Contos – Artur Azevedo

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Barca

Há maridos e mulheres, dizem as más línguas, que passam o verão em Petrópolis
para fazer das suas à vontade. Não sei se é isso exato quanto às mulheres;
quanto aos maridos, tenho certeza de que o é.
D. Senhorinha, esposa exemplar, exemplaríssima, era casada com um negociante
rico, o João Saraiva, que todos os anos, em fins de novembro, dava com ela
em Petrópolis até abril, sob pretexto de que a cidade do Rio de Janeiro se
tornava inabitável durante a canícula.
O que ele queria era estar como o boi solto que, segundo o rifão, se lambe
todo. Havia na Rua do Riachuelo uma francesa que lhe dava volta ao miolo e
constantemente o obrigava a perder a barca.
Nessas ocasiões, D. Senhorinha recebia sempre um telegrama, e acreditava,
coitada, porque tinha a mais cega confiança no marido, e sabia que ele era
muito ocupado. Por fim, João Saraiva tantas e tão repetidas vezes perdia a
barca, por este ou aquele motivo, que marido e mulher resolveram adotar uma
palavra convencional para cada vez que isso acontecesse. Adotaram a palavra
“barca”.

* * *

Uma vez, D. Senhorinha, ali por volta das 2 horas da tarde, bocejava na
sua solidão petropolitana, quando lhe levaram um telegrama.
Ela abriu-o um pouco sobressaltada, pois o marido não costumava telegrafar
àquela hora, e qual não foi a sua surpresa vendo que o telegrama dizia simplesmente:
“Barca”.
– Não pode ser! pensou D. Senhorinha. A barca sai da Prainha às 4 horas e
são apenas 2! Com duas horas de antecedência meu marido não podia adivinhar
que perderia a barca! Aqui há coisa.

* * *

Naquele dia o marido não apareceu em Petrópolis, e no dia imediato, quando
a senhora lhe pediu uma explicação, ele não se atreveu a dizer-lhe que o progresso
agora era tal que os telegramas chegavam ao seu destino antes de mandados,
ou que houvesse duas horas de diferença entre o meridiano do Rio de Janeiro
e o de Petrópolis.
João Saraiva deu a D. Senhorinha uma razão esfarrapada, que ela fingiu aceitar,
e na manhã seguinte entrou furioso no escritório, dirigindo-se imediatamente
a um dos empregados.
– Ó seu Barros, a que horas você passou anteontem aquele telegrama?
– Logo que o senhor m’o deu.
– Fê-la bonita! Pode limpar a mão à parede! Pois eu não lhe disse que só o
passasse depois das 4 horas?
– Disse, disse; mas como tive que ir lá para os lados do Telégrafo, julguei
que não houvesse inconveniente.
– Ora valha-o Deus, seu Barros! Você deu cabo da minha tranqüilidade doméstica.

* * *

D. Senhorinha desceu imediatamente de Petrópolis e nunca mais quis saber
de vilegiaturas, receando que o marido continuasse a perder a barca.

345

– És o rei dos caiporas, e, além disso, não tens a menor
parcela de bom senso! Não fosse eu tua mulher, e não sei o que
seria de ti, porque decididamente não te sabes governar!

– Exageras, nhanhã!

– Não! não sabes! Tens deixado estupidamente um rol de vezes
passar a fortuna perto de ti, sem a agarrar pelos cabelos! Dizem que ela é
cega: cego és tu!

– Já vês que a culpa não é minha…

– Quando houve o Encilhamento, só tu não te arranjaste!

– Mas também não me desarranjei…

– Para seres promovido a 1o oficial da tua Repartição, foi
preciso que eu saísse dos meus cuidados e procurasse o ministro.

– Fizeste mal.

– Se o não fizesse, não passarias da cepa torta!

– Não quero obscurecer o mérito da tua diligência, mas
olha que estás enganada, nhanhã.

– Deveras?

– Redondamente enganada. A nomeação era minha. Quando fui agradecê-la
ao ministro, este disse-me: "Não era preciso que sua senhora se
incomodasse: o decreto estava lavrado."

– Pois sim! isso disse ele… E quando o decreto estivesse, efetivamente,
lavrado? Á última hora seriam capazes de substitui-lo por outro!
Pois se és tão caipora!

– Perdoa, nhanhã, mas não sou tão caipora assim… Pelo
menos tive uma grande felicidade na vida!

– Qual foi, não me dirás?

– A de ter casado contigo…

Nhanhã mordeu os lábios, porque não achou o que responder,
e naquele dia as suas impertinências habituais não foram mais
longe.

* * *

O pobre Reginaldo – assim se chamava o marido – habituara-se de muito àquelas
recriminações insensatas, e era um quase fenômeno de resignação
e paciência.

Ela bem sabia que a coisa seria outra, se realmente a fortuna se deixasse
agarrar pelos cabelos: o que nhanhã não lhe perdoava era a sua
pobreza, – não era o seu caiporismo. Ela não podia ter em casa
do marido o mesmo luxo que tinha em casa do pai; não podia rivalizar
com alguma amiga em ostentação: era isto, só isto que
a afligia, ou antes, que os afligia a ambos, marido e mulher.

* * *

Reginaldo tinha aversão ao jogo; nem mesmo a loteria o tentava.

Entretanto, uma tarde meteu-se num bonde do Catete, para recolher-se à
casa, e no Largo do Machado, onde se apeou, pois morava naquelas imediações,
foi perseguido por um garoto que à viva força lhe queria impingir
um bilhete de loteria, – uma grande loteria de cem contos de réis,
cuja extração estava anunciada para o dia seguinte.

Reginaldo resistiu, caminhando apressado sem dar resposta ao garoto, que
o acompanhava insistindo; mas de repente lhe acudiu a idéia de que
aquele maltrapilho poderia ser a fortuna disfarçada. Era preciso agarrá-la
pelos cabelos! Comprou o bilhete, e foi para casa, onde o esperavam os tristes
feijões quotidianos.

* * *

Ele bem sabia que, se dissesse a nhanhã que havia feito essa despesa
extra-orçamentária, não teria a sua aprovação;
mas que querem, – o pobre rapaz era um desses maridos submissos, que não
ficam em paz com a consciência quando não contam por miúdo
às caras-metades tudo quanto lhes sucede.

Ao saber da compra do bilhete, nhanhã pôs as mãos na
cabeça:

– Quando eu digo que tu não tens a menor parcela de bom senso…!
Aí está! Dez mil-réis deitados fora, e tanta coisa falta
nesta casa!…

E seguiu-se, durante meia hora, a relação dos objetos que poderiam
ser comprados com aqueles dez mil-réis perdidos.

Depois disso, nhanhã pediu para ver o bilhete.

Reginaldo, sem proferir uma palavra, tirou-o do bolso e entregou-lho.

– Número 345! exclamou ela. Um número tão baixo numa
loteria de cinqüenta mil números! Isto é o que se chama
vontade de gastar dinheiro à toa! Algum dia viste, nessas grandes loterias,
ser premiado um número de três algarismos?

Reginaldo confessou que nem sequer olhara para o número. Como o garoto
se lhe afigurou a fortuna disfarçada, ele aceitou o bilhete que lhe
fora oferecido, entendendo que não devia argumentar com a fortuna.

– 345! Pois isto é lá número que se compre!

– Agora não há remédio.

– Como não há remédio? Põe o chapéu e
volta imediatamente ao Largo do Machado: o garoto ainda lá deve estar.
Dá-lhe o bilhete e ele que te dê o dinheiro.

– Perdoa, nhanhã, mas isso não faço eu: comprei! Nem
o garoto desfazia a compra!

– Ao menos vai trocar o bilhete por outro, que tenha, pelo menos, quatro
algarismos! Se tiver cinco, melhor!

– Faço-te a vontade: mas olha que sempre ouvi dizer que bilhetes de
loteria não se trocam…

– Faze o que eu disse e não resmungues! Tu és o rei dos caiporas
e eu tenho muita sorte!

Reginaldo não disse mais nada: pôs o chapéu, saiu de
casa, foi ao Largo do Machado, e voltou com outro bilhete.

Desta vez o número tinha cinco algarismos: 38788; nhanhã devia
ficar satisfeita.

Não ficou:

– Devias escolher um número mais variado: o 8 fica aqui três
vezes.. – Mas, enfim, 38788 sempre inspira mais confiança que 345…

* * *

Pois, senhores, no dia seguinte o n.0 38788 saiu branco, e o n.0 345 foi
premiado com a sorte grande.

* * *

Imagine-se o desespero de nhanhã:

– Então, eu não digo que és o rei dos caiporas?

– Perdoa, nhanhã, mas desta vez não fui o rei: tu é
que foste a rainha…

– Cala-te! Se não fosses um songamonga, não me terias feito
a vontade! Ter-me-ias roncado grosso!

– Ora essa!

– Um marido não se deve deixar dominar assim pela mulher!

– Olha que eu pego na palavra…

– Trocar um bilhete de loteria! Que absurdo!…

– Absurdo aconselhado por ti…

– Mas tu já não estás em idade de receber conselhos!

– Bom; de hoje em diante baterei com o pé e roncarei grosso todas
as vezes que me contrariares! Esta casa vai cheirar a homem!…

A boas horas vêm esses protestos de energia!

E exclamando com os punhos cerrados e os olhos voltados para o teto: "Cem
contos de réis"!, nhanhã deixou-se cair sentada numa cadeira,
e desatou a chorar.

* * *

Mal que a viu naquele estado aflitivo, Reginaldo correu para junto dela,
e disse-lhe com muito carinho:

– Sossega. Eu fiz uma coisa… mas vê lá! não ralhes
comigo…

– Que foi?

– Não troquei o bilhete!

Não trocaste o bilhete? gritou nhanhã erguendo-se de um salto,
com os olhos muito abertos.

– Não! pois eu fazia lá essa asneira! Seria deixar fugir a
fortuna, depois de a ter agarrado pelos cabelos!

– Compraste então o outro bilhete?

– Comprei…

– Nesse caso… estamos ricos?

– Temos cem contos.

– Ora, graças que um dia fizeste alguma coisa com jeito!

– Qual! eu continuo a ser o rei dos caiporas.

– Não digas isso!

– Digo, porque se o não fosse, o número 38788 teria apanhado
a sorte imediata…

(Correio da Manhã, 16 de outubro de 1904)

A "NÃO – ME – TOQUES"

I

Passavam-se os anos, e Antonieta ia ficando para tia, – não que lhe
faltassem candidatos, mas – infeliz moça! – naquela capital de província
não havia um homem, um só, que ela considerasse digno de ser
seu marido.

Ao Comendador Costa começavam a inquietar seriamente as exigências
da filha, que repelira, já, com desdenhosos muxoxos, uma boa dúzia
de pretendentes cobiçados pelas principais donzelas da cidade. Nenhuma
destas se casou com rapaz que não fosse primeiramente enjeitado pela
altiva Antonieta.

– Que diabo! dizia o comendador à sua mulher, D. Guilhermina, – estou
vendo que será preciso encomendar-lhe um príncipe!

– Ou então, acrescentava D. Guilhermina, esperar que algum estrangeiro
ilustre, de passagem nesta cidade..

– Está você bem aviada! Em quarenta anos que aqui estou, só
dois estrangeiros ilustres cá têm vindo: o Agassiz e o Herman.

Entretanto, eram os pais os culpados daquele orgulho indomável. Suficientemente
ricos tinham dado à filha uma educação de fidalga, habituando-a
desde pequenina a ver imediatamente satisfeitos os seus mais custosos e extravagantes
caprichos.

Bonita, rica, elegante, vestindo-se pelo último figurino, falando
correntemente o francês e o inglês, tocando muito bem o piano,
cantando que nem uma prima-dona, tinha Antonieta razões sobejas para
se julgar um avis rara na sociedade em que vivia, e não encontrar em
nenhuma classe homem que merecesse a honra insigne de acompanhá-la
ao altar.

Uma grande viagem à Europa, empreendida pelo comendador em companhia
da esposa e da filha, completara a obra. Ter estado em Paris constituía,
naquela boa terra, um título de superioridade.

Ao cabo de algum tempo, ninguém mais se atrevia a erguer os olhos
para a filha do Comendador Costa, contra a qual se estabeleceu pouco a pouco
certa corrente de animadversão.

Começaram todos a notar-lhe defeitos parecidos com os das uvas de
La Fontaine, e, como a qualquer indivíduo, macho ou fêmea, que
estivesse em tal ou qual evidência, era difícil escapar ali a
uma alcunha, em breve Antonieta se tornou conhecida pela "Não-me-toques".

II

Teria sido realmente amada? Não, mas apenas desejada, – tanto assim
que todos os seus namorados se esqueceram dela…

Todos, menos o mais discreto, o mais humilde, o único talvez, que
jamais se atrevera a revelar os seus sentimentos.

Chamava-se José Fernandes, e era o primeiro empregado da casa do Comendador
Costa, onde entrara aos dez anos de idade, no mesmo dia em que chegara de
Portugal.

Por esse tempo veio ao mundo Antonieta. Ele vira-a nascer, crescer, instruir-se,
fazer-se altiva e bela. Quantas vezes a trouxera ao colo, quantas vezes a
acalentara nos braços ou a embalara no berço! E, alguns anos
depois, era ainda ele quem todas as manhãs a levava e todas as tardes
ia buscá-la no colégio.

Quando Antonieta chegou aos quinze anos e ele aos vinte e cinco, "Seu
José" (era assim que lhe chamavam) notou que a sua afeição
por aquela menina se transformava, tomando um caráter estranho e indefinível;
mas calou-se, e começou de então por diante a viver do seu sonho
e do seu tormento Mais tarde, todas as vezes que aparecia um novo pretendente
à mão da moça, ele assustava-se, tremia, tinha acessos
de ciúmes, que lhe causavam febre, mas o pretendente era, como todos
os outros, repelido, e ele exultava na solidão e no silêncio
do seu platonismo.

Materialmente, Seu José sacrificara-se pelo seu amor. Era ele, como
se costuma dizer (não sei com que propriedade) o "tombo"
da casa comercial do Comendador Costa; entretanto, depois de tantos anos de
dedicação e amizade, a sua situação era ainda
a de um simples empregado; o patrão, ingrato e egoísta, pagava-lhe
em consideração e elogios o que lhe devia em fortuna. Mais de
uma vez apareceram a Seu José ocasiões de trocar aquele emprego
por uma situação mais vantajosa; ele, porém, não
tinha ânimo de deixar a casa onde ao seu lado Antonieta nascera e crescera.

III

Um dia, tudo mudou de repente.

Sem dar ouvidos a Seu José, que lhe aconselhava o contrário,
o Comendador Costa empenhou a sua casa numa grande especulação,
cujos efeitos foram desastrosos, e, para não fechar a porta, viu-se
obrigado a fazer uma concordata com os credores. Foi este o primeiro golpe
atirado pelo destino contra a altivez da "Não-me-toques".

A casa ia de novo se levantando, e já estava quase livre dos seus
compromissos de honra, quando o Comendador Costa, adoecendo gravemente, faleceu,
deixando a família numa situação embaraçosa.

Um verdadeiro deus ex machina apareceu então na figura de Seu José
que, reunindo as suadas economias que ajuntara durante trinta anos, e associando-se
a D. Guilhermina, fundou a firma Viúva Costa & Fernandes, e salvou
de uma ruína iminente a casa do seu finado patrão.

IV

O estabelecimento prosperava a olhos vistos e era apontado como uma prova
eloqüente de quanto podem a inteligência, a boa fé e a força
de vontade, quando o falecimento da viúva D. Guilhermina veio colocar
a filha numa situação difícil…

Sozinha, sem pai nem mãe, nem amigos, aos trinta e dois anos de idade,
sempre bela e arrogante em que pesasse a todos os seus dissabores, aonde iria
a "Não-me-toques"?

Antonieta foi a primeira a pensar que o seu casamento com José Fernandes
era um ato que as circunstâncias impunham…

Antes da sua orfandade, jamais semelhante coisa lhe passaria pela cabeça.
Não que Seu José lhe repugnasse: bem sabia quanto esse homem
era digno e honrado; estimava-o, porém, como a um tio, ou a um irmão
mais velho, – e ela, que recusara a mão de tantos doutores, não
podia afazer-se a idéia de se casar com ele.

Entretanto, esse casamento era necessário, era fatal. Demais, a "Não-me-toques"
lembrava-se de que o pai, irritado contra os seus contínuos e impertinentes
muxoxos, um dia lhe dissera:

– Nã0 sei o que supões que tu és, ou o que nós
somos! Culpa tive eu em dar-te a educação que te dei! Sabes
qual é o marido que te convinha? Seu José! Seria um continuador
da minha casa e da minha raça!

Tratava-se por conseguinte, de homologar uma sentença paterna. A continuação
da casa já estava confiada a Seu José: era preciso confiar-lhe
também a continuação da raça.

Assim, pois, uma noite ela chamou-o e, com muita gravidade, pesando as palavras,
mas friamente, como se se tratasse de uma simples operação comercial,
lhe deu a entender que desejava ser sua mulher, e ele, que secretamente alimentava
a esperança desse desenlace, confessou-lhe trêmulo, e com os
olhos inundados de pranto, que esse tinha sido o sonho de toda a sua vida.

V

Casaram-se.

Nunca um marido amou tão apaixonadamente a sua esposa. Seu José
levou à Antonieta um coração virgem de outra mulher que
não fosse ela; fora das suas obrigações materiais, amá-la,
adorá-la, idolatrá-la, tinha sempre sido e continuava a ser
a única preocupação do seu espírito…

Entretanto, não era feliz; sentia que ela o não amava, que
se entregara a ele apenas para satisfazer a uma conveniência doméstica:
era apática; sem querer, fazia-lhe sentir a cada instante a superioridade
terrível das suas prendas. Ninguém melhor que ele, tendo sido,
aliás, até então, o único homem que lhe tocara,
se convenceu de quanto era bem aplicada aquela ridícula alcunha de
"Não-me-toques".

O pobre diabo tinha agora saudades do tempo em que a amava em silêncio,
sem que ninguém o soubesse, sem que ela própria o suspeitasse.

VI

Antonieta aborrecia-se mortalmente naquele casarão onde nascera,
e onde ninguém a visitava, porque o seu caráter a incompatibilizara
com toda a gente.

O marido, avisado e solícito, bem o percebeu. Admitiu um bom sócio
na sua casa comercial, que prosperava sempre, e levou Antonieta à Europa,
atordoando-a com o bulício das primeiras capitais do Velho Mundo.

De volta, ao cabo de um ano, construiu uma bela casa no bairro mais elegante
da cidade, encheu-a de mobílias e adornos trazidos de Paris, e inaugurou-a
com um baile para o qual convidou as famílias mais distintas.

Começou então uma nova existência para Antonieta, que,
não obstante aproximar-se da medonha casa dos quarenta, era sempre
formosa, com o seu porte de rainha e o seu colo opulento, de uma brandura
de cisne.

As suas salas, profundamente iluminadas, abriam-se quase todas as noites
para grandes e pequenas recepções: eram festas sobre festas.

Agora já lhe não chamavam a "Não-me-toques";
ela tornara-se acessível, amável, insinuante, com um sorriso
sempre novo e espontâneo para cada visita.

Fizeram-lhe a corte, e ela, outrora impassível diante dos galanteios,
escutava-os agora com prazer.

Um galã, mais atrevido que os outros, aproveitou o momento psicológico
e conseguiu uma entrevista – Esse primeiro amante foi prontamente substituído.
Seguiu-se outro, mais outro, seguiram-se muitos…

VII

E quando Seu José, desesperado, fez saltar os miolos com uma bala,
deixou esta frase escrita num pedaço de papel:

"Enquanto foi solteira, achava minha mulher que nenhum homem era digno
de ser seu marido; depois de casada (por conveniência) achou que todos
eles eram dignos de ser seus amantes. Mato-me."

(Correio da Manhã, 12 de outubro de 1902)

A "RECLAME"

Era um domingo. O comendador Viana acabou de almoçar, sentou numa
cadeira de balanço, cruzou as mãos sobre o ventre, atirou olhar
pela janela escancarada que enchia de ar e luz a sala de jantar, e no jardim
vizinho, um homem a escrever, sentado à sombra de caramanchão.

– Ó menina, dá cá o binóculo.

Laura, a esposa do comendador Viana, trouxe-lhe o binóculo, ele assestou
contra o homem do caramanchão.

– Não me enganava: é ele… É o tal Passos Nogueira!…

– Que Passos Nogueira? – perguntou Laura.

O comendador não respondeu; voltou-se para a criada, que leva a mesa,
e interpelou-a:

– Aquele sujeito mora ali há muito tempo? Você deve saber…

– Que sujeito?

– Aquele que está escrevendo acolá, no jardim da casa de pensão
não vê?

– Ah! O poeta?

– Quem lhe disse a você que ele é poeta?

– É como o ouço tratar na vizinhança. Já ali
morava quando viemos para esta casa.

– Entretanto – observou Laura – estamos aqui há oito meses e é
a primeira vez que o vejo.

– Deveras? – perguntou entre dentes o comendador, com um olhar de desconfiança.

– Ora esta! – murmurou Laura, muito admirada da inflexão e do olhar
do marido.

– Parece impossível que minha ama não tenha reparado – acudiu
a criada – porque o poeta vai todas as manhãs e todas as tardes escrever
naquele lugar.

– Todas as manhãs? – indagou o dono da casa, levantando-se.

– E todas as tardes – repetiu ingenuamente a criada.

E foi para a cozinha.

– Viana – obtemperou Laura, aproveitando a ausência da criada – você
faz umas coisas esquisitas! Esta mulher vai ficar convencida de que meu marido
tem ciúmes de um homem que eu nem sequer conheço!

– Aquilo é um bandido! – regougou o comendador.

– Pois deixe-o ser! Que temos nós com isso? Ele está na sua
casa e nós na nossa.

– Se eu soubesse que aquele patife morava ali, não tínhamos
vindo para cá!

– Mas que importa que ele more ali?

– Importa muito! Aquilo é sujeitinho capaz de manchar a reputação
de uma senhora com um simples cumprimento. Ele algum dia já te cumprimentou?

– Pois eu já não lhe disse que nunca reparei nesse homem?

– Ali onde o vês tem causado a desgraça de umas poucas de senhoras!
Por causa dele a mulher de um negociante deixou o marido, a filha de um despachante
da Alfândega saiu da casa do pai, e a viúva de um coronel tentou
suicidar-se!

Com efeito! – exclamou Laura, agarrando rapidamente no binóculo. –
Deve ser um homem excepcional!…

– Não! é melhor que o não vejas! – ponderou o marido,
tomando-lhe o binóculo das mãos. – Que interesse tens tu?…

– Apenas o interesse que você mesmo me despertou, contando-me as conquistas
desse Napoleão do amor.

– Mulheres doentias e malucas… Pobrezinhas que se deixaram levar por cantigas,
ora aí tens!… Aquele peralta faz versos, e os jornais levam a dizer
todos os dias que ele tem muito talento… e que é muito inspirado…

– Lembra-me agora que já tenho lido esse nome de Passos Nogueira.

– Oh, menina, vê lá se também tu…

– Descanse: já não estou em idade de me deixar levar por poesias.

– Pois sim, mas peço-te que não te debruces nessa janela quando
o tal poetaço estiver no seu caramanchão.

– Por quê? Receia que eu caia? Ora deixe-se de ciúmes!

– Não são ciúmes, são zelos. Não receio
pelo que possas fazer… mas tenho medo que a vizinhança murmure.

II

Laura, que até então ignorava a existência do poeta
Passos Nogueira, começou a interessar-se muito por ele, graças
à réclame feita pelo comendador. Sentia-se atraída pela
figura daquele horrendo sedutor de solteiras, casadas e viúvas, e duas
vezes ao dia, reclinada à janela, olhava longamente para o poeta.

Este acabou por notar a insistência com que era contemplado pela vizinha,
e prontamente correspondeu aos seus olhares lânguidos e prometedores.

Estabeleceu-se logo entre eles um desses namoros saborosos e terríveis,
ridículos e absorventes, que monopolizam duas existências.

Para justificar a precipitação dos fatos, digamos que Laura,
mulher de vinte e seis anos, romântica e nervosa, casara-se, muito nova
ainda, com o comendador Viana, homem quinze anos mais velho que ela, curto
e positivo, que não correspondia absolutamente ao seu ideal de moça.

Digamos ainda que o poeta Passos Nogueira, rapaz de talento vantajosamente
apreciado, atordoou-se quando se viu provocado pelos bonitos olhos de uma
bela mulher casada. Apesar da reputação que gozava e da qual
se fizera eco o próprio comendador, Passos Nogueira jamais inscrevera
ao seu canhanho de conquistas fáceis aventura tão interessante
e tão considerável como essa que agora lhe desassossegava o
espírito e lhe espantava as rimas.

Digamos ainda que o comendador continuava todos os dias a fazer réclame
ao namorado, referindo-se à sua pessoa em termos desabridos, insultando-o
de modo que ele não ouvisse e, finalmente, exprobrando a Laura, por
mera presunção, que ela o animasse e lhe desse corda.

Não tardou que o poeta escrevesse à vizinha um bilhete, lançado
por cima do muro que separava as duas casas. Perguntava pelo seu nome e pedia-lhe
uma entrevista. Ela respondeu:

"Não! Não é possível! Não me persiga!
Esqueça-se de mim! Bem vê que não sou livre! Um encontro
poderia causar a nossa desgraça!"

Mas, não obstante desengano tão decisivo e formal, no dia seguinte
os olhos da moça encontraram-se com os do poeta. Ela sentia a necessidade,
o dever de fugir daquele homem, mas não tinha forças para fazê-lo.
E o namoro continuou.

Dois dias depois, novo bilhete. Ela abriu-o sôfrega e palpitante –
e leu estes versos:

"Eu não sou livre", escreveste;

Porém, se livre não eras,

Por que com tantas quimeras

Encheste um cérebro nu?

Pedes que não te persiga…

Mas por teus olhos ferido,

Reflete que o perseguido

Sou eu meu anjo, e não tu!

Quando da tua janela

Atiras aos meus desejos

Olhares que valem beijos,

Porque tens beijos no olhar;

Quando esses ternos olhares

Com meus olhares se cruzam,

Teus lindos olhos abusam

Do seu condão de encantar!

Não te compreendo, vizinha;

Tu mesma não te compreendes:

Fazes-te amar, e pretendes

Que eu fuja e te deixe em paz!

Mas não vês que é negativo

Este sistema que empregas?

Tudo, escrevendo, me negas,

– E, olhando, tudo me dás!

Vizinha, bela vizinha,

Vizinha por quem padeço,

Pois tais palavras mereço

Que me fizeram chorar?

O prometido é devido…

Para que o peito me aquietes,

Ou dá-me quanto prometes,

Ou não prometas sem dar’

III

Para encurtar razões: Passos Nogueira e Laura foram por muito tempo,
e não sei se continuam a ser, os amantes mais apaixonados que ainda
houve.

Ela nunca perdoou ao marido o mau passo que deu. Seria ainda hoje o modelo
das esposas, se o comendador não se lembrasse de fazer réclame
ao poeta.

Este, por expressa recomendação da amante, nunca mais apareceu
no caramanchão fatídico.

Isto fez com que o marido tornasse às boas.

Uma tarde perguntou:

– Ó menina, então o poeta já ali não mora?

– Não sei – respondeu Laura com uma deliciosa indiferença.
Se se mudou, melhor! Um libertino daqueles!

– Deixa-o lá, coitado! Muitas vezes são mais as vozes que as
nozes.

– Que diabo! Foi você mesmo quem falou da filha do despachante, da
mulher do negociante e da viúva do coronel!…

– Disseram-me. Este Rio de Janeiro, menina, é a terra da maledicência.
Deus me livre de que alguém se lembre de espalhar por aí que
eu roubei o sino de São Francisco!

A ÁGUA DE JANOS

I

O Tenente de Cavalaria Remígio Soares teve a infelicidade de ver uma
noite dona Andréa num camarote do Teatro Lucinda, ao lado de seu legítimo
esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus.

A "mulher do próximo", notando que a "desejavam",
deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes e por aqueles
belos olhos negros e rasgados.

Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão que se representava,
passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a platéia.

Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado o
espetáculo, o tenente Soares acompanhou a certa distância o casal
até o largo de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele –
um bonde do Bispo, – sentando-se, como por acaso, ao lado de dona Andréa.

Dizer que no bonde o pé do tenente e o pezinho da moça não
continuaram a obra encetada no Lucinda – seria faltar à verdade que
devo aos meus leitores. Acrescentarei até que, ao sair do bonde, na
pitoresca rua Malvino Reis, dona Andréa, com rápido e furtivo
aperto de mão, fez ao seu namorado as mais concludentes e escandalosas
promessas.

Ele ficou sabendo onde ela morava…

II

O Tenente Remígio Soares foi para casa, em São Cristóvão,
e passou o resto da noite agitadíssimo, – pudera! Às dez horas
da manhã atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo!

Mas – que contrariedade! – as janelas de dona Andréa estavam fechadas…

O cavaleiro foi até a rua de Santa Alexandrina e voltou – patati,
patatá, patati, patatá! – e as janelas não se tinham
aberto…

O passeio foi renovado à tarde – o tenente passou, tornou a passar,
– continuavam fechadas as janelas…

Malditas janelas!

Durante quatro dias o namorado foi e veio a cavalo, a pé, de bonde,
fardado, à paisana: nada! Aquilo não era uma casa: era um convento!

Mas ao quinto dia – oh, ventura! – ele viu sair do convento um molecote que
se dirigia para a venda próxima. Não refletiu: chamou-o de parte,
untou-lhe as unhas e interpelou-o.

Soube nessa ocasião que ela se chamava Andréa. Soube mais que
o marido era empregado público e muito ciumento! Proibia expressamente
a senhora sair sozinha e até chegar à janela quando ele estivesse
na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois Cérberos: uma tia
do marido e um jardineiro muito dedicado ao patrão.

Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar a dona
Andréa uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta – digamo-lo
para vergonha daquela formosa desmiolada – a resposta não se fez esperar
por muito tempo:

"Pede-me uma entrevista, e não imagina como desejo satisfazer
a esse pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?… onde?…
quando?… Saiba que sou guardada à vista por uma senhora de idade,
tia dele, e por um jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode ser que
um dia as circunstâncias se combinem de modo que nos possamos encontrar
a sós… Como há um Deus para os que se amam, esperemos que
chegue esse dia: até lá, tenhamos um pouco de paciência.
Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo
de repente. O moleque é de confiança."

Na esperança de que o grande dia chegasse, o Tenente Remígio
Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de dona Andréa: procurou
e achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta
da cozinha do objeto amado. Dessa porta dona Andréa fazia-lhe um sinal
convencionado todas as vezes que desejava enviar-lhe uma cartinha.

III

Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da
festa é esperar por ela.

Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses
suspirava noite e dia pela mulher mais bonita de todo aquele bairro do Rio
Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela!

O namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente,
é verdade, mas essa correspondência, violenta e fogosa, contribuía
para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento
daquelas duas almas.

IV

Os leitores – e principalmente as leitoras – me desculparão de não
pôr no final deste conto um grão de poesia; tenho de conclui-lo
um pouco à Armand Silvestre. Em todo caso, verão que a moral
não é sacrificada.

O meu herói andava já obsedado, menos pelo que acreditava ser
o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero.

Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo
muito abatido, sem animo de se erguer da cama.

– Que tens tu?

– Ainda mo perguntas…

– Tem paciência: Jacob esperou quatorze anos.

– Esta coisa tem-me posto doente. Bem sabes que eu gozava uma saúde
de ferro… Pois bem, neste momento a cabeça pesa-me uma arroba…
tenho tonteiras!…

– Isso é calor: a tua Andréa não tem absolutamente nada
que ver com esses fenômenos patológicos. Queres um conselho?
Manda buscar ali à botica uma garrafinha de água de Janos. É
o melhor remédio que conheço para aliviar a cabeça.

O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu
esvaziar um bom copo da benemérita água.

Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio
Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto airoso de dona Andréa,
anunciando-lhe uma carta.

Pouco depois entrava o molecote, entregava-lhe um bilhete escrito às
pressas.

"A velha amanheceu hoje com febre e não sai do quarto. O jardineiro
foi à cidade chamar um médico de confiança dela. Vem
depressa, mal recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca o
será talvez."

O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos começava
a produzir os seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce chamado
de dona Andréa!

Era impossível também confessar-lhe a causa real do não
comparecimento: nenhum namorado faria confissões dessa ordem…

O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não fazer
outra coisa:

"Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a não
ir… Quando algum dia haja certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual
foi esse motivo, e tenho certeza de que me perdoarás."

Dona Andréa não perdoou. O Tenente Remígio Soares nunca
mais a viu.

V

Quando, no dia seguinte, ele contou ao Barroso a desgraça de que este
fora o causador involuntário, o confidente sorriu, e obtemperou:

– Vê tu que grande remédio é a água de Janos:
um só copo bastou para aliviar três cabeças!

A AMA – SECA

O Romualdo, marido de D. Eufêmia, era um rapaz sério, lá
isso era, e tão incapaz de cometer a mais leve infidelidade conjugal
como de roubar o sino de São Francisco de Paula; mas – vejam como o
diabo as arma! Um dia D. Eufêmia foi chamada, a toda a pressa, a Juiz
de Fora, para ver o pai que estava gravemente enfermo, e como o Romualdo não
podia naquela ocasião deixar a casa comercial de que era guarda-livros
(estavam a dar balanço), resignou-se a ver partir a senhora acompanhada
pelos três meninos, o Zeca, o Cazuza, o Bibi, e a ama-seca deste último,
que era ainda de colo. Foi a primeira vez que o Romualdo se separou da família.
Custou-lhe muito, coitado, e mais lhe custou quando, ao cabo de uma semana,
D. Eufêmia lhe escreveu, dizendo que o velho estava livre de perigo,
mas a convalescença seria longa, e o seu dever de filha era ficar junto
dele um mês pelo menos. O Romualdo resignou-se. Que remédio!…
Durante os primeiros tempos saía do escritório e metia-se em
casa, mas no fim de alguns dias entendeu que devia dar alguns passeios pelos
arrabaldes, hoje este, amanhã aquele. Era um meio, como outro qualquer,
de iludir a saudade. Uma noite coube a vez ao Andaraí Grande. O Romualdo
tomou o bonde do Leopoldo, e teve a fortuna ou a desgraça de se sentar
ao lado da mulatinha mais dengosa e bonita que ainda tentou um marido, cuja
mulher estivesse em Juiz de Fora. Nessa noite fatal a virtude do Romualdo
deu em pantanas: tencionando ele ir até o fim da linha, como fazia
todas as noites, apeou-se na Rua Mariz e Barros, ali pelas alturas da Travessa
de São Salvador. A mulata havia se apeado algumas braças antes.

E ele viu, à luz de um lampião, o vulto dela saltitante e
esquivo, e apressou o passo para apanhá-la, o que conseguiu facilmente,
porque, pelos modos, ela já contava com isso. – Boa noite!

– Boa noite.

– Como se chama?

– Antonieta.

– Pode dar-me uma palavra?

– Por que não falou no bonde?

– Era impossível… estava tanta gente… e estes elétricos
são tão iluminados.

– Mas o sinhô bolinou que não foi graça! vamos, diga:
que deseja?

– Desejo saber onde mora.

– Não tenho casa minha; tou empregada numa famia ali mais adiente,
por siná que não stou satisfeita, e ando procurando outra arrumação.

– Onde poderemos falar em particular?

– Não sei.

– Você sai amanhã à noite?

– Amanhã não, porque saí hoje, e não quero abusá.

– Então, depois de amanhã?

– Pois sim.

– Onde a espero?

– Onde o sinhô quisé.

– Na Praça Tiradentes, no ponto dos bondes. As oito horas.

– Na porta do armazém do Derby?

– Isso!

– Tá dito! Inté depois d’amanhã às oito hora.

– Não falte!

– Não farto não!

No dia seguinte, o Romualdo contou a sua aventura a um companheiro de escritório
que era useiro e vezeiro nessas cavalarias… baixas, e o camarada levou a
condescendência ao ponto de confiar-lhe a chave de um ninho que tinha
preparado adrede para os contrabandos do amor.

Antonieta foi pontual; à hora marcada lá estava à porta
do Derby, com ares de quem esperava o bonde.

O Romualdo aproximou-se, fez um sinal, afastou-se e ela seguiu-o…

Dez dias depois, estava ele arrependidíssimo da sua conquista fácil,
e com remorsos de haver enganado D. Eufêmia, aquela santa! Procurava
agora meios e modos de se ver livre da mulata, cuja prosódia era capaz
de lançar água na fervura da mais violenta paixão.

Vendo que não podia evitá-la, tomou o Romualdo a deliberação
de fugir-lhe, e uma noite deixou-a à porta do ninho, esperando debalde
por ele. Lembrou-se, mas era tarde, que havia prometido dar-lhe uni anel,
justamente nessa noite.

– Diabo! pensou ele, Antonieta vai supor que lhe fugi por causa do anel!

Voltou, afinal, D. Eufêmia de Juiz de Fora. Veio no trem da manhã,
inesperadamente, e já não encontrou o marido em casa.

Estava furiosa, porque a ama-seca de Bibi deixara-se ficar na estação
da Barra. Podia ser que não fosse de propósito. O mais certo,
porém, era o ter sido desencaminhada por um sujeito que vinha no trem
a namorá-la desde Paraíbuna.

Quando D. Eufêmia contou isso ao marido, acrescentou indignada:

– Que homens sem-vergonha!… Não podem ver uma mulata!…

O Romualdo perturbou-se, mas disfarçou, perguntando:

– E agora? E preciso anunciar! Não podemos ficar sem ama-seca!

– Já mandei o Zeca pôr um anúncio no Jornal do Brasil.

No dia seguinte, o Romualdo saiu muito cedo; ao voltar para casa, a primeira
coisa que perguntou à senhora foi:

– Então? Já temos ama-seca?. .

– Já; é uma mulatinha bem jeitosa, mas tem cara de sapeca.
Chama-se Antonieta.

– Hem? Antonieta?

– Que tens, homem?

– Nada; não tenho nada… E jeitosa?… Tem cara de sapeca?… Manda-a
embora! Não serve! Nem quero vê-la!…

– Ora essa! Por quê? Olha, ela aí vem.

Antonieta chegou, efetivamente, com o Bibi ao colo; mas o Romualdo tinha
fechado os olhos, dizendo consigo:

– Que escândalo!… rebenta a bomba!… este diabo vai reclamar o
anel!.

Mas como nada ouvisse, o mísero abriu os olhos e – oh! milagre! –
era outra Antonieta!.

Ele pensou, os leitores também pensaram que fosse a mesma; não
era.

Decididamente, há um Deus para os maridos que enganam as suas mulheres.

A CONSELHO DO MARIDO

Estamos a bordo de um grande paquete da Messagéries Maritimes, em
pleno Atlântico, entre os dois hemisférios. Dois passageiros,
que embarcaram no Rio de Janeiro, um de quarenta e outro de vinte e cinco
anos, conversam animadamente, sentados ambos nas suas cadeiras de bordo.

– Pois é como lhe digo, meu amiguinho!

– dizia o passageiro de quarenta anos – o homem, todas as vezes que é
provocado pela mulher, seja a mulher quem for, deve mostrar que é homem!
Do contrário, arrisca-se a uma vingança! O caso da mulher de
Putifar reproduz-se todos os dias! – E se o marido for nosso amigo? – Se o
marido for nosso amigo, maior perigo corremos fazendo como José do
Egito.

– O que você está dizendo é simplesmente horrível!

– Talvez, mas o que é preferível: ser amante da mulher de um
amigo sem que este o saiba, ou passar aos olhos dele por amante dela sem o
ser, em risco de pagar com a vida um crime que não praticou?

– Acha então que temos o direito sobre a mulher do próximo…?

– Desde que a mulher do próximo nos provoque. Se o próximo
é nosso amigo, paciência! Não se casasse com uma mulher
assim! Olhe, eu estou perfeitamente tranqüilo a respeito da Mariquinhas!
Trouxe-a comigo nesta viagem porque ela quis vir; se quisesse ficar no Rio
de Janeiro teria ficado e eu estaria da mesma forma tranqüilo.

– Mas o grande caso é que se um dia algum dos seus amigos…

– Desse susto não bebo água. Já um deles pretendeu conquistá-la…
chegou a persegui-la… Ela foi obrigada a dizer-mo para se ver livre dele…
Dei um escândalo! Meti-lhe a bengala em plena Rua do Ouvidor!

Dizendo isto, o passageiro de quarenta anos fechou os olhos, e pouco depois
deixava cair o livro que tinha na mão: dormia. Dormia, e aqueles sonos
de bordo, antes do jantar, duravam pelo menos duas horas. O passageiro de
vinte e cinco anos ergueu-se e desceu ao compartimento do paquete onde ficava
o seu camarote. Bateu levemente à porta. Abriu-lhe uma linda mulher
que se lançou nos seus braços. Era a Mariquinhas.

– Então? – perguntou ela – consultaste meu marido? – Consultei…
– Que te disse ele? – Aconselhou-me a que não fizesse como José
do Egito. Amigos, amigos, mulheres à parte. E o passageiro de vinte
e cinco anos correu cautelosamente o ferrolho do camarote.

A DÍVIDA

I

Montenegro e Veloso formaram-se no mesmo dia, na Faculdade de Direito de
São Paulo. Depois da cerimônia da colação do grau,
foram ambos enterrar a vida acadêmica num restaurante, em companhia
de outros colegas, e era noite fechada quando se recolheram ao quarto que,
havia dois anos, ocupavam juntos em casa de umas velhotas na Rua de São
José. Aí se entregaram à recordação da
sua vida escolástica, e se enterneceram defronte um do outro, vendo
aproximar-se a hora em que deviam separar-se, talvez para sempre. Montenegro
era de Santa Catarina e Veloso do Rio de Janeiro; no dia seguinte aquele partiria
para Santos e este para a capital do Império. As malas estavam feitas.

– Talvez ainda nos encontremos, disse Montenegro. O mundo dá tantas
voltas!

– Não creio, respondeu Veloso. Vais para a tua província, casas-te,
e era uma vez o Montenegro.

– Caso-me?! Aí vens tu! Bem conheces as minhas idéias a respeito
do casamento, idéias que são, aliás, as mesmas que tu
professas. Afianço-te que hei de morrer solteiro.

– Isso dizem todos…

– Veloso, tu conheces-me há muito tempo: já deves estar farto
de saber que eu quando digo, digo.

– Pois sim, mas há de ser difícil que em Santa Catarina te
possas livrar do conjugo vobis. Na província ninguém toma a
sério um advogado solteiro.

– Enganas-te. Os médicos, sim; os médicos é que devem
ser casados.

– Não me engano tal. Na província o homem solteiro, seja qual
for a posição que ocupe, só é bem recebido nas
casas em que haja moças casadeiras.

– Quem te meteu essa caraminhola na cabeça?

– Se fosses, como eu, para a Corte, acredito que nunca te casasses; mas vais
para o Desterro: estás aqui estás com uma ninhada de filhos.
Queres fazer uma aposta?

– Como assim?

– O primeiro de nós que se casar pagará ao outro… Quanto?

– Vê tu lá.

– Deve ser uma quantia gorda.

– Um conto de réis.

– Upa! Um conto de réis não é dinheiro. É preciso
que a aposta seja de vinte contos, pelo menos.

– Ó Veloso, tu estás doido? Onde vamos nós arranjar
vinte contos de réis?

– O diabo nos leve se aqueles canudos não nos enriquecerem

– Está dito! Aceito! Mas olha que é sério!

– Muito sério. Vai preparando papel e tinta enquanto vou comprar duas
estampilhas.

– Sim, senhor! Quero o preto no branco! Há de ser uma obrigação
recíproca, passada com todos os efes e erres!

Veloso saiu e logo voltou com as estampilhas.

– Senta-te e escreve o que te vou ditar.

Montenegro sentou-se, tomou a pena, mergulhou-a no tinteiro, e disse:

– Pronto.

Eis o que o outro ditou e ele escreveu:

"Devo ao Bacharel Jaime Veloso a quantia de vinte contos de réis,
que lhe pagarei no dia do meu casamento, oferecendo como fiança desse
pagamento, além da presente declaração, a minha palavra
de honra."

– Agora eu! disse Veloso, sentando-se:

"Devo ao Bacharel Gustavo Montenegro a quantia de vinte contos de réis…
etc."

As declarações foram estampilhadas, datadas e assinadas, ficando
cada um com a sua.

No dia seguinte Montenegro embarcava em Santos e seguia para o Sul, enquanto
Veloso, arrebatado pelo trem de ferro, se aproximava da Corte.

II

Montenegro ficou apenas três anos em Santa Catarina, que lhe pareceu
um campo demasiado estreito para as suas aspirações: foi também
para a Corte, onde o Conselheiro Brito, velho e conhecido advogado, amigo
da família dele, paternalmente se ofereceu para encaminhá-lo,
oferecendo-lhe um lugar no seu escritório.

Chegado ao Rio de Janeiro, o catarinense desde logo procurou o seu companheiro
de estudos, e não encontrou da parte deste o afetuoso acolhimento que
esperava. Veloso estava outro: em três anos transformara-se completamente.
Montenegro veio achá-lo satisfeito e feliz, com muitas relações
no comércio, encarregado de causas importantes, morando numa bela casa,
freqüentando a alta sociedade, gastando à larga.

O catarinense, que tinha uma alma grande, sinceramente estimou que a sorte
com tanta liberalidade houvesse favorecido o seu amigo; ficou, porém,
deveras magoado pela maneira fria e pelo mal disfarçado ar de proteção
com que foi recebido.

Veloso não se demorou muito em falar-lhe da aposta de São Paulo.

– Olha que aquilo está de pé!

– Certamente. A nossa palavra de honra está empenhada.

– Se te casas, não te perdôo a dívida.

– Nem eu a ti.

Os dois bacharéis separaram-se friamente. Veloso não pagou
a visita a Montenegro, e Montenegro nunca mais visitou Veloso. Encontravam-se
às vezes, fortuitamente, na rua, nos bondes, nos tribunais, nos teatros,
e Veloso perguntava infalivelmente a Montenegro:

– Então? ainda não és noivo?

– Não.

– Que diabo! estou morto por entrar naqueles vinte contos…

III

Um dia, Montenegro foi convidado para jantar em casa do Conselheiro Brito.
Não podia faltar, porque fazia anos o seu venerando protetor, mestre
e amigo. Lá foi, e encontrou a casa cheia de gente.

Passeando os olhos pelas pessoas que se achavam na sala, causou-lhe rápida
e agradabilíssima impressão uma bonita moça que, pela
elegância do vestuário e pela vivacidade da fisionomia, se destacava
num grupo de senhoras.

Era a primeira vez que Montenegro descobria no mundo real um físico
de mulher correspondendo pouco mais ou menos ao ideal que formara.

Não há mulher, por mais inexperiente, a quem escapem os olhares
interessados de um homem. A moça imediatamente percebeu a impressão
que produzira, e, ou fosse que por seu turno simpatizasse com Montenegro,
ou fosse pelo desejo vaidoso de transformar em labareda a fagulha que faiscaram
seus olhos, o caso é que se deixou vencer pela insistência com
que o bacharel a encarava, e esboçou um desses indefiníveis
sorrisos que nas batalhas do amor eqüivalem a uma capitulação.
O acordo tácito e imprevisto daquelas duas simpatias foi celebrado
com tanta rapidez, que Montenegro, completamente hóspede na arte de
namorar, chegou a perguntar a si mesmo se não era tudo aquilo o efeito
de uma alucinação.

O namoro foi interrompido pela esposa do Conselheiro Brito, que entrou na
sala e cortou o fio a todas as conversas, dizendo:

– Vamos jantar.

À mesa, por uma coincidência que não qualificarei de
notável, colocaram Montenegro ao lado da moça.

Escusado é dizer que ainda não tinham acabado a sopa, e já
os dois namorados conversavam um com o outro como se de muito se conhecessem.
Na altura do assado, Montenegro acabava de ouvir a autobiografia, desenvolvida
e completa, da sua fascinadora vizinha.

Chamava-se Laurentina, mas todas as pessoas do seu conhecimento a tratavam
por Lalá, gracioso diminutivo com que desde pequenina lhe haviam desfigurado
o nome. Era órfã de pai e mãe. Vivia com uma irmã
de seu pai, senhora bastante idosa e bastante magra, que estava sentada do
outro lado da mesa, cravando na sobrinha uns olhares penetrantes indagadores.
Os pais não lhe deixaram absolutamente nada, além da esmeradíssima
educação que lhe deram; mas a tia, que generosamente a acolheu
em sua casa, tinha, graças a Deus, alguma coisa, pouca, o necessário
para viverem ambas sem recorrer ao auxilio de estranhos nem de parentes. Para
não ser muito pesada à tia, Lalá ganhava algum dinheiro
dando lições de piano e canto em casas particulares; eram os
seus alfinetes.

– Fui educada um pouco à americana, acrescentou; saio sozinha à
rua sem receio de que me faltem ao respeito, e sou o homem lá de casa.
Quando é preciso, vou eu mesma tratar dos negócios de minha
tia.

E elevando a voz:

– Não é assim, titia?

– É, minha filha, respondeu do lado oposto a velha, embora sem saber
de que se tratava.

Lalá era suficientemente instruída, e tinha algum espírito
mais que o comum das senhoras brasileiras. Essas qualidades, realmente apreciáveis,
tomaram proporções exageradas na imaginação de
Montenegro.

Este disse também a Lalá quem era, e contou-lhe os fatos mais
interessantes da sua vida, exceção feita, já se sabe,
da famosa aposta de São Paulo.

E tão entretidos estavam Montenegro e Lalá nas mútuas
confidências que cada vez mais os prendiam, que nenhuma atenção
prestaram aos incidentes da mesa, inclusive os brindes, que não foram
poucos.

Acabado de jantar, improvisou-se um concerto e depois dançou-se. Lalá
cantou um romance de Tosti. Cantou mal, com pouca voz, sem nenhuma expressão,
e a Montenegro pareceu aquilo o non plus ultra da cantoria. Dançou
com ela uma valsa, e durante a dança apertaram-se as mãos com
uma força equivalente a um pacto solene de amor e fidelidade.

Ele sentia-se absolutamente apaixonado quando, de madrugada, se encaminhou
para casa, depois de fechar a portinhola do carro e magoar os dedos da moça
num último aperto de mão.

Era dia claro quando o bacharel conseguiu adormecer. Sonhou que era quase
marido. Estava na igreja, de braço dado a Lalá, deslumbrante
nas suas vestes de noiva. Mas ao subir com ela os degraus do altar, reconheceu
na figura do sacerdote, que os esperava de braços erguidos, o seu colega
Veloso, credor de vinte contos de réis.

IV

Nesse mesmo dia Montenegro estava sozinho no escritório, e trabalhava,
quando entrou o Conselheiro Brito.

– Bom dia, Gustavo.

– Bom dia, conselheiro.

O velho advogado sentou-se e pôs-se a desfolhar distraidamente uns
autos; mas, passados alguns minutos, disse muito naturalmente, sem levantar
os olhos:

– Gustavo, aquilo não te serve.

– Aquilo quê?

– Faze-te de novas! A Lalá.

– Mas…

– Não negues. Toda a gente viu. Vocês estiveram escandalosos.
Se tens em alguma conta os meus conselhos, arrepia carreira enquanto é
tempo. Tu conhece-la?

– Não, senhor; mas encontrei-a em sua casa, e tanto bastou para formar
dela o melhor conceito.

–Lá por isso, não, meu rapaz! Eu não fumo, mas não
me importa que fumem perto de mim.

– Então ela…?

– Não digo que seja uma mulher perdida, mas recebeu uma educação
muito livre, saracoteia sozinha por toda a cidade e não tem podido,
por conseguinte, escapar á implacável maledicência dos
fluminenses. Demais, está habituada ao luxo, ao luxo da rua, que é
o mais caro; em casa arranjam-se ela e a tia sabe Deus como. Não é
mulher com quem a gente se case. Depois, lembra-te que apenas começas
e não tens ainda onde cair morto. Enfim, és um homem: faze o
que bem te parecer.

Essas palavras, proferidas com uma franqueza por tantos motivos autorizada,
calaram no ânimo do bacharel. Intimamente ele estimava que o velho amigo
de seu pai o dissuadisse de requestar a moça, – não pelas conseqüências
morais do casamento, mas pela obrigação, que este lhe impunha,
de satisfazer uma dívida de vinte contos de réis, quando, apesar
de todos os seus esforços, não conseguira até então
pôr de parte nem o terço daquela quantia.

Mas o amor contrariado cresce com inaudita violência. Por mais conselhos
que pedisse à razão, por mais que procurasse iludir-se a si
próprio, Montenegro não conseguia libertar-se da impressão
que lhe causara a moça. O seu coração estava inteiramente
subjugado. Ainda assim, lograria, talvez, vencer-se, se, vinte dias depois
do seu encontro com Lalá, esta não lhe escrevesse um bilhete
que neutralizou todos os seus elementos de reação.

"Doutor. – Sinto que o nosso romance o enfastiasse tanto, que o senhor
não quisesse ir além do primeiro capítulo. Entretanto,
não imagina como sofro por não saber os motivos que atuaram
no seu espírito para interromper tão bruscamente… a leitura.
Diga-me alguma coisa, dê-me uma explicação que me tranqüilize
ou me desengane. Esta incerteza mata-me. Escreva-me sem receio, porque só
eu abro as minhas cartas. – Lalá."

A primeira idéia de Montenegro foi deixar a carta sem resposta, e
empregar todos os meios e modos para esquecer-se da moça e fazer-se
esquecer por ela; refletiu, porém, que não poderia justificar
o seu procedimento, se recusasse a explicação com tanta delicadeza
solicitada. Resolveu, portanto, responder a Lalá com um desengano categórico
e formal, e mandou-lhe esta pílula dourada:

"Lalá. – Deus sabe quanto eu a amo e que sacrifício me
imponho para renunciar à ventura e á glória de pertencer-lhe;
mas um motivo imperioso existe, que se opõe inexoravelmente á
nossa união. Não me pergunte que motivo é esse; se eu
1h0 revelasse, a senhora achar-me-ia ridículo. Basta dizer-lhe que
a objeção não parte de nenhuma circunstância a
que esteja ligada a sua pessoa; parte de mim mesmo, ou antes, da minha pobreza.
Adeus, Lalá; creia que, ao escrever-lhe estas linhas, sinto a pena
pesada como se estivessem fundidos nela todos os meus tormentos. – G. M."

– Que conselho me dá vossemecê? perguntou Lalá à
sua tia, depois de ler para ela ouvir a carta de Montenegro.

– O conselho que te dou é tratares de arranjar quanto antes uma entrevista
com esse moço, e entenderes-te verbalmente com ele. Isto de cartas
não vale nada. Ele que te diga francamente qual é o tal motivo…
e talvez possamos remover todas as dificuldades. Não percas esse marido,
minha filha. O Doutor Montenegro é um advogado de muito futuro; pode
fazer a tua felicidade.

No dia seguinte Montenegro recebeu as seguintes linhas:

"Amanhã, quinta-feira, às duas horas da tarde, tomarei
um bonde no Largo da Lapa, porque vou dar uma lição na Rua do
Senador Vergueiro. Esteja ali por acaso, e por acaso tome o mesmo bonde que
eu e sente-se ao pé de mim. Recebi a sua carta; é preciso que
nos entendamos de viva voz. – Lalá."

O tom desse bilhete desagradou a Montenegro. Quem o lesse diria ter sido
escrito por uma senhora habituada a marcar entrevistas. Entretanto, à
hora aprazada o bacharel achou-se no Largo da Lapa. Recuar seria mostrar uma
pusilanimidade moral, que o envergonharia eternamente. Depois, como ele possuía
todas as fraquezas do namorado, deixou-se seduzir pela provável delícia
dessa viagem de bonde. Quando o veículo parou no Largo do Machado,
Lalá sabia já qual o motivo pecuniário que se opunha
ao casamento. Ouvira sem pestanejar a confissão de Montenegro.

– O motivo é grave, disse ela; o Doutor Veloso tem a sua palavra de
honra, e o senhor não pode mudar de estado sem dispor de uma soma relativamente
considerável; mas… eu sou mulher e talvez consiga…

– O quê? perguntou Montenegro sobressaltado.

– Descanse. Sou incapaz de cometer qualquer ação que nos fique
mal. Separemo-nos aqui. Eu lhe escreverei.

Lalá estendeu a mão enluvada que Montenegro apertou, desta
vez sem lhe magoar os dedos.

Ele apeou-se e galgou o estribo de outro bonde que partia para a cidade.

– Já está pago, disse o condutor a Montenegro quando este lhe
quis dar um níquel.

O bacharel voltou-se para verificar quem tinha pago por ele, e deu com os
olhos em Veloso, que lhe disse de longe, rindo-se:

– Foi por conta daqueles vinte, – sabes?

– Reza-lhes por alma! bradou Montenegro, rindo-se também.

V

Esse "reza-lhes por alma" queria dizer que Montenegro voltara
desencantado do seu passeio de bonde. Lalá parecera-lhe outra, mais
desenvolta, mais americana, completamente despida do melindroso recato que
é o mais precioso requisito da mulher virgem. Ele deixou-se convencer
de que a moça, depois de ouvir a exposição franca e leal
das suas condições de insolvabilidade, desistira mentalmente
de considerá-lo um noivo possível, dizendo por dizer aquelas
palavras "talvez eu consiga", palavras à-toa, trazidas ali
apenas para fornecer o ponto final a um diálogo que se ia tornando
penoso e ridículo.

Montenegro fez ciente do seu desencanto ao Conselheiro Brito, que lhe deu
parabéns, e dai por diante só se lembrou de Lalá como
de uma bonita mulher de quem faria com muito prazer sua amante mas nunca sua
esposa. Desaparecera completamente aquele doce enlevo causado pela primeira
impressão. O "reza-lhes por alma" saiu-lhe dos lábios
com a impetuosidade de um grito da consciência. A desilusão foi
tão pronta como pronto havia sido o encanto. Fogo de palha.

VI

Entretanto, mal sabia Montenegro que Lalá concebera um plano extravagante
e o punha em prática enquanto ele, tranqüilo e despreocupado,
imaginava que ela o houvesse posto à margem. Depois de aconselhar-se
com a tia, que não primava pelo bom senso, a professora de piano e
canto encheu-se de decisão e coragem, foi ter com o Doutor Veloso no
seu escritório e disse-lhe que desejava dar-lhe duas palavras em particular.

A beleza de Lalá deslumbrou o advogado, e, como este era extremamente
vaidoso, viu logo ali uma conquista amorosa em perspectiva.

– Tenha a bondade de entrar neste gabinete, minha senhora.

Lalá entrou, sentou-se num divã, e contou ao Doutor Veloso
toda a sua vida, repetindo, palavra por palavra, o que dissera a Montenegro
durante o jantar do Conselheiro Brito.

Admirado de tanta loquacidade e de tanto espírito, Veloso perguntou-lhe,
terminada a história, em que poderia servi-la.

– Sou amada por um homem que é digno de mim, e o nosso casamento depende
exclusivamente do doutor.

– De mim?

– A minha ventura está nas suas mãos. Custa-lhe apenas vinte
contos de réis. Não quero crer que o doutor se negue a pagar
por essa miserável quantia a felicidade… de uma órfã.

– Não compreendo.

– Compreenderá quando eu lhe disser que o homem por quem sou amada
é o seu amigo e colega Doutor Gustavo Montenegro.

– Ah! ah!…

– Escusado é dizer que ele ignora absolutamente a resolução,
que tomei, de vir falar-lhe.

– Acredito.

– Qual é a sua resposta?

– Minha senhora, balbuciou Veloso, sorrindo; eu tenho algum dinheiro, tenho..
. mas perder assim vinte contos de reis…

– Recusa?

– Não, não recuso; mas peço algum tempo para refletir.
Depois de amanhã venha buscar a resposta.

A conversação continuou por algum tempo, e Veloso começou
a sentir pela moça a mesmíssima impressão que ela causara
a Montenegro.

Lalá notou o efeito que produzia, e pôs em distribuição
todos os seus diabólicos artifícios de mulher astuta e avisada.

– Feliz Gustavo!

– Feliz… por quê?

– É amado!

– Oh! não vá agora supor que ele me inspirasse uma paixão
desenfreada!

– Ah!

– É um marido que me convém, isso é; mas se o doutor
não abrir mão da dívida, e ele não se puder casar,
não creia que eu me suicide!

Ouvindo esta frase, Veloso adiantou-se tanto, tanto, que, dois dias depois,
quando Lalá foi saber a resposta, ele recebeu-a com estas palavras:

– Não!… Se eu abrisse mão dos vinte contos, ele seria seu
marido, e…

– E…?

– E eu… tenho ciúmes.

No dia seguinte ele era apresentado à tia, manejo aconselhado pela
própria velha.

– Este é mais rico, mais bonito e até mais inteligente que
o outro… Não o deixes escapar, minha filha!

A verdade é que Veloso não se introduziu em casa de Lalá
com boas intenções; mas a esperteza da moça e as indiscrições
do advogado determinaram em breve uma situação de que ele não
pôde recuar.

Imagine-se a surpresa de Montenegro quando lhe anunciaram o casamento de
Lalá com o seu colega, e a indignação que dele se apoderou
quando por portas travessas veio ao conhecimento do modo singular por que
fora ajustado esse consórcio imprevisto.

VII

No dia seguinte ao do casamento, estava Montenegro no escritório,
quando recebeu um cheque de vinte contos de réis, enviado pelo marido
de Lalá.

– Não acha que devo devolver este dinheiro? perguntou ele ao Conselheiro
Guedes.

– Não; mas não o gastes; afianço-te que terás
ocasião mais oportuna para devolvê-lo.

E assim foi.

A lua-de-mel não durou dois meses. Os dois esposos desavieram-se e
logo se separaram judicialmente. Ele voltou à vida de solteiro e ela
tornou para casa da tia.

Um dia Montenegro encontrou-a num armarinho da Rua do Ouvidor, e tais coisas
lhe disse a moça, tais protestos fez e tão arrependida se mostrou
de o haver trocado pelo outro, que dois dias depois ela entrava furtivamente
em casa dele.

Nesse mesmo dia o desleal Veloso recebeu uma cartinha concebida nos seguintes
termos:

"Doutor Veloso. – Devolvo-lhe intacto o incluso cheque de vinte contos
de réis, porque a divida que ele representa é uma estudantada
imoral, sem nenhum valor jurídico. – Gustavo Montenegro."

(Contos Fora da Moda)

A DOENÇA DE FABRÍCIO

O Fabrício era amanuense numa repartição pública,
e gostava muito da Zizinha, filha única do Major Sepúlveda.
O seu desejo era casar-se com ela, mas para isso era preciso ser promovido
porque os vencimentos de amanuense não davam para sustentar família.
Portanto, o Fabrício limitava-se à posição de
namorado, esperando ansioso o momento em que pudesse ter a de noivo. Um dia,
o rapaz recebeu uma carta de Zizinha, participando-lhe que o pai, o Major
Sepúlveda, resolvera passar um mês em Caxambu, com a família,
e pedindo-lhe que também fosse, pois ela não teria forças
para viver tão longe dele. Sorriu ao amanuense a idéia de ficar
uma temporada em Caxambu, hospedado no mesmo hotel que Zizinha. Sendo como
era, moço econômico, tinha de parte os recursos necessários
para as despesas da viagem; faltava-lhe apenas a licença, mas com certeza
o ministro não lha negaria. Enganava-se o pobre namorado. O ministro,
a quem ele se dirigiu pessoalmente, perguntou-lhe de carão fechado:
– Para que quer o senhor dois meses de licença?

– Para tratar-me.

– Mas o senhor não está doente!

– Estou, sim, senhor; não parece, mas estou. Nesse caso submeta-se
à inspeção de saúde e traga-me o laudo. Só
lhe darei a licença sob essa condição. Três dias
depois o Fabrício, metido numa capa, com lenço de seda atado
em volta do pescoço, a barba por fazer, algodão nos ouvidos,
foi à Diretoria Geral de Saúde. O seu aspecto era tão
doentio que o doutor encarregado de examiná-lo disse logo que o viu:

– Aqui está um que não engana: vê-se que está
realmente enfermo! E dirigindo-se ao Fabrício: – Que sente o senhor?
O Fabrício respondeu com uma voz arrastada e chorosa:

– Sinto muitas coisas, doutor; dores pelo corpo, cansaço, ferroadas
no estômago, opressão no peito.

– Vamos lá ver isso! Dispa o casaco! O Fabrício pôs-se
em mangas de camisa, e o médico auscultou-o.

– Não tem tosse? – Tenho, mas só à noite; não
me deixa dormir.

– Bom. Pode vestir o casaco. E o doutor foi escrever o laudo, que entregou
ao amanuense. Este na rua desdobrou o papel, para ver que espécie de
doença lhe arranjara o médico e leu: "Cardialgia sintomática
da diátese artrítica." Não imaginem o efeito que
lhe produziram essas palavras enigmáticas para ele.

– E não é que eu estou mesmo doente? – pensou o pobre rapaz.
Ao chegar a casa, tinha as fontes a estalar. Vieram depois arrepios de frio,
a que sucedeu uma febre violenta e febre foi ela, que durou vinte dias. O
enfermo teve alta justamente quando Zizinha voltava de Caxambu com um noivo
arranjado lá. Maldita cardialgia sintomática da diátese
artrítica.

A FILHA DO PATRÃO

A Artur de Mendonça

O comendador Ferreira esteve quase a agarrá-lo pelas orelhas e atirá-lo
pela escada abaixo com um pontapé bem aplicado. Pois não! Um
biltre, um farroupilha, um pobre diabo sem eira, nem beira, nem ramo de figueira,
atrever-se a pedir-lhe a menina em casamento! Era o que faltava! Que ele estivesse
durante anos a juntar dinheiro para encher os bolsos de um valdevinos daquela
espécie, dando-lhe a filha ainda por cima, a filha, que era a moça
mais bonita e mais bem educada de toda a rua de S. Clemente! Boas!

O Comendador Ferreira limitou-se a dar-lhe uma resposta seca e decisiva,
um "Não, meu caro Senhor" capaz de desanimar o namorado mais
decidido ao emprego de todas as astúcias do coração.

O pobre rapaz saiu atordoado, como se realmente houvesse apanhado o puxão
de orelhas e o pontapé, que felizmente não passaram de tímido
projeto.

Na rua, sentindo-se ao ar livre, cobrou ânimo e disse aos seus botões:
– Pois há de ser minha filha, custe o que custar! – Voltou-se, e viu
numa janela Adosinda, a filha do comendador, que desesperadamente lha fazia
com a cabeça sinais interrogativos. Ele estalou nos dentes a unha do
polegar, o que muito claramente queria dizer: – Babau! – e, como eram apenas
onze horas, foi dali direitinho espairecer no Derby-Clube. Era domingo e havia
corridas.

O Comendador Ferreira, mal o rapaz desceu a escada, foi para o quarto da
filha, e surpreendeu-a a fazer os tais sinais interrogativos. Dizer que ela
não apanhou o puxão de orelhas destinado ao moço, seria
faltar à verdade que devo aos pacientes leitores, apanhou-a, coitadinha!
E naturalmente, a julgar pelo grito estrídulo que deu, exagerou a dor
física produzida por aquela grosseira manifestação de
cólera paterna.

Seguiu-se um diálogo terrível:

– Quem é aquele pilantra?

– Chama-se Borges.

– De onde o conhece você?

– Do Clube Guanabarense… Daquela noite em que papai me levou…

– Ele em que se emprega? Que faz ele?…

– Faz versos.

– E você não tem vergonha de gostar de um homem que faz versos?

– Não tenho culpa; culpado é o meu coração.

– Esse vagabundo algum dia lhe escreveu?

– Escreveu-me uma carta.

– Quem lha trouxe?

– Ninguém. Ele mesmo atirou-a com uma pedra, por esta janela.

– Que lhe diria ele nessa carta?

– Nada que me ofendesse; queria a minha autorização para pedir-me
em casamento.

– Onde está ela?

– Ela quem?

– A carta!

Adosinda, sem dizer uma palavra, tirou a carta do seio. O comendador abriu-a,
leu-a e guardou-a no bolso. Depois continuou:

– Você respondeu a isso?

A moça gaguejou.

– Não minta!

– Respondi, sim, senhor.

– Em que termos?

– Respondi que sim, que me pedisse.

– Pois olhe: proíbo-lhe, percebe? Pro-í-bo-lhe que de hoje
em diante dê trela a esse peralvilho! Se me constar que ele anda a rodar-me
a casa, ou que se corresponde com você, mando desancar-lhe os ossos
pelo Benvindo (Benvindo era o cozinheiro do Comendador Ferreira) e a você,
minha sirigaita… a você… Não lhe diga nada!

Três dias depois desse diálogo, Adosinda fugiu de casa em companhia
de seu Borges, e o rapto foi auxiliado pelo próprio Benvindo, com quem
o namorado dividiu um dinheiro ganho nas corridas do Derby. Até hoje
ignora o comendador que o seu fiel cozinheiro contribuísse para tão
lastimoso incidente.

O pai ficou possesso, mas não fez escândalo, não foi
à polícia, não disse nada nem mesmo aos amigos íntimos;
não se queixou, não desabafou, não deixou transparecer
o seu profundo desgosto.

E teve razão, porque, passados quarto dias, Adosinda e o Borges vinham,
à noite, ajoelhar-se aos seus pés e pedir-lhe a benção,
como nos dramalhões e novelas sentimentais.

Para que o conto acabasse a contento da maioria dos meus leitores, o Comendador
Ferreira deveria perdoar aos dois namorados, e tratar de casá-los sem
perda de tempo; mas infelizmente as coisas não se passarem assim, e
a moral, como vão ver, foi sacrificada ao egoísmo.

Com a resolução de quem longamente se preparara para o que
desse e viesse, o comendador tirou do bolso um revólver e apontou-o
contra o raptor de sua filha, vociferando:

– Seu biltre, ponha-se imediatamente no olho da rua, se não quer que
lhe faça saltar os miolos!…

A esse argumento intempestivo e concludente, o namorado, que tinha muito
amor à pele, fugiu como se o arrebatassem asas invisíveis.

O pai foi fechar a porta, guardou o revolver e, aproximando de Adosinda que
encostada ao piano, tremia como varas verdes, abraçou-a, beijou-a com
um carinho que nunca manifestava em ocasiões menos inoportunas.

A moça estava assombrada; esperava, pelo menos, a maldição
paterna; era, desde pequenina, órfã de mãe e habituara-se
às brutalidades do pai; aquele beijo e aquele abraço afetuosos
encheram-na de confusão e de pasmo.

O comendador foi o primeiro a falar:

– Vês? – disse ele, apontando para a porta. – Vês? O homem por
quem abandonaste teu pai é um covarde, um miserável, que foge
diante do cano de um revólver! Não é um homem!…

– Isso é ele – murmurou Adosinda baixando os olhos, ao mesmo tempo
que duas rosas lhe desfaziam a palidez do rosto.

O pai sentou-se no sofá, chamou a filha para perto de si, fê-la
sentar-se nos seus joelhos e, num tom de voz meigo e untuoso, pediu-lhe que
se esquecesse do homem que a raptara, um troca-tintas, um leguelhé
que lhe queria o dote, e nada mais, pintou-lhe um futuro de vicissitudes e
misérias, longe do pai que a desprezaria se semelhante casamento se
realizasse, desse pai que tinha exterioridades de bruto, mas no fundo era
o melhor, o mais carinhoso dos pais.

No fim dessa catequese, a moça parecia convencida de que nos braços
do Borges não encontraria realmente toda a felicidade possível,
mas…

– Mas agora… é tarde – balbuciou ela; e voltaram-lhe à face
as purpurinas rosas de ainda há pouco.

– Não; não é tarde – disse o comendador. – Conheces
o Manuel, o meu primeiro caixeiro do armazém?

– Conheço: é um enjoado.

– Qual enjoado! É um rapaz de muito futuro no comércio, um
homem de conta, peso e medida! Não descobriu a pólvora, não
faz versos, não é janota, mas tem um tino para o negócio,
uma perspicácia que o levará longe, hás de ver!

E durante um quarto de hora o Comendador Ferreira gabou s excelências
do seu caixeiro Manuel.

Adosinda ficou convencida.

A conferência terminou por estas palavras:

– Falo-lhe?

– Fale, papai.

No dia seguinte o comendador chamou o caixeiro ao escritório, e disse-lhe:

– Seu Manuel, estou muito contente com os seus serviços.

– Oh! Patrão!

– Você é um empregado zeloso, ativo e morigerado; é o
modelo dos empregados.

– Oh! Patrão!

– Não sou ingrato. Do dia primeiro em diante você é interessado
na minha casa: dou-lhe cinco por cento além do ordenado.

– Oh! Patrão! Isso não faz um pai ao filho!…

– Ainda não é tudo. Quero que você se case com minha
filha. Doto-a em cinqüenta contos.

O pobre diabo sentiu-se engasgado pela comoção: não
pôde articular uma palavra.

– Mas eu sou um homem sério – continuou o patrão; – a minha
lealdade obriga-me a confessar-lhe que minha filha… não é
virgem.

O noivo espalmou as mãos, inclinou a cabeça para a esquerda,
baixou as pálpebras, ajustou os lábios em bico, e respondeu
com um sorriso resignado e humilde:

– Oh! Patrão! Ainda mesmo que fosse, não fazia mal!

A Fisolofia dos Mendes

Decididamente o Fulgêncio não nascera para cavalarias altas:
não havia rapaz de trinta anos mais tímido nem mais pacato vivendo
só, na sua casinha de solteiro, independente e feliz.

Aconteceu, porém, que um dia o Fulgêncio foi tão provocado
pelos bonitos olhos de uma senhora, que se sentara ao seu lado num bondinho
da Carris Urbanos, que se deixou arrastar numa aventura de amor.

Quando, depois da primeira entrevista, na casa dele, Bárbara – ela
chamava-se Bárbara – lhe confessou que era casada com um sujeito chamado
Mendes, o pobre rapaz, que a supunha solteira ou pelo menos viúva,
ficou horrorizado de si mesmo. Ficou horrorizado, mas era tarde: gostava dela,
e não teve forças para fugir-lhe.

As entrevistas amiudaram-se. Quando Bárbara n&atatilde;o ia ter pessoalmente
com o Fulgêncio escrevia-lhe cartas inflamadas, e nenhuma ficava sem
resposta.

Essa imprudência teve mau resultado: um dia Bárbara Mendes
entrou em casa do amante acompanhada de duas malas, uma trouxa e um baú.

– Que é isto?
– Alegra-te! Meu marido, que é muito abelhudo, encontrou debaixo do
meu travesseiro a tua última carta e expulsou-me de casa.
– Hein?
– Foi melhor assim: agora sou tua, só tua, e por toda a vida!… Não
estás contente?
– Muito…
– Estou te achando assim a modo que…
– É a surpresa… a comoção… a alegria…
– Como vamos ser felizes! Mas olha, peço-te que não te exponhas
nestes primeiros tempos… O Mendes é ciumento e brutal e, mesmo antes
de ter certeza de que eu o enganava, andava armado de revólver!

O Fulgêncio, que não tinha sangue de herói, viveu dali
por diante em transes terríveis. Saía de casa o menos possível,
e nas ruas só andava de tilburi, recomendando aos cocheiros que fossem
depressa. Quando via ao longe um sujeito qualquer parecido com o Mendes, punha-se
a tremer que nem varas verdes.

Um dia, tendo descido de um tílburi no Largo da Carioca, para comprar
cigarros, encontrou na charutaria o Mendes, que comprava charutos. Ficou de
repente muito pálido e trêmulo e quis fugir, mas o outro agarrou-o
por um braço, dizendo-lhe com muita brandura:

– Faça favor… venha cá… não se assuste… não
trema… não lhe quero mal… ouça-me… é para o seu
bem…
O Fulgêncio caiu das nuvens. O marido continuou:

– Eu sei que o sr. tem medo de mim que se péla: receia que eu o mate,
ou que lhe bata… Tranqüilize-se: não lhe farei o menor mal.
Pelo contrário!

O pobre Fulgêncio não conseguiu articular um monossílabo.
As maxilas batiam uma na outra.

– Matá-lo? Bater-lhe? Seria uma ingratidão! O Sr. Prestou-me
um relevante serviço: livrou-me de Bárbara! E não era
meu amigo, sim, porque em geral são os amigos que têm a especialidade
desses obséquios…
O Fulgêncio continuava a tremer.

– Não esteja assim nervoso! Depois que o Sr. me libertou daquela
peste, sou outro homem, vivo mais satisfeito, como com mais apetite, tudo
me sabe melhor e durmo que é um regalo… Aqui entre nós, se
o amigo quiser uma indenização em dinheiro, uma espécie
de luvas, não faça cerimônia; estou pronto a pagar – não
há nada mais justo… Ande desassombradamente por toda a parte… não
receie uma vingança que seria absurda… e se, algum dia, eu lhe puder
servir para alguma coisa, disponha de mim. Não sou nenhum ingrato.

Daí por diante, o Fulgêncio nunca mais teve receio de estar
na rua, mas em pouco tempo se convenceu de que não podia estar em casa,
porque Bárbara era definitivamente insuportável. O Mendes foi
o mais feliz dos três.

A MARCELINA

I

Naquele tempo (não há necessidade de precisar a época)
era o Doutor Pires de Aguiar o melhor freguês da alfaiataria Raunier
e uma das figuras obrigadas da Rua do Ouvidor. Como advogado diziam-no de
uma competência um pouco duvidosa, o que aliás não obstava
que ele ganhasse muito dinheiro, – mas como janota – força é
confessá-lo – não havia rapaz tão elegante no Rio de
Janeiro.

Quando lhe perguntavam a idade, respondia invariavelmente:

– Orço pelos quarenta, – e durante muito tempo não deu outra
resposta. Os seus contemporâneos de Academia atribuíam-lhe cinqüenta,
bem puxados. As senhoras, essas não lhe davam mais que trinta e cinco.

Ele tinha um fraco pelas mulheres de teatro. Consistia o seu grande luxo
em ser publicamente o amante oficial de alguma atriz. Não fazia questão
de espírito nem beleza; o indispensável é que ela ocupasse
lugar saliente no palco, e fosse aplaudida e festejada pelo público.
Não era o amor, era a vaidade que o conduzia à nauseabunda Citera
dos bastidores.

Essas ligações depressa se desfaziam; duravam enquanto durava
o brilho da estrela; desde que esta começava a ofuscar–se, ele achava
um pretexto para afastar-se dela e procurar imediatamente outra. Como era
inteligente e generoso – muito mais generoso que inteligente, – nunca ficava
mal com o astro caído.

Algumas vezes o rompimento era provocado por elas – pelas de mais espírito,
– que facilmente se enfaravam de um indivíduo tão preocupado
com a própria pessoa, e tão vaidoso suas roupas.

II

No tempo em que se passou a ação deste ligeiro conto, a conquista
do Doutor Pires de Aguiar era uma atriz portuguesa, a Clorinda, que viera
de Lisboa apregoada pelas cem trombetas do reclame, e cuja estréia,
num dos nossos teatrinhos de opereta, o público esperava ansiosamente.

Uma hora antes de começar o espetáculo de estréia, entrou
advogado triunfantemente na caixa do teatro, levando pelo braço a sua
nova amiga, elegantemente envolvida numa soberba de pelúcia. Ia fazer-lhe
entrega do camarim, cujo arranjo confiara liberalmente ao bom gosto e à
perícia dos mais hábeis tapeceiros e estofadores.

Ela ficou encantadíssima, a agradeceu com beijos quentes sonoros a
dedicada solicitude do amante.

Que belo tapete felpudo! que bonitos quadros! que papel escolhido! que delicioso
divã! que magnífico espelho de faces, onde o seu vulto airoso
se refletia três vezes por inteiro! e que profusão de perfumarias!
e que precioso serviço de toilette!.

Nada faltava também sobre a mesinha da maquilagem, risamente iluminada
por dois bicos de gás.

O Doutor Pires de Aguiar tinha longa prática desses arranjos; não
podia esquecer-se de nenhum dos ingredientes necessários camarim de
uma atriz que se respeita; o arsenal estava completo.

Dali a nada ouviu-se um – Dá licença?, – e o diretor cena entrou
no camarim, acompanhado por uma mulher já idosa, muito pálida,
de aspecto doentio, pobremente trajada.

– Dona Clorinda, aqui tem a sua costureira.

A estrela não conteve um gesto de despeito. O diretor de cena compreendeu-o,
e saiu imediatamente, para não entrar em explicações.

– É doente? perguntou Clorinda à costureira.

– Não. senhora. Tive uma doença grave, mas agora estou boa.
Saí há dois dias da Santa Casa.

Clorinda trocou um olhar com o advogado, e este disse-lhe, refestelando-se
no divã:

– Ma chêre, il faut se contender de cette habilleuse; noos ne sommes
pos en Europe.

Ele impingiu a frase em francês, para que não a entendesse a
costureira, mas a verdade é que Clorinda também não percebeu,
o que aliás não a impediu de responder: – Oui.

Despojada da mantilha e da bela capa de pelúcia, Clorinda sentou-se
entre os dois bicos de gás, e começou a pintar-se, dizendo:
– Vamos a isto!

E dirigindo-se à costureira:

– Sente-se. Por que está de pé?

A pobre mulher sentou-se a medo, como receosa de macular a palhinha doirada
da cadeira com o seu miserável vestido de chita.

– Sabe que me disseram bonitas coisas a seu respeito? perguntou a atriz ao
advogado, olhando-o pelo espelho.

– Deveras?

– Ao que me parece, você tem sido um gajo!

O Doutor Pires de Aguiar teve um sorriso inexprimível. Aquele gajo
entrou-lhe pela vaidade adentro como uma grã-cruz.

– Com que então, a sua especialidade são as atrizes?

– Sou doido pelo teatro.

– E há quanto tempo dura essa doidice?

– Há muito tempo. Estou velho, bem vê. Orço pelos quarenta.

– Ninguém lhe dará mais de trinta e cinco.

– São os seus olhos.

– Qual foi a sua primeira paixão no teatro?

– Ah! isso…

O advogado levantou o braço e estalou os dedos.

– … isso é pré-histórico; perde-se na noite dos tempos.

– Como se chamava essa colega?

– Chamava-se Marcelina.

– Que fim levou?

Ele encolheu os ombros.

– Sei lá! provavelmente morreu. Nunca mais ouvi falar dela. Há
mulheres que desaparecem como os passarinhos que não foram mortos a
tiro nem engaiolados: ninguém lhes vê os cadáveres.

– Gostou dela?

– Foi talvez a paixão mais séria da minha vida.

– Nunca mais a procurou?

– Para quê?

– Tinha talento?

– Talento? Não. Tinha habilidade.

E depois de uma pausa:

– Tinha habilidade e era muito boa rapariga.

– Brasileira?

– Sim. Representava ingênuas em dramalhões de capa e aspada,
ali, no São Pedro de Alcântara. Um dia – eu já a tinha
deixado – um dia patearam-na por motivos que nada tinham que ver com a arte
dramática; ela desgostou-se; andou mourejando pelas províncias,
e afinal desapareceu. Requiescat in pace!

Entrou o cabeleireiro. Enquanto Clorinda lhe confiou a cabeça, o Doutor
Pires de Aguiar divagou longamente sobre os méritos da Marcelina; depois
falou de outras atrizes, desfiando o interminável rosário das
suas mancebias.

Clorinda, a costureira e o cabeleiro ouviam sem dizer palavra .

Terminado o serviço do cabeleireiro, que logo se retirou, Clorinda
ergueu-se:

– Agora, meu doutor, há de me dar licença, sim? Vou vestir-me.

– Até logo, disse o advogado. O seu penteado ficou esplendido! Vou
aplaudi-la. Bonne chonce!

Deu-lhe um beijo – na testa para não desmanchar a pintura, – e saiu
do camarim, cuja porta a costureira discretamente fechou.

III

Minutos depois, Clorinda estava completamente nua.

– A senhora é muito bem feita de corpo, disse-lhe, num tom adulatório,
a costureira, enfiando-lhe pela cabeça uma camisa de seda.

– Acha? perguntou desdenhosamente a atriz.

– Ah! eu também já fui bem feita de corpo, mas.. – não
tive juízo: fiei-me demais nos homens. Se quer aceitar um conselho,
filha, preste mais atenção à sua arte do que a todos
esses… gajos, que fazem das mulheres um objeto de luxo e nada mais. Só
assim a senhora evitará o hospital e a miséria.

– Ora esta! exclamou Clorinda. Quem é você, mulher, para me
falar assim?

– Eu sou… a Marcelina.

(Contos Possíveis)

A MELHOR AMIGA

I

A mais ingênua e virtuosa das esposas, D. Ritinha Torres, adquiriu
há tempos a dolorosa certeza de que o marido a enganava, namorando
escandalosamente uma senhora, vizinha deles, que exercia, ou fingia exercer
a profissão de modista.

Havia muitas manhãs que Venâncio Torres – assim se chamava o
pérfido – acordava muito cedo, tomava o seu banho frio, saboreava sua
xícara de café, acendia o seu cigarro e ia ler a Gazeta de Noticias
debruçado a uma das janelas da sala de visitas.

Como D. Ritinha estranhasse o fato, porque havia já quatro anos que
estava casada com Venâncio, e sempre o conhecera pouco madrugador, uma
bela manhã levantou-se da cama, envolveu-se numa colcha, e foi, pé
ante pé, sem ser pressentida, dar com ele a namorar a vizinha, que
o namorava também.

A pobre senhora não disse nada: voltou para o quarto, deitou-se de
novo, e à hora do costume simulou que só então despertava.

Tivera até aquela data o marido na conta de um irrepreensível
modelo de todas as virtudes conjugais; todavia, soube aparar o golpe: não
deu a perceber o seu desgosto, não articulou uma queixa, não
deixou escapar um suspiro.

Mas às dez horas, quando Venâncio Torres, perfeitamente almoçado,
tomou o caminho da repartição, ela vestiu-se, saiu também,
e foi bater à porta da sua melhor amiga, D. Ubaldina de MeIo, que se
mostrou admiradíssima.

– Que é isto? Tu aqui a estas horas! Temos novidade?

– Temos… temos uma grande novidade; meu marido engana-me

E deixando-se cair numa cadeira, D. Ritinha prorrompeu em soluços.

– Engana-te? perguntou a outra, que empalidecera de súbito.

– E adivinha com quem?… Com aquela modista… aquela sujeita que mora defronte
de nossa casa!…

– Oh, Ritinha! isso é lá possível!…

– Não me disseram: vi; vi com estes olhos que a terra há de
comer! Um namoro desbragado, escandaloso, de janela para janela!

– Olha que as aparências enganam…

– E os homens ainda mais que as aparências.

O pranto recrudescia.

– E eu que tinha tanta confian… an… ça naquele ingra… a ..to!

– Que queres tu que te faça? perguntou D. Ubaldina, quando a amiga
lhe pareceu mais serenada.

– Vim consultar-te… peço-te que me aconselhes… que me digas o
que devo fazer… Não tenho cabeça para tomar uma resolução
qualquer!

– Disseste-lhe alguma coisa?

– A quem?

– A teu marido.

– Não; não lhe disse nada, absolutamente nada. Contive-me quanto
pude. Não quis decidir coisa alguma antes de te falar, antes de ouvir
a minha melhor amiga.

D. Ubaldina sentou-se ao lado dela, agradeceu com um beijo prolongado e sonoro
essa prova decisiva de confiança e amizade, e, tomando-lhe carinhosamente
as mãos, assim falou:

– Ritinha, o casamento é uma cruz que é mister saber carregar.
Teu marido engana-te… se é que te engana…

– Engana-me!..

– Pois bem, engana-te, sim, mas… com quem? Reflete um pouco, e vê
que esse ridículo namoro de janela, que o obriga a madrugar, sair dos
seus hábitos, é uma fantasia passageira, um divertimento efêmero
que não vale a pena tomar a serio.

– Achas então que…

– Filha, não há no mundo marido algum que seja absolutamente
fiel. Faze como eu, que fecho os olhos às bilontrices do Melo, e digo
como dizia a outra: – Enquanto andar lá fora, passeie o coração
à vontade, contanto que mo restitua quando se recolher ao lar doméstico.

– Filosofia no caso!

– Vejo que não sente por teu marido o mesmo que sinto pelo meu…

A filósofa conservou-se calada alguns segundos, e, dando em D. Ritinha
outro beijo, ainda mais prolongado e sonoro que o primeiro, prosseguiu assim:

– Se fizeres cenas de ciúmes a teu marido, apenas conseguirás
que ele se afeiçoe deveras à tal modista; o que por enquanto
não passa, felizmente, de um namoro sem conseqüências, poderá
um dia transformar-se em paixão desordenada e furiosa!

– Mas…

– Não há mais nem meio! Cala-te, resigna-te, devora em silêncio
tuas lágrimas, e observa. Se daqui a oito ou dez dias durar ainda esse
pequeno escândalo, vem de novo ter comigo, e juntas combinaremos então
o que deverás fazer.

– Aceito de bom grado os conselhos, minha amiga, mas não sei se terei
forças para sofrear a minha indignação e os meus ciúmes.

– Faze o possível por sofreares. Lembra-te que és mãe.
Quando um casal não vive na mais perfeita harmonia, a educação
dos filhos torna-se extremamente difícil.

Alentada por esses conselhos amistosos e sensatos, D. Ritinha Torres despediu-se
da sua melhor amiga, e foi para casa muito disposta a carregar com resignação
a cruz do casamento.

II

Logo que ficou sozinha, D. Ubaldina que até então a custo
se contivera, teve também uma longa crise de lágrimas.

Mas, serenada que foi essa violenta exacerbação dos nervos,
a moça correu ao telefone, e pediu que a comunicasse com a repartição
onde Venâncio Torres era empregado.

– Alô! Alô!

– Quem fala?

– O Sr. Venâncio está?

– Está. Vou chamá-lo.

Minutos depois D. Ubaldina telefonava ao marido de D. Ritinha que precisava
falar-lhe com toda urgência.

Ele correu imediatamente à casa dela, onde foi recebido com uma explosão
de lágrimas e imprecações.

– Que é isto?! que é isto?! perguntou atônito.

– Sei tudo! bradou ela. Tua mulher esteve aqui e contou-me o teu namoro com
a modista de defronte!

Venâncio ficou aterrado.

– A idiota veio perguntar-me, a mim, que sou tua amante, o que devia fazer!
Eu disse-lhe que fechasse os olhos, que se resignasse.

E agarrando-o com impetuosidade:

– Ah! mas eu é que me não resigno, sabes? Eu não sou
tua mulher, sabes? Eu amo-te, sabes?

– Isso é uma invenção tola. Eu não namoro modistas.

– Olha, Venâncio, se continuares, tudo saberei, porque incumbi a tua
própria mulher de me pôr ao fato de tudo quanto se passar! Se
persistires em namorar essa costureira, darei um escândalo descomunal,
nunca visto… – Afianço-te que te arrependerás amargamente!
Tu ainda não me conheces!..

Venâncio tinha lábias: desfez-se em desculpas e explicou, o
melhor que pôde, as suas madrugadas.

D. Ubaldina, que ardia em desejo de perdoar, aceitou a explicação.
Entretanto, ameaçava-o sempre:

– Olha que se me constar que… Não te digo mais nada!…

Pouco antes da hora em que devia chegar o dono da casa com o seu coração
intacto, Venâncio, que descia a escada, parou, e retrocedeu três
ou quatro degraus para dizer a D. Ubaldina:

– Queres saber de uma coisa? Essa história da modista é bem
boa: serve perfeitamente para desviar qualquer suspeita que minha mulher possa
ter da sua melhor amiga.

E desceu.

III

Oito dias depois, D. Ubaldina de Melo recebia um bilhete concebido nos seguintes
termos:

"Minha boa amiga. – Parece que tudo acabou, felizmente. Depois que estive
contigo, nunca mais Venâncio madrugou nem foi à janela. Queira
Deus que isto dure! Como sou feliz! – Tua do coração, Ritinha
Torres."

A Melhor Vingança

O Vieirinha namorou durante dois anos a Xandoca; mas o pai dele, quando soube
do namoro, fez intervir a sua autoridade paterna.

– A rapariga não tem eira nem beira, meu rapaz; o pai é um simples empregado
público que mal ganha para sustentar a família! Foge dela antes que as coisas
assumam proporções maiores, porque, se te casares com essa moça, não contes
absolutamente comigo – faze de conta que morri, e morri sem te deixar vintém.
Tu és bonito, inteligente, e tens a ventura de ser meu filho; podes fazer
um bom casamento.

Não sei se o Víeirinha gostava deveras da Xandoca; só sei que depois dessa
observação do Comendador Vieira nunca mais passou pela Rua Francisco Eugênio,
onde a rapariga todas as tardes o esperava com um sorriso nos lábios e o coração
a palpitar de esperança e de amor.

O brusco desaparecimento do moço fez com que ela sofresse muito, pois que
já se considerava noiva, e era tida como tal por toda a vizinhança; faltava
apenas o pedido oficial.

Entretanto, Xandoca, passado algum tempo, começou a consolar-se, porque outro
homem, se bem que menos jovem, menos bonito e menos elegante que o Vieirinha,
entrou a requestá-la seriamente, e não tardou a oferecer-lhe o seu nome. Pouco
tempo depois estavam casados.

Dir-se-ia que Xandoca foi uma boa fada que entrou em casa desse homem. Logo
que ele se casou, o seu estabelecimento comercial entrou num maravilhoso período
de prosperidade. Em pouco mais de dois anos, Cardoso – era esse o seu nome
– estava rico; e era um dos negociantes mais considerados e mais adulados
da praça do Rio de Janeiro.

Ele e Xandoca amavam-se e viviam na mais perfeita harmonia, gozando, sem
ostentação, os seus haveres e de vez em quando correndo mundo.

Uma tarde em que D. Alexandrina (já ninguém a chamava Xandoca) estava à janela
do seu palacete, em companhia do marido, viu passar na rua um bêbedo maltrapilho,
que servia de divertimento aos garotos, e reconheceu, surpresa, que o desgraçado
era o Víeirinha.

Ficou tão comovida, que o Cardoso suspeitou, naturalmente, que ela conhecesse
o pobre-diabo, e interrogou-a neste sentido.

– Antes de nos casarmos, respondeu ela, confessei-te, com toda a lealdade,
que tinha sido namorada e noiva, ou quase noiva, de um miserável que fugiu
de mim, sem me dar a menor satisfação, para obedecer a uma intimação do pai.

– Bem sei, o tal Víeirinha, filho do Comendador Vieira, que morreu há três
ou quatro anos, depois de ter perdido em especulações da bolsa tudo quanto
possuía.

– Pois bem – o Vieirinha ali está!

E Alexandrina apontou para o bêbado, que afinal caíra sobre a calçada, e
dormia.

– Pois, filha, disse o Cardoso, tens agora uma boa ocasião de te vingares!

– Queres tu melhor vingança?

– Certamente, muito melhor, e, se me dás licença, agirei por ti.

– Faze o que quiseres, contanto que não lhe faças mal.

– Pelo contrário.

Quando no dia seguinte o Víeirinha despertou, estava comodamente deitado
numa cama limpa e tinha diante de si um homem de confiança do Cardoso.

– Onde estou eu?

– Não se importe. Levante-se para tomar banho!

O Vieirínha deixou-se levar como uma criança. Tomou banho, vestiu roupas
novas, foi submetido à tesoura e à navalha de uni barbeiro, e almoçou como
um príncipe.

Depois de tudo isso, foi levado pelo mesmo homem a uma fábrica, onde, por
ordem do Cardoso, ficou empregado.

Antes de se retirar, o homem que o levava deu-lhe algum dinheiro e disse-lhe:

– O senhor fica empregado nesta fábrica até o dia em que torne a beber.

– Mas a quem devo tantos benefícios?

– A uma pessoa que se compadeceu do senhor e deseja guardar o incógnito.

O Vieirinha atribuiu tudo a qualquer velho amigo do pai; deixou de beber,
tomou caminho, não é mau empregado, e há de morrer sem nunca ter sabido que
a sua regeneração foi uma vingança

A MOÇA MAIS BONITA DO RIO DE JANEIRO

I

Era em 1875. Numa pequena casa do Engenho Novo habitava, em companhia dos
pais, a moça mais bonita do Rio de Janeiro. Como houvesse nascido a
2 de maio, recebera na pia batismal, por simples indicação da
folhinha, o nome de Mafalda; entretanto, ninguém a conhecia por esse
nome, pois desde o berço começaram todos de casa a chamar-lhe
Fadinha, corruptela e diminutivo de Mafalda. E bem lhe assentavam aquelas
três sílabas, porque a moça, aos dezoito anos, possuía
todos os encantos que têm, ou devem ter, as fadas, e na sua beleza extraordinária
havia, realmente, qualquer coisa de sobrenatural e fantástico.

Morena, desse moreno fluido que só Murillo encontrou na sua maravilhosa
paleta, de olhos negros e úmidos, narinas dilatadas, lábios
grossos mas graciosamente contornados, abrindo-se, de vez em quando, para
mostrar os mais belos dentes, cabelos negros como os olhos, abundantes, ligeiramente
ondeados, apanhados sempre com um desalinho estético, deixando ver
duas orelhas de um desenho tão impecável, que fora crime cobri-las
– e todas essas partes completando-se umas às outras no oval harmonioso
do rosto, Fadinha, por unânime deliberação do júri
mais rigoroso, ganharia com toda a certeza o primeiro prêmio, se naquela
época se lembrassem de abrir no Rio de Janeiro um concurso de beleza
feminina. Todo o seu corpo se compadecia com a cabeça; era esbelta
sem ser alta, robusta sem ser gorda, e as suas formas apresentavam uma extraordinária
correção de linhas. As mãos e os pés eram modelos.

Exagerado parecerei, talvez, dizendo que Fadinha reunia a esses dotes físicos
as melhores qualidades de alma; entretanto, a verdade é que era boa,
afetuosa, submissa e compassiva. Tinha a sua ponta de vaidade, isso tinha,
mas que outra mulher não a teria, sendo assim tão bonita?

Duas coisas, portanto, a desgostavam: ter vindo ao mundo a 2 de maio e chamar-se
Mafalda, quando poderia nascer a 10 de julho e se chamar Amélia – e
não ter nascido rica, muito rica, para fazer valer ainda mais a sua
formosura. Todavia conformava-se alegremente com a precária condição
de filha de um funcionário público paupérrimo. Sim, porque
seu pai, o Raposo, chegara aos cinqüenta anos simples oficial de Secretaria,
sendo obrigado, para agüentar a vida, a empregar os afazeres escriturando
livros comerciais, ora numa padaria, ora numa venda, ora numa casa de penhores.
E a vida sedentária fez com que ele engordasse extraordinariamente.
O dr. Souto, médico da família, costumava dizer: o Raposo é
uma apoplexia ambulante.

Fadinha não era filha única: tinha um irmão mais velho
arrumado no comércio, e outro, ainda muito novo, que estudava para
doutor, porque o pai o considerava o "talento da família".

A mãe era uma senhora de quarenta e cinco anos, que não se
parecia absolutamente com a filha. Não sei por que fenômeno fisiológico,
de um casal tão feio (porque o Raposo, coitado! era outro desfavorecido
da natureza) saiu aquele esplêndido produto, aquela criatura escultural,
aquela beleza inverossímil! Note-se que os dois rapazes também
eram feios, principalmente o futuro doutor – narigudo, orelhudo, enfezado,
anêmico, insignificante.

Não contente de levar parte da existência às voltas com
os santos do seu oratório particular, d. Firmina – assim se chamava
a mãe de Fadinha – andava constantemente pelas igrejas, adorando os
de fora; mas, em que pesasse a tanta piedade não perdoava à
filha o ser tão bonita, e revoltava-se intimamente contra o singular
monopólio que a moça recebera da natureza como se fosse uma
dádiva escandalosa; entretanto, Fadinha era toda a sua ambição
de fortuna, toda a sua esperança de melhores tempos. O seu sonho era
ser sogra de um argentário, pois que o não poderia ser de um
príncipe. Se o Raposo não fosse um chefe de família,
às direitas, essa mulher tê-lo-ia dominado, usurpando toda a
autoridade no lar; felizmente ele batia o pé, não consentia
em nada que lhe desagradasse.

Mas a nossa Fadinha tem um namorado. E tempo de apresentá-lo aos leitores.

II

Linda como era, não faltavam à moça adoradores de todas
as idades e categorias. Muitos homens se abalavam da cidade até o Engenho
Novo, só pela satisfação de contemplá-la, muitos
deles conduzidos pela simples curiosidade, muitos deles instigados pela vaga
esperança de uma promessa envolvida num sorriso ou num olhar. Pode-se
dizer que durante muito tempo a formosura célebre de Fadinha contribuiu
para o aumento da receita dos trens dos subúrbios, e para a animação
do bairro, que naquele tempo não tinha a população de
hoje. Muitos desses adoradores chegaram à fala, declarando-se animados
das intenções mais puras, e entre eles alguns havia realmente
dignos da singular ventura de casar com Fadinha; ela, porém, todos
repeliu com a maior delicadeza e compostura.

Um dia, o Raposo convidou para jantar em sua casa o Remígio, um bom
rapaz, seu colega, empregado na mesma repartição em que ele
exercia as suas funções oficiais. Esse Remígio era uma
das pérolas dá Secretaria, modelo de zelo, inteligência
e assiduidade, funcionário "de muito futuro", como diziam
todos; mas não era bonito, nem elegante, nem primava por nenhuma outra
qualidade exterior. Entretanto, de todos quantos passaram diante dos formosos
olhos da Fadinha, foi esse o único homem que lhe mereceu atenção.
Negociantes acreditados e dinheirosos, funcionários bem colocados,
advogados, médicos, oficiais do Exército e da Armada, etc. –
tiveram todos que ceder lugar, no coração de Fadinha, a esse
amanuense pálido, desajeitado, mal vestido, que apenas ganhava 166$666
réis mensais.

A moça parecia ansiosa por que o seu coração se manifestasse;
imediatamente deu a entender ao Remígio que ele seria vencedor entre
os numerosos candidatos à sua mão. O amanuense, que era modesto
por natureza, e nem mesmo em sonhos imaginara esposar algum dia a moça
mais bonita do Rio de Janeiro, ficou desvairado pela preferência que
não solicitara, e apaixonou-se deveras por Fadinha.

Logo que se manifestaram claramente os primeiros sintomas daquele amor, houve
um sobressalto na família. D. Firmina viu aproximar-se o perigo, e
um dia, depois do almoço, quando o marido se dispunha a sair de casa,
arrastando a sua obesidade até o trem, comunicou-lhe os seus receios;
mas o Raposo, que tinha pelo Remígio uma afeição paternal,
e não via com maus olhos a perspectiva do seu casamento com Fadinha,
limitou-se a sorrir, dizendo:

– É muito natural que eles gostem um do outro e que se casem.

– Você está falando sério?

– Ora esta! Muito sério! Quem sabe se o Remígio não
é digno da pequena!

– Um amanuense!

– E eu quem sou?… Que era eu quando fomos à igreja?… Fadinha se
casará conforme a sua inclinação; se gosta de um amanuense
e não de um ministro, paciência! Não quer ser rica; faz
bem, porque a felicidade não está no dinheiro. Demais o Remígio
não é para ai nenhum pobre-diabo carregado de esteiras velhas;
o pai deixou-lhe alguma coisa; tem duas ou três casinhas, algumas apólices
e muito juízo, que é o essencial Estimado como é na Secretaria,
não lhe dou cinco anos para estar chefe de seção. Acenda
você a lanterna de Diógenes, que não encontra genro mais
ao pintar.

– Deixe-se disso! Nossa filha é muito bonita, e…

– Aí vem você com a boniteza de nossa filha! Isso não
vale nada, absolutamente nada! E muito bonita, é, mas não tem
vintém, e se se casasse à força com algum ricaço,
o casamento pareceria mais um negócio que outra coisa. Demais, seria
humilhante para nós que somos paupérrimos. Que diabo! Não
quero especular com a beleza de minha filha, nem me opor à sua ventura
contrariando os seus sentimentos. Você, que é tão religiosa,
devia pensar como eu…

– Mas nós poderíamos fazer ver à Fadinha que…

– Basta! Já vejo que não nos entendemos neste particular. Na
minha opinião, o Remígio é um excelente partido, e não
vejo a razão por que a pequena deva aspirar a outro!

– Mas…

– Não há mas nem meio mas! Ela que decida, porque – e peço-lhe
que tome em consideração as minhas palavras – a Fadinha não
se casará com quem você ou eu quisermos que se case, mas com
o noivo que escolher por sua livre vontade, seja amanuense, praticante, czar
da Rússia, ou xá da Pérsia!…

– Eu…

– Nem mais uma palavra, Firmina! Você bem sabe que isto aqui não
é casa de Gonçalo! Não admito que debaixo destas telhas
outra voz se erga mais alto que a minha!

– Mas o que você está dizendo é uma asneira!

– Uma asneira!… Uma asneira!… É a mim que a senhora diz isso?!…

– Sim, sim… é ao senhor! Estou farta de representar nesta casa um
papel tão subalterno!

– Nesse caso, vista as minhas calças e passe para cá as saias!
Ora não seja tola! Hoje mesmo vou dizer ao Remígio que a pequena
é dele!…

– Pois não há de ser, digo-lhe eu! Quero fazer a felicidade
de minha filha!

– Não minta!… A senhora quer fazer a sua própria felicidade,
não a dela! Não me obrigue a falar, porque, se falo, temos escândalo
e escândalo grosso!

E o Raposo contrafazia-se, abaixando a voz para não ser ouvido pelos
demais da casa:

– A senhora nunca a estimou como devia; nunca lhe teve amor de mãe,
de verdadeira mãe!… E agora quer vendê-la… Boas!… Hoje
mesmo falo ao Remígio!…

– Isso é uma infâmia! Eu sou mãe dela, e o senhor não
tem certeza de ser seu pai!…

-Hein?… Que é isso?…

O Raposo cresceu para d. Firmina, mas uma onda de sangue lhe subiu à
cabeça; ele abriu desmesuradamente os olhos e a boca, agitou os braços
no ar e caiu fulminado.

Quando chegou o dr. Souto, chamado a toda a pressa, encontrou-o morto.

– Bem dizia eu que o Raposo era uma apoplexia ambulante!

III

O Remígio mostrou-se verdadeiro amigo: pediu a d. Firmina licença
para tratar do enterro, e nem esta nem os filhos conheceram até hoje
a importância das respectivas despesas.

Tão piedosa solicitude, e as lágrimas acerbas que o moço
derramou sobre o cadáver do velho colega aumentaram os sentimentos
de Fadinha a seu respeito; agora não era somente o afeto, era também
gratidão que aproximava aqueles dois corações. Com a
morte do Raposo, ambos se sentiram órfãos, e essa identidade
de situações cimentava ainda mais a mútua simpatia que
os dominava.

Não teve d. Firmina uma palavra de agradecimento para tais favores
e, mentalmente, o Remígio atribuiu essa falta à dor violenta
que a viúva manifestava, a todos os momentos, com lágrimas e
gritos. Na ocasião do enterro foram necessários três homens
para arrancá-la de cima do caixão e, sete dias depois, terminada
a missa, ele teve, na sacristia da igreja de São Francisco de Paula,
um ataque de nervos tão violento, que parecia chegada a sua última
hora.

Também os rapazes, quer o estudante, quer o empregado no comércio,
não agradeceram ao Remígio o enterro e a missa; dir-se-ia que
todos da casa consideravam aquilo uma obrigação.

Todos, não: Fadinha volta e meia falava da generosidade do moço,
e as suas palavras, a que ninguém respondia, eram ouvidas com indiferença
pela mãe e pelos irmãos.

O mais velho, o Alexandre, moço de vinte e dois anos, empregado na
casa comercial do barão de Moreira, estava lisonjeadíssimo pelo
fato de haver o patrão se dignado assistir pessoalmente à cerimônia
fúnebre. Não queria acreditar nos seus olhos quando, no corredor
da igreja, encontrou o barão parado, segurando o chapéu com
a mão atrás das costas, de cabeça erguida, a examinar
atentamente o retrato de um benfeitor da Ordem, pintado pelo Fragoso. O caixeiro
a princípio supôs que o barão viesse a outra missa qualquer,
mas, não obstante a sua tristeza, rejubilou-se quando viu que, ao começar
a cerimonia, o titular tomava lugar entre os que tinham vindo render a derradeira
homenagem ao defunto Raposo.

Acabada a missa, quando o padre, acompanhado do seu acólito, voltou
para a sacristia, dobrando o joelho diante de cada altar, o barão foi
o primeiro a abraçar o Alexandre, que estava perto da mãe dos
irmãos.

– Seja homem! Todos nós passamos por estes dissabores… O mundo é
isto mesmo…

– Obrigado, senhor barão.

– Não conheço sua família; peço-lhe que me apresente
às senhoras.

A viúva não pôde ser apresentada porque chorava um oceano
lágrimas, e não tinha atenção para mais nada além
da sua dor espetaculosa; mas o barão, pasmado diante da beleza de Fadinha,
deu-lhe um longo aperto de mão, dizendo-lhe:

– Minha senhora, seu irmão é empregado de nossa casa, e eu
sou muito amigo de quantos me servem bem. Peço-lhe que diga à
senhora sua mãe que o barão de Moreira está à
sua disposição para tudo em que ela o queira ocupar, seja o
que for.

– Muito obrigada, senhor barão.

Este oferecimento surpreendeu Alexandre, que não estava habituado
às amabilidades do patrão, homem ainda novo, mas seco, autoritário,
frio, orgulhoso da sua educação, da sua elegância, do
seu títu1o e dos seus contos de réis; na sua humildade de subalterno,
o rapaz imaginava que, se o barão o encontrasse na rua, não
o reconheceria; admirava-se, portanto, de que esse ricaço comodista
se abalasse de Botafogo para vir assistir a missa rezada por alma de um funcionário
obscuro, e tão interessado se mostrasse pela família. Os leitores
vão ter mais adiante a explicação desse fenômeno.

Quando todos os convidados se retiraram, e a família Raposo ficou
só na sacristia, os dois rapazes despediram-se da mãe e da irmã:
o mais velho ia para a casa onde era empregado e onde almoçava, e o
mais novo para a Escola de Medicina: estavam à porta os exames, não
convinha faltar; almoçaria no Rocher de Cancalle, à Travessa
do Ouvidor.

O Remígio ofereceu-se para acompanhar as senhoras até o Engenho
Novo; mas a viúva, que na ausência de espectadores já
não parecia tão angustiada, recusou formalmente.

– Não, senhor; não quero que se dê a esse trabalho; o
senhor precisa ir também para a sua repartição.

Fadinha interveio:

– Um dia não são dias. Venha, seu Remígio; almoçará
conosco.

– Já disse que não!

O amanuense curvou a cabeça e levou as duas senhoras até o
carro: fê-las entrar e fechou a portinhola.

– Apareça – disse Fadinha tristemente e agitou os dedos num delicado
adeus.

D. Firmina, essa não articulou uma palavra; mas quando o carro se
afastou, na direção da rua do Teatro, ela vociferou, com uma
indízivel expressão de cólera no olhar:

– Trata de te esqueceres deste sujeitinho! Já não tens o pai
toleirão que tinhas! Quem manda sou eu, estás ouvindo?…

IV

Agora, a explicação do fenômeno:

O barão Moreira tinha vindo para o escritório mais cedo que
nos outros dias, e entretinha-se a conversar com o seu amigo Pimenta, que
de vez em quando o procurava para palestrar com ele, recordando juntos os
bons tempos em que ambos freqüentavam o Colégio Vitório.

O Pimenta abraçara também a carreira comercial, mas não
foi tão feliz como o seu condiscípulo. Percorrera, durante muitos
anos, um grande número de casas, e em nenhuma delas encontrou a fortuna
a que lhe dava direito a sua prodigiosa atividade. Aos trinta e tantos anos
ainda não tinha no comércio uma posição definida,
mas, enfim, sempre se arranjava como corretor de mercadorias, cujas vendas,
feitas por seu intermédio, lhe deixavam pingues porcentagens.

A sua longa passagem por um grande armarinho da rua do Ouvidor, de onde ao
cabo de quinze anos de sonhos e esperanças, saíra irritado contra
os patrões, e com uma mão atrás e outra adiante, valeu-lhe
duas qualidades excepcionais: conhecer como ninguém aquele gênero
de negócio e ser a crônica viva de toda a população
carioca. Não havia fato, escandaloso ou não, que o Pimenta não
armazenasse na memória e não glosasse no momento oportuno.

Era má língua, e, sem esse defeito, estaria talvez rico e independente
como o barão de Moreira, escusado de andar acima e abaixo, de porta
em porta, suando as estopinhas, munido de amostras, faturas e conhecimentos.
Uns diziam: – O Pimenta não é mau sujeito, mas tem uma língua
que o perde – e outros: – É muito vivo, muito esperto, mas não
há maior caipora. Entretanto, como se conservava solteiro e não
tinha obrigações de família, o Pimenta suportava de cara
alegre o seu caiporismo, ganhando o preciso para viver sem ser pesado aos
amigos.

Naquele dia ele aparecera, como já dissemos, no escritório
do barão de Moreira para dar dois dedos de palestra ao amigo de infância
e talvez papar-lhe o almoço.

Conversavam ambos, quando o Alexandre entrou no escritório para participar
ao barão ter recebido naquele instante a notícia que seu pai
falecera repentinamente, e pedir-lhe alguns dias de dispensa.

O barão, que era de uma altivez de autocrata para com os empregados
da sua casa, observou, sem levantar os olhos:

– Isso é com o senhor Motta; já lhe falou?

– O senhor Motta não está.

– Pois pode ir.

E o Alexandre saiu sem receber uma palavra de condolência.

– Conheces este teu empregado? – perguntou o Pimenta ao barão.

– Não; quem o admitiu foi o meu sócio, o Motta; creio ser esta
a primeira vez que lhe falo; bem sabes que tenho por sistema ligar pouca importância
aos caixeiros…

– Foi por isso que te perguntei se o conhecias.

Houve uma pausa.

– Nesse caso não conheceste o pai, o Raposo, que acaba de falecer
repentinamente?

– Não.

– E não sabes que o teu caixeiro é irmão da moça
mais bonita do Rio de Janeiro?

– Não!

– É singular! Nunca ouviste falar da Fadinha do Engenho Novo?

– Tenho idéia…

– Pois é ela!

– E é realmente bonita?

– Se é bonita! É formosa! É linda!… Não há
reputação mais merecida!

– Que diabo! Estás me aguçando a curiosidade! Como poderei
vê-la?

– Muito simplesmente: vai a missa do sétimo dia. Como o irmão
é empregado em tua casa, procura esse pretexto para oferecer, mesmo
na igreja, os teus serviços à família, e terás
ocasião de vê-la bem de perto.

– Lembras bem. Só assim iria eu à missa do pai do senhor…
como se chama o rapaz?

– Alexandre.

E ali está por que o barão de Moreira compareceu a missa: mera
curiosidade sacrílega.

Quando o titular voltou da igreja, encontrou no escritório o Pimenta
à sua espera.

– Então? Que tal?

– Meu amigo, aquela não é a moça mais bonita do Rio
de Janeiro, é a mulher mais bela do mundo!…

V

Se o Alexandre se admirara de que o barão de Moreira houvesse comparecido
à igreja, mais admirado ficou vendo que o patrão, daquele dia
em diante, começou a tratá-lo com uma simpatia e uma atenção
que em pouco tempo se transformaram em familiaridade. Chamava-o para o auxiliar
em todos os trabalhos do escritório, confiava-lhe serviços de
responsabilidade, incumbia-o de receber grandes somas ou levá-las ao
banco, e um dia, estando o moço a passar uma carta a limpo, carta confidencial,
de muita importância, o patrão ofereceu-lhe um dos seus magníficos
havanos, dizendo-lhe:

– Fume, Alexandre.

Motta, o sócio do barão, que era a antítese deste, bonacheirão,
amável, amigo dos empregados, estava estupefato e não sabia
a que atribuir aquele favoritismo; o guarda-livros, porém, e os outros
caixeiros, já enciumados, e talvez instruídos pelas perversas
insinuações do linguarudo Pimenta, murmuravam: – Não
há nada como ter irmã bonita…

O barão pedia constantemente noticias da família, interessando-se
pela viúva, e repetindo, quase todos os dias, o oferecimento dos seus
serviços e da sua amizade para prevenir, remover ou sanar qualquer
dificuldade criada pelo súbito falecimento do velho Raposo. O rapaz
desfazia-se em agradecimentos e, chegando à casa, contava à
mãe todas as atenções e finezas que merecia ao patrão.

D. Firmina, perspicaz e manhosa, desconfiou naturalmente que o barão,
impressionado pela beleza de Fadinha, procurasse meios e modos de se aproximar
da família, e um dia aconselhou o filho a que lhe oferecesse a casa
dizendo-lhe que ela, d. Firmina, muito reconhecida a todos os favores do titular,
teria muita satisfação em lhos agradecer pessoalmente.

Se d. Firmina bem o disse, Alexandre melhor o fez, e o barão, já
se vê, não deixou fugir uma ocasião que havia já
dois meses provocava. Um belo domingo resolveu ir almoçar no Engenho
Novo. Para dar maior solenidade à visita, d. Firmina foi esperá-lo
na estação, acompanhada pelos rapazes, só pelos rapazes,
porque Fadinha, sabendo da vinda do barão, fechou-se na alcova, pretextando
uma enxaqueca violenta, e não houve súplicas nem ralhos, carinhos
nem ameaças que a fizessem sair.

A moça estava desesperada: havia mais de um mês que não
punha os olhos no seu querido Remígio. Foram tantas as grosserias de
d. Firmina e dos rapazes, que o namorado, compreendendo que o queriam afastar,
e vendo que era impossível afrontar a pé firme aquela súcia
de ingratos, fez-lhes a vontade, sem, contudo, renunciar os seus projetos
de casamento, porque Fadinha continuava a ser a mesma, e ele considerava-a
digna, por todos os respeitos, do seu afeto e da sua constância.

– Façam o que fizerem, serei tua, só tua, juro-te por alma
de meu pai! Quanto mais me oprimirem, quanto mais te ofenderem, mais crescerá,
se é possível, o ardente amor que te consagro! Sou tua noiva!

Animado por essas palavras de fogo, em que Fadinha pusera toda a energia
da sua alma, toda a sinceridade do seu coração, o Remígio
esperava resignadamente ensejo de fazer valer os direitos do seu amor; entretanto
– digamo-lo – o seu espírito vacilante e timorato não tinha
forças para a luta a que o incitavam. Ele amava deveras, mas começava
a maldizer intimamente aquela singular formosura, que fazia de Fadinha um
objeto de cobiça, uma esperança de fortuna, espécie de
seguro de vida de uma família inteira. Não obstante a última
vontade, o desejo extremo e sagrado do venerando Raposo, receava que a sua
insistência causasse a desunião e a desgraça da família.
Entretanto, Fadinha, todas as vezes que, iludindo a vigilância materna,
lhe podia escrever, repetia cada vez mais veementes protestos de fidelidade.

Mas voltemos ao barão de Moreira que, na estação do
Engenho Novo, com o seu terno de flanela clara, o seu chapéu de palha
branca, a sua gravata polícroma, o seu alfinete de brilhantes e a rosa
enorme que trazia ao peito, contrastava com o aspecto daquela matrona e daqueles
dois rapazes vestidos de luto, luto fechado, em que eram pretos até
mesmo os punhos e os colarinhos.

VI

No dia seguinte, entrando no escritório do barão, o Pimenta
encontrou-o de mau humor.

– Então? Foste?

– Fui. Fui a Roma e não vi o papa.

– Não entendo.

– Roma é o Engenho Novo e o papa é Fadinha; entendes agora?

– Não a viste?

– Já te disse que não. Estava doente; não me apareceu.

– Deveras?

– Imagina que estupidez almoçar com dona Firmina e os filhos, e vê-la
por um óculo! Almoçar é um modo de dizer, porque não
comi nada. Fiquei desesperado!

– E que te disse a velha?

– A velha estava ainda mais contrariada do que eu. Era uma coisa que entrava
pelos olhos. Pediu-me muitas desculpas pela ausência da filha, e disse-me
– sem nenhuma convicção, aliás – que ela estava realmente
indisposta.

– Não creias.

– Está visto que não creio.

– Tens um rival.

– Já desconfiava disso.

– Um concorrente sério. Informaram-me de tudo hoje pela manhã.

E o Pimenta contou ao barão o que os leitores já sabem: os
amores de Remígio e Fadinha, a última vontade do velho Raposo,
os obséquios prestados à família, a oposição
de d. Firmina e dos filhos, o afastamento de Remígio – e acrescentou:

– A pequena desconfiou que te queriam impor-lhe para marido, e fechou-se
no quarto. Aí tens por que foste a Roma e não viste o papa.

– Que me aconselhas tu?

– Para responder a essa pergunta, preciso primeiramente saber quais são
as tuas intenções.

Houve um longo silêncio.

– Gostas dela?

– Muito. Já gostava, e depois do maldito almoço fiquei gostando
ainda mais!

– Estás disposto a ser seu marido?

Houve outro silêncio, ainda mais longo que o primeiro.

– Se não queres fazê-la baronesa – redargüiu o Pimenta
– esquece-te da moça. Que diabo! Ela pode ser feliz com o tal Remígio,
que é rapaz honesto.

– Mas quem te disse que as minhas intenções não sejam
boas?

– Tu ficaste calado…

– Fiquei, porque o casamento me apavora. E tão deliciosa e tão
completa a minha liberdade! Sim, confesso-te que o matrimônio jamais
figurou no programa da minha vida, mas se for preciso…

– Como "se for preciso"? Pois entrou-te em cabeça que Fadinha
poderia pertencer-te independentemente da intervenção do padre?
Aquela família é pobre, mas tão honrada como a tua! Se
queres ser seu marido, luta, e vencerás, talvez; senão, desiste
de uma idéia indigna de ti!

O barão olhou muito tempo para o havano que tinha entre os dedos,
deixou cair a cinza numa escarradeira, meteu o charuto na boca, ergueu-se,
e disse resolutamente, numa baforada de fumo:

– Lutarei!

Quando o Pimenta saiu do escritório, encontrou no armazém o
Alexandre, e disse-lhe rapidamente, a meia voz:

– O homem casa.

A Polêmica

O Romualdo tinha perdido, havia já dois ou três meses, o seu
lugar de redator numa folha diária; estava sem ganhar vintém,
vivendo sabe Deus com que dificuldades, a maldizer o instante em que, levado
por uma quimera da juventude, se lembrara de abraçar uma carreira tão
incerta e precária como a do jornalismo.

Felizmente era solteiro, e o dono da "pensão" onde ele morava
fornecia-lhe casa e comida a crédito, em atenção aos
belos tempos em que nele tivera o mais pontual dos locatários.

Cansado de oferecer em pura perda os seus serviços literários
a quanto jornal havia então no Rio de Janeiro, o Romualdo lembrou-se,
um dia, de procurar ocupação no comércio, abandonando
para sempre as suas veleidades de escritor público, os seus desejos
de consideração e renome.

Para isso, foi ter com um negociante rico, por nome Caldas, que tinha sido
seu condiscípulo no Colégio Vitório, a quem jamais ocupara,
embora ele o tratasse com muita amizade e o tuteasse, quando raras vezes se
encontravam na rua.

O negociante ouviu-o, e disse-lhe:

– Tratarei mais tarde de arranjar um emprego que te sirva; por enquanto preciso
da tua pena. Sim, da tua pena. Apareceste ao pintar! Foste a sopa que me caiu
no mel! Quando entraste por aquela porta, estava eu a matutar, sem saber a
quem me dirigisse para prestar-me o serviço que te vou pedir. Confesso
que não me tinha lembrado de ti… perdoa…

– Estou às tuas ordens.

– Preciso publicar amanhã, impreterivelmente, no Jornal do Comércio,
um artigo contra o Saraiva.

– Que Saraiva?

– O da rua Direita.

– O João Fernandes Saraiva?

– Esse mesmo.

– E queres tu que seja eu quem escreva esse artigo?

– Sim. Ganharás uns cobres que não te farão mal algum.

A essa palavra "cobres", o Romualdo teve um estremeção
de alegria; mas caiu em si:

– Desculpa, Caldas; bem sabes que o Saraiva é, como tu, meu amigo…
como tu, foi meu companheiro de colégio…

– Quando conheceres a questão que vai ser o assunto desse artigo,
não te recusarás a escrevê-lo, porque não admito
que sejas mais amigo dele do que meu. Demais, nota uma coisa: não quero
insultá-lo, não quero dizer nada que o fira na sua honra, quero
tratá-lo com luva de pelica. Sou eu o primeiro a lastimar que uma questão
de dinheiro destruísse a nossa velha amizade. Escreves o artigo?

– Mas…

– Não há mas nem meio mas! O Saraiva nunca saberá que
foi escrito por ti.

– Tenho escrúpulos…

– Deixa lá os teus escrúpulos, e ouve de que se trata. Presta-me
toda a atenção.

E o Caldas expôs longamente ao Romualdo a queixa que tinha do Saraiva.
Tratava-se de uma pequena questão comercial, de um capricho tolo que
só poderia irritar, um contra o outro, dois amigos que não conhecessem
o que a vida tem de áspero e difícil O artigo seria um desabafo
menos do brio que da vaidade, e, escrevendo-o, qualquer pena hábil
poderia, efetivamente, evitar uma injúria grave.

O Romualdo, que há muito tempo não pegava numa nota de cinco
mil-réis, e apanhara, na véspera, uma descompostura de lavadeira,
cedeu, afinal, às tentadoras instâncias do amigo, e no próprio
escritório deste redigiu o artigo, que satisfez plenamente.

– Muito bem! – exclamou o Caldas, depois de três leituras consecutivas.

– Se eu soubesse escrever, escreveria isto mesmo! Apanhaste perfeitamente
a questão!

E, depois de um passeio â burra, meteu um envelope na mão de
Romualdo, dizendo-lhe:

– Aparece-me daqui a dias: vou procurar o emprego que desejas. – A época
é difícil, mas há de se arranjar.

O Romualdo saiu, e, ao dobrar a primeira esquina, abriu sofregamente o envelope:
havia dentro uma nota de cem mil-réis! Exultou! Parecia-lhe ter tirado
a sorte grande!

Na manhã seguinte, o ex-jornalista pediu ao dono da "pensão"
que lhe emprestasse o Jornal do Comércio, e viu a sua prosa "Eu
e o sr. João Fernandes Saraiva" assinada pelo Caldas; sentiu alguma
coisa que se assemelhava ao remorso, o mal-estar que acomete o espírito
e se reflete no corpo do homem todas as vezes que este pratica um ato inconfessável,
e aquilo era uma quase traição. Entretanto almoçou com
apetite.

À sobremesa entrou na sala de jantar um menino, que lhe trazia uma
carta em cujo sobrescrito se lia a palavra "urgente".

Ele abriu-a e leu:

"Romualdo. – Preciso falar-lhe com a maior urgência. Peço-lhe
que dê um pulo ao nosso escritório hoje mesmo, logo que possa.
Recado do – João Fernandes Saraiva."

Este bilhete inquietou o ex-jornalista.

Com certeza, pensou ele, o Saraiva soube que fui eu o autor do artigo! Naturalmente
alguém me viu entrar em casa do Caldas, demorar-me no escritório…
desconfiou da coisa e foi dizer-lhe… Mas para que me chamará ele?

O seu desejo era não acudir ao chamado; alegar que estava doente,
ou não alegar coisa alguma, e lá não ir; mas o menino
de pé, junto à mesa do almoço, esperava a resposta…
Era impossível fugir!

– Diga ao seu patrão que daqui a pouco lá estarei.

O menino foi-se.

O Romualdo acabou a sobremesa, tomou o café, saiu, e dirigiu-se ao
escritório do Saraiva, receoso de que este o recebesse com duas pedras
na mão.

Foi o contrário. O amigo recebeu-o de braços abertos, dizendo-lhe:

– Obrigado por teres vindo! Estava com medo de que o pequeno não te
encontrasse! Vem cá!

E levou-o para um compartimento reservado.

– Leste o jornal do Comércio de hoje?

– Não – mentiu prontamente o Romualdo. – Raramente leio o Jornal do
Comércio.

– Aqui o tens; vê que descompostura me passou o Caldas!

O Romualdo fingiu que leu.

– Isso que aí está é uma borracheira, mas não
é escrito por ele! – bradou o Saraiva. – Aquilo é uma besta
que não sabe pegar na pena senão para assinar o nome!

– O artigo não está mau… Tem até estilo…

– Preciso responder!

– Eu, no teu caso, não respondia…

– Assim não penso. Preciso responder amanhã mesmo no próprio
Jornal ao Comércio e, se te chamei, foi para pedir-te que escrevas
a resposta.

– Eu?…

– Tu, sim! Eu podia escrever mas… que queres?… Estou fora de mim!…

– Bem sabes – gaguejou o Romualdo – que sou amigo do Caldas. Não me
fica bem…

– Não te fica bem, por quê? Ele com certeza não é
mais teu amigo que eu! Depois, não é intenção
minha injuriá-lo; quero apenas dar-lhe o troco!

No íntimo o Romualdo estava satisfeito, por ver naquele segundo artigo
um meio de atenuar, ou, se quiserem, de equilibrar o seu remorso.

Ainda mastigou umas escusas, mas o outro insistiu:

– Por amor de Deus não te recuses a este obséquio tão
natural num homem que vive da pena! Tu estás desempregado, precisas
ganhar alguma coisa…

O Romualdo cedeu a este último argumento, e, depois de convenientemente
instruído pelo Saraiva sobre a resposta que devia dar, pegou na pena
e escreveu ali mesmo o artigo.

Reproduziu-se então a cena da véspera, com mudança apenas
de um personagem. O Saraiva, depois de ler e reler o artigo, exclamou: – Bravo!
Não podia sair melhor! – e, tirando da algibeira um maço de
dinheiro, escolheu uma nota de duzentos mil-réis e entregou-a ao prosador.

– Oh! Isto é muito, Saraiva!

– Qual muito! Estás a tocar leques por bandurra: é justo que
te pague bem!

– Obrigado, mas olha: recomendo-te que mandes copiar o artigo, porque no
jornal pode haver alguém que conheça a minha letra.

– Copiá-lo-ei eu mesmo.

– Adeus.

– Adeus. Se o Caldas treplicar, aparece-me!

– Está dito.

No dia seguinte, o Caldas entrou muito cedo no quarto do Romualdo, com o
jornal do Comércio na mão.

– O bruto replicou! Vais escrever-me a tréplica!

E batendo com as costas da mão no jornal:

– Isto não é dele… Aquilo é incapaz de traçar
duas linhas sem quatro asneiras… mas ainda assim, quem escreveu por ele
está longe deter o teu estilo, a tua graça… Anda! Escreve!…

E o Romualdo escreveu…

Durante um mês teve ele a habilidade de alimentar a polêmica,
provocando a réplica, para que não estancasse tão cedo
a fonte de receita que encontrara. Para isso fazia insinuações
vagas, mas pérfidas, e depois, em conversa ora com um ora com outro,
era o primeiro a aconselhar a retaliação e o esforço.

Tanto o Caldas como o Saraiva se mostraram cada vez mais generosos, e o Romualdo
nunca em dias de sua vida se viu com tanto dinheiro. Ambos os contendores
lhe diziam: – Escreve! Escreve! Eu quero ser o último!

Por fim, vendo que a questão se eternizava, e de um momento para
o outro a sua duplicidade podia ser descoberta, o Romualdo foi gradualmente
adoçando o tom dos artigos, fazendo, por sua própria conta,
concessões recíprocas, lembrando a velha amizade, e com tanto
engenho se houve, que os dois contendores se reconciliaram, acabando amigos
e arrependidos de terem dito um ao outro coisas desagradáveis em letra
de forma.

E o público admirou essa polêmica, em que dois homens discutiam
com estilos tão semelhantes que o próprio estilo pareceu harmonizá-los.

O Caldas cumpriu a sua promessa: o Romualdo pouco depois entrou para o comércio,
onde ainda hoje se acha, completamente esquecido do tempo que perdeu no jornalismo.

A Ritinha

Naquela noite o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento penoso,
que não podia definir.

Tinham-lhe dito que estava no Rio de Janeiro a Ritinha, aquela interessante
menina que há trinta anos, lá na província, fora o seu primeiro amor e a sua
primeira mágoa.

Andou morto por vê-la, não que lhe restasse no coração nem no espírito outra
coisa senão a saudade que todos nós sentimos da infância e da adolescência,
– queria vê-la por mera curiosidade.

Satisfizera o seu desejo naquela noite, quando menos o esperava, num teatro.
Ela ocupava quase um camarote inteiro com a sua corpulência descomunal.

Mostrou-lha um comprovinciano e amigo:

– Não querias ver a Ritinha? Olha! Ali a tens!

– Onde?

– Naquele camarote.

– Quê! aquela velha gorda?…

– É a Ritinha!

– Virgem Nossa Senhora! – E aquele homem de óculos azuis, que está de pé,
no fundo do camarote? É o marido!

– Qual marido! É o genro, casado com a filha, aquela outra senhora muito
magra que está ao lado dela. O marido é o velhote que está quase escondido
por trás do enorme corpanzil da tua ex-namorada.

O Flores, estupefato, contemplou e analisou longamente aquela mulher, que
fora o seu primeiro amor e a sua primeira mágoa.

Não podia haver dúvida: era ela. O olhar tinha ainda coisa do olhar de outrora.
Com aqueles destroços ele foi reconstituindo mentalmente, peça por peça, a
estátua antiga. Tinha a visão exata do passado.

Representava-se uma comédia. Ritinha ria-se de tudo, de todas as frases,
de todos os gestos, de todas as jogralices dos atores com uma complacência,
de espectadora mal-educada e por isso mesmo pouco exigente.

Aquelas banhas flácidas, agitadas pelo riso, tremiam convulsivamente dentro
da seda do vestido, manchado pelo suor dos sovacos.

O genro, que se conservava sério e imperturbável, lançava-lhe uns olhos repreensivos
e inquietos através dos óculos azuis. Ela não dava por isso.

– Que diabo vieram eles fazer ao Rio de Janeiro? perguntou o Flores.

– Nada… apenas passear.. . estão de passagem para a Europa.

* * *

E aí está por que o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento que
não sabia definir.

Quando ele se espichou na cama estreita de solteirão, e abriu o livro que
o esperava todas as noites sobre o velador, não conseguiu ler uma página.
Todo o seu passado lhe afluía à memória.

Ele e Ritinha foram companheiros de infância. Eram vizinhos, – brincaram
juntos e juntos cresceram. Tinham a mesma idade.

Depois de dezessete anos, aquela afeição tomou, nele, nela não, um caráter
mais grave: transformou-se em amor.

Mas Ritinha era já uma senhora e Flores ainda um fedelho.

Como o desenvolvimento fisiológico da mulher é mais precoce que o do homem,
raro é o moço que ao desabrochar da vida não teve amores malogrados.

Foi o que sucedeu ao nosso Flores. Ritinha não esperou que ele crescesse
e aparecesse: tendo-se-lhe apresentado um magnífico partido, fez-se noiva
aos dezoito anos.

O desespero do rapaz foi violento e sincero. Ele era ainda um criançola,
mas tinha a idade de Romeu, a idade em que já se ama.

Um pensamento horroroso lhe atravessou o cérebro: assassinar Ritinha e em
seguida suicidar-se.

Premeditou e preparou a cena: comprou um revólver, carregou-o com seis balas,
e marcou para o dia seguinte a perpetração do atentado.

Deitou-se, e naturalmente passou toda a noite em claro.

Ergueu-se pela manhã, vestiu-se, apalpou a algibeira e não encontrou a arma.

– Oh!

Procurou-a no chão, atrás do baú, por baixo da cômoda: nada!

* * *

– Para que precisas tu de um revólver, meu filho? perguntou a mãe do rapaz,
entrando no quarto.

– Está com a senhora?

– Está.

– Mas como soube…?

– As mães adivinham.

Flores não disse mais nada: caiu nos braços da boa senhora, e chorou copiosamente.

Ela, que conhecia os amores do filho, deixou-o chorar a vontade; depois,
enxugou-lhe os olhos com os seus beijos sagrados, e perguntou-lhe:

– Que ias tu fazer, meu filho? Matar-te?

– Sim, mas primeiro matá-la-ia também!

– E não te lembraste de mim?… não te lembraste de tua mãe?…

– Perdoe.

E nova torrente de lágrimas lhe inundou a face.

– Ouve meu filho: na tua idade feliz um amor cura-se com. outro. O que neste
momento se te afigura uma desgraça irremediável, mais tarde se converterá
numa recordação risonha e aprazível. Se todos os moços da tua idade se matassem
por causa disso, e matassem também as suas ingratas, há muito tempo que o
mundo teria acabado. Raros são os que se casam Com a sua primeira namorada.
O que te sucedeu não é a exceção, é a regra. O mal de muitos consolo é.

– Eu quisera que Ritinha não pertencesse a nenhum outro homem!

– Matá-la? Para quê? Ela desaparecerá sem morrer… nunca mais terá dezoito
anos… A idade transforma-nos tal qual a morte. Não imaginas como tua mãe
foi bela!

O velho Flores, pai do rapaz, informado por sua mulher do que se passara,
e receoso de que o filho, impulsivo por natureza, praticasse algum desatino,
resolveu mandá-lo para o Rio de Janeiro, onde ele chegou meses antes do casamento
de Ritínha.

* * *

Naquela noite o Flores, quase qüinquagenário, chefe de repartição, lembrava-se
das palavras maternas e reconhecia quanta verdade continham.

Ainda naquele momento sua mãe, que há tantos anos estava morta, parecia falar-lhe,
parecia dizer-lhe:

– Não te dizia eu?

– E que impressão receberia Ritinha se me visse? pensou ele. Também eu sou
uma ruína…

* * *

O Flores apagou a vela, adormeceu e sonhou com ambas as Ritinhas, a do passado
e a do presente.

Dali por diante, todas as vezes que encontrava esta última, dizia consigo:

– Olhem se eu a tivesse matado!

A TIA ANINHA

Ainda há poucos anos havia, numa das capitais do Norte, uma velhinha
pobre, paupérrima que não mendigava, mas aceitava o agasalho
que lhe davam algumas famílias compassivas, passando um mês aqui,
outro ali, quinze dias acolá. Uma bela manhã chegava com sua
lata de folha (tudo quanto possuía) e aboletava-se entre afagos e sorrisos
de boa-vinda.

– Seja bem aparecida, tia Aninha! O seu quarto lá está, tem
sua cama preparada! Mas desta vez demore-se mais tempo: você a ninguém
incomoda nesta casa, nem aumenta a despesa: fique o tempo que quiser.

Mas a tia Aninha, quando suspeitava que a sua presença ia se tornando
aborrecida, levantava o vôo e partia, com a sua lata de folha, para
alojar-se noutra parte.

Era uma velhinha alegre, mas de uma alegria que nenhum observador experimentado
acharia natural e sincera.

As crianças adoravam-na, porque ela sabia contar-lhes muitas histórias
bonitas de fadas e lobisomens – e aí está um dos motivos por
que a tia Aninha, depois de prolongada ausência, era sempre bem recebida,
com a sua lata de folha.

*

Foi numa dessas casas hospitaleiras que a encontrei um dia (antes a não
encontrasse!), rodeada de fedelhos boquiabertos e ofegantes. Interessou-me
aquele rosto enrugado e macilento, em que julguei descobrir vestígios
de um passado cheio de peripécias e vicissitudes.

A velha boêmia simpatizou comigo, pelo que, aliás nenhum merecimento
me atribui, porque ela – coitadinha! – simpatizava com toda a gente. Nas suas
palavras, nos seus gestos e nos seus olhares, que brilhavam ainda através
de duas pequeninas frestas esquecidas entre as pálpebras, nunca ninguém
descobriu a menor prevenção contra pessoa alguma.

Não pertencia ao tipo, muito comum no Brasil e creio que em toda a
parte, da velha parasita, que anda de lar em lar, de alcova a alcova, trazendo
e levando enredos, novidades e mexericos, dando fé do que se passa
em casa de Fulano para chalrar em casa de Beltrano, adulando as donas e seduzindo
as donzelas, embiocada e devotada.

Como lhe mentissem, dizendo que eu era romancista, a tia Aninha me declarou,
sorrindo, que a sua vida tinha sido um verdadeiro romance, e essa declaração
me levou (antes não levasse!) a revolver aquelas cinzas, curioso de
se embaixo delas crepitavam ainda as derradeiras brasas.

Crepitavam; mas a história da tia Aninha era vulgaríssima,
sem incidentes excepcionais nem grandes lances e surpresas do acaso. Se ela
imaginava que aquilo daria um romance, não fazia mais do que fazem
todos os indivíduos para quem o mundo não foi um mar de rosas.
Não há criatura infeliz que não esteja persuadida que
da sua existência se faria a mais interessante das novelas.

Nascera a tia Aninha pouco depois da independência. Era filha única
de um negociante português, sofrivelmente apatacado. A sua vida correu
pacifica e serena até os vinte anos. Foi nessa idade que o seu coração
falou: ela apaixonou-se por um caixeiro do pai.

A mãe que desejava ser sogra de um príncipe, descobrindo um
dia esses amores, que aliás duravam, havia já dois anos, foi
ter com o marido e disse-lhe tudo.

O negociante enfureceu-se; pôs imediatamente no andar da rua o mísero
subalterno que se atrevia a levantar os olhos tão alto, e andou por
o todo bairro comercial a pedir de porta em porta que ninguém o arrumasse.
O rapaz ficou, portanto, incompatibilizado com a praça, e resolveu
partir para o Rio de Janeiro, procurando no Sul a fortuna que lhe fugia no
Norte. Partiu.

Partiu, mas antes disso, prometeu, por intermédio de uma boa amiga
da moça, guardar-lhe fidelidade, e voltar um dia, quando melhorasse
de posição, e de haveres, para casar-se com ela.

Prometeu igualmente escrever-lhe por todos os correios, promessa que cumpriu,
graças ainda ao gracioso intermédio da amiga, que recebia as
cartas, embora endereçadas à tia Aninha.

Isto passava-se em 1844. Durante dois anos vieram cartas por todos os correios.
Nas penúltimas, o moço queixava-se, em caracteres trêmulos,
de que se sentia muito enfermo, e nas últimas que eram lacônicas,
escritas sob um esforço violento e visível já não
falava um doente mas um moribundo. "Talvez seja esta a minha última
carta" escreveu ele um dia – e a moça não recebeu mais
nenhuma.

Dois ou três meses depois o pai friamente, à mesa do jantar,
deu-lhe a notícia da morte do noivo.

A pobrezinha contava já vinte e seis anos. Se até então
repelira todas as propostas de casamento que lhe foram feitas pelo pai, dali
por diante não admitiu que lhe falassem mais nisso.

O velho, depois de se meter imprudentemente numa arriscada especulação
de açúcares, faliu em 1850, e alguns meses depois desaparecia,
fulminado por uma congestão.

Mãe e filha ficaram reduzidas à pobreza extrema. Os amigos
de outrora, sumiram-se, afugentados pelo aspecto da miséria.

Em 1855 redobraram ainda os infortúnios de Aninha, com a morte da
mãe, vítima do cólera-morbo.

Datavam dessa época a sua vida de boêmia e a sua lata de folha.
Tinha então apenas trinta e três anos, mas não lhe davam
menos de cinqüenta tais foram os estragos causados pelo sofrimento.

*

Quando a tia Aninha acabou de me contar todas essas coisas, uma tarde em
que por acaso nos achamos sozinhos, num dos seus asilos habituais, no jardim,
à sombra de uma latada, não me atrevi a dizer-lhe que na sua
existência de viúva-virgem não havia matéria para
um romance, a menos que o talento e a imaginação do romancista
suprissem o que lhe faltava. Entretanto, proferi esta frase, que continha
uma fórmula de consolação:

– A sua vida é, na realidade, um verdadeiro romance, tia Aninha; mas
creia que esse mesmo tem sido o romance de muitas mulheres.

– Oh! Se o senhor lesse as cartas que ele me escreveu! Só elas dariam
páginas e páginas. Era um simples caixeiro, mas muito inteligente.
Quer vê-las?

– O quê?

– As cartas!

– Ainda as conserva?

– Se ainda as conservo? São a minha fortuna. Vou buscá-las.

A velha ergueu-se, foi ao seu quarto, e pouco depois voltou trazendo a sua
inseparável lata de folha.

*

Li algumas das cartas: nada havia nelas de extraordinário, mas tinham,
relativamente, muito valor material, porque estavam todas seladas com os selos
das nossas primeiras emissões postais: o "olho de boi", o
"trezentos réis inclinados" e outros.

– Diz a senhora muito bem; a sua fortuna está nestas cartas! Saiba,
tia Aninha, que cada um destes selos vale centenas de mil réis!

A pobre velha, que ignorava a mania filatélica, não compreendeu:
foi preciso que eu lho explicasse.

Ela protestou:

– Desfazer-me das minhas cartas? Nunca!

– Não se desfaça das cartas; desfaça-se dos selos.

– Estes selos podem valer milhões! Não os venderei! Para que
preciso de dinheiro?

Deveria calar-me. Tenho remorsos de haver revelado ao dono da casa onde me
achava a existência dos selos da tia Aninha. Ele foi o primeiro a querer
comprá-los para negócio.

Pouco tardou que se espalhasse em toda a cidade a noticia de que a velha
possuía uma riqueza encerrada na sua lata de folha. Por fim, já
não se dizia que eram selos do correio, mas velhas moedas de ouro,
jóias raras e preciosíssimas, o diabo!

E era o seu tesouro tão cobiçado, tanta gente lhe falava nele
e manifestava o desejo de examiná-lo, que a tia Aninha, mais ciosa
da sua lata de folha que Harpagon do seu cofre, tinha pesadelos e alucinações
terríveis, vivia num contínuo sobressalto, não podia
dormir duas horas que hão despertasse aos gritos, sonhando que lhe
roubavam a sua querida lata, o seu travesseiro.

Agora havia empenhos para hospedá-la; aconselhavam-na a fazer testamento,
adulavam-na, perseguiam-na com uma solicitude que a desvairou, que lhe tirou
lentamente o raciocínio e a saúde.

Mais do que nunca não esquentava lugar, aparecia e logo desaparecia;
já não contava às crianças as suas bonitas histórias
de fadas e lobisomens; já não falava a ninguém no seu
romance, sem perceber, coitada! que o seu romance começava agora.

Os pequeninos, que dantes a adoravam, tinham medo dela, e os garotos apupavam-na
quando a mísera passava, com a desconfiança no olhar, desgrenhada,
andrajosa, descalça, faminta, apertando nos braços esqueléticos
a sua lata de folha, o seu travesseiro, o seu tesouro.

*

Uma noite em que a tia Aninha, vagabundeando à-toa, atravessava uma
praça deserta e silenciosa, foi assaltada por um malfeitor que a roubou,
depois de atordoá-la com uma paulada. Conduzida, algumas horas depois,
para um hospital, expirou pronunciando o nome do noivo, martirizada menos
pela paulada assassina que pela idéia de haver perdido as suas cartas
de amor.

A VIÚVA DO ESTANISLAU

Por ocasião da morte do marido, aquele pobre Estanislau, que, depois
de uma luta horrível, foi afinal vencido pela tuberculose, Adelaide
parecia que ia também morrer. Dizia-se que ela amava tanto o marido,
que fizera o possível para contrair a moléstia que o matou e
acompanhá-lo de perto no túmulo. Emagreceu a olhos vistos, e
toda a gente contava que, mais dia menos dia, Deus lhe fizesse a vontade;
mas o tempo, que tudo suaviza e repara, foi mais forte que a dor, e ano e
meio depois de enviuvar, Adelaide estava rubicunda e linda como não
estivera jamais. O Estanislau deixou-a paupérrima. O pobre rapaz não
contava arrumar a trouxa tão cedo, ou, por outra, não teve com
que preparar o futuro. Enquanto viveu, nada faltou em casa; depois que ele
morreu, tudo faltou, e Adelaide, que felizmente não tinha filhos, aceitou
a hospitalidade que lhe ofereceram seus pais. – Vem outra vez para o nosso
lado, disseram-lhe os velhos; façamos de conta que te não casaste.
Não tardou muito que aparecesse um namorado à viúva.
Era um excelente moço, o Miranda, que freqüentava a casa dos velhos
por ser funcionário da mesma secretaria onde o pai de Adelaide era
chefe. Foi com muita satisfação que este notou a simpatia que
o Miranda manifestava pela moça, e pulou de contente quando o rapaz,
um dia, na repartição, se abriu com ele, dizendo-lhe que ser
seu genro era o que mais ambicionava neste mundo. O velho foi para casa alegre
como um passarinho, e disse tudo à mulher. – Sabes, Henriqueta? O Miranda
confessou-me hoje que gosta da Adelaide e quer casar-se com ela. Estou satisfeitíssimo,
porque nossa filha não poderia encontrar melhor marido! Que me dizes?
– Digo que seu Miranda é uma sorte grande, mas duvido que Adelaide
aceite. – Duvidas, por quê? – Porque ela só pensa no Estanislau:
é uma viúva inconsolável. Engordou, tomou cores, goza
saúde, mas aposto que não admite que lhe falem noutro casamento.
– Deixe-a comigo; vou sondá-la. O velho sondou-a, efetivamente, e reconheceu
que D. Henriqueta calculava bem. – Não me fale em casamento, papai!
Eu considerar-me-ia uma mulher indigna se desse um substituto ao meu pobre
Estanislau! Mas o velho que não era peco, não se deixou vencer
e insistiu, lançando mão de quanto argumento lhe sugeriu a sua
longa experiência do mundo. – Minha filha, numa terra de maldizentes
como este Rio de Janeiro, a reputação de uma viúva moça
e bonita corre tantos perigos, que a melhor resolução que tens
a tomar, para fazer respeitar a memória honrada do teu Estanislau,
é casares-te em segundas núpcias. Uma única dificuldade
haveria para isso: o marido; mas neste particular, minha filha, foste de uma
fortuna fenomenal. O Miranda caiu-te do céu! Olha, eu, se tivesse que
escolher um genro, não escolheria outro -, e tu, se te casares com
ele, darás muito prazer a tua mãe, e tornarás feliz a
minha velhice. Essas palavras, que acabaram molhadas de lágrimas de
enternecimento, calaram no ânimo de Adelaide, e na mesma noite, como
a família se achasse reunida na sala de jantar, e o Miranda presente,
ela dirigiu-se a este nos seguintes termos: – Meu amigo, sei que o senhor
gosta muito de mim e deseja ser meu marido; sei que o nosso casamento daria
muita satisfação a meus pais; mas devo dizer-lhe que ainda amo
o Estanislau como se ele estivesse vivo, e não posso amar dois homens
ao mesmo tempo. Os velhos morderam os beiços; o Miranda remexeu-se
na cadeira, sem responder. – Sei também que o senhor é um perfeito
cavalheiro e que nada lhe falta para ser um marido ideal; aprecio o seu caráter,
a sua bondade, a sua inteligência; mas, se nos casarmos, não
poderei levar-lhe o sentimento que todo o homem tem o direito de exigir no
coração da sua noiva. Se depois desta declaração
leal e honesta, persiste em querer ser meu esposo, aqui tem a minha mão.
– Aceito-a! respondeu prontamente o Miranda, tomando a mão que lhe
estendeu Adelaide. Aceito-a, porque – perdoe a minha vaidade – tenho alguma
confiança no meu merecimento, e espero conquistar o seu amor! Casaram-se,
e hoje, que estão unidos há um ano, podem gabar-se – ela de
ter tido verdadeiras surpresas fisiológicas, e ele de ser amado como
o Estanislau nunca o foi. – Es então feliz, minha filha? – Muito feliz,
mamãe; o Miranda é tão bom marido, que, lá no
outro mundo, o Estanislau, se meteu a mão na consciência, com
certeza me perdoou.

AS ASNEIRAS DO GUEDES

Não é precisamente um conto o que hoje vou escrever.

Voltou do seu passeio a São Paulo o Guedes – o Guedes sabem? – o maior
asneirão que o sol cobre, aquele mesmo que respondeu aqui há
tempos quando numa roda lhe perguntaram se tinha filhos:

– Tenho uma filha já adúltera.

– Adúltera?!

– Sim, senhor, adúltera; vai fazer 17 anos.

– Adulta quer o senhor dizer…

– Ou isso. E uma boa menina; só tem um defeito: é muito luxuriosa.

– Luxuriosa?!

– Sim, senhor, luxuriosa: gosta muito de luxar.

– Ah!

– Mas lá está minha mulher para lhe dar bons conselhos… sim,
porque minha mulher é muito sensual.

– Sensual?!

– Sim, senhor, sensual: tem muito bom senso.

Pois é como lhes digo: tive o prazer de encontrar ontem esse precioso
Guedes, cujas asneiras, colecionadas, dariam um volume de trezentas páginas,
ou mais.

Eu estava num armarinho da rua do Ouvidor, onde entrava para cumprimentar
a minha espirituosa amiga D. Henriqueta, que andava, como sempre, fazendo
compras, enchendo-se de caixinhas e pequeninos embrulhos, adquiridos aqui
e ali:

O Guedes, mal que me viu, correu a dar-me um abraço, dizendo:

– Li no "O País" a notícia do seu aniversario…

E recuando dois passos, tomou uma atitude solene, deixou cair as pálpebras,
e acrescentou:

– Faço votos para que você tenha um futuro tão brilhante
como o que passou.

Agradeci comovido essa manifestação de apreço envolvida
num disparate, e apresentei o Guedes à minha espirituosa amiga D. Henriqueta,
que mordia os lábios para não rir.

– Apresento-lhe, minha senhora, o mais extraordinário reformador da
língua portuguesa: o Guedes, o grande Guedes, que acaba de chegar de
São Paulo, onde esteve a passeio.

– Era tempo de fazer uma viagem! – explicou ele. – Foi a primeira vez que
saí do Rio de Janeiro.

– Eu também não saí ainda desta cidade senão
para ir uma vez a Petrópolis e duas a Niterói – disse D. Henriqueta.

– Vejo então que a senhora é cortesã… – acudiu o Guedes
curvando os lábios no mais amável dos seus sorrisos.

– Cortesã?!

– Cortesã, sim… filha da Corte…

– Oh! Guedes! – observei baixinho. – Pois você não vê
que está dizendo uma inconveniência?

– Tem razão… Atualmente não se deve falar em Corte…

E emendou:

– Vejo então que a senhora é capitalista federalista.

D. Henriqueta desta vez riu-se a perder. É provável que ao
leitor não aconteça o mesmo. Paciência.

– Ó Guedes! Vamos lá! Diga-me! Que impressões trouxe
de São Paulo?

– Muito boas! Aquilo é uma grande terra!

– Dizem que há lá muita sociabilidade.

– Como?

– Muita convivência…

– Isso há… As famílias visitam-se… Ou moços coabitam
tom as moças.

– Ora essa!

– Que entende você por "coabitar"?

– E… é…

– É uma indecência… uma inconveniência… uma coisa
que não se diz!…

O Guedes inflamou-se:

– Está você muito enganado… "Coabitar" é…

E voltando-se para um dos caixeiros do armarinho:

– O senhor tem aí um dicionário que me empreste?

– Pois não?

E daí a dois minutos o Guedes tinha nas mãos os dois volumes
do Aulete.

– Muito bem! – disse eu. – Procure "coabitar".

Depois de folhear em vão o dicionário durante um ror de tempo,
o teimoso exclamou:

– Não dá! Não dá! Vejam…

– Perdão: você está procurando com u: deve ser com o!

– Tem razão, tem razão… Onde estava eu com a cabeça?

E o Guedes pôs-se de novo a folhear o Aulete.

– Não dá! Também não dá com o! Veja: de
coa para coação! Não dá com u nem com o!

Valha-o Deus, Guedes, valha-o Deus! Você está procurando sem
h? Dê cá o dicionário!

E com um sorriso de triunfo mostrei ao Guedes a significação
da palavra.

– Olhe, leia: "Coabitar, habitar, viver conjuntamente".

– Mas isso…

– Agora veja o que o Aulete acrescenta entre parênteses:

"Diz-se particularmente de duas pessoas de diferente sexo".

– Perdão! – bradou o Guedes furioso. – Perdão! Eu não
disse particularmente, mas alto e bom som, e só não me ouviu
quem não me quis ouvir!

E batendo com a mão espalmada sobre o balcão:

– Eu não sou homem que diga as coisas particularmente!

AS CEREJAS

– Que fazes tu aí parado? Estás a comer com os olhos aquelas
magníficas cerejas?

– Estou simplesmente a namorá-las, ou antes, a resolver-me… Os cobres
são tão curtos!.

– Gostas realmente de cerejas?

– Eu? Nem por isso! Prefiro qualquer outra fruta do nosso país! Mas
minha mulher dá o cavaquinho por elas, e não se me dava de lhe
levar aquelas, que têm boa cara.

– Pois compra-as, que diabo! Não são as cerejas que nos arruinam.

– Tens razão.

Esse ligeiro diálogo foi travado em frente ao mostrador de uma loja
de frutas, na Avenida, entre o Antunes e o seu velho amigo Martiniano.

O Antunes comprou as cerejas. O Martiniano despediu-se e foi tomar o bonde.

Aquele dispunha-se a fazer o mesmo, e já estava num ponto de parada,
esperando o elétrico de Vila Isabel, quando passou a Pintinha, um diabo
de uma mulher que ele não podia ver sem sentir imediatamente o imperioso
desejo de acompanhá-la, para reatar o fio de uma conversação
agradável que se interrompia de meses a meses.

Acompanhou-a.

Ela, quando o viu, disse-lhe com toda a franqueza:

– Que fortuna encontrar-te! Estava com muitas saudades tuas. Jantas hoje
comigo.

– Não admito desculpas, tanto mais que leio nos teus olhos que estás
morto por isso. Vou esperar-te em casa.

Meia hora depois, o Antunes subia as escadas da Pintinha. Esta, a primeira
coisa que fez foi tirar-lhe das mãos o embrulho que ele trouxera da
loja de frutas e desamarrá-lo.

– Que é isso? Cerejas? Como és amável! Não te
esqueceste da minha sobremesa predileta!

O Antunes pensou consigo: – guardado está o bocado para quem o come
– e pediu mentalmente perdão a dona Leopoldina, sua legítima
esposa.

Isto passava-se à tardinha, e era noite fechada quando as cerejas
foram alegremente comidas.

A hora em que o Antunes entrou no lar doméstico, já D. Leopoldina
estava deitada, mas não dormia ainda.

– Com efeito, Antunes! Já lhe tenho pedido um milhão de vezes
que não jante fora sem me prevenir! Esperei-o até às
7 horas!

– Perdoa, benzinho, fui desencaminhado por um amigo que me levou ao Pão
de Açúcar.

– Ao Pão de Açúcar?

– Sim, o Pão de Açúcar é um restaurante da Exposição.
Come-se ali muito bem, e o lugar é aprazível.

– Demais, eu estava doida por que você chegasse; nunca o esperei com
tanta impaciência!

– Por quê?

– Por causa das cerejas.

– Que cerejas?

– As tais que você comprou na Avenida para me trazer; você bem
podia tê-las mandado pelo "rápido" com o aviso de que
não vinha jantar. Onde estão elas?

– As cerejas?

– Sim, as cerejas!

– Mas como soubeste que eu…?

– Muito simplesmente. Saí para ir ao dentista, e quando voltava para
casa encontrei no bonde aquele teu amigo Martiniano, que me disse: "A
senhora vai ter hoje magníficas cerejas ao jantar; vi seu marido comprá-las
na Avenida. Ele disse-me que a senhora dá o cavaquinho por elas."
Onde as puseste? Na sala de jantar?

Já o Antunes tinha arranjado a mentira:

– Oh! diabo! E se não me falas não me lembrava! Deixei no bonde
o embrulho das cerejas!.

– Eu logo vi!…

D. Leopoldina voltou-se para o outro lado e não disse mais palavra.

No dia seguinte esteve amuada todo o dia, e só voltou às boas
quando o Antunes, entrando em casa às horas de jantar, lhe entregou
um embrulho de cerejas, dizendo:

– Estavam na estação.

Pobre D. Leopoldina! Se soubesse que a Pintinha…

ÀS ESCURAS

Havia baile naquela noite em casa do Cachapão, o famoso mestre de
dança, que alugara um belo sobrado na Rua Formosa, onde todos os meses
oferecia uma partida aos seus discípulos, sob condição
de entrar cada um com dez mil-réis.

D. Maricota e sua sobrinha, a Alice, eram infalíveis nesses bailes
do Cachapão.

D. Maricota era a velha mais ridícula daquela cidadezinha da província;
muito asneirona, mas metida a literata, sexagenária, mas pintando os
cabelos a cosmético preto, e dizendo a toda a gente contar apenas trinta
e cinco primaveras – feia de meter medo e tendo-se em conta de bonita, era
D. Maricota o divertimento da rapaziada.

Em compensação, a sobrinha, a Alice, era linda como os amores
e muito mais criteriosa que a tia.

O Lírio, moço da moda, que fazia sempre um extraordinário
sucesso nos bailes de Cachapão, namorava a Alice, e no baile anterior
lhe havia pedido… um beijo.

– Um beijo?! Você está doido, seu Lírio?! Onde? Como?
Quando?

– Ora! Assina você queira…

– Eu não dou; furte-o você se quiser ou se puder. Isto dizia
ela porque bem sabia que as salas estavam sempre cheias de gente, e a ocasião
não poderia fazer o ladrão.

Demais, D. Maricota, a velha desfrutável, que andava um tanto apaixonada
pelo moço, que aliás podia ser seu neto, tinha ciúmes
e não os perdia de vista.

Mas o Lírio, que era fértil em idéias extraordinárias,
combinou com um camarada, o Galvão, que este entrasse no corredor do
sobrado às 10 horas em ponto, e fechasse o registro do gás.

Se o Lírio bem o disse, melhor o fez o Galvão; mas ao namorado
saiu-lhe o trunfo às avessas, como vão ver.

Faltavam dois ou três minutos para as 10 horas, quando ele se aproximou
de Alice e murmurou-lhe ao ouvido:

– Aquela autorização está de pé?

– Que autorização?

– Posso furtar o beijo?

– Quando quiser.

– Bom; vamos dançar esta quadrilha.

Mas a velha D. Maricota levantou-se prontamente da cadeira em que estava
sentada e enfiou o braço no braço do moço, dizendo:

Perdão, seu Lírio! Esta quadrilha é minha! O senhor
já dançou uma quadrilha e uma valsa com Alice!

E arrastou o Lírio para o meio da sala.

De repente, ficou tudo às escuras.

Passado um momento de pasmo, D. Maricota agarrou-se ao pescoço do
Lírio e encheu-o de beijos, dizendo muito baixinho:

– Ingrato! Ingrato! Foi o meu bom amigo que apagou as luzes!

E aqui está como ao Lírio saiu o trunfo às avessas.

As Paradas

O Norberto, que a princípio aceitou com entusiasmo as paradas dos bondes
de Botafogo, é hoje o maior inimigo delas. Querem saber por quê? Eu lhes conto:

O pobre rapaz encontrou uma noite, na Exposição, a mulher mais bela e mais
fascinante que os seus olhos ainda viram, e essa mulher – oh, felicidade!…
oh, ventura!… -, essa mulher sorriu-lhe meigamente e com um doce olhar convidou-o
a acompanhá-la.

O Norberto não esperou repetição do convite: acompanhou-a.

Ela desceu a Avenida dos Pavilhões, encaminhou-se para o portão, e saiu como
quem ia tomar o bonde; ele seguiu-a, mas estava tanto povo a sair, que a perdeu
de vista.

Desesperado, correu para os bondes, que uns seis ou sete havia prontos a
partir, e subiu a todos os estribos, procurando em vão com os olhos esbugalhados
a formosa desconhecida.

– Provavelmente foi de carro, pensou o Norberto, que logo se pôs a caminho
de casa.

Deitou-se mas não pôde conciliar o sono: a imagem daquela mulher não lhe
saía da mente. Rompia a aurora quando conseguiu adormecer para sonhar com
ela, e no dia seguinte não se passou um minuto sem que pensasse naquele feliz
encontro.

Daí por diante foi um martírio. O desditoso namorado começou a emagrecer,
muito admirado de que lhe causassem tais efeitos um simples olhar e um simples
sorriso.

Passaram-se alguns dias e cada vez mais crescia aquele amor singular, quando
uma tarde – oh, que ventura!… oh, que felicidade!… -, uma tarde passeando
no Catete, o Norberto vê, num bonde das Laranjeiras, a dama da Exposição.
Ela não o viu.

O pobre-diabo fez sinal ao condutor para parar, mas por fatalidade o poste
da parada estava muito longe e o bonde não parou. E não haver ali à mão um
tílburi, uma caleça, um automóvel!…

O Norberto deitou a correr atrás do bonde, mas só conseguiu esfalfar-se.
Que pernas humanas haverá tão rápidas como a eletricidade?

Esse novo encontro acendeu mais viva chama no peito do Norberto, e não tiveram
conta os passeios que ele deu do Largo do Machado às Águas Férreas, na esperança
de ver a sua amada e falar-lhe.

Oito dias depois, o Norberto percorria de bonde, pela centésima vez, as Laranjeiras,
quando, nas alturas do Instituto Pasteur, viu passar – oh, felicidade!…
oh, ventura!… -, viu passar na rua a mulher que tanto o sobressaltava.

– Pare! pare!… gritou ele ao condutor.

– Aqui não posso; vamos ao poste de parada!

O Norberto quis descer, mas a rapidez com que o bonde rodava era tamanha,
que não se atreveu.

Chegando ao poste de parada, ele atirou-se à rua, e deitou a correr para
o lugar onde vira a mulher, mas, onde estava ela? Tinha desaparecido!.

Aí está por que o Norberto é hoje o maior inimigo das paradas.

ASA NEGRA

Quando, em 185… poucos momentos antes de nascer Raimundo, sua mãe
curtia as dores do parto e curvava-se instintivamente, agarrando-se aos móveis
e às paredes, mandaram chamar a toda pressa a única parteira
que naquele tempo havia na pequena cidade de Alcântara.

A comadre prodigalizava, naquele momento, os cuidados da sua arte hipotética
à mãe de Aureliano, que era mais rica.

Só algumas horas mais tarde pôde acudir ao chamado; mas já
não era tempo: a mãe sucumbira à eclampsia; o filho salvara-se
por um milagre, que ficou até hoje gravado na tradição
obstétrica de Alcântara.

O pobre órfão devia sofrer, enquanto vivesse, as terríveis
conseqüências, não só da inépcia das mulheres
que assistiram a sua mãe, como do falecimento desta. Era aleijado,
entanguecido, e tinha a cabeça singularmente achatada, nas cavidades
frontais, pela pressão grosseira de dedos imperitos. Um menino feio,
muito feio.

* * *

Quando Raimundo entrou para a escola, já lá encontrou Aureliano,
rapazito lindo, vigoroso e rubicundo; mas uma antipatia invencível
afastou-o logo desse causador involuntário dos infortúnios que
lhe cercaram o berço.

Aureliano, que era de um natural orgulhoso, não perdia ensejo de vingar-se
da antipatia do outro. Não houve diabrura de que o não acusasse
falsamente, e, como Raimundo não era estimado, por ser feio, não
encontrava defesa, e estendia resignado a mão pequenina às palmatoadas
estúpidas do mestre escola. Isto acontecia diariamente.

O mestre, afinal. cansado de castigá-lo em pura perda, pois que as
acusações continuavam da parte de Aureliano, expulsou-o da escola;
e, como não houvesse outra em Alcântara, o bode expiatório
cresceu à bruta, sem instrução, não tendo achado
no mundo espírito compadecido que lhe levasse um raio de luz à
treva da inteligência medíocre.

Mais tarde meteram-no a bordo de um barco, e mandaram-no para a capital,
consignado a uma casa de comercio.

Aí encontrou Raimundo um protetor desinteressado, que lhe mandou ensinar
primeiras letras e rudimentos de escrituração mercantil. A prática
faria o resto.

Dentro de algum tempo o menino, que já contava dezesseis anos, deveria
entrar, corno ajudante de guarda-livros, para certo escritório de comissões;
mas oito dias antes daquele em que devia tomar conta do emprego, morreu inesperadamente
o seu protetor.

Entretanto, Raimundo apresentou-se, no dia aprasado, em casa do futuro patrão.

– Cá estou eu.

– Quem é você?

– O ajudante de guarda-livros de quem lhe falou o defunto Sr. F.

– Ah! sim… lembra-me… mas o meu amiguinho chore na cama que é
lugar quente; o serviço não podia esperar, e eu tive que admitir
outra pessoa.

E apontou para um rapaz que, sentado, em mangas de camisa, a uma carteira
elevada, parecia absorvido pelo trabalho de escrita.

– Ah! murmurou despeitado o infeliz alcantarense.

O outro levantou os olhos, e Raimundo reconheceu-o: era Aureliano, que tinha
os lábios arqueados por um sorriso verdadeiramente satânico.

* * *

Passaram-se alguns meses, durante os quais Raimundo passeou a sua penúria
pelas ruas de S. Luís. Andava maltrapilho e quase descalço.

Arranjou, afinal, um modesto emprego braçal, numa agência de
leilões. Só quatro anos mais tarde julgou prudente trocá-lo
por um lugar de condutor de bonde.

Durante todo esse tempo, Aureliano, o seu asa-negra, moveu-lhe toda a guerra
possível. Diariamente lhe chegavam aos ouvidos os impropérios
gratuitos e as pequeninas intrigas do seu patrício.

Raimundo convenceu-se de que Aureliano, rapaz simpático e geralmente
estimado na sociedade em que ambos viviam, nascera no mesmo momento em que
ele, como um estorvo ao mecanismo da sua existência. Era o seu asa-negra.

* * *

Foi no bonde que Raimundo viu pela primeira vez os olhos negros e inquietos
de Leopoldina.

Não se descreve a paixão que lhe inspirou essa morena bonita,
cujos contornos opulentos causariam inveja às louras napéias
de Rúbens. A rapariga tinha nos olhos a altivez selvagem e nos lábios
a volúpia ingênita das mamelucas. O seu cabelo grosso, abundante
e negro, prendia-se, enrolado no descuido artístico das velhas estátuas
gregas, deixando ver um cachaço que estava a pedir, não os beijos
de um Raimundo anêmico e doentio, porém as rijas dentadas de
um gigante.

Pois Raimundo, que não era nenhum Polifemo, um belo dia conduziu ao
altar a mameluca bonita, e até o instante da cerimônia esteve,
coitado, vê não vê o momento em que Aureliano surgia inopinadamente
de trás do altar-mor, para arrebatar-lhe a noiva.

Infelizmente assim não sucedeu.

Nos primeiros tempos de casado, tudo lhe correu às mil maravilhas;
mas pouco a pouco a sua insuficiência foi se tornando flagrante. O seu
organismo fazia prodígios para corresponder às exigências
da esposa, cuja natureza não lhe indagava das forças.

As mulheres ardentes e mal-educadas, como Leopoldina, quando lhe faltam os
maridos com a dosimetria do amor, confundem a miséria do sangue com
a pobreza da casa. Questão de disfarçar sentimentos, e de aplicar
o abstrato ao concreto. Leopoldina, que até então se contentara
com a aurea mediocritas relativa do condutor de bonde, começou um dia
a manifestar apetites de luxo, a sonhar frandulagens e modas.

De então em diante tornou-se um inferno a existência doméstica
de Raimundo. Ano e meio depois de casado, ele evitava a convivência
da esposa, jantava com os amigos, e só aparecia em casa para pedir
ao sono forças para o trabalho do dia seguinte.

* * *

Mas, de uma feita em que se viu forçado a ir à casa em hora
desacostumada, surpreendeu Leopoldina nos braços hercúleos de
Aureliano.

Excitado pelo desespero, cresceu para eles frenético, espumante; mas
os quatro braços infames desentrelaçaram-se das criminosas delicias,
e repeliram-no vigorosamente.

O pobre marido rolou sobre os calcanhares, e caiu de chapa, estatelado, sem
sentidos.

Quando voltou a si, os dois amantes haviam desaparecido.

Raimundo não derramou uma lágrima, e voltou cabisbaixo para
o trabalho.

Ao chegar à estação dos bondes, o chefe de serviço
repreendeu-o, fazendo-lhe ver que a sua falta se tornara sensível.
Despedi-lo-ia, se não fosse empregado antigo, que tão boas provas
dera até então de si.

O alcantarense ergueu a cabeça. Os olhos desvairados saltavam-lhe
das órbitas com lampejos estranhos. E respondeu coisas incoerentes.
Estava doido.

Dali a uma semana, foi para Alcântara, requisitado por um tio, derradeiro
destroço de toda a família.

Pouco tempo durou, iludindo a vigilância do parente, saiu de casa uma
noite, e atirou-se ao mar, afogando consigo as suas desgraças nas águas
da Baía de São Marcos.

* * *

Dois dias depois deste suicídio, a Ilha do Livramento, árido
promontório situado perto de Alcântara, em frente àquela
Baia de São Nilarcos, regurgitava alegremente de povo. Realizava-se
a festa de Nossa Senhora, e os fiéis afluíam, tanto da capital
como de Alcântara, à velha ermida solitária.

Aureliano, alcantarense da gema e figura obrigada de todas as festas e romarias,
compareceu também ao arraial, exibindo publicamente a sua personalidade,
que se tornara escandalosa depois do adultério de Leopoldina.

No Maranhão as paredes não têm somente ouvidos, como
diz o adágio: têm também olhos.

* * *

Conquanto o céu anunciasse próxima borrasca, Aureliano resolveu
deixar a Ilha do Livramento e embarcar, ao escurecer, numa delgada canoa,
em demanda de Alcântara, onde tencionava pernoitar. A empresa era sem
dúvida arriscada; mas lá, na colina escura que se refletia vagamente
nas águas negras da baía, esperam-no os braços roliços
da viúva do doido.

Embarcou.

Acompanhava-o apenas um remador, que desde pela manhã tomara a seu
serviço.

* * *

Em meio da viagem, soprou de súbito rijo nordeste, e o mar, que até
então se conservara plácido e próspero, encapelou-se
raivoso. Em três minutos as ondas esbravejavam já terrivelmente,
e a canoa, erguida a grande altura, e de novo arremessada ao pélago,
num estardalhaço de vagas, recebia no bojo quantidade de água
suficiente para metê-la a pique.

– Cada um cuide de si! bradou o remador, atirando-se ao mar, e oferecendo
combate heróico à impetuosidade das ondas. Nadava que nem Leandro.

Aureliano viu-se perdido. A canoa mergulhava. Ele não sabia nadar,
o desgraçado! Preparou-se para morrer…

A embarcação submergiu-se.

O náufrago agitava instintivamente os braços e as pernas, esperando
talvez que o desespero lhe ensinasse milagrosamente uma prenda que nunca aprendera.

Debalde!

Foi ao fundo, vertiginosamente. Voltou de novo à tona d’água,
chamado à vida pelo seu sangue de moço. Bracejou… tentou bracejar…
A sua mão encontrou alguma coisa fria. muito fria… que flutuava.
Agarrou-se a esse objeto salvador… boiou muito tempo com ele… e com ele
finalmente foi arremessado à praia…

O cadáver de Raimundo salvara Aureliano.

(Contos Possíveis)

Assunto Para um Conto

Como sou um contador de histórias, e tenho que inventar um conto por semana,
sendo, aliás, menos infeliz que Scherazada, porque o público é um sultão Shariar
menos exigente e menos sanguinário que o das Mil e Urna Noites, sou constantemente
abordado por indivíduos que me oferecem assuntos, e aos quais não dou atenção,
porque eles em geral não têm uma idéia aproveitável.

Entre esses indivíduos há um funcionário aposentado, que na sua roda é tido
por espirituoso, o qual, todas as vezes que me encontra, obriga-me a parar,
diz-me, invariavelmente, que estou ficando muito preguiçoso, e, com um ar
de proteção, o ar de um Mecenas desejoso de prestar um serviço que aliás não
lhe foi pedido, conclui, também invariavelmente:

– Deixe estar, que tenho um magnífico assunto para você escrever um conto!
Qualquer dia destes, quando eu estiver de maré, lá lh’o mandarei.

Há dias, tomando o bonde para ir ao Leme espairecer as idéias, sentei-me
por acaso ao lado do meu Mecenas, que na forma do costume começou por invectivar
a minha preguiça, e prosseguiu assim:

– Creio que já lhe disse que tenho um assunto para o amiguinho escrever um
conto…

– Já m’o disse mais de vinte vezes!

– Qualquer dia lá lh’o mandarei.

– Não! Há de ser agora! O senhor tem me prometido esse assunto um rol de
vezes, e não cumpre a sua promessa. Nós vamos a Copacabana, estamos ao lado
um do outro, temos multo tempo… Venha o assunto!…

– Não; agora não!

– Pois há de ser agora, ou então convenço-me de que tal assunto não existe,
e o senhor mentiu todas as vezes que m’o prometeu!

– Ora essa!

– Sim, que o senhor tem feito como aquele cidadão que prometia ao Eduardo
Garrido, todas as vezes que o encontrava, um calembour para ser encaixado
na primeira peça que ele escrevesse. Até hoje o Garrido espera pelo calembour!

– Eu tenho o assunto do conto, explicou o Mecenas, mas queria escrevê-lo…

– Para quê? Basta que m’o exponha verbalmente.

– Então lá vai: é a história de uma herança falsa, um sujeito residente na
Espanha escreve a outro sujeito residente no Rio de Janeiro uma carta dizendo
que morreu lá um homem podre de rico, chamado, por exemplo, D. Ramon, e que
esse homem não deixou herdeiros conhecidos: a herança foi toda recolhida pela
nação; mas o tal sujeito residente na Espanha, que é um finório, manda dizer
ao tal sujeito residente no Rio de Janeiro, que é um simplório, que existem
aqui herdeiros, cujos nomes ele não revelará ao simplório sem que este mande
pelo correio tantas mil pesetas. O simplório manda-lhe o dinheiro, e fica
eternamente à espera dos nomes dos herdeiros. – Que tal?

– Muito bom!

– Você não acha aproveitável este assunto?

– Acho-o magnífico, interessantíssimo, espirituoso! Tanto assim que vou escrever
o conto e publicá-lo no próximo número d’O Século!

– Ora, ainda bem! Quando lhe faltar assunto, venha bater-me à porta: o que
não me falta é imaginação!

– Muito obrigado; não me despeço do favor.

Como vê o leitor, aproveitei o assunto do imaginoso Mecenas.

BANHOS DE MAR

Manuel Antônio de Carvalho Santos,

Negociante dos mais acreditados,

Tinha, em sessenta e tantos,

Uma casa de secos e molhados

Na Rua do Trapiche. Toda a gente

– Gente alta e gente baixa –

O respeitava. Merecidamente:

A sua firma era dinheiro em caixa.

Rubicundo, roliço,

Era já outoniço,

Pois há muito passara dos quarenta

E caminhava já para os cinqüenta.

O bom Manuel Antônio

(Que assim era chamado),

Quando do amor o deus (Deus ou demônio,

Porque como um demônio os homens tenta,

Trazendo-os num cortado)

Fê-lo gostar deveras

De uma menina que contava apenas

Dezoito primaveras,

E na candura de anjo

Causava inveja às próprias açucenas.

Tinha a menina um namorado, é certo;

Porém o pai, um madeireiro esperto,

Que no outro viu muito melhor arranjo,

Tratou de convencê-la

De que, aceitando a mão que lhe estendia

Manuel Antônio, a moça trocaria

De um vaga-lume a luz por uma estrela

Ela era boa, compassiva, terna,

E havia feito ao moço o juramento

De que a sua afeição seria eterna;

Porém dobrou-se à lógica paterna

Como uma planta se dobrara ao vento.

Sabia que seria

Tempo perdido protestar; sabia

Que, na opinião do pai, o casamento

Era um negócio e nada mais. Amava;

Sentia-se abrasada em chama viva;

Mas… tinha-se na conta de uma escrava,

Esperando, passiva,

Que um marido qualquer lhe fosse imposto,

Contra o seu coração, contra o seu gosto.

Calou-se. Que argumento

Podia a planta contrapor ao vento?

No dia em que a notícia

Do casamento se espalhou na praça,

A Praia Grande inteira achou-lhe graça

E comentou-a com feroz malícia,

E na porta da Alfândega,

E no leilão do Basto

Outro caso não houve era uma pândega!

Que às línguas fornecesse melhor pasto

Durante uma semana, ou uma quinzena,

Pois em terra pequena

Nenhum assunto é facilmente gasto,

E raramente um escândalo se pilha.

Quando um dizia: – A noiva do pateta

Podia muito bem ser sua filha,

Logo outro exagerava: – Ou sua neta!

O moço desdenhado,

Que na tesouraria era empregado,

E metido a poeta,

Durante muito tempo andou de preto,

Co’a barba por fazer, muito abatido;

Mas, se a barba não fez, fez um soneto,

Em que chorava o seu amor perdido.

D0 barbeiro esquecido

Só foi à loja, e vestiu roupa clara,

Depois que a virgem que ele tanto amara

Saiu da igreja ao braço do marido.

Pois, meus senhores, o Manuel Antônio

Jamais se arrependeu do matrimônio;

Mas, passados três anos,

Sentiu que alguma coisa lhe faltava:

Não se realizava

O melhor dos seus planos.

Sim, faltava-lhe um filho, uma criança,

Na qual pudesse reviver contente,

E este sonho insistente,

E essa firme esperança

Fugiam lentamente.

À proporção que os dias e os trabalhos

Seus cabelos tornavam mais grisalhos.

Recorreu à Ciência:

Foi consultar um médico famoso,

De muita experiência,

E este, num tom bondoso,

Lhe disse: – A Medicina

Forçar não pode a natureza humana.

Se o contrário imagina,

Digo-lhe que se engana.

Manuel Antônio, logo entristecido,

Pôs os olhos no chão; mas, decorrido

Um ligeiro intervalo,

O médico aduziu, para animá-lo:

– Todavia, Verrier, se não me engano,

Diz que os banhos salgados

Dão belos resultados…

Experimente o oceano! –

No mesmo dia o bom Manuel Antônio,

Á vista de juízo tão idôneo,Tinha
casa alugada

Lá na Ponta d’Areia,

Praia de banhos muito freqüentada,

Que está do porto à entrada

E o porto aformoseia.

Nessa praia, onde um forte

Do séc’lo dezessete

Tem tido vária sorte

E medo a ninguém mete;

Nessa praia, afamada

Pela revolta, logo sufocada

De um Manuel Joaquim Gomes,

Nome olvidado, como tantos nomes;

Nessa praia que… (Vide o dicionário

Do Doutor César Marques) nessa praia,

Passou três meses o qüinquagenário,

Com a esposa e uma aia.

Não sei se coincidência

Ou propósito foi: o namorado

Que não tivera um dia a preferência,

Maldade que tamanhos

Ais lhe arrancou do coração magoado,

Também se achava a banhos

Lá na Ponta d’Areia…

Creia, leitor, ou, se quiser, não creia:

Manuel Antônio nunca o viu; bem cedo,

Sem receio, sem medo

De deixar a senhora ali sozinha,

Para a cidade vinha

Num escaler que havia contratado,

E voltava à tardinha.

Tempos depois – marido afortunado!

Viu que a senhora estava de esperanças…

Ela teve, de fato,

Duas belas crianças,

E o bondoso doutor, estupefato,

Um ótimo presente,

Que o pagou larga e principescamente!

Viva o banho de mar! ditoso banho!

Dizia, ardendo em júbilo, o marido.

– Eu pedia-lhe um filho, e dois apanho!

Doutor, meu bom doutor, agradecido!

Pouco tempo durou tanta ventura;

Fulminado por uma apoplexia,

Baixou Manuel Antônio à sepultura.

O desdenhado moço um belo dia

A viúva esposou, que lhe trazia

Amor, contos de réis e formosura.

E no leilão do Basto

Diziam todos os desocupados

Que nunca houve padrasto

Mais carinhoso para os enteados.

(Contos em Verso)

BLACK

Leandrinho, o moço mais elegante e mais peralta do bairro de São
Cristóvão, freqüentava a casa do Senhor Martins, que era
casado com a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro.

Mas, por uma singularidade notável, tão notável que
a vizinhança logo notou, Leandrinho só ia à casa do Senhor
Martins quando o Senhor Martins não estava em casa.

Esperava que ele saísse e tomasse o bonde que o transportava à
cidade, quase à porta da sua repartição; entrava no corredor
com a petulância do guerreiro em terreno conquistado, e Dona Candinha
(assim se chamava a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro) introduzia-o
na sala de visitas, e de lá passavam ambos para a alcova, onde os esperava
o tálamo aviltado pelos seus amores ignóbeis.

A ventura de Leandrinho tinha um único senão: havia na casa
um cãozinho de raça, um bull-terrier, chamado Black, que latia
desesperadamente sempre que farejava a presença daquele estranho.

Dir-se-ia que o inteligente animal compreendia tudo e daquele modo exprimia
a indignação que tamanha patifaria lhe causava.

Entretanto, o inconveniente, foi remediado. A poder de carícias e
pães-de-ló, a pouco e pouco logrou o afortunado Leandrinho captar
a simpatia de Black, e este, afinal, vinha aos pulos recebê-lo à
porta da rua, e acompanhava-o no corredor, saltando-lhe às pernas,
lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta
e curva.

As mulheres viciosas e apaixonadas comprazem-se na aproximação
do perigo; por isso, Dona Candinha desejava ardentemente que Leandrinho travasse
relações de amizade com o Senhor Martins.

Tudo se combinou, e uma bela noite os dois amantes se encontraram, como por
acaso, num sarau do Clube Familiar da Cancela. Depois de dançar com
ele uma valsa e duas polcas, ela teve o desplante de apresentá-lo ao
marido.

Sucedeu o que invariavelmente sucede. A manifestação da simpatia
do Senhor Martins não se demorou tanto como a de Black: foi fulminante.

Os maridos são por via de regra menos desconfiados que os bull-terriers.

O pobre homem nunca tivera diante de si cavalheiro tão simpático,
tão bem-educado, tão insinuante. Ao terminar o sarau, pareciam
dois velhos amigos.

À saída do clube, Leandrinho deu o braço a Dona Candinha,
e, como "também morava para aqueles lados", acompanhou o
casal até a rua do Pau-Ferro.

Separaram-se à porta de casa.

O marido insistiu muito para que o outro aparecesse. Teria o maior prazer
em receber a sua visita. Jantavam às cinco. Aos domingos um pouco mais
cedo, pois nesses dias a cozinheira ia passear.

– Hei de aparecer – prometeu Leandrinho.

– Olhe, venha quarta-feira – disse o Senhor Martins. – Minha mulher faz anos
nesse dia. Mata-se um peru e há mais alguns amigos à mesa, poucos,
muito poucos, e de nenhuma cerimônia. Venha. Dar-nos-á muito
prazer.

– Não faltarei – protestou Leandrinho.

E despediu-se.

– É muito simpático – observou o Senhor Martins metendo a chave
no trinco.

– É – murmurou secamente Dona Candinha.

Black, que os farejava, esperava-os lá dentro, no corredor, grunhindo,
arranhando a porta, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.

Na quarta-feira aprazada Leandrinho embonecou-se todo e foi à casa
do Senhor Martins, levando consigo um soberbo ramo de violetas.

O dono da casa, que estava na sala de visitas com alguns amigos, encaminhou-se
para ele de braços abertos, e dispunha-se a apresentá-lo às
pessoas presentes, quando Black veio a correr lá de dentro, e começou
a fazer muitas festas ao recém-chegado, saltando-lhe às pernas,
lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta
e curva.

O Senhor Martins, que conhecia o cão e sabia-o incapaz de tanta familiaridade
com pessoas estranhas, teve uma idéia sinistra, e como os dois amantes
enfiassem, a situação ficou para ele perfeitamente esclarecida.

Não se descreve o escândalo produzido pela inocente indiscrição
de Black. Basta dizer que, a despeito da intervenção dos parentes
e amigos ali reunidos, Dona Candinha e Leandrinho foram postos na rua a pontapés
valentemente aplicados.

O Senhor Martins, que não tinha filhos, a princípio sofreu
muito, mas afinal habituou-se à solidão.

Nem era esta assim tão grande, pois, todas as vezes que ele entrava
em casa, vinha recebê-lo o seu bom amigo, o indiscreto Black, saltando-lhe
às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo
a cauda irrequieta e curva.

Caiporismo

Naquele dia o Ladislau entrou em casa radiante e alegre. A sua cara-metade,
não habituada a isso, perguntou-lhe se tinha visto passarinho verde.

– Não, não vi passarinho verde, mas calcula que… Ainda me parece um sonho!…

– Mas que foi, homem de Deus?…

– Tu sabes que eu sou o maior caipora em tudo quanto é jogo… Em Caxambu
– lembras-te? – todos ganhavam, menos eu, e o processo era muito simples:
jogavam onde eu não jogava. Bastava que eu pusesse uma fichazinha num número
para que ele ficasse abandonado pelos demais pontos! Já toda a gente sabia
que o diabo do número não safa nem a cacete!.

– Mas que te aconteceu? Estou morta de curiosidade! Tiraste algum prêmio
na loteria?

– Oh, a loteria!… a loteria é outra!… Bem sabes que ainda não me foi
dada a satisfação de comprar um bilhete e tirar, não a sorte grande, não um
prêmio qualquer, mas o mesmo dinheiro! Não sei o gosto que isso tem!.

– Na realidade és muito caipora.

– E os bichos? Se jogo na borboleta, dá o elefante; se arrisco cinco ou dez
mil-réis na águia, é contar que sai o burro!… Sempre contrastes!… sempre
antíteses!…

– Mas não me dirás?. .

– O Balisa, aquele alfaiate da Rua do Ouvidor, que me fez o terno marrom
– sabes? -, organizou um “club de roupas” a cinco mil-réis por semana, e instou
comigo para que eu entrasse. Entrei, paguei a primeira prestação, e saiu o
meu número! Comprei por cinco mil-réis um terno que vale duzentos!.

– Deveras?

– É o que te digo! Já tomei medida! Desta vez não fui caipora!…

Ainda bem!

O Balisa pediu-me que continuasse, e eu continuei: paguei já a primeira prestação
para outro terno.

Três meses depois desse diálogo, o Ladislau já tinha pago integralmente os
duzentos mil-réis do segundo terno, e o alfaiate não lhe dera ainda o primeiro:
desculpava-se com o mestre da oficina, com a grande quantidade de roupa que
tinha a entregar, e hoje-amanhã, hoje-amanhã, passaram-se dias, semanas, e
nada…

Um dia o Ladislau saiu de casa disposto a zangar-se com o Balisa: se não
tivesse para ali os ternos, ou pelo menos um, faria um tempo quente! Pois
se estava tão precisado de roupa!

Mas qual foi a sua surpresa quando, ao chegar à loja, encontrou a porta fechada.

Um vizinho informou-o de que o alfaiate morrera falido e na miséria, sem
ter em casa fazenda que chegasse para a terça parte dos ternos que devia.

E o Ladislau se convenceu de que ter apanhado calça, colete e paletó por
cinco mil-réis foi ainda uma pirraça do seu medonho caiporismo.

Cavação

Naquela manhã o Saldanha estava desesperado: não havia quinze dias que lhe
entrara na algibeira, inesperadamente, uma bela nota de quinhentos mil-réis,
e já não lhe restava um níquel desse dinheiro!

É verdade que ele passou uma semana de patuscadas, uma semana cheia! A inesperada
fortuna coincidira com o aniversário natalício de um dos pequenos, o Nhô-nhô,
e tinha havido peru de forno e até champanhe à mesa! Que diabo, um dia não
são dias!

O semi-conto de réis voou, sem que o imprevidente Saldanha empregasse dez
tostões em qualquer coisa útil. A conta da venda – uma conta de cabelos brancos
– ficou por pagar, não se comprou um trapinho para as crianças, tão precisadas
de roupa!

O dinheiro viera das mãos de certo negociante da rua da Alfândega, que encomendara
ao Saldanha uma série de artigos metendo à bulha uma companhia em liquidação,
isto é, os respectivos liquidantes. O nosso homem, que tinha dedo para essa
espécie de literatura, fez obra asseada: as descomposturas produziram o desejado
efeito. O prosador contava com cem mil-réis. recebeu quinhentos.

Foi um delírio! O Saldanha subiu radiante a rua do Ouvidor, com cócegas de
comprar tudo quanto via exposto nos mostradores das lojas. Parou durante cinco
minutos diante de um gramofone. – Que surpresa seria para a pequenada! – Mas
resistiu e passou. Foi esse o único movimento bom que teve depois de endinheirado.

E assim vivia o pobre-diabo, desde que, por negligente e ocioso, perdera
sucessivamente dezenove empregos e desesperara de obter o vigésimo. Era um
boêmio incorrigível, um desgraçado, que chegara aos trinta e oito anos sem
uma onça de juízo.

Um dia em que lhe pareceu, e pareceu a todos, que estava definitiva e solidamente
arrumado num cartório de tabelião, o Saldanha casou-se com uma pobre moça
a quem fazia versos, e não de pé quebrado, porque para esse outro gênero de
literatura também não lhe faltavam aptidões.

Tanto assim que, durante muito tempo, viveu quase exclusivamente dos seus
Gemidos sonoros, coleção de poesias, cujos dois mil exemplares passou um a
um pelos parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos, dizendo sempre que
fazia aquilo apenas para pagar as despesas de impressão, pois não mercadejava
a sua musa.

Depois de esgotada completamente a edição, o Saldanha, freqüentador assíduo
de todas as lojas de alfarrábios, comprava por baixo preço quantos exemplares,
e não eram poucos, apareciam, e vendia-os no bairro comercial, aos negociantes
dinheirosos.

O expediente dava o melhor resultado, porque o poeta, frenólogo intuitivo,
conhecia pela cara, ou, segundo a sua própria expressão, “pela pinta”, esses
mecenas fortuitos, e, além disso, aprendera de cor uma infinidade de lábias
para impingir o volume. Ou por esses motivos, ou porque as pessoas a quem
se dirigia quisessem se ver livres de um importuno, a colheita era certa.

Note-se que ninguém duvidava da identidade do poeta, porque o seu retrato
lá estava, litografado pelo A. de Pinho, e parecidíssimo, na primeira página
dos Gemidos sonoros.

Entretanto, esse ardiloso manejo era como o enlevo d’alma da linda Ignês:
não podia durar muito. Os volumes, à força de viajar dos primitivos donos
para os alfarrabistas, dos alfarrabistas para o Saldanha, do Saldanha para
os protetores das letras nacionais, e destes outra vez para os alfarrabistas,
ficaram tão ensebados (“fatigados”, como se diz em linguagem bibliográfica),
que já não havia meio de lhes dar saída.

Por isso, a mais séria, a mais firme preocupação do industrioso Saldanha
era que uma nova edição dos Gemidos fizesse gemer os prelos. Por conta dele,
já se sabe, porque não havia editor que se arrojasse à empresa. E essa preocupação
de tal modo absorvia, que ele absolutamente não pensava noutra coisa e vivia
de expedientes.

Como já ficou dito, naquela manhã o Saldanha estava desesperado. Durante
os três últimos dias, ele, a mulher e os quatro filhos tinham-se alimentado
com as derradeiras cinco patacas, melancólicos vestígios dos quinhentos mil-réis.
O homem da venda já lhe não fiava mais nada. A cozinheira abandonara-os.

O autor dos Gemidos sonoros saiu de casa sem um vintém, dizendo: – Vou cavar!
– e baixou à cidade a pé. Morava lá para os lados de Estácio de Sá.

Parecia uma fatalidade! Todas as bolsas a que recorreu encontrou implacavelmente
fechadas. Já tantas vezes tinham servido.

Não teve coragem de pedir cinco mil-réis ao negociante que dias antes remunerara
com tanta liberalidade a sua prosa agressiva. Chegou a penetrar no escritório
do capitalista, mas limitou-se a comer-lhe o almoço – e comeu-o com remorsos,
porque tinha deixado em casa a prole a fazer cruzes na boca.

Sem ser bom pai, pois ninguém pode ser bom pai sem ter juízo, o Saldanha
era meigo e carinhoso para os filhos. Pudesse ele e comeriam todos em pratos
de ouro. Em se apanhando com dinheiro, corria logo para casa, embora pelo
caminho fosse esbanjando algum em companhia dos gaudérios que topava.

Depois do almoço, abundantemente regado por um magnífico virgem “vindo diretamente”,
o Saldanha atirou-se de novo ao terrível trabalho de “cavação”. Passaram-se
duas, passaram-se três horas, e nada, nada, nada! E os pequenos sem comer!

Ás três e meia, com o cérebro ainda escaldado pelo vinho do almoço, derreado
por um calor sufocante, suando por todos os poros, o boêmio sentou-se extenuado
nos degraus do chafariz do Largo do Paço, e aí, pela primeira vez na sua vida
errante, atravessou-lhe o espírito a idéia nítida da dolorosa situação em
que se achava. A miséria apresentou-se diante dos seus olhos com um aspecto
até aquele momento estranho à sua percepção moral, e a lembrança do seu inútil
passado o oprimiu tanto que as lágrimas lhe saltaram aos olhos.

Passavam, na direção das barcas de Niterói, muitos homens apressados, e o
Saldanha notando que raro era aquele que não levava um embrulho enfiado no
dedo.

– É para os filhos, pensava; são homens que trabalham, que têm como eu poderia
ter, o ordenado certo no fim do mês… Não são ociosos nem boêmios, como eu…

Idéias negras acudiram-lhe em tropel ao cérebro avinhado, produzindo febre.
As horas correram sem que ele desse fé, subjugado como estava pelo sofrimento.
Numa espécie de delírio, ouvia apenas rumor – o choro dos filhos.

Quando saiu desse torpor, caia a tarde. O lusco-fusco envolvia o mar e os
lados da Tijuca estavam coloridos por um crepúsculo de fogo.

As pernas trôpegas, a cabeça pesada, a língua seca, o Saldanha levantou-se
com a firme resolução de tomar uma barca e, chegando ao meio da baia, atirar-se
ao mar.

– É o melhor que tenho a fazer; a minha gente achará quem a ampare melhor
do que eu. Os órfãos mais infelizes são os que têm pai…

Depois dessa reflexão filosófica, ele encaminhou-se para a estação das barcas,
e só então se lembrou de que não tinha dinheiro para a passagem; avistou,
porém, um sujeito que levava á mesma direção, e dizendo consigo: ‘vou cavar
pela última vez”, dirigiu-se ao transeunte com toda a resolução:

– O cavalheiro dispõe de trezentos réis? Não tenho dinheiro comigo, estou
doente, e seria para mim um grande transtorno perder esta barca.

O outro mediu-o de alto a baixo, fez uma careta, introduziu dois dedos no
bolso do colete, hesitou, arrependeu-se, enfiou a mão na algibeira do casaco,
tirou um caderninho de cupons de passagens, destacou um deles, e deu-o ao
Saldanha, com uma expressão no rosto em que se lia perfeitamente o seguinte:
“A mim não me enganas tu; com este pedacinho de papel não irás beber.”

O boêmio agradeceu, sorrindo tristemente à idéia de que o tal pedacinho de
papel era o seu passaporte para a eternidade.

O sujeito seguiu o seu caminho, e ele ia seguir também quando viu no chão
outro pedaço de papel, de maiores dimensões, dobrado em quatro, que lhe pareceu
– oh, fortuna – uma nota de banco.

Apanhou-o. Era, efetivamente, uma nota de cem mil-réis.

Trêmulo, nervoso, abriu a nota, percorreu-a no verso e no reverso, e, desconfiado
de uma alucinação dos sentidos, examinou-a à luz de um lampião aceso naquele
instante.

Depois, meteu-a no bolso, e “tocou á toda” para a rua do Ouvidor, lépido,
contente, como se momentos antes não se houvesse representado um drama dentro
de sua alma.

Entrou no Café do Rio, onde ofereceu cerveja a alguns amigos depois, na Confeitaria
Pascoal, arranjou um opulento farnel de comes e bebes: frangos assados, empadinhas,
doces, vinho do Porto, etc.

Tomou um tílburi no 1argo de são Francisco, e ao chegar perto de casa, ainda
na rua, gritou como um possesso:

– Terezinha! Cota! Chiquinha! Nhô-nhô! Eduardinho! aqui estou eu, aqui esta
papai com um banquete opíparo! Toca a música!

Foi um alvoroço em casa. Era de ver toda aquela criançada a com os olhos
ainda vermelhos de tanto chorar.

O Saldanha abriu o embrulho na sala de jantar e, com um ar vitorioso, espalhou
a comezaina sobre a mesa.

– Mas dize-me: como foi que tu… – ia perguntar a esposa.

– Come! come!, interrompeu o marido; come, depois te contarei. Dá cá dali
o saca-rolhas!

E desarrolhando com um estouro alegre a garrafa de vinho do Porto:

– Ah, Terezinha! decididamente sou a criatura mais feliz que o céu cobre!

E durante três dias o Saldanha não “cavou”.

CHICO

Um dia o Chico, moço muito serviçal, muito amigo do seu amigo, foi chamado
à casa do Dr. Miranda, que o conhecia desde pequeno, e abusava sempre do seu
caráter obsequioso e humilde.
– Mandei-te chamar, meu rapaz, para te incumbir de uma comissão que só tu
poderás desempenhar a meu gosto.
– Estou às suas ordens.
– Conheces a Maricota, minha irmã. É uma tola que, em rapariga, enjeitou bons
casamentos, sempre à espera de um príncipe, como nos contos de fadas, e agora,
que vai caminhando a passos agigantados para os quarenta, embeiçou-se por
um tipo que costuma passar cá por casa e nem ela, nem eu, sabemos quem é.
– Ele chama-se…?
– Alexandrino Pimentel. É o nome com que assinou a carta, assaz lacônica,
em que declarou à Maricota que a amava e desejava ser seu esposo. Já me disseram
– e é tudo quanto sei a seu respeito – que esteve empregado na estrada de
ferro, onde não esquentou lugar. Preciso de mais amplas e completas informações
a respeito desse indivíduo e, para obtê-las, lembrei-me de ti que és esperto
e conheces meio mundo.
O Chico dissimulou uma careta.
– Minha irmã, continuou o Dr. Miranda, já fez 37 anos, mas é minha irmã, e
eu, como chefe de família, farei o possível para evitar que ela se ligue a
um homem que não seja um homem de bem, não achas?
– Certamente.
– Portanto, meu rapaz, peço-te que indagues e me venhas dizer quem é, ao certo,
esse Alexandrino Pimentel, que quer ser meu cunhado. Peço-te igualmente que
desempenhes essa comissão com a brevidade possível, pois uma senhora de 37
anos, quando lhe falam em casamento, fica assanhada que nem um macaco a quem
se mostra uma banana.
O Chico pôs-se a coçar a cabeça e não disse nada. Bem sabia quanto era espinhosa
tal comissão, mas não tinha forças para recusar os seus serviços a pessoa
alguma, e muito menos ao Dr. Miranda, que era o seu médico, já o havia sido
de seus pais e nunca lhes mandara a conta.
– Está dito?
– Está dito. Vou indagar quem é o tal Alexandrino Pimentel, e pode contar
que dentro de três ou quatro dias terá os esclarecimentos que deseja.
No mesmo dia, o Chico foi ter com um velho camarada, empregado antigo da Central,
e perguntou-lhe se conhecia um sujeito que ali tinha estado algum tempo, chamado
Alexandrino Pimentel.
– Um bêbado! – respondeu prontamente o outro.
– Bêbado?
– Bêbado, sim! Foi por isso que o Passos o pôs na rua!
– Mas não se terá corrigido?
– Não sei; nunca mais ouvi falar nele. Quem te pode informar com segurança
é o Trancoso. – Sim, que ele era casado com a filha do Trancoso, por sinal
que não se dava com o sogro.
– Casado?
– Casado, sim!
– Quem é esse Trancoso?
– Um ex-colega meu, aposentado há uns quatro anos. Mora lá para os lados de
Inhaúma.
– Podes dar-me um bilhete de apresentação para ele?
– Pois não!
No dia seguinte o Chico estava em Inhaúma, à procura do tal Trancoso, que
já lá não morava; havia seis meses que se mudara para Copacabana, onde adquirira
uma casinha; entretanto o pobre rapaz não esmoreceu diante de uma tremenda
maçada, e no outro dia, depois de duas horas de indagações, batia à porta
do Trancoso.
Veio abrir-lha um velho asmático, envolvido numa capa, lenço de seda ao pescoço,
carapuça enterrada até às orelhas, barba por fazer, cara de poucos amigos.
Quando o Chico pronunciou o nome de Alexandrino Pimentel, o velho enfureceu-se,
gritando que nada tinha de comum com “esse bandido”!
– Mas não é ele seu genro?
– Foi por desgraça minha, mas já o não é, pois deu tantos desgostos à minha
filha, que a matou!
– Eu desejava apenas tomar algumas informações a respeito desse homem. Trata-se
de coisa grave. Ele pretende casar-se em segundas núpcias, e foi a família
da noiva que me pediu para…
– Pois, meu caro senhor, as informações que lhe tenho a dar são as seguintes:
o sujeito de quem se trata é malandro, bêbado, devasso jogador e bruto. Bruto
a ponto de bater, como batia na sua própria mulher! Se a tal senhora, com
quem ele se pretende casar, quiser passar fome e ser armazém de pancada, não
poderá escolher melhor! E agora, meu caro amigo, que tem as informações que
desejava, passe muito bem! Deixe-me em paz, porque sou doente, e as visitas
aborrecem-me!…
Dizendo isto, o velho foi empurrando o Chico para a porta da rua.
Este saiu perfeitamente edificado a respeito de Alexandrino Pimentel, mas,
ao ar livre, refletiu que todas essas informações, partindo de um homem tão
apaixonado e tão grosseiro, poderiam ser, pelo menos até certo ponto, injustas;
por isso pôs-se de novo em campo e, indaga daqui, pergunta dacolá, chegou,
depois de conversar com dez ou doze pessoas fidedignas, à firme convicção
de que tudo aquilo era a pura expressão da verdade.
Essas pesquisas tomaram-lhe mais tempo do que três ou quatro dias dentro dos
quais prometera voltar à casa do Dr. Miranda. Quando voltou, já os amores
de Maricota e Alexandrino haviam assumido proporções consideráveis, e o Dr.
Miranda tinha revelado à irmã que o obsequioso Chico se incumbira de tomar
informações a respeito do pretendente.
– Que diabo! Julguei que você não me aparecesse mais. – exclamou o médico
ao ver então o seu cliente gratuito.
– A coisa deu mais trabalho do que eu supunha, e eu não quis fazer nada no
ar. Trago-lhe informações seguras!
– Boas ou más?
– Péssimas.
O Dr. Miranda chamou a irmã, que acudiu logo.
– Olha, Maricota, aqui tens o Chico; vai dizer-nos quem e o teu Pimentel.
– Pois diga! – resmungou Maricota com um olhar zangado, adivinhando os horrores
trazidos pelo Chico.
Este voltou-se para o Dr. Miranda e disse-lhe:
– O senhor coloca-me numa situação difícil. Julguei que isto não passasse
de nós dois, mas agora, em presença de D. Maricota, sinto-me acanhado e receoso,
porque não posso dizer senão a verdade, e a verdade é muito desagradável.
– Minha irmã é a principal interessada neste assunto, redarguiu o doutor,
e deve até agradecer-lhe o trabalho que você teve com esse inquérito. O seu
dever de amigo está cumprido; ela que o ouça e faça o que entender; é senhora
das suas ações.
O Chico, arrependido já de se haver metido naquele incidente de família, contou
minuciosamente as diligências que fizera e o resultado a que chegara.
Quando ele acabou o relatório:
– Tudo isso é calúnia, calúnia, calúnia torpe! – bradou Maricota, fula de
raiva e batendo o pé. – E quando seja verdade, gosto dele. Ele gosta de mim,
e havemos de ser um do outro, venha embora o mundo abaixo!
Não houve palavras que a convencessem de que tal casamento seria um desastre.
Diante da vergonha, com que ela ameaçou o irmão de sair de casa para ir ter
com o seu amado, o Dr. Miranda curvou a cabeça, e o casamento fez-se.
Fez-se, e não há notícia de casal mais venturoso!
Alexandrino, que se empregara numa importante casa comercial, era um marido
solícito, dedicado, carinhoso e previdente; não ia a passeio ou a divertimento
sem levar Maricota; não bebia senão água; não jogava senão a bisca em família
– e todas essas virtudes eram naturalmente realçadas pela terrível perspectiva
de que ele seria o contrário.
– Maricota apanhou a sorte grande! – diziam os amigos e parentes, inclusive
o Dr. Miranda.
Este, desde que as virtudes do cunhado se manifestaram, começou a tratar com
frieza o informante.
O pobre Chico perdeu o amigo e o médico, foi odiado por Maricota por ter pretendido
frustrar a sua aventura, e o regenerado Pimentel, quando soube da comissão
que ele desempenhara, segurou-o um dia com as duas mãos pela gola do casaco,
e sacudiu-o dizendo-lhe:
– Eu devia quebrar-te a cara, miserável, mas perdôo-te, porque és um desgraçado!.
Moralidade do conto: ninguém se meta na vida alheia, principalmente quando
se trate de evitar um casamento serôdio.

COMES E BEBES

Algum tempo antes de entrar definitivamente, na vida prática, o bacharel
Sesostris, que hoje é pai de família e magistrado, teve as suas
veleidades literárias, e topava a tudo; poesia, conto, folhetim, romance
e teatro.

Foi o manuscrito da sua primeira e única peça que o introduziu
na caixa de um teatro, e o aproximou de Rosalina, que das nossas atrizes era
naquele tempo a primeira em beleza e a última em talento. Essa Rosalina,
que o empresário conservava no elenco da companhia em atenção
unicamente às suas virtudes plásticas, casara-se com um ator
por seu turno ali conservado tão somente por ser marido dela.

Dizer que era uma segunda Penélope no tocante à fidelidade
conjugal seria faltar descaradamente à verdade que devo aos leitores
das minhas historietas; pelo menos as más línguas, e mesmo as
boas, não a poupavam: mais de um freqüentador habitual do teatro
onde ela se exibia era apontado como tendo solicitado, e obtido os seus favores
mais íntimos.

O bacharel Sesostris foi convidado pelo empresário para fazer a leitura
da peça uma tarde, no palco, depois do ensaio e a hora aprazada, sentou-se
diante de uma pequena mesa rodeado de quase toda a companhia, e abriu um manuscrito.

Ia em meio o primeiro ato, ouvido em silêncio com um recolhimento digno
de uma tragédia, quando o comediógrafo sentiu que do joelho
de Rosalina, sentada à sua direita, se. desprendia um calor comunicativo
que o perturbava. Sabe Deus como pôde o rapaz concluir a leitura daquele
primeiro ato!

Durante o segundo, continuaram as manifestações equivocas,
ou antes, inequívocas, e o bacharel, suando frio, tremendo, gracejando,
deixava que se perdessem todos os efeitos cômicos das situações
e do diálogo. Os ouvintes, cada vez mais frios e reservados, atribuíam
a indisposição do leitor à impressão terrível
de se achar ali submetido à opinião e ao julgamento de tantas
sumidades artísticas.

Durante o terceiro ato, Rosalina completou com o pé – um pé
pequenino, admiravelmente calçado – a obra de sedução
que principiara com o joelho.

Terminada a leitura o empresário, que durante os dois primeiros atos
a interrompera com significativos e irreverentes bocejos, e agora dormia a
sono solto, despertou logo que ouviu as consoladoras palavras: "cai o
pano", e disse ao comediógrafo:

– Sim, senhor, é uma bonita comédia… mas não é
para o meu teatro… é muito fina, tem pouca bexigada… Entretanto,
não digo que a não represente… hei de representá-la,
mas quando o teatro estiver mais encarreirado. O doutor tem muito talento:
escreva outra comédia, mas com sal mais grosso, com sal de cozinha.

– De cozinha?!

– De cozinha, sim senhor! Isto de sal fino não traz dez réis
à bilheteria!

O bacharel Sesostris, que tinha a inestimável fortuna de contar apenas
vinte e dois anos, deixou-se iludir; mas, quando mesmo recebesse, como dramaturgo,
um desengano formal, que lhe importava, se Rosalina, a formosa Rosalina, tão
cobiçada por todos os homens, ali estava para consolá-lo das
medonhas lutas de autor incipiente?

Quando o empresário acabou de lhe recomendar o sal grosso, ele voltou-se
e procurou-a com os olhos: ela desaparecera, sem ao menos dizer-lhe adeus…

Dali por diante, o bacharel entrou a freqüentar a caixa do teatro, e
especialmente o camarim de Rosalina; esta, porém, não renovou
as manifestações do joelho e do pé, como se resolvida
estivesse a mostrar ao moço que ele não podia subir mais alto…

Figurava na companhia um velho ator que se dizia muito amigo de Sesostris,
e lhe captara a confiança; este escolheu-o para confidente dos seus
amores, e contou-lhe as provocações da atriz.

O velho ator sorriu maliciosamente.

– Como se explica – perguntou o bacharel – que essa mulher depressa mudasse
de sentimento a meu respeito?

– Explica-se perfeitamente: você ia ler uma comédia e ela queria
apanhar o primeiro papel. Desde o momento em que percebeu a peça não
seria representada, fez tanto caso de você como da primeira camisa que
vestiu.

– Então se a comédia fosse aceita…?

– Se a comédia fosse aceita, a Rosalina seria sua! E só assim
poderia tê-la de graça – aquilo é mulher de dinheiro.

Passaram-se três meses, e o teatro longe de se encarreirar como crava
o empresário, entrou numa dessas crises tão comuns na vida nossos
teatros. Depois de cinco ou seis desastres, o público afastou-se e
o empresário deixou de pagar regularmente aos artistas. A situação
era desesperada.

Rosalina e o marido sofreram como os demais, considerando-se felizes quando
apanhavam dez ou vinte mil-réis por conta dos vencimentos atrasados.

Foi nestas circunstâncias que o pé e o joelho da atriz voltaram
a perturbar o sossego do bacharel Sesostris.

A opinião do velho ator não a desmerecera no espírito
do moço; aos vinte e dois anos o coração é cego
para os defeitos da mulher por quem palpita, e quando por ventura resolva
analisá-los, acaba verificando que são qualidades e não
defeitos.

Uma noite, Sesostris, ao despedir-se dela, deixou-lhe nas mãos bilhete
pedindo-lhe uma entrevista, e dizendo-lhe que na noite seguinte, durante o
espetáculo, iria buscar a resposta ao camarim.

E foi.

A atriz deixou sair o cabeleireiro que a penteava, e disse ao namorado:

– Seja prudente! Nem uma palavra sobre o assunto do seu bilhete.

– Mas… a resposta?

– Disfarce… Está ali sobre a janela… por baixo do pratinho da
moringa… Faça de conta que vai beber água… Olhe que a porta
do camarim está aberta, e há por aí muita gente desconfiada
da sua assiduidade.

Sesostris disfarçou, foi ao lugar da moringa, levantou o pratinho,
encontrou o bilhete, meteu-o na algibeira, conversou ainda alguns momentos,
em voz alta, sobre o calor, a falta do público, etc… e saiu, impaciente
por ler a desejada resposta.

Para fugir a quaisquer olhares indiscretos, meteu-se no mictório do
teatro e foi ali, meio sufocado pelas exalações amoniacais,
que leu o seguinte:

"Doutor. – Antes de responder ao seu amável bilhete, quero merecer-lhe
um grande obséquio. Como sabe, a empresa está nos devendo três
quinzenas, o dia 15 está na porta, e é provável que ainda
desta vez fiquemos a ver navios, porque o teatro não tem feito nada.
Estamos na miséria. Embora isto muito me custe, peço-lhe que
nos mande, amanhã, para a nossa casa, que o doutor sabe onde é,
os mantimentos constantes da inclusa lista, e que são para a nossa
despensa. Desculpe o incômodo e creia na amizade da sua – Rosalina."

A esta carta inverossímil, estava, efetivamente anexa, uma lista de
secos e molhados – tantos litros de feijão, tantos quilos de carne-seca,
etc. Nada faltava: azeite, macarrão, azeitonas, vinho, pacotes de velas,
lamparinas, manteiga, o diabo!

No dia seguinte parava uma carroça à porta de Rosalina, levando
todos esses comes e bebes; mas o bacharel Sesostris, apesar dos seus vinte
e dois anos, entendeu que nunca mais deveria aparecer àquela estúpida.

COMO O DIABO AS ARMA!

O Sr. Paulino era o marido mais irrepreensível desta cidade em que
são raríssimos os maridos irrepreensíveis; entretanto
(vejam como o diabo as arma!), um dia foi morar mesmo defronte da casa onde
ele morava, na Rua Frei Caneca, uma linda mulher, que lhe deu volta ao miolo.

Apesar de casado com uma senhora ainda bonita e frescalhona, mais nova dez
anos que ele, que orçava pelos quarenta e tantos, o Sr. Paulino resolveu
chegar à fala com a sua encantadora vizinha, que, pelos modos, era
livre como os pássaros. Pelo menos morava sozinha, e recebia de vez
em quando visitas misteriosas de três ou quatro sujeitos discretos que,
antes de entrar, olhavam para trás, para adiante e para cima, o que
era um meio mais seguro de serem observados.

Essas visitas encorajaram necessariamente o Sr. Paulino; mas… como chegar
à fala?… Da sua janela, onde ele raras vezes aparecia, limitando-se
a espiar a vizinha por trás das venezianas, o pobre namorado jamais
se animaria a fazer o menor gesto suspeito. Resolveu, pois, esperar que alguma
circunstância fortuita o favorecesse, ou por outra, que o diabo as armasse.

Não tardou a aparecer a circunstância fortuita, que o diabo
armou: uma tarde em que o Sr. Paulino voltava do emprego de guarda-livros
de uma importante casa comercial, viu passar na Avenida a linda mulher que
tanto o impressionara, e acompanhou-a até a estação do
Jardim Botânico, onde ela tomou um bonde 1!para o Leme.

O Sr. Paulino, já se sabe, tomou o mesmo bonde e sentou-se ao lado
dela, que lhe cedeu gentilmente a ponta. A sujeita, que era matreira, percebeu
que tinha sido acompanhada e aplanava o terreno para uma explicação.

O guarda-livros cobriu o rosto com A Notícia e, fingindo que estava
lendo, murmurou:

– Preciso muito falar-lhe.

– Pois fale – respondeu ela fazendo com o leque o mesmo que o outro fazia
com a rósea folha vespertina.

– Aqui não; em sua casa. Quando há de ser?

– Quando quiser.

– Amanhã?

– Amanhã, seja! Sabe onde é?

– Sei; mas só poderei lá ir depois das dez horas da noite,
quando a rua estiver completamente deserta.

– Por quê?

– Depois lhe direi.

– Bom. Esperá-lo~ei às dez e meia.

– Adeus!

– Até amanhã!

E o Sr. Paulino saltou no Largo da Lapa.

No dia seguinte à hora indicada, o guarda-livros entrava em casa da
vizinha, cuja porta achou entreaberta.

– Mas por que todo este mistério? – perguntou a tipa, que o recebeu
como se o conhecesse de longos anos.

– É porque moram ali defronte uns conhecidos meus.

– Quem? O tal Paulino?

– Conhece-o?

– De nome apenas; nunca o vi. Querem ver que também você gosta
da mulher dele?

– Da mulher de quem?… do Paulino?…

– Sim, faça-se de novas! Aquela é pior do que eu!

– Mas de que Paulino fala a senhora? – perguntou o pobre homem, já
trêmulo e agitado.

– Do Paulino que mora ali defronte. A ele nunca o vi, mas tenho visto os
amantes da mulher!

– Os amantes da mulher?!…

– Sim, coitado. É ele a sair de casa, e os outros a entrar!…

– Os outros?… Então são muitos?!…

– Mais de um é, com certeza… Já vi dois: um rapaz alto, louro,
rosado, elegante.

– Deve ser o Gouveia!

– E o outro baixinho, cheio de corpo, de bigode e pêra, pince-nez azul…

– Deve ser o Magalha-es! Dois amigos!…

E o Sr. Paulino caiu desalentado numa cadeira. Tudo lhe andava à roda.
Sentia as faces em fogo. Receou uma congestão cerebral.

A mulher notou que ele estava incomodado, e foi buscar água-da-colônia,
que o reanimou.

– Fui, talvez, indiscreta, disse ela; o tal Paulino é seu amigo, e
você não sabia…

– O tal Paulino sou eu, minha senhora; sou eu em carne e osso, e agradeço-lhe
a informação. Se não viesse à sua casa, jamais
saberia o que se passa na minha, e continuaria a ser um marido ridículo
sem o saber! Para alguma coisa me serviu essa aventura amorosa!

E o Sr. Paulino saiu sem exigir da vizinha, atônita, outra coisa além
de um copo d’água.

No dia seguinte pôs a mulher fora de casa, e cortou a chicote a cara
do Gouveia. O Magalhães escondeu-se e não foi encontrado, mas
não perde por esperar.

Ora, ai têm como o diabo as arma!

CONJUGO VOBIS

A formosa Angelina, filha do Seabra, tinha um namorado misterioso, que via
passar todas as tardes por baixo das suas janelas. Era um bonito rapaz, dos
seus trinta anos, esbelto, elegante, sempre muito bem trajado, sobrecasaca,
chapéu alto, botinas de bico finas, bengala de castão de prata,
pincenez de ouro. Limitava-se a cumprimentá-la sorrindo. Ela sorria
também, para animá-lo, mas, qual!, o moço parecia de
uma timidez invencível, e o romance não passava do primeiro
capítulo. – Com certeza um rapaz bem colocado, pensava Angelina, mas
o diabo é que não se explica, e não hei de ser eu a primeira
a chegar à fala! Afinal, um dia, passando, como de costume, ele atirou
para dentro do corredor da moça um bilhete em que estavam estas palavras:
"Amo-a, e desejava saber se sou correspondido." No dia seguinte
ele apanhou a resposta, que ela atirou à rua: "Não posso
dizer que o amo, porque não o conheço, mas simpatizo muito com
a sua pessoa. Diga-me quem é."

* * *

Nessa mesma tarde, por uma dessas fatalidades a que estão sujeitos
os corações humanos, o Seabra, pai de Angelina, entrou em casa
como uma bomba, esbaforido, carregado com muitos embrulhos, suando por todos
os poros, e intimou a esposa e a filha (eram toda a sua família) a
fazerem as malas, porque no dia seguinte, às 5 horas da manhã,
partiam para Caxambu. – Mas isto assim de repente! – protestou a velha. –
Vai ser uma atrapalhação! – Não quero saber de nada!
O médico disse-me que, se eu não partisse imediatamente para
Caxambu, era um homem morto! Eu devia até seguir pelo noturno! Estou
com uma congestão de fígado em perspectiva!. Angelina ficou
desesperada por não ter meios de prevenir o moço e lá
partiu para Caxambu com o coração amargurado. * * * Não
a lastimem compadecidas leitoras: com 10 dias de Caxambu Angelina tinha se
esquecido completam ente do namorado. Isso não foi devido aos efeitos
das águas, que não servem para o coração como
servem para o fígado, mas à presença de um rapaz que
estava hospedado no mesmo hotel que a família Seabra e, em correção
e elegância, nada ficava a dever ao outro. Era um médico do Rio
de Janeiro, recentemente formado, moço de talento e de futuro, que,
de mais a mais, tinha fortuna própria. O Seabra, que estava satisfeito
da vida, porque o seu fígado melhorava a olhos vistos, acolheu com
entusiasmo a idéia de um casamento entre Angelina e o jovem doutor,
e era o primeiro a meter-lhe a filha à cara. Em conclusão, o
casamento foi tratado lá mesmo, sob o formoso e poético céu
do sul de Minas, para realizar-se, o mais breve possível, na Capital
Federal.

* * *

Regressando das águas, onde se demorou um mês, Angelina viu
passar o primeiro namorado, que olhou para ela com uma expressão de
surpresa e de alegria, mas a moça fechou o semblante. O semblante e
a janela. E, para nunca mais ver passar o importuno, deixou dali em diante
de debruçar-se no peitoril.

* * *

No dia do casamento, os noivos, as famílias dos noivos, as testemunhas
e os convidados lá foram para a pretoria. – Tenham a bondade de esperar
– disse-lhes o escrivão. – O doutor não tarda aí. Sentaram-se
todos em silêncio, e pouco depois o pretor fazia a sua entrada solene.
Angelina, ao vê-lo, tornou-se lívida e esteve a ponto de perder
os sentidos. Ele estava atônito e surpreso. Era o primeiro namorado.
O mísero disfarçou como pôde a comoção,
e resignou-se ao destino singular que o escolhia, a ele, para unir a outro
à mulher que o seu coração desejava.

* * *

Quando todos os estranhos se retiraram, ficando na sala da pretoria apenas
o juiz e o escrivão, este perguntou àquele: – Que foi isso,
doutor? O senhor sofreu qualquer abalo! Não parecia o mesmo! Que lhe
sucedeu? O moço confiou-lhe tudo. O escrivão, que era um velhote
retrógrado e carola, ponderou:

– Ora, aí está um fato que só se pode dar no casamento
civil; no religioso é impossível.

DE CIMA PARA BAIXO

Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete, e imediatamente
mandou chamar o diretor-geral da Secretaria

Este, como se movido fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos
instantes depois, em presença de sua excelência, que o recebeu
com duas pedras na mão.

– Estou furioso! – exclamou o conselheiro. – Por sua causa passei por uma
vergonha diante de sua majestade o imperador!

– Por minha causa? – perguntou o diretor-geral, abrindo muito olhos e batendo
nos peitos.

– O senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o
nome do funcionário nomeado!

– Que me está dizendo, excelentíssimo…?

E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores
quão arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou rapidamente
no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara,
e, depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida:

– É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi…!

– É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe
um pouco mais de atenção os atos que têm de ser submetidos
à assinatura de sua majestade, principalmente agora que, como sabe,
está doente o meu oficial de gabinete!

E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu:

– Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial: ouvi palavras tão
desagradáveis proferidas pelos augustos lábios de sua majestade,
que dei a minha demissão!…

– Oh!…

– Sua majestade não a aceitou…

– Naturalmente; fez sua majestade muito bem.

– Não a aceitou porque me considera muito, e sabe que a um ministro
ocupado como eu é fácil escapar um decreto mal copiado.

– Peço mil perdões a vossa excelência – protestou o diretor-geral,
terrivelmente impressionado pela palavra demissão. O acúmulo
de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo
a vossa excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado
em que se não reproduzam fatos desta natureza.

O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo:

– Bom! Mande reformar essa porcaria!

O diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e chegando no seu gabinete,
mandou chamar o chefe da 3ª seção que o encontrou fulo
de cólera.

– Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do sr. ministro!

– Por minha causa?

– O Sr. mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado!

E atirou-lhe o papel, que caiu no chão.

O chefe da 3ª seção apanhou-o, atônito, e, depois
de se certificar do erro, balbuciou:

– Queira vossa senhoria desculpar, Sr. diretor… são coisas que acontecem…
havia tanto serviço… e todo tão urgente!…

– O Sr. ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda
a consideração, com toda a afabilidade, mas notei que estava
fora de si!

– Não era o caso para tanto…

– Não era caso para tanto? Pois olhe, sua excelência disse-me
que eu devia suspender o chefe de seção que me mandou isto na
pasta!

– Eu… vossa senhoria…

– Não o suspendo; limito-me a fazer-lhe uma simples advertência,
de acordo com o regulamento.

– Eu… vossa senhoria.

– Não me responda! Não faça a menor observação!
Retire-se, e mande reformar essa porcaria!

O chefe da 3ª seção retirou-se confundido, e foi ter
à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto:

– Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante
do Sr. diretor-geral!

– Por minha causa?

– O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível!
Este decreto não tem o nome do funcionário nomeado!

E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense.

– Eu devia propor a sua suspensão por quinze dias ou um mês:
limito-me a repreendê-lo na forma do regulamento! O que eu teria ouvido,
se o Sr. diretor-geral não me tratasse com tanto respeito e consideração!

– O expediente foi tanto, que não tive tempo de reler o que escrevi…

– Ainda o confessa!

– Fiei-me em que o Sr. chefe passasse os olhos…

– Cale-se!… Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas
atribuições?!…

– Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta…

– Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!…

O amanuense obedeceu.

Acabado o serviço, tocou a campainha.

Apareceu um continuo.

– Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seção!

– Por minha causa?

– Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto
tempo a trazer-me o caderno de papel imperial que lhe pedi, não teria
eu passado a limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado!

– Foi porque…

– Não se desculpe: você é um contínuo muito relaxado!
Se o chefe não me considerasse tanto, eu estava suspenso, e a culpa
seria sua! Retire-se!

– Mas…

– Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia
queixar-me de você!…

O continuo saiu dali, e foi vingar-se num servente preto, que cochilava
num corredor da secretaria.

– Estou furioso! Por tua causa passei pela vergonha de ser repreendido por
um bigorrilhas!

– Por minha causa?

– Sim; quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel
imperial, por que te demoraste tanto?

– Porque…

– Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? Porque,
no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro, estás no olho da rua!
Serventes não faltam!…

O preto não redargüiu.

O pobre diabo não tinha ninguém abaixo de si, em quem pudesse
desforrar-se da agressão do contínuo; entretanto, quando depois
de jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que morava,
deu um tremendo pontapé no seu cão.

O mísero animal que vinha, alegre, dar-lhe as boas-vindas, grunhiu,
grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe humildemente os pés.

O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo
chefe de seção, pelo diretor-geral e pelo ministro!…

DENÚNCIA INVOLUNTÁRIA

O Lustosa era muito boa pessoa, mas tinha um defeito: gostava de intrometer-se
na vida alheia, e bisbilhotar o que se passava em casa dos outros. Ele observou
que uma bonita senhora, que morava defronte da casa dele, na Rua São
Francisco Xavier, era regularmente visitada por dois amantes – um, já
de meia-idade, gordo, calvo, pesado, feio, e outro, muito novo ainda, bonito
e elegante. O Lustosa imaginou logo, e imaginou muito bem, que o primeiro
era o pagador e o segundo o amant de coeur. O primeiro, além de ser
mais velho, tinha uns ares de dono de casa que não enganava a ninguém;
as suas visitas eram mais demoradas, duravam às vezes toda a noite;
ao passo que o outro aparecia de fugida, e não saía para a rua
sem primeiro examinar se não passava alguém. Ora, aconteceu
que certa noite, achando-se numa soirée familiar em casa de um amigo
que fazia anos, o Lustosa foi apresentado ao rapaz, que também lá
estava. A pessoa que fez a apresentação afastou-se, e o nosso
indiscreto disse logo ao Peixoto que já o conhecia. O moço chamava-se
Peixoto.

– Já me conhecia?

De onde?

– perguntou este muito intrigado. – Da Rua São Francisco Xavier. .

– Cale-se! Por amor de Deus, não me comprometa!

Eu tenho família, sou casado, e minha mulher está aqui!

Olhe, é aquela senhora vestida de azul.

– Pois eu supunha-o solteiro; mas descanse; por mim ninguém saberá.

– Aquilo é um contrabando. São destas coisas em que a gente
se mete não sabe como, e de que é muito difícil livrar-se.

– Ora!

O amigo ainda está na idade, não acabou ainda de pagar o seu
tributo; mas tenha cuidado: sexta-feira passada, quando o senhor entrou, o
outro mal tinha acabado de sair!

Por mais dois ou três minutos encontravam-se à porta. Eu moro
defronte, e vi tudo por trás da veneziana.

– O senhor disse "o outro". Que outro?

– O dono.

– Como o dono?

O dono sou eu! – Quero dizer: o "marchante".

– Não há outro marchante senão este seu criado! Dar-se-á
caso que aquela mulher receba um homem quando eu lá não estou?

Dar-se-á que me engane?

– Não! Não creio que ela o engane com um homem feio, que podia
ser pai do senhor… um sujeito barrigudo… careca… O Lustosa reconheceu
a asneira que tinha feito, mas era tarde.

– Meu caro senhor, disse o Peixoto, as mulheres são capazes de tudo.
Tenho aí um carro à porta. Vou até lá. Quero verificar
agora mesmo se sou traído por aquele diabo. A ocasião e excelente.
Ela não me espera, porque sabe que vim a esta reunião… minha
mulher está distraída… Até logo! O Peixoto saiu, e
pouco depois ouvia-se rodar o carro. O Lustosa ficou perguntando a si mesmo
quando se corrigiria daquele mau costume de intrometer-se na vida alheia.
O Peixoto voltou ao cabo de uma hora, e foi logo ter com ele. – Obrigado pelo
serviço que me prestou. Surpreendi lá dentro o careca em ceroulas.
Ela quis me convencer que era um tio.

Desavergonhada!

Estou livre daquela péla!

– Pois, senhores, disse o Lustosa, dei rata, dei: mas quem podia supor que
o senhor, com essa mocidade e com esses olhos, era o marchante, e o outro,
com aquela cara, o coió! Decididamente, em se tratando de mulheres,
devemos sempre contar com o absurdo e o inverossímil!

Déz por Cento

Naquela noite o Gama e o Carvalho, dois famosos banqueiros de roleta, inauguravam
a sua casa de jogo no Rocio, que naquele tempo não era ainda a Praça Tiradentes.

Os dois sócios não se furtaram a despesas; o antro estava mobiliado e alcatifado
com certo luxo; os móveis eram do Moreira Santos.

Na sala de frente, em cujas paredes se ostentavam dois suntuosos espelhos
e quatro enormes gravuras de Jazet, ricamente emolduradas, havia um magnífico
bilhar.

Na sala de jantar, a mesa, posta para um banquete, agradava aos olhos, pela
risonha promiscuidade das flores, dos frutos, das porcelanas e dos cristais.

A roleta ficava ao fundo, num vasto compartimento que tinha sido dormitório
nos bons tempos em que a casa era habitada por uma família patriarcal e honesta.

* * *

Às nove horas o Carvalho dava à bola com a serenidade olímpica de um veterano
encanecido naquelas campanhas.

Não só todos os lugares estavam ocupados, como havia muitos indivíduos de
pé, uns em volta da banca, debruçados, enchendo de fichas policromas o pano
verde, outros afastados, assistindo de longe à batalha, esperando o palpite.

De todos os jogadores o mais calmo era o Coronel Mascarenhas.

Sentado à extremidade da banca, a luneta bifurcada no nariz, olhando com
tranqüilidade, ora para as soberbas paradas que fazia, ora para o banqueiro,
sem que nada mais lhe distraísse a atenção, ele apontava exclusivamente nos
seis últimos números do pano: 31, 32, 33, 34, 35 e 36.

* * *

Esse homem que, havia cinco anos, a fatalidade afastara da sua bela fazenda
de Cantagalo, e conduzira a uma casa de jogo da Rua da Constituição, estava
completamente subjugado pelos tentáculos do vicio.

Todos os seus teres e haveres tinham, pouco a pouco, desaparecido naquele
medonho sorvedouro: terras, casas, apólices, tudo perdeu, inclusive mulher
e filhos, que se apartaram dele, salvando uns tristes vestígios da fortuna
de outrora.

Mascarenhas não tinha agora outra ocupação nem outra preocupação que não
fosse o jogo. Dormia numa casa de pensão até às duas horas da tarde, e dessa
hora em diante deixava-se absorver pelo vício até de madrugada, jantando e
ceando fartamente nas casas onde jogava.

Dantes era um parceiro arrogante, muito orgulhoso da sua propriedade agrícola,
afrontando a sorte com um garbo e uma sobranceria que todos admiravam; depois
de arruinado, tornara-se uma criatura humilde, joão-ninguém vencido pela adversidade,
tolerado pelos banqueiros apenas em atenção ao seu passado de perdulário.
Era mal visto pelos jogadores felizes, que o consideravam “cabuloso”; vivia
de expedientes, freqüentando muitas vezes as casas de jogo apenas para alimentar-se,
aproveitando as “aragens” para tentar reaver a sua posição e o seu dinheiro.

* * *

Na véspera da inauguração do “clube” (chamavam-lhe clube) do Gama e do Carvalho,
o Coronel Mascarenhas tivera, sem dúvida, uma dessas “aragens”: dez vezes
comprou cem fichas de dez tostões, e dez vezes, coitado! a bola rodou sem
cair em nenhum dos seis números em que ele apontava. O rateau do banqueiro
levou-lhe um conto de réis.

Depois de perdido o último vintém, o desgraçado passeou pelos circunstantes
um olhar que solicitava um pouco de piedade, mas ninguém deu por isso. Dirigiu-se
então ao Carvalho, que continuava a dar à bola, imperturbavelmente, e disse-lhe
em voz alta:

– Faz favor de me dar os vinte por cento?

– Quais vinte por cento? perguntou o banqueiro, arregalando os olhos. É boa!
Os vinte por cento a que têm direito os pontos sobre as quantias que perdem.

– Direito?!

– Direito, sim, senhor! É uma concessão que fazem hoje todas as casas de
jogo!

– Todas, menos esta!

– Não me diga isso!

– Digo, sim senhor! A casa não preveniu a ninguém que faria semelhante concessão!

– Não preveniu, mas estava subentendido, porque não há hoje banqueiro de
roleta que não dê os vinte por cento…

– Há, sim, senhor, e esse banqueiro sou eu!

– Nesse caso devia ter-me avisado que os não dava, porque tão tolo não seria
eu que, gozando dessa vantagem na casa do Jojoca, na do Quincas e na do Machado,
viesse jogar aqui!

– O que disse está dito! Não dou os vinte por cento!

– Mas atenda.

Entretanto, os outros pontos começavam a impacientar-se; o gordo Comendador
Fraga, que jogava muito, com uma felicidade assombrosa, e suava por todos
os poros, gritou brutalmente:

– Ô Carvalho! dê os tais vinte por cento a esse homem, e ele que nos favoreça
com a sua ausência!

– E insuportável! bradou outro ponto. Quem não pode perder não joga!

Um vencido, que assistia de parte, ao jogo, depois de ter colocado, muito
dobradinha, em cima do 17, uma velha nota de quinhentos réis, a derradeira,
observou:

– Perdi tudo quanto trazia e não exigi porcentagem…

Mas o Coronel Mascarenhas insistia, lamuriento, com lágrimas na voz, desfiando
o longo rosário das suas misérias, humilhando-se, ameaçando suicidar-se, e,
afinal, chorando, chorando, como uma criança.

* * *

Excusado é dizer que ninguém se sensibilizou com isso; mas o Carvalho, querendo
ver-se livre do importuno, foi consultar o Gama, que jogava bilhar, na sala
da frente e voltou com a seguinte decisão:

– Sr. Coronel, a casa não se comprometeu a fazer concessões de espécie alguma
aos jogadores infelizes; entretanto, para se ver livre do senhor, resolveu
dar-lhe, não vinte, ruas dez por cento, sob a condição de que o senhor nunca
mais há de jogar aqui.

– Vá lá, murmurou o desgraçado; aceito.

– Aqui tem cem mil-réis.

O coronel apanhou no vôo a nota que o Carvalho atirou com o firme propósito
de lhe bater com ela no rosto, amarrou-a nas mãos, guardou-a na algibeira
do colete, ergueu-se lentamente, e saiu, dizendo: – Seja tudo por amor de
Deus! Meus senhores, muito boas noites!

Acompanharam-no risos sardônicos e ditérios ofensivos, como: – Ora graças!
– Que tipo! – Não tem vergonha! – Quem não chora não mama! etc.

* * *

Uma hora depois, terminada a banca, estavam todos à mesa, fazendo honra à
opípara ceia com que os regalavam os donos do estabelecimento, quando entrou,
como um foguete, o Costinha, tipo que passava as noites percorrendo aquelas
casas, uma por uma, para contar aqui, o que se passava acolá.

– Querem saber uma grande novidade? perguntou o recém-chegado.

– Qual? interrogaram todos em coro.

– Eu estava em casa do Jojoca quando lá apareceu o Coronel Mascarenhas, que
ia correndo de cá.

– E então? perguntou o Carvalho, que presidia o banquete.

– Ele contou a história dos cem mil-réis…

– Canalha! Sem vergonha! Malandro! Miserável! etc., vociferaram todos os
convivas.

– E ainda foi gabar-se aquele cínico! obtemperou o Comendador Fraga.

– Ouçam o resto! bradou o Costinha. Ele tirou da algibeira a nota amarrotada,
comprou cinqüenta fichas e jogou-as todas no “esguicho” do 31 ao 36. Saiu
o 31.

– Ah!

– Dobrou a parada e jogou em pleno em todos os seis números, carregando no
34. Repetiu o 34!

– Oh!

– Na parada seguinte deu o 32, depois veio mais uma vez o 34, para encurtar
razões: em dez ou doze bolas o coronel deu um tiro de quarenta contos! O Jojoca
está furioso!

* * *

– Quarenta contos! quarenta contos!…

Os jogadores estavam atônitos. Alguns se ergueram, outros cruzaram os talheres,
todos se entreolharam. Houve um momento de silêncio glacial.

– Sim, o coronel não é peco… sabe jogar… quando ganha, atira-se, e faz
muito bem, disse o Carvalho.

– Decerto, concordaram alguns.

– E ele acaba de provar, replicou o gordo Comendador Fraga, que não deixava
de ter razão exigindo a porcentagem.

– Sim, concluiu outro; a porcentagem é muitas vezes a salvação do ponto.
Vejam como os dez por cento grelaram!

– E o que nos pareceu uma canalhice…

– Era um ato inteligente, isso era, e a prova aí está que com os cem mil-réis
levantou quarenta contos.

– A sorte foi justa, ponderou o Gama, o Coronel Mascarenhas perdeu à roleta
tudo quanto possuía.

– Era um fazendeiro importante.

– Muito boa pessoa…

– E honesto; nunca jogou senão o que era seu.

* * *

Todos os comensais se desfaziam em louvores ao Coronel Mascarenhas, quando
este assomou à porta da sala.

O Carvalho e o Gama ergueram-se de um salto e foram ao encontro dele para
apertar-lhe a mão e abraçá-lo. Alguns dos circunstantes fizeram o mesmo, e
o ex-fazendeiro foi alvo de uma verdadeira ovação. Entretanto, conservava-se
calado.

– Venha cear, coronel! A canja está deliciosa! disse o Carvalho.

– Perdão, respondeu Mascarenhas, com toda a simplicidade; eu fui expulso
desta casa, e aqui não tornaria a pôr os pés, se a sorte não me favorecesse,
proporcionando-me ocasião de restituir dez por cento a que não tinha direito,
e que me atiraram como uma esmola infame…

Estas palavras foram acolhidas com mil protestos e desculpas, mas o Coronel
Mascarenhas, que recuperara a sua antiga arrogância, a nada atendeu, e atirou
à cara do Carvalho a mesma nota amarrotada com que saíra.

Alguns dias depois o pobre homem aparecia inopinadamente à mulher e aos filhos,
dizendo-lhes:

– Passei ultimamente por tamanha vergonha, e ao mesmo tempo tive uma felicidade
tão inaudita, que os dois fatos se combinaram para salvar-me, evitando que
eu descesse ainda mais abaixo.

“Trago o preciso para começar de novo a trabalhar, e trabalharei, se vocês
me perdoarem.”

Perdoado, o Coronel Mascarenhas, se bem o disse, melhor o fez. Hoje não joga
nem mesmo a bisca em família.

O jogo passa por ser um vício incurável, mas afianço ao leitor que esse final
é verdadeiro. Lá disse o outro que a verdade nem sempre é verossímil

OS DOIS ANDARES

Um dos mais importantes estabelecimentos da capital de província onde
se passa este conto, era, há vinte anos, a casa importadora Cerqueira
& Santos, na qual se sortiam numerosos lojistas da cidade e do interior.

O Santos era pai de família e morava num arrabalde; o Cerqueira, solteirão,
ocupava, sozinho, o segundo andar do magnífico prédio erguido
sobre o armazém.

No primeiro andar, que era menos arejado, moravam os caixeiros, e se hospedavam,
de vez em quando, alguns fregueses do interior, que vinham à cidade
"fazer sortimento", e bem caro pagavam essa hospedagem.

* * *

O principal caixeiro era o Novais, moço de vinte e cinco anos, apessoado
e simpático.

De uma janela do primeiro e de todas as janelas do segundo andar avistavam-se
os fundos da casa do Capitão Linhares, situada numa rua perpendicular
à de Cerqueira & Santos.

Esse Capitão Línhares tinha uma filha de vinte anos, que era,
na opinião geral, uma das moças mais bonitas da cidade.

Helena (ela chamava-se Helena) costumava ir para os fundos da casa paterna
e postar-se, todas as tardes, a uma janela da cozinha, precisamente à
hora em que, fechado o armazém, terminado o jantar e saboreado o café,
o Novais por seu turno se debruçava à janela do primeiro andar.

O caixeiro pensou, e pensou bem, não ser coisa muito natural que,
desejando espairecer à janela, a rapariga deixasse a sala pela cozinha,
a frente pelos fundos, e logo se convenceu de que era ele o objeto que a atraía
todas as tardes a um lugar tão impróprio.

As duas janelas, a dela e a dele, ficavam longe uma da outra, e o Novais,
que não tinha olhos de lince, não podia verificar, num sorriso,
num olhar, num gesto, se efetivamente era em sua intenção que
Helena se sujeitava àquele ambiente culinário.

Uma tarde lembrou-se de assestar contra ela um binóculo de teatro,
e teve a satisfação de distinguir claramente um sorriso que
o estonteou.

Entretanto, a moça, desde que se viu observada tão de perto,
fugiu arrebatadamente para o interior da casa.

O Novais imaginou logo que a ofendera aquela engenhosa intervenção
da ótica; ela, porém, voltou à janela da cozinha, trazendo,
por sua vez, um binóculo, que assestou resolutamente contra o vizinho.

* * *

Ficou radiante o Novais, e lembrou-se então de que certo domingo,
passando pela casa do Capitão Linhares, a filha, que se achava à
janela, cuspiu-lhe na manga do paletó. Ele olhou para cima, e ela,
sorrindo, disse-lhe: – Desculpe.

Agora via o ditoso caixeiro que aquele cuspo tinha sido o meio mais simples
e mais rápido que no momento ela encontrou para chamar-lhe a atenção.

Não era um meio limpo nem romântico; original, isso era.

* * *

A princípio, não passou o namoro de inocentes sorrisos, porque
os binóculos, ocupando as mãos, impediam, naturalmente, os gestos;
mas, passados alguns dias, tanto ela como ele pegavam no binóculo com
a mão esquerda e com a direita atiravam beijos um ao outro.

* * *

Aconteceu que o Novais apanhou um resfriamento e foi obrigado a ficar alguns
dias de cama, ardendo em febre. Quando se levantou, pronto para outra, o seu
primeiro cuidado foi, necessariamente, mostrar-se a Helena. Esperou com impaciência
pela hora costumada, que nunca lhe tardou tanto.

Afinal, às cinco e meia correu à janela; mas, antes de abri-la,
ocorreu-lhe espreitar por uma fresta… Ficou pasmado! A moça lá
estava, de binóculo, a atirar beijos de longe!. – Mas a quem?… Ela
não o via, não o podia ver: a janela estava fechada!… Quem
era o destinatário daqueles beijos?…

Uma idéia atravessou-lhe o cérebro: o Novais debruçou-se
a janela contígua e olhou para cima… O seu patrão, o Cerqueira,
na janela do segundo andar, munido também de um binóculo, namorava
a sua namorada!…

A coisa explica-se:

O negociante, surpreendendo, alguns dias antes, os beijos da rapariga, supôs
que eram para ele e correspondeu imediatamente.

Helena, que era paupérrima e ambiciosa, fez consigo esta reflexão
prática:

– Que feliz engano! Apanhei um marido rico! O Novais é um simples
caixeiro… o Cerqueira é o chefe de uma firma importante. . . Aquele
namora para divertir-se… este casa-se…

E o seu coração passou com armas e bagagens do primeiro para
o segundo andar.

* * *

Três meses depois, Helena casava-se com o patrão de Novais,
e ia morar no segundo andar, convenientemente preparado para recebê-la.

Ela e o caixeiro encontravam-se diariamente ao almoço e ao jantar.
Os patrões, a patroa, o guarda-livros, os hóspedes e o Novais
comiam em mesa comum.

Durante os primeiros dias que se seguiram ao casamento, não se atrevia
Helena a encarar o ex-namorado, mas pouco a pouco foi se desenvergonhando,
e por fim já lhe dizia: – Bom dia, seu Novais! – Boa tarde, seu Novais!

* * *

Certa manhã em que o rapaz acordou muito cedo e foi para a janela
antes que abrissem o armazém, viu cair-lhe na manga do paletó
um pequeno círculo de saliva, muito alvo, que parecia um botão.

Olhou para o segundo andar, e deu com os olhos em Helena, que lhe disse muito
risonha: – Desculpe -, e em seguida lhe deu uns bons dias sonoros e argentinos.

O cuspo da moça avivou-lhe as recordações do seu namoro
pulha; mas o Novais teve juízo: não abusou da situação…

* * *

O Cerqueira, que um ano depois de casado foi pai de uma linda criança,
não gozou por longo tempo as delícias da paternidade; morreu.

Morreu, e a viúva, passado o luto, casou-se com o Novais, que se tornara
o "braço direito da casa".

O moço a princípio protestou briosameate, rejeitando a posição
que a fortuna lhe deparava; mas, como era feito da mesma lama que a maioria
dos homens, cedeu às seduções e ás lágrimas
de Helena, e passou do primeiro para o segundo andar.

* * *

Aí está por que a casa Cerqueira & Santos é hoje
Santos & Novais.

(Contos Possíveis)

DONA EULÁLIA

Quando cheguei, a casa mortuária estava cheia de gente.

No centro da sala, forrada de preto, havia uma essa entre quatro enormes
tochas acesas, e sobre a essa um caixão, dentro do qual D. Eulália
dormia o último sono.

Já tinha passado a hora do saimento.

Faltava apenas o padre.

O padre não aparecia.

O viúvo, comovido, mas calmo, perfeitamente calmo, perguntou a um
parente, que pelos modos tinha se encarregado do enterro:

– Então?.. . esse padre?..

– Já cá devia estar. O Tio Eusébio quer que eu vá
buscá-lo?

– É favor, Casuza.

E o parente saiu muito apressado.

Dez minutos depois, o Ensébio aproximou-se de mim e disse-me baixinho:

– E nada de padre! Estava escrito que este dia não passava para mim
sem alguma contrariedade…

* * *

Justifiquemos esse grito do coração.

O Eusébio não foi um marido feliz; D. Eulália, que tinha
muito mau gênio, transformara-lhe a vida num verdadeiro inferno.

O pobre homem não tinha voz ativa dentro de casa; era repreendido
como um fâmulo quando entrava mais tarde; devia dar contas de um níquel,
de um miserável níquel que lhe desaparecesse do bolso!

Apesar de casado havia já quinze anos, ele não se pudera habituar
a essa existência ridícula, e sentia-se envelhecer prematuramente
na alma e no corpo.

Não tinha filhos, – e era melhor assim, porque com certeza, D. Eulália
não lhos perdoaria. Pensava bem: pudesse ela contrariar a natureza,
e fecundá-lo-ia, para humilhá-lo ainda mais!

* * *

Durante os primeiros tempos de regime conjugal, o Eusébio tentou reagir
contra o mau gênio de D. Eulália; num dia, porém, que
lhe falou mais alto e lhe bateu o pé, recebeu em troca uma tremenda
bofetada, cujo estalo ressoou em todo o quarteirão. Durante quinze
dias a vizinhança não se ocupou de outra coisa.

O marido que apanha da cara metade está perdido; o que apanha e chora,
está irremessivelmente perdido. O Eusébio apanhou e chorou…

Daquele dia em diante foi-se-lhe toda a autoridade marital: tornou-se em
casa um manequim, um pax vobis, um joão-ninguém.

Era, entretanto, um homem simpático, virtuoso, apreciadíssimo
por numerosos amigos e muito conceituado na repartição de onde
tirava o necessário para que nada faltasse a D. Eulália.

* * *

De todas as maçadas a que estava afeito o nosso Eusébio, nenhuma
o ralava tanto como a de procurar cozinheira, o que lhe acontecia a miúdo,
porque, graças ao mau gênio da dona da casa, a cozinha estava
constantemente abandonada.

Como as impertinências de D. Eulália já tinham fama no
bairro, e nenhuma criada queria servir aquela ama, o Eusébio era obrigado
a procurar cozinheira muito longe de casa.

O que ele queria era alugá-la, mas bem sabia que, na venda, a recém-chegada
seria logo posta ao corrente de tais impertinências.

* * *

Um dia o pobre marido foi muito cedo arrancado da cama pela mulher.

– Levante-se, tome banho, vista-se e vá procurar uma cozinheira!

– Quê!… pois a Maria…?

– Acabo de pô-la no olho da rua!

– Por quê?

– Não é da sua conta! Mexa-se!…

– Uma cozinheira que não estava em casa há oito dias!…

– Basta de observações! Quem manda aqui sou eu! Vamos! vista-se!
E nada de agências, hem? olhe que se me traz cozinheira de agência,
não passa da porta da rua!

* * *

Nesse dia o Eusébio teria purgado todos os seus pecados, se os tivera,
e se D. Eulália não fosse já um purgatório bastante.

O pobre-diabo, que morava no Rio Comprido, foi, levado por informações,
procurar uma cozinheira em São Francisco Xavier. Já estava alugada;
entretanto, lá lhe disseram que no Morro do Pinto havia outra, muito
boa, que lhe devia servir.

O desgraçado almoçou numa casa de pasto, encheu-se de coragem
e subiu o Morro do Pinto.

A cozinheira não estava em casa; tinha ido passar uns dias com uma
parenta, na Rua de Sorocaba, em Botafogo; mas um vizinho aconselhou o Eusébio
a que não adiasse a diligência; a mulher trabalhava primorosamente
em forno e fogão, era morigerada e estava morta por achar emprego.

Abalou o Eusébio para Botafogo, e encontrou, efetivamente, a mulher
na Rua de Sorocaba, em casa da parenta, pronta já para sair. Por pouco
mais, a viagem teria sido baldada.

Era uma mulata quarentona, muito limpa, de um aspecto simpático e
humilde, que à primeira vista inspirava certa confiança.

Ela, pelo seu lado, simpatizou com o Eusébio, a julgar pela prontidão
com que se ajustaram.

– Bem; amanhã lá estarei, meu patrão.

– Amanhã, não: há de ser hoje, porque se entro em casa
sem cozinheira, minha mulher…

O Eusébio interrompeu-se – ia deitando tudo a perder, – e emendou:

… minha mulher, que é muito boa senhora, mas nem sempre acredita
no que eu digo, há de supor que me remanchei.

– Nesse caso, meu patrão, é preciso que eu vá primeiramente
ao Morro do Pinto.

– Pois vamos ao Morro do Pinto… respondeu resignado o resignado Eusébio.

* * *

Era quase noite fechada, quando o infeliz marido, fatigadíssimo, doente,
sem jantar, entrou em casa acompanhado da mulata.

D. Eulália recebeu-o com duas pedras na mão:

– Onde esteve o senhor metido até estas horas? oh! que coisa ruim…
que homem insuportável… Só a minha paciência!…

– A senhora não calcula como me custou encontrar esta mulher, mas,
enfim… parece que desta vez ficamos bem servidos.

– Pois sim, resmungou D. Eulália, – vão ver que é alguma
vagabunda!

E, voltando-se para a mulata, disse-lhe com a sua habitual arrogância:

– Chegue-se mais! Não gosto de gritar e quero que me ouçam!

A cozinheira aproximou-se com um sorriso humilde de subalterna.

– Como se chama? perguntou D. Eulália.

– Eulália.

– Eulália?!

– Eulália, sim, senhora!

– Eulália?! Rua! Rua!

E voltando-se para o marido:

– Pois o senhor tem a pouca vergonha de trazer para casa uma cozinheira com
o mesmo nome que eu? Que desaforo!…

– Mas, senhora.

– Cale-se! Não seja burro!

* * *

Creio que o Eusébio está justificado: a morte de D. Eulália
não poderia contrariá-lo.

(Contos Fora da Moda)

DUAS APOSTAS

Quando apareceu o primeiro número d’o Século, o Comendador Salazar, que encontrou
um exemplar em casa, tomou-o entre as mãos, percorreu-o rapidamente com os
olhos e disse, com aquele ar impertinente e desdenhoso que faz dele, benza-o
Deus, um dos negociantes mais antipáticos da nossa praça:

– Isto não tem vida para um mês!

– Por que, papai? – perguntou a senhorita Esmeralda.

– Porque não tem. É um jornaleco que não me inspira a menor confiança.

A moça, que gostava de contrariar o autor dos seus dias, redargüiu logo:

– Pois eu estou convencida de que este jornal tem vida para muito tempo!

– Por que, minha filha?

– Porque tem.

– Veremos.

Havia oito dias que Esmeralda tinha sido pedida em casamento pelo Sousinha,
e o Comendador Salazar respondera que era muito cedo: a filha não tinha ainda
completado 17 anos, e o pretendente acabava apenas de atingir a maioridade.

– É muito cedo para pensarem em casamento! – sentenciara ele.

Mas, voltando a O Século:

– Com que então, papai é de parecer que este jornal será efêmero?

– Já te disse que sim!

– Pois bem: façamos uma aposta. Se O Século não viver um ano, eu bordarei
um par de chinelos de lá para papai; se viver… no dia em que ele completar
o primeiro aniversário, papai consentirá no meu casamento com seu Sousinha.

O comendador soltou uma gargalhada e disse:

– Pois está dito!

Imaginem agora os leitores com que interesse Esmeralda e o Sousinha acompanhavam
a vida d’O Século! A moça comprava todas as tardes um número da folha, e colocava-o
bem à vista, sobre a mesa de jantar, para que o pai o visse.

– Então O Século ainda vive?

– Ainda, e não parece disposto a morrer!

– Pois sim! Qualquer dia desaparece da circulação!

No dia em que O Século completou o seu primeiro aniversário, Esmeralda lembrou
ao pai a aposta, e o nosso comendador teve que se submeter.

Fez-se o casamento, e, passados alguns dias, o sogro lamentava-se em conversa
com sua esposa:

– Casamos a pequena com um criançola! Hás de ver que aquele maricas tão cedo
não nos dará um neto!

A filha, que passava e ouviu, acudiu prontamente:

– Vamos fazer uma aposta, papai?

– Que aposta?

– Se no dia em que O Século completar o segundo aniversário o senhor não
tiver ainda a satisfação de ser avô, eu bordarei aquelas famosas chinelas…
se tiver, abrirá com um conto de réis uma caderneta da Caixa Econômica, em
favor do pequeno… ou da pequena…

Há dois meses Esmeralda é mãe e o comendador já se explicou com o conto de
réis.

O outro dia ela chegou-se ao pai, e disse:

– Vamos fazer outra aposta?

– Qual?

– Se no dia em que O Século completar o terceiro aniversário…

– Nada! nada! não me apanhas! O tal Século tem vida para… um século!

ELEFANTES E URSOS

Era uma delícia ouvir o coronel Ferraz contar as suas façanhas de caça; mas
ele só vibrava, e só era verdadeiramente genial a inventar carapetões quando
tinha um bom auditório, quando via em volta de si olhos espantados e bocas
abertas.

Dizem que na intimidade, conversando com um amigo, ou mesmo dois, era incapaz
de pregar uma peta.
Ora, uma ocasião estava ele no meio de um grupo de vinte pessoas, em que estavam
representados ambos os sexos e todas as idades.

As palavras do coronel, proferidas com aquela voz reboante e áspera, feita
para comandar exércitos, eram avidamente bebidas. Apenas um rapaz do grupo,
o Miranda, o maior estróina que Deus pusera no mundo, tinha na fisionomia
um ar de mofa e parecia não tomar a sério as proezas cinegéticas do nosso
herói.

Mas isso não foi nada – dizia este retorcendo as pontas dos seus enormes
bigodes grisalhos. – Isso não foi nada à vista do que me aconteceu numa aldeia
do Ganges, aonde me levou a minha vida aventurosa. Um casal de elefantes corria
atrás de um moço que lhes maltratara o filho, um elefantinho deste tamanho
(e o coronel indicou o tamanho de um elefantão). O macho ia atingir o moço
com a tromba, quando o abati com um tiro da minha espingarda, que nunca falhou.
Mas restava a fêmea… A arma estroa descarregada, mas eu, carioca da gema,
lembrei-me do nosso jogo de capoeira, e passei-lhe uma rasteira tão na regra,
que a prostrei por terra! Antes que se erguesse aquela pesada massa, tive
tempo de carregar a espingarda e mandá-la passear no outro mundo. O moço estava
salvo.

Houve no auditório um murmúrio de admiração. O coronel continuou:
– O moço, mal o sabia eu, era um príncipe, filho de um rajá, ou coisa que
o valha, muito estimado na localidade: por isso, ergueram sobre o corpo do
elefante macho uma espécie de trono em que me colocaram, deram-me a beber
um licor sagrado, investiram-me não sei de que dignidade oficial, e fizeram-me
assistir a umas danças intermináveis. Foi uma festa a que concorreram mais
de vinte mil pessoas.

Passado o frêmito do auditório, o Miranda tomou a palavra:

– O coronel foi mais feliz no Ganges do que eu em Ceilão.
– Você já esteve em Ceilão? – perguntou o coronel.
– Ora! Onde não tenho estado? Um dia, estando a caçar – sim, porque também
sou caçador! – saiu-me pela frente um enorme urso, que avançou para mim. Quis
levar a mão à espingarda, mas tremia tanto, que não consegui pegá-la. E o
urso a avançar! Nisto, senti um bafo no meu cachaço. Olhei para trás: era
outro urso, de goela aberta e dentes arreganhados!
– E que fez você? – perguntou o coronel, interessado deveras.
– Não fiz nada – respondeu o Miranda. – Fui comido!

EM SONHOS

– Ora, sempre há sonhos muito exquisitos! – exclamou o César,
logo pela manhã, quando se ergueu da cama.

– Com quem sonhaste? – perguntou D. Margarida, que ainda se achava deitada.

– Sonhei que estávamos num jardim, D. Eponina, a senhora do Sá
Coelho, e eu, e que ela se atirou a mim aos beijos apertando-me nos braços
dizendo que me adorava!

– E que necessidade tinha eu de saber desse teu sonho? – perguntou D. Margarida
um tanto contrariada e, cá entre nós, com toda a razão.

– Oh! meu amor! Pois queres que eu tenha segredos para ti? Eu conto-te a
minha vida toda, inclusive os meus sonhos!

– Pois sim, mas uma reserva natural, ou por outra, a delicadeza mais rudimentar
deveria fazer com que não me contasses coisas que não me podem
ser agradáveis, e cuja revelação nenhum interesse, nenhuma
conveniência tem.

– Ora esta! Nunca esperei que te zangasses!.

– Não estou zangada, mas simplesmente ressentida; nenhuma esposa gosta
de saber que mesmo em sonhos seu marido andou aos beijos com outra mulher!

– Em primeiro lugar, eu não beijei, fui beijado! Fui violentado!…
Eu não queria!… D. Eponina caiu sobre mim com uma fúria!…

– Pois olha! Eu estou mais magoada contigo que com ela. .

– Deixa-te disso, Margarida! Os sonhos não querem dizer nada!…

– Não querem dizer nada, mas são sempre o resultado de uma
impressão qualquer, recebida na vida real: se tu não tivesses
tido um mau pensamento a respeito de Eponina, jamais sonharias que ela caiu
sobre ti aos beijos!

– Por pouco mais, darias razão àquele fazendeiro, que mandou
surrar o escravo por ter sonhado que este queria assassiná-lo!…

– Sim, tens razão, César… Sonhos são sonhos… uma
tolice minha aborrecer-me por causa de uns beijos quiméricos, de que
nenhuma culpa tens.

– Ora, ainda bem que te chegas à razão!.

E não se falou mais nisso: a discussão passou… como um sonho.

Três ou quatro dias depois, Margarida foi a primeira a erguer-se da
cama.

– Que é isto? – perguntou César despertando. – Ergueste hoje
mais cedo?

– Sim, porque estou aborrecida; tive um sonho terrível!

– Sim?… Com quem sonhaste?.

– Não quero ter segredos para meu marido: sonhei com o Braguinha!

– Com aquele patife, com aquele desavergonhado, que entendeu que podia namorar-te
às minhas barbas! Pois tu sonhaste com esse homem?!.

– Sonhei; que tem isso?… Que culpa tenho eu?

– Conta-me o teu sonho.

Isso não! Tu já ficaste tão zangado sabendo que sonhei
com o Braguinha; que não farias se eu te contasse o resto?!

Margarida! Nunca esperei que tu.

– Deixa-te disso!… Os sonhos não querem dizer nada. Demais, aconteceu-me
o mesmo que a ti o outro dia: não beijei – fui beijada!.

O César saltou da cama furioso:

– Não calculas a vontade com que estou de quebrar a cara do Braguinha!

– Ora, aí tens! ~ exatamente o caso do fazendeiro!

ENCONTROS REVELADORES

Contarei hoje aos meus leitores um caso que se passou no tempo do Segundo
Império. A historieta não será talvez muito divertida,
mas é humana. Lá vai: Para mostrar-se agradecido ao ministro
da Justiça, que o nomeara juiz de Direito de Niterói, lembrou-se
o Dr. Sales de convidá-lo para padrinho de seu último pimpolho.
O ministro aceitou o convite, mas como a época era de grande agitação
política e não lhe sobravam lazeres para batizados, passou procuração
ao seu oficial de gabinete, Dr. Pinheiro, para representá-lo na cerimônia,
e levar o pequeno à pia.

À hora aprazada, o Dr. Pinheiro apresentou-se em casa do Dr. Sales,
onde o receberam com a mesma solenidade com que receberiam o próprio
conselheiro.

O bom homem já estava, aliás, habituado a esses togatés.
Depois que o ministro, seu companheiro de infância e amigo íntimo,
fizera dele o seu oficial de gabinete, o seu auxiliar de imediata confiança,
quase o seu alter ego, o Dr. Pinheiro verificou, surpreso, que tinha inúmeros
amigos de cuja existência nem sequer suspeitava. Antes que ele exercesse
aquela posição oficial, pouca gente o cumprimentava; depois
que a exercia, todos lhe tiravam o chapéu!

Terminada a cerimônia do batizado, o Dr. Pinheiro quis retirar-se:
estava cumprida a sua missão, mas o Dr. Sales e toda a família
instaram com ele para almoçar.

O almoço fez-lhe mal. Na ocasião em que o padrinho por procuração
ergueu a sua taça de champanha para agradecer um brinde feito pelo
juiz de Direito ao seu ilustre compadre, o Exmo. Sr. conselheiro X, ministro
e secretário de Estado dos negócios da Justiça, o Sr.
Pinheiro sentiu turbar-se-lhe a vista e a casa andar à roda. Caiu sentado
sobre a cadeira, quebrando a taça que tinha na mão, e perdeu
os sentidos. Foi um alvoroço. Saíram todos dos seus lugares
e cercaram o Sr. Pinheiro, que não dava acordo de si. Entre os comensais
havia, felizmente, um médico. Transportado para um quarto e estendido
sobre um leito, o Dr. Pinheiro foi imediatamente socorrido e medicado.

– Não há de ser nada, explicou o médico, mas é
preciso que o doente fique no mais absoluto repouso; que ninguém lhe
fale nem ele fale a ninguém!

– Mas, que foi?

– Um ameaço de congestão. No mesmo dia o Dr. Sales mandou
à casa do Dr. Pinheiro, que era viúvo e não tinha família
de espécie alguma e morava com ele apenas um criado, que foi ter logo
com o amo enfermo, levando-lhe roupa branca.

No dia seguinte o Dr. Sales procurou o ministro, seu compadre, para participar-lhe
que o seu oficial de gabinete adoecera em Niterói, mas S. Exa. não
lhe pôde dar ouvidos: preparava-se para responder a uma interpelação
na Câmara, e não podia pensar noutra coisa.

O Dr. Pinheiro logo no outro dia pretendeu recolher-se aos penates, mas
o médico proibiu-lhe terminantemente, dizendo: – uma imprudência
pela qual não me responsabilizo!

Ficou, pois, o Dr. Pinheiro cinco dias em Niterói, metido entre quatro
paredes, sem conversar nem ler. Ao sexto dia sentiu-se completamente restabelecido,
e teve alta. Durante esse tempo alguma coisa se passara, de certa importância,
mas em casa do Dr. Sales nada disseram ao Dr. Pinheiro, receando que qualquer
comoção moral lhe produzisse novo ataque.

Seguido pelo seu fiel criado, que o não abandonou um instante, o
Dr. Pinheiro tomou a barca, e chegando ao Pharoux, entrou num carro que estava
à sua espera, indo o criado para a boléia.

Ao passar pelo Largo do Paço, notou que certo pretendente, figura
obrigada do gabinete do ministro, sujeito que costumava saudá-lo com
muitos rapapés, agora, ao vê-lo, apenas levou a mão à
aba do chapéu.

Mais adiante, na Rua da Assembléia, outro importuno olhou para ele
e desviou os olhos, fingindo que não o via.

No Largo da Carioca, um oficial da secretaria, que se empenhara, não
havia muito, com o Dr. Pinheiro para ser, como foi, promovido, teve para o
oficial de gabinete um olhar de proteção. .

– Não há que ver, pensou o Dr. Pinheiro, caiu o ministério!

De fato, havia três dias que o ministério caíra, depois
da tal interpelação. Ninguém o dissera ao Dr. Pinheiro,
nem verbalmente nem por escrito: ele adivinhou-o, graças àqueles
três encontros reveladores.

FATALIDADE

I

O Tenente de Cavalaria Remígio Soares, teve a infelicidade ver, uma noite,
D. Andréia num camarote do teatro Lucinda, ao lado do seu legítimo esposo,
e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus.

A “mulher do próximo”, notando que a “desejavam”, deixou-se impressionar
por aquela farda, por aqueles bigodes, e por aqueles belos olhos negros e
rasgados.

Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão, que se apresentava, passou
completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a platéia.

Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado o espetáculo, o
Tenente Soares acompanhou, a certa distância, casal até o Largo de São Francisco
e tomou o mesmo bonde que ele – um bonde do Bispo -, sentando-se, como por
acaso, o lado de D. Andréia.

Dizer que no bonde o pé do tenente e o pézinho da moça não continuaram a
obra encetada no Lucinda, seria faltar à verdade. Acrescentarei até que, ao
sair do bonde, na pitoresca Rua Malvino Reis, D. Andréia, com rápido e furtivo
aperto de mão, fez ao namorado as mais concludentes e escandalosas promessas.

Ele ficou sabendo onde ela morava.

II

O Tenente Remígio Soares foi para a casa, em São Cristóvão, e passou o resto
da noite agitadíssimo, — pudera! Às dez horas da manhã atravessava já o Rio
Comprido ao trote do seu cavalo!

Mas – que contrariedade! -~ as janelas de D. Andréia estavam fechadas.

O cavaleiro foi até a Rua de Santa Alexandrina, e voltou patati, patatá,
patati, patatá! e as janelas não se tinham aberto!

O passeio foi novamente renovado à tarde, – o tenente passou, tornou a passar,
– continuavam fechadas as janelas!

Malditas janelas!…

Durante quatro dias o namorado foi e veio, a cavalo, a pé, de bonde, fardado,
à paisana: nada! Aquilo não era uma casa: era um convento!

– Mas, ao quinto dia – 0h! ventura! – ele viu sair do convento um molecote
que se dirigia para a venda próxima. Não refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe
as unhas e interpelou-o.

Soube nessa ocasião que ela se chamava Andéía. Soube mais que o marido era
empregado público e muito ciumento: proibia expressamente à senhora sair sozinha
e até chegar à janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que
havia em casa dois cérebros; uma tia do marido e um jardineiro muito fiel
ao patrão.

Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar à patroa
uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta – digamo-lo para vergonha
daquela formosa desmiolada – a resposta não se fez esperar por muito tempo.

Ei-la:

“O senhor pede-me uma entrevista e não imagina como desejo satisfazer a esse
pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?… onde?… quando?…
Saiba que sou guardada à vista por uma senhora de idade, tia dele, e por um
jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstâncias
se combinem de modo que nos possamos encontrar a sós… Como há um deus para
os que se amam, esperemos que chegue esse dia: até lá, tenhamos ambos um pouco
de paciência. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de
ter que preveni-lo de repente. O moleque é de confiança.”

Na esperança de que o grande dia chegasse, o Tenente Remígio Soares mudou-se
imediatamente para perto da casa de D. Andréia; procurou e achou um cômodo
de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto
amado. Dessa porta D. Andréia fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes
que desejava enviar-lhe uma cartinha.

III

Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da festa e esperar por ela.

Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses suspirava noite e dia
pela mulher mais bonita e mais vigiada de todo aquele bairro do Rio Comprido,
sem conseguir trocar uma palavra com ela!

Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, é verdade,
mas essa correspondência, violenta e fogosa, contribuía para mais atiçar a
luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas.

IV

Os leitores, – e principalmente as leitoras – me desculparão de não pôr no
final deste ligeiro conto um grão de poesia: tenho de concluí-lo um pouco
à Armando Silvestre. Em todo o caso, verão que a moral não é sacrificada.

O meu herói andava já obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor,
que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero.

Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo muito
abatido, sem ânimo de se erguer da cama.

– Que tens tu?

– Ainda mo perguntas!

– Paciência, meu velho; Jacó esperou quatorze anos.

– Esta coisa tem-me posto doente… – Bem sabes que gozava uma saúde de ferro…
Pois bem neste momento a cabeça pesa-me uma arroba…. tenho tonteiras!

– Isso é calor; a tua Andréia não tem absolutamente nada que ver com esses
fenômenos cerebrais. Queres um conselho? Manda buscar ali à botica uma garrafinha
de água de Janos. É o melhor remédio que conheço para tonteiras!

O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu
esvaziar um bom copo de benemérito laxativo.

Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio Soares viu assomar
ao longe, na porta da cozinha, o vulto de D. Andréia, anunciando-lhe uma carta.

Pouco depois entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete escrito às pressas.

“A velha amanheceu hoje com febre, e não sai do quarto. O jardineiro foi
à cidade chamar um médico da confiança dela. Vem depressa, mal recebas este
bilhete: há de ser já, ou nunca o será talvez.”

O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos começava a produzir os
seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce chamado de D. Andréia!

Era impossível também confessar-lhe a causa real do não comparecimento; nenhum
namorado faria confissões dessa ordem…

O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não fazer outra coisa:

“Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a não ir! Quando algum
dia houver certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho
certeza de que me perdoarás.”

V

Quando, no dia seguinte, ele contou ao Barroso a desgraça de que este fora
o causador involuntário, o confidente sorriu, e obtemperou:

– Vê tu que grande remédio é a água de Janos! Um só copo serviu para três
cabeças!

– Como três?

– A tua, que tinha tonteiras, – a de D. Andréia que estava cheia de fantasias,
– e a do marido que andava muito arriscada.

Efetivamente, a moça não perdoou.

O Tenente Remígio Soares nunca mais a viu.

HISTÓRIA DE UM DOMINÓ

Perdoem-me os leitores se eu, de ordinário alegre, venho contar-lhes uma
história triste, num dia em que todos estão predispostos ao riso; mas. . .
que querem? Tenho uma natureza especial: o carnaval entristece-me, e o “Abre
alas, que quero passar” soa aos meus ouvidos como um canto de agonia e de
morte.
* * *

Dado esse pequeno cavaco, saibam os leitores que conheço um homem, o Abreu,
que é o mais triste dos homens: só se compraz na solidão e no silêncio, não
tem amigos, vive só, e nunca ninguém o viu rir, nem mesmo sorrir.

Entretanto, esse casmurro, em chegando o carnaval, veste um dominó e sai
à rua mascarado. Isto são favas contadas todos os anos.

O ano passado um vizinho teve a curiosidade e a pachorra de mascarar-se
também para acompanhá-lo a certa distância, e observar o que ele fazia.

Era domingo gordo; toda a população estava na rua. O Abreu apeou-se do bonde,
o mesmo bonde em que vinha o curioso que o acompanhava, um bonde do Catumbi,
o bairro onde moravam ambos, e desceu com muita dificuldade a Rua do Ouvidor.
Chegando em frente à casa de um alfaiate, em cuja porta estavam sentadas algumas
donas e donzelas à espera das sociedades, parou, encostando-se na parede da
casa fronteira, e ali se deixou ficar, pegando no grupo das senhoras os olhos,
que faiscavam através dos dois buracos da máscara de seda.

O Abreu demorou-se ali seguramente meia hora, e o vizinho, farto de esperar,
resolveu abandoná-lo, dizendo consigo: – Ora! é um esquisito!… Deixemo-lo!…

Deixou-o efetivamente, mas uma hora depois voltou, e ainda lá encontrou
o Abreu no mesmo ponto e na mesma posição em que o havia deixado. Examinou
então com mais cuidado o grupo das senhoras, e reconheceu, surpreso, que uma
delas era a mulher do Abreu.
* * *

Sim, que o Abreu tinha sido casado com uma bonita mulher que um dia o abandonou
para amancebar-se com um sujeito que ele supunha seu amigo, e ao qual abrira
confiadamente as portas de sua casa. O amante lá estava por trás do grupo
também à espera das sociedades. Toda a gente os supõe casados.

Desde que lhe sucedeu essa desgraça, o Abreu tornou-se triste, e sua tristeza
durou e dura ainda, porque ele amava profundamente aquela ingrata. Amava-a
tanto, que neste mundo só uma coisa lhe proporcionava um simulacro de prazer:
vê-la de perto.

Entretanto os leitores compreendem que o Abreu não poderia procurar a miúdo
tão singular espécie de consolação, e nos raros encontros fortuitos que tinha
com ela, não a encarava de modo a satisfazer aquele apetite mórbido.

Mas uma vez, há cinco anos, disseram-lhe que sua mulher tinha assistido
ao carnaval sentada à porta do alfaiate e, no ano seguinte, o Abreu, metido
num dominó alugado, foi verificar se ela escolhera o mesmo ponto. Encontrou-a,
e durante muitas horas conseguiu vê-la de perto e à vontade.

Daí por diante o infeliz marido não perdeu um carnaval, e é muito provável
que amanhã lá esteja a postos em frente à casa do alfaiate. Os leitores, com
alguma pachorra, poderão certificar-se de que este conto não é inventado.

HISTÓRIA DE UM SONETO

Antes de entrar definitivamente na vida prática, Ludgero Baptista, hoje um
dos nossos industriais de polpa, fazia versos. Eram rimas inofensivas; entretanto,
um dos seus sonetos – um, pelo menos – foi escrito com más tenções, e, se
alguma desculpa tem o poeta, deve-a unicamente aos seus vinte e três anos,
idade em que o homem não sabe medir bem as conseqüências dos seus atos…
nem dos seus versos.

Havia naquele tempo, como ainda as há, e em maior número, talvez, uma senhora
casada, por nome Laura Rosa, um nome de flor, a qual se comprazia em arrastar
atrás de si uma chusma de corações masculinos, e cuja formosura fazia sensação
em toda a parte aonde a levava o marido, um tal comendador Rosa, muito dado
a festas e espetáculos.

Ludgero encontrou-a um dia no Jockey Club, e aconteceu-lhe o mesmo que a
todos os rapazes do seu gênero: enamorou-se dela. Dali por diante não perdia
corrida de cavalos em que Laura Rosa estivesse, e, ou fosse que realmente
os olhos da formosa dama lhe prometessem mais do que deviam, ou fosse natural
filáucia de namorado jovem, ele considerou-se autorizado a empregar algumas
diligências, a fim de que os seus amores saíssem do período ingrato do platonismo,
e entrassem numa situação mais positiva.

Para isso, recorreu à musa, que não abandona o poeta nessas emergências exóticas,
e escreveu o soneto em questão. Era nada mais nem menos que uma injúria, até
certo ponto atenuada pela rima e pelo metro; mas, como se sabe, os fazedores
de versos tiveram, em todos os tempos, o privilégio de insultar as senhoras,
sem que a moral pública os responsabilizasse por isso.

Eis aqui o soneto, que se intitulava:

SÚPLICA

Desde o dia feliz em que, pasmado,

Pela primeira vez te vi, senhora,

Um sentimento no meu peito mora

Feito de angústia e feito de pecado.

Não creias que ninguém houvesse amado

Tão loucamente como eu te amo agora,

Nem mesmo, oh! linda Laura, no de outrora

Cavalheiresco tempo celebrado!

Para que finde o meu suplício airoso,

Ou me concede o mendigado beijo,

Este martírio transformado em gozo,,

Ou revela ao teu dono o meu desejo:

Talvez ele me faça venturoso,

Dando-me a doce morte, enfim, que almejo!

Ludgero Baptista assinou esse desaforo com as iniciais do seu nome, L.B.,
e publicou-o na revista literária Nova Aurora, órgão especial dos “novos”
daquela época.

Publicado o soneto, mandou o poeta entregar um número do periódico à “linda
Laura”, procurando, naturalmente, ocasião em que o comendador Rosa não estava
em casa, e tendo o cuidado de chamar, com um traço de lápis vermelho, a atenção
da moça para os versos em que tão indiscretamente ia envolvido o nome dela.

Não sei qual foi o resultado obtido por Ludgero, nem isso importa à narrativa;
creio, entretanto, que a súplica não foi atendida: nem Laura Rosa lhe deu
aquele “mendigado beijo”, que era um eufemismo bandalho, nem disse nada ao
seu dono, e ainda bem, porque se o poeta não logrou a ventura que almejava,
também não perdeu a vida, que aproveitou mais tarde, nem mesmo apanhou a sova
que merecia.

O caso é que o nosso homem tomou juízo, e abriu mão de todas as suas veleidades
poéticas, para cuidar de coisas mais sérias e mais úteis.

A fortuna sorriu-lhe. Aos trinta anos, estava ele senhor de algumas centenas
de contos de réis, e aos trinta e sete principiou a sentir, pela primeira
vez, necessidade de constituir família.

Isso coincidiu com o encontrar, em casa de uma família de amigos, a interessante
Blandina, moça pobre, que realizava perfeitamente o seu ideal, quer no moral,
quer no físico.

Blandina contava apenas vinte e três primaveras, justamente a idade que ele
tinha quando escrevera a “Súplica”; mas, não obstante essa diferença de quatorze
anos, o casamento não lhes pareceu desproporcionado: queriam-se deveras.

Ela talvez fosse um pouco romântica, cheia de mistérios e devaneios, sequiosa
do imprevisto e do ignorado; mas esse defeito, se o era, não repugnava ao
que em Ludgero ficara do sonhador de outrora.

Casaram-se.

Casaram-se, e foram excepcionalmente felizes durante os dez primeiros anos;
mas passado esse tempo, ele que estava às portas do semicentenário e poderia
passar por mais velho, ao passo que ela não parecia ter ainda os seus trinta
e três, julgou que sua mulher já não o amava como dantes…

Perdi o encanto – disse ele aos seus botões – tenho agora os cabelos grisalhos,
engordei muito, sofro de reumatismo, e Blandina conserva a mocidade, a beleza
e a elegância que tinha na ocasião do nosso primeiro encontro… O nosso enlace
não era, mas tornou-se desigual… Para sermos felizes até a morte, fora preciso
que envelhecêssemos juntos, como Filêmon e Báucis…

Efetivamente, Blandina, que, durante os primeiros dez anos de casada nunca
reparou que seu marido ressonava alto, não o podia agora suportar, queixando-se
de não poder dormir ao som de um rabecão. Ao mesmo tempo deixava-se absorver,
horas esquecidas, em longas cismas, e suspirava de instante a instante, como
se alguma coisa lhe faltasse…

Ludgero inquietou-se, e começou a observar com olhos ciumentos o que se passava
em torno de si. Não lhe tardou perceber que a sua casa era constantemente
rondada por um rapazola, que poderia ser seu filho e, mesmo, filho de sua
mulher. De uma feita, deu com ele à esquina entregando uma carta à cozinheira;
escondeu-se, entrou em casa de mansinho, sem ser visto, e interceptou a missiva
no momento preciso em que esta passava das mãos da intermediária para as de
sua mulher.

Ludgero tomou a mão de Blandina, que tremia como varas verdes, e levou-a
para o interior do seu gabinete.

– Quem é aquele sujeitinho que te mandou esta carta?

– Não sei – respondeu ela, e desatou a chorar.

– Por que choras?

– Choro, porque não tenho culpa. Não sei quem me escreveu… Desconfio de
um mocinho impertinente que costuma passar por aqui e me cumprimenta com um
sorriso muito amável quando me vê à janela… Juro-te que eu devolvia essa
carta sem abrir!…

– Abro-a eu! – disse Ludgero, engasgado pela comoção – e rasgou o invólucro.
Estava dentro um soneto, escrito em papel ridículo, cercado de florinhas e
rendilhado nos cantos.

Ao ler o primeiro verso,

Desde o dia feliz em que, pasmado,

o marido reconheceu logo o seu velho soneto, que tinha sido copiado, palavra
por palavra, sofrendo apenas uma alteração no segundo quarteto: o nome de
“Laura” fora substituído pelo de “Blandina”, o que, aliás, desfigurava o verso,
evidenciando que o copista era inteiramente hóspede em metrificação.

Ludgero deu uma gargalhada.

– De que te ris?… Que há que te faça rir? – perguntou Blandina.

– Ri-me, porque o teu infeliz namorado te mandou um soneto que não é dele,
e sim meu!

– Teu?

– Sim! A coincidência é notável… Vais ver!

Ludgero abriu uma gaveta, e tirou de dentro dela o número amarelado da Nova
Aurora, em que vinha estampada a sua “Súplica”.

– Aqui tens! Olha! Compara! Está assinado com as minhas iniciais!

– Tu fazias versos?

– Fazia-os, e ainda os farei, se quiser – tanto assim, que vou escrever outro
soneto em resposta a este, e hás de tu copiá-lo com tua letra, e eu mesmo
o entregarei ao tal mocinho.

– Está dito!

A prontidão com que Blandina proferiu esse “está dito” foi a melhor prova
que Ludgero teve de que poderia continuar a conservá-la junto de si. O mesmo
não sucedeu à cozinheira, que foi posta na rua.

No dia seguinte estava escrita a resposta. Blandina copiou-a, e, na mesma
tarde, quando o rapazola, parado à esquina, interrogava as janelas, Ludgero
aproximou-se dele, e disse-lhe:

– Jovem, aqui tem a resposta de minha mulher ao seu soneto. Espero que, depois
de lê-la, o meu amiguinho não me rondará mais a porta; mas, se continuar,
previno-o de que o mato a bengaladas!…

O rapazola fugiu, e não consta que reaparecesse no bairro. Foi esta a:

RESPOSTA

Para satisfazer ao seu pedido,

Na parte da denúncia e não do beijo,

Revelei a meu dono o seu desejo.

Os versos entreguei a meu marido.

Este em vez de ficar enfurecido,

E de agarrar um ferro malfazejo,

Tomou a coisa á conta de gracejo,

E pôs-se a rir como um perdido!

Pois se e ele o autor do tal soneto!

O senhor copiou-o da Nova Aurora,

Estragando-lhe apenas um quarteto…

Ele, que a Musa já mandou embora,

Cede-lhe os versos (discrição prometo),

Mas não quer sociedade na senhora.

Blandina Baptista

Blandina leu todos os versos antigos de seu marido, e perdoou-lhe os cabelos
grisalhos, o abdômen, o reumatismo e, até, o ressonar alto: adora-o.

Ludgero descobriu que o rapazola era filho de Laura Rosa; provavelmente,
encontrou o soneto entre os papéis da mãe, que já não existia…

O ex-poeta viu em tudo isso uma espécie de punição, e, como tem os seus momentos
de filosofia barata, pensa muitas vezes que um homem pode ser ferido, mais
dia menos dia, pela própria arma que forja com intenção maligna, mesmo quando
essa arma seja simplesmente um mau soneto.

HISTÓRIA VULGAR

Era a primeira vez que o Getúlio vinha ao Rio de Janeiro. Conquanto
filho do barão de Batatais, lavrador abastado, jamais se divertira.
Depois de formado em Direito, sabe Deus como, na capital de São Paulo,
voltara para a fazenda do pai, onde nasceu, e onde esperava morrer.

Aos vinte e oito anos chegaram-lhe desejos de ver mundo. Falou ao barão
de uma viagem à Europa. – Para que Europa? – disse o velho. – Vai ao
Rio de Janeiro, que ainda não conheces, e é uma capital digna
de ser vista. A Europa irás depois comigo, tua mãe e tua irmã
se Deus nos der vida e saúde. – O bacharel contentou-se, pois, com
o Rio de Janeiro.

Quando se despediu do filho, na plataforma da estação, o barão
recomendou-lhe, pela centésima vez, que tivesse muito cuidado com as
más companhias, o que não impedia que o rapaz, aqui chegado,
se entregasse confiadamente ao Alípio.

É verdade que o Alípio tinha exterioridades que enganavam,
e não vivia senão à custa delas. Delas e do próximo.
Era um rapaz da moda, mas passou pelo serviço antropométrico
e ainda hoje tem o retrato na polícia.

Ele e o paulista encontraram-se dir-se-ia que por acaso, sentados à
mesma mesa, para tomar café, num botequim da rua do Ouvidor, e quando
as duas colherinhas, batendo uma na outra, tiniram no açucareiro, o
Alípio ergueu os olhos, apertou-os como para reconhecer o Getúlio,
e disse-lhe:

– Cavalheiro, creio que já nos encontramos.

– É possível.

– Mas onde? Não me posso lembrar!

– Em São Paulo?

– Não, não creio.

– Talvez em Poços de Caldas. Estive lá duas vezes.

– É isso. Foi em Poços de Caldas! O cavalheiro é paulista?

– Sim senhor, e é a primeira vez que venho ao Rio.

– Tem gostado?

– Muito, mas ainda não vi nada; cheguei ontem.

– Conquanto não tenha a satisfação de o conhecer, ofereço-lhe
os meus fracos préstimos.

– Muito obrigado, mas não venho aqui fazer outra coisa senão
passear. Há sete anos que me meti na fazenda de meu pai; era tempo
de espairecer.

– Ah! O cavalheiro é lavrador?

– Sim, senhor, formei-me em Direito, mas sou um simples fazendeiro, sócio
de meu pai. O senhor nunca ouviu falar do barão de Batatais?

– Batatais? Pois não, doutor! Ora essa! É uma das primeiras
fortunas de São Paulo!

– Pois é meu pai.

– Se o doutor vem ao Rio de Janeiro simplesmente para se distrair, razão
de mais para aceitar os meus fracos préstimos. Sou carioca da gema,
conheço toda a cidade como as palmas das minhas mãos, e posso
mostrar-lhe o que ela tem de mais interessante.

– Oh! Senhor! Não sei a que deva…

– À simpatia. O doutor não imagina como simpatizei com a sua
pessoa!

– Mas o senhor naturalmente tem mais que fazer do que me servir de cicerone.

– Que fazer? Eu? Ah, meu doutor, infelizmente a minha vida é esta
– andar pelos cafés, pelos teatros, pelos clubes, pelas casas de jogo,
pelas alcovas – enfim, pelo monde ou l’on s’amuse! Não sei o que é
trabalhar! E não tenho remorsos, porque meu pai trabalhou por si e
por mim. O que faço é gozar o que ele não gozou, para
que me não aconteça o mesmo.

– Então é rico?

– Tenho alguma coisinha, tenho…

Nesse mesmo dia jantaram juntos no Brito (o Alípio não consentiu
que o Getúlio pagasse), e à noite foram ao Cassino, onde o paulista
se divertiu a valer. Separaram-se amigos às três horas da madrugada,
na rua Senador Dantas, concertando encontrar-se ao meio-dia para almoçarem
juntos.

Almoçaram, deram um longo passeio a Botafogo, e foram jantar numa
casa de jogo, que o Alípio quis mostrar ao Getúlio, a título
de curiosidade.

– Só a título de curiosidade – repetiu o carioca. – Eu jogo,
mas não te aconselho que jogues. (Já se tratavam por tu.) O
jogo é estúpido: tira sempre o necessário e não
dá nunca senão o supérfluo. Tu alguma vez jogaste?

– Já, em Poços de Caldas, mas jurei que nunca mais jogaria!
Perdi uma boa bolada, e o velho ficou furioso!

– Devo prevenir-te de uma coisa: esta casa de jogo é uma das mais
decentes do Rio de Janeiro, mas tem cuidado. Aqui vem de tudo. Vês aquele
sujeito gordo? É um magistrado integérrimo! Vês aquele
sujeito magro? Tem o retrato na polícia!

Depois do jantar, que foi magnífico, regado por excelentes vinhos,
aparelharam a roleta. O banqueiro, ex-advogado sem causa, tomou o seu lugar
sobre um estrado, diante das fichas multicores alinhadas em ordem, formando
pequenas colunas, e o pessoal do vício abancou-se em volta do tapete
verde.

– Eu vou piabar – disse o Getúlio ao Alípio.

– Vê, vê só, não jogues! Eu teria remorsos se te
trouxesse a esta casa para perderes dinheiro!

Começou o jogo. Depois das três primeiras bolas, o bacharel
não resistiu: comprou cem mil-réis de fichas, que voaram logo.

O Alípio lançou-lhe um olhar repreensivo.

– Não posso ver defunto sem chorar – respondeu o outro, que insiste
e em dez minutos perdeu oitocentos mil-réis.

Acendeu-se-lhe, então toda, a sua coragem de paulista, e fez a última
parada, tão forte, que ressarciu todo o prejuízo e ganhou perto
de um conto de réis.

O Alípio que, jogando, ou antes, fingindo jogar, examinava-o de soslaio,
viu-o aproximar-se do banqueiro, receber um maço de notas, e arrumá-las
na carteira, que guardou sorridente no bolso do peito.

– Vou-me embora – disse-lhe o Getúlio. – Preciso recolher-me hoje
um pouco mais cedo: estou com dor de cabeça.

O Alípio deixou a sala do jogo para acompanhá-lo até
o corredor, e perguntou-lhe indiferentemente, ajudando-o a vestir o sobretudo:

– Ganhaste?

– Alguma coisa.

– Pois sim, mas não tornes a jogar, vai com o que te digo! aconselhou,
abotoando-lhe o sobretudo. – Levanta a gola, agasalha-te bem, não brinques
com este clima. Eu ainda fico.

– Precisas de algum dinheiro?

– Não.

– Então até amanhã?

– Decerto. Irei buscar-te ao hotel às mesmas horas de hoje. Adeus!

O paulista desceu as escadas lépido e contente, foi para o hotel,
que não era longe, entrou para o seu quarto, despiu-se e resolveu dar,
antes de dormir, um balanço ao dinheiro para saber ao certo qual tinha
sido o seu lucro. Foi ao bolso: a carteira lá não estava…
Escusado é dizer que o Alípio nunca mais o procurou.

O PAULO

Se o senhor conhecesse o meu amigo Paulo, com certeza o estimaria: era um
excelente rapaz, um belo camarada.

Há dezesseis anos que ele se tinha casado, por amor, com uma linda
moça, e nunca houve marido mais amante, mais solícito, mais
cumpridor dos seus deveres, para empregar aqui esta frase cômoda, em
que o vulgo envolve todas as virtudes maritais.

Ao cabo de um ano de casamento, nasceu ao Paulo uma filha que completou a
sua felicidade, e fez com que ele se considerasse a mais venturosa das criaturas
humanas.

Essa ilusão durou muito tempo, durou até o dia em que o pobre
rapaz, perdendo o emprego que tinha, e arranjando outro menos rendoso, foi
obrigado a mudar-se para uma casa mais modesta e a restringir as suas despesas.
A mulher, que gostava muito de se embonecar e de se divertir, achou que isso
era a miséria e o deu a perceber ao marido. Este afligiu-se tanto que
adoeceu.

Em janeiro deste ano, uma tarde, voltando para casa, depois do trabalho,
o Paulo não encontrou a mulher.

– Que é de tua mãe? – perguntou à filha.

– Saiu; não me disse onde ia, mas deixou uma carta para papai.

Ele sentiu logo um grande abalo no coração e teve um terrível
pressentimento. As mulheres que abandonam o domicílio conjugal fazem,
por via de regra, como os homens que se matam: deixam uma carta. O Paulo sabia
disso e tremeu.

Nã0 se enganava. A desgraçada deixou-o e deixou também
a filha, uma pobre moça de quatorze anos, que precisava tanto dos cuidados
maternos.

O Paulo era forte de coração, mas fraco de espírito;
o golpe aniquilou-o; entretanto, fez das fraquezas força e continuou
a viver e a trabalhar por amor da filha, que confiou a uma família
amiga.

Passados alguns meses, a mulher, que tinha ido viver em companhia de um amante,
sentiu saudades da menina, e tentou reavê-la. Não o conseguindo,
naturalmente, por meio de súplicas e sabendo que não tinha a
lei por si, a desgraçada teve uma idéia monstruosa, talvez sugerida
pelo seu digno amante: escreveu uma carta ao marido afiançando-lhe
que ele não era pai daquela criança.

A carta infame produziu o desejado efeito: o pobre Paulo, depois de alguns
dias de profunda melancolia, teve um violento acesso de loucura e foi internado
no Hospício.

Ao cabo de algum tempo foi removido para a casa de um parente, mas durou
apenas uma semana. Faleceu anteontem e foi enterrado ontem.

A viúva provavelmente vai casar-se com o amante, e a infeliz menina
ficará sob a tutela do padrasto.

Aí tem, meu ilustre amigo, um caso que se passou neste ano de 1908,
caso verídico e pungente pelo qual substituo hoje um conto inventado,
sem mesmo disfarçar o nome do meu desventurado amigo, que se chamava
realmente Paulo.

PAULINO E ROBERTO

O Paulino toda a vida remou contra a maré! Para cúmulo da desgraça,
o destino atirou-lhe nos braços uma esposa que não era precisamente
o sonhado modelo de meiguice e dedicação.

Adelaide não lhe perdoava o ser pobre, o ganhar apenas o necessário
para viver. O seu desejo era ter um vestido por semana e um chapéu
de quinze em quinze dias, – possuir um escrínio de magníficas
jóias, – deslumbrar a Rua do Ouvidor, – freqüentar bailes e espetáculos,
– tornar-se a rainha da moda. Não se podia conformar com aquela vida
de privação e trabalho.

O Paulino, que era a bondade em pessoa, afligia-se muito por não poder
proporcionar à sua mulher a existência que ela ambicionava. Fazendo
um exame de consciência, o mísero acusava-se de haver sacrificado
a pobre moça, que, bonita e espirituosa como Deus a fizera, teria facilmente
encontrado um marido com recursos bastantes para satisfazer todos os seus
caprichos de Frou-frou sem dote.

Ele só tinha um amigo, um amigo íntimo, seu companheiro de
infância, o Vespasiano, que um dia lhe disse com toda a brutalidade:

– Tua mulher é insuport&aacaacute;vel! Eu, no teu caso, mandava-a para
o pasto!

– Oh! Vespasiano! não digas isso!…

– Digo, sim!, senhor! digo e redigo… – Vocês não têm
filhos; portanto, não há consideração nenhuma
que te obrigue a aturar um diabo de mulher que todos os dias te lança
em rosto a tua pobreza, como se ela te houvesse trazido algum dinheiro, e
o esbanjasses!.

– Isso não é conselho que se dê a um amigo, nem eu tenho
razões para me separar de Adelaide.

– Pois não te parece razão suficiente essa eterna humilhação
a que ela te condena?

– Pois sim, mas quem me manda ser tão caipora?

– Não creias que, se melhorasses de posição, ela melhoraria
de gênio. Aquela é das tais que nunca estão contentes
com a sorte, nem se lembram de que Deus dá o frio conforme a roupa.
Se algum dia chegasses a ministro, ela não te perdoaria não
seres presidente da República!

– Exageras.

Pode ser; mas afianço-te que mulher assim não a quisera eu
nem pesada a ouro! Prefiro ficar solteiro.

Efetivamente, Vespasiano, apesar de ser muito amigo de Paulino, não
o freqüentava, tal era a aversão que lhe causava a presença
de Adelaide. Não a podia ver.

* * *

Paulino em vão procurava por todos os meios e modos melhorar de vida,
aumentando o parco rendimento, quando um comerciante, seu conhecido, lhe propôs
uma pequena viagem ao Rio Grande do Sul, para a liquidação de
certo negócio. Era empresa que lhe poderia deixar um par de contos
de réis, se fosse bem sucedida.

Instigado pela mulher, a quem sorria a perspectiva de alguns vestidos novos,
Paulino partiu para o Rio Grande a bordo do Rio Apa; tendo, porém,
desembarcado em Santa Catarina, perdeu, não sei como, o paquete, e
foi obrigado a esperar por outro.

Antes que esse outro chegasse, recebeu a notícia de que o Rio Apa
naufragara, não escapando nenhum homem da tripulação,
nem passageiro algum. Do próprio paquete não havia o menor vestígio.
Sabia-se que naufragara porque desaparecera.

Paulino agradeceu a Deus o ter escapado milagrosamente ao naufrágio.

* * *

Ao ver o seu nome impresso, nos jornais, entre os das vítimas, atravessou-lhe
o espírito a idéia de calar-se, fazendo-se passar por morto.
Não sei se ele teria lido o Jacques Amour, de Zola, ou a Viuvinha,
do nosso Alencar.

– Em vez de me livrar da Adelaide, como aconselhava o Vespasiano, livrá-la-ei
de mim. Ora está dito! Seremos ambos assim mais felizes… – Ninguém
o conhecia em Santa Catarina, e ele, de ordinário taciturno e reservado,
a ninguém se queixara de haver perdido a viagem, de modo que pôde
executar perfeitamente o seu plano. Calou-se, muito caladinho, e deixou que
a notícia da sua morte circulasse livremente, como a dos demais passageiros
do Rio Apa.

Escusado é dizer que mudou de nome.

Tendo feito conhecimento com um rico industrial teuto-brasileiro, ex-colono
de Blumenau, foi com este para o interior da província, e, como era
inteligente e trabalhador, não tendo mulher que o "encabulasse",
arranjou muito bem a vida, conseguindo até pôr de parte algum
pecúlio.

* * *

Passaram-se anos sem que Roberto, o ex-Paulino, tivesse notícias
de Adelaide.

Resolveu um dia ir ao Rio de Janeiro, a passeio, convencido de que ninguém
mais se lembrava dele, nem o reconheceria, pois deixara crescer a barba, engordara
extraordinariamente, e tinha um tipo muito diverso do de outrora.

O seu primeiro cuidado foi passar pela casinha de porta e janela onde morava,
na Rua do Alcântara, quando embarcou para o Sul. Não a encontrou:
tinham erguido um prédio no local outrora ocupado pelo ninho dos seus
amores sem ventura.

Informou-se na venda próxima que fim levara a viúva de um tal
Paulino, morador naquela rua, náufrago do Rio Apa; ninguém se
lembrava dessa família, e ele tevei a sensação de que
era realmente um defunto.

Procurou ver Vespasiano, e viu-o, quando saía da Alfândega,
onde era empregado. O seu movimento foi correr para o amigo e dizer-lhe: –
Olha! sou eu! não morri! venha de lá um abraço! -; mas
conteve-se, e deixou-o passar, saboreando um cigarro.

– Como está velho! pensou Paulino; eu decerto não o reconheceria,
se o supusesse tão morto como ele me supõe a mim! Deixá-lo!
Eu morri deveras, e nada lucraria em ressuscitar, mesmo para ele, que era
o meu único amigo.

* * *

Bem inspirado andou o morto em não se dar a conhecer, porque, alguns
dias depois, achando-se num bondinho da Praça Onze, atravessando a
Rua do Riachuelo, viu entrar no carro o Vespasiano acompanhado por uma senhora
que era Adelaide sem tirar nem pôr.

Paulino conteve o natural sobressalto que lhe causou aquela aparição.

Ela vinha muito irritada. Logo que se sentou, voltou-se com mau modo para
Vespasiano, e disse-lhe:

– Eu logo vi que você me dizia que não!

Paulino reconheceu a voz da sua viúva.

– Mas, reflete bem, Adelaide; aquele dinheiro está destinado para
o aluguel da casa, e tu não tens assim tanta necessidade de uma capa
de seda!

Adelaide soltou um longo suspiro, e expectorou esta queixa bem alto para
que todos a ouvissem:

– Meu Deus! que sina a minha de ter maridos pingas! Você ainda é
pior que o outro!

– Ah! se ele pudesse ver-nos lá do outro mundo, murmurou entre os
dentes Vespasiano, como se riria de mim!

Roberto ficou muito sério, olhando com indiferença para a rua,
mas Paulino riu-se, efetivamente, no fundo do oceano.

(Correio da Manha; 5 de abril de 1903)

VINGANÇA

Quando Madame d’Arbois chegou ao Rio de Janeiro, escriturada numa troupe
parisiense que fez as delicias dos freqüentadores do Cassino Franco Brésilien,
muitos rapazes se apaixonaram por ela. Dizia-se que Madame d’Arbois resistia
heroicamente a todas as seduções, guardando absoluta fidelidade
ao marido, um cabotin qualquer, que ficara em França, esperando filosoficamente
que ela voltasse da América, endinheirada e feliz.

O jovem Comendador Cardoso, que não acreditava em Penélopes
de bastidores, e era, em questões eróticas, de uma diplomacia
insigne, com tanta habilidade soube levar água ao seu moinho, que,
ao cabo de dois meses, vivia maritalmente com Madame d’Arbois.

Por esse tempo dissolveu-se a troupe, e o jovem Comendador Cardoso aproveitou.
o ensejo para pedir à amiga que abandonasse o teatro Nada lhe faltaria
em casa dele, que era negociante e rico. Ela aceitou depois de muito hesitar,
impondo como condição, que ele estabeleceria ao marido, em Paris,
uma pequena mesada de quinhentos francos.

Durante um ano as delícias dessa mancebia não foram perturbadas
pela mais leve contrariedade. O jovem Comendador Cardoso e Madame d’Arbois
pareciam talhados um para o outro. Ele era um homem simpático, de trinta
anos, pouco instruído é verdade, mas senhor desses hábitos
sociais que até certo ponto dispensam a educação literária.
Ela era uma mulher bonita, alegre, quase espirituosa, e uma senhora dona de
casa, econômica e asseada como todas as francesas. Que mais poderiam
ambos desejar….

*

Tudo cansa. Ao cabo de um ano, Madame d’Arbois começou a sentir nostalgia
dos bastidores. Demais a mais, aconteceu que o empresário da melhor
companhia brasileira de operetas, mágicas e revistas, lhe ofereceu
um vantajoso contrato, convidando-a, nada mais nem menos para substituir a
estrela de maior grandeza que então brilhava no firmamento do teatro
fluminense, estrela que se retirava temporariamente para a Europa.

O jovem Comendador Cardoso pôs os pés à parede. Que não,
que não, que não! A Lolotte – Madame d’Arbois chamava-se Charlotte
– não precisava trabalhar para viver! Que o não aborrecessem!

– Mais non, mais non! Il ne s’agit point d’argent, mon pauvre chêri
– obtemperava Lolotte. – Je sens que je ferai une g’rosse maladie si je ne
rétourne pas au théâtre! Eh bien… voyons… sois gentil…
Il faut que tu y consentes…

Um negociante, compadre do empresário, foi ter com o jovem Comendador
Cardoso, de quem era amigo íntimo, e interveio com muito empenho:

– Que diabo! Consente, Cardosinho, consente! Se não lhe fazes a vontade,
ela contraria-se, e não há nada pior que uma mulher contrariada.
Depois, vê lá: não é nada, não é
nada, mas sempre são seiscentos bagarotes que a pequena mete no banco
todos os meses! Não vás tu privá-la desse pecúlio!

Este último argumento foi irresistível. Mês e meio depois,
Madame d’Arbois estreava-se no papel da protagonista de uma opereta.

Foi completo o seu triunfo. Ela falava um português fantástico,
e na cantoria desafinava que era um horror, mas o público, o magnânimo
público fluminense, fechou os olhos a esses defeitos, e aplaudiu-a
freneticamente. Madame d’Arbois teve que repetir três vezes certas coplas
cuja letra ninguém percebia, mas eram cantadas com um movimento de
quadris capaz de entontecer um santo.

*

Razão tinha o jovem Comendador Cardoso em não querer que a
amiga voltasse para o teatro. Dentro de pouco tempo notou nas suas maneiras
uma diferença enorme. A diva contrariava-se visivelmente quando ele,
cansado de esperá-la no saguão do teatro, penetrava até
o camarim.

Uma vez encontrou lá dentro, familiarmente sentado, o Lopes, o primeiro
ator cômico da companhia, que logo se retirou, dizendo:

– Adeusinho, comendador; vim cá restituir à colega o rouge
que lhe pedira emprestado.

Ele não podia desconfiar do Lopes. Era este um artista de talento,
e o público estimava-o deveras, mas a Lolotte poderia lá gostar
de um homem tão feio, tão desdentado e tão pouco cuidadoso
da sua roupa!

Entretanto, uma carta anônima, escrita com letra de mulher, tudo lhe
disse. A primeira atriz cantora e o primeiro ator cômico encontravam-se,
quase todos os dias, depois do ensaio, em casa de uma corista, perto do teatro.

Um dia, o jovem Comendador Cardoso, depois de se haver posto em observação
numa casa que ficava em frente à da hospitaleira corista, saiu, atravessou
a rua e entrou na sala das entrevistas. Lolotte estava sentada, de pernas
cruzadas, a fumar um cigarro turco; o Lopes de pé, em ceroulas.

O primeiro ator cômico, ao ver o jovem Comendador Cardoso, não
perdeu o sangue-frio, e começou a fingir que estava a ensaiar.

– É como vos digo, Princesa Briolanja; o rei, vosso pai, não
acredita nas palavras da Fada das Safiras, e quer absolutamente encontrar
TIOS seus remos um mancebo, fidalgo ou vilão, que vença o Dragão
Vermelho, e vos despose!…

Mas o jovem Comendador Cardoso não engoliu a pílula, e disse,
dirigindo-se à Princesa Briolanja, que continuava a fumar o seu cigarro
turco:

– Bem; estou satisfeito; vi o que queria ver. Fique-se com o senhor Lopes,
que realmente é digno da senhora!

E saiu arrebatadamente.

– E agora? – perguntou o cômico.

– Oh! Ele voltará! – afirmou ela, carregando os erres, entre uma baforada
de fumo.

E foram deitar-se.

*

O jovem Comendador Cardoso não voltou, e Madame d’Arbois ficou bastante
contrariada, porque o ator Lopes tinha numerosa família – mulher e
filhos – e não lhe dava um vintém. Demais, ela bem depressa
fartou-se desses amores reles. Que doidice a sua: trocar por aquele tipo um
rapaz rico, inteligente, simpático e generoso!

Acresce que a opereta, recebida com grande entusiasmo durante as primeiras
trinta representações, já não atraía o
público; o teatro ficava agora todas as noites vazio e o empresário
já devia um mês de ordenados à companhia…

*

A primeira representação da peça que estava em ensaios,
a tal em que entravam a Fada das Safiras e o Dragão Vermelho, devia
ser dada em beneficio do Lopes, e esse espetáculo era ansiosamente
esperado. O beneficiado via-se doido para atender aos numerosos pedidos de
bilhetes. Nos jornais apareciam todos os dias grandes reclames à "festa
artística", anunciada também pelas esquinas em vistosos
cartazes, onde este nome – LOPES – se destacava em enormes caracteres vermelhos.

Chegou a noite do espetáculo. Às sete horas e meia as torrinhas,
os corredores e o jardim do teatro já estavam apinhados. Uma hora depois,
a sala transbordava, e toda aquela gente abanava-se com leques, ventarolas,
lenços e programas, bufando de calor. Os espectadores das torrinhas
batiam com os pés e as bengalas, e dirigiam chufas aos da platéia
e dos camarotes, talvez com a idéia de se vingarem de os ver em lugares
menos incômodos. Os críticos teatrais estavam a postos. Os músicos
afinavam os instrumentos; um garoto apregoava o retrato e a biografia do glorioso
Lopes; as conversações cruzavam-se; e todos esses ruídos
juntos produziam um barulho ensurdecedor e terrível.

De repente, ouviu-se o agudo som de uma sineta ao mesmo tempo que uma campainha
elétrica retinia longamente, e a sala, até então que
se escura, aparecia numa intensidade de luz, arrancando um prolongado O…
o… 0k… das torrinhas… Eram nove horas.

Restabelecido o silêncio, o regente da orquestra subiu vagarosamente
para o seu lugar, abriu a partitura, falou em voz baixa a alguns músicos,
bateu três pancadas na estante, levantou a batuta, e fez executar a
ouverture.

Terminada esta, naturalmente esperavam todos que o pano subisse, mas não
subiu.

Passaram-se alguns minutos.

Começou o público a impacientar-se, batendo com os pés.
A pateada cresceu. Uma ordenança foi destacada do camarote da polícia
para o palco. O beneficiado, vestido de escudeiro de mágica, surdiu
no proscênio e foi recebido com uma salva de palmas. Mas de todos os
lados fizeram: Psiu! psiu! – e o barulho cessou.

– Respeitável público – disse o primeiro ator cômico
– o espetáculo não pode ter começo, porque a atriz Madame
d’Arbois, incumbida de um dos principais papéis, até agora não
apareceu no teatro. Rogo-vos humildemente que espereis alguns minutos mais,
e me perdoeis esta falta, inteiramente alheia à minha vontade.

Esse cavaco foi acolhido com outra salva de palmas. O Lopes retirou-se, cumprimentando
e agradecendo para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, e os
comentários, os risos, as imprecações e os gracejos começaram
num vozerio atroador.

De vez em quando saíam da caixa do teatro, ou para lá entravam,
correndo pelo corredor, pessoas azafamadas, espavoridas – empregados da contra-regra,
costureiras, etc. – mandadas à procura de Madame d’Arbois.

Passava das nove e meia quando o Lopes, coagido pela polícia, veio
de novo ao proscênio declarar que, não se achando Madame d’Arbois
no teatro nem na casa de sua residência, ficava o espetáculo
transferido para quando se anunciasse.

Desta vez não houve palmas que saudassem o primeiro ator cômico.

A saída dos espectadores fez-se no meio de uma confusão indescritível.
Muitos exigiram que lhes fosse restituído o dinheiro, e promoveram
desordem na bilheteria. Foi necessária a intervenção
da polícia. Só às onze horas pode ser restabelecida a
ordem e fechado o teatro.

*

Onde estava Madame d’Arbois?

No dia do espetáculo ela acabara de jantar, e, reclinada na sua espreguiçadeira,
relia mais uma vez o interessante papel de Princesa Briolanja, que devia representar
essa noite, quando lhe trouxeram uma carta do jovem Comendador Cardoso.

– Ah! Ah! – pensou a francesa com um sorriso de triunfo. – Voltou ou não
voltou?

E abriu a carta:

"Lolotte – Escreveste-me, pedindo que te perdoasse. Perdôo-te,
mas sob uma condição: deixarás de representar hoje no
beneficio do homem que foi o causador da nossa separação, ou,
por outra, nunca mais representarás. Só assim serei para ti
o mesmo que já fui. Se aceitas, mete-te no carro que ai te irá
buscar às sete horas da noite, e vai ter comigo no Hotel Laroche, no
alto da Tijuca, onde estou passando uns dias, e onde ficaras em minha companhia.
Se não, não. – Cardoso."

Princesa Briolanja leu e releu esse bilhete.

Era o perdão, era o descanso, era a fortuna, que lhe traziam aquelas
letras. Deixando de comparecer ao espetáculo, ela praticava uma ação
feia, provocava um escândalo inaudito, mas isso que lhe importava, se
saía do teatro e ia outra vez estar de casa e pucarinha com aquele
homem distinto a quem tantos favores e tanto afeto devia?

Pouco depois da hora aprazada, Lolotte entrou no discreto coupé que
a esperava à porta de casa, e chegou ao Hotel Laroche precisamente
na ocasião em que o Lopes, desesperado, apelava para a paciência
do público.

*

Ao entrar no hotel, Madame d’Arbois perguntou a um criado:

– O Comendador Cardoso?

– Não está, mas deixou um bilhete para Madame d’Arbois. ~ a
senhora?

– Sim, sou eu.

E a desgraçada leu o seguinte:

"Caíste como um patinho, minha toleirona. Estou vingado de ti
e do teu Lopes. Volta para ele; é tão pulha, que talvez te aceite
ainda. – Cardoso."

VOVÓ ANDRADE

Ele aparecera um belo dia na casa de pensão de Dona Eugênia,
acompanhado de três baús e um pequeno cofre de ferro. Pedira
o aposento mais barato, e regateara o preço da comida, porque, dizia
ele, estava habituado a tomar uma única refeição por
dia, e parca, muito parca.

Ninguém sabia de onde vinha aquele velho, nem ele o dizia, conquanto
não fosse precisamente um taciturno. Gostava de dar à língua,
mas quando algum abelhudo o interrogava sobre a sua vida, ele não respondia,
dando a entender apenas, por meias palavras, que passara por sérios
dissabores, que tinha sofrido muito e mudara de terra para que ninguém
lhe lembrasse o passado.

Sabia-se apenas que se chamava Andrade, era português, e emigrara muito
criança para uma das nossas províncias onde viveu perto de sessenta
anos.

Não consentia entrassem no seu quarto que ele próprio varria
e espanava, deixando-se ficar horas e horas sozinho, fechado à chave,
abrindo e remexendo o cofre e os baús.

Um dos hóspedes, o Braguinha, guarda-livros de uma casa importante,
afirmou ouvir no aposento do velho o tilintar de moedas de ouro.

– Aquilo é uma espécie de tio Gaspar, dos Sinos de Corneville
– afirmava o dito Braguinha com uma convicção que se comunicou
aos outros hóspedes.

*

Mas podia lá ser! O velho Andrade tinha a roupa no fio, o chapéu
surrado, os sapatos a rir, e era com um suspiro doloroso e profundo que pagava,
no fim do mês, a sua módica pensão.

*

A dona da casa, que era viúva, e tinha três filhos, três
bonitos rapazes, o mais velho dos quais contava apenas treze anos, também
se convenceu de que o seu novo hóspede era um avarento sórdido;
intimá-lo-ia, talvez, a procurar cômodo noutra parte, se ele
não se tivesse afeiçoado desde logo aos três meninos,
mostrando-lhes uma simpatia fora do comum, contando-lhes histórias
que os divertiam. Quem meus filhos beija minha boca adoça.

– Adoro as crianças – dizia o velho a Dona Eugênia. – Que quer?
Não tenho mais ninguém sobre a terra: sou completamente só.

– Só? Pois nem um parente?…

– Nem um aderente, minha senhora! A morte levou-me quantos eu amava, e esqueceu-se
de mim neste mundo de atribulações e misérias.

*

Havia um negociante, o Barbosa, sujeito de meia idade, compadre da Dona
Eugênia, que a visitava miúdo e a assistia com os seus conselhos
de homem prático. As más línguas diziam que esse amigo
do defunto era alguma coisa mais que um simples conselheiro, porém
sobre esse ponto não tenho nenhuma indicação exata, nem
ele importa à minha narrativa.

A verdade é que, com a morte do marido, Dona Eugênia se achou
numa situação muito precária, e foi o compadre quem lhe
forneceu o capital necessário para o estabelecimento da casa de pensão,
que prosperava.

Um dia em que Dona Eugênia lhe disse que a presença do misterioso
velhote a aborrecia, e ela já o teria posto a andar, se ele se não
mostrasse tão amigo dos rapazes, o Barbosa retorquiu:

– Pô-lo a andar? Que lembrança! Pelo contrário: conserve-o.
Este hóspede foi a fortuna que lhe entrou em casa!

– A fortuna?

– A fortuna, sim! É um velho rico e avarento, que não tem herdeiros…
Pô-lo fora! Que idéia! Trate-o com todo o carinho, e faça
com que seus filhos o respeitem e o amem.

Naquela casa o Barbosa tinha sempre razão. Poucos dias depois, Dona
Eugênia oferecia ao velho Andrade, pelo mesmo preço, um aposento
maior, mais espaçoso, mais arejado, com boa mobília, colchão
de arame e duas janelas dizendo para o jardim.

Fez mais: obrigou-o, com bons modos, a tomar duas refeições
por dia, como os demais hóspedes, e pela manhã mandava-lhe chocolate
ou café com leite e biscoitos.

O velho derramava lágrimas de reconhecimento, admirando-se, dizia
ele, de tanta bondade para com um pobre diabo inútil, que não
tinha onde cair morto.

Dona Eugênia conseguiu, com a habilidade de um diplomata, saber o dia
em que fazia anos o velho, e nesse dia o pobre homem foi presenteado pelos
menos com roupa e calçado. Agora não lhe faltava nada.

O Braguinha, vendo que o velho simpatizava com ele, e na esperança
de ser contemplado por sua morte, começou também a mimoseá-lo
com guloseimas, charutos finos, livros interessantes, jornais ilustrados,
etc.

Entretanto, o velho não modificou os seus hábitos de solidão.
Ninguém lhe entrava no quarto onde continuava diariamente, durante
horas e horas – a abrir e fechar o cofre e os baús.

Um dia, quando ele ia pagar a Dona Eugênia a sua pensão, esta
disse-lhe:

– Não se ofenda com ~ que lhe vou pedir: guarde o seu dinheiro; não
tem que pagar coisa alguma; a sua mensalidade não me faz ficar mais
rica nem mais pobre; quero que o senhor seja considerado nesta casa como pessoa
da família.

*

A situação durou assim muito tempo. O velho Andrade passava
uma vida de lorde, tratado a vela de libra.

Agora manifestava desejos, apetecia coisas, e bastava a mais leve insinuação
para ser logo presenteado tanto pela viúva como pelo Braguinha.

Este foi afastado a conselho do prudente Barbosa. Era um concorrente perigoso.
Tantas ‘fizeram que o guarda-livros foi obrigado a mudar-se, não deixando,
contudo, de visitar o velho todas as vezes que o podia fazer, porque a viúva
seqüestrava o seu precioso hóspede.

*

Já estava o Andrade havia dois anos na casa de pensão, quando
uma noite, achando-se a sós com Dona Eugênia, disse-lhe:

– Quero fazer-lhe urna comunicação, minha santa protetora.
Estou velho ~ posso morrer de um momento para outro…

– Não diga isso; o senhor tem para dar e levar!

– Há lá no meu quarto um cofre de ferro cuja chave está
sempre comigo. Esse cofre é um absurdo, uma fantasia, porque nada tenho
senão quatro patacas e umas bugigangas sem valor. Pois bem; previno-a
de que lá dentro está o meu testamento… – O seu testamento!
dirá a senhora; mas você não tem o que deixar! – Pois
tenho. sim, senhora – tendo naqueles baús muitos objetos, de nenhum
valor, é verdade, mas que, se eu fechasse os olhos sem ter feito as
minhas disposições testamentárias, seriam arrecadados
pelo consulado português e vendidos em hasta pública. É
isso que desejo evitar, dando destino ao que é meu.

Essa revelação fez com que redobrassem os carinhos que cercavam
o velho. Levavam-no aos teatros, às festas, aos passeios; enchiam-no
de marmeladas e vinhos finos. Os meninos habituaram-se a chamar-lhe "vovô
Andrade".

E o hóspede tornou-se caro. Só não lhe davam médico
e botica, porque tinha uma saúde de ferro, e nunca precisou disso.

E sempre a mesma reserva, sempre o mesmo mistério sobre o seu passado;
não havia meio de lhe arrancar uma confidência!

*

Dona Eugênia começou a impacientar-se:

– Este velho é capaz de nos enterrar a todos!

– Tenha paciência; ature-o, que há de receber capital e juros
acumulados – dizia o Barbosa. – Naquela idade o homenzinho não pode
ir muito longe.

E não foi.

Justamente no dia em que se completavam cinco anos que era hóspede
da casa de pensão, vovô Andrade caiu fulminado por uma apoplexia.
Para festejar o quinto aniversário das suas relações,
Dona Eugênia obsequiara-o com um opíparo jantar, abundantemente
regado e ele comeu e bebeu demais.

Os meninos que já estavam crescidos (o mais velho ia fazer dezoito
anos) choraram sinceramente. A viúva, insofrida, quis abrir logo o
cofre, e tê-lo-ia feito se o discreto Barbosa lho não obstasse.

– Não mexa em cousa alguma. Vou chamar quem de direito.

Veio a autoridade consular, que abriu o cofre. Este continha, efetivamente,
um invólucro subscritado com estas palavras: "Meu testamento",
e cerca de trezentos mil réis em notas do Tesouro e moedas de prata
e ouro, as tais que tilintavam aos ouvidos do Braguinha.

Dois baús estavam cheios de ferros velhos, trapos, coisas inúteis,
e o outro continha objetos que representavam algum valor: a roupa e os demais
presentes com que o vovô Andrade tinha sido durante cinco anos obsequiado
na casa de pensão.

O testamento dizia:

"Achando-me septuagenário e reduzido à miséria,
sem um parente, sem um amigo, depois de uma vida inteira de trabalhos e infortúnios,
tinha que optar entre a mendicidade e o suicídio.

Não optei por uma nem por outra coisa: mudei de terra, fingi-me rico
e avarento, bastante para isso dois velhos baús e um cofre de ferro,
último vestígio de melhores tempos.

Graças a esse ardil, encontrei tudo quanto me faltava, e mais alguma
coisa.

Uns dirão que fui tratante; dirão outros que fui filósofo.
Para mim é o mesmo.

Dentro do cofre encontrarão a quantia necessária para o meu
enterro".

*

Quem se lavou em água de rosas foi o Braguinha.

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