual. E por quê? Porque o preço com que o Salvador nos comprou
a glória foi o cálix do sangue da sua Paixão, que é
o mesmo cálix e o mesmo sangue que se consagra no Sacramento; e só
oferecendo-se a Deus em sacrifício este cálix e este sangue,
se pode pagar a Deus a glória que nos dá na bem-aventurança,
porque é pagar a glória, não só com preço
igual, senão com o mesmo preço com que foi comprada. Comprou-se
a glória com o cálix do sangue do Salvador? Pois com o cálix
do mesmo sangue a pagarei eu a Deus, porque só por este modo pode ser
a retribuição do agradecimento igual à retribuição
do prêmio: Quid retribuam Domino pro omnibus quae retribuit mihi? Calicem
salutaris accipiam, et nomem Domini invocabo.

De maneira — tornando ao nosso texto — que, sendo Davi arrebatado
em espírito e levado ao céu, viu lá a glória dos
bem-aventurados, e, comparando o conhecimento claro e verdadeiro da glória
que viu com o conceito que fazem da mesma glória e que dizem dela os
que a não viram, o que inferiu desta vista, e a conseqüência
que tirou, foi dizer que todo o homem mente: Ego dixi in excessu meo: Omnis
homo mendax — não absolutamente, e em qualquer outra matéria,
senão particularmente nesta, e quando falam da glória. Digo
quando falam da glória, porque só neste sentido se verifica
com propriedade o texto de Davi, o qual absolutamente tomado, e como vulgarmente
se entende, tem grande contrariedade na mesma Escritura. No capítulo
catorze do Apocalipse diz S. João que viu muitos milhares de homens,
em cuja boca nunca se achou mentira: In ore eorum non est inventum mendacium
(Apc. 14,5). Tal foi Natanael, de quem disse Cristo: Ecce vere Israelita in
quo dolus non est (6). Tal foi o Batista, de quem canta a Igreja: Ne levi
posses maculare vitam crimine linguae (7). E, verdadeiramente, para não
mentir, não é necessário ser santo, basta ser honrado,
porque não há coisa mais afrontosa, nem que maior horror faça
a quem tem honra, que o mentir. Pois, se é de fé que há
tantos que nunca mentiram, como diz Davi que todo o homem mente: Omnis homo
mendax? Os que querern defender a proposição de Davi no sentido
vulgar, dizem que não fala do ato nem do hábito da mentira,
senão da corrupção da natureza. Mas, se basta a corrupção
da natureza para dizer que todo o homem é mentiroso, também
bastará para dizer que todo o homem é homicida, ladrão
e adúltero, o que ninguém jamais disse, nem pode dizer. Aqui
vereis quão próprio e verdadeiro é o sentido em que temos
declarado, com Teodoro, o texto de Davi. Quando diz que todo o homem mente,
não fala em geral de toda a matéria, senão daquela que
atualmente estava vendo no seu êxtase, que era a glória; e desta
só, e em particular, é que diz que ninguém houve que
falasse dela que não mentisse.

Mas, suposto que Davi inferiu e tirou esta conseqüência da glória
que viu, eu também quero inferir e tirar conseqüências da
sua proposição. — Dizeis, Davi, que todo o homem, quando
fala da glória, mente porque diz menos do que é? Logo, também
vós, que sois homem, quando falastes da glória, mentistes? —
Concedo, diz Davi, que esse mentir não é culpa. — E se
vós, que fostes o mais alumiado de todos os profetas, nesse sentido
mentistes, diremos também que os outros profetas, quando nela falaram,
mentiram? — Também, diz Davi — no sentido em que eu o disse,
que tanto o disse por mim, como por eles. — E se os profetas, quando
falaram da glória, mentiram, que diremos dos evangelistas? —
No mesmo sentido em que falou Davi, ele diz que sim, e eu também com
ele. E não temais que seja descrédito da verdade dos evangelistas,
senão crédito da excelência da glória. Estai comigo,
e assentemos o admirável desta proposição sobre as bases
mais sólidas da Teologia.

Santo Tomás, dividindo a mentira em suas espécies, na questão
cento e dez, artículo segundo, diz assim com Aristóteles, a
quem cita no quarto das Éticas. Vede se são os dois corifeus
da Filosofia e da Teologia. Mendacium in duo dividitur, scilicet, in mendacium
quod transcendit verita tem in majus, et mendacium quod deficit a veritate
in minus: A mentira, diz Santo Tomás, divide-se em duas espécies:
uma por excesso e outra por defeito; a mentira por excesso é a que
excede a verdade, porque diz mais; a mentira por defeito é a que falta
à verdade, porque diz menos. — Funda-se esta divisão —
a qual é adequada — na oposição que a mentira tem
com a verdade, porque a inteireza da verdade consiste em dizer o que é,
assim como é; e assim como dizer mais do que é, é mentira
por excesso, assim dizer menos do que é, é mentira por defeito.
E desta segunda espécie de mentira — que é natural, e
não moral — nem os profetas, nem os evangelistas se podem livrar
quando falam da glória, não porque não queiram dizer
a verdade, e a digam do modo que podem, mas porque as verdades da glória
são tão altas, tão sublimes e tão superiores a
toda a capacidade e linguagem humana, que, por mais que digam o que é,
sempre dizem muito menos.

III

Comecemos pelos evangelistas, e seja São Mateus o primeiro no mesmo
Evangelho de hoje. Conta São Mateus a famosíssima história
da Transfiguração de Cristo, Senhor nosso, no Monte Tabor, aonde
levou consigo os três mais avantajados e mais familiares discípulos,
e se lhes manifestou glorioso. E que é o que refere desta glória
o evangelista? Diz que o rosto do Senhor ficara resplandecente como o sol,
e as suas vestiduras alvas como a neve: Resplenduit facies ejus sicut sol:
vestimenta autem ejus facta sunt alba sicut nix (Mt. 17,2). Por certo que
se a glória que Cristo mostrou aos discípulos não foi
mais que esta, nem é necessária para a ver ir ao céu,
nem ainda subir ao monte: resplendor como o do sol e brancura como a da neve,
em qualquer vale se acha e de qualquer vale se vê. S. João Crisóstomo,
descrevendo o resplendor que terão no céu os corpos gloriosos
dos bem-aventurados, diz que farão tanta vantagem à luz do sol,
quanta faz a luz do sol a uma candeia: Erit lux non quae nunc est, sed plane
alia, quae hanc tantum superabit fulgore, quantum ista lumen lychni. E se
a luz de qualquer corpo glorioso não só é tão
superior à do sol, senão totalmente diversa e doutra espécie:
Non quae nunc est, sed plane alia, sendo o resplendor do corpo de Cristo glorioso
quase infinitamente maior que o de todos os bem-aventurados, como diz o evangelista
que era como o sol? Santa Teresa, a quem Cristo repetidamente mostrou as mesmas
galas do Tabor, diz que aquele resplendor e brancura são tão
diferentes de tudo o que cá se vê e a que se sabe o nome, que
a neve lhe parecia preta, e o sol escuro e indigno de se porem nele os olhos.
Os mesmos três apóstolos experimentaram bem no mesmo caso esta
grande diferença, porque com a vista do Senhor transfigurado ficaram
tão assombrados e atônitos que estavam fora de si, como notou
São Marcos: Non enim sciebat quid diceret: erant enim timore exteriti
(8). Logo, se em homens costumados a ver o sol e a neve causou aquela vista
tão estupendos efeitos, muito diferentes eram do sol e da neve o resplendor
e brancura que viam. Finalmente, S. João Damasceno, Santo Epifânio,
S. Gregório Nazianzeno, Santo Agostinho e outros Padres dizem que aquele
resplendor e aquela brancura não só emanou do corpo glorioso,
nem só da alma sempre bem-aventurada de Cristo, senão da mesma
divindade do Verbo unida hipostaticamente a uma e outra parte da humanidade
sagrada, da qual divindade, como de fonte e princípio principal, se
difundiam no rosto e nas vestiduras do Senhor aqueles admiráveis efeitos,
em prova manifesta e quase sensível de que o homem que viam era juntamente
Deus, como logo apregoou a voz do Padre: Hic est Filius meus dilectus (9).
O Verbo Divino chama-se nas Escrituras resplendor da glória e figura
da substância do Padre: Splendor gloriae et figura substantiae ejus
(Hebr. 1,3); e também se chama candor e brancura da luz eterna: Candor
est enim lucis aeternae (Sab. 7,26). E deste resplendor divino é que
manou o resplendor do rosto, e deste candor, também divino, a brancura
das vestiduras na Transfiguração de Cristo.

Pois, se a comparação do sol e da neve, aplicada a qualquer
corpo bem-aventurado e glorioso, mais é injúria que semelhança;
se o resplendor e brancura do rosto e vestiduras de Cristo excediam com infinitas
vantagens a formosura e galas de toda a corte do Empíreo, e se estes
dois reflexos da majestade, ou estas duas amostras da glória no Senhor
dela mais tinham de divinas que de sobrenaturais, e no candor e na luz eram
raios expressos da divindade, como diz o evangelista que o resplendor do rosto
era como o sol: Resplenduit facies ejus sicut sol — e a brancura das
roupas como a da neve: Vestimenta autem ejus facta sunt alba sicut nix? Aqui
vereis com quanta verdade disse Davi que nas matérias da glória
omnis homo mendax, não excetuando nenhum homem, ainda que seja evangelista.
A verdade dos evangelistas em todas as outras matérias é tão
adequada como infalível; mas quando chegam a falar da glória,
não por defeito do historiador, mas por excesso da mesma glória,
são tão imperfeitas as cores com que a pintam, e tão
desiguais as semelhanças com que a descrevem, que não dizem
o que é como é, senão como não é. Declaram
o muito pelo pouco, encarecem o mais pelo menos, explicam o que chamam semelhante
pelo que não tem semelhança, enfim, de tal maneira narram as
verdades da glória, que sempre ficam dentro dos termos e divisão
da mentira. Não diz Santo Tomás que a mentira por defeito é
dizer menos do que é: Mendacium, quod deficit a veritate in minus?
Pois isto é o que sucede até aos evangelistas quando falam da
glória.

IV

No carro de Ezequiel, chamado o carro da glória de Deus, o rosto de
homem significava a S. Mateus, e o de águia a São João.
Ora, vejamos se o evangelista S. João, como águia de mais aguda
vista, alcança a dizer mais que S. Mateus. No capítulo vinte
um e vinte dois do seu Apocalipse diz São João que viu descer
do céu a cidade triunfante da glória, ornada como a esposa no
dia das bodas: Vidi civitatem Jerusalem novam descendentem de caelo a Deo,
paratam, sicut sponsam ornatam viro suo (10). E, começando a descrição
da cidade, assim como Deus a fábrica do mundo, pela luz, diz que a
alumiava a claridade de Deus, e que esta claridade era semelhante a uma pedra
preciosa, e esta pedra preciosa semelhante a jaspe, e este jaspe semelhante
a cristal: Habentem claritatem Dei, et lumen ejus simile lapidi pretioso,
tanquam lapidi jaspidis, sicut crystallum (11). O jaspe, de que aqui fala
São João, não é aquela pedra vulgar e grosseira
a que nós damos o mesmo nome, mas outra, só parecida com ela
no arremedado ou remendado das cores, a que os gregos chamaram esfingites.
Desta pedra refere Suetônio que lavrou para si uma galeria o mesmo imperador
Domiciano, que desterrou para a Ilha de Patmos a São João. E
acrescenta Plínio que pouco antes tinha sido descoberta em Capadócia,
no tempo de Nero, o qual com lâminas da mesma pedra vestira o interior
do Templo da Fortuna, e era tal o seu natural resplendor que, com as portas
e janelas fechadas ao sol, conservavam a luz do dia.

Vai por diante o evangelista na sua descrição da Cidade da
Glória, cujos muros altíssimos e fortíssimos diz que
eram edificados em quadro, e todos deste mesmo jaspe. Mediu-os um anjo com
uma cana de ouro, e achou que tinham por cada lado doze mil estádios
de comprimento, que fazem das nossas léguas quatrocentas e quarenta
e quatro, para que até o número seja quadrado, em tudo significador
de firmeza. Nos quatro lanços do muro havia doze portas, as quais nunca
se fechavam, porque naquela região não há noite. E destas
doze portas, três olhavam para o Oriente, três para o Ocidente,
três para o Setentrião, três para o Meio-Dia, em sinal
de que para todas as partes do mundo, e para todas as nações
e estados dele, sem excluir a ninguém, está o céu patente.
As portas todas eram da mesma arquitetura, e todas da mesma grandeza, proporcionada
à altura e à magnificência dos muros, e cada uma delas
aberta em uma pérola: Et singulae portae erant ex singulis margaritis
(Apc. 21,21). Se no antigo Panteão, que era o templo de todos os deuses,
e, por isso, figura do céu, se mostra ainda hoje, por maravilha, a
porta dele aberta em uma só peça de mármore, quão
admiráveis seriam aquelas portas, muito maiores que o mesmo templo,
abertas em uma só pérola? A estas doze portas respondiam outros
tantos fundamentos, sobre os quais assentava toda a cidade, e cada um era
lavrado não da mesma, senão de várias pedras, e tão
preciosas como várias. O primeiro fundamento, diz São João,
era de diamante, o segundo de safira, o terceiro de carbúnculo, o quarto
de esmeralda, o quinto de rubi, o sexto de sárdio, o sétimo
de crisolito, o oitavo de berilo, o nono de topázio, o décimo
de crisópraso, o undécimo de jacinto, o duodécimo de
ametista. E, segundo o número e ordem destes doze fundamentos, estavam
esculpidos e gravados neles os mesmos doze apóstolos, porque só
fundada na fé e doutrina dos apóstolos pode estar segura a esperança
de entrar na glória.

Mas, se tão suntuoso e magnífico era o exterior da Cidade,
qual vos parece que seria ou será o interior. Toda a cidade, em toda
a sua grandeza, todos seus edifícios e palácios — que
todos são palácios reais — todas suas ruas e praças,
diz o evangelista que eram de ouro puro e sólido, mas não ouro
espesso, como o nosso, senão diáfano e transparente como vidro:
Ipsa vero civitas aurum mundum simile vitro mundo, et platea civitatis aurum
mundum tanquam vitrum perlucidum (12). De sorte que a Cidade da Glória
no pavimento, nas paredes e no interior dos aposentos, toda é um espelho
de ouro, porque todos perpetuamente se vêem a si mesmos, todos vêem
a todos, e todos vêem tudo. Nada se esconde ali, porque lá não
há vício; nada se encobre, porque tudo é para ver; nada
se recata ou dissimula, porque tudo agrada; e por que tudo é amor,
tudo se comunica. Ainda tem outra excelência aquela bem-aventurada cidade,
a qual, se lhe faltara, não fora da glória. Vindo a Roma, nos
tempos de sua maior opulência e grandeza, um embaixador de Pirro, rei
dos epirotas, não fazia fim de admirar o que o poder e a arte tinha
junta naquele empório de riquezas e delícias. — E perguntado
pelos romanos se achava algum defeito na sua cidade. — Sim, acho —
respondeu o embaixador. — E qual é? — Que também
em Roma se morre. — Não assim, diz São João, nesta
riquíssima cidade que vos tenho descrito: Mors ultra non erit, ne que
luctus, neque clamor; neque dolor erit ultra (Apc. 21, 4): Não há
lá morte, nem lutos, nem dor, nem queixa — porque do trono do
supremo Rei sai um rio de cristal que rega toda a cidade, cujas margens estão
cobertas de árvores, e as árvores carregadas de frutos, e os
frutos melhores que os da Árvore da Vida, que não só
fazem os homens imortais, senão eternos: Fluvium aquae vivae, splendidum
tanquam crystallum, procedentem de sede Dei et Agni. In medio plateae ejus,
et ex utraque parte fluminis lignum vitae (13).

V

Esta é, senhores, a Cidade da Glória, descrita pelo evangelista
São João; e basta que fosse assim como se descreve para ser
merecedora das nossas saudades, e que fizéssemos mais do que fazemos
por ir viver nela. Mas é necessário entender com distinção
isto mesmo que está dito. Em dizer o evangelista que naquela bem-aventurada
pátria não há morte, nem dor, nem tristeza, nem queixa,
nem algum dos outros acidentes que tão molesta fazem a vida deste vale
de lágrimas, é verdade entendida assim como soa, em que não
pode haver dúvida. Porém isto não é dizer o que
há no céu, senão o que não há. Não
há mortes, não há dores, não há trabalhos.
O demais, que pertence à magnificência e riqueza da mesma cidade,
o ouro, as pérolas, os diamantes, e todo o outro aparato e preço
da pedraria de que são edificados os muros, e quanto eles abraçam
e cercam é o de que só se duvida. E com razão. Alguns
doutores têm por provável que tudo isto haja no céu; os
demais o negam absolutamente, e, para mim, com evidência. Os vossos
mesmos olhos e os vossos mesmos pensamentos me hão de fazer a prova.
Pergunto: Vistes já ouro, vistes já pérola, vestes já
diamantes, e todas as outras pedras de preço, de que São João
fabrica a Cidade da Glória? Sim. Logo é certo e evidente que
a Cidade da Glória não é edificada desse ouro nem dessas
pedras. Por quê? Porque São Paulo, que foi ao céu e viu
o que lá há — diz que o que Deus tem aparelhado na bem-aventurança
para os seus escolhidos são tudo coisas que nunca os olhos viram. Oculus
non vidit quae praeparavit Deus iis qui diligunt illum (14). Logo, pelo mesmo
caso que nós vemos esse ouro e essas pedras, segue-se com evidência
que não são esses os materiais de que é fabricada a Cidade
ou Corte da Glória. Dirá alguém que, ainda que vemos
ouro e pedras preciosas, não vimos nunca cidade alguma, nem ainda uma
só casa fabricada desse ouro e dessas pedras, e a cidade que descreve
São João não só é cidade de qualquer modo,
senão uma cidade de mais de quatrocentas léguas em quadra. Boa
solução ou instância. Mas eu torno a perguntar: e imaginando
vós com o pensamento, podeis conceber e fabricar nele uma cidade tão
grande como esta, edificada toda de ouro, de diamantes e pérolas? Não
há dúvida que, sem sermos tão grandes arquitetos, como
Vitrúvio, a podemos imaginar e idear assim, e ainda mais a gosto de
cada um. Logo a Cidade da Glória não é como a descreve
S. João, porque o mesmo São Paulo diz que o que Deus lá
nos tem aparelhado não só não o viram jamais olhos, mas
que nem o pode conceber o pensamento, nem entrar na imaginação
humana: Oculus non vidit; nec in cor hominis ascendit (15). Pois, se isto
é assim com verdade infalível e irrefragável, como nos
pinta o evangelista São João e nos descreve a Cidade de Deus
feita toda de ouro e pedras preciosas?

Explicarei este desenho do discípulo amado de Cristo com o que aconteceu
a um discípulo de Zêuxis, famosíssimo pintor da antigüidade.
Disse-lhe o mestre que, por obra de examinação lhe pintasse
uma imagem da deusa Vênus com todos os primores da formosura a que pudesse
chegar a sua arte. Fê-lo assim o discípulo, e, com estudo e aplicação
de muitos dias e desvelo de muitas noites, presentou o quadro ao mestre. Via-se
nele a deusa, toda ornada e enriquecida de jóias, que mais pareciam
roubadas à natureza que imitadas da arte: nos dedos anéis de
diamantes, nos braços braceletes de rubis, na garganta afogador de
grandes pérolas, no toucado grinalda de esmeraldas, nas orelhas chuveiros
de aljôfar, no peito um camafeu em figura de cupido, cercado de uma
rosa de jacintos, com os ais da mesma flor por raios; as alpargatas semeadas
de todo o gênero de pedraria, as roupas recamadas de ouro e tomadas
airosamente em um cintilho de safiras. Esta era a forma do quadro, e nele
todo o engenho e arte do discípulo. Estava esperando a aprovação
do mestre. Mas que vos parece que lhe diria Zêuxis? Fecisti divitem,
quia non potuisti facere pulchram: Fizeste-a rica, porque a não pudeste
fazer formosa. — O mesmo digo eu ao ouro, às pérolas e
às pedras preciosas com que São João nos descreve a Cidade
da Glória. — Evangelista sagrado, riquíssima está
a cidade que nos pintastes; mas fizeste-la tão rica porque a não
pudeste fazer formosa. A formosura que espera ver a nossa fé no céu
não é como esta, em que só se pode enlevar a cobiça
da terra. Bem o advertistes vós, águia divina, quando tomastes
por salva que a cidade que descrevíeis era descida do céu à
terra: Civitatem Jerusalem descendentem de caelo(16). O ouro, os diamantes,
as pérolas, tudo é terra e da terra. E como pode o lustroso
e precioso da terra informar-nos com verdade da beleza sobrenatural e formosura
inestimável da glória? É verdade que São João,
na idéia que formou, imaginou quanto se podia imaginar, e na descrição
que fez, disse quanto se podia dizer; mas como as coisas da glória
são tão diversas de tudo o que se vê, e tão levantadas
sobre tudo o que se imagina, por mais e mais que se diga delas, sempre se
diz menos. E como o dizer menos na Filosofia de Aristóteles e na Teologia
de Santo Tomás é uma das espécies da mentira, ninguém
se deve admirar que, no sentido em que falo, pareça que o maior dos
evangelistas incorresse na sua visão aquela gloriosa censura que Davi,
também arrebatado no seu êxtase, deu a todos os que falam na
glória: Ego dixi in excessu meo: Omnis homo mendax(17).

VI

Dos evangelistas passemos aos profetas. Isaías, que é o maior
de todos, e neste ponto é singular entre os demais, porque viu a Deus
no trono da glória, diz assim: A saeculo non audierunt, neque auribus
perceperunt, quae praeparasti expectantibus te (18). Quer dizer que as coisas
que nos esperam, e Deus nos tem preparado na glória são tão
altas, tão sublimes e tão superiores a tudo o de que neste mundo
se tem notícia, que nunca jamais chegaram aos ouvidos dos homens. Que
sejam as coisas da glória maiores que tudo o que viram os olhos e tudo
o que pode inventar a imaginação, já o mostramos; mas
que sejam também maiores que tudo o que ouviram os ouvidos, é
coisa para mim muito dificultosa. Que há, ou que pode haver que não
tenham ouvido os ouvidos? Ouviram tudo o que escreveram os historiadores;
ouviram tudo o que fingiram os poetas; ouviram tudo o que especularam os filósofos;
ouviram tudo o que publicou, acrescentou e exagerou a fama; ouviram tudo o
que, debaixo do mais sagrado secreto, descobriu e não calou o silêncio.
Mas não está aqui a dificuldade. Pois, em que está? Está
em que os ouvidos têm ouvido tudo o que disseram os profetas, e tudo
o que está escrito e dito nas Escrituras Sagradas. Argumento agora
assim. É certo que os profetas e os outros escritores sagrados falam
muitas vezes na glória, e no que Deus tem prometido e aparelhado no
céu para bem-aventurança e prêmio dos que o servem nesta
vida. Também é certo que tudo o que nos profetas e nos outros
livros sagrados se diz e neles está escrito, nós o lemos e ouvimos.
Logo, se as Escrituras Sagradas dizem o que Deus nos tem aparelhado na glória,
e nós ouvimos tudo o que dizem essas mesmas escrituras, como diz Isaías
que ninguém ouviu o que Deus nos tem aparelhado na glória: A
saeculo non audierunt quae praeparasti expectantibus te?

A solução deste fortíssimo argumento é a mais
evidente prova de tudo o que imos dizendo. Os profetas e as outras Escrituras
falam da glória, nós ouvimos tudo o que dizem os profetas e
as Escrituras, e, contudo, não ouvimos nada da glória, porque,
por mais que os profetas e as Escrituras digam da glória, nunca chegam
a dizer o que ela é. E porque eles, dizendo, não dizem, por
isso nós, ouvindo, não ouvimos: A saeculo non audierunt. Mais
ainda. Se ninguém ouviu o que é a glória, segue-se que
nem os profetas, que falaram dela, o ouviram. Maravilhosa conseqüência,
mas verdadeira! E assim é. Ouviram uns profetas aos outros profetas,
e ouvia-se cada um a si mesmo; mas nem ouvindo todos a todos, nem ouvindo-se
cada um a si, ouviam o que é a glória, porque, por mais levantado
que seja o espírito dos profetas, por mais sublime que seja o seu estilo,
e por mais que sobre-humana a sua eloqüência, em chegando a falar
da glória, ou não dizem o que é, ou dizem o que não
é. Dizem figuras, dizem comparações, dizem semelhanças,
mas todas essas comparações são tão desiguais,
todas essas semelhanças tão diferentes, e todas essas figuras
tão pouco parecidas, que nas comparações fica a glória
totalmente abatida, nas semelhanças desluzida, e nas figuras desfigurada.
E se não, vejamos ou ouçamos o que os mesmos profetas têm
dito.

Quer Isaías que comecemos desde o princípio do mundo: A saeculo
non audierunt. Seja assim. E quais foram desde o princípio do mundo
as figuras com que Moisés e os outros profetas nos representaram a
glória? A primeira foi o Paraíso Terreal, depois o Tabernáculo
e a Arca do Testamento, o Maná, a Terra de Promissão, a cidade
de Jerusalém, o Templo de Salomão. Mas que semelhança
têm estas coisas, por mais que fossem os milagres da natureza e da arte,
com a glória do céu? No Paraíso Terreal entrou a serpente
e o pecado; e a primeira prerrogativa da glória é a segurança
da graça, em que todos os que lá vivem são confirmados.
No Tabernáculo de Moisés andou a Arca do Testamento com os filhos
de Israel peregrinando pelo deserto: no céu está Deus e os bem-aventurados
de assento, como na própria pátria. O Maná, posto que
tinha todos os sabores, não durava de um dia para o outro, porque se
corrompia; e a glória não só é perpétua
e incorruptível em si, mas aos mesmos nossos corpos de carne faz incorruptíveis
e imortais. Da Terra de Promissão se dizia, por encarecimento, que
manava leite e mel: mas que comparação tem o leite com os deleites
do céu, e o mel com as doçuras da glória? A cidade de
Jerusalém quer dizer Visão de Paz: e quantas vezes se viu a
mesma Jerusalém combatida, sitiada e destruída com guerras?
Só no céu é a paz segura e sem temor, porque dentro não
pode haver desunião, e de fora não chegam lá inimigos.
No Templo de Salomão estava coberto com um véu o Sancta Sanctorum,
donde Deus, oculto e invisível, falava por oráculos, e onde
só podia entrar o Sumo Sacerdote uma vez no ano: mas na glória,
sem véu nem cortina, se deixa Deus ver e gozar manifesto a todos, e
não em um só dia ou ano — que fora assaz — senão
por toda aquela eternidade, inteira sem divisão e continuada sem limite,
em que não há anos nem dias.

Que mais dizem os profetas? Dizem que o céu é um rio de delícias
que sempre corre: Torrente voluptatis tuae potabis eos(19). Mas, se todo o
mar oceano, comparado com a imensidade das delícias celestiais, é
estreito, que será um rio? E se as mesmas delícias são
permanentes e eternas, e não diversas, senão sempre as mesmas,
como podem ser correntes? Dizem que o céu é um perpétuo
convite de esquisitos e soberanos manjares: Faciet Dominus in monte hoc convivium
pinguium, pinguium medulatorum(20). Mas os convites começam com fome,
continuam com gosto, e acabam com fastio. A glória, pelo contrário,
é uma perpétua satisfação do desejo e um perpétuo
desejo da mesma satisfação, em que não há fome,
porque a fome molesta, nem fastio, porque o fastio cansa, nem o gosto acaba
jamais, porque não tem fim. Dizem que é um reino em que todos
os que nele entram recebem a coroa da mão de Deus: Accipient regnum
decoris, et diadema speciei de manu Domini (21). Mas o reino compõe-se
de rei e vassalos, e na glória, não há súditos:
só são sujeitos a Deus, por vontade, os que reinam com ele,
e essa mesma sujeição amorosa é o cetro da liberdade
e a coroa do alvedrio. Dizem que é um dia de bodas com vínculo
indissolúvel: Sponsabo te mihi in sempiternum(22). Mas que amor ou
que gosto há nas bodas que em poucos dias não enfraqueça
ou se mude? Cresce com a esperança, satisfaz-se com a novidade e diminui
com a posse. Na glória não é assim, porque o bem infinito
sempre é novo, e onde a novidade não envelhece, o amor e o gosto
não diminui. Dizem, finalmente, que a alegria da glória será
como a dos lavradores no dia da messe, quando colhem o fruto dos seus trabalhos,
e como a dos soldados vitoriosos, quando repartem os despojos dos inimigos
vencidos: Laetabuntur coram te, sicut qui laetantur in messe, sicut exultant
victores capta praeda, quando dividunt spolia (23). Mas, que semelhança
tem a baixeza destas comparações e a desproporção
de todas as outras, para medirmos ou estimarmos por elas as felicidades do
céu? Mais parecem inventados para abater a grandeza da glória,
para escurecer seu resplendor e para afear sua formosura que para nos representar
nem as sombras do que ela é.

Quase lhes aconteceu aos profetas com o céu lá de cima, que
não vemos, o mesmo que aos matemáticos e astrólogos com
este céu cá de baixo, onde chega a nossa vista. Viram os matemáticos
esse labirinto de luzes, de que está semeada sem ordem toda a esfera
celeste, tão diversas na grandeza, como várias no movimento
e infinitas no número; e para assentar alguma coisa certa em uma confusão
tão imensa, que fizeram? Repartiram o mesmo céu, e fingiram
em todo ele grande multidão de figuras, umas naturais, outras fabulosas.
Aqui puseram um touro, ali um leão, acolá uma serpente; aqui
um cervo, ali um cisne, acolá uma águia; em uma parte a Hércules,
em outra a Orion, em outras a Medusa, a Berenice, a Andrômeda; o cavalo
Pégaso voando com asas, o rio Erídano volteando a corrente,
a nau Argos navegando; um golfinho, um caranguejo, uma balança, um
carro, o escorpião, o centauro, a hidra, o capricórnio, e outras
quimeras como estas, tão feias nos aspectos como nos nomes. Pois, no
céu há estes animais, estas fábulas, estes monstros?
Não, que tudo são estrelas resplandecentes e formosas. Mas foi
necessário aos matemáticos fingir no céu estas mentiras
e pôr lá estas fábulas, para, por meio delas, se entenderem
entre si e ensinarem de algum modo ao mundo a verdade do que passa no céu.

Perdoai-me a comparação, profetas sagrados, e agradecei à
reverência dos vossos oráculos não usar eu do nome e da
licença que já me deu um de vós, e o mais alumiado de
todos. No céu não há segadores, messes, nem soldados,
nem despojos; no céu não há convites, nem bodas, nem
inundação de torrentes; no céu não há Jerusaléns,
nem Tabernáculos, nem Paraísos Terreais, nem Terras de Promissão,
que tudo isso é terra e coisas da terra. Mas vós, como matemáticos
do céu empíreo, pusestes lá todas essas figuras, com
tão pouca semelhança e proporção, como com necessária
impropriedade, para por meio delas ensinar a nossa rudeza, e, pela consideração
dos gostos grosseiros que percebemos, nos levantar a fé e o pensamento
à conjectura dos que não alcançamos. Nem podia haver
outro argumento ou experiência que melhor nos demonstrasse o eminentíssimo
conceito que devemos fazer das coisas da glória, pois os vossos mesmos
entendimentos, ainda sobrenaturalmente elevados, não têm conceitos
nem palavras bastantes com que nos declarar suas grandezas.

VII

E se os mesmos profetas, quando chegam a falar da glória, dizem tanto
menos do que ela é, ou verdadeiramente o que não é, que
podemos nós, os pregadores, dizer em matéria que tanto excede
toda a capacidade mortal? Por isso, ainda quando mais encarecemos, sempre
mentimos. Só São Paulo pudera pregar da glória, porque
era pregador que a viu com seus olhos; mas, ouçamos o que ele disse
depois de a ver: Raptus est in Paradisum, et audivit arcana verba, quae non
licet homini loqui (2 Cor. 12, 4): Eu — diz São Paulo, falando
de si em terceira pessoa — fui arrebatado ao céu, e lá
vi o que Deus tem aparelhado para os seus escolhidos; mas são coisas
tais que me não é lícito dizê-las. — Neste
não me é lícito reparo. Que coisa mais lícita,
que coisa mais justa, que coisa mais santa, mais útil e mais necessária
que falar da glória do céu, e mais quem a tinha visto? O rico
avarento teve para si que faria maior impressão de temor em seus irmãos
a pregação de Lázaro, porque tinha visto as penas do
inferno; e não há dúvida que também em nós
excitaria muito mais o desejo a pregação de São Paulo,
porque tinha visto a glória do céu. Pois, se esta pregação
era tão eficaz e tão útil para a salvação
de muitas almas que tão esquecidas vivem do céu, por que se
escusa São Paulo de pregar e apregoar os bens da glória, e se
escusa com lhe não ser lícito: Non licet?

Há casos em que muitas coisas vedadas se dispensam e se podem fazer
licitamente, mas a mentira, ainda em matéria leve, é de sua
natureza tão intrinsecamente má, que em nenhum caso é
lícito mentir. E porque o mentir nem por salvar almas é lícito,
e as coisas da glória se não podem dizer sem mentir, por isso
São Paulo, em todo o rigor da palavra, se escusou com lhe não
ser lícito: Non licet homini loqui. De sorte que, reduzido nas matérias
da glória a termos ou de mentir ou de calar, tomou por expediente o
calar, porque lhe não era lícito o mentir. Mas, se a São
Paulo não era lícito falar na glória com este defeito,
logo também aos profetas e aos evangelistas não foi lícito?
Sim, foi, porque eles não tinham visto a glória; S. Paulo sim.
S. Paulo, como testemunha de vista, tinha obrigação de dizer
tudo o que vira, sob pena de desacreditar e infamar a glória; os demais,
que a não tinham visto, não eram obrigados a dizer de suas grandezas
senão o que podiam, e do modo que podiam, como fizeram. E, posto que
disseram da glória muito menos do que ela é e merece, nem por
isso incorreram em culpa, porque quando Davi disse que todos mentiam, falou
da mentira material, a qual não é ilícita nem culpável,
antes, neste caso, louvável e de grande glória da mesma glória.
A razão da diferença é porque, como define Santo Agostinho:
Mentiri est contra mentem ire. O mentir, com mentira formal e ilícita,
é dizer um homem o contrário do que entende. Os outros escritores
sagrados no que disseram da glória disseram o que entendiam e o que
podiam; porém, São Paulo, ainda que dissesse o que podia, sempre
havia de dizer contra o que entendia, como homem que tinha visto a glória,
e por isso não lhe era lícito: Non licet homini loqui.

Assim calou o maior pregador do mundo, e assim pudera também a Igreja
mandar os pregadores que calássemos neste dia, pois o calar sempre
é lícito. Mas quis antes que disséssemos — ou mentíssemos
esse pouco que podemos dizer, do que passarmos totalmente em silêncio
as grandezas da glória, porque a maior grandeza das suas grandezas
é não se poder falar nelas sem mentir.

E se algum crítico acaso tiver estranhado a palavra e o assunto, saiba
que usar talvez da mentira para persuadir a verdade, não só
não encontra as leis da boa e verdadeira retórica, mas é
um dos maiores primores da sua energia. Fala Sêneca da hipérbole,
tão usada de todos os que falaram em coisas grandes, e diz assim: In
hoc omnis hyperbole extenditur, ut ad verum mendacio venia (24): O fim por
que a hipérbole se estende tanto fora dos mesmos limites do que pretende
persuadir, é porque quer chegar à verdade por meio da mentira:
mente e diz mais do que a coisa é, para que se lhe venha a crer o que
é: Nunquam tantum sperat hyperbole, quantum audet: Não é
tão mal-entendida a hipérbole, que espere tanto do ouvinte quanto
ela se atreve a afirmar. Sed incredibilia affirmat, ut ad credibilia pervenit:
Mas afirma o que é incrível, para que se lhe creia tudo o que
se pode crer. — Por este exemplo ficará entendido o fim e fundamento
do meu discurso. O estilo que segui foi uma hipérbole às avessas.
Há hipérbole por excesso e hipérbole por diminuição,
e ambas mentem para chegar à verdade: Ut ad verum mendacio veniat.
A hipérbole por excesso diz o muito que se não pode crer, para
que se creia o que é; e a hipérbole por diminuição
diz o pouco que se pode dizer, para que se creia o que será. O que
será a glória do céu é o que se colhe eficazmente
do meu discurso.

É certo que bastava só a consideração ou a suspensão
deste que será, para todos os que temos fé nos levantarmos sobre
todas as coisas da terra e as tratarmos com o desprezo que pede o altíssimo
fim para que fomos criados. Se tudo o que temos dito, se tudo o que todos
disseram, se tudo o que todos escreveram, se tudo o que todos imaginaram,
em comparação da glória merece nome de mentira, a verdade
que será? Há mentiras que se vêem, como diz o Espírito
Santo: Visa mendacia(25), e tais são as aparências deste céu
inferior que vemos ou cuidamos que vemos. Cuida o vulgo que vê o céu,
e engana-se, porque não chega lá a nossa vista. Isto que chamamos
céu é uma mentira azul, e o que chamamos íris ou arco
celeste é outra mentira de três cores; e, se as mentiras do céu
da terra são tão formosas, quais serão as verdades do
céu do céu: Caelum caeli Domino (Sl.113, 16)? S. Bernardo, sem
subir tanto acima, tomou por empresa uma harpa com a letra que dizia: Quid
erit in patria? Se no desterro há tal harmonia e tal suavidade, na
pátria, que será? Mas muito melhor o nosso Davi, depois que
viu na mesma pátria, não o que será por conjectura, senão
o que é por realidade, trocou a empresa e desencordoou a sua harpa.
E que disse? Que tudo quanto tinha cantado a ela, e quanto cantam e contam
todos os que falam na glória, tudo é mentira: Ego dixi in excessu
meo: Omnis homo mendax.

VIII

Suposto, pois — dai-me agora uma breve atenção —
suposto pois que tudo o que se tem dito, tudo o que se diz e tudo o que se
pode dizer da glória que nos espera no céu é tanto menos,
e tão pouco, e tão nada que sem encarecimento se pode chamar
mentira, que havemos, ou que podemos fazer para saber verdadeiramente o que
é e como é a glória? Não há nem pode haver
mais que um só meio, mas esse muito certo e adequado. E qual é?
Ir ao céu, e vê-la. Perguntaram uma vez a Cristo dois que queriam
ser seus discípulos onde morava: Rabbi, ubi habitas (26)? E o Senhor,
que não tinha casa na terra, senão no céu — donde
nunca saiu ainda quando veio ao mundo — que respondeu? Venite, et videte
(Jo. 1,39): Vinde, e vê-lo-eis. — E sem irem e verem não
o podiam saber? Não. Excelentemente Alcuíno e Beda: Ideo non
dixit ubi habitaret, sed illos ut venirent et viderent invitavit, quia habitatio,
idest gloria Christi, videri quidem potest, verbis explicare non potest (27):
Não disse o Senhor onde morava aos que o queriam saber, e somente lhes
respondeu que viessem e vissem: Venit et videte, porque a morada de Cristo
é a glória, e o que é, e como é a glória,
só se pode ver, mas não se pode dizer: Videri potest, explicari
non potest. Isto é o que respondeu Cristo, e isto é o que eu
digo e o que só podem dizer os pregadores sobre este assunto. Façamos
muito por ir ao céu, e lá veremos o que é a glória:
Venite, et videte: Vinde, e vê-lo-eis. — E quando, por mercê
de Deus, formos ao céu, e virmos verdadeiramente o que é a glória,
então veremos e conheceremos também quão pouca semelhança
tem de verdade quanto cá se diz e se ouve.

Quando a Rainha Sabá viu a corte e Casa Real de Salomão, não
só admirada do que se via, mas, como diz o texto sagrado, quase desmaiada
de pasmo, rompeu nestas palavras: Non credebam narrantibus mihi, donec ipsa
veni et vidi oculis meis, et probavi quod media pars mihi nuntiata non fuerit:
major est sapientia tua et opera tua, quam rumor quem audivi. Beati viri tui,
et beati servi tui, qui stant coram te semper (3Rs. 10,7): Eu, sapientíssimo
rei Salomão, quando estava nas minhas terras — diz a rainha —
muitas coisas tinha ouvido da vossa sabedoria, da vossa grandeza, da vossa
corte e da magnificência da vossa casa, às quais porém
não dava crédito, por me parecerem incríveis; mas, depois
que vim e as vejo com meus olhos, já tenho conhecido e provado que
nem ametade se me tinha dito do que verdadeiramente é. Bem-aventurados
os vossos servos, e bem-aventurados os vossos cortesãos, pois têm
e gozam a felicidade de estar sempre em vossa presença. -Parece que
não pudera dizer mais se falara com Deus na glória. E se as
grandezas da corte e casa de Salomão as não pode crer nem perceber
uma rainha tão sábia, senão depois de vir e ver: donec
ipsa veni et vidi — e se tudo o que tinha ouvido na sua terra não
chegava a ser ametade do que agora via com seus olhos, que proporção
e que semelhança pode ter o pouco ou nada que cá dizemos e ouvimos,
com o muito, com o infinito, com o imenso da glória que lá vêem
os que a gozam? Por isso o Senhor e Autor dela nos diz: Venite et videte:
Vinde e vede.

Mas o mal e a desgraça é que todos querem ver, e há
muito poucos que queiram vir. Todos querem ver e gozar a glória, mas
há poucos que queiram vir e seguir a Cristo pelo caminho que ele nos
veio ensinar para chegarmos a ela. Se o divino Mestre trocara os termos, e
assim como disse: Venite et videte, dissera: Videte et venite, se fora possível
e conveniente que primeiro se nos desse vista da glória, e depois se
nos prometessem os meios de a conseguir, como é certo que não
seria necessário que Deus nos chamasse ou rogasse, senão que
nós mesmos, arrebatados daquela imensa formosura e felicidade incompreensível,
não só com vontade e desejo, mas com ímpeto e violência
romperíamos por todas as dificuldades da vida, e pela mesma vida e
mil vidas por alcançar tanto bem. Porém, que merecimento seria
então o da fé, que prêmio o da esperança, e que
valor o da caridade, sendo necessária, e não livre? Para maior
bem do mesmo bem, e para maior aumento da mesma glória nos pede Deus
primeiro os passos e depois nos promete a vista: Venite, et videte.

E verdadeiramente, que, ainda que o caminho do céu e a passagem deste
Cabo de Boa Esperança tivera maiores dificuldades, bem se puderam empreender
todas, sem o testemunho da vista, debaixo da palavra de Cristo. Quando o mesmo
Senhor, antes de se fazer homem por nós, disse a Abraão que
deixasse a sua pátria, não lhe prometeu o céu, senão
outra terra, e não lha mostrou então, mas somente lhe disse
que Iha mostraria depois: Veni in terram quam mostravero tibi (28). E que
fez Abraão debaixo desta palavra? Apenas se pode dizer sem injúria
e afronta da nossa fé. Deixou a pátria, deixou a casa nobre
e rica que tinha herdado de seus pais, deixou a companhia dos parentes, o
amor dos amigos, a familiaridade dos conhecidos, para ir peregrinar entre
gentes estranhas. Enfim, rompeu todas aquelas cadeias com que a criação
e a natureza costuma prender o coração humano, que tudo nota
e pondera a história sagrada. E que tudo isto executasse com tanta
prontidão de ânimo um homem que pouco antes fora gentio e adorava
os deuses falsos? Sim — diz Santo Estêvão — e ninguém
se espante, porque o Deus, que mandou a Abraão que fizesse este divórcio
e renúncia geral de quanto tinha e amava no mundo, era o Deus da glória:
Deus gloriae apparuit Patri nostro Abraham, et dixit ad illum: Exi de terra
tua et de cognatione tua, et veni in terram quam mostravero tibi (29). Em
toda a Sagrada Escritura se não lê ou dá a Deus semelhante
título ou epíteto de Deus da glória, senão neste
lugar unicamente. E por que usou de tal paráfrase aquele famoso pregador
apedrejado a quem, entre as mesmas pedras, se lhe abriu o céu? Não
foi só para encarecer a fineza do que Abraão obrara, mas para
distinguir os motivos que ele podia ter na mesma obra, e nós podemos
ter nas nossas. Se não fazemos grandes coisas por amor de Deus porque
é Deus, ao menos por que as não faremos porque é Deus
da glória: Deus gloriae? Fazê-las por Deus porque é Deus,
é fineza: fazê-las por Deus porque é Deus da glória,
é conveniência; fazê-las por Deus porque é Deus,
é amor de Deus; fazê-las por Deus porque é Deus da glória,
é amor-próprio. E que nem por este amor-próprio, nem
porque Deus nos há de premiar com a glória lhe façamos
tais serviços que sejam merecedores dela? Grande miséria!

E se é miséria grande o pouco que fazemos por alcançar
e ver a glória, muito maior miséria e o muito que fazemos pela
perder e não ver. Cada pecado que cometemos é um pecado e duas
ofensas: uma ofensa contra Deus, e outra ofensa contra a glória. Assim
o entendeu aquele moço pródigo, a quem a experiência das
pagas que o mundo dá restituiu o entendimento que o mesmo mundo lhe
tinha tirado. Pater, peccavi in coelum et coram te (Lc. 15,18): Pai meu —
dizia ele falando com Deus — pequei contra o céu e pequei contra
vós: contra o céu, que é a glória para que fui
criado, e contra vós, que sois o Deus que me criastes para ele. —
Em primeiro lugar pôs a ofensa do céu, e no segundo a de Deus,
porque como era homem que se tinha posto à soldada, mais sentia a perda
do galardão que o desagrado do amo. Eu já me contentara que
nas nossas fidalguias se usaram com o céu e com Deus estes desprimores.
Se não deixamos os pecados por contrição, e por serem
ofensas de Deus, deixemo-los ao menos por atrição e porque nos
privam da glória. Não ofender a Deus porque é Deus é
obrigação; não o ofender por não perder a glória
é interesse. E sendo nós tão interesseiros ou tão
servos e tão escravos dos interesses da terra que, ao menos pelos interesses
do céu e da glória, não deixemos de ofender a quem no-la
há de dar ou tirar para sempre? Não foi o Pródigo o pródigo;
nós o somos, e mais feiamente. Ele disse: Peccavi in caelum, e não
foi pródigo do céu, senão da fazenda; nós somos
avarentos da fazenda e pródigos do céu e da glória.

Oh! como podem temer que não são criados para ela os que tão
pouco fazem pela ver, ou tanto fazem pela não ver! De quantos deixaram
o coração no Egito, nenhum chegou a ver a Terra de Promissão,
porque sem vir não há ver, e quem não vem de todo o coração,
não se move. Desde essas moradas eternas nos está Cristo glorioso
chamando e convidando a todos, e dizendo como aos que lhe perguntaram onde
morava: Venite,et videte: Vinde, e vede. Venite, nos diz agora aquele mesmo
Senhor, que no dia do juízo, unidas outra vez nossas almas a estes
mesmos corpos, há de dizer aos que ouvirem sua voz: Venite benedicti(30).
Vinde, nos diz. E donde, e para onde? Da terra para o céu, do desterro
para a Pátria, do cativeiro para a liberdade, da guerra para a paz,
da tempestade para o porto, do trabalho para o descanso, do tempo para a eternidade,
do vale de lágrimas para o Monte da Glória. E que haja ainda
quem duvide vir? Venite: Vinde. E não vos digo — diz o Senhor,
que venhais como eu vim pelo Monte Calvário: basta-me que venhais pelo
Tabor, o mais ameno do mundo, contanto que venhais em meu seguimento. E se
ainda pelo Tabor não vos atreverdes a vir, como Pedro, João
e Diogo, pelo caminho estreito dos conselhos, vinde como Moisés e Elias,
pelo mais largo dos Mandamentos, que para isso fiz dois caminhos, desejando
que venham todos: Venite. Vinde, enfim, e vereis o que antes de vir se não
pode ver: Venite, et videte. Vereis o que nunca vistes, vereis o que nunca
ouvistes, vereis o que nunca imaginastes, e vereis quão diferentes,
quão outras e quão infinitamente incomparáveis são
as coisas da glória a todas as que lá vos disseram os meus profetas
e evangelistas, não por eles quererem mentir — que não
é possível — mas porque tudo o que há na terra,
ou desde a terra se vê no céu, nenhuma comparação
tem nem semelhança com o que vê e goza na glória. Em particular
vos convido, como homens, a ver gloriosa em seu trono a minha Humanidade.
— E então julgareis se os raios de que se coroa são de
sol, e a cor de que veste, de neve: Resplenduit facies ejus sicut sol, vestimenta
autem ejus facta sunt albo sicut ni (31).

(1) O seu rosto ficou refulgente como o sol, e as suas vestiduras se fizeram
brancas como a neve (Mt. 17,2).

(2) Eu disse no meu êxtase: Todo o homem é mentiroso (Sl. 115,11).

(3) Bom é que nós estejamos aqui (Mt. 17,4).

(4) Div. Hier. in Cathal. Scrip. Eccles.

(5) Que darei eu em retribuição ao Senhor, por todos os benefícios
que me tem feito (Sl. 115, 12)?

(6) Eis aqui um verdadeiro israelita, em quem não há dolo (Jo.
1,47).

(7) Chysost. Paraenet. I ad Theo.

(8) Porque não sabia o que dizia, pois estavam atônitos de medo
(Mc. 9,5).

(9) Este é aquele meu querido Filho (Mt. 17,5).

(10) Vi a cidade, a Jerusalém nova, que da parte de Deus descia do
céu, adornada como uma esposa ataviada para o seu esposo (Apc. 21,2).

(11) "A qual linha a claridade de Deus, e o lustre dela era semelhante
a uma pedra preciosa, como pedra de jaspe, à maneira de cristal (Apc.
21, 11).

(12) E a mesma cidade era de puro ouro, semelhante a um vidro claro, e a
praça da cidade era de puro ouro, como vidro transparente (Apc. 21,
18,21).

(13) O rio da água da vida, resplandecente como cristal, que saía
do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da sua praça, e de uma e de
outra parte do rio, estava a árvore da vida (Apc. 22, 1 5).

(14) O olho não viu o que Deus tem preparado para aqueles que o amam
(1 Cor. 2,9).

(15) O olho não viu, nem jamais veio ao coração do homem
(1 Cor. 2,9).

(16) A cidade de Jerusalém, que descia do céu (Apc. 21,2).

(17) Eu disse no meu êxtase: Todo o homem é mentiroso (Sl. 115,11).

(18) Desde o século os homens não ouviram, nem com os ouvidos
perceberam o que tens preparado para os que te esperam (Is. 64,4).

(19) E os farás beber na torrente das tuas delícias (Sl. 35,
9).

(20) E o Senhor fará neste monte um banquete de manjares substanciais,
de substanciais tutanos (Is. 25,6).

(21) Receberão da mão do Senhor um reino de honra e um diadema
brilhante (Sab. 5,17).

(22) Então me desposarei eu contigo para sempre (Os. 2, 19).

(23) Eles se alegrarão quando tu lhes apareceres, bem como os que
se alegram no tempo da messe, bem como exultam os vencedores com a presa que
tomaram, quando repartem os despojos (Is. 9,3).

(24) Seneca, lib. 7 de Benef c. 23

(25) Visões enganosas (Eclo. 34,2)

(26) Rabi, onde assistes tu (Jo. 1,38)?

(27) Relatia Maldonato ibi.

(28) Vem para a terra que eu te mostrarei (Gên. 12, 1).

(29) Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão, e lhe disse:
Sai do teu país e da tua parentela, e vem para a terra que eu te mostrar
(At. 7,2 s).

(30) Vinde, benditos (Mt. 25,34).

(31) O seu rosto ficou refulgente como o sol, e as suas vestiduras se fizeram
brancas como a neve (Mt. 17,2).

Sermão de Dia de

Alii autem caedebant ramos de arboribus, et sternebant in via (1).

I

Como Deus não se agrada de afetos súbitos, senão de
corações preparados, maravilhosas são as disposições
cada vez maiores e mais estreitas, com que a Igreja Católica, nossa
mãe, governada pelo Espírito Santo, de muito longe nos começou
a preparar, e foi preparando sempre, para que chegássemos dignamente
a este dia, e entrássemos como convém nesta sagrada semana.
Para chegar ao Sancta Sanctorum, que era o lugar mais sagrado do templo de
Jerusalém, traçou Deus a entrada com tal artifício, que
primeiro se passasse por três estâncias, tão misteriosas
no sítio como na medida, porque quanto eram mais interiores, tanto
se estreitavam mais. A primeira e a segunda se chamavam átrios, e a
terceira propriamente templo. Por estes como degraus de reverência e
culto, e com todas estas disposições de sempre maior recolhimento
e aperto, se chegava finalmente ao Sancta Sanctorum; e com as mesmas quer
e ordenou a Igreja que entrássemos nós à Semana Santa,
porque assim como o Sancta Sanctorum era o lugar mais sagrado do templo, assim
a Semana Santa é o Sancta Sanctorum do tempo.

As três estâncias que o precedem, e já passamos, tanto
mais estreitas quanto mais interiores, foram, a primeira, desde a Septuagésima
até a Quaresma; a segunda, do princípio da Quaresma até
a Dominga próxima, chamada da Paixão; a terceira, da mesma Dominga
da Paixão até o dia presente. Na entrada da Septuagésima
se começaram a enlutar os altares, e cessaram no canto eclesiástico
as aleluias, sendo esta cerimônia exterior o primeiro prelúdio
ou reclamo da penitência, para que não dissolutos, mas compungidos,
entrássemos no tempo santo da Quaresma. Começou a Quaresma com
a memória da cinza e do pó que somos, e com o jejum universal;
continuou com tanta freqüência de sermões, com tantas procissões
de modéstia, compunção e piedade cristã, com tantas
mortificações secretas e públicas, e com tanta efusão
violenta do próprio sangue; e, não se dando por satisfeita com
todas estas demonstrações, a Igreja, para maior representação
de sua justa dor e tristeza, na dominga proximamente passada, correu totalmente
as cortinas aos altares, e até as imagens sacrossantas de Cristo crucificado
nos encobriu e escondeu com aquele véu negro, para que, eclipsado assim
e escurecido o Divino Sol de nossas almas, chegássemos com maior assombro
e santo horror aos dias em que somos entrados.

Os antigos, como se lê em São Bernardo, chamavam a esta semana
a Semana Penosa, pelos tormentos e penas que Cristo nosso Redentor nela padeceu,
e pelo sentimento e dor com que nós as devemos corresponder e acompanhar.
A Igreja universal lhe chama a Semana Maior, porque nela se consumaram os
maiores mistérios de nossa Redenção, os maiores excessos
do amor e misericórdia divina, e o maior e mais tremendo exemplo de
sua justiça. Nós, em significação de todas estas
coisas juntas, chamamos vulgarmente à mesma semana a Semana Santa,
mas não sei se as nossas ações e exercícios nela
respondem às obrigações de tão sagrado nome. Ora
eu tão escandalizado do que algumas vezes acontece, como zeloso do
que é bem se veja e reconheça em todos estes santos dias, o
assunto que somente vos determino pregar hoje é este: que deve fazer
todo o cristão para que a Semana Santa seja santa? A matéria,
nem pode ser mais pia, nem mais útil, nem mais própria da ocasião,
se aquele Senhor, que hoje chorou sobre a cidade de Jerusalém, puser
seus divinos olhos na nossa, e nos assistir com sua graça. Peçamo-la
por intercessão da Virgem Senhora, com tão devoto afeto de nossos
corações, que a mereçamos alcançar. Ave Maria.

II

Santo Agostinho, São Basílio e São Pedro Crisólogo
comparam os quarenta dias da Quaresma aos quarenta dias do dilúvio
universal. Naquele dilúvio esteve Deus quarenta dias chovendo castigos;
neste está outros quarenta dias chovendo misericórdia. Mas somos
os homens tão protervos, que nem por bem, nem por mal pode Deus conosco:
os castigos não nos emendam, as misericórdias não nos
abrandam. Barro, enfim. Assim como o barro se endurece com os raios do sol,
assim nós com os favores do céu não nos abrandamos, antes
nos endurecemos mais. O mesmo que lhes sucedeu àqueles antigos homens
no primeiro dilúvio, nos acontece a nós neste segundo.

Começou a chover o dilúvio de Noé: alagaram-se na primeira
semana os vales e os quartos baixos dos edifícios; subiram-se os homens
aos quartos altos. Choveu a segunda semana; venceram as águas os quartos
altos, subiram-se aos telhados. Choveu a terceira semana: sobrepujou o dilúvio
os telhados, subiram-se às torres. Choveu a quarta semana: ficaram
debaixo das águas as torres e as ameias mais altas, subiram-se aos
montes. Choveu a quinta semana: ficaram também afogados os montes,
subiram-se finalmente às árvores, e assim estavam suspensos
e pegados nos ramos. Postos neste estado os homens, já não tinham
para onde subir, e não lhes restava mais que uma de duas: ou nadar,
ou acolher-se à Arca, ou deixar-se afogar e perecer no dilúvio.
Oh! se nos víssemos bem neste grande espelho! E quantos de nós
estamos hoje no mesmo estado! Desde o princípio da Quaresma começou
Deus a querer-nos conquistar as almas, e nós sempre a retirar e a fugir
de Deus de semana em semana. Passou a primeira semana da Quaresma, guardamo-nos
para a segunda; passou a segunda, deixamo-nos para a terceira; passou a terceira,
esperamos para a quarta; passou a quarta, dilatamo-nos para a quinta; passou
a quinta, apelamos para a sexta; já estamos na sexta e na última
semana deste dilúvio espiritual, já estamos, como os do outro
dilúvio, com as mãos nos ramos das árvores, ou com os
ramos das árvores nas mãos: Caedebant ramos de arboribus (2).

Em dia de ramos estamos, e chegados a este dia e a esta semana precisa, em
que não há já para onde retirar, que é o que nos
resta? Ou afogar e perecer, ou resolver e nadar para a Arca. Os daqueloutro
dilúvio não podiam nadar nem salvar-se na Arca de Noé,
uns porque estavam muito longe, outros porque não sabiam dela, e todos
porque a Arca não tinha mais que uma porta, e essa estava fechada por
fora, e tinha Deus levado as chaves, como diz o texto. Cá no nosso
dilúvio não é assim. O Noé é Cristo, Salvador
e reparador do mundo, e a Arca em que salvou o gênero humano é
a sua cruz. Assim lhe chama a Igreja no hino corrente deste tempo: Atque portum
praeparare Arca mundo naufrago. O antigo Noé não tinha porta
por onde recolher os que se quisessem valer da Arca; mas o nosso Noé
divino está com cinco portas abertas, e abertas em si mesmo, para recolher
e salvar todos os que se quiserem valer dele e de sua cruz. Oh! que diferente
dilúvio é este daquele! Naquele morreram todos os homens, e
salvou-se só Noé; neste morreu e afogou-se só o divino
Noé: Veni in altitudinem maris, et tempestas demersit me (3), para
que todos os homens se salvem. Os que pereceram naquele dilúvio são
os que não se quiseram persuadir, e se foram dilatando até que
não tiveram remédio. E será bem que nós, chegados
a este dia, ainda nos dilatemos mais, e pereçamos como eles? Perecer
não, cristãos, pelo que nos merece o amor de Cristo e suas santíssimas
chagas. Aproveitemo-nos ao menos destes poucos dias da Semana Santa, já
que dos de toda a Quaresma nos não soubemos aproveitar.

Diz São Basílio Magno que os anjos de cada cidade, desde o
princípio da Quaresma, vão escrevendo em um livro os que jejuam
e os que não jejuam. Assim como os párocos no mesmo tempo tomam
a rol todos os fregueses, para lhes pedirem conta da confissão e comunhão,
assim o fazem os anjos para a tomarem do jejum. Mas além destes dois
livros, ainda há outro terceiro, de que muito mais dificultosamente
nos havemos de desobrigar. E que livro é este? É o que vedes
naquele altar. O primeiro livro é o do pároco, o segundo o do
anjo, o terceiro o de Cristo. Em todos os dias da Quaresma nos manda Cristo
ler um novo Evangelho — o que não se faz nos outros dias do ano
— e por este diário da doutrina havemos de ser também
examinados todos os que nos chamamos cristãos. Ouvi ao profeta Davi,
falando deste livro em nome da Igreja universal, que daquele altar e desta
cadeira nos lê estas lições tão mal aprendidas:
Imperfectum meum viderunt oculi tui, et in libro tuo omnes scribentur: dies
formabuntur et nemo in eis (Sl. 138, 16): Os vossos olhos, Senhor, —
diz a Igreja — vêem as minhas imperfeições, isto
é, as imperfeições daqueles de que eu me componho, que
são os cristãos; todos se escreverão no vosso livro;
formar-se-ão os dias, e ninguém neles.

O lugar é escuro, mas admirável. Que tenha Deus livro em que
se escrevam os defeitos e pecados de todos, e os nomes de todos os que os
cometem, e os dias em que se cometem, é coisa muito sabida e vulgar
nas Escrituras. Mas que dias são estes que se chamam formados, e nos
quais ninguém se acha: Dies formabuntur, et nemo in eis? São
propriissimamente os dias da Quaresma, em cada um dos quais nos propõe
Cristo uma forma particular do Evangelho, pela qual forma, como por exemplar
e idéia de nossas ações, nos devemos nós também
formar e reformar, que esse é o intento deste tempo santo. E porque
geralmente ninguém se reforma nem conforma com o que se lhe propõe
no Evangelho daquele dia, por isso diz o profeta que os dias se formam, e
ninguém se acha neles: Dies formabuntur, et nemo in eis. De sorte que
o nemo refere-se ao formabuntur como se dissera: Dies formabuntur et nemo
in eis, idest, formabuntur Os dias dão a forma, e ninguém se
conforma com ela, porque, sendo a forma de cada Evangelho ordenada cada dia
à reformação de cada vício, em vez de se ver a
emenda e reformação, continuam as mesmas deformidades, e pode
ser que maiores.

Oh! se aqui aparecera agora este livro como está notado e cotado na
mente divina, se se abrira este livro diante de todos, e se começara
a ler publicamente o que cada um fez ou deixou de fazer nesta Quaresma, que
vergonha havia de ser, e que confusão a de muitos, quando se fossem
confrontando dia por dia a forma dos Evangelhos e a deformidade das vidas!
Veio um primeiro dia da Quaresma, veio uma Quarta-feira de Cinzas, pôs-nos
a Igreja diante dos olhos não só a memória, senão
a mesma morte, e quantos houve que mudassem de vida? Veja-se o livro neste
dia: Dies formabuntui; et nemo in eis. Passou o dia, e ninguém se achou
escrito nele. Continuamos na mesma vida, como se ela nunca houvera de acabar,
e tão esquecidos da conta, como se Deus no-la não houvera de
pedir. Chegou uma primeira sexta-feira de Quaresma, leu-se aquele admirável
Evangelho do amor dos inimigos, e quantos houve que deixassem os ódios,
quantos que se arrependessem dos propósitos da vingança, quantos
que se reconciliassem e se pedissem perdão? Dies formabuntur, et nemo
in eis. Passou o dia, e os ódios não passaram: ainda fulano
se não corre com fulano, ainda se não falam, ainda se não
saúdam, ainda inimigos, ainda escandalosos, ainda não cristãos,
como de antes. Chegou o Domingo das Tentações, vimos como Cristo
no-las ensinou a vencer com tanto despego, sendo tão naturais, e com
tanta resolução, sendo tão fortes. Mas quantas vitórias
alcançamos depois disso contra o demônio? Dies formabuntur, et
nemo in eis. O demônio sempre vencedor, e vencedor sem batalha, porque
onde o pecar é hábito, não .há resistência.
Tantas vezes vencidos quantas tentados, e o que pior é, antes de tentados,
vencidos não sendo já necessário ao demônio tentar
a muitos, porque eles são os que buscam as tentações,
e os piores tentadores.

Chegou o segundo Domingo da Glória: vimos transfigurado a Cristo,
e arrebatado a São Pedro no Monte Tabor. E quem houve que por saudades
do céu se despegasse um pouco da terra? Também em tal dia, folha
em branco: Dies formabuntur, et nemo in eis. Tão apegados à
terra, tão cegos, tão enterrados e tão toupeiras nela,
como se o céu não fora criado para nós, nem nós
para ele, e como se o Filho de Deus o não comprara para nós
com seu próprio sangue. Chegou o terceiro Domingo do Diabo Mudo, e
quantos houve que aprendessem a saber calar os pecados alheios, e a confessar,
como convém, os próprios? Dies formabuntur et nemo in eis. Ainda
aquele miserável, ainda aquela mesquinha, que traz encoberto o pecado
há tanto tempo, se não deliberou a o confessar, acrescentando
em cada confissão fingida um novo sacrilégio, sem reparar que
é justo juízo de Deus, provado com muitos exemplos, que falte
a fala e a confissão na morte, a quem a não faz como deve na
vida. Chegou finalmente uma sexta-feira de Lázaro ressuscitado de quatro
dias, e que moço ou velho houve que, à sua imitação,
— se levantasse da sepultura, em que podres de seus vícios jazem
há tantos meses, e pode ser que tantos anos? Chegaram os dias da conversão
da Samaritana e da Madalena, uma de baixa condição, outra nobre
e senhora, e que mulher houve perdida, ou arriscada a se perder, que reparasse
na sua mesma perdição, e abrisse os olhos à sua cegueira?
Dies formabuntur, et nemo in eis. Ainda continuam os mesmos pensamentos e
malditos cuidados, ainda as mesmas correspondências, ainda as mesmas
ocasiões, ainda as mesmas torpezas, ainda os mesmos escândalos,
e ainda continua e arde o mesmo fogo para se continuar no do inferno.

Eis aqui, cristãos, como muitos de vós tendes passado a Quaresma,
perdendo tantos dias em que pudéreis abrir os olhos, e em que pudéreis
entrar dentro em vós, cerrando sempre os ouvidos às vozes do
céu, e fechando os corações às inspirações
divinas. Os dias que passaram já não podem tornar, nem têm
remédio; os que estão por vir daqui até quinta-feira
— que é a última reserva das consciências mais descuidadas
— não são mais que três dias; vede se será
bem que até estes deixemos passar debalde, e que nem de um prazo tão
estreito nos aproveitemos.

Vomitado da baleia, como muitas vezes ouvistes, o profeta Jonas nas praias
de Nínive, entrou por aquela grandíssima cidade pregando ou
apregoando a altas vozes: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur (Jon.
3, 4): Daqui a quarenta dias se há de subverter Nínive. —
Assim se lê no texto sagrado da Bíblia, chamada Vulgata, de que
hoje usa a Igreja. Porém os Setenta intérpretes, que também
são autores canônicos, em lugar de quarenta dias, põem
somente três, e dizem que disse Jonas: Adhuc tres dies, et Ninive subvertetur:
Daqui a três dias se há de subverter Nínive. — Todos
estais vendo o encontro destas duas escrituras e a dificuldade delas, porque
se é certo que Jonas disse, daqui a quarenta dias, como pode concordar
com a mesma verdade que dissesse: daqui a três? S. Isidoro Pelusiota
soltou admiravelmente a dúvida, e diz que uma e outra coisa disse o
profeta, não no mesmo, senão em diferentes tempos. Quando começou
disse: daqui a quarenta dias; quando acabou, disse: daqui a três. Foi
o caso desta maneira. Entrou Jonas o primeiro dia pregando e dizendo: Daqui
a quarenta dias se há de subverter Nínive — e muitos dos
ninivitas zombaram do que dizia o estrangeiro. Amanheceu o segundo dia, continuou
o profeta a mesma pregação, mas diminuindo um dia, que era o
que já tinha passado, e disse assim: Daqui a trinta e nove dias se
há de subverter Nínive; porém os que não tinham
feito caso dos primeiros brados, também o não fizeram dos segundos.
Amanheceu o dia terceiro, foi por diante Jonas com sua pregação:
Daqui a trinta e oito dias se há de subverter Nínive; e os maus
ouvintes como dantes. Passaram dez dias, passaram vinte, passaram trinta,
e Jonas sempre diminuindo, até que finalmente chegaram os dias a ser
trinta e sete: então disse o profeta o que referem os Setenta intérpretes:
Adhuc tres dies, et Ninive subvertetur: Daqui a três dias se há
de subverter Nínive — porque estes só faltavam para cumprimento
do prazo que Deus lhe tinha dado. Vendo, pois, os rebeldes que já lhes
não restavam mais que três dias, ainda que até ali tinham
estado tão obstinados e insensíveis, o mesmo aperto do tempo
os fez entrar em si. Consideraram que a ameaça do profeta era muito
conforme a suas culpas, creram que as vozes daquele homem verdadeiramente
eram de Deus, e, reconhecendo de perto o mesmo perigo, em que não reparavam
quando se lhes representava mais longe, resolveram-se de todo o coração
a se converter. Cobrem as cabeças de cinza, vestem-se de cilício,
publicam jejum universal, em que ninguém comesse bocado, prostram-se
por terra, batem os peitos, choram e clamam ao céu, e desde o rei até
o menor da cidade, desde os homens até os animais do campo, fizeram
aquela tão celebrada e tão notável penitência,
com que mereceram que Deus levantasse o castigo e lhes perdoasse.

Os ninivitas eram gentios; nós por graça de Deus somos cristãos.
Cada cidade é uma Nínive grande, cada casa uma Nínive
pequena, e cada alma uma Nínive maior que ambas. Ainda que em todos
os dias nos podemos converter a Deus, o tempo que sua divina misericórdia
nos sinalou particularmente para a penitência dos pecados são
os quarenta dias da Quaresma: Adhuc quadraginta dies. O dia maior destes quarenta,
e em que todos, ou por verdadeira devoção, ou por costume e
cerimônia, nos lançamos geralmente aos pés de Cristo e
lhe pedimos perdão em um Sacramento e o recebemos em outro, é
o dia de Quinta-Feira de Endoenças. Neste grande dia, segundo a disposição
de cada um, ou se convertem ou se subvertem as Nínives, ou se convertem
ou se perdem as almas, como se perdeu a de Judas. Lançai agora a conta
aos dias que nos restam para este último, e achareis que somos chegados
a termos que não são já mais que três: Adhuc tres
dies. Oh! que desgraça seria tão indigna do caráter e
piedade cristã, se os que imitaram, aqueles gentios em se dilatar,
os não imitarem, posto que tarde, em se converter! Os ninivitas, diz
Cristo, que se hão de levantar no dia do Juízo, e acusar aquele
povo duro e incrédulo, a quem o Senhor pregava e não se convertia.
Por reverência do mesmo Cristo, que não queiramos nós
também que se levantem contra nós. Se os ninivitas, sem fé
nem batismo, se o seu rei, que era Sardanapalo, o mais vicioso de todos os
homens, vendo-se reduzidos a um termo tão apertado, conheceram o seu
perigo, e por meios tão extraordinários lhe buscaram remédio,
nós, a quem Deus com os braços abertos, há tantos dias
no-lo está oferecendo tão fácil, por que o desprezaremos?

Acabemos de nos desenganar, antes que se acabe o tempo: Ecce nunc tempus
acceptabile (4). Acabemos de tratar da salvação, antes que se
fechem as portas da misericórdia: Ecce nunc dies salutis (5). Ou fazemos
conta de nos converter deveras a Deus alguma hora, ou não: se não
fazemos esta conta, para que somos cristãos? Por outro caminho mais
largo podíamos ir ao inferno. Mas se nenhum há tão rematadamente
inimigo de sua alma, que ao menos não tenha tenção de
algum dia a tirar do poder do demônio e a dar a Deus, quando há
de ser este dia? Que dia, ou que dias mais a propósito podemos ter
ou esperar que estes da Semana Santa? Que dias mais a propósito para
pedir a Deus perdão dos pecados, que aqueles mesmos dias em que Deus
se pôs em uma cruz por meus pecados? Que dias mais a propósito
para alcançar e ter parte nos merecimentos do sangue de Cristo, que
os dias em que se está derramando o mesmo sangue? Agora, agora, e não
depois, é o tempo aceito a Deus: Ecce nunc tempus acceptabile. Estes
dias, estes, e não os futuros, incertos e enganosos, são os
dias da salvação: Ecce nunc dies salutis.

III

Suposto pois, cristãos, que este é o tempo, e suposto que os
dias são tão precisos que não temos outros para que apelar,
o que resta é recuperar o perdido, e que nos aproveitemos deles com
tais atos de verdadeira contrição e devoção, que
esta Semana Santa, como o é em si, seja em nós também
santa. Os ramos que cortaram das árvores os que hoje saíram
a receber a Cristo: Caedebant ramos de arboribus, posto que São Mateus
não declare quais fossem, São João diz que eram de palma,
e São Lucas de oliveira. E com os dois afetos que estes ramos significavam,
devemos nós seguir e acompanhar o Senhor em todos seus passos, oferecendo
estes humildes obséquios a seus sacratíssimos pés, que
isto quer dizer: Et sternebant in via (6). A palma é símbolo
da paciência, como a oliveira da misericórdia e compaixão;
e tais eram os dois mistérios que encerrava o aparato e diferença
daqueles ramos: padecer e compadecer. Desta maneira receberemos e acompanharemos
a nosso bom Rei e Redentor muito melhor que a ingrata e inconstante Jerusalém,
se não só hoje, mas todos estes dias, padecermos alguma coisa
com ele, e nos compadecermos dele. Tudo resumiu São Paulo a uma só
palavra, quando disse: Si tamen compatimur (7).Uma coisa é compadecer,
e outra padecer com: compadecer, é compadecer dele; padecer com, é
padecer com ele; e tanto nos merecem a paciência as suas penas, como
a compaixão o seu amor. Toda a sua sagrada humanidade do corpo e alma
de Cristo nos mereceu sempre muito, mas nunca tanto como nestes dias: padecendo
na imitação de seus tormentos, acompanharemos seu santíssimo
corpo, e compadecendo-nos na meditação de suas dores, acompanharemos
sua santíssima alma.

Digo pois, quanto ao corpo, que havemos nesta semana de procurar padecer
alguma coisa em todos os cinco sentidos, assim como Cristo padeceu em todos.
Adão e Eva, em um só pecado, pecaram com todos os cinco sentidos.
Pecaram com o ouvir, ouvindo a serpente; pecaram com o ver, olhando para a
fruta; pecaram com o palpar, tirando-a; pecaram com o cheirar, cheirando-a;
pecaram com o gostar, comendo-a. Com todos os cinco sentidos pecaram nossos
primeiros pais, e nós, tão herdeiros de suas misérias
como de suas culpas, em todos pecamos infinitas vezes. E como Cristo vinha
pagar pelo pecado de Adão e pelos nossos, quis padecer também
em todos os cinco sentidos.

Padeceu no sentido de ver, vendo fugir a todos seus discípulos: vendo
que um o entregou tão aleivosamente; vendo que outro o negou três
vezes; vendo-se atar e levar preso, e a tantos tribunais; vendo-se tapar os
olhos; vendo-se despir no Pretório, e estar despido no Calvário
tantas horas à vista de todo o mundo, e no meio de dois ladrões;
sobretudo, vendo a desconsolada Mãe ao pé da cruz, em cujo coração
e em cujos olhos estava outras três vezes crucificado. Finalmente, vendo
os meus pecados e os vossos, com que tão ingratos havíamos de
ser a tanto amor, que todos naquela hora lhe eram presentes.

Padeceu no sentido do ouvir, ouvindo o Deus-te-salve aleivoso da boca de
Judas; ouvindo os crimes e testemunhos falsos com que foi acusado; ouvindo
as vozes e brados com que os mesmos que hoje o aclamaram rei lhe pediam a
morte; ouvindo a sentença com que o iníquo juiz o entregou à
vontade de seus inimigos; ouvindo o pregão de malfeitor e alvorotador
do povo; ouvindo as injúrias e blasfêmias dos príncipes
dos sacerdotes na cruz, e as dos mesmos ladrões que com ele estavam
crucificados, e não ouvindo em todo este tempo uma só palavra
de consolação aquele mesmo Senhor que com palavras e obras tinha
consolado a tantos.

Padeceu no sentido do olfato, ou de cheirar, porque morreu entre os ascos
e horrores do Monte Calvário, chamado assim das caveiras e ossos dos
malfeitores que ali se justiçavam, os quais, ou porque os enterravam
mal os algozes, ou porque depois os desenterravam os cães, estavam
espalhados por todo o monte, e de mistura com a corrupção do
sangue faziam aquele infame lugar horrendo, hediondo, asqueroso e insuportável
ao cheiro. E como divino pagador de nossos pecados, não só escolheu
o gênero da morte, senão também a circunstância
do lugar; para satisfazer nele pelos excessos do olfato, quis que fosse tão
infeccionado e malcheiroso.

Padeceu no sentido do gosto, não só pelo fel e vinagre que
lhe deram a beber, senão muito mais por aquela ardentíssima
sede, maior incomparavelmente que todos os outros tormentos, porque só
ela obrigou ao pacientíssimo Redentor a pedir alívio. Mas podendo
mais o desejo de padecer por nós, que a força da natureza na
humanidade enfraquecida e exausta, provou o azedo do vinagre e o amargoso
do fel, para mortificar o gosto, e não quis levar para baixo o úmido,
para não moderar o ardor nem aliviar a sede.

Padeceu, finalmente, no sentido do tato, não ficando em todo o sagrado
corpo parte alguma que não fosse martirizada com particular tormento.
Padeceu nos braços as cordas e cadeias, no rosto as bofetadas, na cabeça
a coroa de espinhos, nos ombros o peso da cruz, nas costas os milhares de
açoites, nas mãos e nos pés os cravos, e em todos os
ossos, em todos os nervos, em todas as veias, em todas as artérias
a suspensão, a aflição, a violência mais que mortal
de estar três horas no ar pendente de um madeiro até expirar
nele.

Pois, se estes são os dias em que o meu Deus padeceu tão cruelmente
em todos os cinco sentidos, e tão amorosamente por mim, não
será justo que eu também em todos os sentidos padeça
alguma coisa por ele? Nenhum coração me parece que haverá
tão ingrato e tão insensível, que se não deixe
mover desta razão: Hoc enim sentite in vobis, quod et in Christo Jesu
(Flp. 2,5), diz São Paulo: O que Cristo Jesus sentiu em si, devemos
nós sentir em nós — ele por amor de nós, e nós
por amor dele. E se a vossa devoção deseja saber e me pergunta
de que modo poremos em prática este recíproco sentimento, mortificando-nos
também em todos os nossos sentidos, digo primeiramente que mortifiquemos
o ver, andando nestes dias com grande modéstia e recato, e negando
aos olhos as vistas de todas as criaturas, e apartando-os principalmente daquelas
que mais nos agradam e mais nos apartam de Deus. Os olhos têm dois ofícios:
ver e chorar; e mais parece que os criou Deus para chorar que para ver, pois
os cegos não vêem e choram. Já que tantos dias damos aos
olhos para ver, já que tão cansados andam os nossos olhos de
ver, não lhes daremos alguns dias de férias, para que descansem
em chorar? Chorem os nossos olhos os nossos pecados nestes dias, e chorem
muito em particular o não haverem antes cegado que ofendido a Deus.
Ah! Senhor, quanto melhor fora não ter olhos, que ter-vos ofendido
com eles!

O sentido de ouvir mortificá-lo-emos, retirando-nos esta semana de
todas as práticas e conversações, não só
ilícitas e ociosas, mas ainda das lícitas. Troquemos o ouvir
pelo ler, lendo todos estes dias algum livro espiritual em que Deus nos fale
e nós o ouçamos. A quem não está muito exercitado
no orar, é mais fácil o ler, e muitas vezes mais proveitoso.
Na oração falamos nós com Deus; na lição
fala Deus conosco. E de quantas coisas — que fora melhor não
ouvir — ouvimos todo o ano aos homens; estes dias ao menos, bem é
que ouçamos a Deus.

No sentido do olfato pouco têm que mortificar os homens nesta terra,
porque não vejo nela este vício. Nas mulheres, se nelas há
alguma demasia, lembrem-se de que nesta semana derramou a Madalena os seus
cheiros e os seus ungüentos aos pés de Cristo. E para os aborrecerem
e detestarem para sempre, saibam que a última disposição
da morte do mesmo Senhor foram estes cheiros. Porque a Madalena derramou os
ungüentos, se excitou a cobiça de Judas; porque em Judas se excitou
a cobiça, tratou da venda; porque vendeu a seu Mestre, o prenderam
e o mataram. Por isso o Senhor disse — e este é o sentido literal:
-Mittens haec unguentum hoc in corpus meum, ad sepeliendum me fecit (8), como
se dissera: Estes ungüentos são para a minha sepultura, porque
destes ungüentos se me há de ocasionar a morte.

O sentido do gosto, ainda que se tenha mortificado por toda a Quaresma com
o jejum ordinário, nestes dias é bem que haja para ele alguma
particular mortificação. Muitos santos do ermo passavam esta
semana inteira sem comer, e pessoas de mui diferente estado, não no
ermo, senão nas cortes, passam em jejum de quinta-feira até
sábado. Nos maiores dias desta semana é estilo das mesas dos
grandes príncipes não se porem nelas mais que ervas; para estes
dias se fizeram propriamente os jejuns de pão e água: ao menos
estes dias não são para regalo. O cordeiro mandava Deus que
se comesse com alfaces agrestes, porque o agreste e desabrido no comer destes
dias é a melhor disposição para comer quinta-feira o
Divino Cordeiro sacramentado.

O sentido do tato, como o mais vil e mais delinqüente que todos, é
razão que seja nestes dias mais mortificado. Quando Urias veio do exército
com aviso a el-rei Davi, disse-lhe o rei que fosse descansar à sua
casa. E ele, que respondeu? E bem, Senhor: está o meu general dormindo
sobre a terra na campanha, e eu que me haja de deitar em cama? Não
farei tal desprimor. — E foi-se deitar em uma tábua no corpo
da guarda. A cama em que dormiu o último sono da morte o nosso Jesus,
bem sabeis qual foi. Pois, será justo que quando ele tem por cama o
duro madeiro da cruz, descanse o nosso corpo tão regaladamente como
nos outros dias? Alguma diferença é bem que haja nestes. Ao
menos o nosso rei e seus filhos, de quinta-feira até domingo não
se deitam em cama, nem se assentam, senão no chão, assistindo
sempre ao Senhor, sem sair nunca da Capela Real, nem de dia, nem de noite.
Estas são as noites e os dias para que se fizeram as penitências:
para estas noites se fizeram os pés descalços, para estas noites
as disciplinas, e para estes dias e para estas noites os cilícios.
Que poucos cilícios deve de haver no Maranhão? Não vos
escuseis com isto.

Quando os ninivitas se resolveram a fazer penitência, mandaram que
todos, não só os homens, senão também os animais,
se cobrissem de cilício. Que fosse tão universal a penitência,
que até aos animais a estendessem, não me espanta, porque a
contrição, quando é verdadeira, dá nestes extremos.
O que sobretudo pode admirar a muitos é que, sendo a cidade tão
grande, que só de crianças inocentes tinha cento e vinte mil,
e, sendo os moradores tão ociosos, que os mandava Deus subverter, houvesse
em tal cidade e entre tal gente tantos cilícios, que se pudessem cobrir
deles tanta imensidade de homens, mulheres e meninos, e até os animais.
Se o não dissera a Escritura, parecera coisa incrível, mas é
muito fácil de crer. Os cilícios, não é necessário
que sejam tecidos de sedas de camelo, como os do Batista; de qualquer coisa
áspera se faz um cilício, se há devoção
e vontade de o trazer. Um irmão tivemos na Companhia, chamado Luís
Gonzaga, o qual era filho herdeiro dos Marqueses de Castiglione, em Itália;
e como em casa de seu pai houvesse mais instrumentos de cavalaria que de penitência,
tomava o devoto moço umas esporas de roseta, e, pondo-as de uma parte
e de outra, fazia delas cilício. E porque aplicou as esporas desta
maneira a seu corpo, correu com tanta velocidade a carreira da virtude e perfeição,
que em menos de vinte e três anos, que só teve de vida, mereceu
ser — como já é — contado entre os beatos. Assim
que, para haver cilícios, não são necessários
camelos nem teares, se há vontade e devoção.

Estas são as mortificações com que os nossos cinco sentidos
hão de imitar nesta semana as penas de Cristo. Não falo na continência
de outros vícios, porque sei que estamos em terra de cristãos.
Mas porque também estamos em terra de soldados, advirto que em dia
de Ramos se cerram as portas às casas de jogo, e que não é
coisa que devam consentir os oficiais nem ao soldado mais perdido. Queixa-se
Cristo pelo profeta de que no dia de sua Paixão lhe jogassem as vestiduras:
Et super vestem meam miserunt sortem (9). Assim foi que os que crucificaram
ao Senhor, depois que o tiveram posto na cruz, lançaram as mãos
aos dados, e jogaram os sagrados vestidos. E acrescenta logo o evangelista:
Et milites quidem haec fecerunt (Jo. 19,24): E os que fizeram isto foram os
soldados. — Os soldados foram também os que crucificaram ao Senhor,
mas o evangelista não faz a reflexão em que eles o crucificaram,
senão em que jogaram as vestiduras, porque o crucificar a Cristo foi
obediência de seus maiores, o jogar as vestiduras foi vício depravado
seu. Sabeis quem joga em tais dias como estes? Só quem crucifica a
Cristo, e quem jogara suas sagradas vestiduras, se as tivera. Quero-vos contar
o que me sucedeu em Inglaterra. Iam comigo dois portugueses, os quais em um
domingo se puseram a jogar as tábulas em uma estalagem; saiu o hóspede
muito assustado, e como fora de si: — E bem, senhores, quereis que me
venham queimar a casa? — Queimar a casa? E por quê? — Porque
é esse um jogo que se pode ouvir de fora, e se o ouvirem, ou souberem
os magistrados, sou perdido. — Assim o dizia este homem, e assim havia
de ser. E para que mais vos admireis, a cidade, ou vila, era Dovres, porto
e escala marítima, onde todos, sem se excetuar um só, são
hereges. Oh! vergonha dos que tanto nos prezamos do nome de católicos!
Se em terra de hereges é sacrilégio jogar as tábulas
em um domingo ordinário, que será jogar, ou estes ou outros
jogos, em uma Semana Santa, em terra onde se adora a cruz e as imagens de
Cristo, e se celebram os mistérios de sua morte? Seja esta também
uma das mortificações que pertencem ao corpo.

IV

E a alma, que há de fazer? O corpo, imitar; a alma, meditar: o corpo
com os ramos da palma, a alma com os da oliveira. A alma nestes santos dias
há de fazer do coração um Monte Calvário, levantar
nele um Cristo crucificado, e pôr-se desta maneira a contemplar suas
dores. Oh! quem pudera explicar-se agora com o pensamento, e falar com o silêncio!
Quando os amigos de Jó o foram visitar nos seus trabalhos, diz a Escritura
Sagrada que estiveram uma semana inteira olhando só para ele, sem falarem
palavra. Assim o hão de fazer nossas almas esta semana, se são
amigas de Jesus: olhar, calar e pasmar. Oh! que vista! Oh! que silêncio!
Oh! que admiração! Oh! que pasmo! Só três coisas
dou licença a nossas almas que se possam perguntar a si mesmas no meio
desta suspensão. Quem padece? Que padece? Por quem padece? E que meditação
esta para uma eternidade!

Quem padece? Deus, aquele ser eterno, infinito, imenso, todo-poderoso, aquele
que criou o céu e a terra com uma palavra, e o pode aniquilar com outra;
aquele, diante de cujo acatamento, os principados, as potestades e as dominações,
e todas as hierarquias estão tremendo. Este Deus, cuja grandeza, este
Deus, cuja majestade, este Deus, cuja soberania incompreensível só
ele conhece inteiramente, e todos os entendimentos criados com infinita distância
de nenhum modo podem alcançar, este, este é o que padece. Aqui
se há de fazer uma pausa, e pasmar. São Bernardo, cheio de pasmo
e assombro nesta mesma consideração, rompeu dizendo: Ergo ne
credendum est, quod iste sit Deus, qui flagellatur, qui conspuitur, qui crucifigitur?
É possível que se há de crer que este, que padece tantas
injúrias e afrontas, e a mesma morte, é aquele mesmo Deus imortal,
impassível, eterno, que não teve princípio, e é
o princípio e fonte de todo ser? Este, este é; que nem ele fora
Deus, nem a nossa fé fora fé, se ela não fizera, e nós
não crêramos o que excede toda a capacidade humana. Por isso
Isaías, quando entrou a falar da Paixão, como profeta que sobre
todos era o mais eloqüente, o exórdio por onde começou,
foi aquela pergunta: Quis credidit auditui nostro (Is. 53,1)? Quem haverá
que dê crédito ao que há de ouvir de minha boca? —
Tão alheio é quem padece do que padece, e este é Deus.
Vede se há bem de que pasmar aqui.

Depois de considerarmos que é Deus quem padece, então se segue
a consideração do que padece. E não só havemos
de trazer à memória o que já vimos que padeceu exteriormente
em todos os sentidos do corpo, mas muito mais devemos considerar e ponderar
o que padeceu no interior da alma e em todas suas potências. Com dois
nomes, ou com duas semelhanças nos declarou nosso amorosíssimo
Redentor o que padeceu em sua Paixão, com nome e semelhança
de cálix, quando disse a S. Pedro: Calicem, quem dedit mihi Pater,
non vis ut bibam illum (Jo. 18,11)? O cálix que mc deu meu Padre, não
queres que o beba? — E com nome e semelhança de Batismo, quando
disse a todos os discípulos: Baptismo habeo baptizari, et quomodo coarctor
usque dum perficiatur (Lc. 12,50)? Eu hei de ser batizado em um batismo, o
qual desejo com grandes ânsias e aperto do coração até
que chegue. — De sorte que declarou o Senhor o que havia de padecer
por nós, já chamando-lhe cálix, já batismo, e
por quê? Porque o batismo recebe-se por fora, o cálix bebe-se
por dentro, e Cristo, Redentor nosso, em toda sua Paixão não
só padeceu por fora os martírios do corpo, senão também,
e muito mais, por dentro os tormentos da alma. Por fora padeceu os tormentos
dos açoites, dos espinhos, dos cravos, da lança, que o banharam
todo em sangue, e por isso lhes chamou Batismo; por dentro padeceu as tristezas,
os tédios, os temores, as angústias e agonias, que, sem ferro,
lhe tiraram também sangue no Horto, e lhe penetravam mortalmente a
alma: Tristis est anima mea usque ad mortem (10).

Oh! quem pudesse entrar profundamente no interior da alma de Jesus, e entender
o que naquele consistório sacratíssimo e secretíssimo
das suas três potências passava e se conferia em tantas horas!
A memória, desde o princípio do mundo representava os pecados
de todos os homens, por quem satisfazia a divina justiça; o entendimento
ponderava o pouco número dos mesmos homens que se haviam de aproveitar
do preço infinito daqueles tormentos, e a vontade se desfazia com dor
de ver perder tantas almas por sua culpa, sem achar consolação
alguma a tamanha perda; e esta era a tristeza que ocupava toda a alma do Salvador,
e com três cravos mais agudos e penetrantes a crucificava. Aqui havemos
de fazer a segunda pausa, e pasmar tanto daquele infinito amor, como da nossa
infinita cegueira. Oh! Senhor, quantos pode ser que vísseis então,
dos que agora se acham nesta mesma igreja, que, por que haviam de desprezar
e condenar as suas almas, agonizavam a vossa! Considere cada um se porventura,
ou eterna desventura, é algum destes, e veja bem o seu perigo, enquanto
tem tempo.

Este é o Deus que padece, estas as penas e dores que padece, e só
resta ver por quem padece. Se a fé me não ensinara outra coisa,
cuidara eu que padecia Deus pelo céu, porque vejo o sol eclipsado e
coberto de luto; cuidara que padecia pela terra, porque a vejo tremer e arrancar-se
de seu próprio centro; cuidara que padecia pelas pedras, porque as
vejo quebrarem-se umas com outras e abrirem-se as sepulturas; cuidara que
padecia pelo Templo de Jerusalém, porque vejo rasgar-se de alto a baixo
o véu do Sancta Sanctorum; cuidara que padecia por este mundo elementar,
porque vejo confusos, perturbados, atônitos e com prodígios de
sentimento e assombro todos os elementos. Mas não são estas
as criaturas por quem padece Deus, posto que todas confessam que padece seu
Criador; e, com serem irracionais e insensíveis, quiseram acabar com
ele quando o vêem morrer. Quem são logo aqueles por quem padece
o Autor da natureza, e por quem morre o Autor da vida? Sou eu, sois cada um
de vós, e somos todos os homens. Por nós, e só por nós
padece Deus; por nós, e só por nós padece quanto padece.
Por nós que, depois de nos criar, o não respeitamos; por nós
que, depois de nos sustentar, o não servimos; por nós que, depois
de nos remir, o não obedecemos; por nós que, depois de morrer
por nosso amor, o não amamos; por nós que, depois de se pôr
em uma cruz por nós, o tornamos a crucificar mil vezes; por nós
que, esperando-nos assim, e chamando-nos com os braços abertos, não
queremos acudir a suas vozes; por nós, enfim, que, sabendo que nos
há de julgar, e nos prometeu o céu, se o não ofendermos,
queremos antes o inferno sem ele, que o céu com ele. Isto é
o que faz todo o homem que peca mortalmente, e isto o que continua a fazer
enquanto se não tira do pecado, para que vejais se tem razão,
não só de pasmar, mas de perder o juízo.

V

Estes são, cristãos, os três pontos breves e altíssimos
que havemos de meditar nestes poucos dias, os quais torno a repetir, para
que vos fiquem bem na memória: Quem padece, o que padece, e por quem
padece? Espero de vossa cristandade, que não só para estes dias
da Semana Santa, senão para todos os de vossa vida, haveis de tomar
esta devoção tão devida ao que nos merece o amor de quem
deu a sua por nós. E ninguém se escuse com dizer que não
sabe meditar ou discorrer, porque Deus não quer discursos, senão
vontades, antes, nem ainda vontades nos pede; só com memórias
se contenta: Hoc facite in meam commemorationem(11): Filhos — diz Cristo
— dei a vida, dei o sangue, dei-me todo a mim mesmo por vosso amor;
não quero de vós outra paga, senão que vos lembreis de
mim. — De quantas coisas disse e fez o Filho de Deus na vida e na morte,
nenhuma é mais para enternecer, e ainda magoar qualquer coração
humano, que esta última recomendação com que se despediu
de nós. Que Deus, feito homem por amor dos homens, e morto por amor
dos homens, chegue a pedir aos mesmos homens que se lembrem dele? Oh! amor!
Oh! benignidade divina! Oh! dureza! Oh! ingratidão humana! É
Deus tão amoroso e tão benigno que nos pede a nossa memória,
e somos tão duros e tão ingratos, que é necessário
a Deus que no-la peça. Não me enternece tanto, nem me move tanto
à compaixão tudo o que Cristo padeceu, quanto o que argüi
no seu coração e nos nossos esta lastimosa recomendação.
E que lástima seria, cristãos, ou que lástima é
tão indigna, e tão afrontosa de nossos corações,
que, pedindo-nos um tão bom Senhor só a memória, ainda
essa lhe neguemos?

Ora, por reverência do sangue, da morte e de toda a Paixão de
Jesus, que não seja assim ao menos nestes santos dias. Lembremo-nos
de suas dores, lembremo-nos de suas penas, lembremo-nos de suas chagas, e,
sobretudo, lembremo-nos de seu amor. Com esta memória nos levantemos
ao amanhecer, com esta memória nos recolhamos à noite, e nesta
memória gastemos alguma parte dela. Particularmente vos encomendo muito
esta única memória nas igrejas e no correr das igrejas. Grande
fraqueza é a dos homens, e grande a astúcia do demônio,
que até nesta Santa Semana nos arme laços e no-los teça
da nossa própria devoção. As igrejas não se hão
de correr por ostentação, nem por festa, nem por curiosidade,
nem para ver quem vai, e como vai, e com quem vai, senão para ir com
os olhos no chão, e a alma mui dentro em si mesma, considerando que
naquele mesmo dia e por aqueles mesmos passos ia Deus com uma cruz às
costas a morrer por mim, para que eu não morresse eternamente, e padecendo
tantas afrontas e penas, para me livrar das do inferno. Oh! que memória
esta para nos tirar tudo o mais da memória! Finalmente, chegados à
igreja, haveis de imaginar que chegais ao Monte Calvário — que
não é imaginação, senão verdade de fé,
porque ali estava realmente o mesmo Cristo — e fazer com efeito o que
fizéreis, se então estivera o Senhor na cruz, e o víreis
com vossos olhos.

Com esta modéstia e com esta consideração havemos de
correr e visitar as igrejas, e com a mesma, e muito maior, assistir nelas
aos Divinos Ofícios, e não olhando, falando e conversando, que
é um abuso maldito, o qual, não se vendo em outra alguma parte
da cristandade, só em Espanha e Portugal — onde tanto nos prezamos
de católicos — se tem introduzido, com escândalo e abominação
até dos hereges. Oh! se assistíramos nas nossas igrejas como
eles nas suas, posto que indignas de tão sagrado nome, onde não
há altar, nem cruz, nem está Cristo! Por amor do mesmo Cristo,
cristãos e cristãs, que não cometamos uma tão
grande indecência, e não façamos um tão público
e manifesto agravo à fé com que cremos que aquele Senhor, que
temos presente no Santíssimo Sacramento, é o mesmo que esteve
por nós crucificado no Calvário. No Calvário assistiram
a Cristo a Virgem Senhora nossa, São João, Santa Maria Madalena,
e outras Marias, e é coisa digníssima de se notar que em todos
os quatro evangelistas se não diz que alguma de todas estas pessoas
falasse uma só palavra. Todos viam e consideravam o que passava, mas
ninguém falava, porque os mistérios da Paixão querem-se
venerados com suma atenção e meditados com sumo silêncio.

Façamos, pois, todos nestes dias este pequeno sacrifício —
de que ninguém tem causa para se escusar — e com satisfação
do muito que temos ofendido a Deus com nossas línguas, ofereçamos-lhes
o não falarmos com outrem, senão com ele, ao menos enquanto
estivermos na sua presença. De tudo o mais que até aqui tenho
dito, fará cada um o que seu fervor e devoção lhe ditar;
mas deste silêncio, modéstia e reverência nas igrejas,
a ninguém excetua o mesmo Cristo. Lembremo-nos que somos cristãos,
e que em alguma coisa se há de ver que o somos, e que desse mesmo sermão,
e das advertências que nele vos tenho feito, vos há de pedir
Deus estreita conta. Lembremo-nos de quantas Semanas Santas têm passado
sem nos aproveitarmos delas, e que pode mui bem ser que seja esta a última
para alguns de nós. Quantos viram a passada, que não vêem
esta, e quantos verão esta, que não hão de ver a que
vem! Se soubéramos de certo que havia de ser esta a última Semana
Santa de nossa vida, que havíamos de fazer? Pois, façamos isso
mesmo, e não o façamos por temor da nossa morte, senão
por amor de Jesus.

Ah! Senhor, que as minhas palavras são de regelo, e estes corações,
sem vossa graça, de bronze. Quando expirastes na cruz, inclinastes
a cabeça sobre o peito, em sinal que havíeis de pôr os
olhos em vós, e não em nós, em vosso coração,
e não em nossos pecados. Desse mesmo coração alanceado
e ofendido saíram os dois elementos com que formastes vossa Igreja;
saíam também agora os espíritos vitais, espíritos
de vida e graça, com que a reformeis. E, assim como alumiastes e destes
vista ao mesmo que vos feriu, assim, posto que tão ferido e ofendido
de nós — pois está sempre vivo no vosso coração
o mesmo amor — saia dele um raio de luz que alumie nossas cegueiras.
Fertilize, Senhor, este sangue, e regue esta água que saiu de vosso
coração, nossas almas, que todas rendidas a vosso amor, e prostradas
ao pé de vossa cruz, contritas e humilhadas, vos pedem perdão
de todas suas culpas e de todas as ofensas vossas até esta hora cometidas.
Nunca mais, Senhor, ofender-vos, nunca mais, por serdes vós quem sois.
Assim o prometemos e protestamos firmissimamente. E assim o esperamos, clementíssimo
Jesus, de vossa misericórdia infinita, dos merecimentos de vossa Paixão,
e dos auxílios de vossa graça. Amém.

(1) E outros cortavam ramos de árvores, e juncavam com eles a passagem
(Mt. 21,8).

(2) Cortavam ramos de árvores (Mt. 21, 8).

(3) Cheguei ao alto-mar, e a tempestade me submergiu (Sl. 68, 3).

(4) Eis aqui agora o tempo aceitável (2 Cor. 6, 2).

(5) Eis aqui agora o dia da salvação (2 Cor. 6, 2).

(6) E juncavam com eles a passagem (Mt. 21,8).

(7) Se é que todavia nós padecemos com ele (Rom. 8,17)

(8) Porquanto derramar ela este bálsamo sobre o meu corpo, foi ungir-me
para ser enterrado (Mt. 26,12).

(9) E lançaram sorte sobre a minha túnica (Sl. 21, 19).

(10) A minha alma está numa tristeza mortal (Mt. 26, 38).

(11) Fazei isto em memória de mim (Lc. 22, 19).

Sermão de Nossa Senhora do Ó – 1640

Ecce concipies in utero, et panes Filium (1).

I

A figura mais perfeita e mais capaz de quantas inventou a natureza e conhece
a geometria é o círculo. Circular é o globo da terra,
circulares as esferas celestes, circular toda esta máquina do universo,
que por isso se chama orbe, e até o mesmo Deus, se sendo espírito
pudera ter figura, não havia de ter outra, senão a circular.
O certo é que as obras sempre se parecem com seu autor; e fechando
Deus todas as suas dentro em um círculo, não seria esta idéia
natural, se não fora parecida à sua natureza. — Daqui
é que o mais alumiado de todos os teólogos, S. Dionísio
Areopagita, não podendo definir exatamente a suma perfeição
de Deus, a declarou com a figura do círculo: Velut circulus quidam
sempiternus propter bonum, ex bono, in bono et ad bonum certa, et nusquam
oberrante glomeratione circummiens. Estes são os dois maiores círculos
que até o dia da Encarnação do Verbo se conheceram; mas
hoje nos descreve o Evangelho outro círculo, em seu modo maior. O primeiro
círculo, que é o mundo, contém dentro em si todas as
coisas criadas; o segundo, incriado e infinito, que é Deus, contém
dentro em si o mundo; e este terceiro, que hoje nos revela a fé, contém
dentro em si ao mesmo Deus. Ecce concipies in utero, et paries Filium: hic
erit magnus, et Filius Altissimi vocabitur (2). Nove meses teve dentro em
si este círculo a Deus, e quem poderá imaginar que, estando
cheio de todo Deus, ainda ali achasse o desejo, capacidade e lugar para formar
outro círculo? Assim foi, e este novo círculo, formado pelo
desejo, debaixo da figura e nome de O, é o que hoje particularmente
celebramos na expectação do parto já concebido: Ecce
concipies et paries. De um e outro círculo travados entre si, se comporá
o nosso discurso, concordando — que é a maior dificuldade deste
dia — o Evangelho com o título da festa, e o título com
o Evangelho. O mistério do Evangelho é a conceição
do Verbo no ventre virginal de Maria Santíssima; o título da
festa é a expectação do parto e desejos da mesma Senhora,
debaixo do nome do O. E porque o O é um círculo, e o ventre
virginal outro circulo, o que pretendo mostrar em um e outro é que,
assim como o círculo do ventre virginal na conceição
do Verbo foi um O que compreendeu o imenso, assim o O dos desejos da Senhora
na expectação do parto foi outro circulo que compreendeu o eterno.
Tudo nos dirão, com a graça do céu, as palavras que tomei
por tema. Ave Maria.

II

Ecce concipies in utero, et paries.

Uma das maiores excelências das Escrituras divinas é não
haver nelas nem palavras, nem sílaba, nem ainda uma só letra
que seja supérflua ou careça de mistério. Tal é
o misterioso O que hoje começa a celebrar, e todos estes dias repete
a Igreja, breve na voz, grande na significação, e nos mistérios
profundíssimo. Mas, contra este mesmo princípio, parece que
no nosso texto, com ser tão breve, não só temos uma letra,
senão uma sílaba e uma palavra supérflua. E que sílaba,
e que palavra? In utero. Dizendo o anjo à Senhora: Ecce concipies et
paries, que conceberia e pariria o Filho de Deus, bem claramente se entendia
não só a substância do mistério, senão o
modo e o lugar, e que este havia de ser o sacrário virginal do ventre
santíssimo. Supérfluo parece logo sobre a palavra concipies,
acrescentar in utero. Mas esta embaixada deu-a o anjo, mandou-a Deus, e refere-a
o evangelista, e nem Deus, nem o anjo, nem o evangelista haviam de dizer palavras
supérfluas. A que fim, pois, quando se anuncia este oráculo
— que foi o maior que veio, nem virá jamais do céu à
terra — se diz e se repete por três bocas, uma divina, outra angélica,
e outra mais que humana, que o mistério da conceição
do Verbo se há de obrar sinaladamente no útero ou ventre da
Mãe: Ecce concipies in utero? Sem dúvida porque era tão
grande a novidade, e tão estupenda a maravilha, que necessitava a fé
de toda esta expressão. Haver-se Deus de fazer homem, novidade foi
que assombrou aos profetas quando a ouviram. Porém, que esse mesmo
Deus, sendo imenso, se houvesse ou pudesse encerrar em um círculo tão
breve, como o ventre de uma Virgem: In utero? Esta foi a maravilha que excede
as medidas de toda a capacidade criada.

Considerai a imensidade de Deus, e vereis até onde chega e se estende
o significado desta pequena, ou desta grande palavra: In utero. Imensidade
é uma extensão sem limite, cujo centro está em toda a
parte, e a circunferência em nenhuma parte: Cujus centrum est ubique,
circumferentia nusquam. Ponde o centro da imensidade na terra, ponde-o no
sol, ponde-o no céu empíreo, está bem posto. Buscai agora
a circunferência deste centro, e em nenhuma parte a achareis. Por quê?
A razão é porque sendo a terra tão grande, e o sol cento
e sessenta vezes maior que a terra, e sendo o céu muitos milhões
de vezes maior que o sol e o empíreo, com excesso incomparável
maior que os outros céus, todas essas grandezas têm medida e
limite: a imensidade não. Deus, por sua imensidade, como bem declarou
S. Gregório Nazianzeno, está dentro no mundo e fora do mundo:
Deus in universo est, et extra universum. Mas se fora do mundo não
há lugar, porque não há nada, onde está Deus fora
do mundo? Está onde estava antes de criar este mundo. Se Deus não
estivera neste espaço, onde hoje está o mundo, não o
pudera criar; e como Deus, fora do mundo, pode criar infinitos mundos, também
está em todos esses espaços infinitos, a que chamamos imaginários.
E porque outrossim os espaços imaginários, que nós podemos
imaginar mas não podemos compreender, não têm limite,
por isso o centro da imensidade, que se pode pôr dentro ou fora do mundo,
nem dentro nem fora do mundo pode ter circunferência. Comparai-me o
mar com o dilúvio. O mar tem praias, porque tem limite; o dilúvio,
porque era mar sem limite, não tinha praias: Omnia pontus erat, deerant
quoque litora ponto. Assim a imensidade de Deus — quanto a comparação
o sofre. — Está a imensidade de Deus no mundo e fora do mundo;
está em todo lugar e onde não há lugar; está dentro,
sem se encerrar, e está fora, sem sair, porque sempre está em
si mesmo. O sensível, o imaginário, o existente e o possível,
o finito e o infinito, tudo enche, tudo inunda, por tudo se estende, e até
onde? Até onde não há onde, sem termo, sem limite, sem
horizonte, sem fim, e, por isso, incapaz de circunferência: Circumferentia
nusquam.

III

Mas, ó grandeza sobre todas as grandezas, ó milagre sobre todos
os milagres, o do ventre virginal de Maria! Não se diga já que
a imensidade de Deus não tem circunferência, pois o ventre de
Maria, assim como Deus é imenso, o concebe todo dentro em si, assim
como é imenso, o compreende, assim como é imenso, o cerca. Aquela
mesma imensidade de Deus, a que não podem fazer circunferência
os orbes celestes, nem o globo inteiro do universo, nem os espaços
imaginários, sempre mais e mais infinitos, essa mesma imensidade, e
não outra, é a que abraça, encerra e contém dentro
em si o círculo daquele ventre puríssimo. E se aquele sagrado
círculo verdadeiramente cerca ao mesmo Deus, quão grande ele
é em toda sua imensidade, diga-se sim que o centro da imensidade divina
está em toda a parte: Cujus centrum ubique, mas não se diga
já que em nenhuma parte tem a circunferência: Circumferentia
nusquam, porque o círculo do ventre virginal é a parte onde
tem uma circunferência tão capaz e tão cabal, que a todo
Deus imenso como é, abraça e cerca. Não é pensamento
meu, senão do profeta Jeremias, ou do mesmo Deus por sua boca.

Creavit Dominus novum super terram (Jer. 31,22), diz o profeta Jeremias:
Criou Deus uma coisa nova sobre a terra — e tão nova que nem
na terra se viu, nem no céu se imaginou semelhante. E que coisa nova
e tão nova é esta: Femina circumdabit virum: Uma mulher a qual
há de cercar o varão. — O varão por antonomásia
neste caso é o Verbo Eterno encarnado. Todos os outros homens, quando
se geram e concebem no ventre da mãe, não são homens,
nem ainda meninos, porque só têm a vida vegetativa ou sensitiva,
e ainda não estão informados com a alma racional; porém,
o Verbo Encarnado, Cristo, desde o primeiro instante de sua conceição,
foi varão perfeito e perfeitíssimo, não só com
todas as potências da alma e do corpo, senão também com
o uso delas. Assim como o primeiro Adão nunca foi menino, senão
homem e varão perfeito, desde o instante de sua criação,
assim também o segundo Adão, e com maior maravilha, porque foi
varão perfeito, não em corpo e estatura varonil, como o primeiro,
mas naquela quantidade mínima em que são concebidos os outros
homens. Essa é a razão por que o mesmo Cristo, à diferença
de todos os que nasceram de mulher, se chama em frase da Escritura, aquele
que foi gerado varão: Vir oriens nomen ejus (3). Deste varão,
pois, nunca menino e sempre homem, porque sempre homem e Deus, deste é
que fala Jeremias, quando diz que uma mulher o havia de cercar: Femina circumdabit
virum.

Mas por que se declara este profeta pela palavra cercar, termo também
novo e inaudito? Isaías, profetizando o mesmo mistério, disse:
Ecce virgo concipiet, et pariet Filium, et vocabitur nomem ejus Emmanuel (4):
que uma virgem conceberia e pariria a Deus. Pois, se Jeremias se tinha empenhado
em dizer uma coisa nova e nunca ouvida: Creavit Dominus novum super terram,
por que a não pondera também pela maravilha da conceição
e parto virginal, e em lugar de dizer que a mulher de que fala conceberá
e parirá a Deus feito homem, não diz que o conceberá
e parirá, senão que o cercará: Femina circumdabit virum?
Sem dúvida porque a maior maravilha do mistério da Encarnação
é chegar nele Deus a estar cercado. Estar Deus cercado dentro do ventre
virginal, sendo imenso, foi fazer que a imensidade tivesse circunferência;
e ajuntar a circunferência com a imensidade foi mais que ajuntar a virgindade
com o parto. Ajuntar a virgindade com o parto foi inventar Deus um nascimento
digno da sua divindade, porque, como diz S. Bernardo, havendo Deus de ter
mãe, não podia ser senão virgem, e havendo uma virgem
de ter filho, não podia ser senão Deus. Mas, cercando a mesma
Virgem, dentro do claustro materno, a todo Deus, e ajuntando a circunferência
com a imensidade, foi maior maravilha e maior obra. Por quê? Porque
foi fazer outro imenso maior que o imenso. Valha-me São Boaventura:
Immensum vas non potest esse plenum, nisi immensum sit illud quo est plenum:
Maria autem vas immensissimum fuit, ex quo illum, qui caelo major est, continere
potuit (5). Supõe e prova juntamente o Doutor Seráfico, que
o ventre virginal foi imenso, porque a capacidade que recebe e contém
dentro em si o imenso, não pode ser senão imensa. Deus é
imenso: logo o ventre virginal, que concebeu e teve dentro em si a Deus, também
é imenso. E basta isto? Não. Maria autem vas immensissimum fuit,
ex quo illum, qui caelo major est, continere potuit. Não só
diz que o ventre de Maria foi imenso, senão imensíssimo. E por
que, teólogo divino? Porque cercou a Deus. Quando um imenso cerca outro
imenso, ambos são imensos, mas o que cerca maior imenso que o cercado;
e por isso, se Deus, que foi o cercado, é imenso, o ventre que o cercou,
não só há de ser imenso, senão imensíssimo.
A boa filosofia admite que pode haver um infinito maior que outro infinito,
porque se houver infinitos homens, também os cabelos hão de
ser infinitos; porém o infinito dos cabelos, maior que o infinito dos
homens. Pois, assim como pode haver um infinito maior que outro infinito,
assim pode haver um imenso maior que outro imenso. E tal foi o claustro virginal
de Maria: Ecce concipies in utero. Deus, que foi o concebido, imenso; e o
útero, que o concebeu, porque o cercou, imensíssimo: Maria autem
vas immensissimum fuit.

Ainda temos melhor autor que São Boaventura, com ser tão grande
doutor, que a Igreja o fez supernumerário aos quatro doutores da grega
e aos quatro da latina. E que autor é este? A mesma Virgem, Senhora
nossa. Falando a Senhora de si no capítulo vinte e quatro do Eclesiástico,
diz estas palavras: Gyrum caeli circuivi sola (Eclo. 24,8): O círculo
que cerca o céu, eu só o cerquei. — Admiravelmente dito.
O círculo criado, que cerca o mundo, é o céu; o circulo
incriado e imenso, que cerca o céu, é Deus; e o círculo
imensíssimo, que cercou a esse Deus imenso, é Maria: Gyrum caeli
circuivi sola. Demos o seu a seu dono. O comento e o pensamento é de
Ricardo de Sancto Laurentio: Gyrum caeli, id est, illum, qui claudit omnia,
Christum scilicet, qui est gyrus ingyrabilis, circuivi gremio uteri mei. O
círculo que cerca o céu é aquele que cerca e encerra
em si todas as coisas, que é Deus. Este círculo, porém,
por sua essência e grandeza, é tal que se não pode cercar:
Gyrus ingyrabilis. Não se podia declarar uma coisa tão nova,
sem se fazer também uma palavra nova: gyrus, porque Deus, por sua imensidade,
cerca tudo; e juntamente ingyrabilis, porque essa mesma imensidade, como dizíamos,
o faz incapaz de circunferência e de poder ser cercado. Mas esse impossível,
que a essência e definição da imensidade não permitia,
venceu a capacidade, não só imensa, mas imensíssima,
do útero e grêmio virginal de Maria: illum, qui claudit omnia,
qui est gyrus ingyrabilis, circuivi gremio uteri mei. Isto é o que
disse o Eclesiástico, quando pronunciou em nome da Senhora: Gyrum caeli
circuivi sola; isto o que tinha profetizado Jeremias, quando disse: Femina
circumdabit virum; e isto o que lhe anunciou o anjo, quando disse: Ecce concipies
in utero.

IV

Já o dito até aqui bastava para que eu desse por desempenhada
a promessa de que o círculo do útero virginal foi um O que compreendeu
dentro em si o imenso. Mas será bem que o mesmo imenso o diga, resumindo
também a um O a sua imensidade. Apareceu Cristo, Senhor nosso, ao evangelista
S. João na primeira visão do seu Apocalipse, e disse-lhe: Ego
sum alpha et omega, principium et finis (Apc. 1,8): Eu sou o Alfa e o Ômega,
porque sou o princípio e o fim de tudo: o princípio, enquanto
Criador do mundo, e o fim, enquanto reparador dele. Alfa e Ômega são
a primeira e última letra do alfabeto grego, o qual começa em
A e acaba em O. E esta foi a razão e o mistério porque, sendo
Cristo hebreu e S. João também hebreu, não lhe falou
o Senhor em hebraico, senão em grego, porque o alfabeto grego acaba
em O, e o hebraico não. O alfabeto hebraico também começa
em A, que é o seu aleph; e para significar, na primeira letra, as obras
da criação, enquanto Cristo é princípio, tanto
servia o alfabeto hebraico como o grego. Porém o Senhor usou do grego,
sendo estranho, e deixou o hebraico, sendo natural e da própria língua,
porque, para significar na última letra o mistério da reparação,
enquanto o mesmo Cristo é fim, só o O tinha propriedade e semelhança.
E esta semelhança, em que consiste? Consiste em que a figura do O é
circular, e assim como o O é um círculo, assim o mistério
da Encarnação foi outro círculo: Deus humanatus dicitur
esse circulus, ut circumferentia dicatur humanitas, centrum autem divinitas
(6). O mistério da Encarnação do Verbo — diz S.
Boa-ventura — foi um círculo porque, vestindo-se Deus de nossa
carne, a humanidade de Cristo cercou e encerrou em si a divindade. E por este
modo inefável ficou sendo a mesma divindade o centro, e a humanidade
a circunferência. Sendo, pois, o mistério da Encarnação,
que foi o fim e última perfeição de todas as obras de
Deus, este perfeitíssimo círculo, por isso Cristo disse a S.
João que, assim como ele, enquanto primeiro princípio, é
a primeira letra, A, assim, enquanto último fim, é a última
letra, O: Ego sum Alpha et Omega.

Mas todos os que tiverem qualquer notícia dos elementos da língua
grega, porão aqui uma dúvida, que está muito à
flor da terra, fundada no mesmo O e no mesmo alfabeto. No alfabeto grego não
há um só O, senão dois; um que se chama Ômega,
que quer dizer O grande, e outro que se chama ômicron, que quer dizer
O pequeno. Logo, falando Cristo, como falava, do mistério de sua Encarnação,
parece que se havia de comparar ao O pequeno, e não ao O grande. O
nome de grande, não só em comparação do homem,
mas absolutamente, e fora de toda a comparação, compete à
divindade. Pelo contrário, a humanidade, ainda comparada com outras
criaturas, é pequena, e menor que elas: Minuisti eum paulo minus ab
angelis (7). Pois, se Cristo falava de si enquanto homem, por que se não
compara ao O pequeno, senão ao O grande, e por que não diz:
Ego sum omicron, senão Omega. A razão é porque, falando
Cristo da sua humanidade na metáfora de O e de circulo, não
devia considerar nela o que era, senão o que cercava. Cercava a divindade
do Verbo, cercava toda a imensidade divina, e um círculo de tão
infinita capacidade, que fazia circunferência à mesma imensidade,
não podia formar um O que não fosse o maior de todos: Ego sum
alpha et omega, principium et finis. Enquanto Deus, que é o princípio,
era Alfa; enquanto homem, que é o fim, era Ômega. Mas, sendo
tão grande o Ômega, que encerrou dentro em si o Alfa, sendo tão
grande e tão imenso o O, que encerrou dentro em si o A, como podia
ser O pequeno?

Para bem vos seja, Virgem puríssima, esta grandeza da humanidade de
vosso Filho, e para bem outra vez, porque não seria tão grande
a capacidade daquele O, se do círculo, onde foi concebido, a não
participara. Manílio, no livro quarto da sua Astronomia, diz uma coisa
admirável, e é que os que nascem debaixo do signo de Virgem
recebem desta influência tal graça no escrever, que uma letra
sua contém uma palavra: Hic et scriptor erit, felix cui littera verbum
est (8). Eu não direi o fundamento que teve Manílio para sair
com este axioma, nem os outros astrônomos o comentam facilmente. Mas
o certo é que Cristo nasceu debaixo do signo da Virgem, o certo é
que Cristo nesse mesmo mistério diz de si que é um O, e o certo
é que esta letra e este O contém a primeira e maior palavra,
que é o Verbo Eterno: Cui littera Verbum est. Grande, singular, imensa
capacidade do Filho, mas participada do útero virginal da Mãe,
em que foi concebido enquanto homem: Ecce concipies in utero. Enquanto Deus,
também Cristo foi concebido no útero do Pai: Ex utero, ante
luciferum, genui te(9). Notai, porém, a diferença, mais com
pasmo que com admiração. O Pai-Deus de tal maneira concebeu
o Filho, Deus, que encerrou nele toda a sua essência em uma palavra;
e a Mãe-Virgem de tal maneira concebeu ao Filho-Homem, que encerrou
nele a mesma essência em uma letra: a palavra é o Verbo, a letra
é o O: Cui littera Verbum est.

V

Assentado, como temos visto, que o círculo do ventre virginal, na
conceição do Verbo, foi um O que compreendeu o imenso, segue-se
agora mostrar como o O dos desejos da mesma Senhora, na expectação
do parto, foi um círculo que compreendeu o eterno. A eternidade e o
desejo são duas coisas tão parecidas, que ambas se retratam
com a mesma figura. Os egípcios, nos seus hieroglíficos, e antes
deles os caldeus, para representar a eternidade pintaram um O, porque a figura
circular não tem princípio nem fim, e isto é ser eterno.
O desejo ainda teve melhor pintor, que é a natureza. Todos os que desejam,
se o afeto rompeu o silêncio, e do coração passou à
boca, o que pronunciam naturalmente é O. Desejou Davi água da
cisterna de Belém, e antes de declarar aos soldados qual era o seu
desejo, adiantou-se um O a dizer o que desejava: Desideravit ergo David, et
ait: O, si quis mihi daret potum aquae de cisterna, quae est in Bethlehem
(10)!O O foi a voz do desejo: as demais a declaração. E como
a natureza em um O deu ao desejo a figura da eternidade, e a arte em outro
O deu à eternidade a figura do desejo, não há desejo,
se é grande, que na tardança e duração não
tenha muito de eterno.

Os desejos da Virgem Santíssima, que todos eram: Oh! quando chegará
aquele dia! Oh! quando chegará aquela ditosa hora, em que veja com
meus olhos e em meus braços ao Filho de Deus e meu! Oh! quando? Oh!
quando? Oh! quando? Estes desejos da Senhora começaram na conceição
e acabaram no parto. Mas, desejos que começaram e acabaram? Desejos
que tiveram princípio e fim? Como podiam ser eternos? Como podia igualar
a duração de uma eternidade o espaço que foi somente
de nove meses? Entre a conceição e o parto não meteu
o anjo mais que um et ecce concipies et paries. Mas não é coisa
nova nesta mesma embaixada trocar a Senhora alguma palavra do anjo em outra.
Assim como trocou o Eva em Ave, assim trocou o et em o. E reduzidos os nove
meses ao círculo perfeito deste O, não é muito que fossem
eternos. O mesmo et, sem mudança, se não diz toda a eternidade,
diz parte dela, e na eternidade não há parte que não
seja eterna. No et do anjo começaram a ser eternos os desejos, que
também então começaram a ser; e no O tão continuado
e repetido da Senhora, acabaram de cerrar o círculo da sua eternidade.
Nem é contra a extensão natural da eternidade a limitação
do tempo de nove meses, porque não devemos conceder menos à
capacidade do coração da Senhora do que à do ventre santíssimo.
A maior capacidade que criou a natureza é a do coração
humano; e se o ventre de Maria foi capaz de encerrar o imenso, por que não
seria capaz seu coração de estreitar o eterno? O eterno e o
temporal são tão opostos como a eternidade e o tempo. A eternidade
não conta dias nem meses; o tempo sim, que por isso contou nove desde
a conceição até o parto da Virgem, a quem S. João
Damasceno chamou: Officina miraculorum. E se nesta oficina miraculosa o eterno
se pode fazer temporal, o tempo por que se não poderia fazer eterno?

Naquela famosa carroça, que descreve o profeta Ezequiel, na qual ia
ou era levado Deus, o artifício das rodas era admirável, porque
dentro de uma roda estava ou se revolvia outra roda: Rota in medio rotae (11).
E que duas rodas eram estas? Uma era a roda do tempo, e a outra a roda da
eternidade, diz Santo Ambrósio: Rota in medio rotae, veluti vita intra
vitam, quod in hac vita corporis, vitae volvatur usus aeternae. A roda do
tempo é pequena e breve; a roda da eternidade é grandíssima
e amplíssima, e, contudo, a roda do tempo encerra e revolve dentro
em si a roda da eternidade, porque, qual for a vida temporal de cada um, tal
será a eterna, diz o santo. De maneira que a maravilha destas duas
rodas era que, sendo a eternidade tão grande e tão imensa, a
roda da eternidade se encerrava dentro da roda do tempo. Agora pergunto eu:
e qual era a carroça de Deus, que sobre estas rodas se movia? Não
só era a Virgem Santíssima, como alegorizam os Santos Padres,
mas era a mesma Virgem, sinaladamente no espaço dos nove meses que
teve a Deus em suas entranhas. Assim como o que vai ou é levado em
uma carroça não dá passo nem tem outro movimento senão
o da carroça, assim o filho, enquanto está nas entranhas da
mãe, não se move ou muda de lugar senão quando se move
a mesma mãe, e deste modo se houve ou andou Cristo em todos os nove
meses que se contaram desde a sua conceição até o seu
nascimento. Depois de concebido partiu logo às montanhas de Judéia
a santificar o seu precursor, das montanhas tornou para Nazaré, de
Nazaré foi a Belém, e não só nestas jornadas mais
largas, mas em todos seus movimentos, nenhum passo deu a Majestade humanada,
que não fosse na mesma carroça real, que por isso se chamava
sua, como própria da pessoa do Verbo. E como esta carroça de
Deus representava a Mãe do mesmo Deus, em todo aquele tempo que o trouxe
dentro em si, por isso as rodas sobre que se movia eram fabricadas e travadas
com tal artifício, que dentro da roda do tempo se revolvia a roda da
eternidade, para significar que os dias e meses que passaram desde a conceição
até o parto, posto que parecessem breves na duração,
eram, no desejo, eternos.

VI

E se me perguntarem os filósofos, como podia o desejo fazer eternos
aqueles dias, sendo de tão poucos meses, respondo que o modo foi, e
a razão é porque os desejos da Senhora e os OO dos mesmos desejos
— que também são rodas — unidos e acrescentados
à roda do tempo, posto que o tempo fosse finito, eles o multiplicavam
infinitamente. Assim o disse Davi, falando da mesma carroça de Deus:
Currus Dei decem millibus multiplex (12). O caldeu lê: centum millibus;
Santo Agostinho: millies millibus; S. Jerônimo: innumerabilis; Novatiano:
infinitus, imensus. Quer dizer que o número na carroça de Deus
se multiplica a milhares, a dezenas de milhares, a centenas de milhares, a
contos e milhões de milhares; em suma, que chega a ser inumerável,
infinito, imenso. Não se poderá declarar o que digo nem com
melhor comparação nem com mais apropriado exemplo que este da
multiplicação da aritmética: Decem, centum, millies millibus
multiplex. Sabeis como eram os OO dos desejos da Senhora nos dias, nas horas,
nos momentos de todos aqueles meses da expectação do sagrado
parto, em que, depois de concebido o Filho de Deus em suas entranhas, suspirava
pelo ver nascido? Eram os OO dos desejos da Senhora na multiplicação
do tempo como as cifras da aritmética, que também são
OO. Ajunta-se a cifra ao número, e que faz? A primeira cifra multiplica
dez, a segunda cento, a terceira mil, e se chegar a vinte e quatro cifras
quantas são as horas do dia, multiplicam tantos milhares sobre milhares,
e milhões sobre milhões que excedem a capacidade de toda a compreensão
humana. Perguntam curiosamente os matemáticos, se desde o centro da
terra até o céu estivesse todo este mundo cheio de areia miudíssima,
quanto seria o número daqueles grãos de areia? Esta questão
excitou já antigamente Arquimedes, ainda mais estendida, e não
é dificultosa de resolver, porque medida primeiro geométrica,
mente a capacidade ou côncavo do céu da lua, logo, por demonstração
aritmética, se colhe com certeza quanto seria o número das areias
que o podem encher. Mas, reduzido este mesmo número inumerável
a figuras aritméticas, parece coisa digna de admiração
que todo ele somado se venha a resumir em uma unidade e trinta e duas cifras
somente. Passemos agora dos OO destas cifras aos OO dos desejos da Senhora.

Os OO dos desejos da Virgem Santíssima, no espaço daqueles
nove meses, não se hão de contar por dias, nem por horas, nem
por minutos, senão por instantes, porque não houve instante
em todo este tempo, nem de dia nem de noite, em que no coração
da Senhora se não estivessem multiplicando os mesmos OO, suspirando
e anelando sempre por aquela hora, que tanto mais tardava e se alongava, quanto
era mais desejada. E digo nem de dia nem de noite, porque ainda que o brevíssimo
sono dava suas tréguas aos sentidos, o coração, que não
se podia apartar donde tinha o seu tesouro, como vela que sempre ardia, sempre
vigiava: Ego dormio, et cor meum vigilat (13). Pois, se os OO de trinta e
três cifras multiplicavam ou multiplicariam aquele número sem
conta, os de tantos e tão continuados instantes, que em cada parte
de tempo são infinitos, vede se o fariam eterno? A multiplicação
artificial das cifras — sem mudarem a figura, que sempre é o
mesmo O — consiste em que a segunda cifra excede proporcionalmente a
primeira, a terceira a segunda, a quarta a terceira, e assim as demais. E
a este mesmo medo se excederam e iam excedendo também os OO dos desejos
da Senhora, sendo sempre os seguintes maiores e mais intensos que os que tinham
precedido. A razão teológica e conatural deste argumento era
porque a cada desejo da Mãe de Deus correspondia novo aumento de graça,
a cada aumento de graça, maior amor do mesmo Filho, e ao maior amor,
maior e mais intenso desejo. Assim que, sendo os círculos dos primeiros
OO grandes, os que lhes iam sucedendo mais e mais sempre eram maiores. Dê-nos
aqui o exemplo a natureza, assim como até agora no-lo deu a arte.

Se acaso ou de indústria lançastes uma pedra ao mar sereno
e quieto, ao primeiro toque da água vistes alguma perturbação
nela; mas tanto que esta perturbação se sossegou, e a pedra
ficou dentro no mar, no mesmo ponto se formou nele um círculo perfeito,
e logo outro círculo maior, e, após este, outro e outros, todos
com a mesma proporção sucessiva, e todos mais estendidos sempre,
e de mais dilatada esfera. Este efeito maravilhoso celebra muito Sêneca,
no primeiro livro das suas questões naturais, e dele aprenderam os
filósofos o modo com que a voz e a luz se multiplicam e dilatam por
todo o ar. Mas, se a natureza, na multiplicação e extensão
destes círculos teve outro intento mais alto, sem dúvida foi
para nos declarar, com a propriedade desta comparação, o modo
com que os OO dos desejos da Senhora, ao passo com que se multiplicavam, juntamente
se estendiam. A Virgem Maria era o mar, que isto quer dizer Maria: a pedra
era o Verbo encarnado; Cristo: Petra autem erat Christus(14); o primeiro toque
da pedra no mar foi quando o anjo, na embaixada à Virgem, lhe tocou
em que havia de ser Mãe, com bênção sobre todas
as mulheres: Benedicta tu inter mulieres (Lc. 1,19). E que sucedeu então?
Duas coisas notáveis. A primeira, que a serenidade daquele mar puríssimo
se turbou um pouco: Turbata est in sermone ejus (15); a segunda que, sossegada
esta perturbação: Ne timeas Maria (16), no mesmo ponto em que
a Senhora disse: Fiat mihi secundum verbum tuum (17), e a pedra desceu a seu
centro, logo os círculos, que eram os OO dos desejos da Senhora, se
começaram a formar e crescer no seu coração de tal sorte,
que sempre os que se iam sucedendo e multiplicando, à medida do amor,
que também crescia, eram mais crescidos também, e de maior e
mais estendida esfera.

VII

Agora vejamos estes círculos ou estes OO do desejo, unidos ao círculo
ou à roda do tempo, que efeitos causaram nele? Os efeitos foram que,
sendo o período da expectação do parto tão breve
como de nove meses, o fizeram eterno. E por que ou como? Porque cresceu o
desejo à proporção do amor, e o tempo à proporção
do desejo. Não me creiais a mim, senão aos dois maiores doutores
da Igreja, Nazianzeno, entre os gregos, e Agostinho, entre os latinos. S.
Gregório Nazianzeno, com prefação de que afirma uma grande
verdade, diz que um só dia de ardente e ansioso desejo é igual
a todo o tempo a que se pode estender a vida humana: Profecto vel unicus dies
totius vitae humanae instar est desiderio laborantibus. A duração
que as Escrituras dão comumente à vida humana são cem
anos; e se cada dia de desejos intensos se mede por cem anos de duração,
e a cada dez dias respondem dez séculos, que são mil anos, vede
quantos milhares sobre milhares se podiam encerrar no círculo de nove
meses? E se isto afirma com tanta asseveração Nazianzeno, por
antonomásia o Teólogo, sem determinar objeto nem sujeito, que
seria se supusesse que o objeto desejado era Deus, e o sujeito que desejava,
o coração da Mãe de Deus? Por isso Santo Agostinho remeteu
toda a questão a Deus, como Senhor dos tempos e autor dos desejos.
E diz que travou Deus o tempo com o desejo reciprocamente de tal sorte que,
dilatando o tempo, estende o desejo, e estendendo o desejo, dilata o tempo:
Deus, dilatando, extendit desiderium. Sendo, pois, os OO dos desejos da Senhora
uns círculos tão estendidos, como vimos, bem se infere quão
dilatados seriam neles os círculos do tempo. Tão dilatados que
a roda do tempo pôde compreender em si a roda da eternidade: Et rota
in medio rotae. Mas para que é recorrer a argumentos de doutores, se
temos no próprio caso o testemunho expresso da mesma Senhora do O.
E quando deu a Senhora este seu testemunho, e com que palavras? Com as mais
adequadas ao seu pensamento, e as mais bem medidas com os seus desejos. Disse
que os seus desejos eram como o seu desejado: Dilectus meus totus desiderabilis;
dilectus meus totus desideria (Cânt. 5, 16): O meu amado é todo
para desejar, e os meus desejos são como todo ele. — Assim o
traslada e interpreta a versão caldaica. E se os desejos da Senhora
se mediam totalmente com o seu desejado, e o desejado era imenso, infinito,
eterno, vede se seriam também eternos os seus desejos?

Finalmente, para que não pareça encarecimento o que digo, deixai-me
abater o discurso, para melhor o provar, e ouvi como os desejos de quem desejava
muito menos, só por serem do mesmo desejado, foram também eternos.
Quando Jacó, despedindo-se de seus filhos na hora da morte, lhes lançou
a bênção — a qual juntamente era bênção
e profecia — o último termo que sinalou a todas as felicidades
que lhes prometia foi a vinda do Messias, a quem chama o desejo dos montes
eternos: Donec veniret desiderium collium aeternorum (18). Grandes e misteriosas
palavras! Chama Jacó ao Messias não o desejado, senão
o desejo, porque havia de ser desejado tão singular e unicamente, que
os desejos de todas as outras coisas, em comparação deste desejo,
nem eram, nem mereciam nome de desejos. Mas por que lhe não chama desejo
dos homens, senão desejo dos montes e dos outeiros: Desiderium collium?
Porventura porque até as criaturas insensíveis, sem uso de razão,
nem conhecimento de tanto bem, o haviam de desejar a seu modo e suspirar por
ele. Assim explicam alguns este lugar, com a energia daquela mesma figura
com que disse o poeta: Ipsae te, Tytire, pinus, ipsi te fontes, ipsa haec
arbusta vocabant. Porém Jacó, no verdadeiro sentido em que falava,
entendeu por montes e outeiros os patriarcas e profetas, assim passados como
futuros, nos quais só se conservava a fé explícita de
que o Messias havia de ser Filho de Deus. E por isso a esposa, falando da
mesma vinda do Messias, dizia: Ecce iste veniet saliens in montibus, transiliens
colles (19). E chamam-se os patriarcas e profetas montes e outeiros, porque,
assim como os montes e outeiros se levantam sobre os vales, e, extremando-se
da outra terra, se avizinham mais ao céu, assim os patriarcas e profetas,
pela eminência da dignidade, da santidade e do conhecimento de Deus,
em respeito do outro povo, mal disciplinado e rude, e incapaz de tão
altos mistérios, eram os montes e outeiros do mundo. Mas agora entra
a dúvida, em que todos, creio, tendes já reparado, e é
por que lhes chama eternos: Desiderium collium aeternorum? Os patriarcas e
profetas, ainda que lhes demos a antigüidade, desde o primeiro de todos,
que foi Adão, de Adão até a morte de Jacó se passaram
dois mil anos; e se a continuarmos depois de Jacó, desde a morte de
Jacó até a vinda do Messias, passaram outros dois mil. Quanto
mais que nesta segunda idade as vidas dos homens, por mais patriarcas e profetas
que fossem, eram tão breves como as nossas. Pois, se estes montes e
outeiros caíam, e se sepultavam, e se desfaziam em cinzas em tão
breve tempo, como lhes chama Jacó eternos: Desiderium collium aeternorum?
Na palavra desiderium disse Jacó o porquê. Não vedes que
o desejo desses patriarcas e profetas, em que viveram, todo era suspirar pela
vinda do Messias, todo era clamar ao céu e a Deus, que acabasse já
de vir: Donec veniret? O mesmo Jacó dizia: Salutare tuum expectabo
(20); Moisés: Mitte quem missurus est (21); Davi: Ostende nobis, Domine,
misericordiam tuam, et salutare tuum da nobis (22); Isaías: Rorate
caeli desuper, et nubes pluant justum; aperiatur terra, et germinet salvatorem(23).
E como os desejos dos patriarcas eram tão intensos, e a tardança
do bem desejado tão dilatada, ainda que o tempo das vidas fosse tão
breve, a dilação dos desejos o fazia eterno. Eram grandes, eram
santos, eram eminentíssimos nas pessoas, mas muito mais se estendia
neles o tempo do que os levantava a dignidade: a dignidade os fazia montes,
e o desejo, eternos: Desiderium collium aeternorum.

Nem mais nem menos tomou estas medidas Davi, a quem os desejos e o desejado
tocavam de mais perto: Cogitavi dies antiquos, et annos aeternos in mente
habui (24). Quando considero a antigüidade dos patriarcas e profetas
— assim entendem este lugar os mais graves expositores — quando
considero os tempos antigos, a tradição dos patriarcas e a fé
dos profetas, aqueles homens tão alumiados de Deus, que desde então
esperavam e desejavam o que eu hoje só desejo e espero, os dias, no
meu entendimento, são anos, e os anos, eternidades: Cogitavi dies antiquos,
et annos aeternos in mente habui. Ainda tem maior mistério a distinção
e repartição destes tempos. A Adão revelou-lhe Deus que
se havia de fazer homem, mas não disse como, nem de quem; a Abraão
revelou-lhe que havia de ser da sua descendência e da sua nação;
a Davi, que havia de ser da sua casa e da sua família. E quanto mais
de perto tocava este bem aos homens, tanto mais se excitava neles o desejo,
e tanto mais crescia, com o desejo, a dilação. Na antigüidade
remotíssima de Adão os momentos eram dias; na menos remota de
Abraão, os dias eram anos; mas na mais próxima, e já
vizinha, de Davi, os anos eram eternidades: Et annos aeternos in mente habui.
Tudo isto sucedia segundo aquela regra natural, que quanto o bem desejado
está mais vizinho, tanto é maior o desejo. Bem assim como a
pedra no ar, que quanto mais se chega ao centro, tanto com maior velocidade
se move: Desiderium acuit absentis vicinitas, disse com verdadeira sentença
o Cômico (25). E se esta vizinhança já em Davi fazia do
tempo eternidades, só porque sabia Davi que havia de nascer em sua
casa, que seria no coração da Virgem Santíssima, que
já o tinha concebido em suas entranhas? Os dois que avaliaram estes
desejos por eternos foram nomeadamente Davi e Jacó, os mesmos dois
de que o anjo anunciou havia Cristo de ser herdeiro: Dabit illi Dominus Deus
sedem David patris ejus, et regnabit in domo Jacob in aeternum (26). E se
Jacó e Davi de tão longe reconheciam esta eternidade, como a
não compreenderia o coração da Senhora dentro nos OO
dos seus desejos, tanto mais intensos quantos mais vizinhos, e tanto mais
dilatados quanto mais intensos? Um patriarca dizia: O Sapientia! Outro suspirava:
O Adonay! Outro clamava: O Radix Jesse! Os demais: O Clavis David! O Oriens!
O Rex Gentium! O Emmanuel! Mas nenhum disse, nem podia dizer: Ó Filho!
E se os OO daqueles desejos faziam uns círculos tão dilatados,
que eram eternos: — Desiderium collium aeternorum, et annos aeternos
in mente habui (27) — que seriam os OO daquele coração
e daquela Mãe, que o tinha concebido em suas entranhas e o havia de
ver nascido em seus braços: Ecce concipies in utero, et panes Filium.

VIII

Certo estou já que não haverá quem duvide que os desejos
da Senhora foram eternos. O que só receio, pelo contrário, é
que não falte quem ponha dúvida a serem desejos. O bem —
replicará algum filósofo — o bem, que é o objeto
da vontade, assim como tem diferentes tempos, assim causa na mesma vontade
diferentes afetos. Porque o bem, ou é presente, ou passado, ou futuro:
se é presente, causa gosto; se é passado, causa saudade; se
é futuro, causa desejo. E como o bem, e sumo bem, objeto dos afetos
da Senhora, que era o Filho único de Deus e seu, não só
o tinha presente, senão mais que presente, porque o tinha dentro em
si mesma, parece que antes havia de causar em seu coração júbilos
de gosto, e não ânsias nem desejos. Quem discorre desta sorte
ainda não tem entendido que a presença, para ser presença,
há de ter alguma coisa de ausência. O objeto da vista, para se
poder ver, há de ser presente; se está pegado e unido à
mesma potência, é como se estivera ausente: há de estar
apartado dos olhos para se poder ver. Assim a presença, para ser presença,
não há de passar a ser íntima, nem há de estar
totalmente unida, senão, de algum modo, distante. É a queixa
de Narciso, com verdadeira razão, em história fabulosa: Quod
cupio mecum est: inopem me copia fecit: O que desejo, tenho-o em mim; e porque
o tenho em mim, careço do que tenho. — Pois, que remédio?
Votum in amante novum: o remédio é um desejo novo, qual nunca
desejou quem amasse. E que desejo é este? Velle quod amamus abesse:
desejar que o que amo se ausente e se aparte de mim. — Tal era o desejo
da Senhora, e tal a razão do seu desejo. Carecia do mesmo bem que tinha,
porque o tinha dentro em si. Por isso suspirava e desejava com ânsia
vê-lo já fora, e esta era a causa dos seus OO: Quis mihi det
te fratrem meum, ut inveniam te foris (28): Oh! quem me dera, irmão
e filho meu — irmão porque tomastes de mim a natureza humana,
e filho, porque eu vo-la dei — oh! quem me dera ver-vos já fora
de minhas entranhas, porque dentro delas, posto que vos tenho e possuo, não
vos posso gozar. Ut inveniam te; diz ainda com maior energia: Oh! quem me
dera achar-vos! Como se dissera a ansiosa Mãe, falando como mesmo Filho:
— No dia em que vos concebi, foi como se vos perdera e vos escondêsseis
de mim, porque vos não posso ver. Se me pergunta a fé, onde
estais: Ubi est Deus tuus (29)? respondo, com toda a certeza que dentro em
mim. Mas se mo perguntam os olhos, só lhes posso responder que ainda
vos busco e suspiro por vos achar: Ut inveniam te. E sendo esta a presença
do seu bem — ausente por muito presente — vede se tinha razão
a Senhora de o desejar com ânsias, e suspirar mais e mais por ele?

Deseja a Virgem Santíssima gozar a seu Filho ao medo com que o Padre
Eterno o goza, pois era Filho comum de ambos. Voai agora, se puderes tanto,
os que pusestes a dúvida. Descreve o evangelista S. João a geração
eterna do Verbo, e diz que o Filho estava junto ao Padre, ou perto dele: Et
Verbum erat apud Deum (30). Aquele apud, assim como foi escândalo aos
arianos, assim tem sido reparo altíssimo a todos os maiores teólogos.
Não diz Cristo, falando da mesma geração sua enquanto
Deus, que ele está no Padre, e o Padre nele: Ego in Patre, et Pater
in me est (Jo. 14,10)? Pois, por que não diz também S. João
que o Verbo estava no Padre, senão junto a ele: Et Verbum erat apud
Deum? E se estava junto a ele, onde estava, e qual era o seu lugar: Ubi erat
hoc Verbum? Quis erat locus ejus? — pergunta Ruperto. E responde que
o lugar onde estava o Verbo, era a distinção real com que a
pessoa do Padre se distingue do Filho, e a pessoa do Filho se distingue do
Padre: Verbum erat apud Deum, ut de personis non dubites, dum alteram audis
esse vel fuisse ad alteram. O mesmo tinha dito antes dele São Basílio
e depois de ambos o diz Santo Tomás. Mas ouçamos discorrer altamente
na matéria altíssima a Ricardo Vitorino. Deus é sumamente
bom e sumamente beato: enquanto sumamente bom, é suma e infinitamente
comunicável; logo, não se podia comunicar infinitamente senão
a quem também fosse Deus, e este é o Filho. Enquanto sumamente
beato, não podia ser ou estar só, porque não há
felicidade sem companhia: logo, quem lhe fizesse companhia nesta suma felicidade,
havia de ser distinto dele; e esta é a distinção real
que há entre o Filho e o Padre.

Neste segundo ponto, que é o nosso, as palavras de Ricardo são:
Felicitas summa non potest esse unius solitarii sine consortio; Deus autem
est sume felix, quare consortio debet habere. E se alguém replicar
que antes de haver mundo Deus estava só, porque somente havia Deus,
responde Tertuliano contra Praxéias, distinguindo uma soledade da outra,
tão profundamente como costuma: Deus ante omnia solus erat, ipse sibi,
et mundus, et locus, et omnia: solus autem, quia nihil extrinsecus praeter
illum. Caeterum ne tum quidem solus, habebat enim secum rationem suam, hanc
Graeci logon dicunt: Deus antes do mundo estava só, porque fora de
si não tinha produzido coisa alguma. Porém ainda então
não estava só, porque estava acompanhado do Verbo, o qual tinha
consigo. Notai muito a palavra habebat secum. De maneira que na natureza divina,
sumamente comunicável, não bastou que o Padre tivesse o Filho
em si: Ego in Patre; mas, para que o mesmo Padre não estivesse só,
e para que fosse sumamente beato, foi necessário que tivesse o Filho
também consigo: Habebat secum. E porque o não podia ter consigo,
senão distinguindo-se realmente uma Pessoa da outra, por isso foi juntamente
necessário que o Filho se distinguisse realmente do Padre, para que
deste modo, não só estivesse nele, senão junto a ele:
Et Verbum erat apud Deum. Estava o Filho no Padre pela identidade da natureza,
e estava com o Padre pela distinção das Pessoas. E esta mesma
diferença, que fazia no Pai a identidade e a distinção,
fazia na Mãe a conceição, e havia de fazer o parto, porque
depois da conceição tinha o Filho em si, e depois do parto havia-o
de ter consigo. E se na diferença daquele in e daquele apud: Ego in
Patre, et Verbum apud Deum, consistia a razão da suma felicidade em
Deus: Deus autem est summe felix, quare consortium debet habere, — vede
se era bastante motivo na Mãe do mesmo Deus, ainda que o tivesse em
si, desejar e desejar sumamente tê-lo junto a si?

Esta é a verdadeira filosofia, porque o bem presente pode causar desejos,
e porque a presença, para se lograr, há de ter alguma coisa
de ausência. O bem e sumo bem da Senhora, enquanto o tinha dentro em
si, por muito presente, fazia-o presença invisível; porém,
depois que o teve fora de si, e em seus braços, esta mesma distância,
que era parte de ausência, fez que o pudesse ver e gozar. E se é
propriedade do sumo bem visto, fazer as eternidades breves, que muito é
que não visto, nem se podendo ver, fizesse os dias eternos? Não
acabava de entender S. Gregório Nazianzeno como pudesse ser que os
anos que serviu Jacó por Raquel lhe parecessem poucos dias, e no cabo
achou e deu a verdadeira razão, a qual não era nem podia ser
outra, senão porque em todo aquele tempo gozava Jacó a vista
da mesma Raquel: Cujus rei haec fortasse causa erat, quia rei expetitae conspectu
fruebatur. Se enquanto a Senhora tinha o bendito fruto de seu ventre dentro
em si o pudera ver, então os nove meses lhe pareceriam breves dias;
mas como era bem e sumo bem, por muito presente, invisível, todo o
tempo em que o não via nem podia ver se lhe fazia eterno. E por isso
os seus desejos, como vimos, mudaram o et do anjo em O, consumando a eternidade,
que no mesmo et teve seu princípio: Ecce conscipies, et paries.

IX

Tenho acabado o sermão, e mais depressa porventura, ou mais de repente
do que imagináveis. Todos esperavam que eu me lembrasse de duas obrigações
mui precisas, das quais parece me esqueci totalmente, porque, tendo presente
a Majestade Sacrossanta do Diviníssimo Sacramento, e falando a um auditório
tão grave e tão numeroso, como se não olhasse para o
altar nem para a Igreja, nem do Sacramento disse uma só palavra, nem
ao auditório dei um só documento. Este é sem dúvida
o reparo que todos fizestes nos dois discursos que preguei. E eu agora acabo
de entender que nem percebestes bem o primeiro, nem aplicastes, como devíeis,
o segundo, porque o primeiro todo foi do Sacramento, encarecendo a sua maior
excelência, e o segundo todo foi ao auditório, dando-lhe a mais
importante doutrina.

No primeiro discurso, sobre as palavras: Ecce concipies in utero, não
provei eu que o ventre virginal da Senhora, pela conceição do
Verbo Encarnado, fora a circunferência da imensidade, e um círculo
que compreendeu o imenso? Pois isso mesmo é o que a onipotência
divina tornou a obrar por nosso amor no mistério altíssimo do
Sacramento, encerrando naquele círculo breve de pão toda a imensidade
de seu Ser divino e humano. Por que cuidais que instituiu a Igreja que a forma
da Hóstia consagrada fosse de figura circular, como foi desde seu princípio
e se continuou sempre? Alguns quiseram na Grécia que a figura da Hóstia
fosse quadrada, para significar os quatro elementos de que é composto
o corpo de Cristo, e as quatro partes do mundo, sobre que tem absoluto e supremo
domínio; mas prevaleceu a figura circular, não só porque
no círculo se representa também a redondeza do mundo, mas, como
diz São Gregório Papa, porque sendo figura que não tem
princípio nem fim, em nenhuma outra se exprime mais claramente a eternidade,
a infinidade e a imensidade divina, que naquele milagroso círculo está
encerrada. Assim se fez e assim se havia de fazer, porque muitos séculos
antes da Encarnação do Filho de Deus, já era tradição
dos doutores hebraicos, na exposição do salmo setenta e um,
que o sacrifício do Messias, como sacerdote segundo a ordem de Melquisedec,
havia de ser em pão, e esse pão formado em figura circular do
tamanho da palma de uma mão: Sacrificium Messiae fore placentam rotundam,
sicut est vola manus.

Mas, para que são tradições, onde temos o ritual de
Davi? Circuivi, et immolavi hostiam vociferationis (31). Fala Davi de um sacrifício
que ofereceu a Deus em ação de graças — como consta
de todo o salmo — e tal é o nosso sacrifício. Quando Cristo
o instituiu, deu primeiro graças: Gratias agens, fregit (32), e por
isso se chama Sacramento da Eucaristia, que quer dizer ação
de graças. E quais foram os ritos ou cerimônias deste sacrifício?
Três a coisas, diz o profeta, que só como profeta as podia antever
e imitar. Diz que fez um círculo à roda: circuivi; diz que ofereceu
a Hóstia: immolavi hostiam; e diz que a acompanhou, não com
preces e orações, senão com brados e vozes: vociferationis.
No sacrifício, com nome de Hóstia, antevia e significava a que
temos e adoramos presente; no círculo que fez em roda, a figura circular
de que havia de ser formada, em representação da imensidade
divina que encerra dentro em si; e nas vezes, não dearticuladas, senão
a gritos, que queria significar Davi? Parece que tinha diante dos olhos a
solenidade deste dia. Desde o dia de hoje por diante, até do nascimento
do Senhor, na Catedral de Toledo, onde começou esta instituição,
e em muitas outras igrejas da cristandade, a última clausura dos Ofícios
Divinos são vozes sem concerto nem harmonia, clamando todo o clero
e todo o povo a gritos oh! oh! oh! Isto é o que quer dizer propriamente
vociferationis. E como o diviníssimo Sacramento é a segunda
parte do mistério da Encarnação — por onde São
João Crisóstomo lhe chamou Encarnação mais estendida
— não é coisa alheia ao espírito de Davi, antes
mui própria dos seus fervorosos e arrebatados afetos, que à
vista daquela sagrada Hóstia, quando a sacrificava em figura, acompanhasse
o mesmo círculo que fazia exclamando ele e fazendo exclamar a todos
com OO de júbilos, com OO de aplausos, com OO de admirações:
Oh! Hóstia, em que o sacrificado é Deus! Oh! círculo,
que cercas e compreendes o incompreensível! Oh! invento maior da Sabedoria!
Oh! milagre sem igual da Onipotência! Oh! firmeza! Oh! excesso! Oh!
extremo do amor infinito para com os homens! Enfim, todos aqueles OO que a
Igreja resumiu em um só O: O sacrum convivium, in quo Christus sumitur!

Esta foi a alegoria do meu primeiro discurso, toda dirigida, Senhor, à
vossa divina e humana Majestade sacramentada. E a doutrina do segundo, em
afetos tão sobre-humanos do primeiro exemplar das virtudes, também
foi encaminhada toda à imitação dos ouvintes. Que ouvistes
sobre as segundas palavras do tema: Et paries Filium? Ouvistes que estando
a Virgem Santíssima toda cheia de Deus, ainda se não satisfizeram
seus desejos, desejando ter consigo ao que tinha em si, e acabar de ver com
seus olhos ao que estava escondido em suas entranhas. Ora, aplicai isto mesmo
a vós. Nada menos do que a Virgem concebeu dentro em si é o
que nós recebemos dentro em nós quando comungamos: ela ao Verbo
a quem deu carne, e nós ao Verbo encarnado; ela a todo Deus, tão
imenso como é, e nós a todo Deus com toda a sua imensidade.
E daqui se colhe quão grande injúria fará o mesmo Deus
quem depois de o ter todo em si, ainda deseja outra coisa. Qualquer outro
desejo do mundo neste caso, ou é declarada heresia, ou rematada loucura:
ou heresia, porque é não ter fé ou loucura, porque é
não ter juízo. Condenando Sêneca a ambição
monstruosa de Alexandre, disse com profunda sentença: Inventus est
qui aliquid concupisceret post omnia: Basta que se achou no mundo um homem
que, depois de ter tudo, ainda desejou mais alguma coisa? O tudo que possuía
e dominava Alexandre era nada: só Deus verdadeiramente é tudo.
E que tendo um cristão a Deus, e a todo Deus em si, ainda haja de desejar
os nadas do mundo? Ó cegos, ó enganados, ó perdidos,
ó infiéis desejos! Uma só coisa pode desejar lícita
e cristãmente quem chegou a ter a Deus em si. E qual é? Chegar
também a o ter consigo, que é o que desejava a Senhora.

Desiderium habens dissolvi, et esse cum Christo (Flp. 1,23): Uma só
coisa desejo — diz S. Paulo — que é desatar a minha alma
das cadeias do corpo, para estar com Cristo. — Tornai a dizer, apóstolo
sagrado, que vos não entendo. Vós não dizeis que nesta
mesma vida está Cristo em vós: Vivit vero in me Christus(33)?
Pois se Cristo está em vós nesta vida, para que quereis deixar
a vida para estar com Cristo? Porque vai muita diferença de estar Cristo
em mim, ou estar eu com ele. Estar Cristo em mim, é possuí-lo
sem o ver; estar eu com ele é vê-lo e gozá-lo. Esta é
a mesma razão por que a Virgem, tendo a seu Filho e a seu Deus dentro
em si, ainda desejava e suspirava, porque o desejava ter de modo que o pudesse
ver e gozar. E esta é também a razão — se temos
uso de razão — porque tendo a Cristo dentro em nós sacramentado
e invisível, esta mesma felicidade nos deve excitar o desejo da outra
maior e felicíssima, que é chegar a estar com ele, onde o vejamos
e gozemos por toda a eternidade. Para fartar a fome de todos os outros desejos,
basta termos a todo Deus em nós; mas desta mesma fome, já satisfeita,
há de nascer uma sede insaciável de se romperem aquelas nuvens,
e o vermos descobertamente na glória: Sitivit anima mea ad Deum fortem
vivum: satiabor cum apparuerit gloria tua (34). Estes hão de ser os
OO dos nossos desejos, como eram os do mesmo profeta: Quando veniam, et apparebo
ante faciem Dei (35)? Oh! quando virá aquele ditoso dia, em que apareça,
meu Deus, diante de vós? Oh! quando chegará aquela hora em que
vos veja face a face! Oh! quando se verá livre a minha alma do cárcere
deste corpo mortal, que lhe impede a vossa vista. — Quis me liberabit
de corpore mortis hujus? O Domine, libera animam meam; O Domine, salvum me
fac. O Domine, bene, prosperare (36)! Estes hão de ser os OO dos nossos
desejos, e não os do mundo, os da cobiça, os da ambição,
os do falso amor, que não são OO, senão ais: Heu mihi,
quia incolatus meus prolongatus est (37). Virgem Senhora do O, esta é
a graça que hoje vos devemos pedir todos, e a que eu, em nome de todos,
vos peço de todo o coração. Que reformeis todos nossos
desencaminhados desejos, que os aparteis de todas as coisas temporais e da
terra, que os levanteis ao céu, e os encaminheis à eternidade,
para que nela, por vossa intercessão, e pelos merecimentos infinitos
de vosso Santíssimo Filho, consigamos, com a sua vista sem fim, o fim
para que fomos criados. Amém.

(1) Eis conceberás no teu ventre, e parirás um filho (Lc. 1,31).

(2) Eis conceberás no teu ventre, e parirás um filho, e será
chamado Filho do Altíssimo (Lc. 1, 31 s).

(3) Eis aqui o homem que tem por nome o Oriente (Zac. 6,12).

(4) Eis que uma virgem conceberá, e parirá um filho, e será
chamado o seu nome Emanuel (Is. 7,14).

(5) Div. Bonavent. in Speculo

(6) Div. Bonavent. in Ps. 11, ad illud: in circuitu impii ambulant

(7) Pouco menor o fizeste que os anjos (Sl. 8, 6).

(8) Man. Astrom. Lib. 4.

(9) Eu te gerei do seio, antes do luzeiro (Sl. 109,3).

(10) Davi pois teve desejos, e disse: Oh! se algum me dera a beber água
da cisterna que há em Belém (2 Rs. 23,15).

(11) Uma roda no meio de outra roda (Ez. 1,16).

(12) O carro de Deus vai rodeado com muitas dezenas de milhares (Sl. 67,18).

(13) Eu durmo, e o meu coração vela (Cânt. 5,2).

(14) Esta pedra era Cristo (1 Cor. 10,4).

(15) Turbou-se do seu falar (Lc. 1,29).

(16) Não temas, Maria (Lc. 1,30).

(17) Faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc. 1,38).

(18) Até que venha o desejo dos outeiros eternos (Gên. 49,26).

(19) Ei-lo aí vem saltando sobre os montes, atravessando os outeiros
(Cânt. 2,8).

(20) A tua salvação esperarei (Gên. 49,18).

(21) Rogo-te que envies aquele que deves enviar (Êx. 4,13).

(22) Mostra-nos, Senhor, a tua misericórdia, e dá-nos o teu
Salvador (Sl. 84,8).

(23) Destilai, ó céus, lá dessas alturas o vosso orvalho,
e as nuvens chovam o justo; abra-se a terra, e brote o Salvador (Is. 45,8).

(24) Pensei nos dias antigos, e tive na mente os anos eternos (Sl. 76, 6).

(25) Terêncio, poeta cômico latino (190-159 a. C.).

(26) O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi, e reinará
eternamente na casa de Jacó (Lc. 1,32).

(27) Desejo dos outeiros eternos (Gên. 49,26). — Tive na mente
os anos eternos (Sl. 76, 6).

(28) Quem me fará tão ditosa que te tenha a ti por irmão,
para que eu te ache de fora (Cânt. 8. 1).

(29) Onde está o teu Deus (Sl. 41,11)?

(30) Verbo estava com Deus (Jo. 1,1).

(31) Dei voltas e sacrifiquei hóstia com vozes de júbilo (Sl.
26, 6).

(32) Dando graças, o partiu (1 Cor. 11,24).

(33) Mas Cristo é que vive em mim (Gal. 2, 20).

(34) A minha alma está ardendo de sede pelo Deus forte e vivo (Sl.
41,3): saciar-me-ei quando apare-cer a tua glória (Sl .16. 15).

(35) Quando virei e aparecerei diante da face de Deus (SI. 41.3)?

(36) Quem me livrará do corpo desta morte (Rom. 7,24)?
— Ó Senhor, livra a minha alma (SI. 114,4).
— Ó Senhor, salva-me, ó Senhor, faze que tenha prosperidade
(SI. 117, 25).

(37) Ai de mim, que o meu desterro se prolongou (Sl. 119,5)!

Sermão de S. Roque – 1652

Beati servi illi(1).

I

Ou a vida de S. Roque foi errada, ou todo o mundo é louco. Assim o
dizia eu, não há muitos dias, e quanto mais considero nos passos
que leva o mundo, e nos que seguiu S. Roque, tão encontrados, tanto
mais me confirmo nesta verdade. Vejamos o que fez S. Roque na eleição
da sua vida, e o que fizera no mundo em semelhante ocasião qualquer
outro da sua idade, da sua fortuna e do seu nascimento. Foi tão venturoso
S. Roque, que lhe faltaram seus pais antes de cumprir os vinte anos. Desgraça
se chamava isto antigamente, mas eu lhe chamei ventura, por me acomodar à
frase do tempo. Nenhuma coisa parece que sentem hoje mais os filhos que a
larga vida dos pais. Quem não quer esperar a herdá-los depois
da morte, como lhes pode desejar longa vida? Quase todos os títulos
que acabaram estes anos na nossa corte nasceram únicos, e morreram
gêmeos: primeiro os lograram juntamente os filhos do que os deixassem
os pais. Uma capa, diz o Espírito Santo, não pode cobrir a dois.
Mas querem os homens poder mais do que Deus sabe. Um se cobre com o direito
da capa, e outro com o avesso no mesmo tempo. Tão larga lhes parece
aos filhos a vida dos pais, que não se atrevem a lhes esperar pela
morte. Enfim, ou seja indecência nos filhos de hoje, ou fosse ventura
em S. Roque, ele se viu em vinte anos de idade sem sujeição
de filho, Senhor da cidade, e estado de Mompilher, que era de seus pais, herdeiro
de grande casa, e riquíssimos tesouros, que desde seus antepassados
se guardavam e acrescentavam nela.

Isto suposto, que resolução vos parece que tomaria no tal caso
aquele filho, ou que faria qualquer dos presentes, se nele se achara com sangue
ilustre, com estado, com vassalos, com tantas riquezas, e com tão poucos
anos? Parece-me a mim, julgando o que cuido pelo que vejo, que tomaríeis
uma de duas resoluções. Ou passados os lutos vos partiríeis
para a corte e mais sendo a corte a de Paris, aquele mundo abreviado –
para luzir, para ostentar, para competir em galas, em aparatos, em grandezas,
e juntamente para assistir, para servir e para merecer diante do rei, e por
esta via alcançar novos acrescentamentos à casa e à pessoa.
Esta era a resolução mais viva, e mais própria daquela
idade. Mas, se o vosso juízo fosse mais assentado, se vencesse na madureza
os anos, e se aconselhasse ou se deixasse aconselhar sisudamente, julgaria
eu pelo contrário que, renunciando pensamentos de corte, como mar turbado,
inquieto, e em nenhum tempo seguro, vos deixaríeis ficar no vosso estado,
conservando nele melhor, e a menos custo, a autoridade, gozando com descanso
o que vossos avós com trabalho vos tinham ganhado, e governando em
paz e quietação vossos vassalos, sendo amado, servido e reverenciado
deles.

Não há dúvida que uma destas duas resoluções
tomaria qualquer dos presentes, cada um segundo o mais ou menos repouso do
seu juízo. Mas a Roque – e sendo francês nenhuma delas
lhe pareceu bem: seguiu muito diferente caminho. Manda vir diante de si seus
tesouros, abre-os e a primeira coisa que viu neles foram os corações
de todos seus antepassados. Contente de não achar também ali
o seu, chama os pobres de toda a cidade, troca com eles a fortuna, fá-los
ricos, e fica pobre. Já eu vou vendo que quem isto obra com as mãos,
muito maiores e mais altos pensamentos revolve no peito. Faz que venha logo
um notário, renuncia publicamente o Estado, e tudo o que nele tinha
e lhe podia pertencer; veste-se no hábito da Terceira Ordem de S. Francisco,
toma bordão e esclavina, e parte peregrino pelo mundo a buscar e a
servir só aquele grande Senhor, que em todo o lugar tem a sua corte,
porque está em todo o lugar. Isto que nenhum outro fizera fez S.Roque,
e por isso ele só, como dizia, é o sisudo, e o resto do mundo
o louco. Notai. Pudera S.Roque ir servir a el-rei na corte del-rei, e não
quis servir; pudera S.Roque mandar os seus vassalos na sua, e não quis
mandar: resolve-se a servir só a Deus, livre de todo o outro cuidado,
e com estas três resoluções conseguiu toda a felicidade,
não só da outra vida, senão também desta, que
é o que diz a proposta do nosso texto: Beati sunt servi illi. Todos
os homens, e mais os cortesãos, andam buscando a felicidade desta vida.
E que fazem para a alcançar? Todos ocupados em servir, e todos morrendo,
por mandar, e por isso nenhum acaba de achar a felicidade que busca. Quereis
conseguir a verdadeira felicidade, não só da outra, senão
também desta vida? Tomai as três resoluções de
S.Roque. Servir? Só a Deus. A homens? Nem servir, nem mandar. Nisto
consiste toda a prudência e felicidade humana, nisto consiste toda a
prudência e felicidade cristã. Se somos cristãos, havemos
de tratar a Deus; se somos homens, havemos de tratar com os homens. Pois,
que remédio para ter felicidade com os homens e para ter felicidade
com Deus? Imitar a S. Roque. Para ter felicidade com Deus, servir a Deus;
para ter felicidade com os homens, nem servir a homens, nem mandar homens.
Três pontos de prudência, três pontos de felicidade e três
pontos de sermão. A homens, nem servir, nem mandar: a Deus, e só
a Deus servir: Beati sunt servi illi.

II

A primeira resolução de S. Roque, como se fora mais que homem,
ou menos que homem, foi não querer servir a homens, nem mandar homens.
Não querer servir a homens, ainda que fossem reis, parece muita soberba:
não querer mandar homens, ainda que fossem vassalos, súditos,
e criados próprios, parece pouco valor. Mas nem o primeiro foi arrogância,
nem o segundo pusilanimidade: grande juízo, grande ânimo, grande
generosidade, sim. Obrou S. Roque como homem, como cristão, como santo.
E pois a mim me toca hoje declarar as razões que ele teve, e persuadir
a que tenha imitadores, ao mesmo santo peço se digne de assistir com
tal espírito ao meu discurso, que se não afaste muito das meus
pensamentos.

Primeiramente não quis S. Roque servir a homens, porque não
quis deixar de ser homem. Ao homem fê-lo Deus para mandar: aos brutos
para servir. E se os brutos se rebelaram contra Adão, e não
quiseram servir ao homem, sendo tão inferiores, triste e miserável
condição é haver um homem de servir a outro, sendo todos
iguais. A primeira vez que se profetizou neste mundo haver um homem de servir
a outros, foi com a nome de maldição. Assim fadou Noé
a seu neto Canaã, em castigo do pai e mais da filho. Ainda então
se não sabia no mundo que coisa era servir; então se começou
a entender a maldição pelo delito, e a miséria pelo castigo.
Meios homens chamou depois a poeta lírico aos que servem, e disse bem.
Toda a nobreza e excelência da homem consiste no livre alvedrio, e a
servir, se não é perder o alvedrio, é cativá-lo.
Razão teve logo S. Roque de não querer servir a homens, par
não deixar de ser homem.

De homens, sem lhes chamar mais que homens, fala Davi no Salmo sessenta e
cinco, e declara com um notável encarecimento, a que quase se padece
sem reparo pelo costume: Quoniam probasti nos, Deus, igne nos examinasti,
sicut examirtatur argentum. Induxisti nos in laqueum; posuisti tribulationes
in dorso nastro,’ imposuisti hamines super capita nostra(2): Quiseste, Senhor,
provar e experimentar em nós quanto pode suportar a pactencia e aturar
a constância humana, e a uns examinastes com fogo – como a Lourenço:
Igne nos exaininasti – a outros metestes em prisões e cadeias
como a Pedro e Paulo –: luduxisti nos in laqueum – a outros carregastes
de tribulações e trabalhos – como os outros mártires
e confessores –: Posuisti tribulationes in dorso nastro: e, sobretudo,
sujeitastes uns homens a outros homens, e pusestes a uns sobre a cabeçadas
outros: Imposuisti homines super capita nastro. Pois, a maior prova, a maior
experiência, o maior exame, e o maior encarecimento da paciência
e sofrimento humano, é pôr Deus uns homens sabre a cabeçadas
outras? Sim. Parque os que estão de cima são os que mandam,
os que estão debaixo são os que servem, e sendo as que servem
iguais aos outros por natureza, que estes os tragam sobre a cabeça,
e que eles as metam debaixo dos pés: Homines super capita nostra: nem
toda a penitência dos confessores iguala esta dor, nem todos os tormentos
dos mártires este martírio.

Mais diz o texto. Mas, antes que passemos avante, parece que por isto mesmo
havia S. Roque de querer servir a homens, ao menos como santo. Assim é,
e assim a fez a paciência e constância de S. Roque, padecendo,
fora da pátria, e dentro nela, e por mãos de seus próprios
vassalos, feridas, afrontas, falsos testemunhos, prisões e cárcere
perpétuo até a morte. Mas tudo isto qui-lo ele padecer por amor
de Deus, e não por servir aos homens. E fez muito bem, e com muito
maior razão do que temos visto. Torne agora o texto. Onde a nossa Vulgata
lê: Imposuisti homines super capita nostra, no original hebreu está:
Equitarefecisti homines super capita nostra: Fizestes, Senhor, para provar
a nossa paciência, que os homens andassem a cavalo sobre as nossas cabeças.
– Vede se vai muito de uma coisa à outra. De sorte que, aos miseráveis
que servem debaixo, não se contentam os que servem de cima de as pisar
com os seus pés, senão também com os dos cavalos: Equitarefecisti
bomines super capita nostra. Se me perguntarem, porém, onde podem suceder
tais casos, que homens tratem assim a homens, e a homens que as servem, respondo
que onde S. Roque não quis ir, nas cortes. Para inteligência
desta verdade – de que bastava por prova a experiência –
havemos de supor que nas cortes, por cristãs e cristianíssimas
que sejam, não basta só ter a graça do príncipe
supremo, se não se alcança também a dos que lhe assistem.
Fala não menos que da corte de Deus a evangelistaS. João no
seu Apocalipse, e saúda desta maneira aos bispos da Ásia, a
quem escreve: Gratia vobis, etpax ab eo, qui est, et qui erat, et qui venturus
esL et a septem spiritibus, qui in conspectu throni ejus sunt eta Jesu Christo,
qui est testisfidelis, primo genitus mortuorum, etprinceps regum terrae (3):
A graça e a paz de Deus Padre e dos sete espíritos, que assistem
ao seu trono, e a de Cristo Jesus, seu Filho primogênito e Príncipe
dos reis da terra, esteja convosco. – Parece-me que todos já
tendes reparado nos termos desta saudação e imprecação
do mais bem entendido de todos as apóstolos. Se deseja àqueles
prelados da sua diocese a graça de Deus Padre, supremo Senhor e Governador
de tudo, por que lhes pede também a dos ministros que assistem ao seu
trono; e se à graça do Padre ajunta também a de seu Filho
primogênito, a Príncipe dos reis da terra, porque põe
esta no terceiro lugar, e a dos ministros no segundo? Porque falava a Evangelista
da corte do Céu à semelhança das cortes do mundo. Não
basta ter a graça do rei e a graça do príncipe se não
tiverdes também a dos ministros que assistem ao trono. Bem sei eu quem
tem a graça do Pai e mais a do Filho; e se a seu desinteresse se não
contentara só com a graça, pode ser que as ministros que se
atravessam entre um e outro lha não deixaram em paz: Gratia vobis et
pax(4). Esta é a primeira suposição da guerra que padecem,
ou podem padecer nas cortes, ainda as homens que melhor servem, se têm
outros sobre si: Imposuisti homines super capita nostra(5).

Mas quais são os que as pisam, e não só com os seus
pés, senão com as dos seus cavalos: Equitarefecisti? É
certo que nao sao as reis, porque as pes reais não pisam nem magoam:
honram e autorizam. Por isso se lançam a seus pés os vassalos,
e quanto maiores e mais dignos, mais lhes metem debaixo dos pés as
cabeças. Lá disse Tertuliano que Minerva calçava na cabeça
a capacete: Minerva calceans galeam. Assim é o calçado dos reis.
Os seus sapatos não pisam, coroam. Quais são, logo, as que pisam
tão honradas cabeças, como aquelas entre as quais se contava
a de Davi, e não só com as seus pés, senão com
as dos seus cavalos: Equitare fecisti homines super capita nostra? Aqui entra
agora segunda e mais lastimosa suposição, e menos digna de se
crer, se não dissera Salomão, que a viu com seus olhos: Vidi
servos in equis, et principes ambulantes super terram (Ecl. 10,7): Vias servos
a cavalo, e as príncipes a pé. – Sem dúvida que
isto viu Salomão profeticamente, quando viu apeado a Rabaãa
seu filho, e a Jerabaãa seu servo entronizado. E em outros reinas,
quando acontece isto mesma? Bem é que a perguntemos, pois não
vemos na nassa esta desgraça, que bastara a corromper todas suas felicidades.
Acontece isto quando a príncipe, a quem toca ter as rédeas na
mão, por desídia e negligência, as larga e entrega ao
serva. Então é que a servo, montado a cavalo, vendo-se imposto
sobre as cabeças dos homens, não só as pisa a dois pés,
senão a quatro. Diga-o Mardoqueu debaixo de Amã, no reinado
de Assuera, e Daniel com as sátrapas no de Nabuca e Daria. Em tais
tempos, em vez de as homens servirem gloriosamente aos reis, são ignominiosamente
servos dos servos, e padecem sem lhes valer a cor do rosto – onde só
lhes faltam os ferretes a maldição de Canaã, que hoje
se cumpre nos catres e nos etíopes: Maledictus Chanaan, servus servorum
eritfratribus suis(6) – para que se veja se um espírito tão
generoso, como o de S. Roque, havia de sujeitar a sua cabeça, ou expô-la,
por nenhum preço, a semelhantes abatimentos.

Bem vejo que a sua qualidade e grandeza tinha altos fundamentos para esperar
na corte diferentes respeitos. Mas os meios, por onde estes se conservam,
ainda eram mais alheios da inteireza de seu espírito. Quis conservar
Davi na corte de el-rei Aquis o grande lugar que tinha na sua graça,
e que meio tomou para que os que estavam ao lado do mesmo rei o não
descompusessem, e ainda destruíssem? Já sabemos que se fingiu
doido, e para fazer mais pública a sua doidice, diz a História
Sagrada, que andava comas pés para cima e a cabeça para baixa.
Era habilidade e destreza em que Davi se tinha exercitada por joga, quando
pastorinho, coma maça de tantas forças e agilidade, e agora
se aproveitou dela para este disfarce, que todo o saber serve. Em suma, que,
sustentando-se e movendo-se sabre as mãos, andava com a cabeça
para baixa e os Pés para cima, e isto quer dizer: Ferebatur in manibus
suis(7) – texto que tanta dificuldade causou a Santo Agostinho e ninguém
depois dele, que eu saiba, o explicou até agora. Mas este é
o sentido própria e literal daquelas palavras. E o moral e polftico
de uma ação tão extraordinária qual será?
É que para um homem se conservar na corte e na graça dos reis,
como Davi se queria conservar na de el-rei Aquis, ameia mais proporcionado
e efetiva, e ainda forçosa, é andar às avessas. Os pés
para cima, e a cabeça para baixo, e, para não tomara Céu
com as mãos, trazer as mãos pela terra: Ferebatur in manibus
sais. E seria bem que um coração tão generoso, tão
inteiro e tão reto, como o de S. Roque, e um homem mais de quebrar
que torcer, se torcesse e abatesse a semelhantes indignidades? Não
há dúvida que seria pôr a mão no chão, como
pouco honrado, e ainda os pés no céu, como mau cristão.
Por isso não quis nada da corte, nem servir a homens, ainda que fossem
reis. Fora, fora, e muito longe.

III

Parece-me que o dito basta, senão para persuadir à imitação,
ao menos para provar a prudência e acertado juízo com que S.
Roque se resolveu a não servir a homens. A eleição porém,
de os não querer mandar, não digo só que haverá
muito poucos que a imitem, mas duvido que haja algum que a não estranhe,
e ainda condene. Tão natural é ao homem o desejo e apetite de
mandar homens. Diz o apóstolo S. Paulo que a mulher se salvará
pela geração dos filhos: Salvabitur autem – mulier –
pergenerationem filiorum (Tim. 2,15). E a explicação comum desta
sentença é que a primeira mulher, que foi Eva, se salvou pela
geração de um filho seu, que é Crista. Mas este gênero
de salvação não compete só à mulher, senão
igualmente ao homem, e tanto a Adão como a Eva. Logo, que salvação
é esta de que goza só a mulher, e não o homem pela geração
dos filhos? Direi. Em Eva houve duas condenações: uma à
morte e ao inferno, pelo pecado de que a salvou e livrou Crista – e
esta foi comum ao homem e à mulher – outra particular e própria
só da mulher, em que Deus a condenou a estar sujeita ao homem: Sub
viri potestate eris(8) – E desta segunda condenação se
salva e restitui a mulher pela geração dos filhos: Per generationem
filiorum. E porque, ou de que modo? Porque pela geração dos
filhos fica mãe, e ainda que como mulher está sujeita ao homem,
que é o marido, enquanto mãe pode mandar homens, que são
os filhos. Daqui vem que por linha direita de Eva, e por força da mesma
geração, nascem todos os homens inclinados a mandar homens.
Vede-o em Jacó e Esaú, ainda antes de nascidos. Lutavam um contra
o outro no ventre da mãe: e sobre que batalhavam? Sobre qual dos dois
havia de mandar, e o outro servir. Assim o declarou o mesmo Deus, quando sentenciou
a contenda respondendo à mãe – de quem foi consultado
– que o menor havia de ser o que mandasse, e o maior o que servisse:
Major serviet minori (Gên. 25,23).

Sendo, pois, o desejo de mandar no homem não só soberania da
natureza no seu primeiro estado, como em Adão, mas reparo e alívio
do segundo, como em Eva, e, nascendo o mesmo desejo, antes, sendo gerado conosco,
como em Jacó e Esaú, por que não quer mandar S. Roque?
O mesmo entendimento e alto juízo, com que não quis servir,
o obrigava a que quisesse mandar, porque é primeiro princípio
da política natural, como ensina Aristóteles, que aos mais bem
entendidos pertence o mandar, como aos que menos entendem o servir. Logo,
contra todos estes ditames da natureza e da razão parece que obrou
S. Roque, em demitir de si o mando e governo dos súditos, de que o
nascimento o fizera herdeiro, e o entendimento senhor. O não querer
servir a homens, seja embora prudente resolução, pelos motivos
que apontamos; mas o não querer mandar homens, e tais homens, que fundamentos
podia ter bastantes, não digo já, que aprovem uma tão
extraordinária ação, mas que racionalmente a não
estranhem, e ainda condenem? Bem creio que não ocorrerão facilmente
as razões à ambição e apetite cego com que se
governa o mundo, por isso tão mal governado. Respondo, porém,
e digo que, se S. Roque teve grandes razões para não servir
a homens, as mesmas, e muito maiores, teve para não querer mandar homens.
E por quê? Porque maior servidão é o mandá-los
que o servi-los.

Falando el-rei Antígono com o príncipe seu filho sobre a administração
e governo do reino, de que o havia de deixar por herdeiro, admirado o generoso
moço de tamanhas obrigações e encargos, refere Eliano
que lhe disse o pai: An non novisti, fili mi, regnum nostrum esse nobilem
servitutem? E ainda não sabias, filho meu, que o nosso reinar não
é outra coisa que uma servidão honrada? – Honrada disse,
e com grande juízo. Porque a servidão dos servos é servidão
sem honra, e por isso menor e menos pesada. Mas, sobre o peso da servidão,
haver de sustentar também o da honra, é muito maior sujeição
e muito mais pesada carga. É servir à fama e às bocas
dos homens, cujos gostos são tão vários e tão
estragados, que até o maná os enfastia. Se um homem não
pode servir a dois, como disse Cristo, como poderá servir a tantos
mil? A cada homem deu Deus um anjo da guarda, e não mais que um homem
a cada anjo: e se um anjo que move e governa com tanto concerto e ordem todo
o Céu das estrelas, não basta para guardar a um homem de si
mesmo, e governar ordenada e concertadamente a um homem, entre os outros,
como bastará um só homem para conter dentro das leis e manter
em justiça a tantos homens? Não sabe o que são homens
quem isto não considera e penetra; penetrou-o, porém, alta e
profundamente S. Roque na verdura dos anos, com o siso e madureza que não
vemos em tantas idades decrépitas.

Os filósofos antigos chamaram ao homem mundo pequeno; porém,
S. Gregório Nazianzeno, melhor filósofo que todos eles, e por
excelência o Teólogo, disse que o mundo comparado com o homem
é o pequeno, e o homem, em comparação do mundo, o mundo
grande: Mundum in parvo, magnum. – Não é o homem um mundo
pequeno que está dentro do mundo grande, mas é um mundo, e são
muitos mundos grandes, que estão dentro do pequeno. Baste por prova
o coração humano, que, sendo uma pequena parte do homem, excede
na capacidade a toda a grandeza e redondeza do mundo. Pois, se nenhum homem
pode ser capaz de governar toda esta máquina do mundo, que dificuldade
será haver de governar tantos homens, cada um maior que o mesmo mundo,
e mais dificultoso de temperar que todo ele? A demonstração
é manifesta. Porque nesta máquina do mundo, entrando também
nela o céu, as estrelas têm seu curso ordenado, que não
pervertem jamais; o soltem seus limites e trópicos, fora dos quais
não passa; o mar, com ser um monstro indômito, em chegando às
areias pára; as árvores onde as põem, não se mudam;
os peixes contentam-se com o mar, as aves com o ar, os outros animais com
a terra. Pelo contrário, o homem, monstro ou quimera de todos os elementos,
em nenhum lugar pára, com nenhuma fortuna se contenta, nenhuma ambição
nem apetite o farta: tudo perturba, tudo perverte, tudo excede, tudo confunde
e, como é maior que o mundo, não cabe nele. Grande exemplo no
mesmo mundo, tão cheio como hoje está, mas vazio e despovoado
com os filhos de Adão e Noé. A Adão deu-lhe Deus o império
sobre todo o mundo, sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais da terra,
e não pôde governar em paz dois homens, e esses irmãos,
sem que matasse ao outro. Noé governou todos os animais e conservou-se
pacificamente dentro em uma arca, e fora dela não pôde governar
três homens, sem que um o não descompusesse e afrontasse, sendo
todos três seus filhos. Vede se é mais pesada servidão
e mais dificultosa a de governar, e mandar homens que a de servir? Quem serve,
como não pode servir mais que a um, sujeita – se a uma só
vontade; mas quem manda, como há de governar a todos, há de
sujeitara si as vontades de todos, e essas não de filhos, em que é
natural a obediência e o amor, nem de irmãos entre si, em que
as qualidades são iguais e as naturezas semelhantes, mas de tantas
e tão diversas condições e inclinações,
como são neles os rostos e os intentos.

IV

Daqui se segue – o que ainda humanamente pesou não pouco no
juízo de S. Roque – que o que serve, por dura que seja a sua
servidão, sempre tem horas de alívio e descanso; o que manda,
nenhuma. Ut Sol stare nescit, ita tu Imperator: disse Pacato em um panegírico
ao imperador Teodósio Magno – Assim como o Sol nunca pára,
assim vós, ó grande imperador – e por isso grande. Fez
Deus ao Sol príncipe do mundo: Luminare majus, ut praeesset diei(9)
– e desde o dia em que lhe deu este ofício até hoje não
descansou um momento. Tão grande trabalho é ser sol, e tão
grande a sua sujeição, posto que em lugar tão alto. Uma
inquietação perpétua, um movimento contínuo, um
correr e rodear sempre, e dar mil voltas ao mundo sem descansar nem parar
jamais. Quando dizemos que o Sol se põe, é engano, porque então
se parte a governar os antípodas. Não vamos buscar a prova da
semelhança mais longe, pois a temos de casa, e nos nossos reis, mais
própria que em nenhum outro do mundo. Quando os vassalos dormem e descansam,
parece que um rei de Portugal faz o mesmo, depois do governo e trabalho de
todo o dia, e não é senão que passou aos antípodas.
Lá nada com o Pensamento e com o cuidado pela China, pelo Japão,
pelos remos do Idalcão, do Samori, do Mogor, pelo Cabo da Boa Esperança,
pelo do Comori, pelos Javas, pelos mares e costas da África, da Ásia
e da América, visitando armadas e fortalezas, compondo pazes, abrindo
comércios, e meditando sempre aumentos do reino de Deus e do seu, sem
outra quietação ou descanso mais que aparente aos olhos, porque
o Sol não tem verdadeiro acaso. O relógio, que é o substituto
do Sol na terra, não soa, nem se ouve por fora, senão a certos
tempos; mas nem por isso está ocioso ou quieto, sempre os pesos estão
a carregar, sempre as rodas estão a moer: e tais são os cuidados
do príncipe de dia e de noite. Para as súditos, que obedecem
e servem, há diferença de dias e noites, para o príncipe,
que governa e manda, sempre é dia, Assim dizia Jó dos seus cuidados:
Noctem verterunt ir diem(10).

Entre a Senhor que manda, e as súditos que servem, há a mesma
diferença que entre o coração e os sentidos. Dorme o
homem, e todos as sentidos descansam. Os olhos não vêem, os ouvidos
não ouvem, a língua não fala, e assim dos demais. Mas
se nesse mesmo tempo, a esse mesmo homem lhe puserdes a mão sobre a
peito, vereis como está batendo nele e palpitando a coração.
E se tornardes depois uma e muitas vezes, a qualquer hora, sempre o haveis
de achar no mesmo movimento. Pois, assentidos, iguais na baixeza aos das brutos,
dormindo a sono solto, e a coração princípio da vida,
e nobilíssima parte da homem, sempre velando, sem descansar jamais?
Sim que isso é ser coração. O coração da
república é quem a manda e governa. E quando a mesma república
lhe deu a soberania desse cuidado, depositou nele todos seus cuidados. Ele
há de cuidar sem descanso, para que todos descansem, e ele vigiar,
para que todos durmam. Ego dormia, et cor meum vigilat(11) – dizia Salomão
– e o leão, rei das animais, dorme com as olhos abertos. Vigiar
como a coração, quando todo a corpo dorme, é ser leão
entre as animais e Salomão entre as homens.

Muito me amnirou sempre na fábrica da leitado mesmo Salomão
que as travesseiras, em que havia de inclinar a cabeça, os fizesse
de aura: Reclinatorium aureum, ascensum purpureum (Cant 3,10): A subida de
púrpura, mas a cabeceira de aura. – Parece-se-me isto com a que
cuidam as rústicos, que as reis dormem em lençóis de
brocada. Travesseiras de ouro são ricas e preciosos, sim, mas muito
duros, muito frias, e muito desagasalhadas. Quanto melhor é uma manta
na Bussaca, au uma cortiça na Arrábida? Porém, Salomão,
com toda a sua sabedoria, não soube traçar à camadas
reis outra cabeceira mais branda, porque não era feita para conciliara
sana, senão para o inquietar. Assim dormia inquieta Faraó, sonhando
nas sete anos de fartura da seu reina, e nas sete da fome. Assim dormia inquieto
Nabucodonosor; sonhando na duração de sua monarquia, e das três
que lhe haviam de suceder. E até José, a quem Deus ia criando
para mandar e ser príncipe, enquanto as lavradores seus irmãos
repousavam, ele, senda de menos anos, não podia dormir quieto. Lá
andava sonhando com as paveias e com as estrelas, e revolvendo na pensamento
a Céu e mais a terra. A púrpura podem-na despir os príncipes
quando se deitam, mas as cuidados que as desvelam não podem. Quando
a Cristo, no pretório de Pilatos, o fizeram representar figura de rei,
coroaram-no de espinhos e vestiram-no de púrpura. E notou advertidamente
S. Pascásio, que a púrpura tornaramlha a despir, mas a coroa
de espinhos nunca a largou da cabeça: Porro spinas, quas capite gestavit,
non mutavit, nec alicubi transposuit. As espinhas são os cuidados,
como lhes chamou o mesmo Cristo, e a quem é rei, ou o representa no
mundo, sempre estas espinhas lhe estão picando a cabeça, sempre
lhe estão roendo os pensamentos, sempre lhe estão inquietando
os sentidos, sem o deixar descansar nem dormir. Aos que servem não
há senhor tão tirano que Lhes não permita horas de descanso:
aos que mandam é tal a tirania do mesmo mandar, que se não tomam
por alívio os mesmos cuidados – como diz Tácito de Tibério
– nem hora, nem momento lhes consentem de quietação e
repouso.

Só se pode replicar contra o encarecido destes ditames – posto
que verdadeiros – com o desuso o desprezo deles, e com a singularidade
dos mesmos exemplos, tão raros no governo do mundo, como a obediência
das leis nos que têm o arbítrio delas. O ordinário é
tomar-se do mundo a parte só do poder, da majestade e da grandeza,
e deixar-se a do peso e dos cuidados, com pouca ou nenhuma atenção
mais que ao descanso, à delícia, ao regalo, e a todos os antojos
do apetite livre e poderoso; enfim, a igualar as indulgências da suprema
fortuna com os gostos prazeres da vida. Mas esta mesma réplica não
desfaz, antes confirma mais tudo que dissemos, porque se os que têm
mando fazem e padecem quanto o mesmo mando os obriga, dura e triste servidão
é a sua. E se o não fazem, nem o querem padecer, ainda é
mais triste e mais dura: Judicum durissimum his qui praesunt fie: (Sab. 6,
6): Não só duro, mas duríssimo – diz o Espírito
Santo – será o juízo de Deus sobre os que tiveram mando
neste mundo – porque de tudo o que fizeram e deixaram de fazer, se lhes
tomará estreitíssima conta, e muito particularmente dos seus
cuidados: Quoniam interrogabit opera vestra, ei cogitationes scrutabitur (12).
Dá conta da tua vida, em que empregaste todos teus cuidados, e dá.
conta das alheias, e de quanto padeceram por teus descuidos. Padeceram na
quietação, na fazenda, na honra, nas mesmas vidas, e, o que
é mais, na perdição das almas: e de tudo, e de todas,
tu que tiveste o mando sobre os homens, me hás de dar conta. Esta foi
a consideração com que Pepino em França, Raquísio
em Itália, Sigiberto em Inglaterra, Trebélio em Bulgária,
Henrique em Chipre, João em Armênia, Ludovico em Sicília,
Ramiro em Aragão, Veremundo em Castela, esta foi, digo, a consideração,
da qual fortissimamente convencidos estes e outros príncipes, ou sendo
reis renunciaram as coroas, ou sendo filhos de reis as heranças, elegendo
antes ser súditos, e servir em uma religião, que mandar e ser
senhores no mundo. E posto que o estado de S. Roque não era tão
grande, foi, contudo, igual a sua razão de estado. Renunciou o seu
estado por não dar conta dele e, para tratar só da salvação
de um homem, não quis mandar homens.

V

Temos visto quão grande servidão é o servir a homens,
e quanto maior servidão o mandar homens; demos agora uma volta ao discurso,
e vejamos da parte dos mesmos homens, ou servidos ou mandados, qual é
o pago que eles costumam dar, tanto a quem bem os serve, como a quem bem os
manda. Dois homens houve no mundo, um que melhor todos soube servir, e outro
que melhor que todos soube mandar. O que melhor soube servir foi Davi, o que
melhor soube mandar foi Moisés. E que sucedeu a um e a outro? Ambos
foram os dois maiores exemplos, e ambos os dois maiores desenganos do que
é servir a homens, ou mandar homens.

Foi chamado Davi a palácio, pela boa informação que
teve el-rei Saul de suas excelentes partes, e porque o rei padecia graves
melancolias, causadas de um mau espírito que lhe entrava no corpo,
era tal a arte e suavidade com que Davi tocava uma harpa, que não só
aliviava Saul das suas tristezas, mas até o mesmo demônio, inimigo
de toda a consonância, o largava. E como pagou Saul estes exorcismos
tão doces? Com deitar mão a uma lança, depois de se ver
livre do demônio, e fazer tiro com ela a Davi, para o pregar a uma parede.
Assim pagava um rei a quem lhe tirava o demônio do corpo, e pode ser,
pode ser que no mesmo tempo se visse mais medrado em seu serviço quem
lhe metesse o demônio em casa! Não quebrou a harpa Davi com o
primeiro desengano, porque ainda depois tornou a servir a Saul com ela. Retirou-se,
porém, para a sua cabana, lançando uma bênção
ao paço – como pudera muitas maldições –
e, restituído à soledade do campo e à inocência
das suas ovelhas, diz a História Sagrada que jogava com os leões
como com cordeiros. Cum leonibus lusit quasi cum agnis (Eclo. 47, 3). Também
os leões eram feras coroadas, mas não tinha medo deles porque
não eram homens. Era tão homem Davi já neste tempo, não
contando ainda vinte anos, que ele só se atreveu a sair contra o gigante,
de quem os exércitos de Israel tremiam. Vendo Saul uma tão valente
determinação, perguntou que moço era aquele. A quem não
fará lástima esta pergunta? Este moço, senhor, é
aquele que por fama vós mandaste pedir a seu pai; este aquele que vos
assistia todos os dias nas horas da tristeza; este o que tocava a harpa, este
o que vos recreava e aliviava o ânimo, este o que fazia fugir o demônio.
Não há mais que dezoito meses que falta de vossos olhos, e já
não o conheceis? É possível que tão depressa se
esquecem os príncipes e desconhecem a quem os serve? Pouco era ser
possível: é costume. Derruba, finalmente, Davi o gigante, corta-lhe
a cabeça, põem aos pés de Saul, e este, que foi o maior
triunfo da sua nação e a maior glória da sua pátria,
foi a sua maior desgraça para com o rei. Sete vezes lhe procurou Saul
tirar a vida, já por arte, já por traições, já
por violências públicas e declaradas, umas vezes seus ministros,
outras por sua própria pessoa, com gente armada, servindo as mesmas
batalhas em que o defendia, e as mesmas vitórias com que o honrava
de novos incentivos ao ódio. E Davi? Perseguido, fugitivo, desterrado,
banido, sempre leal, sempre fiel, sempre venerador do seu rei, e só
inimigo de seus inimigos, aos quais, perseguido, perseguia e fazia cruel guerra.
Sobretudo, estava Davi ungido por rei de Israel para suceder ao mesmo Saul,
e com licença de Deus para o matar, e tendo-o três vezes debaixo
da espada, três vezes lhe perdoou a vida, e lhe deixou a cabeça
e a coroa. E que a um vassalo, a quem Saul por tantos modos devia quanto tinha
e quanto era, e que, sobre tantas ofensas e sem-razões, o servia, amava,
venerava e guardava com tantos extremos de fineza, ele o aborrecesse e perseguisse
com tais excessos de ingratidão, de vingança, de raiva, de ódio?
Mas era homem Saul, ainda que rei, e assim pagam os homens a quem os serve.

Ao exemplo ou desengano do que melhor que todos soube servir, segue-se, e
não sei se com maior assombro, ode quem melhor que todos soube mandar.
Fez Deus a Moisés supremo governador, do seu povo, e não podem
os homens nem desejar, nem fingir algum modo de mandar nem mais útil,
nem mais grato, nem mais humano, nem ainda mais divino e mais digno de aplauso
e admiração em tudo que o de Moisés. Que podem desejar
os homens em quem os manda e governa? Um grande amor e zelo do bem público?
E Moisés amou e zelou com tal extremo o povo de Israel, ainda antes
de lhe estar encomendado, que mais quis ser afligido e padecer com ele no
cativeiro, que ser filho da filha de el-rei Faraó, como nota e encarece
S. Paulo. Que mais podem desejar? Que remedeie suas misérias, e os
alivie de seus trabalhos? E Moisés fê-lo tanto assim que os libertou
do Egito, e da duríssima servidão e tirânico jugo com
que eles e seus pais e avós, tantos anos havia estavam oprimidos, e
os passou ao domínio da Terra de Promissão, a mais abundante
e deliciosa do mundo. Que mais podem desejar? Riquezas? E Moisés, juntamente
com a liberdade, não só os fez sair com todos os seus gados
sem ficar deles no Egito nem uma unha, como diz o texto, mas carregados de
ouro, e de todas as jóias dos egípcios, em satisfação
do injusto serviço a que os tinham obrigado. Que mais podem desejar?
Vitória e vingança de seus inimigos, com segurança de
nunca mais lhes serem sujeitos? E tudo isso lhes deu logo Moisés, sepultando
Faraó e todos seus exércitos no fundo do Mar Vermelho, vencendo
os hebreus sem batalha, e triunfando sem armas, e despindo nas praias os corpos
que eles não tinham morto, para também levarem os despojos.
Isto é o quanto podiam desejar e fingir no pensamento. Vamos agora
ao que nem desejar podiam. Podiam desejar ser providos de todo o sustento,
e ainda de todo o regalo, sem despesa nem trabalho? Não podiam. E Moisés
para comer lhes deu o maná, em que estavam guisados ao gosto de cada
um todos os sabores, e para beber copiosas fontes de água puríssima,
que com a mesma penha, de que manavam, os iam seguindo. Podiam desejar que
de dia os não queimasse ou encalmasse o sol, e de noite não
ficassem em trevas e às escuras? Não podiam. E Moisés,
por meio de duas colunas prodigiosas, que pelo aros acompanhavam, de noite
os alumiava com uma que era de fogo, e de dia os defendia do sol com outra
que era de nuvem. Podiam desejar que, sendo três milhões de homens
de todas as idades, nenhum deles adoecesse, nem a estivesse enfermo? Não
podiam. E Moisés, com virtude superior a toda a natureza e fraqueza
humana, os conservava a todos sãos, e com inteira e robusta saúde:
Et non erat in tribubus eorum infirmus (13). Podiam desejar que o vestido
e calçado, em quarenta anos de caminho, não envelhecesse nem
se gastasse? Não podiam. E Moisés, com menos necessário
milagre – porque tinham as lãs e peles dos seus rebanhos –
com os mesmos vestidos e com o mesmo calçado com que tinham saído
do Egito, os levou até à Terra de Promissão, a cuja vista
lhes disse: Quedraginta annis per desertum non sunt atrita vestimenta vestra,
nec calceamenta pedum vestrorum consumpta (14). Finalmente, podiam desejar
que Moisés impusesse a conservação do mesmo povo a sua
própria salvação, e a vida temporal dos que governava
à sua própria bem-aventurança e vida eterna? Não
podiam. E contudo, quando Deus pelo pecado da idolatria quis acabar de urna
vez com o mesmo povo hebreu, e extingui-lo e tirá-lo do mundo para
sempre, prometendo a Moisés que o faria príncipe e senhor de
outra muito maior e melhor nação, foi tal o excesso de heróico
amor com que ele se opôs a esta resolução, que chegou
a dizer a Deus declaradamente que ou perdoasse ao povo, como lhe pedia, ou
senão que o riscasse a ele do seu livro: Aut dimitte eis hanc noxam,
dele me de librotuo quem scripsisti (Êx. 32, 31 c). Este livro, a que
se referia, é o livro em que estão escritos os predestinados
para a glória, o qual na Escritura se chama Liber Vitae, e quis Moisés
ser riscado dele – salva somente a graça – no caso em que
Deus não perdoasse ao seu povo. Como se dissera: Desde o dia em que
vós, Senhor, me obrigastes a aceitar o mando e governo que eu tanto
repugnava, como eu fiquei sendo a cabeça deste povo, e ele o corpo,
ele é eu, e eu sou ele, assim que o bem ou o mal há de ser comum
de ambos: se ele perecer, a sua perdição há de ser também
minha, e se eu me salvar, a minha salvação ha de ser também
sua. Pelo que, não há outro meio neste negócio senão
ou a ele perdoar-lhe, ou a mim condenar-me, porque nem a mesma glória
quero só para mim, sem o bem daqueles a quem igualmente amo. Disse
Moisés, e não teve Deus que responder senão perdoar,
gloriando-se de ter escolhido tal homem para cabeça e governador do
seu povo.

E com que graças, com que louvores, com que aplausos celebrariam aqueles
venturosos homens as finezas, os benefícios, os milagres, com que um
tal homem os tinha desde o princípio do seu governo libertado, defendido,
conservado, regalado, e com tantos extremos amado? Oh! assombro da fereza
e ingratidão humana! Oh! desengano mal conhecido sempre, e só
aqui experimentado, do que é mandar homens! O pago que aquele mesmo
povo deu a Moisés foram perpétuas murmurações,
perpétuas queixas, perpétuos clamores, perpétuos arrependimentos
e saudades do mesmo cativeiro de que os tinha libertado, e tais dissensões,
tais rebeliões, tais injúrias e afrontas, e tais perigos de
o apedrejarem e lhe porem as mãos, se se não acolhera no Tabernáculo,
é o mesmo Deus o escondera, que sendo o sofrimento e mansidão
de Moisés, por testemunho da mesma Escritura, a maior de todos os homens:
Erat enim Moyses vir mittissimus super omnes homines qui morabantur in terra
(15) não podendo já com o peso de sustentar aos ombros os mesmos
que trazia no coração, pediu finalmente a Deus que ou o descarregasse
do governo, ou, quando assim não quisesse, lhe tirasse a vida: Sin
aliter tibi videtur, obsecro ut interficias me (16). Eis aqui o que é
mandar homens, a quem nem os benefícios obrigam, nem os regalos abrandam,
nem as finezas enternecem, ne milagres sujeitam, nem pode haver quem os contente
e satisfaça.

Parece-me, senhores, que estes dois exemplos, de Davi servindo e de Moisés
mandando, não só têm provado a verdade do que eu dizia,
e aprovado a resolução S. Roque, mas desenganado a todo o entendimento,
por obsequioso ou ambicioso que seja, do que é servir a homens, ou
mandar, homens. Mas agora digo que nem o primeiro caso nem o segundo, por
mais que pareçam encarecidos, chegam a declarar de muito longe, nem
a pensão do servir, nem o perigo do mandar. Aparelhai nos entendimentos
a fé, porque sem ela não se pode crer, nem se poderá
imaginar o que de novo haveis de ouvir. Duas resoluções tomou
Deus acerca dos homens: a primeira de os mandar, a segunda de os servir. Antes
de Deus se fazer homem, mandava os homens como rei: Tu es ipse Rex meus et
Deus meus, qui mandas salutes Jacob (17). Depois de se fazer homem, veios
a homens, como ele mesmo disse: Non venit ministrari, sed ministrare (18).
E S. Paulo Formam servi accipiens (19). E que lhe sucedeu a Deus em um e outro
estado, quando mandou e quando serviu aos homens? Aqui pasma a mesma fé.
Quando os mandou, tiraram-lhe os reinos: quando os serviu, tiram-lhe a vida.
Que lhe tirassem a vida, todos o sabem: que lhe tirassem o reino, o mesmo
Deus o disse a Samuel: Nonte abjecerunt, Cid me, ne regnem super eos (20).
E se Deus, quando manda homens se descontentam dele, que lhe tiram o reino,
e se o mesmo Deus, quando serve a homens, lhe pagam de tal sorte que o põem
em uma cruz, e lhe tiram a vida, vede se são loucos todos os que querem
mandar homens, ou servir a homens, e quão sisudo e bem aconselhado
foi S. Roque em os não querer mandar nem servir.

Cuidam todos que S. Roque começou a ser advogado da peste quando no
fim da vida curava os apestados com o sinal da cruz, e é engano. Quando
S. Roque se benzeu de servir a homens e mandar homens, então é
que começou a ter império, não sobre uma, senão
sobre duas pestes: uma que é o mandar, outra que é o servir.
O servir e o mandar ambos começaram juntamente no domínio de
Membrot. Nele começou o império, e com ele a servidão.
Assim o notaS. Jerônimo: Quia primus hicfuit, qui alios sibi sei-vire
coe git. E este domínio de Membrot quando começou? Segundo a
mais certa cronologia, começou no ano de mil e novecentos e trinta
e dois da criação do mundo, que foi o mesmo ano em que nasceu
Abraão. Agora noto eu, e é coisa muito digna de se advertir,
que quando começou o mandar e o servir, então se encurtaram
as vidas dos homens, porque dali por diante, como consta da Sagrada Escritura,
raros foram os que chegaram a cem anos, e raríssimos os que os excederam.
De sorte que, antes de haver no mundo servir nem mandar, viviam os homens
oitocentos, novecentos e mais anos; porém, depois que estas duas pestes
entraram, depois que os homens começaram uns a mandar e outros a servir,
nenhum houve a quem a morte não tivesse as sete ou as oito partes da
vida. E, verdadeiramente, que se os trabalhos e os desgostos matam, não
é muito que o servir e o mandar sejam enfermidades mortais. Estas duas
pestes curou S. Roque em si, não querendo mandar nem servir a homens,
e também as pode curar em nós com seu exemplo, não para
que vivamos nesta vida muito tempo, mas para que a vivamos com descanso e
sem desgostos, que é a felicidade e bem-aventurança que nela
se pode só alcançar.

VI

A bem-aventurança da outra vida segurou-a S. Roque com a segunda melhor
parte da sua resolução, que foi servir só a Deus. Isto
não há mister discurso em prova, porque é fé.
Mas porque o servir a Deus e o servir aos homens tudo tem nome de servir,
vejamos somente quão grande foi a prudência de S. Roque em saber
distinguir esta equivocação, e quanta é a diferença
que há entre um e outro servir, para que todos os que servem e os que
mandam queiram antes servir a Deus, e só a Deus.

Os homens, quando mandam – e mais se têm o mando supremo –
ou seja, ingratidão natural ou soberania, nem estimam nem pagam os
serviços que se lhes fazem, como deveram, porque cuidam que tudo se
lhes deve. Pelo contrário, Deus, a quem devemos tudo o que temos e
tudo o que somos, nenhuma coisa manda, a cuja remuneração se
não obrigue como devedor. A Arca, em que se guardavam as Tábuas
da Lei, chama-se Arca foederis (Núm. 10, 33); Arca do contrato. E por
que do contrato, se era das leis? Porque, sendo Deus supremo Senhor, a quem
devemos obedecer em tudo, de tal maneira nos quis obrigar a fazer o que nos
manda, que juntamente se obrigou e fez devedor a si mesmo, de nos pagar o
que fizermos. O que fizermos, disse, e disse pouco. Não só está
obrigado Deus, pelo mesmo contrato, a nos pagar o que fizermos, senão
também o que não fizermos. Os homens nas suas leis, se matastes
ou furtastes, castigam-vos; mas, se não matais nem furtais, não
vos dão por isso nada. Não assim Deus. Não só
vos remunera quando fazeis o que vos manda fazer, senão também
quando não fazeis o que vos manda que não façais. Oh!
quão endividado se acharia Deus com S. Roque no dia de sua morte, crescendo
sempre mais e mais estas gloriosas dívidas em todos os empenhos de
sua vida! Não só deveu Deus a S. Roque o fazer tudo o que manda,
nem só lhe deveu o não fazer tudo o que proíbe, mas deveu-lhe
todas aquelas ações e finezas heróicas que, sem proibição
nem preceito, deixou o mesmo Deus livres aos que, desprezando tudo o mais,
a ele e só a ele quisessem servir.

Os homens quando pagam ou cuidam que pagamos serviços que lhes fizestes,
eles são os que os avaliam. O estilo de Deus em remunerar a quem o
serve, vede quão diferente é. Nós somos os que avaliamos,
e ele o que paga. Disse S. Pedro, em nome seu e dos outros pescadores que
seguiam a Cristo: Ecce nos reliquimus omnia, et secuti sumus te: quid ergo
erit nobis (Mt. 19, 27)? Senhor, nós deixamos tudo por vos seguir:
com que nos haveis de pagar? Parece que devia Cristo replicar ao excesso desta
avaliação e dizer: Se vós não deixastes mais que
um barco e uma rede, como dizeis que deixastes tudo? Mas tão fora esteve
o Senhor de fazer esta réplica que, dando por boa a avaliação,
lhes deu por paga daquele tudo o serem no juízo universal árbitros
de tudo: Cum sederit Filius hominis in sede majestatis suae, sedebitis ei
vos (21). E bastou isto? Não. Et omnis qui reliquerit domum, etc, centuplum
accipiet (Mt. 19,29): E a qualquer, que por mim deixar alguma coisa, pagarei
cento por um. – Avaliai por quão subido preço quiserdes
o que deixastes ou fizestes por mim, que a minha paga e a minha avaliação
desses mesmos serviços há de ser maior que a vossa, e cem vezes
maior. Comparaime agora a barca e as redes de S. Pedro com o que deixou S.
Roque, e julgai qual será a paga que tem recebido de Deus? Deixou a
pátria, deixou o descanso, deixou os tesouros, deixou o estado, e não
falo na diferença do seu nascimento comparado com o de S. Pedro, por
que esta é outra, e não pequena, que se usa e está introduzida
entre os homens, e não tem lugar em Deus.

Os homens, para fazer as mercês, olham para o nascimento de quem os
serviu: Deus só respeita e faz caso do merecimento e das ações
de cada um, e nenhum do nascimento. Isac quis dar a bênção
e o morgado a Esaú; Deus não quis que o levasse senão
Jacó, e por quê? Vamos ao caso, e achamos a razão. Esaú
nasceu primeiro que Jacó, porém, na luta que ambos tiveram no
ventre da mãe, Jacó lutou melhor que Esaú. O mesmo Esaú,
sendo competidor, o não pôde negar, e o confessou, dizendo: Supplantavit
enim me en altera vice (22). Lutou melhor Jacó que Esaú? Pois
essa foi a razão da diferença, nem há outra para com
Deus. Isac, como homem, para dar a bênção e o morgado,
teve respeito ao nascimento; Deus, como Deus, nem respeitou nem fez conta
do nascimento, senão só do maior valor e do merecimento. Se
os soldados da fortuna a querem ter boa, sirvam a Deus. Os nascimentos levarão
as comendas dos homens: as de Deus só para o merecimento as tem guardadas.
Por isso S. Roque, sendo de tão alto nascimento, o renunciou e não
fez caso dele, porque quis mais generosa e mais fidalgamente ser despachado
na corte da verdade e da justiça, pela nobreza e qualidade das obras,
que eram suas, e não pelas dos pais e avós, que são alheias.

Os homens, a quem os serve, medem-lhes os merecimentos pelos anos: Deus mede-os
pelos corações. Quando o profeta Samuel foi à casa de
Jessé para ungir em rei um de seus filhos, vendo a Eliab, que era o
mais velho e de galharda presença, julgou que o eleito por Deus sem
dúvida era aquele; mas Deus o desenganou logo, dizendo que ele não
olhava para os corpos nem para os anos, senão para os corações:
Homo videt ea quae parent, Dominus autem intuetur cor (23). Davi, o menor
filho de todos, foi o e eleito logo mostrou qual era o seu coração.
Todo o exército de Saul estava cheio de soldados velhos e capitães
muito antigos, mas todos desmaiados e tremendo só de ver o gigante;
e Davi, que tinha o coração que a eles lhes faltava, vencendo
e matando o mesmo gigante, fez e mereceu mais em uma hora que todos os outros
em tantos anos. Os homens, medindo os merecimentos só pelos anos, fazem
uma grande injustiça; porém Deu, que é justíssimo,
mede-os só pelos corações, porque ele só os vê.
No mesmo dia e na mesma hora em que a Madalena se lançou aos pés
de Cristo, disse o Senhor que tinha amado muito: Quoniam dilexit multum (24).
Parece muito dizer. Diga-se que amava, mas não se diga muito, que ainda
então começava a amar; e já que se dá nome de
muito ao seu amor, diga-se que amava, e não que tinha amado: dilexit?
Mas tudo está tão bem dito, como quem o disse, porque Deus não
mede o coração pelo tempo, senão o tempo pelo coração.
Oh! se os homens vissem os corações, quão endividados
se achariam os de muitos que cuidam que os servem pouco! Por isso só
se pode servir a quem vê o coração. E se em poucos instantes
de tempo cabem muitos séculos de amor, que eternidades seriam as que
Deus tinha contado no coração e amor de S. Roque, em tantos
anos de suas peregrinações, de seus cárceres, de suas
perseguições e afrontas, que são o crisol do amor? Se
os que vieram na undécima hora do dia, que é a velhice, porque
supriram a tardança com a diligência, foram igualmente pagos
e premiados, qual será o prêmio daquele coração,
que entre as lisonjas dos mais floridos e enganosos anos, se entregou todo
a amar e servir só a Deus?

Os homens a quem servis podem pouco e querem menos. Se quisessem dar muito,
não podem, e esse pouco que podem, não querem. Deus pelo contrário,
pode tudo e sempre quer. Vieram dois pobres a Cristo pedir remédio
para suas enfermidades, e cada um – que é muito eloqüente
a necessidade – pediu por sua frase. Um disse: Si quid potes, adjuva
nos (Mc. 9,21): Senhor, se podeis, remediai-me. O outro disse: Si vis, potes
me mundare (Mt. 8,2): Senhor, se vós quiserdes remediar-me, podeis.
– De maneira que um, que ainda não cria, pediu-lhe a vontade,
e duvidou-lhe o poder: o outro que já cria confessou-lhe o poder, e
pediu-lhe só a vontade. E que respondeu o Senhor ao que disse si potes
e ao que disse si vis? Ao que lhe pediu a vontade, e lhe duvidou o poder,
respondeu que podia, e que queria; e ao que lhe confessou o poder, e lhe pediu
a vontade, respondeu que queria o que podia: e a ambos satisfez como desejavam.
Quando os homens pedem aos homens, ainda que sejam reis, pedem uns pobres
a outros: só quando pedem a Deus, podem a quem verdadeiramente é
rico. Dives in omnès qui invocant íllum (Rom. 10, 12): diz S.
Paulo que Deus é rico para todos os que o invocam. – Os reis
quando muito são ricos para alguns: Deus é rico para todos:
Dives in omnes. Por isso S. Roque se fez pobre para servir a quem só
o podia fazer verdadeiramente rico. O seu rei, ainda que fosse tão
liberal como Assuero, podia-lhe prometer a metade do reino de França:
Deus, a quem o serve, dá-lhe todo o seu reino, e quanto mais a quem
deixou tudo só pelo servir a ele,

Os homens – já que falamos nos seus poderes – se derdes
por eles a vida, como tantos a estão dando nestas campanhas, ainda
que sejam reis e monarcas, assim como eles vo-la não deram, assim vo-la
não podem restituir. E Deus, sendo ele o que vos deu a vida, ainda
que vós a não deis por ele, se a empregardes em seu serviço,
dá-vos pela temporal a eterna. Rei era, e rei que andava nos exércitos,
o que deu este desengano a todos os homens: Nolite confidere in principibus,
in quibus non est sa1us (25). Homens, não ponhais a vossa esperança
em homens, ainda que sejam reis, porque não podem dar vida. –
Os reis chamam-se senhores da vida, porque com justiça, ou sem ela,
a podem tirar; mas dá-la, nem a seus filhos, nem a si mesmo podem.
Só Deus é verdadeiro Senhor da Vida, porque a dá no nascimento,
porque a conserva na duração, porque a ressuscita depois da
morte, e a eterniza na pátria. Vede a diferença da vossa mesma
vida sacrificada a Deus, ou aos homens: se a dais por amor de Deus, ficais
bem-aventurado; se a dais por amor dos homens, ficais morto. Os que a deram
por amor de Deus são os que adoramos naqueles altares; os que a deram
por amor dos homens os que pisamos nessas sepulturas. Antes que Roma pusesse
no altar a S. Roque, opôs o mundo, e o houve por bem a mesma Igreja.
Por quê? Porque deu a vida só a Deus, e a empregou só
em seu serviço. E foi este serviço tão aceito a Deus
e tão bem pago por ele, que deu autoridade ao mesmo S. Roque para que
nós também lhe pedíssemos a vida, e poder para que no-la
desse.

Os homens – para que falemos também pela sua boca, e não
só pela divina – quando vos hão mister, sois seu, quando
os haveis mister, sois vosso. Assim o cantou ao som do Lima aquele grande
e desenganado espírito, que, por não ver as ribeiras do Tejo,
fugiu delas para tão longe. Quando te hão mister, és
teu, quando os hás mister, é que não tens donos então.
E Deus pelo contrário é tão bom Senhor e tão bom
dono, que, não havendo mister a ninguém, quando nos faz mercê
de se querer servir de nós, somos, com grande honra, seus; e quando
nós o havemos mister – que sempre havemos – nunca deixa
de ser nosso. Serviram Abraão, Isac e Jacó a Deus, e não
foram eles os que tomaram o sobrenome do Senhor, senão o Senhor o dos
servos. Não se chamaram eles Abraão de Deus, Isac de Deus, Jacó
de Deus, mas Deus foi o que se chamou Deus de Abraão, Deus de Isac,
Deus de Jacó. Assim o disse o mesmo Deus a Moisés: Ego sum Deus
Abraham, Deus Isaac, et Deus Jacob(26). E para quê? Para que conhecesse
o mundo que, se os servos eram seus do Senhor, também o Senhor era
seu dos servos. Se Deus há mister a Abraão para Pai da Fé,
Abraão é de Deus; e se Abraão há mister a Deus
para o livrar dos dois reis do Egito e de Geraris, Deus é de Abraão:
Deus Abraham. Se Deus há mister a Isac para o sacrifício e para
experimentar o amor de seu pai, Isac é de Deus; e se Isac há
mister a Deus para o livrar da espada e o trocar com o cordeiro, Deus é
de Isac: Deus Isaac. Se Deus há mister a Jacó para fundador
das doze tribos, Jacó é de Deus; e se Jacó há
mister a Deus para o livrar da ira de Esaú e dos enganos de Labão,
Deus é de Jacó: Deus Jacob. Se considerarmos os trabalhos e
perigos de S. Roque, acharemos que não foram menores que os dos três
patriarcas; mas, assim, como Roque se fez todo seu de Deus, servindo-o só
a ele, assim Deus se fez todo seu de Roque, livrando-o de todos. E tão
seu, e sempre seu, que ainda hoje nos está livrando a nós só,
por sua intercessão e por seu respeito.

Finalmente, os homens a quem servimos, posto que sejam reis, são mortais
e lhes sucedem outros, porém, Deus, quando não tivéramos
tantas obrigações de o servir, só por ser imortal, e
sempre o mesmo, sem outro que lhe haja de suceder, o devêramos servir
só a ele. Entenderam isto tanto assim muitas nações,
que na morte dos reis se sepultavam com eles os seus criados, não só
por fineza do muito que os amavam, mas por não viverem em tempo de
outros príncipes, que não conhecessem seus serviços e
merecimentos. Não houve maior mudança de fortuna que a dos filhos
de Israel no Egito. Ao princípio enriquecidos, queridos, estimados,
venerados; depois desprezados, aborrecidos, oprimidos, avexados, cativos.
E donde nasceu uma tão notável mudança? O texto sagrado
o diz: Surrexit rex novus, qui ignorabat Joseph (Êx. 1,8) – Sucedeu
no império um rei novo que não conhecia a José. –
O rei velho aconselhava-se com José, seguia os ditames de José,
e sucedia-lhe tão bem com eles que lhe pôs por nome Salvador
do Egito, e por isso favorecia seus irmãos; porém o rei novo,
que veio depois, como não conhecia a José, nenhuma valia tinha
com ele a sua memória nem os seus grandes serviços, e a todos
os seus descendentes não só não dava nada de novo, mas
ainda o que tinham, até a mesma liberdade, lhes tirava. Oh! discretíssimo
mancebo, ó prudentíssimo varão S. Roque! Na vida de S.
Roque, sem ser muito larga, também houve dois reis em França:
Carlos Magno e Ludovico Pio. E porque ele sabia, pelos estilos das cortes
que, se fosse favorecido de um, havia de ser desvalido do outro, por isso
quis servir ao Rei, que nem morre nem desconhece, que é Deus, e só
Deus. Ditoso ele e bem-aventurado, que assim o fez, e nós também
seremos ditosos e bem-aventurados se assim o fizermos: Beati sunt servi illi.

(1) Bem-aventurados aqueles servos (Lc. 12,37).

(2) Porquanto nos provastes, ó Deus: com o fogo nos afinaste, como
se afina a prata. Puseste-nos em cadeias, carregaste tribulações
sobre nossas costas. Pusestes homens sobre as nossas cabeças (Sl. 65,10ss).

(3) Graças a vós outros, e paz da parte daquele que é,
e que era, e que há de vir, e da dos sete espíritos que estão
diante do seu trono; e da parte de Jesus Cristo, que é testemunha fiel,
o primogênito dos mortos, e o príncipe dos reis da terra (Apc.
1,4s).

(4) Graças a vós outros, e paz (Apc. 1,4).

(5) Puseste homens sobre a nossa cabeça (Sl. 65,12).

(6) Maldito seja Canaã: ele será escravo dos escravos de seus
irmãos (Gên. 9,25).

(7) Juxta LXX – 1Rs. 21,13. Text.

(8) Estarás sob o poder de teu marido (Gên. 3,16).

(9) Um luzeiro maior, que pesidisse ao dia (Gên. 1,16).

(10) Trocaram a noite em dia (Jó 17,12).

(11) Eu durmo e o meu coração vela (Cânt. 5,2).

(12) Pois examinará as vossas obras, e esquadrinhará os vossos
pensamentos (Sab. 6,4).

(13) E não havia enfermos nas tribos deles (Sl. 104,37).

(14) Em quarenta anos pelo deserto não se romperam os vossos vestidos
nem gastaram os sapatos dos vossos pés (Dt. 29,5).

(15) Porque Moisés era o mais manso de todos os homens que havia na
terra (Núm. 12,3).

(16) Se a ti te aparece outra coisa, peço-te que me tires a vida (Núm.
11,15).

(17) Tu mesmo és o meu rei e o meu Deus, que dispões as salvações
de Jacó (Sl. 43,5).

(18) Não velo para ser servido, mas para servir (Ml. 20,28).

(19) Tomando a natureza do servo (Flp. 2,7).

(20) Não é a ti que eles rejeitam, mas a mim, para eu não
reinar sobre eles (1Rs. 8,7).

(21) Quando estiver o Filho do homem sentado no trono da sua glória,
também estareis sentados (Mt. 19,28).

(22) Porque esta é a segunda vez que ele me arma engano (Gên.
27,36).

(23) O homem vê o que está patente mas o senhor olha para o
coração (1 Rs. 16,7).

(24) Porque amou muito (Lc. 4,47).

(25) Não queirais confiar nos príncipes, em quem não
há salvação (Sl. 145,3).

(26) Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó
(Êx. 3,6).

Sermão de Santa Catarina – 1663

Quinque autem ex eis erant fatuae, et quinque prudentes (1).

I

A casa que edificou para si a Sabedoria: Sapientia aedificavit sibi domum
(2), era aquela parte mais interior e mais sagrada do Templo de Salomão,
chamada por outro nome Sancta Sanctorum. Levantavam-se no meio dela dois grandes
querubins, cujo nome quer dizer sábios, e são entre todos os
coros dos anjos os mais eminentes na sabedoria. Com as asas cobriam estes
querubins a Arca do Testamento, e com as mãos sustentavam o propiciatório,
que eram os tesouros e o assento da Sabedoria divina. A Arca era o tesouro
da Sabedoria divina em letras, porque nela estavam encerradas as tábuas
da lei, primeiro escritas, e depois ditadas por Deus; o propiciatório
era o assento da mesma Sabedoria em voz, porque nele era consultado Deus,
e respondia vocalmente, que por isso se chamava oráculo. As paredes
de toda a casa em roda estavam ornadas com sete palmas, cujos troncos formavam
outras tantas colunas, e os ramos de umas para as outras faziam naturalmente
seis arcos, debaixo dos quais se viam em pé seis estátuas, também
de querubins. Esta era a forma e o ornato da casa da Sabedoria, edificada
por Salomão, porém traçada por Deus, e não se
viam em toda ela mais que querubins e palmas, em que a mesma Sabedoria, como
vencedora de tudo, ostentava seus troféus e triunfos.

Mas se Deus naquele tempo se chamava Dominus exercituum, e se prezava de
mandar sobre os exércitos e batalhas, e dar ou tirar as vitórias,
parece que as estátuas colocadas debaixo de arcos triunfais de palmas
não haviam de ser de querubins sábios, senão de capitães
famosos. Não pareceria bem, debaixo do primeiro arco, a estátua
de Abraão com a espada sacrificadora de seu próprio filho, vencendo
a quatro reis só com os guardas das suas ovelhas? Não diria
bem, debaixo do segundo arco, a estátua de Moisés com o bastão
da vara prodigiosa, afogando no Mar Vermelho a Faraó, e triunfando
de todo Egito? Não sairia bem, debaixo do terceiro arco, a estátua
de Josué com o sol parado desfazendo o poder e geração
dos gabaonitas, sem deixar homem à vida? Não avultaria bem,
debaixo do quarto arco, a estátua de Gedeão com a tocha na mão
esquerda e a trombeta na direita, metendo em confusão e ruína
os exércitos inumeráveis de Madiã e Amalec? Não
campearia bem, debaixo do quinto arco, a estátua de Sansão com
o leão aos pés e a queixada do jumento na mão, matando
a milhares dos filisteus? Finalmente, não fecharia esta famosa fileira
a estátua de Davi com a funda e a pedra, derrubando o gigante e cortando-lhe
a cabeça com a sua própria espada? Pois se estas seis estátuas
famosas ornariam pomposamente a sala do Senhor dos exércitos, por que
razão os arcos triunfais das palmas cobrem antes estátuas de
querubins sábios, que de capitães valorosos? Porque é
certo na estimação de Deus, ainda que alguns homens cuidem o
contrário, que as vitórias da Sabedoria são muito mais
gloriosas que as das armas, quanto vai das mãos à cabeça.
Por isso quis o mesmo Deus que lhe edificasse a casa, não o pai, senão
o filho, não Davi, o valente, senão Salomão, o sábio.

Suposta esta verdade, que em toda a parte, e muito mais neste empório
das letras, se deve supor sem controvérsia, acomodando-me à
profissão do auditório e à celebridade do dia, só
falarei de Santa Catarina hoje enquanto doutora e sábia. Lá
diz Ezequiel que viu uma roda junto a um querubim: Rota una juxta cherub unum
(Ez. 10,9). E que querubim é aquele, que tem a roda ao lado, senão
Santa Catarina? Na casa da Sabedoria, a cada palma respondia um querubim;
nesta, que também é da sabedoria, veremos um querubim com muitas
palmas. O assunto pois do sermão serão as vitórias de
Catarina, e o título: A sábia vencedora. Ave Maria.

II

O mais formoso teatro que nunca viu o mundo, a mais grave e ostentosa disputa
que nunca ouviram as Academias, a mais rara e portentosa vitória que
nunca alcançou da ignorância douta e presumida a verdadeira sabedoria,
é a que hoje teve por defendente um querubim em hábito de mulher,
ou um rosto de mulher com entendimento e asas de querubim, Santa Catarina.
A aula, ou teatro desta famosa representação, foi o palácio
imperial; os ouvintes e assistentes, o Imperador Maximino, o senado de Alexandria,
e toda a corte e nobreza do Oriente; a questão, a da verdadeira divindade
de um ou de muitos deuses, e a fé ou religião que deviam seguir
os homens; os defendentes, de uma parte uma mulher de poucos anos, e da outra
cinqüenta filósofos, escolhidos de todas as seitas e universidades;
e a expectação da disputa e sucesso da controvérsia,
igual nos ânimos de todos à grandeza de tão inaudito certame.
Em primeiro lugar propuseram os filósofos inchados seus argumentos,
aplaudidos e vitoriados de todo o teatro, e só da intrépida
defendente recebidos com modesto riso. E depois que todos disseram quanto
sabiam em defensa e autoridade dos deuses mortos e mudos, que eles chamavam
imortais, então falou Catarina, por parte da divindade eterna e sem
princípio, do Criador do céu e da terra e da humanidade do Verbo,
tomada em tempo, para remédio do mundo.

Falou Catarina, e foi tal o peso das suas razões, a sutileza do seu
engenho e a eloqüência mais que humana com que orou e perorou,
que não só desfez facilmente os fundamentos ou erros dos enganados
filósofos, mas, redarguindo e convertendo contra eles seus próprios
argumentos, os confundiu e convenceu com tal evidência, que sem haver
entre eles quem se atrevesse a responder ou instar, todos confessaram a uma
voz a verdade infalível da fé e religião cristã.
E que faria com este sucesso Maximino, imperador empenhado e cruel? Afrontado
de se ver vencido nos mesmos mestres da sua crença, de quem tinha fiado
a honra e defensa dela, e enfurecido e fora de si, por ver publicamente demonstrada
e conhecida a falsidade dos vãos e infames deuses, a quem atribuia
o seu império, em lugar de seguir a luz e docilidade racional dos mesmos
filósofos, com sentença bárbara e ímpia, mandou
que ou sacrificassem logo aos ídolos, ou morressem todos a fogo. Todos,
sem duvidar nem vacilar algum, aceitaram a morte por Cristo, não só
constantemente, mas com grande alegria e júbilo, e na mesma hora, e
do mesmo teatro onde tinham entrado filósofos, saíram teólogos,
onde tinham entrado gentios, saíram cristãos, e onde tinham
entrado idólatras, saíram mártires. Oh! vitória
da fé a mais ilustre e ostentosa, que antes nem depois celebraram os
séculos da Cristandade! Oh! triunfo de Catarina, não com duas
palmas nas mãos, de virgem e mártir, mas com cinqüenta
palmas aos pés de sutil, de angélica e de invencível
doutora! Digna por esta inaudita façanha de que no mais alto do Monte
Sinai, depois de ser trono do supremo legislador, as mesmas mãos, que
escreveram as primeiras letras divinas, levantassem eterno troféu à
memória das suas.

Esta foi, senhores, a famosa ação, tão própria
do dia como do lugar, sobre que determino discorrer neste breve espaço;
e para ponderar os quilates dela nas circunstâncias mais particulares
e relevantes de tão admirável vitória, me ofereceu o
Evangelho as palavras que propus: Quinque autem ex eis erant fatuae, et quinque
pruddentes (Mt. 25, 2). Eram as virgens, que saíram a receber o Esposo,
dez, e destas dez, cinco sábias e cinco néscias. Sábias
e néscias quando saíram: Exierunt obviam sponso et sponsae (3);
sábias e néscias quando se detiveram: Moram autem faciente Sponso
(4); sábias e néscias quando umas entraram às bodas e
outras ficaram de fora: Et quae paratae erant, intraverunt cum eo ad nuptias,
et clausa est janua (5). O em que agora reparo, é que sendo estas duas
parelhas semelhantes no sexo, iguais no número e diferentes no entendimento;
semelhantes no sexo, porque todas eram mulheres; iguais no número,
porque eram cinco e cinco; diferentes no entendimento, porque umas foram sábias,
outras néscias — nem todas estas néscias, nem parte, nem
sequer uma delas, com a companhia, com o trato e com a conversação
das sábias se emendasse e deixasse de ser néscia. Se todas as
néscias aprendessem, e todas as sábias ensinassem a o ser, não
parece demasiada maravilha de mulheres a mulheres, de cinco a cinco e de sábias
a néscias, mas de mulheres a mulher, de cinco a uma, e de sábias
a néscia, que nem esta uma e única se mudasse com a companhia,
nem se emendasse com o trato, nem se convertesse com o exemplo? Assim foi,
e assim costuma ser, sendo mais digno de admiração que as néscias
não pervertessem a todas as sábias, que todas as sábias
não converterem uma néscia.

Passemos agora a Santa Catarina, e vejamos estas mesmas parelhas no sexo,
no número e no entendimento, quão diversas foram na sua batalha,
e quanto mais admiráveis na sua vitória. Lá o sexo era
o mesmo, porque umas e outras eram mulheres; o número igual, porque
umas e outras eram cinco; as armas e a força maior, porque umas eram
sábias e outras néscias; porém, na batalha de Catarina
com os filósofos, ela era uma, e eles cinqüenta; ela mulher, e
eles homens; ela sábia, e eles sábios, que é muito mais
forte e muito mais dificultosa oposição. E que uma mulher, ou
menos que mulher, porque apenas chegara a dezoito anos, posta em campo contra
tantos e tais homens, não só vencesse a um, nem a muitos, senão
a todos, e os sujeitasse a defender com a vida a mesma fé que impugnavam,
estas, digo, que foram as circunstâncias da sua vitória, que
a fazem sobre toda a imaginação gloriosa. Vamos agora discorrendo
e ponderando cada uma por si, e veremos quão singular foi em cada uma
e em todas a nossa sábia vencedora.

III

Começando pela primeira diferença, que é de número
a número, e de uma a muitos, se a antigüidade, ainda fabulosa,
assentou por axioma indubitável que nem Hércules contra dois,
que desafio pode haver mais desigual, e que vitória mais gloriosa,
que a de um, ou de uma, que ainda é menos, contra cinqüenta? No
desafio do gigante filisteu contra os exércitos de Saul, sempre admirei
muito a forma do cartel com que os irritava ou provocava ao campo: Eligite
ex vobis virum, et descendat ad singulare certamen: Escolhei de todo o vosso
exército o homem que quiserdes — dizia o gigante — e saia
comigo a certame singular, isto é, de corpo-a-corpo, de soldado a soldado,
de homem a homem. — Assim continuou a blasonar o filisteu quarenta dias
inteiros, e por mais que experimentava que não havia quem se atrevesse
a aceitar o desafio, nunca mudou nem acrescentou o cartel. E isto é
o que eu admiro. A estatura deste gigante como descreve o texto sagrado, era
de seis côvados e um palmo: Altitudinis sex cubitorum et palmi (1 Rs.
17, 4). Pois, se era tamanho como três homens, por que não desafiava
a sua arrogância, ou a três, ou quando menos a dois, senão
a um só: Ad singulare certamen? Porque sabia, como soldado que era,
que um homem contra mais que um homem, por mais gigante e por mais valente
que seja, não tem partido. Ainda não está ponderado.
Saem as danças a receber a Davi em triunfo depois da vitória,
e o que cantavam era: Percussit David decem milia (1 Rs. 18,7): Davi, em matar
o gigante, matou dez mil. — Pois um homem, que valia por dez mil homens,
não se atreve a desafiar mais que a um homem? Não. A arrogância
nos valentes sempre é maior que a valentia, e não há
valentia nem soberba tão agigantada que se atreva a sair a campo mais
que um com um.

Oh! que afrontada ficaria a arrogância de Golias, se neste dia ressuscitara,
à vista do desafio e certame de Catarina! Uma em campo contra cinqüenta,
e não contra cinqüenta homens, senão contra cinqüenta
gigantes, porque cada um era o maior e o corifeu da sua escola. Como os opositores
eram cinqüenta, pudera justamente Catarina dividir o desafio em cinqüenta
batalhas, e o certame em cinqüenta disputas, sustentando a verdade que
defendia singular e separadamente contra cada um; mas que tivesse confiança
para se opor a todos juntamente, e valor para os impugnar e vencer a todos
juntos? Esta foi a maior circunstância da maravilha. Naquele famoso
desafio dos três Horácios romanos contra os três Coriácios
albaneses, dois Coriácios mataram dois Horácios, e o terceiro
Horácio, que ficou, matou aos três Coriácios. Mas como?
Vendo-se só, lançou a fugir, e os outros após ele. Alcançou-o
o que mais corria, e voltando-se contra este, matou-o, e continuou a fugir;
alcançou-o o segundo, e também o matou; e depois que não
ficava mais que o último, então pelejou só por só
com ele, e com a sua morte acabou de vingar as dos dois irmãos, e ficou
com a inteira vitória. Tito Lívio e os outros historiadores
romanos celebram muito esta façanha, dizendo que o terceiro Horácio
venceu aos três Coriácios, mas não dizem bem. Venceu por
três vezes a cada um, mas não venceu a todos três. E evidente,
porque ele venceu aqueles com quem pelejou, e nunca pelejou com todos três,
nem com dois, senão com um só. Foram três vitórias
de um, mas não foi uma vitória de três. E é tanto
assim, que dos três fugiu, e também dos dois, porque nem com
três, nem com dois se atreveu a pelejar, senão só com
um.

Muito antes deste caso tinha dito Salomão: Funiculus triplex difficile
rumpitur (Ecl. 4,12): que o cordão de três fios dificultosamente
se rompe. — E por isso o prudente e valoroso Horácio, aos mesmos
três que juntos se não atreveu a desafiar, desfiou-os, e deste
modo rompeu fio a fio o cordão, que não podia romper unido.
Mas não assim Catarina. Não dividiu os seus combatentes, nem
pelejou com eles um a um, mas com serem não dois, nem três, senão
cinqüenta, a todos cinqüenta admitiu juntos, e a todos juntos venceu.

É tão sublime e tão mais que humano este modo de vencer,
que até a mesma Onipotência, se não obra extraordinariamente,
divide para vencer, ou vence dividindo. A maior guerra que a soberba humana
intentou contra Deus foi a dos edificadores da Torre de Babel. Presumiam de
chegar com ela ao céu: Cujus cumen pertingat ad caelum (6).E chegou
a dizer Deus que o haviam de conseguir, se se não acudisse com tempo
à temeridade de seus intentos: Caeperunt hoc facere, nec desistent
a cogitationibus suis donec eas opere compleant (7). Enfim, acudiu o mesmo
Deus em pessoa, e o modo com que desbaratou os intentos daqueles homens, que
eram todos os que havia no mundo, foi dividindo-os. Juntos edificavam a torre
contra o céu; divididos não houve mais quem continuasse a obra,
e o mesmo edifício que começou em torre acabou em confusão,
e por isso se chamou Babel.

Assim venceu Deus então, mas não venceu assim Catarina hoje,
posto que uma e outra empresa fossem mui semelhantes. Os pensamentos com que
se uniram os filósofos também eram, não de edificar uma
torre que chegasse, mas de sustentar outra que já chegava ao céu,
porque no céu, e em todos os céus punham as falsas divindades
que defendiam. Em um céu a Júpiter, em outro céu a Saturno,
em outro a Mercúrio, em outro a Vênus, em outro a Marte, em outro
a Diana, em outro a Apolo. E que fez Catarina? Deus, aos edificadores da torre,
confundiu-lhes as línguas: Venite, confundamus linguam eorum (8). E
Catarina, aos filósofos também lhes confundiu as línguas,
mas por outro modo. Deus confundiu as línguas aos edificadores, mudando-lhas
de modo que se não entendessem; e Catarina confundiu as línguas
aos filósofos, atando-lhas de modo que não pudessem falar, nem
tivessem que responder. Uns e outros ficaram confusos, e uns e outros vencidos,
mas Deus venceu aos seus opositores dividindo-os, e Catarina aos seus sem
os dividir. Aludindo a este mesmo artifício de Deus, lhe dizia Davi
em semelhante caso: Praecipita, Domine, divide linguas eorum, quoniam vidi
iniquitatem et contradictionem in civitate (9). Os meus inimigos, Senhor,
unidos todos com Absalão, já se começam a dividir em
Jerusalém, uns seguindo o conselho de Aquitofel, outros o de Cusai;
o que agora vos peço é que os dividais de todo e a todos, como
fizestes na Torre de Babel, porque os que não posso vencer juntos,
eu os vencerei divididos. Oh! Davi! Oh! Catarina! Davi, imitando aquela vitória
de Deus, quer-se tomar com os inimigos divididos para os vencer, e Catarina,
sem imitação nem exemplo, não pede que venham os inimigos
um por um, nem divididos, senão juntos, porque não quer vencer
a cada um com muitas vitórias, senão a todos com uma.

IV

A razão desta dificuldade e diferença em vencer os mesmos juntos
ou divididos é porque, ainda que a multidão se compõe
de unidades, as mesmas unidades, que divididas são fracas, ou menos
fortes, unidas são fortíssimas. Daqui se entenderá aquele
enigma teológico, que, com ser verdade definida, sempre se explica
e declara com novidade, e nunca acaba de se entender. É certo que só
com os auxílios ordinários ninguém pode vencer todas
as tentações em matéria leve; e também é
certo que só com os mesmos auxílios pode todo o homem vencer
cada uma dessas mesmas tentações. Pois, se cada uma das tentações
em singular é a que forma aquela coleção ou multidão
de todas, e todas se compõem só de cada uma delas, sem se lhe
acrescentar outra alguma, eu, que posso vencer a cada uma, por que não
posso vencer a todas? Porque esse é o mistério e a força
da multidão. Os mesmos contrários, que divididos se podem vencer
sem grande dificuldade, todos, e juntamente tomados, ou é muito dificultoso,
como nos outros casos, ou impossível, como neste. E notai, ou lembrai-vos
— como sabeis — que não falam os Concílios de coleção
simultânea, senão sucessiva, para que se veja quanto é
sobre as hipérboles da admiração vencer Catarina, e convencer
juntamente a todos os cinqüenta filósofos, quando fora vitória
mais que admirável vencer e convencer sucessivamente a cada um, sendo
tantos.

Disse vencer e convencer, e disse pouco, porque bem pudera Catarina vencer
e convencer todos aqueles filósofos sem os reduzir nem converter, e
este foi o ponto mais árduo da vitória, e por isso mais gloriosa.
Não houve teatro mais semelhante ao de Alexandria, em que estamos,
que o outro famosíssimo de Mênfis, em que o bárbaro Faraó
fez o papel de Maximino. Estava Moisés só de uma parte, e da
outra todos os magos do Egito, presente o rei e a corte, suspenso ele e toda
ela na expectação do sucesso. Não refere o mesmo Moisés
— que é o autor da história — quantos eram os magos,
porque ele foi tão confiado e generoso, que não pôs limite
ao número. E posto que São Paulo só nomeia a dois, Janes
e Mambres (2 Tim. 3,8), tanto importava que fossem dois, como duzentos. E
esta é outra grande circunstância e excelência do número
que Catarina venceu, porque os cinqüenta não foram limitados por
ela, senão escolhidos pelo imperador; donde se segue que tanto montou
vencer a cinqüenta, como se foram cinco mil. Converteu, pois, Moisés
a sua vara em serpente, e os magos também as suas em outras igualmente
ferozes e grandes, e o fim da batalha foi que a serpente de Moisés
comeu todas as outras: Devoravit virgas eorum (Êx. 7,12) Agora pergunto:
e não bastara que a serpente de Moisés matara as serpentes dos
Magos? Parece que não só bastava, senão que deste modo
ficaria a superioridade mais conhecida, a vitória mais ostentosa, o
teatro mais funesto e temeroso, e o mesmo Faraó mais confuso e compungido.
Pois, por que razão as serpentes dos egípcios não foram
somente mortas, senão comidas? Porque nesta batalha da serpente de
Moisés com as dos egípcios eram significadas as batalhas e vitórias
que a sabedoria cristã havia de alcançar de todas as seitas
dos gentios, tão fantásticas, aparentes e falsas, como as serpentes
dos magos; e nestas batalhas da fé e da religião é maior
e mais dificultosa vitória ficarem os contrários comidos, que
somente mortos. E por quê? Porque ficarem somente mortos é ficarem
vencidos e convencidos, sem força, alento, nem voz para persistir no
que defendiam; porém, ficarem comidos e incorporados em quem os comeu
é ficarem não só vencidos e convencidos, senão
também convertidos, assim como o que se come se converte na substância
de quem o come. E mistério altíssimo declarado, não menos
que pelo mesmo Deus a São Pedro, quando lhe mostrou todos os gentios
em figuras de feras e serpentes, e lhe mandou que não só as
matasse, senão que também as comesse, isto é, que as
convertesse e incorporasse em si mesmo: Occide, et manduca (10).

Tal foi a vitória de Catarina, que não só venceu e convenceu
os filósofos e suas seitas, mas, vencidos e convencidos, os converteu
a todos da falsa crença das mesmas seitas à verdade da Fé,
que pretendiam impugnar, fazendo-os de membros do demônio, membros de
Cristo, e incorporando-os em si mesma, bem assim como a serpente de Moisés
às serpentes dos Magos. A serpente de Moisés era uma, e Catarina
uma; as serpentes dos Magos muitas, e os filósofos muitos; aquelas
não só vencidas, mas comidas, estes não só vencidos,
mas convertidos; aquelas todas, e estes todos, sem haver um só que
persistisse no seu erro. Só houve de caso a caso, e de vitória
a vitória esta notável diferença: que a serpente de Moisés
comeu as serpentes dos Magos uma a uma, e cada uma por si, assim como eles
as formaram: Projecerunt singuli virgas suas, quae versae sunt in dracones(11).
Porém, Catarina não venceu e converteu os filósofos um
por um, e cada um por si, em disputa ou batalha particular, senão a
todos juntamente, e de uma vez. Da serpente de Moisés, diz a propriedade
do texto, que devorou e engoliu as serpentes dos Magos, para mostrar que nenhuma
teve força para resistir, assim como o que não tem dureza ou
resistência se engole facilmente. Mas se esta serpente engolira as outras
não cada uma por si, senão todas juntas e de um bocado, não
seria muito maior prodígio? Claro está. Pois isto que não
fez a serpente milagrosa de Moisés, fez Catarina sem milagre, convencendo
e convertendo a tantos e tão assinalados filósofos, não
a cada um particularmente em muitas disputas, senão a todos em uma
só, maravilha singular e sem exemplo.

Quatro vezes, em diversos tempos, entrou em disputa pública, à
vista de toda África, Santo Agostinho. Mas com quantos contendeu? A
primeira vez com Fortunato, maniqueu, a segunda com Félix, também
maniqueu, a terceira com Fortúnio, donatista, a quarta com Emérito,
também donatista. Que saísse sempre vencedor Agostinho, não
é necessário que se diga; mas o que fez mais gloriosas estas
vitórias, foi que os mesmos vencidos as confessaram e se reduziram
à Fé que negavam. E se é tanta glória do maior
atleta da Igreja, que de pessoa a pessoa, e de doutor a doutor vencesse em
quatro disputas a quatro homens insignes nas suas seitas, que glória
incomparável será a de Catarina vencer e convencer em uma só
disputa a cinqüenta muito mais famosos nas suas? De São Gregório
Magno sabemos que em disputa singular venceu também e reduziu a Eutíquio.
Mas quão raras e contadas têm sido em todos os séculos
da Igreja semelhantes vitórias, sendo tão freqüentes os
exemplos contrários? Em presença do Papa Zeferino convenceu
Caio a Proco, montanista, mas não se reduziu Proco. No Concílio
Antioqueno convenceu Melchior a Paulo Samosateno, mas não se reduziu
Paulo. Diante de muitos juízes de todas as faculdades convenceu Arquelau
a Manete, maniqueu, mas não se reduziu Manete. Em congresso de muitos
bispos, em que se achou também o mesmo rei de França, convenceu
São Bernardo a Pedro Abelardo, mas não se reduziu Pedro. Assim
convenceu São Cirilo Alexandrino a Nestório, Máximo Abade
a Pirro, São Cesário a Juliano, São Jerônimo a
Helvídio, S. Joviniano a Vigilâncio, e nenhum deles reconheceu
a vitória da verdade, antes, afrontados de se verem convencidos, se
obstinaram mais.

Mas, para que é referir exemplos de homem a homem, se aos mesmos Concílios
inteiros sucedeu outro tanto? Ponde-vos com a memória em Jerusalém,
em Nicéia, em Constantinopla, em Roma, em Cartago, em Trento: que é
o que vedes? Em Trento, vereis que contra a majestade e autoridade ecumênica,
e contra a sabedoria universal de toda a Igreja Católica, se atreve
a resistir um Lutero, e não se rende ao Concílio Tridentino.
Em Cartago, que um Celéstio, assim mesmo convencido, resiste ao Concílio
Cartaginense. Em Roma, que um macedônio se não sujeita ao Concílio
Romano. Em Nicéia, que um Ário contradiz o Concílio Niceno.
Em Constantinopla, que um Dióscoro se opõe ao Concílio
Constantinopolitano. Em Jerusalém, finalmente, que ao Concílio
Jerosolimitano, em que presidiu São Pedro e assistiram os apóstolos,
um Cerinto contraria e impugna suas definições, e levanta a
primeira seita contra sua doutrina. Tal é a rebeldia e obstinação
do entendimento humano, quando se deixa inchar da presunção
e cegar da soberba. Agora voltemos com o mesmo pensamento a Alexandria, e
ponhamos juntamente os olhos naqueles grandes teatros da cristandade e neste.
Naqueles, tantos e tão eminentes homens, ainda que convencem claramente,
não bastam a reduzir um homem batizado e cristão; e neste, uma
só Catarina convence, rende e sujeita a Cristo tantos e tão
eminentes homens, idólatras e gentios. Ali, tantos não prevalecem
contra um; aqui, uma prevalece contra tantos. O conceito que da combinação
deste paralelo resulta, forme-o cada um, se acaso o compreende, que eu não
tenho palavras com que o rastear, quanto mais encarecer.

V

Se na consideração do número venceu Santa Catarina as
Virgens sábias do Evangelho, reduzindo ela só a cinqüenta,
quando elas, sendo cinco, não puderam nem souberam reduzir a uma, não
foi menos ilustre a sua vitória na consideração do sexo.
As virgens, sendo mulheres, não ensinaram a uma mulher; Catarina, sendo
mulher, ensinou a cinqüenta homens. O apóstolo São Paulo
fiou tão pouco do gênero feminino, que a todas as mulheres proibiu
o ensinar: Docere autem mulieri non permitto(12). E que razão teve
São Paulo para um preceito tão universal e tão odioso
a metade do gênero humano, e na parte mais sensitiva dele? A razão
que teve foi a maior de todas as razões, que é a experiência:
Adam non est seductus, mulier autem seducta in praevaricatione fuit (1 Tim.
2,14): Em Adão e Eva — diz o Apóstolo — se viu a
diferença que há entre o entendimento do homem e o da mulher
— porque Eva foi enganada, Adão não. — Ensine logo
Adão, ensine o homem; Eva e a mulher, não ensine. O que só
lhe convém, e o que lhe mando, é que aprenda e cale: Mulier
in silentio discatt(13). Segundo este preceito, que mais parece natural que
positivo, pois o Apóstolo o deduz desde Adão e Eva, Catarina
havia de aprender e calar, como mulher, e os filósofos ensinar, como
homens, como filósofos, como graduados nas suas ciências, e como
os primeiros e mais insignes mestres delas. Mas que Catarina fale e os filósofos
ouçam, que Catarina ensine e os filósofos aprendam, que Catarina
não só dispute, mas defina, não só argumente,
mas conclua, não só impugne, mas vença, e tantos homens,
e tais se reconheçam e confessem vencidos, foi vitória que de
sexo a sexo só teve um exemplo, e de entendimento a entendimento nenhum.

Quis Deus humilhar a potência de Jabim, rei dos cananeus, os quais
tinham mui abatido e humilhado o povo de Israel: Humiliavit Deus in die illo
Jabim, regem Chanaam, coram filiís Israel (14). E diz o mesmo texto
que para esta grande empresa escolheu ou inventou Deus uma guerra nova: Nova
bella elegit Dominus (Jz. 5,8). Em guerra nova, e inventada por Deus, parece
que havia de ser nova e nunca vista a ordem dos esquadrões, novas e
nunca vistas as armas, novas as máquinas, novos os estratagemas, mas
nada disto houve. Pois, em que consistiu esta novidade tão celebrada?
Consistiu em que da parte dos cananeus foram vencidos muitos homens, e da
parte dos israelitas foi a vencedora uma mulher. Assim o disse Débora
a Barac, que era o general do exército israelítico: In hac vice
victoria non reputabitur tibi, quia in manu mulieris tradetur Sisara (Jz.
4,9): Esta vez, não há de ser a vitória vossa, porque
Sisara, general dos cananeus, e todo seu exército há de ser
vencido por uma mulher. — Notai a palavra: In hac vice: esta vez, porque
vencer uma mulher, e serem vencidos os homens, não é coisa que
suceda muitas vezes, senão uma vez em todos os séculos: uma
vez nas batalhas das armas, como em Débora, e outra vez nas das letras,
como em Catarina. E se foi tão gloriosa e decantada a vitória
de Débora só por ser de mulher contra homens, posto que levasse
consigo quarenta mil, quanto mais admirável e admirada deve ser a de
Catarina, não acompanhada de outros, senão ela só, nem
em guerra de espada a espada, senão de entendimento a entendimento.

Mulher era de alto entendimento, posto que de baixa fortuna, a Samaritana,
como mostrou no discurso que teve com Cristo; e com a ciência que bebeu
no poço de Sicar, ficou tão profundamente sábia, como
a que mereceu ouvir da boca do mesmo Senhor aquele altíssimo segredo,
ainda não revelado ao mundo, de que ele era o Messias: Ego sum, qui
loquor tecum (15). Com esta enchente de sabedoria e luz sobrenatural, em lugar
da água que viera buscar, se voltou logo a Samaritana para a sua cidade,
a levar a fé e notícia de Cristo. Mas de que modo? E caso em
que todos os santos e expositores fazem grande reparo. O que somente disse
foi que ela, no poço de Sicar, encontrara um homem, o qual lhe dissera
tudo quanto tinha feito em sua vida: que fossem eles ver se porventura seria
o Messias: Venite et videte hominem qui dixit mihi omnia quaecumque feci:
Nunquid ipse est Christus (Jo. 4, 29)? Pois, se a Samaritana sabia de certo
que Cristo era o Messias, por que o não prega declaradamente, por que
o põe ou propõe somente em dúvida, e diz aos seus cidadãos
que vão eles ver se porventura é aquele: Nunquid ipse est Christus?(16)Quando
Santo André, pela doutrina de seu mestre, S. João Batista, soube
que Cristo era o Messias, logo foi dizer declaradamente a seu irmão,
São Pedro, que tinham achado o Messias: Invenimus Messiam, quod est
interpretatum Chistus. E São Filipe, quando teve a mesma notícia,
também deu a nova declaradamente a Natanael: Quem scripsit Moyses in
lege, et prophetae, inveninimus Jesum(17). Pois, por que não falou
com a mesma clareza a Samaritana, e somente pôs em dúvida e questão
o que sabia de certo?

Santo Agostinho, São Crisóstomo e todos os Padres dizem que
obrou a Samaritana prudentissimamente, não fiando que os da sua cidade
lhe dessem crédito em matéria tão grave. Mas quem declarou
a razão desta mesma desconfiança com admirável energia
foi o mesmo evangelista São João, referindo o caso. Notai as
palavras: Reliquit ergo hydriam suam mulier et abiit in civitatem, et dixit
illis hominibus (18). Foi a mulher à cidade, e disse àqueles
homens; e como aqueles a quem havia de converter eram homens, e ela mulher,
não teve a samaritana confiança para crer, nem ânimo para
esperar que eles se persuadissem só pelo que ela lhes dissesse. Por
isso tocou somente o ponto, e excitou a questão: Nunquid ipse est Christus?
Por isso lhes disse, que fossem eles e vissem? Venite, et videte. Como se
discorrera assim consigo: se a matéria é tão grave, e
eles são homens, e eu mulher, como me hão de crer a mim? Vão
eles e vejam o que eu vi, vão e ouçam o que eu ouvi, e eles
se persuadirão a si, que não eu a eles. Tal foi o .prudente
temor da Samaritana, desconfiando totalmente de poder converter a homens,
sendo ela mulher, posto que tão alumiada por Cristo. Para que se veja
que quando Catarina não convencera nem convertera os filósofos,
só a confiança com que se ofereceu a sair em campo com eles,
era, de mulher para homens, uma grande vitória. Convenceu-os, porém,
e converteu-os tanto sobre o crédito de todas as mulheres, e tanto
sobre o conceito de todos os homens, como agora veremos.

VI

Apareceram os anjos às Marias na manhã da Ressurreição,
e apareceu-lhes o mesmo Senhor ressuscitado, o qual lhes mandou — como
já lhes tinham mandado os anjos — que levassem a alegre nova
aos apóstolos. Foram, disseram todas o que viram, e o que os anjos
e o Senhor dos anjos lhes tinham dito; e que conceito fizeram os apóstolos
assim da embaixada como do testemunho das Marias: Visa sunt ante illos sicut
deliramentum verba isto, et non crediderunt illis (19). O conceito que fizeram
de tudo foi dizerem que eram delírios, e nenhum crédito lhes
deram. Por certo que não sei quais eram neste caso os delirantes. Para
serem dignas de crédito estas testemunhas, cada uma por si, e muito
mais todas juntas, bastava serem escolhidas pelos anjos e pelo mesmo Cristo
para tal embaixada. A qualidade e juízo de Maria Madalena era bem conhecida
e respeitada; as outras duas Marias eram parentas muito chegadas do Senhor;
e Maria Salomé, mãe de dois apóstolos, e Maria Jacó
de três. Pois, se por tantos respeitos eram dignas de todo crédito,
e todas afirmavam o mesmo como testemunhas oculares, por que razão
não só se lhes nega o crédito, mas é censurado
de delírios tudo o que dizem? Mais. No mesmo dia disse São Pedro
que Cristo lhe aparecera, e todos creram logo que era verdadeiramente ressuscitado:
Surrexit Dominus vere, et apparuit Simoni (20). Pois a Pedro, que pouco há
negou três vezes a seu Mestre, se dá tanto crédito, e
às três Marias, que o assistiram na cruz e o foram buscar ao
sepulcro, nenhum? Se Pedro é discípulo, elas também são
discípulas; se Pedro é santo, elas também são
santas; se Pedro é verdadeiro, elas também são verdadeiras;
se a Pedro apareceu Cristo, a elas também apareceu, e mais os anjos,
que São Pedro não viu; sobretudo, Pedro é um, e elas
três; e que a mesma verdade na boca de São Pedro haja de ser
verdade, e na boca das Marias delírio? Sim, que Pedro é homem,
e as Marias mulheres, e não há nem houve outra razão.

Ouvi aos discípulos, que desesperados iam para Emaús: Nos autem
sperabamus, et super haec omnia tertia dies est hodie; sed et mulieres quaedam
ex nostris terruerunt nos, dicentes se visionem angelorum vidisse, qui dicunt
eum vivere (Lc. 24,21 ss): Nós esperávamos; mas sobre tudo o
que temos dito, hoje é já o terceiro dia, e além disso
umas mulheres das nossas disseram que viram anjos, e que ele é vivo
e ressuscitado. Pois este mesmo testemunho de ser o Senhor vivo e ressuscitado
no mesmo terceiro dia não era grande motivo, antes de crerem, que de
desesperarem? Sim, era, se não fora testemunho de mulheres. Mas como
era testemunho de mulheres, posto que mulheres da mesma escola: Mulieres quaedam
ex nostris (21), tão longe estiveram de os confirmar na fé,
que antes lhes tiraram a esperança: Nos autem sperabamus, sed et mulieres
quaedam terruerunt nos (22).

Vamos agora ao nosso caso, e vejamos o que não persuadiram as Marias
e o que persuadiu Catarina, e quais eram os homens a quem elas não
persuadiram, e quais aqueles a quem Catarina persuadiu. Os homens a quem não
persuadiram as Marias eram os apóstolos; os que persuadiu Catarina
eram os filósofos. Os apóstolos eram cristãos, os filósofos
gentios. Os apóstolos eram discípulos de Cristo, e todos da
mesma escola; os filósofos, uns eram discípulos de Pitágoras,
outros de Sócrates, outros de Platão, outros de Aristóteles,
outros de Demócrito, outros de Epicuro, e as escolas e seitas que seguiam,
tão diversas e ainda contrárias, como a dos pitagóricos,
a dos cínicos, a dos peripatéticos, a dos estóicos, a
dos acadêmicos, e as demais. Sobretudo os apóstolos amavam a
Cristo e desejavam a mesma ressurreição que não criam,
e esta, que os teólogos chamam pia affectio, é a melhor disposição
para crer; pelo contrário, os filósofos eram inimigos do mesmo
Cristo e sua lei, e esta mesma malevolência era a disposição
mais repugnante que podiam ter para a fé, porque in malevolam animam
non introibit sapientia(23). E sendo uns e outros tão dispostos, os
apóstolos para crer, e os filósofos para não crer, as
Marias, por serem mulheres, não persuadiram aos apóstolos um
só mistério da fé, qual era o da Ressurreição,
e Catarina, com ser mulher, persuadiu aos filósofos todos os mistérios
da mesma fé, se todos contrários às suas disposições.

Os filósofos, uns criam em muitos deuses, outros negavam totalmente
a divindade, e Catarina persuadiu a todos que havia Deus, e que este era um
em essência, e trino em pessoas, e que, sendo cada uma Deus, não
eram três deuses, senão um só Deus. Os filósofos
criam que o mundo fora ab aeterno, e uns diziam que o criara Deus necessária,
e não livremente, outros que era incriado, e tinha o ser de si, ou
que ele se criara e se fizera a si mesmo; e Catarina persuadiu-lhes que o
mundo tivera princípio, e havia de ter fim, e que Deus o criara voluntariamente
em tempo, e não composto de átomos, como outros diziam, senão
criado de nada. Os filósofos ensinavam que todas as coisas sucediam
a caso, que umas não podiam deixar de ser, porque assim o tinham decretado
os fados, e outras eram mudáveis e contingentes, sem outra dependência
que o arbítrio da fortuna; e Catarina persuadiu-lhes que não
havia fortuna nem fados, nem as coisas sucediam a caso, senão todas
governadas com suma sabedoria, e que a Providência divina era a ordem
e governo delas. Os filósofos nunca souberam que houvesse pecado original
nem remédio dele; e Catarina persuadiu-lhes que no primeiro homem pecaram
todos os homens antes de serem, e que para remédio deste e dos outros
pecados o Verbo, segunda Pessoa da Trindade, sem deixar de ser Deus, se fizera
homem. Os filósofos não conheceram que uma natureza se pudesse
supositar na subsistência de outra; e Catarina persuadiu-lhes que no
composto inefável de Cristo subsistiam no mesmo suposto duas naturezas
realmente distintas, e que, sendo o mesmo Cristo juntamente Deus e homem,
juntamente era infinito e finito, juntamente imenso e limitado, juntamente
impassível e passível, juntamente imortal e mortal.

Os filósofos uns negavam a imortalidade da alma, outros a duvidavam;
e Catarina persuadiu-lhes que não só a alma era imortal, senão
que também os corpos o haviam de ser depois de ressuscitados, e que
então os havia de julgar Cristo, mandando os maus para o inferno, e
levando os bons para o céu, a ver e gozar de Deus para sempre, e que
nesta vista clara de Deus consistia a bem-aventurança do homem, sobre
a qual os mesmos filósofos tinham tantas e tão diversas opiniões.
Finalmente, os filósofos abominavam sobretudo e tinham por coisa indigna
de homens com juízo, adorar por Deus a um crucificado: Gentibus autem
stultitiam (24); e Catarina lhes persuadiu que não só haviam
de adorar o crucificado, senão também a cruz, ainda que fosse
ou tivesse sido o instrumento do mais infame suplício, e não
só a mesma cruz, senão qualquer imagem dela. E que todos estes
mistérios da fé, sendo tão superiores à razão
humana, que muitos parecem contrários a ela, os persuadisse uma mulher
a cinqüenta filósofos gentios, quando três santas, e de
tanta autoridade, só por serem mulheres, não puderam persuadir
um só mistério da Ressurreição a onze discípulos
de Cristo, vede se foi estupenda vitória.

Mas a maior circunstância dela, a meu sentir, ainda não foi
esta. E qual foi? Foi que não só persuadiu Catarina aos filósofos
toda a fé de Cristo, senão a virtude mais própria de
Cristo, e nunca conhecida da filosofia, e a mais dificultosa de aprender,
que é a humildade. Porque, tendo entrado naquele grande teatro tão
soberbos e vãos com as suas ciências, nenhum duvidou de se sujeitar
a render à sabedoria e doutrina de uma mulher, sem repararem nem fazerem
caso de que todos os circunstantes vissem e todo o mundo soubesse que uma
mulher os vencera. Tendo Abimelec entrado à força de armas os
muros de Tebes, e não lhe restando por render mais que a última
torre, a cujas portas estava pondo fogo, uma mulher lançou de cima
sobre ele uma grande pedra, de que caiu mortalmente ferido na cabeça,
mas ainda teve acordo para dizer ao seu pajem da lança estas palavras:
Evagina gladium tuum, et percute me, ne forte dicatur quod a foemina interfectus
sim (Jz. 9, 54): Tira depressa pela espada, e mata-me, por que se não
diga no mundo que me matou uma mulher. — Tão injuriosa coisa
é aos homens, principalmente grandes e famosos, qual era Abimelec,
poder-se dizer que uma mulher os venceu, que antes se deixarão e mandarão
matar, que sofrer tal injúria. Porém os cinqüenta filósofos
ensinados por Catarina, de tal maneira tinham desprezado o mundo e todos os
seus ditos, que não só não tiveram por afronta confessar
que uma mulher os vencera, mas, em testemunho de ela os ter vencido, e da
fé que lhes tinha ensinado, não duvidaram em se deixar matar
e queimar vivos, como todos foram mortos e queimados por esta causa. Pudera-se
dizer que nesta ação eles se mostraram mais que homens, como
Catarina mais que mulher, mas baste que ela fique mulher, e eles homens, para
que não excedamos o nosso assunto.

VII

Ponderada a vitória de Catarina pelas duas considerações
de número a número e de sexo a sexo, se foi maravilhosamente
insigne, e por ser de uma a cinqüenta, e de mulher a homens, a terceira
e última consideração, e que mais a qualifica de admirável,
é ser de sábia a sábios. Que as cinco virgens sábias
do Evangelho não reduzissem uma néscia, costume é dos
néscios serem incorrigíveis; mas que uma sábia reduzisse
a tantos sábios, esta digo que foi a mais prodigiosa circunstância
daquela vitória, e o troféu mais ilustre da nossa sábia
vencedora.

Aquele prolóquio vulgar dos filósofos, que um semelhante não
tem atividade contra outro semelhante: Simile non agit in simile, em nenhuma
gente se verifica mais que de sábio a sábio. Como pelejam com
armas iguais, podem-se resistir, mas não se podem vencer. A mais celebrada
disputa de que há memória nas divinas letras, e como tal a primeira
e mais antiga coisa que se escreveu no mundo, foi a de Jó com aqueles
três filósofos que o vieram visitar em seus trabalhos (Jó
2, 11). Aconteceu-lhes o que acontece ordinariamente entre letrados, que começa
a visita em conversação, e acaba em questão e disputa.
Disse, pois, Jó o que lhe ditava a sua dor, e quando esta lastimosa
proposta pedia mais consolações que argumentos, argumentou contra
ela, em primeiro lugar, Elifaz, em segundo Beldad, em terceiro Sofar, e, posto
que Jó respondeu copiosa e eficazmente assim aos argumentos como as
instâncias, que uma e outra vez replicaram sobre as suas respostas.
Eliú, que ouvia de fora, tomou a mão sobre todos, e o argüiu
de novo tão furiosamente, que, se o mesmo Deus não interpusera
sua autoridade, favorecendo a parte de Jó, não se sabe em que
viria a parar a disputa. Pois, se Jó tinha tanta ciência, assim
adquirida como infusa, se natural e sobrenaturalmente era tão sábio,
se falou tanto e tão altamente, e com aquela força de eloqüência
que a mesma dor ensina ainda aos que não sabem falar, sobretudo, se
tinha de sua parte a razão, e respondeu a todas as contrárias,
como não rendeu nem convenceu estes amigos, antes os irritou mais?
Porque todos eram filósofos, todos sábios, todos doutos, e não
há mais dificultosa vitória que de sábio a sábios.
É verdade que a razão estava da parte de Jó, como definiu
o mesmo Deus, mas eles, como eram filósofos e doutos, ainda que lhes
faltasse a razão, ou sofísticas ou verdadeiras, para tudo tiveram
razões. Lede com atenção o que disseram, para que, depois
de admirados da profundidade de suas filosofias, vos admireis mais de que
Santa Catarina convencesse a tantos filósofos.

O que a mim me admira e pasma, sobretudo, é que toda esta vitória
fosse unicamente da sabedoria e eloqüência da nossa santa, sem
se valer de prodígios nem milagres, como em semelhantes conflitos fizeram
outros santos, e o mesmo Santo dos Santos. Ponde-vos à vista da cidade
de Damasco, vereis toldar-se o céu, bramir os ventos, escurecer-se
e acender-se as nuvens, tudo relâmpagos, tudo trovões, tudo raios
(At. 9,3)! Que é isto? É que desce Cristo do céu a reduzir
e converter a Saulo. Pois, tanto empenho, tanto aparato, tanto estrondo, tanta
máquina, para reduzir a um homem? Não sois vós, Senhor,
aquele mesmo que com um venite post me, reduzistes a Pedro e André,
a João e Diogo? Com um sequere me a Mateus? E com um descende (25)a
Zaqueu? Pois para reduzir também a Saulo, não bastam poucas
ou muitas palavras, senão acompanhadas de tamanhos prodígios?
Sim, diz a mesma Sabedoria descida do céu. Não sabeis que Saulo
é um homem douto, graduado na escola de Gamaliel, e o mais vivo engenho
de toda ela? Pois esta é a dificuldade e diferença que há
entre sábios e letrados aos que o não são, para se reduzirem
e converterem. Por isso se vêem tantas letras e tão poucas conversões.
Levantam-se os indoutos e idiotas com o reino do céu, e nós,
com as nossas letras, estamo-nos indo ao inferno, dizia Agostinho a Alípio,
e Alípio a Agostinho, e com esta consideração aquele
grande par de doutores se fizeram igualmente santos. Mas já que estamos
com São Paulo à vista, entremos com ele na Coimbra da Grécia,
e vejamos os progressos que faz a sua eloqüência e espírito
naquelas escolas.

Entrou São Paulo na cidade e Universidade de Atenas, mãe até
aquele tempo de todas as ciências do mundo; encontrou-se ali —
diz o texto (At. 17,16 s) -com vários filósofos, particularmente
estóicos e epicureus, com os quais disputou, e estes o levaram ao Areópago,
que era o tribunal supremo da justiça e da ciência, por que desse
conta da nova doutrina que pregava. Era Paulo aquele famosíssimo orador,
que de três coisas que desejava ver Santo Agostinho, a primeira era
a humanidade de Cristo, e a segunda a Paulo pregando. Pregou pois em presença
dos areopagitas com maior peso de sentenças, com maior eficácia
e energia de eloqüência do que nunca foi ouvido em Atenas Demóstenes.
E quantos converteu daqueles sábios? Caso maravilhoso! Um só,
Dionísio Areopagita, nos diz São Lucas que convertesse; mas
eu vos digo que, sendo esta conversão e vitória de um só,
não foi toda de São Paulo. Lembrou-se Dionísio que, peregrinando
no Egito com Apolofanes, vinte anos pontualmente antes, em vinte e cinco de
março, tinha visto na cidade de Heliópolis aquele estupendo
eclipse que o obrigou a exclamar, como ele mesmo escreve: Aut Deus naturae
patitur, aut mundi machina dissolvetur (26). E combinado o que tinha visto
com o que ouvia a Paulo, inferindo de uma verdade a outra, deu crédito
a tudo o mais que pregava. De sorte que, bem considerava esta conversão
do Areopagita, não foi Paulo propriamente o que o converteu a ele,
senão ele, pelo seu discurso, o que se converteu a si mesmo. E se contudo,
a quisermos atribuir às coisas ou instrumentos que para ela concorreram,
só a metade da vitória foi de Paulo, e a outra metade do sol.
O sol foi, como pedra de Davi, o que deu o primeiro golpe naquela cabeça,
e a espada de Paulo a que consumou a vitória. E se do apóstolo
das gentes, se do vaso de eleição, escolhido nomeadamente por
Deus para doutor e mestre da gentilidade. apenas se pode afirmar com inteiro
elogio que de todos os filósofos de Atenas converteu um, quem poderá
dignamente compreender, ó Catarina, a imensidade de louvor devido a
vossos triunfos, pois de cinqüenta filósofos escolhidos, n&atatilde;o
só na mesma Atenas, senão em toda a Grécia, Egito e Palestina,
nenhum houve que resistisse à vossa sabedoria e eloqüência:
a todos inteiramente vencestes e convencestes. Mas ainda não está
adequado o paralelo.

O modo com que São Paulo quis introduzir em Atenas a fé do
verdadeiro Deus, foi dizendo que ele achara naquela cidade um altar, o qual
tinha por título Ignoto Deo, e que este mesmo Deus, o qual Atenas já
adorava, mas não conhecia, era o que ele pregava. A razão deste
raro e prudentíssimo invento foi porque não esperava São
Paulo poder persuadir aos atenienses que recebessem outro Deus, constando
que Sócrates, na mesma cidade, fora condenado à morte com duzentos
e oitenta e um votos do senado, só por querer introduzir deuses novos.
Acomodando-se, pois, o apóstolo à capacidade, ou incapacidade
dos homens por uma parte tão supersticiosos da religião e por
outra tão presumidos da sabedoria, absteve-se de nomear nova divinidade,
ou nova adoração, e só lhes propôs e pregou um
novo conhecimento da que já adoravam: Quod ergo ignorantes colitis,
hoc ego annuntio vobis (27). Como se dissera: não vos prego que não
adoreis o que adorais, mas só que conheçais o que não
conheceis. Aquele a quem levantastes altar, vós mesmo credes que é
Deus, e vós mesmos confessais que o não conheceis: Ignoto Deo.
Pois este Deus, que vós já reconheceis por Deus, é o
que eu vos prego, e deste, que vós confessais por não conhecido,
é que eu vos anuncio o conhecimento. — Tão cortês,
e tão suavemente, e com tanto decoro e reverência da sabedoria
ateniense lhes quis introduzir São Paulo a fé do verdadeiro
Deus, mas não pôde. Lá vai São Paulo navegando
para Corinto (At. 18,1), sem outro despojo de Atenas mais que um filósofo.
Porém, Catarina, sem mover pé do teatro imperial, tanto maior
e mais ilustre que o Areópago, ali exprobra livremente aos filósofos
a falsidade de seus deuses, ali declara por idolatria as suas adorações
e altares, ali os obriga e convence, não só a crer com o entendimento
a verdadeira divindade de um só Deus, e todos os outros mistérios
da fé cristã, mas a confessá-los a vozes diante de todos.

VIII

Não sei se ponderais e sondais bem o fundo desta última cláusula.
Conhecer um sábio a sua ignorância ou o seu erro é muito
fácil: não fora sábio, se o não conhecera. Porém,
chegar a o confessar, e confessá-lo publicamente, é o ponto
mais árduo e dificultoso a que se pode reduzir o brio humano, e tanto
mais quanto maior for o nome, a opinião e o grau que tiver de douto.
Ponderou Nicodemos a doutrina de Cristo, juntamente com a grandeza de seus
milagres, e veio a conhecer que só ela era a verdadeira, e toda a outra
falsa: Scimus quia a Deo venisti, magister: nemo enim potest haec signa facere,
quae tu facis (28). Delibera-se a ir buscar o divino Mestre e lançar-se
a seus pés, para que o ensine, mas como? Erat homo ex pharisaeis, Nicodemus
nomine: hic venit ad Jesum nocte (29).

Despiu a toga, ou a beca, e disfarçado e desconhecido foi buscar ao
Senhor de noite. Vede como o argúi São João Crisóstomo:
Scimus, inquit, quia a Deo venisti, magister Quid ergo noctu venis, et clanculum
ad eum, qui divina docet qui a Deo venit? Quid non aperte profiteris (30)?Se
conheceis que Cristo é mestre vindo do céu, se conheceis que
a sua doutrina é divina, e o vindes buscar para que vos ensine, por
que vindes de noite e às escondidas, por que não confessais
isso mesmo clara e publicamente? — Porque Nicodemos era um mestre de
grandíssima reputação em Israel. Assim o declara o texto
grego: Tu es magister ilIe in Israel (31). E posto que ele já reconhecia
os seus erros, isso era em segredo, e das portas do seu entendimento para
dentro; porém, que esses mesmos erros e ignorâncias, de que já
estava convencido, os houvesse de confessar publicamente, de nenhum modo fez,
ou se atreveu a fazer tal coisa Nicodemos, porque lho não consentia
a reputação e o crédito, e por isso vinha de noite. De
noite reconhecia que era morcego, de dia queria ostentar-se águia.

Oh! se os livros falaram, quantas ignorâncias haviam de dizer, que
consultam com eles de noite, os que de dia se publicam grandes letrados? Mas
não é só a capa da noite a que dissimula estes defeitos.
Quantas vezes reconhece o quinau na consciência o mesmo que na cadeira
o defende a vozes? Pouco sabe quem não conhece a força do argumento
e a fraqueza da solução. Uma coisa é responder, outra
falar no cabo. Mas sendo mui freqüentes as contrições destes
pecados lá no secreto da consciência, chegar com eles à
pública confissão quem tem opinião de sábio, é
milagre só da graça de Santa Catarina. Todos aqueles cinqüenta
filósofos eram os primeiros mestres nas suas universidades, como vimos;
e que cada um reconhecesse a força das demonstrações
com que os impugnava Catarina, e dentro de si mesmo se descesse das opiniões
que tinha estudado e ditado, muito foi, mas não foi tanto; porém
que todos, em um ato tão público, não duvidassem de confessar
estes mesmos erros, e detestar as suas seitas, e não sustentar a toda
a força, e sem ela, os dogmas das suas escolas, aqui pasma a admiração,
e perde o nome o encarecimento.

Pus no último lugar o não sustentar os dogmas das suas escolas,
porque este é o último castelo em que o erro dos sábios,
ainda depois de convencido, se sustenta e defende obstinadamente, sem se render
à mais conhecida verdade. Grandes exemplos viu a nossa idade destas
batalhas do entendimento, e se perguntardes a uns e outros combatentes a causa,
não é outra que o amor natural ou parcial bebido com o leite
da primeira doutrina, e a honra e reputação da própria
escola. Mas vamos à primitiva Igreja. Contra a publicação
da lei da graça, que Santo Estêvão pregava, diz a história
dos Atos Apostólicos que entre outras escolas de Cilícia e de
Ásia se levantaram nomeadamente a dos libertinos, a dos alexandrinos
e a dos cirenenses, os quais disputavam com Estêvão, porém
que não podiam resistir à força do espírito e
sabedoria que nele falava: Surrexerunt quidam de Synagoga libertinorum et
syrenensium et alexandrinorum disputantes cum Stephano, et non poterant resistere
sapientiae et Spiritui qui loquebatur(32). Suposto, pois, que não podiam
resistir, segue-se que se renderam? Nada menos. Antes se viu aqui praticada
uma que parece implicação porque, faltando de uma parte a resistência,
da outra não resultou a vitória. Eles não podiam resistir,
e Estêvão não os podia vencer. Pois, homens sábios,
ou presumidos de sábios, se disputastes, se argüistes, se respondestes,
se tendes dito uma e outra vez quanto sabíeis, e vedes que não
podeis resistir, por que vos não rendeis, por que vos não confessais
vencidos? Porque libertinos, alexandrinos e cirenenses, todos pugnavam pelas
suas escolas, e quem pugna pela própria escola, poderá não
poder resistir, mas chegar a se confessar vencido, não pode ser. Faltar-lhes-ão
as razões, faltar-lhes-ão os argumentos, ver-se-ão atalhados
e mudos, e quando não tiverem outro gênero de defesa, arremeterão
às pedras, e assim foi. Em lugar de Estêvão sair vencedor
da disputa, saiu apedrejado, e eles tão obstinados e duros como as
pedras, mas não convencidos. Alexandrinos podemos dizer que eram todos
os cinqüenta filósofos que hoje se acharam no teatro de Alexandria,
mas todos de tão diferentes seitas e escolas, como as que já
nomeei. O espírito e sabedoria que falava em Catarina, reduziu-os a
termos que não podiam resistir: Non poterant resistere sapientiae et
Spiritui, qui loquebatur Mas a vitória maior e o ponto mais subido
dela, foi que se confessassem vencidos e convencidos, não só
contra o crédito das próprias opiniões de cada um, mas
contra a soberba e arrogância das suas mesmas escolas.

Desta maneira triunfou a nossa sábia vencedora de todas as escolas
mais famosas da filosofia gentílica, e assim conseguiu de todos os
cinqüenta filósofos, com o discurso de poucas horas, o que as
sábias do Evangelho não puderam conseguir de uma só néscia
em muitos dias de companhia e trato. A primeira vez que Ezequiel viu aquele
carro triunfal, chamado da glória de Deus, tiravam por ele quatro animais
enigmáticos, compostos de homem, de leão, de águia, de
boi (Ez. 1,10). Tornou depois o mesmo profeta a ver o mesmo carro, e dos quatro
animais, o boi estava transformado em querubim: Facies una, facies cherub;
et facies secunda, facies hominis; et in tertio facies leonis, et in quarto
facies aquilae (33). E donde lhe veio ao boi uma tão notável
melhora? Veio-lhe da companhia e trato que teve no mesmo carro com o homem
e com a águia, para que entendam os que desejam aprender e saber quanto
importa ainda aos mais rudes tratar com sábios. O querubim é
um rosto humano com asas, e como o boi no carro acompanhava com o homem e
com a águia, do homem tomou o rosto, e da águia as asas, e por
isso, sendo boi, saiu querubim. O mesmo se pudera esperar das cinco néscias,
por mais rudes que fossem; mas foi tão pouco eficaz a companhia e trato
das sábias, que todas ficaram tão néscias como dantes
eram. Ficou porém reservado o milagre da transformação
para o carro triunfal de Catarina com muito maior maravilha da que viu Ezequiel.

E se não, pergunto: por que se transformou ali o boi, e não
o leão? A rudeza ou bruteza do leão, como a do boi, ambas são
de quatro pés. Pois, se o leão igualmente andava junto com o
homem e com a águia, por que se não transformou também
em querubim? Porque o boi é animal sujeito e humilde, o leão
é inchado e soberbo, e, por mais racional que seja o entendimento do
homem, e mais sublime que seja a agudeza da águia, onde há inchação
e soberba, nem o homem, nem a águia podem introduzir a sua forma. Esta
é a alegoria do famoso carro, o qual, para maior glória de Catarina,
também hoje transformou os leões. Que eram os cinqüenta
filósofos, senão outros tantos leões soberbos e inchados
com a presunção e arrogância das suas ciências,
aos quais lançou o imperador Maximino a Catarina, naquele segundo anfiteatro
de Alexandria, como faziam no de Roma. Mas as razões do juízo
de Catarina eram tão superiores às de todos os homens, e a agudeza
do seu discurso tanto mais penetrante que a de todas as águias, que
nenhuma soberba a pôde rebater, nenhuma inchação resistir.
Sujeitos, pois, e humilhados assim os cinqüenta leões, todos com
a grenha caída, e todos com a boca tapada, essa mesma sujeição
e humildade os fez capazes da forma de querubins, e, transformados nesta nova
figura, com pompa jamais vista no mundo, foram os que levaram até o
céu o carro triunfal de Catarina, laureado de outras tantas palmas.
Eles diante, como sábios vencidos, e ela no trono, como sábia
vencedora: vencedora uma de tantos, vencedora mulher de homens, e vencedora
sábia de sábios.

IX

Tenho acabado o meu discurso, e não sei se satisfeito ao que prometi.
Seguia-se agora a peroração e exortar nela os ouvintes, como
se costuma, à imitação da santa; mas a nossa sábia
vencedora, assim na sabedoria como nas vitórias é inimitável.
O que só posso, e desejo aconselhar, é que todos os estudiosos
e doutos, já que não podem imitar a santa vencedora, imitem
os filósofos vencidos. Duas coisas tiveram insignes estes famosos catedráticos:
a primeira, a docilidade, a segunda, a constância. A docilidade, com
que se renderam à verdade conhecida da doutrina de Catarina, e a constância,
firme até a morte com que defenderam a mesma verdade, apesar e a despeito
do imperador.

Quem não é dócil, senhores, não pode ser douto;
antes, a mesma docilidade é um sinônimo da ciência. Disse
Deus a Salomão que pedisse o que quisesse, porque tudo lhe concederia.
O que pediu foi docilidade: Dabis servo tuo cor docile (34); e o que o Senhor
lhe concedeu foi a maior sabedoria que nunca teve, nem terá outro homem:
Dedi tibi cor sapiens, et intelligens in tantum, ut nullus ante te similis
tui fuerit nec posto te surrecturus sit (35). Pois, se Deus tinha prometido
a Salomão que lhe daria o que pedisse, e ele pediu docilidade, como
lhe deu ciência? Por isso mesmo. Porque docilidade e ciência são
a mesma coisa, e não podia Deus, segundo a sua promessa, deixar de
lhe dar ciência, tendo ele pedido docilidade. Assim lho disse o mesmo
Deus: Ecce leci tibi secundum sermones tuos (36). A ciência nenhuma
outra coisa é que o conhecimento claro de muitas verdades, umas em
si, que são os princípios, e outras que delas se seguem, que
são as conclusões. E aqueles que não têm docilidade,
— como são os tenazes do próprio juízo, e ferrados
à sua opinião — ainda que a verdade se lhes represente,
não são capazes de a receber. Por isso estes tais cada vez sabem
menos, e todas as vezes que a opinião passa a erro, perseveram nele.
O mesmo havia de suceder aos filósofos de Santa Catarina, persistindo
e obstinando-se mais nos erros das escolas que seguiam e em que foram criados;
mas a sua docilidade, que é o que só tinham de sábios,
foi a que lhes tirou dos olhos o véu da cegueira, com que conheceram
claramente a verdade, e, conhecida, a abraçaram e defenderam.

Nesta defensa consistiu a sua admirável constância, conservando-se
firmes no maior perigo e invencíveis na maior tentação,
em que costumam fraquear e cair os doutos. Qual vos parece que é a
maior e mais forte tentação em que se pode ver um homem letrado?
A maior tentação de um letrado é conhecer a inclinação,
e vontade, e o empenho do rei, e não torcer da verdade, nem acomodar
as suas letras ao que ele quer. E neste ponto tão árduo e dificultoso
é que se provou a constância dos cinqüenta filósofos
verdadeiramente sábios e doutos, depois que, na escola de Santa Catarina,
aprenderam o que não sabiam e conheceram a verdade. A vontade e empenho
do imperador Maximino em que pugnassem pela divindade de seus falsos deuses
e defendessem sua adoração; mas eles, sendo chamados e escolhidos
a esse fim, e conhecendo a vontade e empenho do imperador, e o risco a que
se expunham de cair na sua desgraça e nas mãos da sua crueldade
enfurecida, antes quiseram perder a vida e ser lançados, como foram,
em uma fogueira, que desdizer, nem torcer um mínimo ponto do que entenderam
que era verdade.

Oh! que ditosas seriam as repúblicas, que veneráveis as universidades,
e que bem-aventurados os mestres e doutores delas, se imitassem a verdade,
o valor e a constância destes filósofos! Beatus vir qui non abiit
in consilio impiorum, et in via peccatorum nom stetit, et in cathedra pestilentiae
non sedit (S1.1, 1). Estas são as primeiras palavras com que Davi,
rei e profeta, deu princípio ao Livro dos Salmos, cheios de tão
altos mistérios, sendo muito digno de se notar que os homens, também
primeiros, de que se falou, fossem os doutores e catedráticos. —
Bem-aventurados, diz, os que não ajuntarem o seu voto ao conselho dos
ímpios, os que não assistirem e defenderem o caminho dos pecadores,
e os que se não assentarem na cadeira da peste. — E se os que
isto fazem, são por isso bem-aventurados, os que fizerem o contrário,
que serão? As cadeiras das universidades, ainda que sejam de Teologia,
de Leis, de Cânones, todas são de Medicina, porque todas se ordenam
à saúde pública. E que seria se os catedráticos
da saúde se trocassem em catedráticos da peste: In cathedra
pestilentiae? Pois, saibam que tais são os que, tentados da ambição,
da lisonja ou do temor, em lugar de desenganarem com a verdade aos príncipes
que os consultam, se deixam enganar do seu, ou de outros respeitos, e o que
eles desejam ou pretendem, isso respondem que é justo. Mudam as leis
como as velas, segundo o vento que corre, dissera eu; mas Davi o declarou
com comparação mais vil, e por isso mais própria, dizendo
que se deixam levar do mesmo vento como o pó da terra: Tanquam pulvis,
quem projicit ventus a facie terrae (37). Os que são ou podem ser tentados
desta tentação ouçam ao grande Teodoreto na exposição
deste mesmo texto: Nam quando tentatio flaverit, arguuntur tanquam pulvis
terrae, hinc inde dispersi ad placitum dynastarum sententiam mutantes: A tentação
é a esperança ou o temor; os doutores inconstantes são
o pó solto e leve; a vontade ou inclinação dos dinastas
é o vento; e o voto, a sentença e a interpretação
das leis, o que eles querem ou se presume quererem. E por esta perversão
das letras e dos letrados, as mesmas universidades e cadeiras, donde havia
de manar a saúde pública, vêm a ser o veneno, a ruína
e a peste dos reinos: Cathedra pestilentiae.

Se eu pregara onde agora me não querem ouvir, não deixara de
representar aos reis, ou a seus ministros, o exemplo nunca assaz louvado de
Baltasar, e o prêmio que tirou Daniel da verdade e constância
com que lhe interpretou as suas letras. Continha-se nelas não menos
que a morte do rei, a perda da coroa imperial e a sujeição de
toda a monarquia a seus inimigos; e, não lhe restando a Baltasar mais
que poucas horas de vida, na mesma em que lhe anunciou Daniel uma tão
funesta sentença, o mandou vestir de púrpura e levantar à
maior dignidade. Assim premiou um tal desengano quem tão enganado vivia.
Mas esta generosidade e justiça de um rei gentio falta hoje em muitos
príncipes cristãos e desejosos de parecer justos, os quais antes
querem imitar ao imperador Juliano, tão apóstata da verdade,
da razão e da sua mesma coroa, como o tinha sido da fé. Tendo
freqüentado Juliano a Universidade de Atenas, e prezando-se de douto,
só estimava e premiava aqueles letrados que não conheciam outra
lei mais que a da sua vontade. Assim o escreve dele seu antigo condiscípulo,
São Gregório Nazianzeno: Alios honoribus capiens, nimirum eos,
qui nullam legem, quam principis voluntatem agnoscebant. E onde os professores
das letras têm os aumentos seguros na adulação e perigosos
na verdade, vede se lhes é mais necessário serem jubilados na
constância que graduados nas ciências?

Sobre esta injustiça dos prêmios ainda acresce outra maior e
que mais reforça a tentação. E qual é? É
que estes hereges das leis — ainda que sejam canônicas —
são os aplaudidos de letrados e os reputados por doutos; e, pelo contrário,
os que defendem a razão e pugnam pela verdade, ficam tidos por idiotas
e ignorantes, como ficaram os nossos filósofos na opinião de
Maximino e dos seus aduladores. Esta circunstância de tentação,
como dizia, é a mais forte, e, para ânimos generosos, a mais
sensível, quanto vai do interesse à honra. Mas, para que todo
o letrado cristão não tema o boato destas opiniões, posto
que coroadas, e vença a vaidade delas com a verdade, tome na memória
uma só sentença, com que acabo, digna de se mandar gravar com
letras de bronze em todas as universidades do mundo: Penes regem noli velle
videri sapiens (Ecl. 7,5): Guarda-te de querer ser tido por sábio no
conceito dos reis. — E de quem é este conselho, este aviso e
esta cautela? Não é menos que do Espírito Santo, por
boca do Eclesiástico, para que ninguém a duvide. Mas, se o que
mais estimam os homens, e porque mais trabalham, assim na paz como na guerra,
é que os reis tenham boa opinião deles, que razão particular
há nos sábios para que a não queiram? A razão
é porque os reis — comumente — não têm por
doutos e sábios senão aqueles que em tudo aprovam e se conformam
com os seus ditames e interesses políticos, e com as razões
ou pretextos com que os querem justificar; e como isto muitas vezes não
pode ser sem ofensa das leis divinas e violências das humanas, melhor
é para os tais casos ser reputado por menos douto, e não ter
para com os reis opinião de sábio: Penes regem noli velle videri
sapiens. E notai que não só diz o Espírito Santo: não
queiras ter tal opinião com os reis, mas o que diz é: não
queiras querê-la ter: Noli velle: não queiras querer. De sorte
que não só proíbe o desejo, senão o desejo do
desejo; nem só proíbe a vontade, senão a vontade da vontade:
Noli velle porque, se quem não quer, está longe de desejar,
quem não quer querer, ainda está mais longe. E tão longe
como isto deve estar todo o sábio de querer parecer sábio diante
dos reis: Penes regem noli velle videri sapiens.

Isto é o que todo o sábio deve não querer querer, e
queira Deus que todos não queiram, assim como não quiseram todos
os filósofos que Santa Catarina fez, não só verdadeira,
mas constantemente sábios. A mesma sábia vencedora, pela grande
valia que tem com Deus, alcance a todos os presentes esta fortaleza e constância,
para que, vencedores de tão grave tentação, e perseverando
até à morte na mesma vitória, mereçam ser admitidos,
com os que ela ensinou, à companhia e glória de seu triunfo.
Amém.

(1) Mas cinco de entre elas eram loucas, e cinco prudentes (Mt. 25,2)
(2) A sabedoria edificou para si uma casa (Prov. 9, 1).

(3) Saíram a receber o Esposo e a Esposa (Mt. 25,1)

(4) E, tardando o esposo (Mt. 25,5)

(5) E as que estavam apercebidas entraram com ele a celebrar as bodas, e
fechou-se a porta (Mt. 25,10).

(6) Cujo cume chegue até o céu (Gên. 11,4)

(7) E pois que eles começaram esta obra, não desistirão
do seu intento, menos que o não tenham de todo executado (Gên.
11,6)

(8) Vinde, pois, desçamos e confundamos a sua linguagem (Gên.
11,7).

(9) Destrói, Senhor, confunde as línguas deles, porque tenho
visto a injustiça e a contradição na cidade (Sl. 54,10).

(10) Mata e come (At. 10,13) — Ita Greg. Chrysost. et alii PP.

(11) E lançaram cada um deles a sua vara, as quais se converteram
em dragões (Êx. 7, 12).

(12) Pois eu não permito à mulher que ensine (1 Tim. 2,12).

(13) A mulher aprenda em silêncio (1 Tim. 2,11).

(14) Naquele dia, pois, humilhou Deus a Jabim, rei de Canaã, diante
dos filhos de Israel (Jz. 4,23)

(15) Eu sou, que falo contigo (Jo. 4,26).

(16) Temos achado ao Messias, que quer dizer o Cristo (Jo. 1,41).

(17) Achamos aquele de quem falou Moisés na lei, e de quem escreveram
os profetas, a saber Jesus (Jo. 1,45).

(18) A mulher, pois, deixou o seu cântaro, e foi-se à cidade,
e disse àqueles homens (Jo. 4,28).

(19) Mas o que as mulheres lhes diziam pareceu-lhes um como desvario, e não
lhes deram crédito (Lc. 24,11).

(20) Na verdade o Senhor ressuscitou, e apareceu a Simão (Lc. 24,34)

(21) Certas mulheres, das que conosco estavam (Lc. 24,22).

(22) Ora nós esperávamos, mas certas mulheres nos espantaram
(Lc. 24,22).

(23) Na alma maligna não entrará a sabedoria (Sab. 1, 4).

(24) Uma estultícia para os gentios (1 Cor. 1,23).

(25) Vinde após mim (Mt. 4, 19). Segue-me (Mt. 9,9). Desce (Lc. 19,5).

(26) Ou está padecendo o Deus da natureza ou a máquina do mundo
se desmorona.

(27) Pois, aquele Deus, que vós adorais sem o conhecer, esse é
de fato o que vos anuncio (At. 17,23).

(28) Sabemos que és mestre, vindo da parte de Deus, porque ninguém
pode trazer estes milagres que tu fazes (Jo. 3, 2).

(29) E havia um homem dentre os fariseus, por nome Nicodemos. Este uma noite
veio buscar a Jesus (Jo. 3,1 s).

(30) Chrysost. Hom. 23.

(31) Maldonat. hic.

(32) E alguns da sinagoga, que se chama dos libertinos, e dos cirenenses,
e dos alexandrinos, e dos que eram da Cilícia, e da Ásia, se
levantaram a disputar com Estêvão, e não podiam resistir
à sabedoria e ao Espírito que nele falava (At. 6, 9).

(33) Uma face era face de querubim, e a segunda face era face de homem, e
no terceiro havia face de leão, e no quarto face de águia (Ez.
10, 14).

(34) Darás a teu servo um coração dócil (3 Rs.
3,9)

(35) E te dei um coração tão cheio de sabedoria e de
inteligência, que nenhum antes de ti te foi semelhante, nem se levantará
tal depois de ti (3 Rs. 3,12).

(36) Eis, pois, te fiz o que me pediste (3 Rs. 3, 12).

(37) Como o pó que o vento espalha de cima da face da terra (Sl 1,
4).

Sermão de Santa Catarina Virgem e Mártir

Em ocasião que se festejava em Lisboa uma grande vitória

Ne forte-Math.
I.
Breve cláusula para tema; porém grande para sermão! E
tão grande e tão forte a significação deste ne
forte, que com ela se sustentam e são fortes todas as fortalezas; e
as que não são fortes nem se defendem, só por falta dela
se rendem e são vencidas. E que quer dizer ne forte? Quer dizer: para
que não por algum engano; para que não por alguma violência;
para que não por algum descuido próprio ou diligência
e indústria alheia. É o ne forte um advérbio, sempre
vigilante, mas indeciso; é uma suspensão do que é; é
uma dúvida do que será; é um cuidado solícito
do que pode ser. É um receio temeroso do futuro, não esquecido
do passado, nem divertido do presente; e neste círculo de todos os
tempos acautelado para todos. Deriva-se a palavra ne forte daquela que o mundo
chama Fortuna, e é uma força tão poderosa e tão
forte, que desarma a mesma Fortuna de todos os seus poderes; por que a quem
sempre estiver cuidadoso do que ela pode fazer ou desfazer, nunca lhe acontecerá
que diga—não cuidei—, que é a primeira máxima
da prudência.

De prudentes e néscias se compõe toda a história do
nosso Evangelho, gloriosa para umas e trágica para outras. As prudentes
foram as aventurosas, porque disseram: Ne forte: as néscias as sem
ventura, porque o não souberam dizer. As prudentes com as alampadas
acesas entraram às vodas; as néscias às escuras e com
elas apagadas, ficaram de fora. Cuidaram as néscias que se lhes não
apagariam as alampadas, cuidaram que seriam socorridas das companheiras, cuidaram
que ainda que chegassem tarde, se lhes abririam as portas; e depois de tanto
cuidar, acharam que não tinham cuidado; porque não cuidaram
quanto, e como convinha, nem souberam dizer a tempo—ne forte. Três
vezes o disseram as prudentes; na consideração, na prevenção
e na resolução. Na consideração, considerando
que por falta do sustento natural do óleo se podia apagar o fogo e
morrer a luz das alampadas; na prevenção, porque se preveniram
de o levar nas redomas, para delas o suprir, quando faltasse; na resolução,
porque faltando às companheiras, resolutamente lhe responderam, que
não as podiam socorrer, porque podia não bastar para todas:
Ne forte non sufficiat nobis et vobis (Math. XXV—9).

Oh virgem fortíssima e prudentíssima Catarina, que bem retratada
vos vejo nas cinco prudentes do Evangelho, como Juno pelo pincel de Zeusis
nas cinco escolhidas de Argentina! Ofereceu o imperador Maximino a Catarina
tudo o que podia dar neste Mundo a Fortuna, que eram as vodas e coroa imperial;
mas porque a virgem prudentíssima, ainda com prudência humana,
considerou nesta grande oferta, não o que era, senão o que podia
ser, desprezou a coroa da Terra sujeita à roda da Fortuna, e segurou
a que hoje goza no Céu, que a mesma Fortuna nem pode dar, nem tirar:
Ne forte. Este será o argumento do meu discurso, tão próprio
do tempo presente, como das graças que devemos a Deus pelas fortunas
do mesmo tempo. Mas como para acertar a dar estas graças é necessário
que o mesmo Deus nos assista com a sua, peçamo-la primeiro, por intercessão
da cheia de graça. Ave Maria.

II.
Ne forte.
Todos os títulos que nos obrigam a dar graças a Deus pelos triunfos
do tempo presente, me parece que estou vendo copiados e divididos nas gloriosas
insígnias daquela sagrada imagem. Está adornada a imagem de
Santa Catarina com os três instrumentos ou troféus da sua vitória
—uma palma, uma espada, uma roda. Os oradores evangélicos, que,
entre salvas, repiques e luminárias celebraram ategora a felicidade
de nossas armas na campanha deste ano, uns tomaram por assunto a palma, outros
a espada: na palma, fazendo panegíricos à vitória; na
espada, ao valor dos capitães e soldados. E porque nenhum ategora falou
na roda, ela será o meu assunto. As palmas, que têm as raízes
na Terra, todas se podem secar, ou murchar; só são perpetuamente
verdes aquelas que viu S. João no seu Apocalipse: Et palma in manibus
eorum (Apoc. VII—9). As espadas também têm os seus reveses
na Terra, ainda que sejam descidas do Céu. Do Céu trouxe a alma
do profeta Jeremias a espada que meteu na mão a Judas Macabeu; mas
depois de tantas vitórias, enfim, pode dizer com Davide aquele valorosíssimo
capitão: Gladius meus non salvabit me (Psalm. XLIII —7); porque
na trágica batalha contra Báquides e Alcimo não defendeu
ao grande Macabeu a sua espada, e com ela na mão caiu morto. Tudo isto
são avisos às palmas, rebates às espadas e desenganos
a todo o vencedor, que no meio dos maiores triunfos podem temer a roda. Esta
roda, pois, como prometi, será o meu argumento, o qual sobre os eixos
dela se revolverá em dois discursos, quanto for possível, breves.

III.
Ne forte. Variamente pintaram os antigos a que eles chamaram Fortuna. Uns
lhe puseram na mão o Mundo, outros uma cornucópia, outros um
leme; uns a formaram de ouro, outros de vidro e todos a fizeram cega, todos
em figura de mulher, todos com asas nos pés e os pés sobre uma
roda. Em muitas coisas erraram, como gentios; em outras acertaram como experimentados
e prudentes. Erraram no nome de Fortuna, que significa caso, ou fado; erraram
na cegueira dos olhos; erraram nas insígnias e poderes das mãos;
porque o governo do Mundo, significado no leme e a distribuição
de todas as coisas, significada na cornucópia, pertence somente à
Providencia Divina, a qual não cegamente, ou com os olhos tapados,
mas com a perspicácia de sua sabedoria e com a balança de sua
justiça na mão, é a que reparte a cada um e a todos,
o que para os fins da mesma Providência com altíssimo conselho
tem ordenado e disposto. Acertaram, porém, os mesmos gentios na figura
que lhe deram de mulher, pela inconstância; nas asas dos pés,
pela velocidade com que se muda; e sobretudo em lhos porem sobre uma roda;
porque nem no próspero, nem no adverso, e muito menos no próspero,
teve jamais firmeza. Dos que a fizeram de ouro diremos depois; o que agora
somente me parece dizer, é que os que a fingiram de vidro pela fragilidade,
fingiram e encareceram pouco; porque ainda que a formassem de bronze, nunca
lhe podiam segurar a inconstância da roda.

Em uma das fábricas particulares e famosas do Templo, diz o texto
sagrado, que fez Salomão dez bases de bronze, quadradas e iguais por
todas as partes: Fecit decem bases aneas, quatuor cubitorum longitudinis,
bases singulas et quatuor cubitorum latitudinis (3. Reg. VII-27). Diz mais
(o que se o não dissera, não se imaginara) que estas dez bases
se assentara cada uma sobre quatro rodas: Et quatuor rota per bases singulas
(Ibid.—3o): acrescentando para maior clareza, que as rodas eram propriamente
como as das carroças, com seus eixos, raios e tudo o mais fundido também
no mesmo bronze: Tales autem rotæ erant quales solent in curru fieri;
et axes earum, et radii, et canthi, et modioli, omniu fusilia (Ibid. —33).
Toda esta miudeza foi necessário que se explicasse, para que se entendesse
a obra, da qual se não fora o autor Salomão, quem haveria que
ao menos não estranhasse tal modo de arquitetura? As bases são
o fundamento e firmeza de toda a fábrica; a figura quadrada, entre
todas as figuras a mais firme; o bronze, entre todos os metais o mais forte.
Pelo contrário, as rodas com eixos, e todos os outros instrumentos
de se moverem, são entre todas as cousas a menos constante, a menos
estável, a menos firme. Pois porque assenta a sabedoria de Salomão
toda a firmeza e fortaleza das suas bases sobre rodas? Assentadas as bases
sobre rodas, ficam sendo as rodas bases das bases; e isto, que não
faria, não digo eu Vitrúvio, (I) senão o arquiteto mais
imperito, que o fizesse Salomão?!—Sim, e com tanta arte como
mistério. Aquela obra era o chamado mar Éneo (2), fabricado
antes de espelhos, e para espelho dos que nele se fossem ver e compor. Quis
pois o mais sábio de todos os homens, que na mesma traça, disposição
e ordem da fábrica, vissem e reconhecessem todos, que não há
não pode haver neste Mundo coisa alguma tão sólida, tão
forte, tão firme, nem ainda tão santa (qual aquela era), que,
como se estivera fundada sobre rodas, não esteja sempre sujeita às
voltas, declinações e mudanças de qualquer impulso, impressão
ou movimento contrário. Tudo o que se diz da Fortuna, e seus poderes,
é fingido e falso; só uma coisa há nela certa e verdadeira,
que é a roda.

E para que nos vamos chegando ao nosso caso, deixados os vidros e bronzes,
que são nomes metafóricos, falemos agora com o próprio
do homem, e de todas as coisas humanas, que é o barro. Mandou Deus
Nosso Senhor ao profeta Jeremias, que fosse à oficina de um oleiro,
e que depois de ver o que aquele homem fazia, lhe declararia o por que lá
o mandava. Foi o profeta, e diz que achou o oleiro trabalhando sobre a sua
roda: Et ecce ipse faciebat opus super rotam (Jerom. XVIII—3). E notando
então com particular advertência o que fazia, viu que ao princípio
estava formando um vaso muito polido, o qual, como se lhe descompusesse e
desmanchasse entre as mãos, desfê-lo, e, como irado contra ele,
tornou a amassar e pôr na roda o mesmo barro, e fez outro vaso muito
diferente, como lhe veio à fantasia. Aqui falou então Deus ao
profeta, e lhe disse desta maneira:—Assim como o oleiro tem nas suas
mãos o barro, e dele faz uns vasos e desfaz outros; assim tenho eu
nas minhas mãos o Mundo, e posso desfazer uns reinos e fazer outros
ao meu arbítrio. E se ele com a ponta de um pé dá estas
voltas a sua roda, julga tu, se o poderei fazer eu. Vai a Jerusalém,
conta-lhe o que viste e dize-lhe que o primeiro vaso tão polido que
o oleiro fazia, é o reino de Israel, tão amado e favorecido
da minha providência, o qual com a sua rebeldia se me descompõe
entre as mãos; e que ainda estou aparelhado para lhe perdoar e arrepender
do que tenho determinado; mas que se ele se não quiser emendar, darei
volta à roda, e do mesmo barro farei outro vaso. Jerusalém passará
para Babilônia, e o reino, que aqui é de El-Rei Joaquim com liberdade,
lá será de Nabucodonosor com perpétuo cativeiro. E assim
foi.

Oh que facilmente se engana o juízo humano nas apreensões de
qualquer sucesso próspero? Por isso disse sábia e prudentissimamente
o grande senador romano, Severino Boécio, que melhor e mais útil
é ao homem a fortuna adversa, que a próspera: Plus reor hominibus
adversam, quam prosperam prodesse fortunam (I). E dá a razão;
porque a próspera mente e a adversa desengana: Illa enim semper specie
felicitatis, cum videtur b1anda, mentitur; hæc semper vera est, cum
se instabilem mutatione demonstrat. Illa fallit, hæc instruit. Quem
se não quiser enganar com as lisonjas da Fortuna próspera, olhe
para a roda. Nela, e do mesmo barro faz Deus reinos e desfaz reinos; desfaz
Jerusaléns e acrescenta Babilônias; cativa os livres e restitui
a liberdade aos cativos. Assim o fez a benignidade divina, dando outra volta
à roda, e restituindo os cativos de Babilônia a liberdade, de
que poucos já se lembravam, no fim de setenta anos: caso bem parecido
ao nosso.

IV.
Lá, depois de setenta anos; cá, depois de sessenta, uns e outros
profetizados: mas nem por isso cuide alguém, que para todas estas voltas
da roda são necessários tantos espaços ou tantos vagares
do tempo. As rodas do carro de Ezequiel, em que Deus se lhe mostrou governando
todo este Mundo, eram cada uma composta de duas, uma roda atravessada e outra
cruzada com ela pelo meio. Isso quer dizer: Rota in medio rotæ (Ezeq.
X—10). E que rodas eram e são estas?—Uma é a roda
da Fortuna, outra a roda do Tempo. Mas de taI maneira unidas e travadas entre
si, e tão independentes uma do curso da outra, que para a roda do Fortuna
dar uma volta inteira, não é necessário que a de também
inteira o Tempo. As voltas da roda do Tempo são as mesmas que as do
Sol. O Sol dá uma volta maior cada ano, e uma maior cada dia. Porém,
para a Fortuna dar uma volta inteira aos maiores impérios não
são necessários anos nem dias.

O maior império e monarquia que tinha havido no Mundo, era a dos assírios
e caldeus. E quantas horas houve mister a roda da Fortuna para derribar esta
e levantar sobre ela outra maior? Diga-o a Escritura Sagrada por boca de Daniel,
que se achou presente: Eadem nocte intrfectus est Baltassar rex chaldæus,
et Darius Medus successit in regnum (Dan. V—3º e 3I): Na mesma
noite fatal em que o rei com mil magnates da sua monarquia, convidados para
um solene banquete, estavam brindando aos seus deuses, foi morto—diz
Daniel—Baltazar, rei caldeu, e lhe sucedeu no império Dario medo.
De sorte que tanto mais depressa deu volta a roda da Fortuna que a roda do
Tempo, que, não tendo o Tempo em ausência do Sol andado um dia
natural, nem meio dia, a Fortuna, morto Baltazar e sucedendo-lhe na coroa
Dario, já tinha posto por terra a monarquia dos assírios e caldeus,
e levantado até as nuvens a dos persas e medos.

Caiu a monarquia, mas não caiu a corte; porque ficaram em pé
os famosos muros de Babilônia, com os seus jardins cultivados no ar,
por isso chamados hortos pensiles; onde, porém, até as flores
não escaparam de ficar tristemente murchas e secas, servindo a mãos
estranhas, que as não tinham regado. E para que alguém não
imagine da roda da Fortuna, que, não perdoando às coroas, ao
menos dá quartel às pedras; passando do maior império
da Ásia à melhor cidade da Europa, ouçamos em outra coisa
não menos trágica, quão precipitada é a sua volta
também em estas ruínas.

Fala Sêneca da antiga Lugduno (I), que anoitecendo cidade, amanheceu
cinza, e escreve assim: Tot pulcherrima opera, quæ singula illustrare
urbes singulas possent, una nox stravit. Et in tanta pace, quantum ne bello
quidem timeri potest, accidit. Quis credat? Lugdunum, quod ostendebatur in
Gallia, quæritur. Omnibus fortuna, quos publice affixit, quod passuri
erant, timere permisit. Nulla res magna non aliquod habuit ruinæ suæ
spatium. In hac una nox interfuit inter urbem maximum, et nullam. Denique
diutius illam periisse, quam periit, narro (Sénec. Epist.). É
lástima haver de afrontar com a tradução de qualquer
outra língua a elegância destas palavras. "Aqueles famosos
edifícios—diz Sêneca—que cada um deles pudera enobrecer
e ilustrar uma cidade, todos igualou com a terra uma noite; e aconteceu na
bela paz, o que nem da mais furiosa guerra se pudera temer. Quem tal crera?
Aquela Lugduno, que se mostrava por maravilha na Gália, busca-se nela,
e não se acha. A todos os que a Fortuna afligiu publicamente, permitiu
que temessem o que haviam de padecer, e a nenhum coisa grande deixou de dar
o tempo algum espaço à sua própria ruína. Só
nesta, entre a cidade máxima e o nada, não houve mais que uma
noite. Ainda acabou mais depressa do que eu o escrevo". Atequi a narração
e ponderação do grande filósofo. E como para as maiores
voltas e mudanças da roda da Fortuna não são necessários
anos, nem dias inteiros, e da ametade de um dia sobejam ainda horas e essas
as mais ocultas à vista; que segurança pode haver tão
confiada, que entre os abraços mais lisonjeiros da felicidade não
tema os seus reveses? E que reino ou república, que rei ou capitão
prudente, que entre os maiores triunfos lhe não esteja sempre batendo
às portas do coração aquela voz duvidosa: Ne forte?

V.
Não é minha tenção com este discurso querer que
a muito nobre cidade de Lisboa entristeça a sua alegria, nem ponha
silêncio aos seus aplausos; porque seria ser ingrata ao Céu e
negar os públicos pregões da fama aos que com o seu esforço
e sangue tão honradamente lhos mereceram. O que só desejo é
que toda esta Monarquia de Portugal se não deixe tanto inchar do vento
da Fortuna que se fie dela e a creia. Ouvi debaixo de um paradoxo o mais sisudo
juízo da prudência militar. Como na guerra não há
coisa mais para estimar que o vencer, assim não há outra mais
para temer que a mesma vitória. Quando o sábio capitão
se vir mais vitorioso e triunfante na carroça de Marte e da Fortuna,
então é que mais se deve temer da volta das suas rodas.

Vencedor Abraão de quatro reis, que tinham vencido outros cinco, e
levado cativo com parte deles a Lote seu sobrinho, fizeram mais famosa esta
interpresa três circunstâncias notáveis: uma da parte dos
reis vencidos, outra da parte de Abraão vencedor, e a terceira da parte
de Deus, que neste acontecimento lhe apareceu e falou. Notável da parte
dos reis vencidos; porque naquela mesma noite em que contentes e divertidos
estavam brindando a sua vitória, deu sobre eles Abraão, com
que a não chegaram a lograr quatro horas inteiras, bastando tão
pouco espaço de tempo para dar volta a roda, e de vitoriosos e triunfantes
se verem vencidos. Notável da parte de Abraão vencedor; porque,
voltando triunfante com parabéns e aplausos de Melquisedeque, rei de
Salem, nenhuma demonstração fez de festejar o seu próprio
triunfo. Não havia então salvas de artilharia, nem repiques,
nem luminárias, mas conforme o uso daquele tempo, pudera levantar troféus,
que eram árvores, desgalhados os ramos, e penduradas deles as armas
e despojos dos inimigos que Abraão desprezou generosamente. Notável
enfim da parte de Deus; porque naquela mesma ocasião lhe apareceu o
Senhor dos exércitos e lhe disse estas notáveis palavras: Noli
timere, Abraham, ego protector tuus (Gen. XV —I); ou, como se lê
no texto original: Ego scutum tuum: Não temas, Abraão, que eu
sou o teu protetor e o teu escudo. Aqui é o meu reparo, e primeiro
que tudo, naquele noli timere: Não temas. Não é este
Abraão aquele mesmo, que pouco há tão animoso e destemido,
com resolução quase temerária se atreveu a acometer quatro
reis vitoriosos e triunfantes só com trezentos e dezoito homens de
sua casa? Não é aquele mesmo que com tanta arte, disposição
e ordem militar soube repartir os seus, e de tal modo, e a tal tempo investiu
os inimigos que, sem lugar de se defenderem, os pôs a todos em fugida?
Pois se antes não temeu a batalha, sendo tão arriscada; como
agora teme, depois de a vencer, e tão venturosamente? Dantes podia
temer os inimigos por muitos e vitoriosos; mas agora, depois de destratados
e vencidos, a quem teme, ou de quem se teme?—Teme-se da sua própria
vitória. Por isso Deus que, para vencer a batalha, lhe não deu
a espada, para conservar e defender a vitória lhe promete o escudo:
Ego scutum tuum.

Vede quanta razão e quantas razões tinha Abraão para
temer e se temer da sua vitória: Noli timere. Considerava Abraão
que ele era um, e os reis que vencera quatro: e na comparação
de um a muitos, que coração haverá tão agigantado,
que com os pés na campanha não tema? O gigante Golias coberto
de ferro, e maior na sua soberba que na sua estatura, nunca se atreveu em
quarenta dias a desafiar mais que a um: Ad singulare certamen (I Reg. XVII-10).
De Hércules, cujas forças e façanhas é mais certo
que foram fabulosas do que verdadeiras, é contudo verdadeiro o provérbio
que: Nec Hercules contra duos. E posto que as de Judas Macabeu, canonizadas
na Escritura Sagrada, não admitem dúvida, também a não
há, de que na última batalha, que teve quase vencida, acabou
sem remédio, nem resistência, não vencido no valor, mas
oprimido da multidão. Considerava mais Abraão que o poder menor,
competindo com o grandemente maior, ainda quando vence sempre fica desigual:
e é tal a diferença nesta desproporção defensiva,
que o maior, ainda perdendo muitas batalhas, facilmente se conserva na sua
mesma grandeza; e o menor, tendo necessidade de muitas vitórias para
se conservar, bastará perder só uma para se perder. Finalmente,
temia Abraão a sua vitória; porque não olhava para ela
só, senão juntamente para a dos mesmos inimigos, a quem vencera.
E se eles—dizia consigo—não lograram a sua vitória
quatro horas inteiras; que segurança posso eu ter de me sustentar sempre
na minha? Porventura pregou ela algum cravo na roda da Fortuna, para que não
dê aquelas voltas que continuamente está dando o Mundo, sem jamais
parar?

Oh como pudera o mesmo Abraão confirmar este seu temor depois da vitória
dos quatro reis, com o exemplo de outros quatro do Egito, onde já no
tempo de Abraão se começavam a coroar os homens! Sesóstris,
rei do Egito, depois de vencer outros quatro reis vizinhos, se desvaneceu
a tanta soberba, que em lugar de outros tantos cavalos, mandou que os quatro
reis vencidos tirassem pela sua carroça. Assim se fez. Em um dia, porém,
de grande celebridade, advertiu que um dos reis vencidos de tal maneira caminhava
ao compasso dos outros, que o rosto e os olhos sempre os levava voltados,
e postos no rodar da mesma carroça. E como Sesóstris lhe perguntasse
com que pensamento o fazia, respondeu:—Intueor volumen hoc assiduum
rotæ in qua vicissim ima summa, et summa ima fiunt: Levo sempre postos
os olhos nesta roda; porque vejo nela, que assim como esta parte que agora
está em baixo, esteve já em cima, assim a que está em
cima, com meia volta só, torna a estar em baixo. Entendeu o mistério
o rei vitorioso e soberbo, e mandou logo tirar do jugo aos vencidos. As vitórias
próprias, sem os olhos na roda, ensoberbecem; com os olhos nela, humilham.
Com os olhos na roda, aos vencidos causaram esperança, e aos vencedores
temor. Por isso Abraão temia a sua vitória, e todos os grandes
capitães temeram sempre as suas.

Ouvi isto mesmo admiravelmente discursado por Sêneca, o poeta, e com
a mesma propriedade representado por El-Rei Agaménon, rei e general
do exército grego, depois de abrasada Tróia: Stat avidus ira
victor, et lentum Ilium metitur oculis: Olhava para Tróia vencida o
vencedor Agaménon; e porque a não podia ver toda de uma vez,
lentamente e pouco a pouco ia medindo com os olhos sua grandeza. A primeira
coisa que deve fazer o prudente vencedor, é tomar bem as medidas ao
país vencido: Et lentum Ilium metitur oculis. E que se seguirá
de aqui? O que aconteceu a Agaménon: Victamque quamvis videat, haud
credit sibi potuisse vinci: e ainda que Agaménon estava vendo vencida
a Tróia, não acabava de crer, nem de se persuadir a si mesmo,
que ele a tivesse vencido. Não se podia louvar mais nem encarecer melhor
a grandeza da vitória. Na opinião invencível, aos olhos
vencida. E passando da terra à coroa, da metrópole ao rei, e
de Tróia a Príamo, a conclusão do juízo de Agaménon
foi esta: Tu me superbum, Priame, tu timidum facis: Tu, ó Príamo,
me fazes soberbo e tu me fazes tímido. Quando vejo que venci um tão
grande rei como Príamo, monarca e senhor de toda a Ásia, vêem-me
pensamentos de soberba: Tu me superbum, Priame. Mas quando no mesmo Príamo
me vejo a mim, como em espelho, e quando considero e reconheço que,
assim como eu o venci a ele, outro me pode vencer a mim; e dando volta a Fortuna,
como hoje me vejo vencedor, amanhã me posso ver vencido, todos os ardores
da soberba se me convertem em frios de temor: Tu me superbum, tu timidum facis.

Este foi o juízo de Abraão em temer a sua vitória: e
este o de Agaménon em temer a sua: e o meu no nosso caso qual será?—Porque
não me persuado a temer nem quero persuadir temores, e por outra parte
quisera prometer segurança às nossas vitórias, sujeitas
todas aos reveses da roda da Fortuna; só no escudo que Deus prometeu
a Abraão, que é círculo permanente, as acho. Escreve
Plínio, que em Roma no pórtico de Pompeu se via com admiração
a pintura de um soldado sem mais armas que um escudo, obra de Pelignoto, famoso
naquela arte, e o que nela se admirava era estar pintado o soldado em tal
ação no meio de uma escada, que ninguém podia divisar
se subia, ou descia: Hujus (Pelignoti) est tabula in porticus Pompei, in qua
dubitatur ascendentem cum clypeo pinxerit, an descendentem. Toda a escada,
senhores meus, ainda que em diferente figura, é também roda;
porque pelos mesmos degraus se pode subir ou descer. No meio desta escada
vejo aos nossos soldados armados também de escudo à defensiva,
qual é a nossa guerra; e pôsto que na presente vitória
parece que estão em ação de subir, como igualmente é
sem questão que podem descer, nesta dúvida ou contingência
não lhes posso afirmar coisa certa. É verdade que estou vendo
muitos arcos triunfais levantados; mas estes, ainda que não tiveram
as bases na terra, não podem segurar firmeza ao que significam. Nas
íris ou arcos celestes, não só observaram os matemáticos,
mas experimentam os rústicos, que quando o Sol sobe, os arcos descem,
e quando o Sol desce, os arcos sobem. E se nas voltas que dá o Sol
ao Mundo, se vê esta diferença naqueles espelhos; se quando os
arcos se abatem, é sinal que sobe o Sol ao Zénite, e quando
os arcos crescem e se levantam, é sinal que o mesmo príncipe
dos planetas desce ao ocaso; que juízo se pode formar do aparente destes
triunfais meteoros, para segurar o aumento das monarquias ou sua declinação?
A que hoje parece que sobe, amanhã pode descer, e a que hoje desce,
amanhã pode subir; e só no escudo, que embraça o braço
de Deus (e é círculo, como dizia, permanente), se pode segurar
o prudente temor, para que não diga: Ne forte.

VI.
Temos satisfeito neste primeiro discurso ao Evangelho, ao tema, ao tempo e
caso presente, e ao ne forte das virgens prudentes. Agora vejamos como a virgem
prudentíssima que nos deu a roda, com o exemplo e sucessos gloriosos
das suas vitórias nos ensina o que devemos desprezar, temer ou assegurar
em todas as voltas, que à da Fortuna e à do próprio alvedrio
pode dar o Mundo.

Primeiramente, assim como é prudência nas coisas duvidosas e
contingentes dizer—Ne forte; assim nas certas, e que não podem
ter dúvida, dizer—Ne forte, é a maior imprudência.
A mais imprudente mulher (também virgem) que houve no Mundo, foi a
destruidora dele— Eva. E porque?—Porque sobre a verdade mais certa
e a certeza mais infalível, da qual se não podia duvidar, disse:
Ne forte. Tinha Deus notificado a Adão, e nele a Eva, que no dia em
que comessem da árvore vedada ficariam sujeitos à morte. E sendo
as palavras expressas do preceito—In quocum die comederis ex eo, morte
morieris, Eva respondendo à pergunta do demônio, e referindo
o mesmo preceito, acrescentou-lhe um ne forte: præcepit nobis Deus,
ne comederemus et ne tangeremus illud, ne forte moriamur. E que se seguiu
deste ne forte da virgem néscia do Paraíso?—Seguiu-se
o erro que emendou o ne forte das virgens prudentes do Evangelho. O ne forte
da néscia pôs dúvida onde não podia haver dúvida;
o ne forte das prudentes não admitiu dúvida, onde podia haver
muitas.

Podiam duvidar, sendo companheiras, como eram, se seria contra as leis da
verdadeira e fiel companhia não ser comum de todas, o que era particular
de algumas. Podiam duvidar, sendo amigas, se era obrigação em
tal aperto oferecerem-lhe elas o óleo, ainda que o não pedissem,
quanto mais não lhe negar, tendo-o pedido. Podiam duvidar se nas circunstâncias
de um caso tão preciso, era lícito descomporem o acompanhamento
e desfazerem o aparato das vodas, para o qual foram escolhidas em tal número,
e para tantas parelhas. Podiam duvidar se sentiriam, como era razão,
o desar daquela falta o esposo e esposa, que eram os senhores a quem serviam,
e de cujo agrado e favor dependia o seu bem e toda a sua esperança.
Podiam duvidar, enfim, se era contra o primor, contra a cortesia, contra a
nobreza, contra o crédito e reputação e contra todos
os outros respeitos e pontos de honra, que tão escrupulosamente observam
nas ações públicas os que as fazem nos olhos do mundo,
e sujeitas aos seus juízos. Pois se em dar ou não aquele socorro
havia tantas duvidas, como se resolveram as prudentes a o negar, principalmente
sendo muito pouco o que haviam de despender, sabendo que o Esposo já
vinha: Ecce sponsus venit? (Math. XXV—6) .

A razão deste tão bem fundado reparo, é muito mal praticada
nas cortes, e por isso necessário que a nossa, com quem falo, a ouça.
O que importava à prevenção das virgens prudentes e o
que dependia de ela bastar ou não bastar para todas, não era
menos infalivelmente que o entrar às vodas ou não entrar; o
ganhar o Céu ou perde-lo; o salvar ou não salvar: e em matéria
de salvação não se há de admitir dúvida,
nem contingência, por menor ou mínima que seja. Todos os pontos
do primor, do crédito, da reputação e honra humana, em
chegando a este ponto, são nada. Todas as obrigações
e finezas da amizade e do amor, ainda que seja o que mais cega, que é
dos pais para com os filhos, a qualquer sombra deste perigo se devem converter
em ódio; este só respeito há de vencer todos os respeitos,
esta só dependência todas as dependências, este só
interesse todos os interesses. Cuide o Mundo, murmure a vaidade, diga a fama
o que quiser; arrisque-se enfim tudo o que se pode arriscar, perca-se tudo
o que se pode perder, contanto que se não arrisque ou ponha em dúvida
a salvação.

Tão sisudo e tão forte como isto foi o ne forte das virgens
prudentes. Mas por isso mesmo não só parece desumano, senão
contrário a toda a razão e proximidade. Se tanto reparo e tanto
escrúpulo fazeis neste ponto, por ser da salvação, porque
não reparais na de vossas companheiras? Não vedes que, seguindo
o vosso conselho, vão arriscadas a se lhes fecharem as portas do Céu,
e o perderem e se perderem para sempre? Assim o viam como sábias e
o sentiam como amigas. Mas esta é a obrigação precisa
e indispensável, e este o privilégio soberaníssimo da
salvação própria. Se a dúvida ou risco da minha
salvação em qualquer caso se encontra com a alheia, seja a alheia
de quem for e de quantos for; sou obrigado a tratar tão unicamente
da minha salvação, que me salve eu, ainda que se perca todo
o Mundo. Não é menos divino este tremendo documento, que da
boca da mesma verdade Qui prodest homini, si mundum universum lucretur, animæ
vero suæi detrimentum patiatur? (Ibid. XVI—26). Que lhe aproveita
a um homem— diz o Salvador dos homens—salvar ele, ou que por seu
meio se salvem, todas as almas do Mundo, se ele perder a sua? Aqui não
há senão dar um ponto na boca. E este foi o fecho com que as
prudentes acabaram de concluir, não a desculpa, senão a obrigação
que tiverem de não acudir à salvação das companheiras,
pois era com dúvida e risco, da própria. Ne forte non sufficiat
nobis et vobis (Ibid.XXV-9).

VII.
Em confirmação desta notável verdade, que é bem
saibam todos, para que nos fiemos das diligencias próprias, e não
de dependências alheias, seguiu-se o alegre e triste fim da história
do Evangelho. As prudentes entraram às vodas, as portas do Céu
tornaram a se fechar, e posto que as néscias vieram e bateram, ficaram
de fora. Cuidava eu que as virgens prudentes, vendo-se já dentro do
Céu, sem dúvida não perigo da salvação
própria, ao menos se lembrassem de interceder pelas companheiras; mas
este foi o segundo e novo desengano, para que cada um se fie de si. Lá
vão chorando as tristes e miseráveis néscias, que nem
na terra tiveram remédio, nem no Céu o acharam. E que efeitos
causaria esta lastimosa vista no coração, no zelo e no valor
de Catarina?—Com assombro dos outros santos, dos anjos e do mesmo Evangelho,
resolve-se a fazer abrir outra vez as portas do Céu, já fechadas,
e que entrem também as néscias.

Já vejo que reparam os doutos na proposição; mas notem
o sólido fundamento dela. As néscias do Evangelho são
aquelas, cujas alâmpadas se apagaram por falta de óleo, e por
esta falta não entraram as vodas. E estas néscias, que semente
o são em parábola e semelhança, em realidade e verdade
significam aquelas almas a quem falta o lume da fé e o óleo
da caridade, sem o qual, ainda que haja fé, é fé morta,
e o lume da mesma fé apagado, sendo que só com ele ardente,
e ela viva, se pode entrar no Céu. Tais eram, e pela maior parte idólatras,
os que habitavam a grande cidade de Alexandria , pátria da nossa santa,
onde então residia o imperador Maximino, o maior inimigo de Cristo,
o mais cruel tirano e perseguidor dos cristãos. Estava ali Catarina
cheia de fé entre infiéis, estava cheia de sabedoria entre ignorantes,
estava cheia de luz entre os cegos, estava cheia de piedade entre tiranos.
E que fariam dentro daquele generoso coração, e como rebentando
nele todas estas heróicas virtudes e cada uma delas?—A fé
o incitava a converter a infidelidade, a sabedoria a ensinar a ignorância,
a luz a alumiar a cegueira, a piedade a abrandar e amansar a tirania; e sobre
tudo o abrasava a vista da perdição de tantas almas. Se Catarina
fora uma das dez virgens, com dúvida e contingência de salvação,
diria com as prudentes da parábola: Ne forte; mas como depois de o
mesmo Cristo lhe dar o anel de esposo, ela era a esposa, que não podia
deixar de entrar às vodas: Exierunt obviam sponso, et sponsæ
(Ibid. XXV—I); por isso em lugar de dizer: Ne forte; (notai muito) em
lugar de dizer: Ne forte. disse: Si forte.

Si forte—disse com novidade inaudita em lugar de ne forte, e é
bem que reparemos muito na diferença destes dois advérbios,
porque em tão pequena mudança de letras têm a significação
totalmente contrária. O ne forte significa—para que não,
como já vimos; o si forte quer dizer—se porventura; o ne forte
é advérbio seguro e frio; o si forte animoso e ardente; o ne
forte fecha as portas ao temor; o si forte abre-as à esperança;
o ne forte é freio para a cautela; o si forte é espora para
a ousadia: o ne forte diz: Não te arrisques; o si forte diz: Aventura-te;
finalmente o ne forte tem por efeito evitar o mal que suspeita; e o si forte
tem pôr objeto empreender e conseguir o bem a que aspira. Mas este bem
não há de ser qualquer bem ordinário e vulgar, senão
grande, senão árduo, senão heróico, e que tenha
mais graus de dificultoso, que de possível. Para prova do ne forte,
basta o das virgens do Evangelho, que deixamos tão debatido. Para declaração
e exemplo do si forte, temos dois famosos no Testamento Velho, e tão
medonhos, como atrevidos. Tendo os filisteus com inumerável exército
posto em tal aperto os filhos de Israel, que para guarnecerem as vidas, se
escondiam pelas covas e grutas dos montes, veio ao pensamento de Jonatas,
filho de el-rei Saúl, que se ele rompesse as sentinelas na hora mais
secreta do sono, o desacordo do mesmo sono e a escuridade da noite, podia
por os inimigos em tal confusão, que, sentindo-se ferir e matar, sem
saber por quem, eles mesmos voltassem as armas uns contra os outros e se desbaratassem
e fugissem. Assim o imaginou aquele príncipe, assim o executou e assim
sucedeu, sendo os autores desta prodigiosa façanha o mesmo Jonatas
e o seu pajem de lança somente. Mas com que motivo racional em caso
tão dificultoso?—Sem outro motivo ou impulso mais que a ousadia
de um animoso si forte. Assim o disse o mesmo Jonatas, quando acometeu a empresa,
deixando-a toda a Deus e à ventura: Veni, transeamus, ad stationem
incircumcisorum horum, si forte faciat Dominus pro nobis, (I Reg. XIV—6).
O segundo exemplo ainda foi maior, se pode ser; porque não teve parte
nele o socorro da noite. Quando Josué repartia as conquistas da Terra
de Promissão, pediu-lhe seu antigo companheiro Calebe um sítio
chamado o Monte dos Gigantes, em que eles se mantinham inexpugnavelmente fortificados:
Da mi montem istum, in quo Enacim (idest Gigantes) sunt, et urbes magnæ
atque munitæ (Jos. XIV—I2). Mas se os homens de ordinária
estatura em comparação dos gigantes são pigmeus e os
muros que defendiam as suas cidades eram tão agigantados como eles,
com que confiança Calebe, que já contava oitenta e cinco anos
de idade, se atreve a tão desigual e dificultosa conquista?—Com
a mesma confiança e impulsos de um intrépido e valoroso si forte:
Si forte sit Dominus mecum et potuero delere eos (Ibid.).

Tal era o fortíssimo si forte, de que estava armada a nossa valorosíssima
aventureira para assaltar outro monte mais alto e conquistar outras muralhas
mais impenetráveis e abrir as portas do Céu às néscias
da sua pátria, tanto mais néscias e ignorantes, que não
sabiam chorar, nem ainda conhecer a miserável cegueira que as tinha
fora dele então, e para sempre. Sendo tão grande a dificuldade
da empresa, ainda a dificultou com outra maior naquela mesma ocasião
a tirania do imperador Maximino. Lançou bando que todos os súditos
do seu império, agradecidos as mercês com que os deuses imortais
o favoreciam, lhe viessem oferecer sacrifício público, sob pena
da vida, e da sua indignação aos que assim o não obedecessem.
A indignação do tirano significava os esquisitos tormentos,
com que a morte, por si só terrível, se fazia muito mais formidável.
E aqui se viu Catarina metida entre dois extremos os mais repugnantes à
natureza e ainda à mesma graça. De uma parte o Céu, da
outra o Inferno; de uma parte a morte temporal própria, da outra a
eterna alheia; de uma parte a perdição, da outra a salvação
de tantas almas. Mas naquele sublime espírito não foram necessários
muitos discursos para a mais heróica deliberação. A morte—diz
Catarina—é certa, a salvação duvidosa; mas a morte
é minha, a salvação é dos próximos; aventure-se
pois Catarina a conseguir a salvação alheia, e perca embora
de contado a vida própria.

Em toda a Escritura Sagrada há só uma deliberação
que tenha alguma semelhança com esta. Tinha passado el-rei Assuero
um decreto, por indústria e vingança de seu grande privado Amã,
para que em certo dia assinalado, nas cento e vinte e sete províncias
sujeitas a seu império morressem todos os hebreus que nelas se achavam.
Teve esta noticia Ester, que também era hebréia, resolve-se
a procurar a salvação do seu povo; porém, querendo falar
ao rei, soube que havia outro novo e segundo decreto seu, em que proibia,
que nenhum homem, nem mulher pudessem entrar à sua presença
sob pena de perder no mesmo instante a vida: Quod sive vir, sive mulier, non
vocatus, interius atrium regis, absque ulla cunctatione interficiatur (Est.
IV—II). Tudo eram traças do mesmo Amã, para que a execução
da morte universal dos hebreus se não pudesse revogar. E aqui temos
a Ester metida entre as duas pontas de um fatal dilema, por ambas as partes
mortal. Se não entra ao rei, executa-se o primeiro decreto e morre
o povo; se se atreve a entrar, executa-se o segundo e morre Ester. Que faria
pois a generosa heroína, vendo-se expressamente compreendida nas palavras
do decreto: Sive vir, sive mulier?— Execute-se embora—diz—a
morte em mim, com tanto que nesse mesmo risco me aventure eu a conseguir a
salvação do meu povo. Isto disse a famosa resolução
de Ester, e nisto parece que se igualou o seu si forte com o si forte de Catarina.
Mas não consinto eu tal igualdade; nem foi assim. Porque?—Porque
no mesmo decreto se acrescentava esta condição: Nisi forte rex
auream virgam ad eum tetenderit pro signo clementiæ (Ibid.): Exceto
somente o caso em que o rei estenda o cetro de ouro sobre quem entrar, em
sinal de clemência. De sorte que o si forte de Ester tinha por si o
ne forte de Assuero; porém, o de Catarina era si forte sem ne forte.
Aquele tinha por si a condicional do rei, este tinha contra si a condição
do tirano; aquele tinha por si a clemência, este a crueldade inexorável;
aquele o cetro de ouro, este não o cetro, senão a espada. não
o ouro, senão o ferro, tantas vezes tinto no sangue cristão
e insaciável dele. Em suma, que o bando era absoluto e sem exceção;
a morte certa e sem dúvida os tormentos esquisitos e iguais à
sevícia e crueldade do tirano; e a tudo isto se ofereceu uma donzela,
que ainda não tinha idade para se chamar mulher, com a esperança
incerta, duvidosa e somente possível, da salvação alheia
à ventura e contingência de se poder ou não poder conseguir
seguir: Si forte.

VIII.
Mas porque é mais fácil o desejar que o fazer, e menos difícil
o resolver que o executar; passemos do pensamento às mãos, e
vejamos como a nossa conquistadora do Céu e das almas entra e se empenha
bizarra nas suas aventuras. O primeiro tiro que fez, foi a cabeça.
Presenta-se ao imperador, armada da sua eloqüência e acompanhada
só de si mesma. Estranha-lhe a publicidade do bando, o terror das ameaças,
o sacrilégio das sacrifícios, a falsidade dos deuses com nome
de imortais, sendo paus e pedras: e sobre este exórdio passou à
doutrina da verdadeira fé Pesma Maximino de tal audácia e atrevimento
na fraqueza daquele sexo e idade, e cumprindo-se no ímpio idólatra
a discreta maldição de Davide, que sejam semelhantes aos ídolos
os que os adoram: Similes illis fiant qui faciunt ea (Psal. CXIII—8),
ele ficou mais ídolo que idólatra. Os ídolos têm
olhos, e não vêem—ele ficou cego; os ídolos tem
ouvidos, e não ouvem—ele ficou surdo, os ídolos tem língua,
e não falam—ele ficou mudo, cego à luz, surdo à
voz, mudo à força da razão, a que não podia resistir,
nem queria ceder.

Não há cabeças mais duras de penetrar e converter que
as coroadas; e se o rei ou tirano, por dentro é mau e vicioso, e por
fora hipócrita e devoto, estas aparências de religião,
com que se justificam, os endurecem e obstinam mais. Tais hão de ser
as artes do Anti-Cristo na falsa introdução da sua divindade;
e tais eram em Maximino, sem artifício, o zelo e veneração
da que cria nos seus deuses e negava e blasfemava em Cristo. Com tão
pouca esperança de vencer, começou a primeira aventura de Catarina,
o que ela não estranhou, porque na empresa do seu heróico si
forte, sempre levou os olhos postos nas duas faces da contingência,
uma alegre, outra adversa; uma vencedora, outra não. Contudo, depois
que o imperador falou e ouviu, se não alcançou dele a inteira
vitória, conseguiu parte dela. E qual foi, porque nem o mesmo imperador
o entendeu?—Foi que se o não fez católico da nossa fé,
fe-lo herege da sua. Alcançou dele modesta e sabiamente a santa, que
entre ela e seus filósofos se disputasse publicamente a questão
da verdadeira ou falsa divindade dos deuses. E aqui fraquejou a astúcia
do imperador e se viu a sutileza de Catarina; porque o que se põe em
questão e disputa, igualmente se põe em dúvida; e quem
duvida da sua fé, qualquer que seja, já é herege dela.

Apareceram enfim os filósofos em uma sala, que era o teatro da famosa
disputa, não menos em número que cinqüenta, e tão
vários cada um nos trajos e no mesmo aspecto, como nas seitas. Não
se viam ali armas, posto que todas as universidades tinham destinado àquela
campanha os seus Aquiles. Afrontaram-se eles de haver de contender em letras
com uma mulher, não desmaiando porém ela de vencer a tantos
homens de tanta fama e tanta presunção, que todos se estimavam
banhados na lagoa Estígia. Assim tinha cada um por invulnerável
a sua seita e inexpugnável as outras. Para abreviar pois o conflito,
e não ter suspensa a expectação dos circunstantes, todos
se comprometeram na sabedoria de um, o mais velho e venerável, de mais
celebrada opinião. Falou este, e com igual arrogância e eloqüência
ostentou por largo espaço quanto sabia. Mas Catarina, sem desprezar
a pompa das palavras, nem temer o estrondo dos argumentos, com modestas e
vivas razões desfez e desbaratou tudo com tal evidência, que
o filósofo compromissário do duelo, atônito e pasmado,
se rendeu e convencido se lançou a seus pés. Os demais, já
convencidos nele, com o mesmo assombro do que ouviram e ignoravam, não
só reconheceram inteiramente a verdade, mas, não podendo reprimir
com o silêncio os impulsos dela, sem pejo do imperador presente e de
toda Alexandria, e com afronta de todas as escolas da Grécia, confessaram
publicamente a falsidade dos deuses e a única divindade do Crucificado
Jesus Cristo.

Esta publica confissão foi o maior triunfo da vitória de Catarina,
maior contra Demócritos e Diógenes sem espada, que se fora contra
Cipiões armados. As batalhas mais invencíveis são as
do entendimento; porque onde as feridas não tiram sangue, nem a fraqueza
se vê pela cor nenhum sábio se confessa vencido. Diz S. Pedro
que a ciência incha: Scientia inflat (I Cor. VIII—I). E não
só é difícil, sem graça muito singular, ciência
sem inchação, mas sempre a inchação é maior
que a ciência. A maior ciência e o maior entendimento, que Deus
criou entre homens e anjos, foi o de Lúcifer; mas ainda foi maior a
sua inchação e soberba: Similis Altissimo (Isai. XIV—I4).
Contra esta rebelião se deu no Céu aquela grande batalha de
entendimentos: Factum m est præilium magnum in cælo (Apoc. XII—7).
Saiu vencedor Miguel, ficou vencido Lúcifer; mas de que modo vencido?—Com
tal inchação e soberba do seu saber, e tão namorado do
mesmo entendimento que o cegou, que antes quis cair do Céu, que descer-se
da sua opinião. Há mais de seis mil anos que arde no Inferno
Lúcifer, e há de arder por toda a eternidade, só por
não admitir um instante, em que confesse que errou.

A vista desta desventura do Céu, triunfe mais, oh Catarina, o si forte
das vossas aventuras! Maiores circunstâncias teve esta vitória
vossa, que a do capitão general de Deus na batalha do Empíreo.
A sua partiu-se entre o Céu e o Inferno; a vossa inteiramente toda
foi do Céu. Na sua ficaram só no Céu duas partes das
três hierarquias, que foram as vencedoras; e a terceira vencida foi
precipitada no Inferno. Na vossa só foram cinqüenta os que vieram
à batalha, e todos cinqüenta venceram, todos cinqüenta vos
seguiram, todos cinqüenta pisaram o Inferno e voaram ao Céu, cujas
portas vós lhe abristes, e nenhum ficou de fora. Mais ainda. Quando
no Céu à voz de Miguel—Quis sicut Deus—se partiram
os dois exércitos, um vitorioso, outro caído, houve anjos e
arcanjos, houve principados e potestades, houve querubins e serafins, houve
enfim em todos os nove coros dos espíritos celestiais muitos que seguiram
a seita de Lúcifer; porém voz de Catarina (que também
foi contra os deuses falsos): —Quem como o Deus verdadeiro?—,
sendo tantas e tão várias as seitas dos filósofos como
eles mesmos, nenhum houve (fineza não vista no Céu) que não
deixasse a própria. Antes se viu naquela uniforme conversão
ou divino metamorfose (I) uma singular maravilha ao entrar e ao sair do mesmo
teatro. E foi, que ao entrar, uns filósofos eram platônicos,
outros peripatéticos, outros acadêmicos, outros cínicos,
outros estóicos, outros pitagóricos, outros epicúreos,
outros gnósticos e os demais, e ao sair, pelo nome da nova escola e
da nova mestra, todos eram e se podiam chamar catarinos. Tão forte
e de um só rosto foi, nesta segunda aventura, sem dúvida nem
exceção, o seu glorioso si forte.

IX.
Afrontado Maximino pelo seu descrédito e muito mais pela injúria
e ignomínia dos seus deuses conhecidos por falsos; para se vingar da
fraqueza dos filósofos e do valor da que os vencera, resolveu barbaramente
matar a todos, mas não com a mesma morte: os filósofos a espada,
Catarina à fome. Mandou-a meter ou sepultar em um cárcere subterrâneo,
escuro e medonho, com cominação e pena capital às guardas,
que ninguém lhe desse de comer. Tudo isto era acrescentar trombetas
à fama e novos aplausos à glória de Catarina. E desejando
a mesma imperatriz conhecer e ver com seus olhos, antes que morresse, uma
mulher de tão sublimes espíritos, delibera-se a ir em pessoa
e descer secretamente ao mesmo cárcere.—Mas reparai, Senhora,
no que fazeis ; porque descer a essa masmorra não pode ser sem o mesmo
perigo que o profeta Daniel ao lago dos leões. Os leões de indústria
estavam famintos, sem a ração ordinária, para que mais
raivosa a sua natural fereza com a fome, no mesmo instante remetessem ao profeta,
e espedaçado o comessem. Sabei, pois, que essa mulher que quereis ver,
com fome não menos que de quase doze dias, como uma leoa esfaimada
se há de enviar a vós e comer-vos. Mas antes do sucesso para
que não pareça fábula ou quimera este dito, vejamos quão
certo é.

Estando S. Pedro no porto de Jope em oração ao meio-dia, diz
o evangelista S. Lucas, que teve fome: Cum esuriret (Act. X—I0); e enquanto
se lhe punha a mesa na casa onde estava hóspede, viu descer subitamente
do Céu outra mesa tão abundante de iguarias, como maravilhosa
e nova: abundante de iguarias, porque eram todas as aves do ar e animais da
terra; e maravilhosa e nova, porque não vinham mortas ou guisadas,
senão vivas. Vivas? E como as há de comer Pedro? Uma voz do
Céu lho disse: Surge, Petre, occide et manduca (Ibid. I 3): Eia, Pedro,
mata e come. Nestas duas palavras lhe descobriu Deus o mistério da
visão, com semelhança e propriedade verdadeiramente divina.
O animal, quando o mata o homem, deixa de ser o que é, e quando o come
converte-se no que não é: morto, deixa de ser bruto; comido,
passa a ser homem. Da mesma maneira aqueles animais de todos os gêneros,
significavam os gentios de todas as nações, de todas as seitas
e de todos os estados. E como Pedro era a cabeça da Igreja e da cristandade,
aquela voz—Occide et manduca, foi o mesmo—declara S. Jerônimo—que
dizer-lhe o Céu a Pedro: In corpus ecclesiæ et tua membra ea
converte: que matando-os e comendo-os, os encorporasse na Igreja, e fizesse
membros seus. De sorte que, assim como o animal, matando-o o homem, deixa
de ser bruto, e comendo-o, se converte em homem; assim o gentio por meio da
doutrina evangélica, que tem a eficácia de matar e comer, morto,
deixa de ser gentio, e comido, se converte em cristão e membro da Igreja.
Esta era a fome de Pedro, a quem o mesmo S. Jerônimo compara neste passo
ao leão, que só come o que mata; e esta a fome de Catarina,
a quem eu comparei à leoa esfaimada, como quem tanta fome tinha da
salvação das almas, e que por isso era certo que a imperatriz
não escaparia de ser comida. E assim foi.

Desceu a imperatriz ao cárcere, imaginando que veria

em Catarina a imagem da mesma fome, macilenta, seca e consumida; porém
a santa estava tão viva e tão a mesma nas forças, no
vigor, na cor e na formosura, como quando ali entrara. Mais desejo creio lhe
viria então à imperatriz de a comer a ela, que medo de que ela
a comesse. Assim diziam os que amavam muito a Jó: Quis det de carnibus
ejus ut saturemur? (Job, XXXI—3I). Afeiçoada com este primeiro
milagre, e ouvindo a celestial eloqüência de Catarina, cada palavra
sua lhe levava à imperatriz um bocado do coração, e de
tal modo se deixou comer toda que já não era gentia nem imperatriz,
senão cristã e escrava de Cristo.

Sucedeu aqui a mútua transubstanciação, que o mesmo
Cristo afirma dos que comem seu corpo: In me manet et ego in illo (Joan. VI—57).
A imperatriz, por fé, transubstanciada em Catarina, e Catarina, por
doutrina, transubstanciada na imperatriz. Por isso a mesma imperatriz teve
resolução e constância para dali se ir apresentar a Maximino,
declarando-lhe que era cristã e exortando-o a que o fosse também.
Oh como se pudera então gloriar Catarina no seu cárcere, que,
se dantes lhe não pode conquistar toda a alma ao imperador, agora lhe
tinha conquistado a metade! Mas ele, porque todo o amor que devia a esta natural
a metade, como esposa, era muito menor que o ódio que tinha a Cristo,
como mau marido a privou logo do tálamo; como mau imperador, da coroa;
e como péssimo e crudelíssimo tirano, da vida. Morreu a imperatriz,
trocou a sua coroa pela de mártir, abriram-se-lhe de par em par, como
a tão grande princesa, as portas do Céu, sendo, pouco antes,
uma e a maior das néscias. Esta foi a terceira aventura do animosíssimo
si forte o qual eu considero tão admirado como triunfante reconhecendo
por ventura maior a vitória, que a mesma sua esperança.

Se a fome da salvação das almas não fora insaciável
em Catarina, já ela se dera por satisfeita com ter ganhado para Cristo
tantas, tão ilustres e tão alheias de sua fé. Mas como
tivesse cercado o seu cárcere um corpo da guarda de duzentos soldados
romanos, governados por Porfírio, capitão do imperador, as muitas
almas deste grande corpo lhe excitaram e animaram o fervoroso espírito,
a que também empreendesse a sua salvação. Eu confesso
que lhe não aconselhara tão duvidosa empresa; porque não
pudesse acontecer, que a natural inconstância do si forte nunca segura,
pusesse a última cláusula a proezas tão ilustres com
algum fim menos glorioso. Muito mais dificultoso é haver de vencer
soldados, que ter convencido filósofos. Os soldados não se vencem
com argumentos de palavras, senão com silogismos de ferro. Para os
mais subtis de entendimento, o capacete lhes defende a cabeça; e para
os mais brandos de vontade, a malha e o arnez lhes endurecem o peito. Toda
a força que tem o filósofo consiste em a razão, e toda
a razão do soldado consiste na força. Só à maior
força, só à maior violência, só ao maior
poder, se abatem as bandeiras e rendem as armas. Alma e salvação
são as duas cousas mais precisas, e por isso as que causam maior medo
de se perderem; mas para quem tem piedade de uma e fé de outra: e do
soldado diz o provérbio: NulIa fides pietasque viris, qui castra sequuntur.
Contudo, nenhuma destas considerações foram parte, para que
Catarina desistisse do seu pensamento, maior que todas elas. S. Paulo dizia
que as suas prisões, ainda que o atavam a ele, não atavam nele
a palavra: Laboro usque ad vincula; sed verbum Dei non est alligatum (2 Tim.
II—9). Assim também Catarina. Ela estava presa; mas a palavra
de Deus nela tão livre, tão eficaz e tão poderosa, que
a todos os soldados que guardavam a sua prisão, fez seus prisioneiros.
O menos que eles fariam, era por a santa em sua liberdade; mas ela queria-lhes
abrir a eles as portas do Céu, e não que eles lhe abrissem a
do cárcere. Todos se salvaram, todos renunciaram o imperador da terra,
todos se fizeram cristãos; maravilha que só pode encarecer,
ponderando que eram soldados e soldados romanos.

Todos os soldados que concorreram na paixão de Cristo, eram da família
romana, que presidiavam a Judéia. E que fizeram? No Horto os soldados
e cabo da escolta de Judas prenderam a Cristo, e atado o levaram a Anás:
Cohors ergo et tribunus comprehenderunt et ligaverunt eum et adduxerunt ad
Annam (Joan. XVIII—I2 e I3). No Pretório, os soldados da guarda
de Pilatos convocaram contra Cristo toda a esquadra: Milites præsidis
congregaverunt ad eum universam cohortem (Math. XXVII—27). No palácio
de Herodes, os soldados do seu exército e o mesmo rei o desprezaram
e afrontaram: Sprevit illum Herodes cum exercito sua (Luc. XXIII—I I).
Remetido outra vez a Pilatos, os soldados lhe teceram a coroa de espinhos,
lhe vestiram a púrpura de escárnio, e puseram o cetro de cana
na mão, como aqueles que se prezam de ter na sua as púrpuras,
os cetros e as coroas dos reis: Et milites plectentes coronam de spinis imposuerunt
capiti ejus, etc. (Joan. XIX—2). No Calvário, os soldados crucificaram
a Cristo: Milites ergo cum crucifixissent eum (Ibid.—23). Os soldados
o blasfemavam com os príncipes dos sacerdotes: Iludebant autem ei et
milites (Luc. XXIII—36). Os soldados lhe repartiram os vestidos e jogaram
a túnica, como gente que, para ter que jogar, despirá a Cristo
e os seus altares: Et dixerunt, non scindamus eam, sed sortiamur de illa;
et milites quidem hæc fecerunt (Joan. XIX—24). Finalmente, depois
de morto Cristo, o que se atreveu sobre toda a desumanidade a lhe romper o
peito com a lançada, também foi um dos soldados: Unus militum
lancea latus ejus aperuit (Ibid.—34).

Isto foi o que obraram contra Cristo em Jerusalém a impiedade e perfídia
dos soldados romanos, e desta infâmia os desafrontaram a eles e a si
os soldados, também romanos, em Constantinopla. Em Jerusalém
o crucificaram, em Constantinopla o adoraram; em Jerusalém negaram
a Cristo, em Constantinopla o confessaram; em Jerusalém lhe derramaram
o sangue, em Constantinopla derramaram o seu por ele; em Jerusalém
lhe tiraram a vida, e em Constantinopla lhe sacrificaram, não uma,
senão duzentas vidas. O maior dia que houve no Mundo, foi o da paixão
e morte de Cristo; e no dia em que manava das suas veias e corria por cinco
fontes a salvação de toda a milícia romana se converteu
só o centúrio, que disse: Vere Filius Dei erat iste (Math. XXVII—54).
Era capitão de uma companhia de cem soldados, que isso quer dizer centúrio;
mas de cem soldados nem um só se converteu em tal dia. E honrou o mesmo
Cristo tão admiravelmente, e quase incrivelmente, a morte de Catarina,
que no dia em que ela morreu, não só se converteu por seu meio
Porfírio, capitão de duas centúrias; mas, sendo duzentos
os seus soldados, todos receberam concordemente a doutrina da nossa fé,
todos com o mesmo valor se sujeitaram ao martírio, sem vacilar nos
tormentos, todos deixaram escrito com o próprio sangue o testemunho
infalível da sua vitória, todos, enfim, sem faltar um só,
se salvaram.

X
Essa foi a famosa história, parte natural e humana, parte sobrenatural
e divina, que sobre o ne forte do Evangelho nos motivou a roda de Santa Catarina.
Só nos resta saber qual foi a mesma roda, e que volta deu. Atônito
e raivoso Maximino das vitórias de Catarina, para se vingar e as vingar
nela, determinou inventar um novo gênero de martírio e tormento,
em que excedesse os de Nero e Diocleciano, e os de todos os tiranos seus sucessores.
Mandou pois fabricar a máquina de uma roda, armada por toda a circunferência
de dentes ou pontas de ferro agudas, em forma de navalhas, as quais, movendo-se
no mesmo tempo, executassem em qualquer volta o que os braços de muitos
algozes não podiam. As primeiras voltas feririam com inumeráveis
golpes o corpo da santa ; as que se seguissem, depois que não houvesse
nela parte sã, feririam as feridas, como fala S. Cipriano; e as últimas,
quando não restassem já mais que os ossos, os cortariam e desfariam,
de sorte que de todo aquele formoso composto, mais de alabastro que de carne,
nem ficasse a semelhança.

Oh cegueira humana, grande em todos os homens, e nos tiranos e perseguidores
dos bons, maior e mais rematada, pois não tem olhos para ver que onde
maquinam a ruína alheia, fabricam a sua! Antigamente havia uma invenção
ou artifício de arcos, cujas setas, depois de despedidas, como se tivessem
uso de razão, as suas penas voltavam com dobrada força as pontas
e feriam a quem as atirava. Assim o supõe Davide, chamando a este instrumento
arco pravo: Conversi sunt in arcum pravum (Psal. LXXVII—57). E assim
contesta com ele Oséas, chamando-lhe arco doloso: Facti sunt quasi
arcus dolosus (Os. VII—I6). Eu não entendo a arte com que isto
podia ser, posto que nas histórias eclesiásticas se leiam muitos
milagres semelhantes; mas tenho para mim que é justa providência
do governo divino, que as traições e maldades sejam traidoras
a seus próprios autores, e, voltando retrogradamente, vão buscar
a cabeça que as maquinou e lhe dêem a devida paga. O mesmo profeta-rei,
tão exercitado em todo o gênero de armas, o disse: Convertetur
dolor ejus in caput ejus et in verticem ipsius iniquitas ejus descendet (Psal.
VII—I7). Todos sabemos que a máquina da roda de Santa Catarina,
sem impulso superior, e movimento contrário, desarmou sobre seus inimigos.
E se quando a santa estava posta em uma roda, Maximino tivesse olhos para
ver que estava em outra, pode ser que se não atrevesse à santa.
Estava Catarina na roda do seu tirano, que era o imperador; estava o imperador
na roda da sua tirana, que era a Fortuna; e quando cuidou que a da santa lhe
espedaçasse o corpo, a sua lhe espedaçou o império.

É esta uma observação, que me admiro não fizessem
aqui os historiadores na combinação dos tempos. Eu a farei,
para que acabemos com a roda da Fortuna, como começamos; e é,
que no mesmo ano foi martirizada Santa Catarina, no mesmo ano entrou a imperar
Maximino, e no mesmo ano começou a fatal declinação e
ruína do Império romano. Imperando Galério Maximiano
em Roma, e conhecendo por muitas experiências que uma monarquia tão
vasta não podia ser bem governada por um só homem (o que já
tinha antevisto o mesmo Júlio César, seu fundador, quando lhe
definiu certos limites), determinou dividi-la em duas partes e duas cabeças,
como com efeito a dividiu em dois imperadores e dois impérios: um chamado
ocidental, de que continuou a ser cabeça Roma , outro chamado oriental,
de que começou a ser cabeça Constantinopla; e foram os dois
novos imperadores, do ocidente Severo, e do oriente Maximino, ambos tiranos,
mas com os nomes trocados; porque Maximino não só foi severo,
senão o extremo da severidade e da sevícia.

Por esta ocasião a águia, insígnia das bandeiras romanas,
que até então tinha uma só cabeça, começou
a aparecer com duas, como hoje a vemos, posto que é mais fácil
copiar o pintado, que restaurar o verdadeiro. E como a divisão em todas
as comunidades de homens e de coroas é indício fatal de declinação
e ruína, assim o foi no império e águia romana a divisão
daquelas duas cabeças. Já o profeta Daniel o tinha mostrado
na mesma divisão, não das cabeças da águia, senão
dos pés da estátua. Na estátua de Nabucodonosor, formada
das quatro monarquias ou impérios, que sucessivamente haviam de florescer
no Mundo, a cabeça de ouro significava o império dos assírios;
o peito de prata, o império dos persas; o ventre de bronze, o império
dos gregos; e o resto de ferro até os pés, o império
dos romanos. E porque bastou que tocasse os mesmos pés uma pedra arrancada
do monte sem mãos, para que caísse toda a estátua, e
o mesmo império romano, e as outras monarquias, que nele por sucessão
se continuavam, ficassem convertidas em pó?—Porque naqueles dois
pés, divididos entre si, e cada pé dividido em cinco dedos,
e cada dedo dividido em ferro e barro, teve o seu último complemento
a divisão do império romano. E assim como nas duas cabeças
da águia, em que começou a divisão do mesmo império,
começou a sua declinação; assim na divisão dos
dois pés da estátua, em que teve o último complemento
a sua divisão, teve também o último fim a sua ruína.
De sorte (reduzindo a conclusão aos termos da nossa metáfora)
que a roda da Fortuna do império romano, na divisão das duas
cabeças da águia, começou a voltar, e na divisão
dos dois pés da estátua, acabou a volta.

Agora havemos de ouvir a Plutarco, o famoso filósofo grego, que não
é dos que convenceu Santa Catarina, porque floresceu muito antes; mas
eu o quero convencer a ele, digno de se ouvir neste caso. Excitando Plutarco
e disputando uma questão sobre a fortuna do império romano,
diz assim: Fortuna persis et aissyriis desertis, cum leviter pervolasset Macedoniam
et celeriter abjecisset Alexandrum. ægyptiosque, deinde et Syriam peragrando
regna extulisset et sæpe conversa carthaginenses tulissett, postquam
transmisso Tiberi ad palatium appropinquavit, alas deposuit, talaria exuit,
ac infideli et versatili globo misso, Romam intravit mansura. Quer dizer:
A Fortuna, depois de deixar os persas e assírios, depois de voar levemente
pela Macedônia e rejeitar Alexandre e os que no Egito lhe sucederam,
depois de andar pela Síria levantando e desfazendo reinos, e se deter,
já próspera, já adversa, com os cartagineses, passando
finalmente o Tibre, chegou ao capitólio romano, e ali arrancou dos
ombros as asas maiores e descalçou dos pés as menores, ali se
despojou e desarmou do globo, ou roda variável e inconstante, e ali,
isto é, em Roma, fez o seu perpétuo assento, para nela perseverar
e morar sempre firme e sem mudança. Isto é o que disse Plutarco,
e isto o que criam os imperadores romanos, os quais sobre esta fé fundaram
de ouro uma estátua da sua Fortuna e a colocaram no mesmo aposento
onde eles dormiam, como que pudessem dormir seguros, pois a Fortuna lhe guardava
o sono; e quando algum imperador morria, passava e era levada a mesma estátua
ao sucessor, mostrando a vaidade e superstição dos que chegavam
a alcançar a coroa romana, que podiam restar da Fortuna, como de patrimônio
hereditário e próprio. Estava isto escrito nos seus Anais, como
oráculo dos deuses; isto celebravam os seus poetas, os bucólicos
com frautas pastoris à sombra das faias ; os heróicos com trombetas
marciais em assombro das outras nações; e assim o cantou com
elegante mentira o maior de todos, quando disse:

Higo ego nec metas rerum, nec tempora pono, Imperium sine fine dedi (I).

Agora pudera eu perguntar aos imperadores romanos, ou dormindo ou acordados,
onde está aquela sua Fortuna de ouro, ou o ouro daquela Fortuna? Foi
volta da mesma Fortuna, verdadeiramente lastimosa. Quando Alarico sitiou a
Roma, viram-se os romanos tão apertados, que houveram de remir a dinheiro
o levantar-se o sitio, e então entre o ouro e prata das outras estátuas
dos seus deuses, foi também batido em moeda o ouro da sua Fortuna.
Assim dormiam seguros os que se fiavam da fé de uma traidora e da vigilância
de uma cega.

Mas eu só quero confundir e envergonhar a Plutarco com as palavras
da sua mesma lisonja. Diz que depôs a Fortuna ao pé do capitólio
a roda. E quantas vezes a tornou a tomar e lhe deu tais voltas na Itália
e dentro da mesma Roma, que meteu a que era cabeça do Mundo debaixo
dos pés de Atila e Totila, inundada de godos e hunos, de suevos e alanos,
e de tantos outros bárbaros? Diz do mesmo modo, que também depôs
ali a Fortuna as asas. E quantas vezes as tornou a tomar e voou às
Germanias, às Gálias e às Espanhas, que Roma imaginava
pacificamente sujeitas com os presídios das suas legiões, contra
as quais, porém, se levantaram então aquelas mesmas nações,
como tão altivas e belicosas, não só restituindo-se cada
uma ao que era seu, mas cortando às águias romanas as unhas
com que lho tinham roubado? Diz mais, que em Roma fez a Fortuna o seu assento,
para nela morar perpetuamente. E se no interior da mesma Roma recorrermos
às cousas de maior duração, quais são os mármores;
quantos anos, e quantos séculos há, que dos mesmos mármores
levantados em obeliscos e arcos triunfais, se vêem só as miseráveis
ruínas, ou meio sepultadas já ou cobertas de hera? Finalmente,
aquele império sem fim, a que a fortuna não pôs metas
ou limites alguns, nem à grandeza, nem ao tempo, diga-nos a mesma Fortuna
onde está, e onde o tem escondido? Busque-se em todo o Mundo o império
romano, e não se achará dele mais que o nome, e este não
em Roma, senão muito longe dela.

Acabaram-se as guerras e vitórias romanas, não só fechados,
mas quebrados para sempre os ferrolhos das portas de Jano; acabaram-se os
capitólios; acabaram-se os consulados; acabaram-se as ditaduras; acabaram-se
para os generais as ovações e os triunfos; acabaram-se para
os capitães famosos as estátuas e inscrições;
acabaram-se para os soldados as coroas cívicas, murais e rostratas;
acabaram-se enfim com o império os mesmos imperadores, e só
vivem e reinam, ao revés da roda da Fortuna, os que eles quiseram acabar.
Acabou Nero; e vivem e reinam Pedro e Paulo; acabou Trajano, e vive e reina
Clemente; acabou Marco Aurélio, e vive e reina Policarpo; acabou Vespasiano,
e vive e reina Apolinar; acabou Valeriano, e vive e reina Lourenço;
acabou enfim Maximino, e vive e reina Catarina; ele, e os outros imperadores,
porque se fiaram falsamente do império sem fim: Imperium sine fine
dedi; e ela com os seus e com os outros mártires, porque reinam e hão
de reinar por toda a eternidade com Cristo, no Reino que verdadeiramente não
há de ter fim: Cujus regni non erit finis.

XI.
Bem acabava aqui o sermão, se nos não faltara uma circunstância
tão essencial de todo o assunto, como é a ação
de graças. Não posso deixar de dizer sobre este ponto uma palavra,
e será só uma, para emenda da brevidade mal observada, que prometi
ao princípio. Mas qual parte ou qual pessoa da nossa história
nos dará este documento? Para maior0 exemplo do agradecimento e maior
horror da ingratidão, não quero que seja Santa Catarina, nem
os filósofos ou soldados convertidos, não a mesma imperatriz,
senão de quem menos se podia esperar—o imperador Maximino. Já
vimos como o primeiro motivo desta gloriosa tragédia foi o bando e
edito de Maximino, em que, sob pena da vida, mandou que todos os súditos
do seu império, pelos benefícios com que os deuses o tinham
favorecido e prosperado, lhes viessem dar graças e oferecer sacrifícios.
E que diremos de tal edito? Em quanto ímpio, cruel e sacrílego,
foi de tirano, gentio, bárbaro e idólatra; mas em quanto reconhecido
a uma mão superior e divina, de quem confessava haver recebido os benefícios,
foi de homem racional, prudente e religioso, posto que enganado.

E seria bem que na ocasião da vitória presente se contentasse
a nossa fé com as demonstrações e aplausos exteriores,
sem dar muito de coração as devidas graças aquela Soberana
Majestade, que, sendo Senhor de todas as cousas, tomou por nome particular
o de Senhor dos Exércitos: Dominus exercituum? Oh quanto importa em
semelhantes casos o sermos agradecidos a Deus, e quanto se pode arriscar,
se lhe formos ingratos! Quando os filhos de Israel, da outra parte do Mar
Vermelho, nos despojos do exército de Faraó, que o mesmo mar
lançava a ribeira, reconheceram a sua vitória e a segurança
da sua liberdade; o que fez Moisés com todos os homens e Maria, irmã
do mesmo Moisés, com todas as mulheres, foi, repartidos em dois coros,
cantar publicamente a Deus os louvores de tamanha vitória, e dar-lhe
as devidas graças e glórias, como único autor dela. Ditosos
eles, se assim perseveraram agradecidos! Mas indignos e inimigos da sua própria
felicidade (porque pouco depois trocaram o verdadeiro agradecimento na mais
ímpia, mais bárbara, e mais cega ingratidão), do mesmo
ouro de que tinham despojado o Egito, fundiram o ídolo fatal do bezerro,
e esquecidos do que, pouco antes tinham visto e confessado, com novas festas
e músicas roubaram outra vez a Deus as graças e louvores que
lhe tinham dado, atrevendo-se a dizer e apregoar sem nenhum pejo: Hi sunt
dii tui, qui te eduxerunt de terra Ægypti (Exod. XXXII—4):—Estes
são os deuses que te deram a vitória e te libertaram do poder
dos egípcios. E quantos hoje em Portugal (para que nos espantemos mais
de nós) estão dando as graças desta vitória cada
um ao seu ídolo? Uns à sua ciência militar, outros à
sua disposição, outros ao seu conselho, outros aos seu valor,
outros aos seus socorros, e confirmando todos isto com certidões, que,
ainda que por uma parte não sejam falsas, por outra são blasfemas,
pois é verdadeira blasfêmia tirar a Deus o que é de Deus.
Dizia Jó que pelas mercês recebidas de Deus não se beijava
a mão a si mesmo: Si osculatus sum manum meam (Job, XXXI—27).
E quem beija as suas mãos, posto que tivessem muita parte na vitória,
saiba que as suas mãos assim beijadas perdem, quando menos, o fruto
dela, como o perderam os filhos de Israel. Depois daquela vitória podiam
chegar em poucos dias à Terra da Promissão, e porque a não
atribuíram a Deus, cuja era, de seiscentos mil que saíram do
Egito, só dois, que foram Josué e Calebe, conseguiram o fim
da jornada; e todos os outros em espaço de quarenta anos ficaram sepultados
no deserto. Se formos agradecidos a Deus, por esta vitória nos dará
outras vitórias, e por esta graça outras graças: Gratiam
pro gratia. E se pelo contrário formos ingratos, não só
perderemos a mercê recebida, mas ela, como diz S. Bernardo, nos perderá
a nós: Studete potius gloriam vestram referre ad illum, a quo est,
si non vultis eam perdere, aut certe perdi ab ea .

Sermão de Santa Teresa e do Santíssimo Sacramento

Simile factum est regnum caelorum homini regi, qui fecit nuptias filio suo.
Et misit servos suos vocare invitatos (1).
Caro mea vere est cibus, et sanguis meus vere est potus (2).

Simile est regnum caelorum decem virginibus, quae accipientes lampadas suas
exierunt obviam sponso et sponsae (3).

I

Em um dia em que se nos propõem três Evangelhos, não
é muito que preguemos sobre três temas. O primeiro Evangelho
é da Dominga corrente, que canta hoje a Igreja universal. O segundo
é do Diviníssimo Sacramento, pela devoção particular
desta casa. O terceiro é o comum das Virgens, em memória da
gloriosa Virgem, mãe de tantas e tão santas, a Santa Madre Teresa
de Jesus, cuja solenidade também concorre e se celebra aqui hoje.

Começando pois pelo primeiro Evangelho — que, como mais universal
e mais próprio deste dia, é bem que seja o que nos abra o caminho,
e dê fundamento a tudo — diz nele e ensina em parábola
o divino Mestre que o reino do céu é semelhante a um homem rei:
Simile factum est regnum caelorum homini regi (Mt. 22, 2). Não há
duas coisas tão parecidas no mundo como o rei e o reino. Os reis são
os espelhos a que se compõem os vassalos, e tais serão as ações
do reino, quais forem as inclinações do rei (4). Não
fala Cristo de qualquer reino, nem de qualquer rei, senão do reino
do céu, e de um rei homem, porque se o rei for humano será o
reino bem-aventurado, e se o rei for homem tão seguro estará
o reino da terra como o do céu. Este rei, diz o Senhor que celebrou
com grandes festas o casamento do príncipe seu filho: Qui fecit nuptias
filio suo, e nisto mostrou também que era rei homem, porque não
descuidar da sucessão é reconhecer a mortalidade. Chegado o
dia das bodas, mandou alguns criados que fossem chamar os convidados para
o banquete, e diz o texto sagrado uma coisa que parece incrível, e
é que eles não quiseram vir: Et nolebant venire (Mt 22,3). Se
o rei os chamara para a guerra, escusa tinha a ingratidão na fraqueza
e temor natural; mas para as bodas e para o banquete, não virem? Mais
abaixo diz o mesmo Evangelho que mandou o rei os seus soldados, e foram; agora
chamou os seus convidados, e não vieram. Eu lhes perdôo a descortesia
pelo exemplo. Se os vassalos hão de faltar ao príncipe, antes
seja na mesa que na campanha. Vendo o rei que os convidados não queriam
vir, mandou segundo recado, mas por outros criados, e não pelos mesmos:
Misit alios servos (Ibid. 4). Não é nova razão de estado
nos reis, para melhorar vontades, mudar ministros. Mas a razão que
aqui teve o rei, a meu ver, foi ainda mais fácil e mais achada. Mandou
a segunda vez outros criados, porque é bem que se reparta o trabalho,
e que vão todos. Se os segundos descansaram enquanto foram os primeiros,
bem é que descansem os primeiros, e que vão agora os segundos.
Assim que, mudar o rei os criados não é condenar os talentos:
é repartir os trabalhos. Se os primeiros tiveram ruim sucesso, não
o tiveram melhor os segundos, que nem sempre com a mudança se consegue
a melhoria. Os primeiros acharam más vontades: Nolebant venire; os
segundos experimentaram más obras: Occiderunt eos (5). Quer dizer que
foram tão descomedidos alguns dos convidados que não só
afrontaram de palavra aos criados do rei, mas chegaram a lhes pôr as
mãos e tirar as vidas. Há maior ingratidão? Há
maior descortesia? Há maior atrevimento de vassalos? Que faria o rei
neste caso? Diz o texto que mandou logo seus exércitos a executar um
exemplar castigo; não só nas pessoas ou corpos dos rebeldes,
senão na mesma cidade onde viviam, da qual não ficaram mais
que as cinzas, para memória ou esquecimento eterno de tal ousadia.
Assim o fez o rei, e assim o hão de fazer os reis. Quem hoje se atreveu
ao criado, amanhã se atreverá ao senhor. Ocupou os seus exércitos
em arrasar as cidades próprias, quando parece que fora mais conveniente
conquistar as alheias, porque não são tão danosas as
hostilidades dos inimigos, como os atrevimentos nos vassalos. Melhor é
ter menos cidades, e mais obedientes. Por isso lhe chamou o Evangelho cidade
sua, deles, e não do rei: Civitatem illorum (Mt. 22, 7). Cidade que
se atreve contra os ministros do rei, não é cidade do rei, é
cidade livre, e liberdades não as hão de sofrer as coroas. Se
os criados ofenderam aos convidados, queixem-se, que para isso tem o rei ouvidos;
mas presumir violências e executá-las? Não há,
nem é bem que haja em tal caso sofrimento nos reis, senão ira
e fogo: Iratus est, et civitatem illorum succendit (6). Tão rigoroso
se mostrou no exterior como rei, mas como homem, lá por dentro lhe
ficou a dor e o sentimento: Perdidit homicidas illos (7). Notai os termos.
A palavra perdidit quer dizer matar e perder, porque de tal maneira castigava,
que considerava o que perdia. Matar um homicida é perder um homem:
Perdidit homicidas illos. Executado assim, ou mandado executar, o castigo,
voltou-se o rei para os criados, e disse-lhes: Qui invitati erant, non fuerunt
digni (Ibid. 2): Os que foram convidados não eram dignos. — Pois
agora, Senhor? Não fora melhor conhecê-los antes de os convidar,
que convidá-los antes de os conhecer? Eis aqui o maior mal e a maior
consolação que tem o mundo. Serem os indignos os convidados
é o maior mal; serem os beneméritos os excluídos é
a maior consolação. Vendo o rei que não queriam vir os
que convidara, tornou-se aos que tinha enjeitado, e foram eles tão
honrados, que todos vieram. Não introduziria Cristo na sua parábola
esta diferença, se não fora o que nas suas eleições
costumam experimentar os príncipes. Os seus escolhidos são aqueles
que na ocasião não querem vir, e os seus enjeitados os que na
ocasião vêm todos. Chamaram os criados, diz o texto, todos os
que acharam pelas ruas: Et impletae sunt nuptiae discumbentum (Ibid. 10):
E ficaram cheias as mesas. — Quantos andam desfavorecidos por essas
ruas, que haviam de encher muito bem o seu lugar, se os chamaram? Enfim o
rei entrou na sala onde comiam os convidados, e foi esta a melhor iguaria
que veio à mesa: os olhos do rei. Viu um, entre os demais, que não
estava vestido de gala, e não só o mandou lançar fora,
mas que, atado de pés e mãos, o metessem no cárcere mais
escuro. Tão grande delito é não festejar o que os príncipes
festejam. Mas, dado que este não fizesse o que devia, o que eu muito
pondero é que de todos os convidados nenhum foi bom, e de todos os
excluídos só um foi mau. Antes de entrarem às bodas eram
bons e maus: Congregaverunt omnes quos invenerunt, malos et bonos(8). E depois
de entrarem, tirando um, todos foram bons, porque a melhor arte de fazer bons
é admiti-los: o desprezo a ninguém melhorou; a honra a muitos.

Esta é a parábola do Evangelho, tão parecida com a história
dos nossos tempos, que por isso lhe ajuntei doutrina não imprópria
deles. Vindo, porém, ao intento da nossa festa, ou festas, duas coisas
acho menos neste Evangelho. Falados desposórios do príncipe
e do banquete do rei, mas nem nos desposórios nos diz quem foi a esposa,
nem no banquete nos declara quais fossem as iguarias. Por isso tomei de socorro
os outros dois Evangelhos. O Evangelho das Virgens nos diz que esposa é
Santa Teresa: Exierunt obviam sponso et sponsae (9); o Evangelho do Sacramento
nos declara que as iguarias são o Corpo e Sangue de Cristo: Caro mea
vere est cibus, et sanguis meus vere est potus (10). Suposto pois que a santa
e o Santíssimo são as duas partes da nossa festa, para que com
o mesmo discurso satisfaçamos a ambas as obrigações,
será hoje o meu assunto este: que os maiores favores que Cristo fez
a Santa Teresa são os mesmos que faz no Sacramento aos que dignamente
comungam. Para igualar tamanhas graças é necessário muita
graça. Ave Maria.

II

Sendo tão singulares os favores em que o amor de Cristo se extremou
com Santa Teresa que, não juntos, mas divididos, apenas se lhes acha
paralelo entre os outros santos, maior empenho tomei do que porventura se
imagina, quando prometi mostrar que os mesmos recebem invisivelmente de Cristo
os que dignamente o recebem no Sacramento. E por que não pareça
que fujo à dificuldade de tamanho assunto, antes o quero encarecer
e subir de ponto, para mais excitar a nossa devoção e agradecimento,
entre todos os favores e finezas com que o amorosíssimo Senhor singularizou
esta grande santa — pois não é possível ponderar
todos — escolherei os mais notáveis.

O primeiro, pois, e mais visível, que se me oferece, é quando
o mesmo Cristo, em presença da Virgem Santíssima e de São
José deu a mão de Esposo a Teresa. Os desposórios que
se fazem com aprovação dos pais são mais qualificados,
e para que esta circunstância de gosto não faltasse onde não
podia faltar o acerto, desposou-se Jesus com Teresa em presença de
José e Maria. E que vieram a ser estes desposórios? O mesmo
Senhor o disse: — Daqui em diante eu serei todo teu, e tu toda minha.
— De sorte que foi uma entrega de ambos os corações total
e recíproca, com que não só Teresa ficou Teresa de Jesus,
senão também Jesus, Jesus de Teresa. Ainda aquele de é
supérfluo, porque ser um de outro distingue dois sujeitos, e a união
entre Jesus e Teresa foi tão íntima que, passando de união
a unidade, já Teresa e Jesus não eram dois e distintos, senão
um só e o mesmo. Vejamos isso em um excelente retrato feito pela mão
do mesmo Esposo.

Criou Deus a Adão e Eva, e diz assim o texto sagrado: Masculum et
feminam creavit eos, et vocavit nomem eorum Adam (Gên. 5,2): Fê-los
Deus homem e mulher, e deu por nome a ambos Adão. — Pois, se
Adão e Eva eram duas criaturas e dois sujeitos distintos: Masculum
et feminam creavir eos — por que lhes não deu Deus dois nomes
também distintos, senão um só e o mesmo, e não
outro, senão o de Adão: Et vocavit nomem eorum Adam? Porque
a Adão e a Eva desposou-os Deus na maior perfeição da
natureza; e posto que, por força da criação, eram dois,
por virtude do matrimônio ficaram um. Antes que Deus formasse a Eva,
não havia mais que Adão; depois que da costa de Adão
formou a Eva, dividiu-se Adão, e o que era um só sujeito ficaram
dois; mas tanto que Adão deu a mão de esposo a Eva, tornaram
esses dois sujeitos a reunir-se, e os que eram dois e distintos ficaram um
só e o mesmo. Por isso lhes deu Deus um só nome, e não
outro, senão o de Adão: Et vocavit nomem eorum Adam. Isto foi
o que foi. E o que significava, que era? São Paulo: Sacramentum hoc
magnum est: Ego autem dico in Christo et in Ecclesia(11). Tudo isto que passou
entre Adão e Eva foi um grande mistério, porque na união
daquele matrimônio debuxou Deus, como em figura original, o que depois
se havia de verificar na Igreja entre os desposórios de Cristo com
as almas santas. Que Adão foi logo este, senão Jesus, e que
Eva, senão Teresa? Antes deste divino desposório Teresa era
Teresa de Jesus, e Teresa e Jesus dois sujeitos com dois nomes distintos;
porém, depois que Jesus deu a mão de esposo a Teresa, o nome
Teresa de Jesus perdeu a distinção daquele de, e ficou Teresa
Jesus. A que depois se chamou Sara, chamava-se dantes Sarai, e diminuiu-lhe
Deus o nome para lhe acrescentar a dignidade. Assim também a Teresa
de Jesus. Tirou-lhe aquele de, que distinguia a Jesus de Teresa, e ficou somente
Teresa de Jesus, porque, transformado Jesus em Teresa, e Teresa em Jesus,
já não eram dois nomes nem dois sujeitos, senão um só
e o mesmo. Adão e Eva, Adão; Teresa e Jesus, Jesus. Vamos ao
Evangelho.

No princípio do Evangelho das Virgens diz o texto que todas dez saíram
a receber o esposo e a esposa: Exierunt obviam sponso et sponsae. E no fim
do mesmo Evangelho diz que as cinco prudentes entraram com o esposo às
bodas: Intraverunt cum eo ad nuptias (Mt. 25,10). De maneira que, quando saíram,
receberam o esposo e a esposa; mas quando entraram só se diz que acompanharam
o esposo: Intraverunt cum eo. A esposa claro está que não havia
de ficar de fora. Pois, se quando as virgens entraram acompanharam a ambos,
assim como quando saíram receberam a ambos, por que razão quando
saíram ao recebimento se faz menção do esposo e da esposa,
e quando entraram às bodas só se nomeia o esposo, e a esposa
não: Intraverunt cum eo ad nuptias? Excelentemente Santo Hilário:
Sponso tantum obviam proceditur, jam enim erunt ambo unum. Não há
dúvida que entraram às bodas o esposo e mais a esposa; mas esse
mesmo esposo e essa mesma esposa, que antes de entrar às bodas tinham
sido dois, depois de entrar às bodas já eram um só: Jam
enim erunt ambo unum. E porque já eram um, e não dois, por isso
se fez menção do esposo somente, e não da esposa: lntraverunt
cum eo. Assim, nem mais nem menos, nos divinos desposórios de Jesus
com Teresa, antes de se darem as mãos, Jesus e Teresa distinguiam-se,
e eram dois; porém, depois de celebradas as bodas, já ambos
eram um só: Jam ambo erunt unum; já não havia Teresa
e Jesus, senão só Jesus: Intraverunt cum eo.

Quem nos poderá declarar a força e verdade desta união,
senão quem a experimentou em si, a mesma Santa Teresa? Dizia Teresa
de si que estava tão individualmente unida com Jesus, seu esposo, que
podia dizer com São Paulo: — Vivo eu, já não eu,
porque vive em mim Cristo: — Oh! que divina implicação:
Eu não eu! Se sois vós, como não sois vós? Sou
eu considerada em Cristo; não sou eu considerada em mim. Considerada
em Cristo, sou eu, porque Cristo vive em mim e considerada em mim, não
sou eu, porque eu vivo em Cristo. Outra vez, falando com o mesmo Cristo, lhe
disse: — Senhor, que se me dá a mim de mim sem vós? Porque
eu sem vós não sou eu, e de mim que não sou eu, que se
me dá a mim? De sorte que estavam tão transformados estes dois
corações que, reciprocando as vidas, viviam um no outro, e tão
unidos na mesma transformação que, deixando cada um de ser outro,
eram um só e o mesmo: ambo unum.

Da alma santa disse o Esposo divino, que lhe ferira o seu coração,
e que lho tirara: que lho ferira: Vulnerasti cor meum (12), como diz o texto
latino; que lho tirara: Abstulisti mihi cor, como diz o hebraico. O mesmo
sucedeu a Teresa com o seu coração. Apareceu-lhe, estando em
êxtase, um serafim com uma seta de ouro afogueada. E que fez? Metendo-lhe
a seta no peito, com a ponta feriu-lhe o coração: Vulnerasti
cor meum — e, tornando a tirar a seta, com as farpas levou-lhe o coração:
Abstulisti mihi cor. Temos a Teresa sem coração, e, sem coração,
como há de viver? Sem coração, como há de amar?
Antes, para melhor viver, e para melhor amar, lhe tirou seu Esposo o coração.
O coração é o princípio da vida, e onde ambos
viviam com a mesma vida sobejava um coração: por isso lho tirou
Cristo. E também lho tirou para que melhor amasse, amando-se ambos
com um, e não com dois corações. Não há
exemplo na terra: no céu sim, e o mais perfeito. O mais perfeito amor
que há nem pode haver é o das três Pessoas divinas. Ama
o Padre ao Filho, ama o Filho ao Padre, ama o Padre e o Filho ao Espírito
Santo, ama o Espírito Santo ao Padre e ao Filho, e, sendo os amantes
três, a vontade com que se amam é uma só; e assim como
ali há três amantes com uma só vontade, assim cá
se amavam os dois com um só coração. Oh! que perfeito!
Oh! que divino! Oh! que ditoso modo de amar! Amar com igualdade no amor, porque
o mesmo coração é o que ama, e amar sem dúvida
na correspondência, porque o mesmo coração é o
que corresponde: antes o mesmo amor em unidade recíproca é amor
e correspondência juntamente, porque não podiam os amores ser
dois, quando os amantes se tinham transformado em um: Et jam erunt ambo unum.

Não vos parece grande extremo de fineza, não vos parece grande
excesso de favor este de Cristo para com Teresa? Pois a mesma fineza usa o
mesmo Cristo, e o mesmo favor faz aos que dignamente comungam. No Evangelho
do Sacramento temos a prova. Porque, assim como com o Evangelho das Virgens
provamos tudo o que temos dito, e provaremos tudo o que dissermos de Cristo
em respeito de Santa Teresa, assim com o Evangelho do Sacramento provaremos
também quanto houvermos de dizer do mesmo Cristo em respeito de nós
e dos que comungam dignamente.

Caro mea vere est cibus, et sanguis meus vere est potus. A primeira coisa
que Cristo Senhor nosso nos certifica neste Evangelho é ser verdadeira
comida o seu corpo, e verdadeira bebida o seu sangue. Onde se deve muito notar
que não faz a força do que quer persuadir em ser verdadeiramente
seu corpo o que se nos dá debaixo das espécies de pão,
nem em ser verdadeiramente seu sangue o que se consagra debaixo das espécies
do vinho, senão em que esse corpo e esse sangue é verdadeiramente
mantimento nosso. E por que razão? Porque é propriedade e natureza
geral de todo o mantimento converter-se na substância de quem o come;
e como Cristo só neste Sacramento assiste real e presencialmente, e
nos outros não, por isso também só neste se nos quis
dar em forma de mantimento, para que entendêssemos que o fim de o instituir
não só fora para nos comunicar sua graça, como nos outros
sacramentos, senão para se unir a si mesmo conosco, e a nós
consigo. O mesmo Senhor se declarou e o disse logo: Qui manducat meam carnem
et bibit meum sanguinem, in me manet, et ego in illo (13). Sabeis por que
digo que o meu corpo é verdadeira comida, e o meu sangue verdadeira
bebida? Porque, assim como o mantimento se converte na substância de
quem o come, assim eu me quero transformar em vós, e vós em
mim: de modo que vós, comungando, fiqueis em mim, e eu, sendo comungado,
em vós: In me manet, et ego in ilIo. E porque nesta união e
transformação de dois que somos, se há de fazer um só,
este um qual há de ser? Não haveis de ser vós, senão
eu — diz o mesmo Cristo. — E assim continua o texto Santo Agostinho:
Nec tu me mutabis in te, sicut cibum carnis tuae, sed tu mutaberis in me.
De sorte que, assim como nos desposórios de Cristo com Teresa, de dois
que eram, se transformaram em um só, e este um, depois de transformados,
não era principalmente Teresa, senão Cristo que nela vivia:
Vivit vero in me Christus (Gal. 2,20), assim na transformação
do Sacramento, o que dignamente comunga, de tal modo fica unido e identificado
com Cristo, que Cristo é o que nele vive.

O mesmo Evangelho o diz, e com o mesmo exemplo das Pessoas da Santíssima
Trindade, com que declarei a união ou unidade do coração
de Cristo com Teresa: Sicut misit me vivens Pater, et ego vivo propter Pater:
et qui manducat me, et ipse vivet propter me (Jo. 6,58): Assim como eu vivo
pela vida de meu Padre, que me mandou ao mundo, assim quem me comunga verdadeiramente
não vive pela sua vida, senão pela minha. — Grande caso
é que, querendo a sabedoria encarnada declarar o que tinha dito com
algum exemplo, não achasse outro mais adequado e mais próprio
que o da unidade e vida recíproca que há entre o mesmo Cristo
e seu Eterno Padre: Vivit ergo per Patrem — comenta Santo Hilário
— et quomodo per Patrem vivit, eodem modo nos per carnem ejus vivemus:
Assim como entre o Padre e o Filho, enquanto Deus, há uma só
vida, porque o Padre vive no Filho e o Filho no Padre, e um vive pela vida
do outro, assim entre Cristo e o que comunga, posto que sejam dois, a vida
é e há de ser uma só, e não outra, senão
a do mesmo Cristo: Et ipse vivet propter me. Vejam agora os que comungam se
a vida que vivem é a sua ou a de Cristo, e daqui julgarão, pelos
efeitos, se comungam como devem ou não.

III

O segundo favor, e mais extraordinário ainda, que Santa Teresa recebeu
de seu Divino Esposo, foi que entre outras finezas lhe disse estas palavras:
— Teresa, se eu não tivera criado o céu, só por
amor de ti o criara. — De nenhum outro santo se lê semelhante
favor. Houve-se Cristo com Santa Teresa como Santo Agostinho com Deus, para
encarecer o seu amor. Se eu fora Deus, e vós não — diz
Agostinho — deixara eu de o ser, para que vós o fosseis. Muito
tem de excessivo o amor que para se poder declarar finge suposições
impossíveis. Mas isto fez um coração, posto que tão
entendido, humano. Porém Cristo, que pode tudo, e com tão singulares
e esquisitas demonstrações tinha manifestado a Teresa o seu
amor, que invente casos condicionais, e suponha o que já foi, como
se não fora, e o que já não podia ser, como se fosse
possível, para assim declarar quanto ama? A sabedoria de Cristo é
igual à sua onipotência, e a sua onipotência à sua
sabedoria; e que o amor do mesmo Cristo signifique a Teresa que sabe mais
desejar do que pode fazer, e não diga o que fará por ela, senão
o que faria? Ora eu, considerando este caso que supôs Cristo, e um voto
que fez Santa Teresa, entendo que se achou Cristo como alcançado, e
que se não pôde desempenhar daquele voto senão com esta
suposição. O voto que fez Santa Teresa foi de sempre fazer o
que fosse melhor; e como a melhor coisa que Deus podia fazer é o céu
e a bem-aventurança, que já estava feita, disse que, se não
tivera feito o céu, só por amor de Teresa o fizera. Se o amor
de Teresa se obriga por mim a fazer sempre o melhor, como posso eu pagar este
amor, senão fazendo também o melhor por Teresa? Mas este melhor
já está feito? Pois saiba ao menos Teresa de mim que, se não
tivera feito o céu, só por amor dela o fizera. E sendo assim
que Cristo fez o céu por amor de todos os predestinados, parece que
pesa tanto no conceito e estimação do mesmo Cristo o amor de
Teresa só, como o de todos os predestinados juntos.

Uma das coisas mais notáveis que escreveu São Paulo foi esta:
Christus Jesus venit in hunc mundum peccatores salvos facere, quorum primus
ego sum (1 Tim. 1,15): Cristo Jesus veio a este mundo salvar os pecadores,
dos quais eu sou o primeiro. — São Paulo não foi o primeiro
pecador na antigüidade, porque esse foi Adão; nem foi o primeiro
na grandeza e multidão dos pecados, porque houve outros pecadores maiores,
e eles mesmo confessa, neste lugar, que pecou por ignorância: Quia ignorans
feci. Pois donde infere São Paulo que foi o primeiro e maior pecador
de todos: Quorum primus ego sum? Nas palavras antecedentes está a premissa
desta ilação; Christus Jesus venit in hunc mundum peccatores
salvos facere: Cristo veio do céu a este mundo para salvar os pecadores,
— e o mesmo Cristo veio também do céu a este mundo, para
me salvar só a mim. Logo, no conceito e estimação de
Cristo, infere Paulo, tanto pesa a graveza dos meus pecados, como os de todo
o mundo. A mesma ilação faço eu. Assim como São
Paulo, para encarecer a graveza de seus pecados, ponderou que fizera Deus
só por ele o que tinha feito por todo o mundo, assim Cristo, para encarecer
a grandeza do seu amor, disse que faria por Teresa o que tinha feito por todos
os predestinados. E assim como Cristo, só por amor de Paulo desceu
do céu, como tinha descido por amor de todo o mundo, assim Cristo,
só por amor de Teresa criaria o céu, se por amor de todos os
predestinados o não tivera criado. Oh! grande amor! Oh! excessivo encarecimento!
Que no conceito de Cristo, que não lisonjeia, pese tanto o amor de
Teresa como o de todos! Vamos outra vez ao Evangelho.

É semelhante o reino do céu a dez virgens, cinco prudentes
e cinco néscias, diz Cristo nesta parábola. E, por ser parábola,
faz não pequena dificuldade a igualdade destes números. O autor
que faz ou inventa uma parábola, assim como tem liberdade para a dispor
e historiar como lhe importa a seu intento, assim tem também obrigação
de a deduzir em termos prováveis, e àquilo que é verossímil
e costuma acontecer comumente. Suposto isto, parece que não haviam
de ser tantas as prudentes como as néscias. Não andara mal governado,
nem fora tão louco o mundo, se de cada dez mulheres se pagara o dízimo
à prudência. Homens eram aqueles dez leprosos que Cristo sarou,
e porque só um lhe veio dar as graças, perguntou onde estavam
os nove: Et novem ubi sunt (Lc. 17,17)? E se em dez homens se acham nove ingratos,
como não seria mais verossímil que em dez mulheres se achassem
nove néscias? Não há dúvida que segundo a condição
humana este número era o mais próprio, e também segundo
o intento de Cristo, que era a consideração dos muitos que se
condenam. Pois por que não introduz o divino Mestre nesta parábola
nove virgens que fossem néscias, e uma só que fosse prudente?
Porque assim como as néscias, que ficaram de fora, significam as almas
que se condenam, assim as prudentes, que entraram às bodas, representam
as que se salvam e vão ao céu. E no caso em que se introduzisse
uma só prudente, não era nem podia ser verossímil que
Cristo fizesse o céu para uma só. Por isso, fazendo a história
menos verossímil, para que fosse mais verossímil a significação,
não introduziu nela uma só prudente, senão muitas: Et
quinque prudentes (ML 25,2). Não sendo porém verossímil,
ainda na ficção de uma parábola, que Cristo houvesse
de criar o céu para uma só alma, era tal a alma de Teresa, e
tal o extremo com que o mesmo Senhor a amava, que, no caso e suposição
em que não tivesse criado o céu, é verdade certa e infalível
que só por amor dela o criaria. E se quereis ver pintada esta mesma
figura retórica do amor de Cristo, vamos ao Apocalipse.

Viu São João aquela misteriosa mulher tão celebrada,
a quem coroavam as estrelas, vestia o sol e calçava a lua. E conforme
a exposição de São Boaventura, Ruperto, Vitorino, Hugo,
Alberto Magno e outros, os quais entendem por esta mulher uma alma superiormente
alumiada por Deus e adornada de celestiais virtudes, a que alma se pode aplicar
com maior razão esta prodigiosa e admirável figura que à
de Santa Teresa, em cujo espírito sublime e elevado depositou a liberalidade
divina tantos dotes e prerrogativas de perfeição, como se lê
em sua vida, e tantos resplendores de ardentíssima luz, como se admiram
e sentem em seus escritos? São Francisco de Borja, sendo um dos examinadores
do espírito de Santa Teresa, o primeiro testemunho que deu foi que
era una gran mujer. Digo pois que Santa Teresa foi a grande mulher que São
João viu no Apocalipse, e o provo da mesma visão.

Diz o texto que aquela mulher tinha concebido um filho de sexo e valor masculino,
o qual havia de governar o mundo com vara de ferro, e ser arrebatado ao céu;
e que o parto deste filho lhe custou grandes trabalhos e dores, porque lhe
saiu ao encontro um dragão de muitas cabeças coroadas, que o
queria tragar. O autor da história profética carmelitana diz
que este filho há de ser Elias no fim do mundo; e eu, com bem diferente
pensamento e exposição, também reconheço nele
a Elias, mas não que há de ser, senão que já foi,
e não como filho da Igreja universal, senão como parto singular
de Santa Teresa. Ora vede. Que Elias fosse de sexo e valor masculino: Peperit
filium masculum (14), bem se viu na resolução e constância
de todas suas ações contra grandes e pequenos, e muito mais
contra os grandes. Se governou as gentes com vara de ferro, diga-o el-rei
Acab, a rainha Jesabel, el-rei Ocosias, os quatrocentos e cinqüenta profetas
de Baal, que degolou em um dia, as duas companhias de soldados e seus capitães,
que queimou com fogo do céu, e o mesmo céu, que teve fechado
três anos sem chover, como se fosse de bronze. Finalmente que fosse
arrebatado ao céu: Et raptus est ad Deum et ad thronum (15) —
assim o viu arrebatar subitamente e desaparecer de seus olhos seu discípulo
Eliseu. Tinha, pois, fundado Elias no Monte Carmelo uma religião de
tanta severidade, rigor e aspereza, qual era a de seu fundador; tinham-se
passado oitocentos anos antes de Cristo, e depois de Cristo mais de mil e
quinhentos, em que o tempo e as variedades dele, ou tinham enfraquecido a
tolerância, ou moderado a austeridade daquele primitivo instituto, quando
Teresa, revestida do espírito dobrado do mesmo Elias, o concebeu dentro
em si mesma, não para que ressuscitasse, porque não morrera,
mas para que outra vez nascesse, e não só em mulheres, sendo
ela mulher, senão também nos homens. Julgou o mundo esta empresa
por impossível, e dizia com Nicodemos que Elias era muito velho para
tornar ao ventre da mãe e nascer de novo: Quomodo potest homo nasci
cum sit senex? Nunquid potest in ventrem matris suae iterato introire, et
renasci (16)? Porém a santa Madre — que desde então o
começou a ser — assim como segunda vez tinha concebido a Elias,
assim o pariu segunda vez, e o mostrou ao mundo incrédulo felizmente
renascido: Peperit filium masculum.

E quantas dores lhe custasse este prodigioso parto e a novidade dele, diz
a grandes vozes o mesmo texto: Clamabat parturiens, et cruciabatur, ut pareret
(17). Que trabalhos, que contradições, que perseguições,
que murmurações, que descréditos e falsos testemunhos
padeceu aquele sublime e constante espírito, sendo movedor de todas
o dragão infernal, multiplicado, com grande propriedade do mesmo texto,
em muitas cabeças, e estas coroadas, porque apenas houve coroa, não
só profana, mas sagrada — e ainda muitas regulares — que
não impugnasse fortemente, e trabalhasse por abortar este glorioso
parto. Enfim venceu Teresa, e para distinção do novo e primitivo
instituto, descalçou-se como Elias, e assim apareceu, se bem advertirdes,
na mesma figura do céu que a representava. As alparcas de Santa Teresa,
como invenção do céu, de tal modo descalçam os
pés, que os não deixam tocar a terra. São uma sorte de
meio calçado, não para calçar ou cobrir os pés,
mas para se trazer debaixo deles. E disto mesmo servia a lua à mulher
que viu São João. Dizemos comumente — como eu acima disse
— que estava calçada da lua, e não dizemos bem. Se estivera
calçada, havia de ter os pés cobertos da lua; mas ela não
tinha os pés cobertos da lua, senão a lua debaixo dos pés:
Et luna sub pedibus ejus (Apc. 12,1). Assim representava a lua as alparcas
de Teresa, e assim apareceu Teresa descalça no céu, não
já como filha que tinha sido, senão como nova mãe do
primitivo Elias: mãe e filha de seu próprio pai, como a Virgem
das virgens.

Provado pois com todas as propriedades do texto quem fosse a mulher misteriosa
que viu São João, o que agora reparo, e muito se deve notar,
é que aquela mesma mulher enchia e ocupava todo o céu e todos
os céus. Com os pés estava no céu da lua, que é
o primeiro; com o corpo passava pelo céu do sol, que é o quarto;
com a cabeça chegava ao céu das estrelas, que é o oitavo.
Logo, era tão agigantada a sua estatura que desde o primeiro até
o último tomava todo o céu. Pois, se a grandeza de cada um dos
céus é tão imensa, e a de todos tão incomparavelmente
maior, como é possível que uma só mulher a ocupasse toda?
Porque aquela mulher, como vimos, era Teresa, e Teresa, em si mesma e na estimação
de Cristo, é tão grande, que ela só iguala a todo o céu.
Por isso diz, com suposição já não possível
mas certa, que se não tivera criado o céu, só para ela
o criara. E se não, entremos no mesmo céu empíreo, de
que mais propriamente falava Cristo, e veremos que se neste céu exterior,
que vemos, ocupava Teresa todos os lugares com a figura, no céu interior,
que não vemos, também os ocupa todos com a presença.
A natureza humana beatificada tem no céu sete lugares: de patriarcas,
de profetas, de apóstolos, de doutores, de mártires, de confessores,
de virgens; e em todos tem assento eminente Santa Teresa. No das virgens pela
pureza, no dos confessores pela penitência, no dos mártires pelo
desejo, no dos doutores, por seus admiráveis escritos, no dos apóstolos
pelo seu zelo ardentíssimo da propagação da fé,
no dos profetas pelos secretos altíssimos das suas visões, revelações
e profecias, e no dos patriarcas, finalmente, com ser mulher, como mãe
e fundadora gloriosíssima de uma religião tão ilustre,
e lustre das religiões. E se Cristo no céu que se vê,
e no céu que se não vê, deu a Teresa todo o céu,
vede se o criaria só para ela, no caso em que o não tivera criado?
E sendo criado o céu para todos os predestinados, isto é, para
todos os que foram, são e serão bem-aventurados na glória,
julgai se parece, como eu dizia, que pesou tanto na estimação
de Cristo o amor só de Teresa, como o de todos.

Grande favor, grande fineza, estais dizendo todos; e mais não sendo
encarecimento, senão verdade infalível da boca de Cristo. Pois
saiba cada um de nós — ou advirta, como já sabe que esse
mesmo favor, e essa mesma fineza faz o mesmo Cristo no Sacramento por cada
um dos que comungam. Se Cristo faria por Teresa o que fez por todos os predestinados,
no Sacramento não só faria, mas faz por cada um dos que comungam
o que fez por todos. Porque, se no Sacramento se dá todo a todos, igualmente
se dá todo a cada um. É verdade que o Sacramento foi feito para
todos, mas de tal maneira para todos como se se fizera para um só.
No Evangelho o temos, e não em uma só parte, senão em
todo: Qui manducat meam carnem et bibit meum sanguinem, in me manet, et ego
in illo (Jo. 6,57): Aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue está
em mim, e eu nele. — Notai que não diz aqueles que comem, senão
aquele: Qui manducat. Vai por diante o Senhor: Sicut misit me vivens Pater,
et ego vivo propter Patrem, et qui manducat me, et ipse vivet propter me (Ibid.
58): Assim como meu Padre vive, e eu vivo por ele, assim aquele que me come
viverá por mim. — Notai outra vez que não diz aqueles,
senão aquele: Et qui manducat. Finalmente faz comparação
entre o Sacramento e o maná, e dizendo que seus pais, daqueles com
quem falava, comeram o maná e morreram: Patres vestri manducaverunt
mana et mortui sunt (Ibid. 59), aqui parece que por boa conseqüência,
e para mais declarar a contraposição, havia de dizer que aqueles,
porém, que comem meu corpo, viverão eternamente; e também
aqui não disse aqueles, em plural, senão aquele, em singular:
Qui manducat hunc panem vivet in aeternum. Qual é pois a razão
por que sempre diz aquele, e não aqueles? Por que sempre fala em singular,
e não em plural? E por que, sendo o Sacramento instituído para
todos, nunca fala de muitos, senão de um só? E notai, para maior
admiração, que em todas estas sentenças sempre o Senhor
variou a frase, porque a primeira vez disse: Aquele que come a minha carne:
Qui manducat meam carnem; a segunda: Aquele que come a mim: Qui manducat me;
a terceira: Aquele que come este pão: Qui manducat hunc panem. Pois,
se falando do Sacramento, que é carne de Cristo, e todo Cristo, debaixo
de espécies de pão, variou sempre a frase, falando dos que comungam,
por que não variou nem multiplicou o número, antes persistiu
e perseverou sempre na unidade: Qui manducat, qui manducat, qui manducat?
A razão é porque, ainda que o amor de Cristo, instituindo o
Sacramento universalmente para todos, de tal maneira abstraiu e quis que nos
abstraíssemos dessa mesma universalidade, como se verdadeiramente fora
instituído não para todos, nem para muitos, nem para mais, senão
singularmente para um só. E assim é, porque, dando-se Cristo
no Sacramento todo a todos, e todo a cada um, de tal modo e com tal amor se
dá todo a um, como se amara e estimara tanto a um só como a
todos.

Ouvi a São Salviano, que é o que mais viva e profundamente
ponderou esta singularidade: Sicut totum ei debent universi, sic totum singuli,
quod tantum acceperunt singuli, quantum universi: No Sacramento tanto devem
todos a Cristo, com cada um, porque tanto recebe cada um como todos. —
E que se segue daqui? Agora vai o profundo da ponderação: Ubi
enim hoc unus accipit, quod universi, et si par est mensura, major invidia
est: Porque quando um recebe tanto como todos, ainda que a medida é
igual, a inveja é maior. — Muitos comentos tenho lido desta cláusula,
e muitos sentidos deste enigma de Salviano, mas nenhum que satisfaça,
porque, para haver inveja, há de haver desigualdade, e sendo a medida
do que se dá igual, como pode haver inveja? Na distribuição
do maná nenhum tinha inveja, porque aquela medida, chamada gomor, tão
cheia se dava a um como ao outro; logo, se cá também a medida
é igual: par mensura, como pode ser maior a inveja: major invidia est?
Porque no maná tanto levava um como o outro, mas não tanto um
como todos: porém, no Sacramento, como tanto recebe um como todos,
e tanto todos como um, bem pode haver inveja, e grande inveja, não
pela desigualdade do Sacramento, onde a não há, senão
pela desigualdade de número, que é a maior que pode haver. Quando
um só recebe tanto como todos, como não hão de ter inveja
todos àquele um? Se no céu pudera haver inveja, e já
se soubesse que o céu que Cristo fez por amor de todos os bem-aventurados,
o faria só por amor de Teresa, não seria bastante ocasião
de inveja esta grande diferença? Pois o mesmo passa no Sacramento.
Antes digo que, assim como da arte de todos em respeito de um pode ser inveja,
assim da parte de um em respeito de todos poderá ser soberba. Que faça
tanto Deus por mim só, como por todos. Ele me tenha de sua mão,
para que tamanho favor me não ensoberbeça. Aqui, e neste ponto
de tão verdadeira honra, quisera eu que a nossa soberba se esmerasse;
mas ela é tão vã e tão vil, que, igualando-nos
Deus, na sua estimação, com todos, o mesmo Deus, na nossa estimação,
é menos que tudo.

IV

O terceiro favor, e mui singular com que Cristo declarou seu amor a Santa
Teresa, foi este. Falava a santa com o Senhor tão familiarmente, como
sabemos. E passando uma vez a conversação do presente ao passado,
disse-lhe Teresa: — Grande foi, Senhor, o amor com que Vossa Majestade
amou à Madalena. — Estas foram as palavras debaixo das quais
pudera haver alguma segunda intenção, se não fora Teresa
a que as disse. Uma das maiores prerrogativas do amor divino é ser
amor sem ciúme. Quem ama a Deus deseja que todos o amem, e que eles
ame a todos, e por isso é amor. O humano — a quem falsamente
damos este nome — nem admite companhia no amar, nem vantagem no ser
amado, e por isso é amor-próprio, ou mais propriamente inveja.
Falou pois Teresa sem querer fazer comparação de si à
Madalena; mas como se a fizera, e quisera saber de Cristo este segredo do
seu coração, respondeu o Senhor assim: — Teresa, eu amei
a Madalena estando na terra, porém a ti amo-te estando no céu.
— De sorte que distinguiu o amor pelo lugar, e a fineza de um pela melhoria
de outro.

Se Cristo fora como os outros homens, achara eu muito fácil inteligência
a esta sua resposta, porque o amor está em tal estado que, sendo afeto
do coração, depende mais dos lugares que das vontades; e assim
é muito maior fineza amar no céu, que amar na terra. As bem-aventuranças
são muito desamoráveis, e não há maior inimigo
do amor que a felicidade. Provavam antigamente isto os pregadores com o exemplo
de José, nas ingratidões do copeiro de Faraó. Mas hoje
estão estes desenganos tão provados nas experiências,
que não necessitam de fé nem de Escrituras. O certo é
que toda a fortuna tem jurisdição no amor: se é adversa,
ninguém vos ama; se é próspera, a ninguém amais.
É tanto assim que, como coisa nova e singular, disse São Paulo
de Cristo: Qui descendit, ipse est et qui ascendit (Efs. 4,10): O Senhor que
subiu ao céu é o mesmo que desceu à terra. — Porque
os outros homens, comumente, quando sobem são uns, quando descem são
outros. Por isso há tantos que trabalhem pelos fazer descer. Pois,
se Cristo no céu e na terra sempre é o mesmo, como dá
por razão de diferença ou de vantagem que à Madalena
amou-a quando estava na terra, porém a Teresa quando está no
céu? A razão é porque em Cristo, ainda que a mudança
do lugar não faz diferença na vontade, a maioria do estado acrescenta
grandes quilates ao amor. Na mesma Madalena o temos.

Sendo Cristo convidado do fariseu, entrou a Madalena por sua casa, lançou-se
aos pés do Senhor, ungiu-lhos, segundo o costume daquele tempo, com
preciosos ungüentos, regou-os com especiosas lágrimas, enxugou-os
com seus cabelos, regalou-os e regalou-se com eles até matar a sede
da sua dor e do seu amor. Outra vez depois, e poucos dias antes de sua morte,
estando o mesmo Cristo em Betânia, hóspede de Simão, lhe
fez a Madalena semelhante regalo, ainda com circunstâncias de maior
confiança, porque não derramou os ungüentos — que
eram de mais estimadas espécies — sobre os pés do Senhor,
senão sobre a cabeça: Super caput ipsius recumbentis (18). Em
uma e outra ocasião, tão fora esteve a soberana benignidade
de Cristo de lançar de si a Madalena, ou de estranhar este gênero
de obséquio, tão alheio da moderação do seu trato,
que publicamente a louvou e a defendeu: a primeira vez contra os pensamentos
do fariseu, e a segunda contra as murmurações dos discípulos.
Sendo tudo isto assim, ressuscita o mesmo Senhor, aparece à mesma Madalena
na manhã da Ressurreição, e querendo ela respirar da
sua tristeza, alegrar as suas lágrimas, consolar as suas saudades,
e ressuscitar também a sua vida com se lançar e abraçar
os sagrados pés onde sua alma a tinha recebido, eis que com novidade
e estranheza não esperada, o Senhor a aparta de si, e lhe manda que
o não toque: Noli me tangere(19). A causa que deu a este retiro —
a qual logo ponderaremos — não tira, antes acrescenta a dúvida.
Pois, se Cristo, antes de sua morte, em que a Madalena o assistiu tão
constantemente, admitia e se agradava dos seus obséquios, como agora
depois de sua Ressurreição, os não consente, antes lhe
manda que se retire? Porventura merecia agora menos a Madalena? Claro está
que não, antes muito mais, porque o amor da vida, que costuma acabar
com a morte e enterrar-se com a sepultura, vivo, morto e sepultado, e ainda
desaparecido, que é mais, o tinha Cristo experimentado nela sempre
constante. Pois, se o amor era o mesmo, as finezas mais declaradas, e o merecimento
maior, por que lhe nega Cristo, depois da Ressurreição, o favor
que lhe concedia antes da morte? Porque antes da morte, diz São João
Crisóstomo, estava Cristo mortal e passível; depois da Ressurreição
estava já imortal e glorioso: e como este novo estado era tão
diferente, esta era também a diferença com que queria ser tratado.
O primeiro estado era o da terra, em que veio a servir; o segundo era já
o do céu, em que ia a reinar: e por isso tratava e queria ser tratado
da Madalena, não segundo a familiaridade de quando vivia na terra,
senão conforme a majestade com que ia a reinar no céu. O mesmo
Cristo deu à Madalena esta razão.

Quando o Senhor lhe disse: Noli me tangere, acrescentou: Nondum enim ascendi
ad Patrem: vade autem ad fratres meos, et dic eis: Ascendo ad Patrem meum
et Patrem vestrum (Jo. 20,17). Quer dizer: posto que me vês na terra,
e ainda não subi ao céu, digo-te contudo que me não toques,
porque daqui por diante hás-me de tratar como se já estivera
no céu, e não na terra. E assim vai dizer a meus discípulos
que subo ao Padre: Dic eis: Ascendo ad Patrem meum. Notável recado
em tal dia! O dia era da Ressurreição, e o recado é da
Ascensão. Parece que o recado havia de ser: — Dize a meus discípulos
que ressuscitei, que já te apareci, que me viste, que estou vivo. Mas
que subo ao céu: Ascendo ad Patrem? — e não que subirei,
ou que hei de subir, senão que já subo: Ascendo? Sim, para que
entendessem os apóstolos que o novo estado a que ressuscitara era muito
diverso do passado, e que já o não haviam de tratar como companheiro
na terra, senão como Senhor no céu. E isto que mandava dizer
aos apóstolos era o mesmo que respondia à Madalena, para que
do recado que levava entendesse a razão do que lhe proibira; e assim
o entendeu. Tornou Cristo a aparecer à Madalena e às outras
Marias no mesmo dia, e que fizeram? Tenuerunt pedes ejus, et adoraverunt eum
(Mt. 28,9): Lançaram-se aos pés do Senhor, e adoraram-no. —
Pois, se Cristo permitiu estes segundos obséquios, em que também
entrava a Madalena, por que lhe não consentiu os primeiros? Porque
os primeiros eram de amor e familiaridade, os segundos eram só de respeito
e reverência; aqueles eram abraços, estes eram adorações:
Et adoraverunt eum. Tanta era a majestade com que o Senhor agora se tratava,
e tanta a veneração com que queria ser tratado, não porque
não fosse ainda o mesmo, mas porque o seu estado não era já
da terra, senão do céu. E se para não admitir os afetos
da Madalena, com as demonstrações de favor e agrado que dantes
costumava, bastou dizer que já subia ao Padre, vede se distinguiu e
encareceu altamente a preferência do seu amor na diferença do
seu estado, pois amando a Madalena e amando a Teresa, à Madalena diz
que a amou quando estava na terra, e a Teresa que a amava estando no céu.
Venha terceira vez o Evangelho.

As virgens néscias não se fizeram néscias naquelas poucas
horas em que esperaram a vinda do esposo. É verdade que quando lhes
disseram que já vinha, bastantes razões tiveram para perder
o juízo, pois se viram com as lâmpadas apagadas na ocasião
de maior luzimento, e experimentaram tão más correspondências
nas companheiras, de cuja amizade esperavam outros primores. Mas antes de
tudo isto, quando foram admitidas para o aparato daquela solenidade, já
então diz o Evangelho que eram néscias: Quinque autem ex eis
erant fatuae. Pois se o esposo, que era Cristo, sem embargo deste defeito
tão conhecido, as admitiu ao primeiro ato das bodas, por que as excluiu
no último? Porque no primeiro estava ainda na terra, onde veio buscar
a esposa; no último estava já no céu, onde a levou: e
como o estado de Cristo no céu é tão superior ao que
teve na terra, na terra, onde tudo é imperfeito, admitia prudentes
e néscias, porém no céu, que é a pátria
da perfeição, só admitiu as prudentes. Mas que de prudentes
e néscias faça Cristo tanta diferença quanta vai do céu
à terra, bem está: porém de prudente a prudente, e entre
duas tão prudentes, como era a Madalena e Teresa, faça distinção
o seu amor, em amar a uma quando estava na terra, e a outra quando está
no céu? Sim. E tenha paciência por agora a Madalena, que não
poderá o amor responder mais em favor de Teresa.

Para conhecimento desta diferença ou desta declarada vantagem, é
necessário considerar bem como está Cristo no céu e com
quem está. O estado que Cristo tem no céu é tão
diverso do que tinha na terra, que quando se partiu para lá, disse
assim a seus discípulos: Qui credit in me, opera quae ego facio et
ipse faciet, et majora horum faciet, quia ego ad Patrem vado (Jo. 14,12):
Vós que credes em mim, não só fareis as obras maravilhosas
que eu agora faço, senão maiores. — E por quê? Quia
ego ad Patrem vado: Porque eu vou para o céu. — Pois por que
Cristo vai para o céu, por isso hão de fazer seus discípulos
maiores milagres do que fazia o mesmo Cristo quando estava na terra? Quando
Cristo estava na terra, seus discípulos também faziam milagres,
mas menores dos que o Senhor fazia, e alguns não podiam fazer. Qual
é logo a razão por que depois de subir ao céu, não
só hão de fazer os mesmos milagres que ele fazia, senão
maiores? Porque assim convinha ao maior e supremo estado que Cristo havia
de ter no céu. A grandeza e majestade dos senhores conhece-se pelo
poder e autoridade dos criados. E é tão grande a diferença
de estado que hei de ter no céu — diz Cristo — ao que tinha
na terra, que vós e todos aqueles de que eu então me servir,
não só hão de fazer o que eu faria, senão maiores
obras ainda, para que do seu poder e autoridade se conheça a grandeza
e majestade do Senhor a quem servem. Se eles, comparados comigo na terra,
parecerá que me excedem a mim, eu comparado comigo no céu, quem
pode imaginar o que serei? E se tanta é a diferença que Cristo
tem de estado a estado, e ainda de si a si mesmo, só porque está
no céu: Quia ad Patrem vado — vede também quanto cresce
um amor sobre outro amor nesta circunstância e quanto mais foi amar
Cristo a Teresa, estando no céu, ou a Madalena, quando estava na terra.

Mas não basta só conhecer como Cristo está no céu:
é necessário também considerar com quem está.
Cristo no céu está assistido e cortejado de todos os bem-aventurados.
E estes bem-aventurados, quem são e qual é a sua grandeza? Nenhum
de nós o podia presumir, se o mesmo Cristo o não declarara.
Naquele famoso panegírico que Cristo fez de São João
Batista, diz duas coisas notáveis: a primeira, que o Batista era o
maior dos nascidos; a segunda, que o menor do reino do céu é
maior que o Batista: Amen dico vobis, non surrexit inter natos mulierum major
Joanne Baptista: qui autem minor est in regno caelorum, major estillo(20).
— Depois que o Batista for ao céu, então será lá
maior que muitos; mas enquanto está na terra, o menor do reino do céu
é maior que ele. E por quê? Porque os dos céus —
diz São Jerônimo — vêem a Deus: o Batista ainda o
não vê. Os do céu amam por vista, o Batista ama por fé;
os do céu já venceram e estão coroados, o Batista ainda
tem que vencer e está na campanha: Aliud est coronam victoriae possidere,
aliud adhuc in acie pugnare. E que estando Cristo na terra, onde o maior dos
nascidos é menor que o menor do reino do céu, amasse muito a
Madalena, não foi grande fineza; mas que estando no céu, onde
o menor daquele reino é maior que o maior dos nascidos, amasse tanto
a Teresa, esta foi aquela grande diferença, que o mesmo Senhor ponderou,
porque só ele a conhecia. A Madalena, como tão amante e tão
amada estando na terra, mandava-a Cristo levar ao céu, para que fosse
ouvir as músicas dos anjos; e Teresa, estando na terra, amava tanto
e era tão amada que, estando Cristo no céu, deixava as músicas
dos anjos para vir conversar com Teresa na terra. Encareça logo Cristo
o seu amor pela diferença do seu estado, e pela do lugar e da companhia,
e diga que amou a Madalena e amava a Teresa sim, mas a Madalena quando estava
na terra, a Teresa quando estava no céu.

E se esta circunstância do amor acrescenta tanto à fineza, quanto
vai do céu à terra, não é menor, senão
a mesma, a que Cristo usa e exercita conosco no diviníssimo Sacramento.
O mesmo Evangelho o diz: Hic est panis qui de caelo descendit (Jo. 6,59):
Este é o pão que desceu do céu. — Quando Cristo
disse estas palavras, nem ele tinha ainda subido ao céu, nem instituído
o Sacramento de seu corpo debaixo de espécies de pão. Pois,
se ainda não era pão, nem tinha subido ao céu, como lhe
chama pão que desceu do céu: Qui de caelo descendit? É
verdade que o Sacramento, o qual começou a ser pão na ceia,
não era do céu, nem desceu do céu senão do dia
da Ascensão por diante, porque o corpo de Cristo, que éa substância
do Sacramento, nunca esteve no céu, senão depois daquele dia;
e contudo chamou-lhe Cristo pão do céu, antes de ser do céu,
porque, como queria encarecer o muito que nos dava, antecipou a circunstância
para mais subir de ponto a fineza. Disse o que havia de ser, quando ainda
não era, porque acrescentava muito à substância do que
era a circunstância do que havia de ser. — Havia de ser pão,
que por amor de nós desceu do céu: Panis qui de caelo descendit
— e assim como o mesmo Senhor preferiu o amor com que amava a Teresa
ao amor com que amou a Madalena, pela diferença de amar estando no
céu ou estando na terra, assim pondera muito no Sacramento, não
tanto a substância do que dá, quanto a circunstância do
lugar donde desce, porque ainda que dar-se Cristo a comer é o non plus
ultra do amor, dar-se quando está no céu e descer do céu
para se dar, é muito maior fineza que se estivera na terra.

Daqui se segue que devemos e somos mais obrigados a Cristo pela continuação
do Sacramento que pela instituição dele; mas pelo modo com que
agora se nos dá a nós, que pelo modo com que no princípio
se deu aos apóstolos, porque no princípio deu-se quando estava
mortal e passível, agora dá-se quando está imortal e
glorioso; no princípio deu-se quando estava na terra, agora dá-se
quando está no céu. Assim o entendeu e admirou quem teve ciência
para o conhecer, posto que não teve ventura para o gozar, Davi: Panem
caeli dedit eis, panem angelorum manducavit homo (Sl. 77, 24 s): O pão
do céu deu-se na terra, e o pão dos anjos comeram-no os homens.
— Três coisas diz aqui o profeta certas, e uma parece que o não
é: ser o Sacramento pão do céu, dar-se na terra e comerem-no
os homens. Tudo é certo; mas que esse pão seja dos anjos, como
ou por que título? Ou seria pão dos anjos se os anjos o comessem,
mas eles não o comem: ou seria pão dos anjos se eles o fizessem
e consagrassem; mas esse poder é só dos sacerdotes. Por que
diz logo o profeta que é pão dos anjos? Porque as coisas propriamente
não são de quem as logra, senão de quem as merece. Se
o pão do céu se dera por oposição, e não
por graça, por justiça, e não por favor, aos anjos se
havia de dar, que são do céu, e não a nós, que
somos da terra e somos terra. E que havendo nos anjos o merecimento, e em
nós a indignidade, se negue este pão aos anjos no céu,
e desça do céu para se dar aos homens na terra? Oh! grande amor!
E não sei se diga também: grande injustiça! Mas o amor,
para ser grande, há de ter alguma coisa de injusto, porque sendo injusto
para quem se nega, é mais fino para quem se dá. Só Santa
Teresa fez justa esta fineza, porque, sendo mulher, foi serafim; nós,
devendo chegar à comunhão como anjos, apenas há algum
que o faça como homem: Panem angelorum manducavit homo.

V

O quarto e último favor de Cristo, que pondero em Santa Teresa, tem
ainda muito mais apertadas circunstâncias que as passadas. Nos princípios,
em que o soberano Senhor começou a regalar a sua esposa com aparições
tão freqüentes e tão extraordinárias, que tiveram
por muito tempo suspensa e duvidosa toda a Igreja, a santa, como tão
prudente e tão humilde, que no seu conceito se reputava pela mais indigna
de todas as criaturas, temia que fossem enganos e ilusões do demônio,
e por conselho e obediência de seus confessores, que sempre foram os
mais doutos e mais espirituais daquela idade, quando Cristo lhe aparecia,
ou como ressuscitado e glorioso, ou como chagado e coroado de espinhos, ou
na mesma forma e representação com que vivia neste mundo, Teresa
não só lhe voltava o rosto com rigor e sinais de desprezo, mas
com a boca lhe dizia injúrias, com as mãos lhe fazia afrontas,
e, como se fosse o inimigo comum do gênero humano, com a cruz e água
benta se defendia daquele bendito Senhor, que para nos armar com a mesma cruz
quis morrer nela; porém o amor do Esposo divino era tão fino
e tão constante, que não só sofria estes bem-intencionados
agravos, mas, por serem feitos por obediência, os aprovava e amava.

Lembra-me a este propósito aquela famosa questão, disputada
diante de el-rei Dario, e referida por Esdras no Livro Terceiro (III Esd.
cap. 3 e 4). Era a proposta da questão, entre três sábios
do palácio real, qual fosse a mais forte coisa do mundo? Um disse que
o vinho, outro que o rei, outro que a mulher. E este provou a sua opinião
com este exemplo. Eu vi, disse, uma mulher chamada Apemen, amiga de um famosíssimo
rei, a qual estava assentada à sua mão direita: Sedentem juxta
regem ad dexteram. E esta lhe tirava a coroa da cabeça, e a punha sobre
a sua: Auferentem diadema de capite ejus, et inponentem sibi — e com
a mão esquerda lhe dava bofetadas: Et palmis caedebat regem de sinistra
manu – e sobre tudo isto o rei, com a boca aberta, estava suspenso e
como arrebatado nela: Et super haec aperto ore intuebatur eam. E se Apemen
se lhe mostrava indignada, com novas carícias a procurava reconciliar
e trazer à sua graça: Nam si indignata ei fuerit, blanditur,
donec reconcilietur in gratiam. — Tão rendido tinha o amor aquele
homem, e tão esquecido de si estava aquele rei. Mas quem poderá
imaginar em Deus semelhantes extremos? Grande é, excessivo é,
e quase incrível, Teresa, o amor com que rendido vos ama e estima Cristo!
Tirais a coroa da cabeça ao Rei dos Reis, persuadindo-vos que não
é ele o que vedes. Não só a pondes sobre a vossa cabeça,
mas mostrais que a pisais e lançais aos pés; não só
lhe dais bofetadas, mas com as mãos violentas ou violentadas lhe fazeis
injúrias de maior aborrecimento e desprezo; não só vos
mostrais ingrata a seus favores, mas ofendida e indignada dele. Et super haec,
e sobre tudo isto, ele, desconhecido, vos não desconhece; ele, tão
indignamente tratado, vos torna a buscar; ele continua e insiste com novos
favores, para que o acabeis de conhecer e o admitais em vossa graça.
Vamos ao Evangelho.

Não lhes aproveitou às virgens mal prevenidas haverem seguido
o conselho das prudentes — que era a desculpa em que nestes agravos
inocentes se fundava a consciência e obediência de Teresa —
não lhes aproveitou, digo, nem lhes valeu às cinco virgens aquele
conselho, para que o Esposo lhes não fechasse a porta: Et clausa est
janua (21). Vieram contudo com o descuido emendado e as lâmpadas acesas,
bateram e chamaram: Domine, Domine, aperi nobis (22). Mas como o Senhor lhes
respondesse: Nescio vos (Ibid. 12): Não vos conheço —
não bateram nem chamaram mais. Esta é a minha admiração
e o meu reparo. O mesmo Senhor, que mandou fechar a porta a estas virgens,
tinha dito: Petite, et accipietis; pulsate, et aperietur vobis (Lc. 11,9 s):
Pedi, e recebereis; batei, e abrir-vos-ão: Omnis enim qui petit, accipit,
et pulsanti, aperietur: Porque todo o que pede recebe, e a todo o que bate
se abrirá. — Pois, se o mesmo Senhor tinha mandado e prometido
isto, se tinha mandado que pedissem e que batessem, e tinha prometido que
quem pedisse receberia, e a quem batesse lhe abririam, por que não
instam em pedir e bater? Se pediram e bateram uma vez, peçam e batam
outra; e se isso não bastar, continuem em pedir, e perseverem em bater
muitas vezes, pois também sabem que Deus gosta de ser importunado,
e que assim o ensinou o mesmo Cristo. Qual é logo a razão por
que estas mesmas virgens, tão desejosas de entrar, que não perdoaram
a diligências, nem a passadas, nem a despesas, e tudo isto fizeram sem
temor nem reparo à meia-noite, qual é a razão por que
agora não insistem nem perseveram, e se retiram tristes e mudas, sem
falar nem aparecer mais? A razão é porque o Esposo lhes disse:
Nescio vos:Não vos conheço. — E tanto que se viram desconhecidas,
de tal maneira perderam a confiança e ainda o primeiro fervor e desejo,
que se não atreveram a falar nem aparecer mais diante de quem as não
conhecia. As desconhecidas, no nosso caso, não eram as virgens ou a
virgem, senão o mesmo Esposo. Tão desconhecido de Teresa, que
não só o não conhecia por quem era, nem só o reputava
por fingido e fantástico, senão por outro tão alheio
daquela divina figura, quanto é o mesmo demônio transfigurado
em anjo de luz. E que assim desconhecido e tratado como tal, com desprezos,
com injúrias e aborrecimentos, torne Cristo a buscar a Teresa, e não
desista de lhe aparecer, para que acabe de se desenganar e o conhecer? Grande
e nunca visto amor!

As diligências que Cristo fazia para que Teresa, sem escrúpulo,
nem dúvida, o conhecesse, e os efeitos que experimentava depois destas
aparições, eram todos aqueles com que o mesmo Senhor costuma
assegurar as almas timoratas da verdade da sua presença. Porque, depois
destas vistas tão mal olhadas, crescia no coração de
Teresa a humildade e desprezo de si mesma, crescia o aborrecimento do mundo,
crescia o zelo da honra de Deus, e todas as outras virtudes sólidas,
que com as aparições do demônio, como vento seco e do
inferno, costumam enfraquecer e murchar. Mas nenhuns destes sinais bastavam
para que Teresa, ou os que governavam seu espírito, o dessem por seguro.
Quando Cristo apareceu a Madalena em traje de hortelão, bastou que
dissesse: Maria, para que ela conhecesse a seu Mestre. Quando o mesmo Senhor
apareceu em hábito de peregrino aos discípulos de Emaús,
bastou que partisse diante dele o pão, para que também o conhecessem;
mas para que seguramente o conhecesse Teresa, nenhuns sinais, nenhumas demonstrações,
nenhumas experiências bastavam, como também não bastava
este tão continuado desconhecimento, para que o Senhor se retirasse,
que tanto o apertava o seu amor.

Retirai-vos, Senhor, retirai-vos, e eu vos prometo que haveis de acabar mais
com o mesmo retiro que com a presença, e mais com o desaparecer que
com as aparições, porque tanto que vos retirardes e desaparecerdes,
logo se conhecerá que sois vós, e que são verdades seguras
e vossas as que agora parecem sonhos e ilusões. Lembrai-vos de quando
mandastes livrar do cárcere mamertino ao vosso grande sucessor e amante.
Estava ali preso São Pedro com duas cadeias e quatro soldados de guarda,
quando entrou o anjo a libertá-lo. Tocou as cadeias, e quebraram-se;
tocou o prisioneiro, e acordou; disse-lhe que se vestisse, vestiu-se; disse-lhe
que se calçasse, calçou-se; e Pedro, que tudo isto viu e fazia,
cuidava que era sonho e ilusão. Disse-lhe o anjo que o seguisse, seguiu-o:
passaram a primeira e segunda guarda, e ninguém os impediu; chegaram
a uma porta de ferro, e desferrolhou-se; caminharam por dentro e por fora
da cidade, e Pedro ainda crente que nada daquilo era verdade, senão
imaginações vãs da fantasia: Nesciebat quia verum est
quod fiebat per angelum: existimabat autem se visum videre (23). Eis aqui
como muitas vezes, ainda aos maiores santos, as verdades parecem enganos,
e as aparições do céu, ilusões. Mas que fez o
anjo, para que Pedro se desenganasse e cresse o que não acabava de
crer? Tirou-se de diante dos seus olhos, e desapareceu: Discessit angelus
ab eo (At. 12,10). E no mesmo ponto conheceu Pedro que o anjo verdadeiramente
era anjo, e que ele verdadeiramente tinha saído do cárcere,
e estava livre: Nunc scio vere, quia misit Dominus angelum suum, et eripuit
me (24). De sorte que quando lhe apareceu o anjo, e enquanto o via, não
o conhecia; e tanto que desapareceu e não o viu, então o conheceu.
Este é o remédio, Senhor, para que Teresa vos conheça.
Se vos não conhece quando lhe apareceis, desaparecei, e conhecer-vos-á.
Mas este mesmo conselho, que vós sabeis melhor, muito temo que o não
há de tomar vosso amor, posto que sinta quanto deve ver-se tão
desconhecido.

Cansados de lutar a maior parte da noite contra uma grande tempestade na
pequena barca de São Pedro, ele e os outros discípulos, e já
desesperados de remédio, foi o divino Mestre desde a praia a socorrê-los,
caminhando sobre as ondas. O perigo, a escuridade, e os passos daquela portentosa
figura, que cada vez que se ia chegando mais para eles, sobre o temor e perturbação
em que estavam, lha acrescentou de maneira, que não conhecendo quem
era, se persuadiram ser algum fantasma: Ut viderunt eum ambulantem supra mare,
putaverunt phantasma esse (25). O Siro lê: Visum mendax: visão
enganosa; e os expositores: illusionem diabolicam: ilusão do demônio,
que é o mesmo que sucedia a Santa Teresa com suas visões, ou
a Cristo com elas. Mas que fez o Senhor neste passo? Diz o evangelista que
queria deixar os discípulos: Volebat praeterire eos (Ibid. 48). Pois,
se os ia socorrer, e por um modo tão extraordinário e milagroso,
por que os quer deixar? Porque assim o ditava a razão, vendo-se a si
mesmo reputado por fantasma, a sua visão por enganosa, e a sua presença
verdadeira por ilusão diabólica. Mas como naquela barca flutuava
o seu cuidado e perigava o seu amor, enfim os socorreu, e foi conhecido. Oh!
Jesus! Oh! Teresa! Muito era que fizesse Cristo tanto por Teresa, como por
Pedro e João, e por todo o apostolado junto; mas sem comparação
fez muito mais. Não uma só vez foi reputado por fantasma, nem
um só dia, senão anos inteiros; andava o seu amor por tribunais,
as suas visões e aparições, ou reprovadas totalmente,
ou tidas por suspeitosas, e ele não só desconhecido, mas injuriado,
porém a sua vontade sempre tão firme e constante, que nunca
se pôde dizer dela: Volebat praeterire. Desconhecido, tornava a buscar
a Teresa; injuriado, lhe fazia novos favores, e nenhum conceito do mundo,
ou descrédito seu, ou perseguição de ambos pôde
fazer jamais que a deixasse.

E quem não vê neste prodigioso retrato a verdade, a firmeza,
a paciência e a invencível perseverança do amor de Cristo
para conosco naquele sacrossanto mistério? Nós o cremos, nós
o adoramos, nós daremos o sangue e a vida pela confissão e defensa
de que naquela Hóstia consagrada, posto que invisível a nossos
olhos, está e estará até o fim do mundo toda a majestade
do Filho de Deus, humana e divina, tão inteira, real e verdadeiramente
como à destra do Padre. Mas quantos hereges houve e há, que
a tudo isto, que a católica Igreja crê e ensina, chamam blasfemamente
fantasmas. Dizem — tão ignorantes são e tão estólidos
— que quando Cristo disse: Hoc est corpus meum: Este é meu corpo
— não quis dizer nem significar o que as palavras significam;
dizem que não há ali outra coisa senão o que se vê,
pão, e não Cristo; dizem que tudo o que os católicos
cremos, são quimeras, ilusões e enganos. E, sem embargo desta
incredulidade, desta perfídia, destas blasfêmias, e das outras
injúrias maiores com que do entendimento cego passam às mãos
sacrílegas, foi tão imensa a benignidade do divino amor que,
antevendo-as, se deixou conosco, e é tão constante o mesmo amor
que, experimentando-as, as sofre e não aparta de nós.

Quando Cristo, naquelas palavras que só nos restam por ponderar do
Evangelho: Non sicut manducaverunt patres vestri mana, et mortui sunt (26),
ensinou a diferença infinita que há do maná ao divino
Sacramento, foi porque o povo cego antepunha o maná ao pão do
céu que o Senhor lhes prometia, e Moisés ao mesmo Cristo. E
quando lhes disse que, se não comessem a sua carne e bebessem o seu
sangue, não haviam de ter vida: Nisi manducaveritis carnem Filii hominis,
et biberitis ejus sanguinem, non habebitis vitam in vobis (Jo. 6,54) —
não só o povo, senão muitos dos discípulos do
mesmo Cristo se saíram da sua escola e lhe voltaram as costas, dizendo
que tais coisas, como aquelas, não se podiam ouvir, quanto mais crer.
De sorte que a fé do Sacramento, não só nasceu, mas foi
concebida em tal signo de contradição: In signum cui contradicetur
(Lc. 2,34) — que antes de ser instituído o Sacramento, já
era negado, antes de ser dado, já era perseguido, e só por ser
prometido, era blasfemado. Pois, Senhor, se assim é já agora,
e estas mesmas experiências mostram o que será depois, se estes
homens são tão cegos, tão ingratos e tão indignos,
e a mercê que lhes quereis fazer excede tanto, não só
o seu desmerecimento, senão a sua capacidade, deixai de instituir este
novo mistério, pois para a redenção do mundo basta o
da cruz; e já que os homens são tais, que vos deixam porque
vos quereis deixar com eles, não vos deixeis, para que vos não
deixem. Assim havia de ser, se o amor de Cristo para conosco no Sacramento
não fora tão fino e constante, como foi para com Teresa fora
do Sacramento.

Enquanto a verdade das visões de Santa Teresa esteve tão duvidosa,
o mesmo Cristo, que lhe aparecia, era ele na realidade, e não era eles
na opinião: enquanto ele — que verdadeiramente era — era
amado, era estimado, era adorado; enquanto não ele — que falsamente
não era — era aborrecido, era desprezado, era injuriado; e todo
este amor e aborrecimento, todas estas estimações e desprezos,
todas estas adorações e injúrias exercitava no mesmo
tempo a mesma Teresa, sendo uma só. Bem assim como o mundo, sendo composto
de muitos, uns fiéis, outros infiéis, uns católicos,
outros hereges, uns bons cristãos, outros maus, uns crêem a Cristo
no Sacramento, outros o negam, uns o adoram, outros o desprezam, uns o veneram
com obséquios, outros o ofendem com injúrias; mas assim como
Jacó, pelo amor que tinha a Raquel, sofria os desagrados de Lia, e
muito mais os agravos de Labão, e esta era a maior fineza daquele forte
e constante amor, assim a maior fineza de Cristo no Sacramento foi expor-se
às afrontas e injúrias dos que o ofendem, por não faltar
à comunicação dos que o amam, e estar sempre com eles.

VI

Mas que desquites podem ter estes agravos, estas ofensas, estas injúrias
na justa dor daquelas almas devotas e pias, que as sentem e choram mais que
próprias, por serem daquele Senhor seu, a quem mais que a si mesmas
amam? Este foi o bem inventado desempenho e o religiosíssimo fim da
solenidade presente, restituindo-se a esta igreja o roubo cometido em outra,
e vingando-se, com repetidos obséquios de todos os meses, o agravo
daquele dia, para que o mesmo Cristo sacramentado, por um sacrilégio,
receba muitos sacrifícios, por uma injúria, muitas adorações,
e por um ato escondido da infidelidade, muitas protestações
públicas da fé, e novas exaltações dela. Quando
a Madalena entendeu que lhe tinham roubado do sepulcro o sagrado corpo, dizia:
Tulerunt Dominum meum, et nescio ubi posuerunt eum (Jo. 20,13): Levaram-me
a meu Senhor, e não sei onde o puseram. Entre estas ânsias apareceu
o disfarçado hortelão, e disse-lhe: Si tu sustulisti eum, dicito
mihi, et ego eum tollam (Ibid. 15): Se tu acaso és o que o levaste,
dize-me onde o puseste, porque eu o levantarei desse lugar. — Bem está,
Madalena. Mas se vós vos queixais de não saber onde puseram
vosso Senhor, dizei-nos também onde o haveis de pôr, se o achardes?
Só disse que o havia de levantar, mas não disse onde o havia
de pôr, porque esse pensamento ficou reservado para as imitadoras do
seu amor. Levantaram o Senhor àquele soberano trono, e ali o têm
posto e exposto, para que a nossa fé publicamente o confesse e adore,
e os nossos corações, prostrados diante de seu divino acatamento,
sejam a detestação e desquite daquela abominada injúria.

De todas as que material e involuntariamente fazia a Cristo Santa Teresa,
era o desquite o seu coração, e assim o fazem todos os corações
desta santa congregação, tão devota, como bem entendida,
trazendo sobre o peito uma custódia, e ao pé dela um S e um
cravo, em sinal de perpétua escravidão daquele ofendido e adorado
Senhor. Parece que falava o mesmo Senhor, como em profecia, destes corações
e desta casa, quando disse a Santa Teresa o que agora direi. Mandavam seus
prelados à santa que fosse ser prioresa do Convento da Encarnação
de Ávila, e ela, como tão humilde, escusava-se. Neste mesmo
tempo andava requerendo Teresa com Cristo não sei que mercê para
um seu irmão, e como o Senhor tardasse com o despacho, era tanta a
confiança entre os dois, que não duvidou a santa de se queixar
amorosamente deste que parecia descuido, e comparando-o com o seu cuidado,
lhe disse assim: — Por certo, Senhor, que se vós tivéreis
um irmão pelo qual me pedíreis alguma coisa, a não dilataria
eu, se pudesse. — Não, Teresa — respondeu Cristo. —
Pois os corações das religiosas da Encarnação
são meus irmãos, e pedem-te que vás para eles, porque
hão mister a tua presença, e tu não queres. — Assim
argüiu e respondeu o Senhor a uma queixa com outra, e nela descobriu
que havia naquela casa uma irmandade de corações em que ele
também era irmão. E se aos coraçccedil;ões das religiosas
da Encarnação de Ávila chama Cristo irmãos seus,
com quanta razão podemos nós dar este mesmo nome às religiosas
da Encarnação de Lisboa, pela veneração do Santíssimo
Sacramento, e daquela sagrada custódia, de que são perpétuos
sacrários. Ressuscitado o Senhor, disse às Marias que levassem
as novas aos apóstolos, e as palavras foram estas: Ite, nuntiate fratribus
meis (Mt 28, 10): Ide, e dizei a meus irmãos. — Irmãos,
Senhor? E por que parentesco? Amigos dissestes vós que lhes haveis
de chamar, e não servos, porque lhes reveláveis vossos segredos;
mas irmãos, por quê? E se nunca lhes destes este título,
por que lho dais agora? Excelentemente S. João Crisóstomo: Vester
ego frater esse volui: Ego communicavi carnem propter vos, et sanguinem, et
per quae vobis conjunctus, ea rursus vobis exibui: Chama Cristo irmãos
aos apóstolos no dia da Ressurreição, porque a última
vez que tinha estado com eles foi na ceia, em que se lhes deu sacramentado,
e pela comunicação da sua carne e do seu sangue contraíram
o parentesco e a irmandade. Para haver verdadeira irmandade, há de
ser recíproca. E isto fez Cristo na Encarnação e no Sacramento,
diz Crisóstomo: pela Encarnação, tomando Cristo a nossa
carne e o nosso sangue, fez-se irmão nosso; e pelo Sacramento, dando-nos
a mesma carne e o mesmo sangue, fez-nos irmãos seus: Frater vester
esse volui: eis aí a irmandade; Communicavi propter vos carnem et san
guinem: eis aí a Encarnação; Per quae vobis conjunctus
ea rursus vobis exibui: eis aí o Sacramento.

Mas são tão religiosamente humildes estes corações
irmãos de Cristo, que, podendo-se gloriar do nome de irmãos,
se chamam e professam escravos, trocando os títulos de parentesco pelas
insígnias da escravidão, com o S e o cravo sobre o peito. Quando
Cristo se desposou visivelmente com Santa Teresa, deu-lhe por prendas de seu
amor um cravo da sua cruz. Pois, Senhor, um cravo, que é sinal e como
ferrete de escravo, dais vós a Teresa quando a levantais à dignidade
soberana de esposa vossa? Sim, porque ainda que pelos desposórios contraía
Teresa com Cristo, o mais alto e mais íntimo parentesco que pode ser,
sabia o Senhor dos primores da sua alma, como de todas as que fielmente o
veneram e amam, que a mesma dignidade a que as levanta de esposas, as cativa
e imprime nelas o caráter de escravas. Enfim, este é o espírito
da Encarnação. No dia da Encarnação do Verbo,
quando o anjo a anunciou à cheia de graça que havia de ser Mãe
de Deus, a Senhora respondeu: Ecce ancilla Domini (Lc. 1,38): Aqui está
a escrava do Senhor. — Davam-lhe a dignidade de Mãe, e tomou
o nome de escrava; e porque se teve por mais digna de ser escrava que Mãe,
esmaltou com o caráter da escravidão a coroa da dignidade.

Ora, Senhor, já que nos corações destas escravas achastes
uns espíritos tão conformes ao daquelas entranhas puríssimas,
de quem recebestes essa mesma carne e sangue em que vos dais por sustento
de nossas almas, ajuntando o mistério altíssimo da Encarnação
com o do diviníssimo Sacramento, para que nesse imenso amor se acenda
a nossa caridade, e no preço infinito desse penhor, se confirme a nossa
esperança, aumentai, com o mistério da fé, a fé
viva dos fervorosos católicos, ressuscitai a fé morta dos indevotos
e tíbios, e infundi o conhecimento da mesma fé na perfídia
e obstinação dos hereges, para que todos vos creiam, confessem
e adorem, como nós, por mercê vossa, cremos e confessamos, e
prostrados diante desse trono de vossa suprema Majestade, com profundíssima
reverência adoramos. E pois estes generosos corações são
tão animosos que, encerrados por vosso amor dentro destas paredes,
se põem em campo em defensa de vossa fé e desagravo de vossas
injúrias, e delas souberam tirar tão multiplicadas glórias
a vosso santíssimo nome na terra, considerem os mesmos corações
— pois eu o não posso declarar — quão condignos
serão os prêmios desta fineza, que vossa divina liberalidade
lhes tem aparelhado no céu.

(1) O reino dos céus é semelhante a um homem rei que fez as
bodas a seu filho, e mandou os seus servos a chamar os convidados (Mt. 22,2
s).

(2) A minha carne verdadeiramente é comida, e o meu sangue verdadeiramente
é bebida (Jo. 6, 56).

(3) É semelhante o reino dos céus a dez virgens que, tomando
as suas lâmpadas, saíram a receber o esposo e a esposa (Mt. 25,1).

(4) Alude toda a explicação do Evangelho a casos sucedidos
naqueles dias.

(5) Recusaram ir (Mt. 22, 3). Mataram-nos (Mt. 22,6).

(6) Irou-se, e pôs fogo à sua cidade (Mt. 22,7).

(7)Acabou com aqueles homicidas (Mt. 22,7).

(8) Congregaram todos os que acharam, maus e bons (Mt. 22,10).

(9) Saíram a receber o esposo e a esposa (Mt. 25,1).

(10) A minha carne verdadeiramente é comida, e o meu sangue verdadeiramente
é bebida (Jo. 6,56).

(11) Este sacramento é grande, mas eu digo em Cristo e na Igreja (Ef.
5,32).

(12) Feriste o meu coração (Cânt. 4,9).

(13) O que come a minha carne e bebe o meu sangue, esse fica em mim e eu
nele (Jo. 6,57).

(14) Pariu um filho varão (Apc. 12,5).

(15) E foi arrebatado para Deus e para o seu trono (Apc. 12,5).

(16) Como pode um homem nascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar
no ventre de sua mãe, e nascer outra vez (Jo. 3, 4)?

(17) Clamava com dores de parto, e sofria tormentos por parir (Apc. 12,2).

(18) Sobre a cabeça de Jesus, que estava recostado à mesa (Mt.
26,7).

(19) Não me toques (Jo. 20, 17).

(20) Na verdade vos digo que entre os nascidos de mulheres não se
levantou outro maior que João Batista; mas o que é menor no
reino dos céus é maior do que ele (Mt. 11,11).

(21) E fechou-se a porta (Mt. 25, 10).

(22) Senhor, senhor, abre-nos (Mt. 25,11)!

(23) Não sabia que o que se fazia por intervenção do
anjo era assim na realidade, mas julgava que ele via uma visão (At.
12,9).

(24) Agora é que eu conheço verdadeiramente que mandou o Senhor
o seu anjo, e me livrou (At. 12,11).

(25) Quando eles o viram caminhar sobre as águas, cuidaram que era
algum fantasma (Mc. 6,49).

(26) Não como vossos pais, que comeram o maná e morreram (Jo.
6,59).

Veja também

John Locke

PUBLICIDADE John Locke, nascido em Wrington (Inglaterra), estudou em Oxford. Em 1688, fora nomeado membro …

Gugu Liberato

PUBLICIDADE Antonio Augusto Liberato de Moraes, muito conhecido por” Gugu”, foi um importante apresentador de …

Friedrich Nietzsche

Friedrich Nietzsche

PUBLICIDADE Quem foi Friedrich Nietzsche? O filósofo alemão influente Friedrich Nietzsche (1844-1900) é conhecido por seus …

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.