Poesias – Bocage

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A
Camões, Comparando com os dele os seus Próprios Infortúnios

A Lamentável Catástrofe

A Macaca

A Ulina

A um célebre mulato Joaquim
Manuel

A um mau médico

A um mulato comilão que murmurava
de mim

Ao Sr. Tomé Barbosa de Figueiredo
de Almeida Cardoso

Aos sócios da “Nova Arcádia”

Apenas vi do dia a luz brilhante

Arrimado às duas Portas

Auto-retrato

Camões, grande Camões, quão
semelhante

Cantata à morte de Inês de
Castro

Cartas de Olinda e Alzira

Certo enfermo, homem sisudo

Das terras a pior tu és, ó
Goa

De Cerúleo Gabão não Bem

Coberto

Desejo Amante

Em louvor do grande Camões

Epístola a Marília

Epitáfio – Se estiver nos meus
fados a próxima extinção de meus dias

 

Incultas
produções da mocidade

Invocação à Noite

Já Bocage não sou!… À cova
escura

Já sobre o coche de ébano estrelado

Magro, de Olhos Azuis

Meu ser evaporei na lida insana

Meu Ser Evaporei na Luta Insana

Negra fera, que a tudo as garras
lanças

O Autor aos seus versos

O céu, de opacas sombras abafado

O Ciúme

O Macaco Declamando

O Poeta Asseteado por Amor

Ó retrato da Morte! Ó Noite
amiga

Ó tranças de que Amor prisões
me tece

Ó trevas, que enlutais a Natureza

Outro soneto ao França

Outro Soneto do Prazer Efêmero

Quer ver uma perdiz chocar
um rato

Retrato Próprio

Saiba morrer o que viver não
soube

Se Quereis, Bom Monarca, ter
Soldados

 

Sobre
estas Duras

Soneto (des) Pejado

Soneto Anticlerical

Soneto ao Árcade França

Soneto ao Árcade Lereno

Soneto ao Leitão

Soneto arc Choroso

Soneto do Corno Interesseiro

Soneto do Diálogo Conjugal

Soneto do Gozador Coçador

Soneto do Gozo Vitorioso

Soneto do Juramento

Soneto do Lascivo Pezinho

Soneto do Membro Monstruoso

Soneto do Mouro Desmoralizado

Soneto do Padre Patife

Soneto do Pau Decifrado

Soneto do Prazer Efêmero

Soneto do Prazer Maior

Soneto do Velho Escandaloso

Soneto Napoleônico

Sonetos e Outros Poemas

Um Procurador de Causas

Visão Realizada

A Camões, Comparando com os dele os seus Próprios Infortúnios

Ó Céus! Que sinto n’alma! Que tormento!
Que repentino frenesi me anseia!
Que veneno a ferver de veia em veia
Me gasta a vida, me desfaz o alento!

Tal era, doce amada, o meu lamento;
Eis que esse deus, que em prantos se recreia,
Me diz: <<A que se expõe quem não receia
Contemplar Ursulina um só momento!

>>Insano! Eu bem te vi dentre a luz pura
De seus olhos travessos, e cum tiro
Puni tua sacrílega loucura:

>>De morte, por piedade hoje te firo;
Vai pois, vai merecer na sepultura
À tua linda ingrata algum suspiro.>>

A Lamentável Catástrofe

Da triste, bela Inês, inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos Céus andas pedindo
Justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se inda na Fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morte formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c’roa
A malfadada Inês na sepultura.

A Macaca

Nos serros do Brasil diz certo autor que
havia
Uma namoradeira, uma sagaz bugia.
Milhões de chichisbéus pela taful guinchavam,
E por não terem asa, o rabo lhe arrastavam.
Qual, caindo-lhe aos pés de amores cego e
louco,
Nas cabeludas mãos lhe apresentava um coco;
Qual do açúcar brilhante a sumarenta cana;
E qual um ananás, e qual uma banana.
Ela com riso astuto, ela com mil caretas,
Lhe entretinha a paixão, lhe ia doirando as
petas;
Os olhos requebrava ao som de um
suspirinho:
A todos prometia o mais fiel carinho,
E, se algum lhe rogava especial favor,
À terna petição dizia: "Sim, senhor."
Mas com muita esperança o fruto era nenhum,
E os pobres animais ficavam em jejum.
Leitores, há mulher tão destra e tão velhaca,
Que nisto não ganha inda a melhor macaca.

A Ulina

Da miseranda Inês o caso triste
Nos tristes sons, que a mágoa desafina,
Envia o terno Elmano à terna Ulina,
Em cujos olhos seu prazer consiste.

Paixão, que, se a sentir, não lhe resiste
Nem nos brutos sertões alma ferina,
Beleza funestou quase divina,
De que a memória em lágrimas existe.

Lê, suspira, meu bem, vendo um composto
De raras perfeições aniquilado
Por mãos do Crime, à Natureza oposto.

Tu és cópia de Inês, encanto amado;
Tu tens seu coração, tu tens seu rosto…
Ah!, defendam-te os Céus de ter seu fado!

A um célebre mulato Joaquim Manuel

A um célebre mulato Joaquim Manuel,
grande tocador de viola e improvisador de modinha.

Esse cabra ou cabrão, que anda na berra,
Que mamou no Brasil surra e mais surra,
O vil estafador da vil bandurra,
O perro, que nas cordas nunca emperra:

O monstro vil que produziste, ó Terra
Onde narizes Natureza esmurra,
Que os seus nadas harmônicos empurra,
Com parda voz, das paciências guerra;

O que sai no focinho à mãe cachorra,
O que néscias aplaudem mais que a "Mirra",
O que nem veio de prosápia forra;

O que afina inda mais quando se espirra,
Merece à filosófica pachorra
Um corno, um passa-fora, um arre, um irra.

A um mau médico

Doutor, até do hospital
Te sacode enfermo bando.
Qual será disto a causal?
É porque, em tu receitando,
Qualquer doença é mortal.

A um mulato comilão que murmurava de mim

Dizem que Flávio glutão
Em Bocage aferra o dente:
Ora é forte admiração
Ver um cão morder na gente!

Ao Sr. Tomé Barbosa de Figueiredo de Almeida Cardoso

Ao Sr. Tomé Barbosa de Figueiredo de Almeida Cardoso,
oficial de Línguas na Secretaria dos Negócios Estrangeiros

Dos tórrido sertões, pejados de oiro,
Saiu um sabichão de escassa fama,
Que os livros preza, os cartapácios ama,
Que das línguas repartem o tesoiro.

Arranha o persiano, arranha o moiro,
Sabe que Deus em turco Allah se chama;
Que no grego alfabeto o G é gama,
Que taurus em latim quer dizer toiro.

Para papaguear saiu do mato:
Abocanha talentos, que não goza;
É mono, e prega unhadas como gato.

É nada em verso, quase nada em prosa:
Não conheces, leitor, neste retrato
O guapo charlatão Tomé Barbosa?

Aos sócios da “Nova Arcádia”

Vós, ó Franças, Semedos, Quintanilhas,
Macedos e outras pestes condenadas;
Vós, de cujas buzinas penduradas
Tremem de Jove as melindrosas filhas;

Vós, néscios, que mamais das vis quadrilhas
Do baixo vulgo insossas gargalhadas,
Por versos maus, por trovas aleijadas,
De que engenhais as vossas maravilhas,

Deixai Elmano, que, inocente e honrado
Nunca de vós se lembra, meditando
Em coisas sérias, de mais alto estado.

E se quereis, os olhos alongando,
Ei-lo! Vede-o no Pindo recostado,
De perna erguida sobre vós mijando.

Apenas vi do dia a luz brilhante

Apenas vi do dia a luz brilhante

Lá de Túbal(1) no empório celebrado,

Em sanguíneo carácter foi marcado

Pelos Destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros(2) a morte devorante

Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;

Segui Marte depois, e em fim meu fado

Dos irmãos e do pai me pôs distante.

Vagando a curva terra, o mar profundo,

Longe da pátria, longe da ventura,

Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura

Essas quimeras, esses bens do mundo,

Suspiro pela paz da sepultura.

1 -> Setúbal

2 -> aos 10 anos

Arrimado às duas Portas

Arrimado às duas portas
Pingue boticário estava,
E brandamente acenou
A um doutor que passava.

Mal que chega o bom Galeno,
Diz o outro com ar jocundo:
"Unamo-nos, meu doutor,
E demos cabo do Mundo!"

Auto-retrato

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno:

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades,
(Digo de moças mil) num só momento
Inimigo de hipócritas, e frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento:
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia, em que se achou cagando ao vento.

Camões, grande Camões, quão semelhante

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co’o sacrílego gigante.

Como tu, junto ao Ganges sussurante,
Da penúria cruel no horror me vejo.
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas . . . oh, tristeza! . . .
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

Cantata à morte de Inês de Castro

As filhas do Mondego a morte escura,
Longo tempo, chorando, memoraram.
CAMÕES, Lusíadas. Canto 3, cxxxv

Longe do caro Esposo Inês formosa
Na margem do Mondego
As amorosas faces aljofrava
De mavioso pranto.
Os melindrosos, cândidos penhores
Do tálamo furtivo,
Os filhinhos gentis, imagem dela,
No regaço da mãe serenos gozam
O sono da inocência.
Coro subtil de alígeros Favónios
Que os ares embrandece,
Ora enlevado afaga
Com as plumas azuis o par mimoso,
Ora solto, inquieto,
Em leda travessura, em doce brinco,
Pela amante saudosa,
Pelos ternos meninos se reparte,
E com ténue murmúrio vai prender-se
Das áureas tranças nos anéis brilhantes.
Primavera louçã, quadra macia
Da ternura e das flores,
Que à bela Natureza o seio esmaltas,
Que no prazer de Amor ao mundo apuras
O prazer da existência,
Tu de Inês lacrimosa
As mágoas não distrais com teus encantos.
Debalde o rouxinol, cantor de amores,
Nos versos naturais os sons varia;
O límpido Mondego em vão serpeia
Co’um benigno sussurro, entre boninas
De lustroso matiz, almo perfume;
Em vão se doira o Sol de luz mais viva,
Os céus de mais pureza em vão se adornam
Por divertir-te, ó Castro;
Objectos de alegria Amor enjoam,
Se Amor é desgraçado.
A meiga voz dos Zéfiros, do rio,
Não te convida o sono:
Só de já fatigada
Na luta de amargosos pensamentos
Cerras, mísera, os olhos;
Mas não há para ti, para os amantes
Sono plácido e mudo;
Não dorme a fantasia, Amor não dorme:
Ou gratas ilusões, ou negros sonhos
Assomando na ideia, espertam, rompem
O silêncio da Morte.
Ah!, que fausta visão de Inês se apossa!
Que cena, que espectáculo assombroso
A paixão lhe afigura aos olhos d’alma!
Em marmóreo salão de altas colunas,
A sólio majestoso e rutilante
Junto ao régio amador se crê subida;
Graças de neve a púrpura lhe envolve,
Pende augusto dossel do tecto de oiro,
Rico diadema de radioso esmalte
Lhe cobre as tranças, mais formosas que ele;
Nos luzentes degraus do trono excelso
Pomposos cortesãos o orgulho acurvam;
A lisonja sagaz lhe adoça os lábios;
O monstro da política se aterra
E, se Inês perseguia, Inês adora.
Ela escuta os extremos,
Os vivas populares; vê o amante
Nos olhos estudar-lhe as leis que dita;
O prazer a transporta, amor a encanta;
Prémios, dádivas mil ao justo, ao sábio
Magnânima confere;
Rainha esquece o que sofreu vassala:
De sublimes acções orna a grandeza,
Felicita os mortais; do ceptro é digna,
Impera em corações… Mas, Céus! Que estrondo
O sonho encantador lhe desvanece!
Inês sobressaltada
Desperta, e de repente aos olhos turvos
Da vistosa ilusão lhe foge o quadro.
Ministros do Furor, três vis algozes,
De buídos punhais a dextra armada,
Contra a bela infeliz, bramando, avançam.
Ela grita, ela treme, ela descora;
Os frutos da ternura ao seio aperta,
Invocando a piedade, os Céus, o amante;
Mas de mármore aos ais, de bronze ao pranto,
À suave atracção da formosura,
Vós, brutos assassinos,
No peito lhe enterrais os ímpios ferros.
Cai nas sombras da morte
A vítima de Amor lavada em sangue;
As rosas, os jasmins da face amena
Para sempre desbotam;
Dos olhos se lhe some o doce lume;
E no fatal momento
Balbucia, arquejando: «Esposo! Esposo!»

Os tristes inocentes
À triste mãe se abraçam,
E soltam de agonia inútil choro.
Ao suspiro exalado,
Final suspiro da formosa extinta,
Os amores acodem.
Mostra a prole de Inês, e tua, ó Vénus,
Igual consternação e igual beleza:
Uns dos outros os cândidos meninos
Só nas asas diferem
(Que jazem pelo campo em mil pedaços
Carcases de marfim, virotes de oiro).
Súbito voam dois do coro alado:
Este, raivoso, a demandar vingança
No tribunal de Jove;
Aquele a conduzir o infausto anúncio
Ao descuidado amante.
Nas cem tubas da Fama o grão desastre
Irá pelo Universo.
Hão-de chorar-te, Inês, na Hircânia os tigres;
No torrado sertão da Líbia fera,
As serpes, os leões hão-de chorar-te.
Do Mondego, que atónito recua,
Do sentido Mondego as alvas filhas
Em tropel doloroso
Das urnas de cristal eis vêm surgindo;
Eis, atentas no horror do caso infando,
Terríveis maldições dos lábios vibram
Aos monstros infernais, que vão fugindo,
Já c’roam de cipreste a malfadada,
E, arrepelando as nítidas madeixas,
Lhe urdem saudosas, lúgubres endeixas.
Tu, Eco, as decoraste,
E, cortadas dos ais, assim ressoam
Nos côncavos penedos, que magoam:

«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores;
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.

«Mísero esposo,
Desata o pranto,
Que o teu encanto
Já não é teu.

«Sua alma pura
Nos Céus se encerra;
Triste da Terra,
Porque a perdeu.

«Contra a cruenta
Raiva íerina,
Face divina
Não lhe valeu.

«Tem roto o seio
Tesoiro oculto,
Bárbaro insulto
Se lhe atreveu.

«De dor e espanto
No carro de oiro
O Númen loiro
Desfaleceu.

«Aves sinistras
Aqui piaram
Lobos uivaram,
O chão tremeu.

«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores:
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.»

Cartas de Olinda e Alzira

Que estranha agitação não sinto n’alma
Depois que te perdi, querida Alzira!
De meus olhos fugiu, sumiu-se o fogo,
Que a tua companhia incendiava!
Por uma vez se foi minha alegria,
Nem a mesma já sou, que outrora hei sido!
Minhas vistas ao céu lânguidas se erguem,
E a mim própria pergunto d’onde venha
Tão novo sentimento assoberbar-me?
Não se aquieta o coração no peito,
Não cabe nele, e viva chama no íntimo
Das entranhas ardente me devora,
Sem que eu possa atinar a causa, a origem.
Aqueles passatempos que na infância
Tão do peito queria, em ódio os tenho.
Das mesmas superioras a presença,
Que d’antes para mim era indif’rente,
Se me torna hoje dura, intolerável!
Aonde, aonde irão estes impulsos
Precipitar a malfadada Olinda?
Será, querida Alzira, a tua ausência,
Que me faz derramar tão agro pranto?
Debalde a largos passos solitária
Vago sem norte: ignoro o que procuro;
Ah! Minha cara! Os males que tolero
Expressá-los não posso, nem sofrê-los.

Certo enfermo, homem sisudo

Certo enfermo, homem sisudo,
Deixou por condescendência
Chamar um doutor, que tinha
Entre os mais a preferência.

Manda-lhe o fofo Esculápio
Que bote a língua de fora,
E envia dez garatujas
À botica sem demora.

"Com isto (diz ao doente)
A sepultura lhe tapo".
Replica o pobre a tremer:
"Aposto que não escapo".

Das terras a pior tu és, ó Goa

Das terras a pior tu és, ó Goa,
Tu pareces mais ermo que cidade,
Mas alojas em ti maior vaidade
Que Londres, que Paris ou que Lisboa.

A chusma de teus íncolas pregoa
Que excede o Grão Senhor na qualidade;
Tudo quer senhoria; o próprio frade
Alega, para tê-la, o jus da c’roa!

De timbres prenhe estás; mas oiro e prata
Em cruzes, com que dantes te benzias,
Foge a teus infanções de bolsa chata.

Oh que feliz e esplêndida serias,
Se algum fusco Merlim, que faz bagata,
Te alborcasse a pardaus as senhorias!

De Cerúleo Gabão não Bem Coberto

De cerúleo gabão não bem coberto,
Passeia em Santarém chuchado moço,
Mantido às vezes de sucinto almoço,
De ceia casual, jantar incerto;

Dos esburgados peitos quase aberto,
Versos impinge por miúdo e grosso.
E do que em frase vil chamam caroço,
Se o quer, é vox clamantis in deserto.

Pede às moças ternura, e dão-lhe motes!
Que tendo um coração como estalage,
Vão nele acomodando a mil pexotes.

Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,
Cercado de um tropel de franchinotes?
É o autor do soneto: é o Bocage!

Desejo Amante

Sonhei que a mim correndo o gnídeo nume
Vinha coa Morte, co Ciúme ao lado,
E me bradava: <<Escolhe, desgraçado,
Queres a Morte, ou queres o Ciúme?

>>Não é pior daquela fouce o gume
Que a ponta dos farpões que tens provado;
Mas o monstro voraz, por mim criado,
Quanto horror há no Inferno em si resume.>>

Disse; e eu dando um suspiro: <<Ah, não m’espantes
Coa a vista dessa fúria!… Amor, clemência!
Antes mil mortes, mil infernos antes!>>

Nisto acordei com dor, com impaciência;
E não vos encontrando, olhos brilhantes,
Vi que era a minha morte a vossa ausência!

Em louvor do grande Camões

Ó deusa, que proteges dos amantes
O destro furto, o crime deleitoso,
Abafa com teu manto pavoroso
Os importantes astros vigilantes:

Quero adoçar meus lábios anelantes
No seio de Ritália melindroso;
Estorva que os maus olhos do invejoso
Turbem d’amor os sôfregos instantes:

Tétis formosa, tal encanto inspire
Ao namorado Sol teu níveo rosto,
Que nunca de teus braços se retire!

Tarda ao menos o carro à Noite oposto,
Até que eu desfaleça, até que expire
Nas ternas ânsias, no inefável gosto.

Epístola a Marília

Pavorosa ilusão de Eternidade,
Terror dos vivos, cárcere dos mortos;
D’almas vãs sonho vão, chamado inferno;
Sistema de política opressora,
Freio que a mão dos déspotas, dos bonzos
Forjou para a boçal credulidade;
Dogma funesto, que o remorso arraigas
Nos ternos corações, e a paz lhe arrancas:
Dogma funesto, detestável crença,
Que envenena delícias inocentes!
Tais como aquelas que o céu fingem:
Fúrias, Cerastes, Dragos, Centimanos,
Perpétua escuridão, perpétua chama,
Incompatíveis produções do engano,
Do sempiterno horror horrível quadro,
(Só terrível aos olhos da ignorância)
Não, não me assombram tuas negras cores,
Dos homens o pincel, e a mão conheço:
Trema de ouvir sacrílego ameaço
Quem d’um Deus quando quer faz um tirano:
Trema a superstição; lágrimas, preces,
Votos, suspiros arquejando espalhe,
Coza as faces co’a terra, os peitos fira,
Vergonhosa piedade, inútil vênia
Espere às plantas de impostor sagrado,
Que ora os infernos abre, ora os ferrolha:
Que às leis, que às propensões da natureza
Eternas, imutáveis, necessária,
Chama espantosos, voluntários crimes;
Que as vidas paixões que em si fomenta,
Aborrece no mais, nos mais fulmina:
Que molesto jejum roaz cilico
Com despótica voz à carne arbitra,
E, nos ares lançando a fútil bênção,
Vai do grã tribunal desenfadar-se
Em sórdido prazer, venais delícias,
Escândalo de Amor, que dá, não vende.

II

Oh Deus, não opressor, não vingativo,
Não vibrando com a destra o raio ardente
Contra o suave instinto que nos deste;
Não carrancudo, ríspido, arrojando
Sobre os mortais a rígida sentença,
A punição cruel, que execede o crime,
Até na opinião do cego escravo,
Que te adora, te incensa, e crê que és duro!
Monstros de vis paixões, danados peitos
Regidos pelo sôfrego interesse
(Alto, impassivo númen!) te atribuem
A cólera, a vingança, os vícios todos
Negros enxames, que lhes fervem n’alma!
Quer sanhudo, ministro dos altares
Dourar o horror das bárbaras cruezas,
Cobrir com véu compacto, e venerando
A atroz satisfação de antigos ódios,
Que a mira põem no estrago da inocência,
(. . .)
Ei-lo, cheio de um Deus, tão mau como ele,
Ei-lo citando os hórridos exemplos
Em que aterrada observe a fantasia
Um Deus algoz, a vítima o seu povo:
( . . .)
Ah! Bárbaro impostor, monstro sedento
De crimes, de ais, de lágrimas, de estragos,
Serena o frenesi, reprime as garras,
E a torrente de horrores, que derramas,
Para fundar o império dos tiranos,
Para deixar-lhe o feio, o duro exemplo
De oprimir seus iguais com férreo jugo.
Não profanes, sacrílego, não manches
Da eterna divindade o nome augusto!
Esse, de quem te ostentas tão válido,
É Deus de teu furor, Deus do teu gênio,
Deus criado por ti, Deus necessário
Aos tiranos da terra, aos que te imitam,
E àqueles, que não crêem que Deus existe.
(. . .)

Epitáfio – Se estiver nos meus fados a próxima extinção de
meus dias

De Elmano eis sobre o mármore sagrado
A lira em que chorava ou ria de amores.
Ser deles, ser das Musas foi seu fado:
Honrem-lhe a lira vates e amadores.x

Incultas produções da mocidade

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores.
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade e não louvores.

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração dos seus favores.

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.

Invocação à Noite

Ó deusa, que proteges dos amantes
O destro furto, o crime deleitoso,
Abafa com teu manto pavoroso
Os importantes astros vigilantes:

Quero adoçar meus lábios anelantes
No seio de Ritália melindroso;
Estorva que os maus olhos do invejoso
Turbem d’amor os sôfregos instantes:

Tétis formosa, tal encanto inspire
Ao namorado Sol teu níveo rosto,
Que nunca de teus braços se retire!

Tarda ao menos o carro à Noite oposto,
Até que eu desfaleça, até que expire
Nas ternas ânsias, no inefável gosto.

Já Bocage não sou!… À cova escura

Já Bocage não sou!… À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento…
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!… Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui… A santidade
Manchei!… Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

Já sobre o coche de ébano estrelado

Já sobre o coche de ébano estrelado,
Deu meio giro a Noite escura e feia,
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!

Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
O Tejo adormeceu na lisa areia;
Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, às trevas acostumado.

Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte
Que o fio com que está mih’alma presa
À vil matéria lânguida, me corte.

Consola-me este horror, esta tristeza,
Porque a meus olhos se afigura a Morte
No silêncio total da Natureza.

Magro, de Olhos Azuis

Magro, de olhos azuis, carão moreno,

Bem servido de pés, meão na altura,

Triste de facha, o mesmo de figura,

Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,

Mais propenso ao furor do que à ternura,

Bebendo em níveas mãos por taça escura

De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades

(Digo, de moças mil) num só momento,

E somente no altar amando os frades;

Eis Bocage, em quem luz algum talento;

Saíram dele mesmo estas verdades

Num dia em que se achou mais pachorrento.

Meu ser evaporei na lida insana

Meu ser evaporei na lida insana

Do tropel de paixões, que me arrastava.

Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava

Em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana

Existência falaz me não dourava!

Mas eis sucumbe a Natureza escrava

Ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos!

Esta alma, que sedenta em si não coube,

No abismo vos sumio dos desenganos.

Deos, oh Deos!… Quando a morte a luz me roube,

Ganhe num momento o que perderam anos,

Saiba morrer o que viver não soube.

Meu Ser Evaporei na Luta Insana

Meu ser evaporei na lida insana

Do tropel de paixões, que me arrastava.

Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava

Em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana

Existência falaz me não dourava!

Mas eis sucumbe a Natureza escrava

Ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos!

Esta alma, que sedenta em si não coube,

No abismo vos sumio dos desenganos.

Deos, oh Deos!… Quando a morte a luz me roube,

Ganhe num momento o que perderam anos,

Saiba morrer o que viver não soube.

Negra fera, que a tudo as garras lanças

Negra fera, que a tudo as garras lanças,

Já murchaste, insensível a clamores,

Nas faces de Tirsália as rubras flores,

Em meu peito as viçosas esperanças.

Monstro, que nunca em teus estragos cansas,

Vê as três Graças, vê os nus Amores

Como praguejam teus cruéis furores,

Ferindo os rostos, arrancando as tranças!

Domicílio da noute, horror sagrado,

Onde jaz destruída a formosura,

Abre-te, dá lugar a um desgraçado.

Eis desço, eis cinzas palpo… Ah, Morte dura!

Ah, Tirsália! Ah, meu bem, rosto adorado!

Torna, torna a fechar-te, ó sepultura!

O Autor aos seus versos

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores:

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.

O céu, de opacas sombras abafado

O céu, de opacas sombras abafado,

Tornando mais medonha a noite fea,

Mugindo sobre as rochas, que saltea,

O mar, em crespos montes levantado;

Desfeito em furacões o vento irado;

Pelos ares zunindo a solta area;

O pássaro nocturno, que vozea

No agoireiro cipreste além pousado;

Formam quadro terrível, mas aceito,

Mas grato aos olhos meus, grato à fereza

Do ciúme e saudade, a que ando afeito.

Quer no horror igualar-me a Natureza;

Porém cansa-se em vão, que no meu peito

Há mais escuridade, há mais tristeza.

O Ciúme

Agora, que ninguém vos interrompe,
Lágrimas tristes, inundai-me o rosto,
Mais do que nunca assim o quer meu Fado.
Enquanto o gume de mortal desgosto
Me não retalha os amargosos dias,
Debaixo destas árvores sombrias
Grite meu coração desesperado,

Meu coração cativo,
Que só tem nos seus ais seu lenitivo.
Alterosas, frutíferas palmeiras,
Vós, que na glória equivaleis aos louros,
Vós, que sois dos heróis mais cobiçadas
Que áureos diademas, que reais tesouros,
Escutai meus tormentos, meus queixumes,
Meus venerosos, infernais ciúmes,
Ouvi mil penas, por Amor forjadas,
Mil suspiros, mais tristes
Que todos esses, que até’qui me ouvistes.

Aqueles campos, aprazíveis campos,
Que além verdejam, de meu mal souberam
A desgraçada mas suave origem;
Ali de uns olhos os meus ais nasceram,
Ali de um meigo, encantador sorriso,
Que arremeda o sereno paraíso,
Brotaram mil infernos, que me afligem,
Que as entranhas me abrasam,
Que meus olhos de lágrimas arrasam;

Ali de uns lábios, onde as Graças brincam,
Ouvi suspiros, granjeei favores,
Ali me disse Anarda o que eu não digo;
Ali, volvendo os ninhos dos Amores,
Cravou nesta alma, para sempre acesa,
As perigosas frechas da beleza;
Ali do próprio mal me fez amigo,
Ali banhou meu rosto
Parte do coração, desfeita em gosto,

Novas campinas testemunhas foram
De nova glória, de maior ventura,
Tal, que julguei, logrando-a, que sonhava.
Entre as doces prisões da formosura,
Entre os cândidos braços deleitosos,
Meus crestados desejos amorosos
No alvo rosto, que o pejo afogueava,
No néctar… Ah! Que eu morro,
Se em vós, furtivos êxtases, discorro.

Amor! Amor! Teus júbilos excedem
Da loira abelha os engenhosos favos,
Mais gratos são, que as flores, teus sorrisos.
Gostei todos os bens que aos teus escravos
Fazem tão leve a rígida cadeia,
Tão doce a chama, que no peito ondeia;
Mas oh! Cruéis teus dons, cruéis teus risos,
Princípio do tormento,
Que já me tem delido o sofrimento.

Miserável de mim! Qual o piloto,
Que lera nos azuis, filtrados ares
Indícios de uma sólida bonança,
E eis que vê de repente inchar os mares,
Vestir-se o céu de nuvens, donde chove
O fogo vingador, que vibra Jove,
Tal eu, quando supus mais segurança
No meu contentamento,
O vi fugir nas asas de um momento.

Anarda, Anarda pérfida, teus olhos,
Onde Amor traz escrita a minha Sorte,
Teus mimos por mim só não são gozados!
Oh desesperação, pior que a morte!
Oh danados espíritos funestos,
De hórridos vultos, de terríveis gestos,
Moderai vossa queixa, e vossos brados,
Que as penas do profundo
Também, também se encontram cá no mundo.

Ver outro disputar-me o caro objecto,
Em cujas lindas mãos pus alma e vida,
Não me arranca suspiros: o tormento,
Que no peito me faz mortal ferida,
O maior dos tormentos, ó perjura,
É ver que de outrem sofres a ternura,
É ver que dás calor, que dás alento
A seus mimos e amores
C’um riso, percursor de mil favores.

Tu não foges de mim, tu não te esquivas
Destes olhos, que em ti cativos andam;
Delícias, onde pasma o pensamento,
Doces instantes meu ciúme abrandam;
Mas ah! Não é só minha esta ventura,
Meu vaidoso rival a tem segura.
Que indigna variedade! Em um momento
Teus olhos inconstantes
Acarinham sem pejo a dois amantes.

Honra, virtude, agravo e desengano
Me gritam n’alma que sacuda os laços,
Que tanto sofrimento é já vileza.
Oiço-os, protesto desdenhar teus braços,
Protesto, ingrata, converter meus cultos
Em mil desprezos, irrisões e insultos;
Mas ah protestos vãos! Baldada empresa!
Sou a amar-te obrigado:
Não é loucura o meu amor, é Fado.

Canção, vai suspirar de Anarda aos Lares;
Mas se não lhe firmares
O instável coração, deixa a perjura,
E iremos sossegar na sepultura.

O Macaco Declamando

Um mono, vendo-se um dia
Entre brutal multidão,
Dizem que lhe deu na cabeça
Fazer uma pregação.

Creio que seria o tema
Indigno de se tratar;
Mas isto pouco importava,
Porque o ponto era gritar.

Teve mil vivas, mil palmas,
Proferindo à boca cheia
Sentenças de quinze arrobas,
Palavras de légua e meia.

Isto acontece ao poeta,
Orador, e outros que tais;
Néscios o que entendem menos
É o que celebram mais.

O Poeta Asseteado por Amor

Ó Céus! Que sinto n’alma! Que tormento!
Que repentino frenesi me anseia!
Que veneno a ferver de veia em veia
Me gasta a vida, me desfaz o alento!

Tal era, doce amada, o meu lamento;
Eis que esse deus, que em prantos se recreia,
Me diz: <<A que se expõe quem não receia
Contemplar Ursulina um só momento!

>>Insano! Eu bem te vi dentre a luz pura
De seus olhos travessos, e cum tiro
Puni tua sacrílega loucura:

>>De morte, por piedade hoje te firo;
Vai pois, vai merecer na sepultura
À tua linda ingrata algum suspiro.>>

Ó retrato da Morte! Ó Noite amiga

Ó retrato da Morte! Ó Noite amiga,

Por cuja escuridão suspiro há tanto!

Calada testemunha de meu pranto,

De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor que a ti sòmente os diga

Dá-lhes pio agasalho no teu manto;

Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto

Dorme a cruel que a delirar me obriga.

E vós, ó cortesãos da escuridade,

Fantasmas vagos, mochos piadores,

Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;

Quero a vossa medonha sociedade,

Quero fartar o meu coração de horrores.

Ó tranças de que Amor prisões me tece

Ó tranças de que Amor prisões me tece,
Ó mãos de neve, que regeis meu fado!
Ó tesouro! Ó mistério! Ó par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!

Ó ledos olhos, cuja luz parece
Tênue raio de sol! Ó gesto amado,
De rosas e açucenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse!

Ó lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!

Ó perfeições! Ó dons encantadores!
De quem sois? Sois de Vênus? — É mentira;
Sois de Marília, sois dos meus amores.

Ó trevas, que enlutais a Natureza

Ó trevas, que enlutais a Natureza,

Longos ciprestes desta selva anosa,

Mochos de voz sinistra e lamentosa,

Que dissolveis dos fados a incerteza;

Manes, surgidos da morada acesa

Onde de horror sem fim Plutão se goza,

Não aterreis esta alma dolorosa,

Que é mais triste que voz minha tristeza.

Perdi o galardão da fé mais pura,

Esperanças frustrei do amor mais terno,

A posse de celeste formosura.

Volvei, pois, sombras vãs, ao fogo eterno;

E, lamentando a minha desventura,

Movereis à piedade o mesmo Inferno.

Outro soneto ao França

Rapada, amarelenta, cabeleira,
Vesgos olhos, que o chá, e o doce engoda,
Boca, que à parte esquerda se acomoda,
(Uns afirmam que fede, outros que cheira):

Japona, que da ladra andou na feira;
Ferrugento faim, que já foi moda
No tempo em que Albuquerque fez a poda
Ao soberbo Hidalcão com mão guerreira:

Japona, que da ladra andou na feira;
Ferrugento faim, que já foi moda
No tempo em que Albuquerque fez a poda
Ao soberbo Hidalcão com mão guerreira:

Jarra, com apetites de criança;
Cara com semelhança de besbelho;
Eis o bedel do Pindo, o doutor França.

Outro Soneto do Prazer Efêmero

Quando do grão Martinho a fatal Marca
O termo fez soar no seu chocalho,
Levou três dias a passar caralho
Do medonho Caronte a negra barca;

Eis no terceiro dia o padre embarca,
E o velho, que a ninguém faz agasalho,
Em prêmio quis só ter do seu trabalho
O gáudio de ver porra de tal marca:

Pegou-se ao cão trifauce a voz na goela
Ao ver de membro tal as dianteiras,
E Plutão a mulher pôs de cautela:

Porém Dido gritou às companheiras:
"Agora temos porra; a ela, a ela,
Que as horas de prazer voam ligeiras!"

Quer ver uma perdiz chocar um rato

Quer ver uma perdiz chocar um rato,
Quer ensinar a um burro anatomia,
Exterminar de Goa a senhoria,
Ouvir miar um cão, ladrar um gato;

Quer ir pescar um tubarão no mato,
Namorar nos serralhos da Turquia,
Escaldar uma perna em água fria,
Ver um cobra castiçar co’um pato;

Quer ir num dia de Surrate a Roma,
Lograr saúde sem comer dois anos,
Salvar-se por milagre de Mafoma;

Quer despir a bazófia aos Castelhanos,
Das penas infernais fazer a soma,
Quem procura amizade em vis gafanos.

Retrato Próprio

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste da facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno.

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.

Saiba morrer o que viver não soube

Meu ser evaporei na lida insana
do tropel de paixões que me arrastava.
Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
em mim quase imortal a essência humana.
De que inúmeros sóis a mente ufana
existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
ao mal, que a vida em sua origem dana.
Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta e si não coube,
no abismo vos sumiu dos desenganos.
Deus, ó Deus!… Quando a morte à luz me roube
ganhe um momento o que perderam anos
saiba morrer o que viver não soube.

Se Quereis, Bom Monarca, ter Soldados

Se quereis, bom Monarca, ter soldados
Para compor lustrosos regimentos,
Mandai desentulhar esses conventos
Em favor da preguiça edificados:

Nos Bernardos lambões, e asselvajados
Achareis mil guerreiros corpulentos;
Nos Vicentes, nos Neris, e nos Bentos
Outros tantos, não menos esforçados:

Tudo extingui, senhor: fiquem somente
Os Franciscanos, Loios, e Torneiros,
Do Centimano aspérrima semente:

Existam estes lobos carniceiros,
Para não arruinar inteiramente
Putas, pívias, cações e alcoviteiros.

Sobre estas Duras

Sobre estas duras, cavernosas fragas,

Que o marinho furor vai carcomendo,

Me estão negras paixões n’alma fervendo

Como fervem no pego as crespas vagas.

Razão feroz, o coração me indagas,

De meus erros e sombra esclarecendo,

E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo

De agudas ânsias venenosas chagas.

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,

Mil objectos de horror co’a ideia eu corro,

Solto gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro?

Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;

Dizes-me que sossegue: eu peno, eu morro.

Soneto (des) Pejado

Num capote embrulhado, ao pé de Armia,
Que tinha perto a mãe o chá fazendo,
Na linda mão lhe fui (oh céus) metendo
O meu caralho, que de amor fervia:

Entre o susto, entre o pejo a moça ardia;
E eu solapado os beijos remordendo,
Pela fisga da saia a mão crescendo
A chamada sacana lhe fazia:

Entra a vir-se a menina… Ah! que vergonha!
"Que tens?" — lhe diz a mãe sobressaltada:
Não pode ela encobrir na mão langonha:

Sufocada ficou, a mãe corada:
Finda a partida, e mais do que medonha
A noite começou de bofetada.

Soneto Anticlerical

Se quereis, bom Monarca, ter soldados
Para compor lustrosos regimentos,
Mandai desentulhar esses conventos
Em favor da preguiça edificados:
Nos Bernardos lambões, e asselvajados
Achareis mil guerreiros corpulentos;
Nos Vicentes, nos Neris, e nos Bentos
Outros tantos, não menos esforçados:
Tudo extingui, senhor: fiquem somente
Os Franciscanos, Loios, e Torneiros,
Do Centimano aspérrima semente:
Existam estes lobos carniceiros,
Para não arruinar inteiramente
Putas, pívias, cações, e alcoviteiros.

Soneto ao Árcade França

No canto de um venal salão de dança,
Ao som de uma rebeca desgrudada,
Olhos em alvo, a porra arrebitada,
Bocage, o folgazão, rostia o França:

Este, com mogigangas de criança,
Com a mão pelos ovos encrespada,
Brandia sobre a roxa fronte alçada
Do assanhado porraz, que quer lambança:

Veterana se faz a mão bisonha;
Tanto a tempo meneia, e sua o bicho,
Que em Bocage o tesão vence a vergonha:

Quis vir-me por luxúria, ou por capricho;
Mas em vez de acudir-lhe alva langonha
Rebenta-lhe do cu merdoso esguicho.

Soneto ao Árcade Lereno

Dirigido ao padre Domingos Caldas Barbosa (Lereno Selinuntino) ao tempo das
contendas com os Árcades.

Nojenta prole da rainha Ginga,
Sabujo ladrador, cara de nico,
Loquaz saguim, burlesco Teodorico,
Osga torrada, estúpido rezinga;

E não te acuso de poeta pinga;
Tens lido o mestre Inácio, e o bom Supico;
De ocas idéias tens o casco rico,
Mas teus versos tresandam a catinga:

Se a tua musa nos outeiros campa,
Se ao Miranda fizeste ode demente,
E o mais, que ao mundo estólido se incampa:

É porque sendo, oh! Caldas, tão somente
Um cafre, um gozo, um néscio, um parvo, um trampa,
Queres meter nariz em cu de gente.

Soneto ao Leitão

Pilha aqui, pilha ali, vozeia autores,
Montesquieu, Mirabeau, Voltaire, e vários;
Propõe sistemas, tira corolários,
E usurpa o tom d’enfáticos doutores:

Ciência de livreiros e impressores
Tem da vasta memória nos armários;
E tratando os cristãos de visionários,
Só rende culto a Vênus, e aos Amores:

A mulher, que a barriga lhe tem forra
Do jugo da vital necessidade,
Deixa em casa gemer como em masmorra:

Este biltre, labéu da humanidade,
É um tal bacharel Leitão de borra,
Lascivo como um burro, ou como um frade.

Soneto arc Choroso

Não tendo que fazer Apolo um dia
Às Musas disse: "Irmãs, é benefício
Vadios empregar, demos ofício
Aos sócios vãos da magra Academia!"

"O Caldas satisfaça à padaria;
O França d’enjoar tenha exercício,
E o autor do entremez do Rei Egípcio
O Pégaso veloz conduza à pia!"

"Vá na Ulisséia tasquinhar o ex-frade:
Da sala o Quintanilha acenda as velas,
Em se juntando alguma sociedade!"

"Bernardo nênias faça, e cague nelas;
E Belmiro, por ter habilidade,
Como d’antes trabalhe em bagatelas!"

Soneto do Corno Interesseiro

Uma noite o Scopezzi mui contente
(Depois de borrifar a sacra espada
Que traz de rubra fita pendurada
Com cuspo, e vinho, que vomita quente):

Conversava co’a esposa em voz tremente
Sobre a grande ventura inesperada
De ser a sua Plácida adorada
Por um Marquês tão rico, e tão potente:

A velha lhe replica: Isso é verdade;
Enquanto moça for, nunca o dinheiro
Faltará nesta casa em quantidade.

"Mas tu sempre és o tafulão primeiro:
Pois tendo cabrão sido noutra idade,
És agora o maior alcoviteiro!"

Soneto do Diálogo Conjugal

Não chores, cara esposa, que o Destino
Manda que parta, à guerra me convida;
A honra prezo mais que a própria vida,
E se assim não fizera, fora indigno.

"Eu te acho, meu Conde, tão menino
Que receio…" — Ah! Não temas, não, querida;
A francesa nação será batida,
Este peito, que vês, é diamantino.

"Como é crível que sejas tão valente?…"
Eu herdei o valor de avós, e pais,
Que essa virtude tem a ilustre gente.

"Porém se as forças desiguais…?"
Irra, Condessa! És muito impertinente!
Tornarei a fugir, que queres mais?

Soneto do Gozador Coçador

Soneto localizado em um caderno onde poemas de Bocage e de Pedro José
Constâncio
estavam misturados, não tendo se chegado em nenhuma conclusão
definitiva sobre a
autoria do mesmo.

"Apre! não metas todo… Eu mais não posso…"
Assim Márcia formosa me dizia;
— Não sou bárbaro (à moça eu respondia)
Brandamente verás como te coço:

"Ai! por Deus, não… não mais, que é grande! e
grosso!"
Quem resistir ao seu falar podia
Meigamente o coninho lhe batia;
Ela diz "Ah meu bem! meu peito é vosso!"

O rebolar do cu (ah!) não te esqueça
Como és bela, meu bem! (então lhe digo)
Ela em suspiros mil a ardência expressa:

Por te unir fazer muito ao meu umbigo;
Assim, assim… menina, mais depressa!…
Eu me venho… ai Jesus!… vem-te comigo!

Soneto do Gozo Vitorioso

Soneto localizado em um caderno onde poemas de Bocage e de Pedro José
Constâncio
estavam misturados, não tendo se chegado em nenhuma conclusão
definitiva sobre a
autoria do mesmo.

Vem cá, minha Marília, tão roliça,
So’as bochechas da cor do meu caralho,
Que eu quero ver se os beiços embaralho
Co’esses teus, onde amor a ardência atiça:

Que abrimentos de boca! Tens preguiça?
Hospeda-me entre as pernas este malho,
Que eu te ponho já tesa como um alho;
Ora chega-te a mim, leva esta piça…

Ora mexe… que tal te sabe, amiga?
Então foges c’o sesso? É forte história!
Ele é bom de levar, não, não é viga.

"Eu grito!" (diz a moça merencória).
Pois grita, que espetada nesta espiga
Com porrais salvas cantarei vitória.

Soneto do Juramento

Soneto localizado em um caderno onde poemas de Bocage e de Pedro José
Constâncio
estavam misturados, não tendo se chegado em nenhuma conclusão
definitiva sobre a
autoria do mesmo.

Eu foder putas?… Nunca mais, caralho!
Hás de jurar-mo aqui, sobre estas Horas:
E vamos, vamos já!… Porém tu choras?
"Não senhor (me diz ele) eu não, não ralho":

Batendo sobre as Horas como um malho,
"Juro (diz ele) só foder senhoras,
Das que abrem por amor as tentadoras
Pernas àquilo, que arde mais que o alho".

Co’a força do jurar esfolheando
O sacro livro foi, e a ardente sede
O fez em mar de ranho ir soluçando…

Ah! que fizeste? O céu teus passos mede!
Anda, herético filho miserando,
Levanta o dedo a Deus, perdão lhe pede!

Soneto do Lascivo Pezinho

Soneto localizado em um caderno onde poemas de Bocage e de Pedro José
Constâncio
estavam misturados, não tendo se chegado em nenhuma conclusão
definitiva sobre a
autoria do mesmo.

Dormia a sono solto a minha amada,
Quando eu pé ante pé no quarto entrava:
E ao ver a linda moça, que arreitava,
Sinto a porra de gosto alvoroçada:

Ora do rosto eu vejo a nevada
Pudibunda bochecha, que encantava;
Outrora nas maminhas demorava
Sôfrega, ardente vista embasbacada:

Porém vendo sair dentre o vestido
Um lascivo pezinho torneado,
Bispo-lhe as pernas e fiquei perdido:

Vai senão quando, o meu caralho amado
Bem como Enéias acordava Dido,
Salta-lhe ao pêlo, pro seguir seu fado.

Soneto do Membro Monstruoso

Esse disforme, e rígido porraz
Do semblante me faz perder a cor;
E assombrado d’espanto, e de terror
Dar mais de cinco passos para trás;

A espada do membrudo Ferrabraz
Decerto não metia mais horror:
Esse membro é capaz até de pôr
A amotinada Europa toda em paz

Creio que nas fodais recreações
Não te hão-de a rija máquina sofre
Os mais corridos, sórdidos cações:

De Vénus não desfrutas o prazer:
Que esse monstro, que alojas nos calções
É porra para mostrar, não de foder.

Soneto do Mouro Desmoralizado

Veio Muley — Achmet marroquino
Com duros trigos entulhar Lisboa;
Pagava bem, não houve moça boa
Que não provasse o casco adamantino:

Passou a um seminário feminino,
Dos que mais bem providos se apregoa,
Onde a um frade bem fornida ilhoa
Dava d’esmola cada dia um pino:

Tinha o mouro fodido largamente,
E já bazofiando com desdouro
Tratava a nação lusa d’impotente:

Entra o frade, e ao ouvi-lo, como um touro
Passou tudo a caralho novamente,
E o triunfo acabou no cu do mouro.

Soneto do Padre Patife

Na antologia "Poesias satíricas inéditas de M. M. B. du
Bocage, que foi compilada por A.
M. do Couto" (Lisboa 1840), está sob o título "A um
clérigo fulo, Deão de Angola, que aqui
veio a requerimentos, e era corcovado naturalmente; corria o ano de 1800"

Aquele semi-clérigo patife,
Se eu no mundo fizera ainda apostas,
Apostara contigo que nas costas
O grande Pico tem de Tenerife:

Célebre traste! É justo que se rife;
Eu também pronto estou, se disso gostas;
Não haja mais perguntas, nem respostas;
Venha, antes que algum taful o bife:

Parece hermafrodita o corcovado;
Pela rachada parte (que apeteço)
Parece que emprenhou, pois anda opado!

Mas desta errada opinião me desço;
Pois que traz a criança no costado,
Deve ter emprenhado pelo sesso.

Soneto do Pau Decifrado

É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,
Bem que duas gamboas lhe lobrigo;
Dá leite, sem ser árvore de figo,
Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro:

Verga, e não quebra, como zambujeiro;
Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;
Brando às vezes, qual vime, está consigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro:

À roda da raiz produz carqueja:
Todo o resto do tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem pau-santo mais negreja!

Para carualho ser falta-lhe um U;
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar meta-o no cu.

Soneto do Prazer Efêmero

Dizem que o rei cruel do Averno imundo
Tem entre as pernas caralhaz lanceta,
Para meter do cu na aberta greta
A quem não foder bem cá neste mundo:

Tremei, humanos, deste mal profundo,
Deixai essas lições, sabida peta,
Foda-se a salvo, coma-se a punheta:
Este prazer da vida mais jucundo.

Se pois guardar devemos castidade,
Para que nos deu Deus porras leiteiras,
Senão para foder com liberdade?

Fodam-se, pois, casadas e solteiras,
E seja isto já; que é curta a idade,
E as horas do prazer voam ligeiras!

Soneto do Prazer Maior

Amar dentro do peito uma donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janela:

Fazê-la vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela:

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a boca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:

Vê-la rendida enfim a Amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.

Soneto do Velho Escandaloso

Na antologia "Poesias satíricas inéditas de M. M. B. du
Bocage, que foi compilada por A.
M. do Couto" (Lisboa 1840), está sob o título "A um
músico velho chamado L. F."

Tu, oh demente velho descarado,
Escândalo do sexo masculino,
Que por alta justiça do Destino
Tens o impotente membro decepado:

Tu, que, em torpe furor incendiado
Sofres d’ímpia paixão ardor maligno,
E a consorte gentil, de que és indigno,
Entregas a infrutífero castrado:

Tu, que tendo bebido o méstruo imundo,
Esse amor indiscreto te não gasta
D’ímpia mulher o orgulho furibundo;

Em castigo do vício, que te arrasta,
Saiba a ínclita Lísia, e todo o mundo
Que és vil por gênio, que és cabrão, e basta.

Soneto Napoleônico

Tendo o terrível Bonaparte à vista,
Novo Aníbal, que esfalfa a voz da Fama,
"Ó capados heróis!" (aos seus exclama
Purpúreo fanfarrão, papal sacrista):

"O progresso estorvai da atroz conquista
Que da filosofia o mal derrama?…"
Disse, e em férvido tom saúda, e chama,
Santos surdos, varões por sacra lista:

Deles em vão rogando um pio arrojo,
Convulso o corpo, as faces amarelas,
Cede triste vitória, que faz nojo!

O rápido francês vai-lhe às canelas;
Dá, fere, mata: ficam-lhe em despojo
Relíquias, bulas, merdas, bagatelas.

Sonetos e Outros Poemas

I – SONETOS

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores ;
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade;
Que elas buscam piedade, e não louvores;

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores ;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração dos seus favores ;

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.

Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza, e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados :

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura ;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados :

Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania :

Desculpa tendes, se valeis tão pouco ;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco .

De suspirar em vão já fatigado ,
Dando trégua a meus males eu dormia ;
Eis que junto de mim sonhei que via
Da Morte o gesto lívido, e mirrado :

Curva fouce no punho descarnado
Sustentava a cruel, e me dizia :
"eu venho terminar tua agonia ;
morre, não peneis mais, oh desgraçado ! "

quis ferir- me , e de Amor foi atalhada,
que armado de cruentos passadores
aparte, e lhe diz com voz irada :

"Emprega noutro objeto os teus rigores ;
que esta vida infeliz está guardada
para vítima só de meus furores. "

Já sobre o coche de ébano estrelado
Deu meio giro a noite escura e feia ;
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado !

Jaz entre as folhas Zéfiro abafado ,
O Tejo adormeceu na lisa areia ;
Nem o mavioso rouxinol gorgeia,
Nem pia o mocho, às trevas costumado :

Só eu velo, só eu, pedindo à sorte
Que o fio, com que está minh’alma presa
À vil matéria lânguida, me corte :

Consola-me este horror, esta tristeza ;
Porque a meus olhos se afigura a morte
No silêncio total da Natureza.

Mavorte, porque em pérfida cilada
O cruel moço alígeto o ferira,
Não faz caso da mãe, que chora e brada,
Quer punir o traidor, que lhe fugira :

Na sinistra o pavês, na dextra a espada,
Nos ígneos olhos fuzilante a ira,
Pule à negra carroça ensangüentada,
Que Belona infernal côas Fúrias tira :

Assim parte, assim voa ; eis que vê posto
No colo de Marília o deus alado,
No colo aonde tem mimoso encosto:

Já Marte arroja as armas, e aplacado
Diz, inclinando o formidável rosto :
"Valha-te, Amor, esse lugar sagrado ! ".

Marília, nos teus olhos buliçosos
Os Amores gentis seu facho acendem ;
A teus lábios voando os ares fendem
Terníssimos desejos sequiosos:

Teus cabelos subtis e luminosos
Mil vistas cegam, mil vontades prendem :
E em arte de Minerva se não rendem
Teus alvos curtos dedos melindrosos :

Resiste em teus costumes a candura,
Mora a firmeza no teu peito amante,
A razão com teus risos se mistura:

És dos céus o composto mais brilhante;
Deram-se as mãos Virtude e Formosura
Para criar tua alma e teu semblante.

Oh, tranças, de que Amor prisões me tece,
Oh, mãos de neve, que regeis meu fado !
Oh tesouro ! oh mistério ! oh par sagrado ,
Onde o menino alígero adormece !

Oh ledos olhos, cuja luz parece
Tênue raio de sol ! oh gesto amado,
De rosas e açucenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse !

Oh ! lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira !

Oh perfeições ! oh dons encantadores !
De quem sóis ?…Sois de Vênus ? – é mentira
Sois de Marília, sois de meus amores.

Já se afastou de nós o Inverno agreste
Envolto nos seus húmidos vapores ;
A fértil Primavera , a mãe das flores
O prado ameno de boninas veste :

Varrendo os ares o subtil nordeste
Os torna azuis : as aves de mil cores
Adejam entre Zéfiros, e Amores,
E torna o fresco Tejo a cor celeste ;

Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo :

Deixa louvar da corte a vã grandeza:
Quanto me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza !

Grato silêncio, trêmulo arvoredo,
Sombra propícia aos crimes, e aos amores,
Hoje serei feliz ! – longe, temores,
Longe, fantasmas, ilusões do medo.

Sabei, amigos Zéfiros, que cedo,
Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Furtivas glórias, tácitos favores,
Hei-de enfim possuir : porém segredo !

Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
Não leveis, não façais isto patente,
Que nem quero que o saiba o pai dos numes :

Cale-se o caso a Jove omnipresente,
Porque se ele o souber, terá ciúmes,
Vibrará contra mim seu raio ardente.

Temo que a minha ausência e desventura
Vão na tua alma, docemente acesa ,
Apoucando os excessos da firmeza.
Rebatendo os assaltos da ternura :

Temo que a tua singular candura
Leve o tempo fugaz, nas asas presa
Que é quase sempre o vício da beleza,
Gênio imutável, condição perjura:

Temo ; e se o fado meu, fado inimigo
Confirmar ìmpiamente este receio ,
Espectro perseguidor, que anda comigo,

Com rosto, alguma vez de mágoa cheio ,
Recorda-te de mim, dize contigo :
‘era fiel, amava-me e deixei-o "

Enquanto o sábio arreiga o pensamento
Nos fenonemos teus, oh Natureza
Ou solta árduo problema, ou sobre a mesa
Volve o subtil geométrico instrumento :

Enquanto, alçando a mais o entendimento,
Estuda os vastos céus, e com certeza
Reconhece dos astros a grandeza,
A distância, o lugar, e o movimento :

Enquanto o sábio, enfim, mais sabiamente,
Se remonta nas asas do sentido
À corte do Senhor omnipresente:

Eu louco, cego, eu mísero, eu perdido
De ti só trago cheia, ó Jonia, a mente :
Do mais, e de mim mesmo ando esquecido ..

Por esta solidão, que não consente
Nem do sol, nem da Lua a claridade,
Ralado o peito já pela saudade
Dou mil gemidos a Marília ausente :

De seus crimes a mancha inda recente
Lava Amor, e triunfa da verdade,
A beleza, apesar da falsidade,
Me ocupa o coração, me ocupa a mente:

Lembram-me aqueles olhos tentadores,
Aquelas mãos, aquele riso, aquela
Boca suave, que respira amores…

Ah, trazei – me ilusões, a ingrata, a bela !
Pintai-me vós, oh sonhos, entre flores
Suspirando outra vez nos braços dela !

Marília, se em teus olhos atentara,
Do estelífero sólio reluzente,
Ao vil mundo outra vez o omnipotente,
O fulminante Júpiter baixara,

Se o deus, que assanha as Fúrias, te avistara,
As mãos de neve, o colo transparente,
Suspirando por ti, do caos ardente,
Sugeriu à luz do dia, e te roubara :

Se a ver-te de mais perto o Sol descera,
No áureo carro veloz dando-te assento
Até da esquiva Dafne se esquecera :

E se a força igualasse o pensamento,
Oh alma da minh’alma, eu te of’recera
Com ela a Terra, o Mar, e o Firmamento .

O corvo grasnador e o mocho feio
O sapo berrador e a rã molesta,
São meus únicos sócios na floresta,
Onde carpindo estou, de angústia cheio :

Perdi todo o prazer, todo o recreio,,
Ah, malfadado amor, paixão funesta !
Urselina perdi, nada me resta,
Madre terra ! Agasalha-me em teu seio ;

Da víbora mordaz permite, oh Sorte,
Que nos matos aspérrimos que piso
As plantas me envenene o tênue corte !

Ah ! Que é das graças ? Que é do paraíso ?
A minh’alma onde está ? quem logra… oh Morte,
Quem logra de Urselina o doce riso ?

Ânsias terríveis, íntimos tormentos,
Negras imagens, hórridas lembranças,
Amargosas, mortais desconfianças,
Deixai-me sossegar alguns momentos:

Sofrei que logre os vãos contentamentos
Que sonham minhas doidas esperanças ;
A posse de alvo rosto, e loiras tranças,
Onde presos estão meus pensamentos:

Deixai-me confiar na formosura,
Cruéis ! Deixai-me crer num doce engano,
Blasonar de fantástica ventura.

Que mais mal me quereis, que maior dano
Do que vagar nas trevas da loucura,
Aborrecendo a luz do desengano ?

Olha , Marília, as flautas dos pastores,
Que bom que soam, como estão cadentes !
Olha o Tejo a sorrir-te ! Olha não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores ?

Vê como ali, beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes !
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores !

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurando gira :

Que alegre campo ! que manhã tão clara !
Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira,
Mais tristeza que a morte me causara.

Fiei-me nos sorrisos de ventura
Em mimos femininos ,como fui louco !
Vi raiar o prazer, porém tão pouco
Momentâneo relâmpago não dura:

No meio agora desta selva escura,
Dentro deste penedo húmido e ouço,
Pareço, até no tom lúgubre, e rouco
Triste sombra a carpir na sepultura :

Que estância para mim tão própria é esta !
Causais-me um doce, e fúnebre transporte,
Áridos matos, lôbrega floresta !

Ah! Não me roubou tudo a negra sorte :
Inda tenho este abrigo , inda me resta
O pranto, a queixa, a solidão e a morte.

Há pouco a mãe das Graças, dos Amores,
Gerada pela espuma cristalina,
Baixou da etérea região divina
Nas asas dos Favónios voadores :

"Oh das margens do Tejo habitadores !
hoje torna a luzir ( disse Ericina )
o ledo instante em que nasceu Marina,
Ínclito fruto de ínclitos maiores :

Do Céu, do Mar, da Terra, os soberanos
Imprimindo-lhe encantos a milhares,
Criaram nela a glória dos humanos:

Eia, cantai-lhe os dotes singulares,
Louvai seus olhos, aplaudi seus anos,
Queimai-lhe aromas, erigi-lhe altares "

Os suaves eflúvios, que respira
A flor de Vênus, a melhor das flores,
Exalas de teus lábios tentadores,
Oh doce, oh bela, oh desejada Elmira ;

A que nasceu das ondas, se te vira,
A seu pesar cantara os teus louvores;
Ditoso quem por ti morre de amores !
Ditoso quem por ti , meu bem, suspira !

E mil vezes ditoso o que merece
Um teu furtivo olhar, um teu sorriso,
Por quem da mãe formosa Amor se esquece !

O sacrílego ateu, sem lei, sem siso,
Contemple-te uma vez, que então conhece
Que é força haver um Deus, e um paraíso.

Meu frágil coração ,para que adoras
Para que adoras, se não tens ventura ?
Se uns olhos, de quem ardes na luz pura,
Folgando estão das lágrimas que choras ?

Os dias vês fugir, voar as horas
Sem achar neles visos de ternura ;
E inda a louca esp’rança te figura
O prêmio dos martírios, que devoras !

Desfaz as trevas de um funesto engano,
Que não hás de vencer a inimizade
De um gênio contra ti sempre tirano :

A justa, a sacrossanta divindade
Não força, não violenta o peito humano,
E queres constranger-lhe a liberdade ?

Os garços olhos, em que o Amor brincava,
Os rubros lábios, em que o Amor se ria,
As longas tranças, de que o Amor pendia,
As lindas faces, onde Amor brilhava :

As melindrosas mãos, que Amor beijava,
Os níveos braços, onde Amor dormia,
Foram dados, Armândia, à terra fria,
Pelo fatal poder que a tudo agrava;

Seguiu-te Amor ao tácito jazigo,
Entre as irmãs cobertas de amargura;
E eu que faço ( ai de mim ! ) como não sigo !

Que há no mundo que ver, se a formosura,
Se Amor, se as Graças, se o prazer contigo
Jazem no eterno horror da sepultura ?

Urselina gentil, benigna e pura,
Eis nas asas subtis de um ai cansado
A ti meu coração voa alagado
Em torrentes de sangue, e de ternura ;

Põe-lhe os olhos, meu bem, vê com brandura
Seu miserável, doloroso estado,
Que nas garras da morte já cravado
A fé, que te jurava, inda te jura :

Põe-lhe os olhos, meu bem, suavemente,
Põe-lhe os mimosos dedos na ferida,
Palpa de Amor a vítima inocente :

E por milagre deles, oh querida,
Verás cerrar-se o golpe, e de repente
Em ondas de prazer tornar-lhe a vida .

Em veneno letífero nadando
No roto peito o coração me arqueja;
E ante meus olhos hórrido negreja
De morais aflições espesso bando ;

Por ti, Marília, ardendo, e delirando
Entre as garras aspérrimas da Inveja,
Amaldiçoo Amor, que ri, e adeja
Pelos ares,cós Zéfiros brincando;

Recreia-se o traidor com meus clamores –
E meu cioso pranto… oh Jove, oh nume
Que vibras os coriscos vingadores !

Abafa as ondas do tartáreo lume,
Que para os que provocam teus furores
Tens inferno pior, tens o ciúme.

Oh retrato da morte, oh Noite amiga
Por cuja escuridão suspiro há tanto !
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga !

Pois manda Amor, que a ti sòmente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto ;
Ouve-os,como costumas,ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga :

E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos como eu, da claridade !

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.

Vinde, Prazeres, que por entre as flores,
Nos jardins de Citera andais brincando,
E vós, despidas, Graças, que dançando
Trinais alegres sons encantadores :

Deusa dos gostos, deusa dos amores,
Ah ! dos filhinhos teus ajunta o bando,
E vem nas asas de Favónio brando
Dar força, dar beleza a meus louvores.

Da linda Anarda minha voz aspira
A cantar o natal ; tu, por clemência,
O teu fiel cantor, deidade, inspira ;

Do trácio vate empresta-me a cadência,
E faze que mereça a minha lira
Os cândidos sorrisos da inocência .

Canta ao som dos grilhões o prisioneiro,
Ao som da tempestade o nauta ousado,
Um, porque espera o fim do cativeiro,
Outro, antevendo o porto desejado ;

Exposta a vida ao tigre mosqueado
Gira sertões o sôfrego mineiro,
Da esperança dos lucros encantado,
Que anima o peito vil, e interesseiro:

Por entre armadas hostes destemido
Rompe o sequaz do horrífico Mavorte,
Co triunfo, côa glória no sentido:

Só eu ( tirano Amor ! tirana Sorte ! )
Só eu por Nise ingrata aborrecido
Para ter fim meu pranto espero a morte.

Triste quem ama, cego quem se fia
Da feminina voz na vã promessa !
Aspira a vê-la estável ! mais depressa
O facho apagará, que espalha o dia :

Alada exalação, que na sombria
Tácita noite os ares atravessa,
Foi comigo a paixão volúvel dessa
Que o peito me afagava, e me feria :

Do desengano o bálsamo lhe aplico,
E a teus laços, Amor, sem medo exponho
Dos benéficos céus o dom mais rico :

Vejo mil Circes plácido, risonho ;
E se fé me prometerem, ouço e fico
Como quem despertou de aéreo sonho .

Importuna Razão, não me persigas ;
Cesse a ríspida voz que em vão murmura ;
Se a lei do Amor , se a fôrça da ternura
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas :

Se acusas os mortais, e os não abrigas,
Se (conhecendo o mal) não dás a cura,
Deixa-me apreciar minha loucura,
Importuna Razão, não me persigas,

É teu fim, seu projecto encher de pejo
Esta alma, frágil vítima daquela
Que, injusta e vária, noutros laços vejo :

Queres que fuga de Marília bela,
Que a maldiga, a desdenhe ; e o meu desejo
É carpir, delirar, morrer por ela.

Oh trevas, que enlutais a Natureza,
Longos ciprestes desta selva anosa,
Mochos de voz sinistra, e lamentosa,
Que dissolveis dos fados a incerteza :

Manes, surgidos da morada acesa
Onde de horror sem fim Plutão se goza,
Não aterreis esta alma dolorosa,
Que é mais triste que vós minha tristeza ;

Perdi o galardão da fé mais pura,
Esperanças frustrei do amor mais terno,
A posse de celeste formosura :

Volvei pois, sombras vãs, ao fogo eterno :
E lamentando a minha desventura,
Movereis a piedade o mesmo inferno.

Já o Inverno, espremendo as cãs nervosas,
Geme, de horrendas nuvens carregado ;
Luz o aéreo fuzil, e o mar inchado
Investe ao Pólo em serras escumosas ;

Oh benignas manhãs ! tardes saudosas,
Em que folga o pastor, medrando o gado,
Em que brincam no ervoso e fértil prado
Ninfas e Amores, Zéfiros e Rosas !

Voltai, retrocedei, formosos dias ;
Ou antes vem, vem tu, doce beleza
Que noutros campos mil prazeres crias ;

E ao ver-te sentirá minh’alma acesa
Os perfumes, o encanto, as alegrias
Da estação, que remoça a Natureza.

Mimosa, linda Anarda, atende , atende
Às doces mágoas do rendido Elmano;
Cum meigo riso, cum suave engano
Consola o triste amor, que não te ofende :

De teus cabelos ondeados pende
Meu coração, fiel para seu dano ;
Côa luz dos olhos teus Cupido ufano
Sustenta o puro fogo, em que me acende ;

Causa gentil das lágrimas que choro,
A tudo te antepõe minha ternura,
E quanto adoro o céu, teu rosto adoro :

O golpe, que me deste, anima e cura …
Mas ai ! que em vão suspiro, em vão te imploro :
Não pertence a piedade à formosura.

Oh deusa, que proteges dos amantes
O destro furto, o crime deleitoso ,
Abafa com teu manto pavoroso
Os importunos astros vigilantes;

Quero adoçar meus lábios anelantes
No seio da Ritália melindroso ;
Estorva que os maus olhos do invejoso
Turbem de amor os sôfregos instantes ;

Tétis formosa , tal encanto inspire
Ao namorado sol teu níveo rosto,
Que nunca de teus braços se retire !

Tarde ao menos o carro à Noite oposto,
Até que eu desfaleça, até que expire,
Nas ternas ânsias, no inefável gosto.

O ledo passarinho, que gorjeia
D’alma exprimindo a cândida ternura,
O rio transparente , que murmura,
E por entre pedrinhas serpenteia :

O Sol, que o céu diáfano passeia ,
A Lua, que lhe deve a formosura,
O sorriso da aurora alegre e pura,
A rosa, que entre os zéfiros ondeia ;

A serena, amorosa Primavera,
O doce autor das glorias que consigo,
A deusa das paixões, e de Cítera :

Quanto digo, meu bem, quanto não digo,
Tudo em tua presença degenera,
Nada se pode comparar contigo.

De cima dessas pedras escabrosas
Que pouco a pouco as ondas têm minado,
Da lua co reflexo prateado
Distingo de Marília as mãos formosas :

Ah ! que lindas que são, que melindrosas !
Sinto-me louco, sinto-me encantado ;
Ah! Quando elas vos colhem lá no prado,
Nem vós, lírios, brilhais, nem vós, oh rosas !

Deuses ! céus, tudo o mais que tendes feito
Vendo tão belas mãos, me dá desgosto ;
Nada, onde elas estão, nada é perfeito .

Oh quem pudera uni-las ao meu rosto !
Quem pudera aperta-las no meu peito !
Dar-lhe mil beijos, e expirar de gosto !

Debalde um véu ocioso, oh Nise, encobre
Intactas perfeições ao meu desejo ;
Tudo o que escondes, tudo o que não vejo
A mente audaz e alígea descobre :

Por mais e mais que as sentinelas dobre
A sisuda Modéstia, o cauto Pejo,
Teus braços logro, teus encantos beijo,
Por milagre da idéia afoita, e nobre ;

Inda que prêmio teu rigor me negue,
Do pensamento a indômita porfia
Ao mais doce prazer me deixa entregue :

Que pode contra Amor a tirania,
Se as delícias , que a vista não consegue,
Consegue a temerária fantasia ?

Das faixas infantis despido apenas
Sentia o sacro fogo arder na mente ;
Meu retro coração inda inocente,
Iam ganhando as plácidas Camenas ;

Faces gentis, angélicas, serenas,
De olhos suaves o volver fulgente,
Da idéia me extraíam de repente
Mil simples, maviosas cantinelas

O tempo me soprou fervor divino,
E as Musas me fizeram desgraçado,
Desgraçado me fez o Deus Menino ;

O Amor quis esquivar-se, e ao dom sagrado :
Mas vendo no meu gênio o meu destino,
Que havia de fazer ? Cedi ao fado.

Minh’alma se reparte em pensamentos
Todos escuros, todos pavorosos;
Pondero quão terríveis, quão penosos
São, existência minha, os teus momentos :

Dos males que sofri, cruéis, violentos,
A Amor, e aos Fados contra mim teimosos,
Outro inda mais tristes, mais custosos
Deduzo com fatais pressentimentos.

Rasgo o véu do futuro, e lá diviso
Novos danos urdindo Amor e aos Fados,
Para roubar-me a vida após do siso.

Ah! Vem, Marília, vem com teus agrados,
Com teu sereno olhar, teu brando riso
Furtar-me a fantasia a mil cuidados.

O Céu não te dotou de formosura,
De atractivo exterior, e a Natureza
Teu peito inficionou côa vil torpeza
De ingrata condição, falaz e impura ;

Influiu-me os extremos da ternura
A Constancia, o fervor, e a singeleza,
Esses dons mais gentis que a gentileza,
Dons, que o tempo fugaz não desfigura ;

Apesar da traição , do fingimento
Que te inflama, e desluz, se envela e pára
Em ti, alma infiel, meu pensamento;

Nas paixões a razão nos desampara,
Se a razão presidisse ao sentimento,
Tu morrerás por mim, eu não te amara .

Às margens do Regaça cristalino
Nos olhos de Tirseia ardi contente;
Brandos olhos gentis, dos quais pendente
Estava o meu prazer, e o meu destino ;

O tenro Deus,o cândido Menino
Pagava meu fervor puro, inocente ;
Mas cedo me impeliu a sorte inclemente
Para vós, tristes margens , que abomino ;

Aqui desde que aponta a luz febeia
De lugar em lugar deliro, e corro ,
Com suspeitas nutrindo a turva idéia .

Não posso contra Amor achar socorro ;
Perdi todo o meu bem, perdi Tirseia
Ela vive sem mim, sem ela eu morro.

Que idéia horrenda te possui, Elmano ?
Que ardente frenesi teu peito inflama ?
A razão te alumie, apaga a chama,
Reprime a raiva do ciúme insano:

Esperanças consome, ou vive ufano,
Ah! Foge , ou cinge da vitória a rama :
Ama-te a bela Armia, ou te não ama ?
Seus ais são da ternura, ou são do engano ?

Se te ama, não consternem teus queixumes
Os olhos de que estás enfeitiçado,
Do puro céu de Amor benignos lumes:

Se outro n’alma de Armia anda gravado,
Que fruto hás de colher dos vãos ciúmes ?
Ser odioso, além de desgraçado.

Às águas e às areias deste rio
Às flores, e aos Favórios deste prado,
Meus danos conto, minhas mágoas fio,
Dou queixas contra Ismene, Amor e o Fado :

A paz do coração posta em desvio,
O gosto em desenganos sufocado,
Lágrimas com lembranças desafio,
E pela tarda morte às vezes brado ;

Tão maviosos sãos meus ais mesquinhos,
Tanto pode a paixão que em mim suspira,
Que se esquecem das mães os cordeirinhos:

O vento não se mexe, nem respira ;
Deixam de namorar-se os passarinhos,
Para me ouvir chorar ao som da lira.

O céu, de opacas sombras abafado,
Tornando mais medonha a noite feia ;
Mugindo sobre as rochas, que salteia,
O mar, em crespos montes levantado :

Desfeito em furacões o vento irado,
Pelos ares zunindo a solta areia,
O pássaro noturno, que vozeia
No agoureiro cipreste além pousado ;

Formam quadro terrível, mas aceito,
Mas grato aos olhos meus, grato à fereza
Do ciúme, e saudade, a que ando, afeito :

Quer no horror igualar-me a Natureza ;
Porém cansa-se em vão, que no meu peito
Há mais escuridade, há mais tristeza.

Nos torpes laços de beleza impura
Jazem meu coração , meu pensamento ;
Esforçada ao servil abatimento
Contra os sentidos a razão murmura:

Eu, que outrora incensava a formosura,
Das que enfeita o pudor gentil, e isento,
A já corrupta idéia hoje apascento
Nos falsos mimos de venal ternura:

Se a vejo repartir prazer, e agrado
Àquele, a este, côa fatal certeza
Fermenta o vil desejo envenenado ;

Céus ! quem me reduziu a tal baixeza ?
Quem tão cego me pôs ? ..ah! foi meu fado,
Que tanto não podia a Natureza.

Perdi tudo ( ai de mim ! ) perdi Marfida,
Marfida, a glória minha,a minha amada ;
Tenra flor, a esperança malograda
Do mimoso matiz caiu despida :

Pede meu coração mortal ferida,
Só aos ditosos a existência agrada ;
Vida entre angústias equivale ao nada,
No risonho prazer consiste a vida.

Eia, amante infeliz, teu fim procura !
Fantástico terror não te reporte,
Nos túmulos não reina a formosura.

Diga triste letreiro a minha sorte ;
Daí-me piedosa sombra à sepultura
Teixas, ciprestes, árvores da morte.

Lá onde o Fado impenetrável mora,
Voa o menino Amor entre os Amores:
Loureja a trança,que matizam flores,
Cintila o facho, que a Razão devora :

Entra, saúda o nume, ao nume implora
Que de Marília os olhos tentadores
Vejam sempre ante as Graças, e os Louvores
De seus anos gentis surgir a aurora :

Fronte rugosa vezes três sacode
O deus, cujo poder tudo atropela,
E às súplicas de Amor destarte acode :

"Escape às minhas leis Marília bela,
seja, seja imortal ; durar não pode,
o mundo sem amor, amor sem ela ".

Quantas vezes , Amor, me tens ferido ?
Quantas vezes, Razão, me tens curado ?
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido !

Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até reagia a mão do fado,
Onde o sol, bem de todos, lhe é vedado
Depois com ferros vis se vê cingido:

Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo de existência à morte !

Travam-se gosto, e dor ; sossego, e lida ;
É da lei da Natureza ,é lei da sorte
Que seja o mal e o bem matriz da vida.

o h tu, consolador dos malfadados,
Oh tu, benigno dom da mão divina,
Das mágoas saborosa medicina,
Tranquilo esquecimento dos cuidados:

Aos olhos meus, de prantear cansados,
Cansados de velar, teu voo inclina;
E vós, sonhos de amor, trazei-me Alcina,
Dai-me a doce visão de seus agrados:

Filha das trevas, frouxa sonolência,
Dos gostos entre o férvido transporte
Quanto me foi suave a tua ausência!

Ah! findou para mim tão leda sorte;
Agora é só feliz minha existência
No mudo estado, que arremeda a morte.

Tu, maligno dragão, cruel harpia,
monstro dos monstros, fúria dos infernos,
que em vil murmuração, ralhos eternos
Estragas sem descanso a noite, e o dia:

Tu, que nas horas em que o mocho pia,
Caluniaste meus suspiros ternos,
Sacode a carga de noventa invernos
Nas descarnadas mãos da morte fria:

Cai de chofre no báratro profundo,
Cai nas entranhas da voraz fornalha,
Deixa em sossego o miserável mundo:

E entre a maldita, réproba canalha,
Lá bem longe de nós, lá bem no fundo,
Arde, murmura, amaldiçoa, e ralha.

Usurpando um minuto a meu lamento
Amigo sono os olhos me ocupava,
E enquanto o débil corpo descansava,
Velava amor, velava o pensamento:

Eis que em deserto e lúgubre aposento,
Que semimorta luz mais afeava,
Cri, Gertrúria (ai de mim!) que te avistava
Já sem cor, já sem voz, já sem alento:

Súbito acordo em lágrimas banhado,
E, das trevas palpando o véu medonho
Em vão busco teu corpo delicado:

Mas inda em ânsias trémulo suponho
Que me vaticinou meu negro fado
Dos males o pior no horrível sonho.

A lva Gertrúria minha, a quem saudoso
Mando trémulos ais enternecidos;
gertrúria, que encantaste os meus sentidos
Cum meigo riso, cum olhar piedoso:

Àmor, o injusto Amor, nume doloso,
insensível penedo a meus gemidos,
Me exala sobre os tímidos ouvidos
Estas vozes cruéis em tom raivoso:

"Tu, que já desfrutaste os meus favores,
tu, que na face de Gertrúria bela
Nêctar bebeste, mitigaste ardores,

Não tornarás, não tornarás a vê-la:
lamenta, desgraçado, os teus amores,
Acusa, desgraçado, a tua estrela."

Usurpando um minuto a meu lamento
Amigo sono os olhos me ocupava,
E enquanto o débil corpo descansava,
Velava amor, velava o pensamento:

Eis que em deserto e lúgubre aposento,
Que semimorta luz mais afeava,
Cri, Gertrúria (ai de mim!) que te avistava
Já sem cor, já sem voz, já sem alento:

Súbito acordo em lágrimas banhado,
E, das trevas palpando o véu medonho,
Em vão busco teu corpo delicado:

Mas inda em ânsias trémulo suponho
Que me vaticinou meu negro fado
Dos males o pior no horrível sonho.

Alva Gertrútia minha, a quem saudoso
Mando trémulos ais enternecidos;
Gertrúria, que encantaste os meus sentidos
Cum meigo riso, cum olhar piedoso:

Amor, o injusto Amor, nume doloso,
1nsensível penedo a meus gemidos,
Me exala sobre os tímidos ouvidos
Estas vozes cruéis em tom raivoso:

"Tu, que já desfrutaste os meus favores,
Tu, que na face de Gertrúria bela
Néctar bebeste, mitigaste ardores,

Não tornarás, não tornarás a vê-Ia:
Lamenta, desgraçado, os teus amores,
Acusa, desgraçado, a tua estrela."

Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado,
Mansa corrente deleitosa, amena,
Em cuja praia o nome de Filena
Mil vezes tenho escrito, e mil beijado:

Nunca mais me verás entre o meu gado
Soprando a namorada e branda avena,
A cujo som descias mais serena,
Mais vagarosa para o mar salgado:

Devo enfim manejar por lei da sorte
Cajados não, mortíferos alfanges
Nos campos do colérico Mavorte;

E talvez entre impávidas falanges
Testemunhas farei da minha morte
Remotas margens, que humedece o Ganges.

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Ludíbrio, como tu, da sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és… Mas, oh tristeza!…
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

A deja, coração, vai ter aos lares,
Ditosos lares, que Gertrúria pisa;
Olha, se inda te guarda a fé mais lisa,
Vê, se inda tem pesar dos teus pesares:

No fulgor dos seus olhos singulares
Crestando as asas, tua dor suaviza,
Amor de lá te chama, te divisa,
Interpostos em vão tão longos mares:

Dize-lhe, que do tempo o leve giro
Não faz abalo em ti, não faz mudança,
Que ainda lhe és fiel neste retiro:

Sim, pinta-lhe imortal minha lembrança;
Dá-lhe teus ais, e pede-lhe um suspiro,
Que alente, coração, tua esperança.

Já por bárbaros climas entranhado,
Já por mares inóspitos vagante,
Vítima triste da fortuna errante,
dos mais desprezíveis desprezado:

Da figueira esperança abandonado,
Lassas as forças, pálido o semblante,
Sinto rasgar meu peito a cada instante
A mágoa de morrer expatriado:

Mas ah! Que bem maior, se contra a sorte
Lá do sepulcro no sagrado hospício
Refúgio me promete a amiga Morte!

Vem pois, oh nume aos míseros propício,
Vem livrar-me da mão pesada e forte,
Que de rastos me leva ao precipício!

Melizeu, o menor entre os nascidos,
De face cadavérica e nojosa,
Tísico em verso, apoquentado em prosa,
Hórrido aos olhos, hórrido aos ouvidos:

Soltando dissonantes alaridos
Da boca transversal erma, e gulosa,
Insulta a quem de Febo os mimos goza,
Estafa-se em preceitos não cumpridos:

Ao vate Elmano plagiário chama,
Sendo o mais desprezível plagiário,
Que o que pilha desluz, corrompe, infama:

Profanador do Aónio santuário,
Lobisomem do Pindo, orneia, ou brama,
Até findar no Inferno o teu fadário!

Quem se vê maltratado, e combatido
Pelas cruéis angústias da indigência
Quem sofre de inimigos a violência,
Quem geme de tiranos oprimido:

Quem não pode ultrajado, e perseguido
Achar nos Céus, ou nos mortais clemência,
Quem chora finalmente a dura ausência
De um bem, que para sempre está perdido:

Folgará de viver, quando não passa
Nem um momento em paz, quando a amargura
O coração lhe arranca e despedaça?

Ah! Só deve agradar-lhe a sepultura
Que a vida para os tristes é desgraça,
A morte para os tristes é ventura.

Meu nome pouco a pouco aos Céus levanto;
— Bocage

A ceso no almo ardor, que a mente inflama.
Vivo de Amor, de Amor suspiro e canto;
Na face agora o riso, agora o pranto,
De árvore tua, oh Febo, eu cinjo a rama:

Prezo a doce moral, na voz da fama
Meu nome,pouco a pouco aos céus levanto
Mas turba vil, que abato, anseio e espanto,
Urde em meu dano abominável trama;

Réu me delata de hórrida maldade
, Projecta aniquilar-me o bando rude,
Envolto na leteia escuridade:

Que falsa ideia, oh zoilos, vos ilude?
Furtais-me a paz? Furtais-me a liberdade?
Fica-me a glória, fica-me a virtude.

B em hajas, oh Morfeu! À fantasia
Que cena divinal me deste agora!
Nise , qual sai da noite a grata aurora,
Surgiu-me dentre as sombras da agonia.

Mais belo inda a saudade me fingia
O gesto encantador, que os céus namora;
Cuido que inda me afaga, que inda chora
Pranto, que morta flor viver faria.

Graças oh nume, de meus ais magoado!
Alta mercê meu coração te deve,
Por.este acinte, que fizeste ao fado:

Só tua divindade a tal se atreve;
Mas ah! Que eras prazer de um desgraçado
Sempre mostraste, oh sonho, em ser tão breve.

Em sórdida masmorra aferrolhado,
De cadeias aspérrimas cingido,
Por ferozes contrários perseguido,
Por línguas impostoras criminado:

Os membros quase nus, o aspecto honrado
Por vil boca, e vil mão roto, e cuspido,
Sem ver um só mortal compadecido
De seu funesto, rigoroso estado:

O penetrante, o bárbaro instrumento
De atroz, violenta, inevitável morte
Olhando já na mão do algoz cruento:

Inda assim não maldiz a iníqua sorte,
Inda assim tem prazer, sossego, alento,
O sábio verdadeiro, o justo, o forte.

Tu, que em torpes desejos atolado
Vergonhosos prostíbulos frequentas:
Tu, que os olhos famintos alimentas
No cofre, de tesouros atulhado:

Tu, que do ouro e da púrpura adornado
Quase de igual a Júpiter ostentas,
bebendo as frases vis, e peçonhentas
Do bando adulador, que tens ao lado:

momentos, que desonrais a humanidade,
Desprezando a pobreza atribulada,
E transgredindo a lei da caridade:

O Desengano ouvi, que assim vos brada:
"Tremei da pavorosa eternidade,
Tremei filhos do pó, filhos do nada!"

Q h Rei dos reis, oh Árbitro do mundo,
Cuja mão sacrossanta os maus fulmina,
E a cuja voz terrífica, e divina
Lúcifer treme no seu caos profundo!

Lava-me as nódoas do pecado imundo,
Que as almas cega, as almas contamina:
O rosto para mim piedoso inclina,
Do eterno império Teu, do Céu rotundo:

Estende o braço, a lágrimas propício,
Solta-me os ferros, em que choro e gemo
Na extremidade já do precipício:

De mim próprio me livra, oh Deus supremo!
Porque o meu coração propenso ao vício
É, Senhor, o contrário que mais temo.

Nos campos o vilão sem sustos passa,
inquieto na corte o nobre mora;
O que é ser infeliz aquele ignora,
Este encontra nas pompas a desgraça:

Aquele canta e ri; não se embaraça
Com essas coisas vãs que o mundo adora:
Este( oh cega ambição!) mil vezes chora,
Porque não acha bem que o satisfaça:

Aquele dorme em paz no chão deitado,
Este no ebúrneo leito precioso
Nutre, exaspera velador cuidado:

Triste, sai do palácio majestoso; .
Se hás-de ser cortesão, mas desgraçado,
Antes ser camponês, e venturoso!

Mais vale que delire o pensamento – Bocage

Neste horrível sepulcro da existência
O triste coração de dor se parte;
A mesquinha razão se vê sem arte,
Com que dome a frenética impaciência:

Aqui pela opressão, pela violência
Que em todos os sentidos se reparte,
Transitório poder quer imitar-te,
Eterna, vingadora omnipotência!

Aqui onde o que o peito abrange, e sente,
Na mais ampla expressão acha estreiteza,
Negra idéia do abismo assombra a mente.

Difere acaso da infernal tristeza
Não ver terra, nem céu, nem mar, nem gente,
Ser vivo, e não gozar da Natureza?

M inh’alma quer lutar com meu tormento;
Contenda inútil! É por ele o Fado:
Antes de oprimir-me está cansado
Eterna força lhe refaz o alento:

Mais vale que delire o pensamento
Te agora coa Razão debalde armado;
É menos triste, menos duro estado
A Desesperação, que o Sofrimento:

A Desesperação soluça e chora,
A Desesperação mil ais desata,
Parte do mal nas queixas se evapora:

O Sofrimento azeda o que recata;
Prende suspiros, lágrimas devora,
tiraniza, consome, e às vezes mata.

Aqui, onde arquejando estou curvado
À lei, pesada lei, que me agrilhoa,
De lúgubres ideias se povoa
Meu triste pensamento horrorizado:

Aqui não brama o Noto anuviado,
O Zéfiro macio aqui não voa,
Nem zune insecto alígero, nem soa
Ave de canto alegre, ou agourado;

Expeliu-me de si a humanidade,
Tu, astro benfeitor da redondeza,
Não despendes comigo a claridade:

Só me cercam fantasmas da tristeza:
Que silêncio! Que horror! Que escuridade!
Parece muda, ou morta a Natureza.

Com ampla mão, benéfica largueza,
mil vezes me hás dourado a vida escura;
aos fados meus, de horrível catadura,
mil vezes tens despido a atroz dureza:

Blasone embora a túmida nobreza
Dos timbres, que lhe engole a sepultura;
Esse esplendor dos grandes é ventura;
Teu esplendor, ó Freire, é natureza:

Ante a luz, que do céu mil raios lança,
dignidade sem mérito é desdouro,
mérito estreme a eternidade alcança:

teu gênio benfeitor supre um tesouro;
e eu, que obtive das Musas farta herança,
pago – te em verso o que te devo em ouro.

J á com ténue clarão, já quase escura
A nocturna Diana o céu volteia,
sobre o Tejo azul, que mal prateia,
Vai duplicando a trémula figura:

Aura subtil nas árvores murmura,
No lago adormecido a rã vozeia,
Mocho importuno agouros mil semeia,
Dentre as umbrosas moitas da espessura:

Letárgico vapor Morfeu derrama,
Com que insinua um doce desalento
No livre coração de quem não ama:

Triste de mim! Se repousar intento
Os olhos me abre Amor, Amor me inflama,
E Anália me persegue o pensamento.

Vós,que de meus extremos sois a história,
por negro zoilo em vão roubados,
nascidos da Ternura, e restaurados
co pronto auxílio de fiel memória:

Da Inveja conseguindo alta vitória
Ide, meus versos, em Amor fiados,
Que dele só dependem vossos fados,
Que dele só demando a minha glória:

Não vos importe o público juízo;
Da voz, que pelo mundo se derrama,
Os vivas caprichosos não preciso.

Voai aos olhos, cuja luz me inflama;
Tereis de Anarda aprovador sorriso,
Um sorriso de Anarda é mais que a Fama.

S e é doce no recente, ameno Estio
Ver toucar-se a manhã de etéreas flores,
E, lambendo as areias, e os verdores
Mole e queixoso deslizar-se o rio:

Se é doce no inocente desafio
Ouvirem-se os voláteis amadores,
Seus versos modulando, e seus ardores
Dentre os aromas de pomar sombrio

Se é doce mares, céus ver anilados
Pela quadra gentil, de Amor querida,
Que esperta os corações, floreia os prados:

Mais doce é ver-te de meus ais vencida,
Dar-me em teus brandos olhos desmaiados
Morte, morte de amor, melhor que a vida.

No abismo tragador da Humanidade
(dela, dela não só, de quanto existe)
coa mesma rapidez, Elmano, ah! viste
sumir-se a florescente, e a murcha idade!

Olha em muros, que veste a escuridade,
Olha a cor de teu fado, a cor mais triste:
Talvez (agora!… agora!…) ele te aliste
No volume, em que lê a eternidade!

Oh tochas funerais! Clarão medonho!
Da morte oh mudas, solitárias cenas!
Em vós arrepiado os olhos ponho!…

Ah, porque tremes, louco? Ah! Porque penas?
sonhas num ermo, e surgirás do sonho
em climas de ouro, em regiões amenas.

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana:

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua orgia dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos:

Deus, oh Deus!… Quando a morte à luz me roube
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

Já Bocage não sou!… À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento…
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura:

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento;
Musa!… Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui… A santidade
Manchei!… Oh! Se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

Mimo das graças te florece o canto,
De ternas sensações inda orvalhoso;
D’alma, que em néctar inundei saudoso,
Foge a dor, foge o mal, foge o quebranto:

São melodia os ais, delícia o pranto,
Que excita o verso teu, gentil, mimoso;
Por ele jura Amor ser mais piedoso,
E sente a Natureza um novo encanto;

Estro do coração! Teus sons, teus lumes,
Dos montes de perene amenidade
Tentem no longo adejo os flóreos cumes:

Versos, não vos merece a férrea idade;
Gozai no Olimpo, oh música dos numes,
Vosso ouvinte imortal, a Eternidade!

Cara de réu, com fumos de juiz,
Figura de presepe, ou de entremez,
Mal haja quem te sofre, e quem te fez,
Já que mordeste as décimas que fiz:

Hei-de pôr-te na testa um T com giz,
Por mais e mais pinotes, que tu dês;
E depois com dois murros, ou com três,
Acabrunhar-te os queixos, e o nariz:

Quem da cachola vã te inflama o gás,
E a abocanhares sílabas te induz,
Ó dos brutos e alarves capataz?

Nem sabes o A B C, pobre lapuz;
E pasmo de que, sendo um Satanás,
Com tinta faças o sinal da Cruz!

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno:

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento
E sômente no altar amando os frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.

II- ODES

Assaz temos cantado, assaz carpido
Ó lira, ó doce lira,
Os bens e os males do comum tirano,
Que nas almas derrama
dor, e o riso, o néctar, e o veneno.
Longe a brilhante ideia
De olhos fagueiros, de aneladas tranças,
De angélicos sorrisos,
De momentâneos amorosos furtos;
Longe a amarga lembrança
De vis perjúrios, de cruéis enganos,
De traições estudadas;
Longe as memórias da infiel Marília.
Feitiços perigosos,
Verdugos da alterosa Liberdade;
Tu, dom da formosura,
fatal aos corações, suave aos olhos;
Tu, que em meus pensamentos
No arbítrio meu despótico imperavas,
Tirano, impõe teu jugo,
teu férreo jugo na cerviz daqueles
Que a sisuda Experiência
Por entre pavorosos precipícios
Inda ao templo remoto
Não guiou do profícuo Desengano.
Vencida a longa estrada,
Onde o Erro elevou montes e montes
Para estorvar ao homem
Sagaz instinto, que à Verdade o guia,
Vejo, saúdo os lares,
lares augustos do terrível nume,
Atento à voz do aflito

Que ingénuas preces lhe dirige às aras,
Surdo a rogos falazes
Do cego escravo, que idolatra os ferros,
Liberdade implorando…
Que solidão, que plácida tristeza,
Que profundo silêncio
Reina em torno do alcáçar venerando!
Oh sacro domicílio
Da Verdade imortal!… Quê! Tu num ermo!
Os teus átrios desertos,
Sem culto, sem ministro os teus altares,
Enquanto à vã grandeza
Servil caterva prostitui incensos,
E a curvada Lisonja
Os crimes doura, os vícios abrilhanta!
Ah! Eu te vingo, oh deusa!
Eu entro o franco pórtico espaçoso
E às aras… Mas que sinto!
Que gelo, que tremor, que sobressalto
Me prende a voz, e a planta,
Me abate as forças, me arrepia as carnes!
Coração, que te assombra?
Que temes, coração? Perder Marília?
Marilia acaso é tua?
Não maculou traidora os puros votos,
Os ternos juramentos?
Não viste a desleal sem dor, sem pejo,
Cevar-se nos teus males,
Cos lindos olhos de Fileno absortos?
Que importa que em seus lábios,
Seu ledo rosto, seu virgíneo seio,
Os Amores, e as Graças
Pressintam mil imagens deleitosas,
Onde os sentidos pascem,
Que importa, se a traição surgiu do Averno
A corromper-lhe o peito?
Que vale sem virtude a formosura?
Cede ao tempo, à desgraça;
Do espirito a beleza é sempre nova.
Coração, triunfemos,
Triunfemos da pérfida Marília,
E se a razão não basta,
Vença a vaidade o que a razão não vence.
Envergonha-te ao menos
De seres só feliz quando o permite
O teu rival soberbo,
Que enjoando os afagos importunos
Da perjura, que adoras,
Às vezes com desprezo em ócio os deixa,
E se a ti se dirigem,
Não vêm do coração, vêm do costume.
Eia, mísero escravo,
Sacode o jugo, despedaça os ferros,
A vaidade te anime:
Quase tudo o que é raro, estranho, ilustre,
Da vaidade procede,
Móvel primeiro das acções pasmosas.
Tente-se a grande empresa,
Forcem.se os fados… Ai de mim! Palpitas?
E em frequentes arrancos
Como que exprimes o pavor da morte!
Coração, não desmaies,
Alenta~te, infeliz… Porém que escuto!
Que ruído! que assombro!
Que resplendor me cerca, e me deslumbra!
Torvos dragões, batendo
Asas de negra cor com duro estrondo

Se encontram, se atropelam,
E quais nocturnas aves, que amedronta
O clarão matutino,
Espavoridos pelos ares fogem
Ao fulgor cintilante
De rubro facho, que na dextra empunha
Venerável matrona,
Librada sobre os Zéfiros plumosos!
Ah! Quem és? Vens do Olimpo,
Portentosa visão? Vens socorrer-me?
Ou és aéreo fruto
Da enferma, delirante fantasia
Que entre ilusões vagueia?…
Não; já me iluminaste a mente cega,
Reconheço-te, ó deusa,
És a prole dos Céus, és a Virtude,
Que no benigno seio
Acolhes os meus ais, os meus remorsos,
Indulgente à demora
Que tive em demandar teu santo asilo.
Esses monstros, voando
Ante o celeste resplendor, que espraias,
São pungentes saudades,
Feias traições, frenéticos ciúmes,
Que invisíveis té agora
As cálidas entranhas me ralavam.
Graças, ó divindade,
Que do sábio varão manténs o esforço
Quando a volúvel sorte,
Inimiga do mérito, o sepulta
Nas solitárias sombras
De profunda masmorra aferrolhada
Onde por mãos infames
De aspérrimas correntes o carrega:

Munido da inocência
Contigo ri o herói no cadafalso;
Contigo alegre observa

Do carrancudo algoz na mão terrível
O amolado cutelo
Executor da bárbara sentença;
E contigo, ó deidade,
Ó alta benfeitora, encaro as portas
Do formidável templo.
Teu sagrado fervor de veia em veia
Me agita, me transporta,
Eu te sigo, eu te sigo… Oh céus! Oh deuses!
Já sou meu, já sou livre.
Ídolo falso, que de altar profano
Davas leis à minh’alma,
Recebias meus votos, meus incensos,
Tributos da fraqueza;
Aleivosa Mania, horror e afronta
Té do tropel de ingratas,
De astutas, de infiéis, que o mundo infamam,
O escravo de teus olhos,
A vítima infeliz de teus enganos
Já tem rotos os ferros,
Solta a vontade, o coração tranqüilo
Como o Sol, quando vibra
Na cristalina esfera os raios de ouro,
Gasta, desfaz, consome
Vapores, que exalou do seio a Terra;
Também, falaz Marilia,
As luzes, que a verdade em mim dardeja,
Absorvem, desvanecem
A funesta ilusão, que na minh’alma
Te assemelhava aos deuses.
Ingrata, consumiram-se os incensos,

Retractaram-se os votos,
Foram-se as oblações, e os sacrifícios,
Caiu o altar, e o númen!

De porto mal seguro a turvo pego
Sai mesquinho baixei com raras velas,
Vai crespas ondas pávido talhando
À discrição dos ventos:

Nauta inexperto lhe dirige o leme,
Chusma bisonha lhe maneia o pano;
De um lado fervem Sirtes, de outro lado
Navífragos penedos:

Sussurrante chuveiro os ares cerna,
Luz sulfúreo clarão de quando em quando,
D’iminente pnocela os negros vultos
Feno estrago ameaçam:

Já bravos escarcéus, que se amontoam,
Por cima do convés soberbos saltam:
Prossegue na derrota o débil pinho,
Das vagas quase absorto.

Depois de longamente haver corrido
A estrada desigual com céus adversos,
Em lugar de colhê-lo, o pano aumenta,
Desafia o naufrágio:

Imaginária terra se lhe antolha,
De mil, e mil venturas semeada:
Anelas por surgir no porto amigo,
Cobiçosa Esperança:

Para cevar o horror mais campo havendo,
A torva tempestade então mais zune,
Em raios, em tufões todo o ar converte,
Todo o pélago em serras:

O mísero baixel desmantelado
Aos duros encontrões do mar, do vento,
Sobe às estrelas, aos abismos desce
Entre o pavor, e a morte:

Súbito acode próvido piloto,
Que oprimido até’li jazera em ferros
Num vil cárcere escuro, onde rebeldes
O tinham sopeado:

Estende a mão forçosa, aferra o leme,
O lenho desafronta, o rumo escolhe,
Com saber eficaz, com alta indústria
Vai sustendo a tormenta.

Já volumosas nuvens se adelgaçam,
O vento se amacia, o mar se aplana:
Do benigno Santelmo o ténue lume
Reluz no aéreo tope.

Reina um pouco a suave, azul bonança;
Mas eis se tolda o céu de novas sombras;
Mais negra, mais feroz, mais horrorosa
Ressurge a tempestade.

O sábio director, que todo ufano
Da recente vitória inda folgava,
A repetido assalto opõe debalde
Arte, vigor, constância.

Tremendo aos furacões impetuosos
Lá descorçoa enfim, lá desalenta;
Coa máquina infeliz, que já não rege,
Misérrimo soçobra:

Oh ente racional! Oh ente frágil!
Escravo das paixões, que te arrebatam!
Olhos sisudos neste quadro emprega:
Eis o quadro da vida.

M usa, não gemas; ergue, ó desgraçada
o rosto macilento;
Da vista a frouxa luz, quase apagada
Nas lágrimas que vertes; Musa, alento!
Move a trémula planta,
Pisa os receios, e a Manilha canta.

Canta da ilustre dama a gentileza,
A prole esclarecida,
Os dons da sorte, os dons da natureza,
As prendas com que a vês enriquecida;
E depois de a louvares
Torna os teus choros, torna os teus pesares.

Ah! Que já sinto, milagroso objecto,
Quanto pode o teu rosto!
Da malfadada Musa o torvo aspecto
Jí cora, já se vai do meu desgosto
Sumindo a névoa densa,
Que desfaz, como o Sol, tua presença.

Inclina pois, magnânima senhora,
Os dementes ouvidos
A voz, que não profere aduladora
Altos encómios de razão despidos;
A verdade celeste
Com seu cândido manto os orna, e veste.

A ti, dignos de ti, Marília, voam;
A ti, bela heroína,
Cujas mil graças mil virtudes c’roam;
A ti, que enches de glória a fértil China,
Enquanto a que te adora
Mísera pátria, tua ausência chora.

As deidades, criando-te, exauniram
O seu cofre divino;
A teus encantos para sempre uniram
Em áureo laço o mais feliz destino;
E eis os dons com que brilhas
Reproduzidos nas mimosas filhas.

Esses tenros, lindíssimos pedaços
Da tua alma preciosa,
O ledo par gentil, que nos teus braços
Das doces, maternais carícias goza,
Teus dias felicita,
E nas amáveis perfeições te imita:

Com meiga voz, com eficaz exemplo,
Com saudáveis doutrinas
Ao que habita a Virtude eterno templo
O caminho estelífero lhe ensinas;
A mim, mor tal profano,
A mim tão árduo, para ti tão plano.

Já do etéreo vestíbulo te acena Almo esquadrão
radioso:
Já na celeste região serena
Génios sem mancha em hino harmonioso Te nomeiam… Lá brada

De ilesas virgens multidão sagrada.

Não ouves, 6 Marília, as vozes delas? Repara como of’recem

Do teu pudico amor às prendas belas A glória sem limites, que
merecem…
Não me engano, em vós chove O fragrante licor, que liba Jove.

Vós sois… Porém não mais, oh Musa inerte! Basta, cesse
o teu canto;
As vozes de prazer em ais converte,
Nadem teus olhos outra vez em pranto; Que as almas compassivas
Atendem mais às lágrimas que aos vivas.

Com suspiros, 6 triste, implora, implora De Marília a piedade;
Ela é justa, ela sente, ela deplora Os erros da infeliz humanidade;

Contra o fado inimigo
Na sua compaixão procura abrigo.

Roga, roga-lhe enfim, que te destrua As ânsias, os temores;
Que à pátria, ao próprio lar te restitua:
Ah já te diz que sim: – não mais clamores; Musa, Musa descansa,

Cantemos o triunfo, oh Esperança!

Olha como a tirana, a má Desgraça As cobras arrepela,
E as sanguinosas vestes despedaça!…
Zombemos, coração, zombemos dela:
Monstro, já não me espantas,
Lá cai, lá treme de Marília às plantas.

III – CANÇÕES

Agora, que ninguém vos interrompe,
Lágrimas tristes, inundai-me o rosto,
Mais do que nunca; assim o quer meu fado:
Enquanto o gume de mortal desgosto
Me não retalha os amargosos dias,
Debaixo destas árvores sombrias
Grite meu coração desesperado,
Meu coração cativo,
Que só tem nos seus ais seu lenitivo.

Alterosas, frutíferas palmeiras,
Vós, que na glória equivaleis aos louros,
Vós, que sois dos heróis mais cobiçadas

Que áureos diademas, que reais tesouros,
Escutai meus tormentos, meus queixumes,
Meus venenosos, infernais ciámes;
Ouvi mil penas, por Amor forjadas,
Mil suspiros, mais tristes
Que todos esses, que até’qui me ouvistes.

Aqueles campos, aprazíveis campos,
Que além verdejam, de meu mal souberam
A desgraçada, mas suave origem:
Ali de uns olhos os meus ais nasceram;
Ali de um meigo, encantador sorriso,
Que arremeda o sereno paraíso,
Brotaram mil infernos, que me afligem,
Que as entranhas me abrasam,
Que meus olhos de lágrimas arrasam:

Ali de uns lábios, onde as Graças brincam,
Ouvi suspiros, granjeei favores,
Ali me disse Anarda o que eu não digo;
Ali, volvendo os ninhos dos Amores,
Cravou nest’alma, para sempre acesa,
As perigosas frechas da beleza;
Ali do próprio mal me fez amigo,
Ali banhou meu rosto
Parte do coração, desfeita em gosto.

Novas campinas testemunhas foram
De nova glória, de maior ventura,
Tal, que julguei, logrando-a, que sonhava:
Entre as doces prisões da formosura,
Entre os cândidos braços deleitosos,
Meus crestados desejos amorosos
No alvo rosto, que o pejo afogueava,
No néctar… ah! que eu morro,
Se em vós, furtivos êxtases, discorro!

Amor! Amor! Teus júbilos excedem
Da loira abelha os engenhosos favos,
Mais gratos são que as flores teus sorrisos:
Gostei todos os bens, que aos teus escravos
Fazem tãô leve a rígida cadeia,
Tão doce a chama, que no peito ondeia:
Mas oh! Cruéis teus dons, cruéis teus risos,
Princípio do tormento,
Que já me tem delido o sofrimento.

Miserável de mim! Qual o piloto,
Que lera nos azuis, filtrados ares
Indícios de uma sólida bonança,
E eis que vê de repente inchar os mares,
Vestir-se o céu de nuvens, donde chove
O fogo vingador, que vibra Jove;
Tal eu, quando supus mais segurança
No meu contentamento,
O vi fugir nas asas de um momento.

Anarda, Anarda pérfida, teus olhos,
Onde Amor traz escrita a minha sorte,
Teus mimos por mim só não são gozados!
Oh desesperação, pior que a morte!
Oh danados espíritos funestos,
De hórridos vultos, de terríveis gestos,
Moderai vossa queixa, e vossos brados,
Que as penas do profundo
Também, também se encontram cá no mundo!

Ver outro disputar-me o caro objecto,
Em cujas lindas mãos pus alma, e vida,
Não me arranca suspiros: o tormento,
Que no peito me faz mortal ferida,
O maior dos tormentos, ó perjura,
É ver, que de outrem sofres a ternura:
E ver, que dás calor, que dás alento
A seus mimos, e amores
Cum riso, precursor de mil favores.

Tu não foges de mim, tu não te esquivas
Destes olhos, que em ti cativos andam;
Delícias, onde pasma o pensamento,
Doces instantes meu ciúme abrandam:
Mas ah! Não é só minha esta ventura,
Meu vaidoso rival a tem segura.
Que indigna variedade! Em um momento
Teus olhos inconstantes
Acarinham sem pejo a dois amantes.

Honra, Virtude, Agravo, e Desengano
Me gritam n’alma, que sacuda os laços,
Que tanto sofrimento é já vileza;
Ouço-os, protesto desdenhar teus braços,
Protesto, ingrata, converter meus cultos
Em mil desprezos, irrisões, e insultos:
Mas ah! Protestos vãos, baldada empresa!
Sou a amar-te obrigado;
Não é loucura o meu amor, é fado.

Canção, vai suspirar de Anarda aos lares;
Mas se não lhe firmares
O instável coração, deixa a perjura,
E iremos sossegar na sepultura.

I nda não bastam, minha voz cansada,
Tantos ais, que tens dado;
É necessário renovar queixumes,
Queixumes, de que o fero Amor se agrada,
De que zombando está meu duro fado:
Gritemos, pois, frenéticos ciúmes,
Gritemos outra vez; que dos aflitos
São triste refrigério os ais, e os gritos.

Carrancuda Agonia, azeda, azeda
Inda mais, se é possível,
O venenoso fel, que em mim derramas;
Doces enganos da minh’alma arreda,
Deixa-lhe a dor intensa, a dor terrível
Dos ígneos zelos, das tartáreas chamas,
Deixa-lhe as ânsias, a peçonha, as iras,
E a desesperação, que tu respiras.

Farte-se Anarda, o variável peito,
Cujas graças me encantam,
Cujas traições no coração me ferem,
E por quem gemo, em lágrimas desfeito:
Que já mil bens dulcíssimos não cantam
Os ternos lábios meus, antes proferem
Lamentos contra Amor, contra a Ventura,
Conheça a desleal, saiba a perjura.

Sim, traidora, que o júbilo em torrentes
Viste alagar meu rosto,
Quando em teus braços possuí mil glórias,
Hoje morro de angústias, e o consentes,
Podendome, cruel, matar de gosto?
Oh êxtase! Oh delícias transitórias!
Oh vão prazer dos crédulos amantes,
Mais fugaz que os alígeros instantes!

Cansaste, Anarda: a sólida firmeza
Vezes mil protestada,
Votos de eterna fé, que me fizeste,
Manter não pôde feminil fraqueza,
A quem somente a novidade agrada:
Já lugar na tu’alma a outro deste,
E o mais ardente amor, o amor mais puro
Não satisfaz teu coração perjuro.

Se me fugisses, se de todo as chamas,
Que por mim te abrasavam,
A nova inclinação te amortecera,
Desculpara esse ardor, em que te inflamas;
Porém quanto, infiel, quanto me agravam
Os sorrisos de amor, com que assevera
Teu gesto encantador, teu meigo rosto,
Que inda propende a saciar meu gosto!

Presumes, que se paga uma alma nobre,
Um coração brioso
De um sórdido prazer, torpe, e corrupto
Qual esse, que me ofertas, se descobre?
Assim só pode o vil ser venturoso,
Essa fortuna por baldão reputo:
Em amor antes só ser desgraçado,
Que de outrem na ventura acompanhado.

Vai, fementida, que a paixão perfeita
Os seus dons não reparte;
Vai gemer noutro peito, e noutros braços:
Pérfidos mimos desse infame aceita,
Enquanto juro aos Céus de abominar-te,
Enquanto arranco meus indignos laços,
Enquanto… ah! Que falei! Meu bem, detém-te,
Abafa a minha voz, dize que mente!

Eu deixar-te (ai de mim!) primeiro a Terra
Mostre as fundas entranhas
Por larga boca horrível, que me trague:
Primeiro o mar, e o Céu me façam guerra,
Despenhem-se primeiro estas montanhas,
E a meu corpo infeliz seu peso esmague:
Primeiro se confunda a Natureza,
Que eu cesse de adorar tua beleza.

Vejam meus olhos esses teus pasmados
De um rival no semblante;
Ouça-te os ais, que com seus ais misturas,
E os agrados, que opões aos seus agrados:
A tudo está sujeito um cego amante,
Que não pode quebrar prisões tão duras;
A tudo estou submisso, estou disposto,
Quero tudo sofrer, porque é teu gosto.

Terá por crime, suporá vileza
Tão cruel tolerância
Quem não sente o poder da formosura;
Porém minh’alma, nos teus olhos presa,
Inda chega a temer, que esta constância
Prova não seja de exemplar ternura:
E saibam, se com isto um crime faço,
Que o crime adoro, que a vileza abraçccedil;o.

Sobre as asas dos ventos
Canção chorosa, e rouca,
Vai narrar pelo mundo os meus tormentos:
De almas estóicas a dureza louca Rirá dos teus lamentos;
Mas nos servos de Amor terás abrigo:
Quando te ouvirem, chorarão contigo.

EPICÉDIO

A OLINTA

Co/ei di gioia trasmutossi, e rise,
E in atto di morir /ieto, e vzvace
Dir parea: s’apre ii cie/o, io vado in pace’.
Tasso, Jerusa/. Libert., canto XII

( ‘COLEI DI GIOIA TRASMLJTOSSI … lO VADO fN PACE. Ela de gáudio
transmutou-se, e riu,! E no semblante de morte ledo e vivaz! Parecia dizer:
abre-se o céu, vou-me em paz. )

O linta jaz na terra,
Contigo, ó Noite, para sempre mora,
E Amor grita, Amor chora,
Chora o fagueiro Amor, que lhe brincava
Nos melindrosos braços,
Movendo aos corações sanguínea guerra;
Ei-lo já delirante; a ebúrnea aljava,
Arco, venda, farpões eis em pedaços
Sobre o frio, o medonho
Lugar sagrado, aonde
Com ar inda risonho
O seu, e o nosso bem se nos esconde;
Na terra oculto jaz mais um tesouro
Por decreto da Sorte:
Daquela tenra vida o fio de ouro
Quão cedo rebentou nas mãos da Morte!…
Ah Morte inexorável, que te nutres
Em ruínas, em ais, em sangue, em pranto!
Mais negra que os Infernos, mais faminta
Que os famintos abutres!
Ó tu, da humanidade horror, e espanto,
Levaste – lhe o melhor, levaste Olinta;
Olinta, em cujas faces delicadas
Corações atraíam

As rosas sobre neve desfolhadas,
Que de virgíneo pejo se acendiam
Ao brando assalto da menor fineza;
Olinta, em cujos olhos, que encantavam,
Ufana se revia a Natureza!
Olhos! Flama celeste, a que voavam
Açorados, terníssimos desejos,
E onde, quais borboletas, se crestavam,
Dando suspiros, dando-vos mil beijos,
Olhos! Olhos! Oh dor! E estais fechados!
Estais de opacas névoas eclipsados!
Olhos suaves, olhos milagrosos,
Com vossos deleitosos
E froixos movimentos
Dáveis flores aos prados,
Alento aos corações desesperados,
Enfreáveis os ventos,
Removíeis das rochas a dureza,
Transgredíeis as leis da Natureza,
E não podeis sair desse letargo!…
Oh doidas ilusões! Oh desvarios!
Oh desengano amargo!
Olhos tristes, sem luz, olhos já frios,
A Morte não se rende à Formosura:
Não, jamais torna a si, jamais desperta
Quem dorme, como vós, na sepultura.
A desesperação, que nunca acerta
No que faz, no que diz, porque não pensa,
Nest’alma, de aflição, de amor perdida,
Loucuras proferiu. Não há quem vença
O monstro, que executa a lei da Sorte:
E um contrato a vida,
Que fez o justo Céu co mundo ingrato,
E tu deste contrato

És fatal condição, terrível morte,
Que restituis a matéria ao nada.
O rei, que os povos como filhos ama,
E que de benfeitor, de pio a fama
Preza mais do que a púrpura sagrada,
Castigando com lástima o delito,
Reinando em corações, qual novo Tiro;
Aqueles, que entre bando lisonjeiro,
Servil, e dependente,
Se presumem do raio omnipotente
Livres, seguros, coa Fortuna ao lado,
E de mais pura massa
Que o frágil barro do varão primeiro:
Aqueles, que com ar divinizado,
Insensíveis aos gritos da Desgraça,
Envolvidos em lúcido brocado,
E tendo a mansidão por um desdouro,
Para vós olham, míseros, e pobres
(Ricos talvez de espíritos mais nobres)
Qual para o mundo o Sol do carro de ouro,
Todos hão-de sulcar (oh Morte! Oh Fado!)
Esse horrendo Oceano
Da nunca fatigada eternidade:
Lá verão, que no mundo a voz do Engano
Traz o filho da terra alucinado,
Que no mundo não há felicidade;
Todos, todos hão-de ir, por lei superna, Inviolável, eterna,

Dormir nas trevas como Olinta dorme…
Mas ah! Filha cruel de Érebo enorme,
Mudo espectro horroroso,
Verdugo universal! Não te enganaste
Ao menos, quando a fouce preparaste
Contra o peito mimoso,
Cujos tesouros, que o purpúreo pejo
À sombra do véu cândido zelava
Do espiador, solícito desejo,

Meu pensamento audaz apenas via,
E inda eu vê-los assim não merecia!
Nem sequer desviaste a mão ferina
Uma vez, parecendo-te divina,
E exempta das pensões da Natureza
Aquela rara, e cândida beleza;
O mágico volver dos olhos puros,
Que viam seus escravos quantos viam;
Os olhos, ante quem se derretiam
Os penedos, os mármores mais duros;
A longa trança, a face transparente,
Tão meiga para nós, como inocente;
A rubra, intacta boca, as mãos nevadas,
A flor da gentileza, a flor dos anos,
As patéticas vozes, já truncadas,
Que não feriram só peitos humanos,
Que essas montanhas estalar fizeram,
Ao menos não puderam,
Hórrido monstro, monstro famulento,
Teu golpe demorar por um momento!
Monstro, monstro voraz, se nos tragaste
Todo o bem, todo o gosto
Naquele singular, benigno rosto,
Para que nos deixaste
Cá nesta solidão? Mortais, choremos,
A ver se à força de chorar morremos:
Por Olinta querida
Em lágrimas de amor se esgote a vida!
Fervam suspiros, fervam pelos ares,
E criem nossos olhos novos mares.
De um bem, que áspera lei de nós desterra,
A falta, a perda qual de vós não sente?
Mundo, suspiros, lágrimas, oh gente!
Olinta foi-se, Olinta jaz na terra.
Gritemos.., sempre em vão, tristeza, e luto
Nos volva em noite o dia,
Gritemos.., sempre em vão… Porém que escuto!
Céus! Estrelas! Que súbita harmonia,
Que nunca ouvido tom, que etéreo canto
Me faz balbuciar no meu lamento,
Me faz a meu pesar conter o pranto!
Desencrespou-se o mar!… Nem bole o vento!…
Soava aquele arroio.., ei-lo calado,
E como que se ri de gosto o prado!

Oh pasmo! Oh maravilha!
Este canto… este som… nào é terreno…
Vem do Céu, vem do Céu, que tão sereno,
Olhos meus, nunca vistes;
Néctar consolador minh’alma rega…
Porém que nova luz nos ares brilha!
Que resplendor me cega!
À vista dele o Sol despe a beleza,
Como à vista do dia a tocha acesa!
Que é isto, coração! Lágrimas tristes,
Recuastes, fugistes!
Que doçura! Que encanto!
Este som faz que em êxtase me sinta!…
É verdade, é verdade: os anjos ouço…
Mas é digno um mortal de ouvir-lhe o canto?
Humanos, escutais? Oh céus! Olinta!
Olinta! É ilusão do pensamento…
Não, não é… que portento!
Humanos, atenção: – "Na corte imensa
Do rei, que vibra os raios vingadores…
Prostrada.., aos pés divinos…
Olinta… goza já… da recompensa…
Das palmas… da virtude.., os seus louvores…
Sobre… as asas… dos hinos…

Como… soam no Céu.., na Terra soem…
Consolai-vos… humanos,.,
Mais suspiros… não voem;
Vosso néscio queixume… a Deus insulta,
Longe… de olhos profanos…
Que não merecem… ve-la, aqui… se encerra…
Aqui… das virgens.., entre o coro exulta..,
Consolai -vos.., humanos,.,
Olinta… está.,, no Céu.., não jaz na terra."
Ah! Que o verso adorável emudece,
E a luz celestial desaparece!
Deus! Oh Deus! Será sonho?
Será sonho, ó mortais, o que escutamos?
Não, não é, que inda o prado está risonho,
Que o límpido regato inda não anda,
Nem Zéfiro bafeja os arvoredos,
Nem bate o mar nos íngremes penedos.
Ah! Bendito o Senhor, que nos abranda
Esta saudade, que mortal julgamos.
Prazer, oh mundo, cânticos, oh gente!
Olinta está nos Céus, e lá piedosa
Desde os áureos degraus do trono eterno
Do nume omnipotente
Nos chama para o bem, de que ela goza.
Lá faz estremecer o horrendo Inferno,
Lá prende, orando, o braço justiçoso
Daquele, mais que os séculos anoso,
Que, farto de sofrer nossos delitos
Quase, quase infinitos,
Me faz crer a Razão, que já queria
Mostrar-nos, ó mortais, quanto podia,
Lançando-nos às testas criminosas
Irresistível, pavoroso estrago:
A bárbara invasão, que oprimiu Roma,

Hórrida fúria, que arrasou Cartago,
Ou chuva ardente, que inundou Sodoma.
Cenas terríveis, cenas lutuosas,
Olinta é quem de nós vos afugenta,
Olinta a mão sustém, que nos sustenta…
Ah! Gratidão, saudade! A nossa amada
Seja, seja cantada;
Versos em vez de lágrimas lhe demos,
Do cedro vivedouro
Com seu nome adorado o tronco honremos;
De beijos, e de rosas
Cubra-se o cofre, cubra-se o tesouro
Daquelas sacras cinzas preciosas;
E depois que do peito amortecido
A nossa frágil vida transitória
Voar nas asas do final gemido,
Vereis quão terna Olinta nos recebe
Lá nessas fontes de inefável glória,
Onde mais quer beber quanto mais bebe.
Longe da nossa ideia, oh bens mundanos!
Sim, desde agora vos armamos guerra.
Orai a Olinta, não choreis, humanos:
Olinta está no Céu, não jaz na terra.

Outros Poemas

ELEGIAS

À TRÁGICA MORTE DA RAINHA
DE FRANÇA, MARIA ANTONIETA
Guilhotinada aos 16 de Outubro de 1793

Século horrendo aos séculos vindouros,
Que ias inútilmente acumulando
Das artes, das ciências dos tesouros:

Século enorme, século nefando,
Em que das fauces do espantoso Averno
Dragões sobre dragões vêm rebentando:

Marcado foste pela mão do Eterno
Para estragar nos corações corruptos
O dom da humanidade, amável, terno.

Que fatais produções, que azedos frutos
Dás aos campos da Gália abominados,
Nunca de sangue, ou lágrimas enxutos!

Que horrores, pelas Fúrias propagados,
Mais e mais esses ares enevoam
Da glória longo tempo iluminados!

Crimes soltos do Inferno a Terra atroam,
E em torno aos cadafalsos lutuosos
Da sedenta vingança os gritos soam.

Turba feroz de monstros pavorosos
O ferro de ímpias leis, bramindo, encrava
Em mil, que a seu sabor faz criminosos.

A brilhante nação, que blasonava
D’exemplo das nações, o trono abate,
E de um senado atroz se torna escrava.

Por mais que o sangue em ondas se desate
Nada, nada lhe acorda o sentimento,
Que as insanas paixões prende, ou rebate;

Vai grassando o furor sanguinolento,
Lavra de peito em peito, e de alma em alma,
Qual rubra labareda exposta ao vento:

Não cede, não repousa, não se acalma,
E a funesta, insolente liberdade
Ergue no punho audaz sanguínea palma.

Bárbaro tempo! Abominosa idade,
Às outras eras pelos Fados presa
Para labéu, e horror da humanidade!

Flagelos da virtude, e da grandeza,
Réus do infame e sacrílego atentado
De que treme a Razão, e a Natureza!

Não bastava esse crime?… Inda o danado
Espírito, que em vós está fervendo,
A novos parricídios corre, ousado?…

JUSTOS CÉUS ! QUE ESPETÁCULO TREMENDO ! magens de terror; que
horrível cena
Que imagens de terror ; que horrível cena
Vou na assombrada ideia revolvendo!

Que vítima gentil, muda, e serena
Brilha entre espesso, detestável bando,
Nas sombras da calúnia, que a condena!

Orna a paz da inocência o gesto brando,
E os olhos, cujas graças encantaram,
Se volvem para o Céu de quando em quando:

As mãos, aquelas mãos, que semearam
Dádivas, prêmios, e na mole infância
Com os ceptros auríferos brincaram.

Ludíbrio do furor, e da arrogância
Sofrem prisões servis, que apenas sente
O assombro da beleza, e da constância.

Oh justiça dos Céus! Oh mundo! Oh gente!
Vinde, acudi, correi, salvai da morte
A malfadada vítima inocente!…

Mas ai! Não há piedade, que reporte
A raiva dos terríveis assassinos;
Soou da tirania o duro corte.

Já cerrados estais, olhos divinos;
Já voando cumpriste, alma formosa,
A férrea lei de aspérrimos destinos.

Do Rei dos reis na corte luminosa
Revês o pio herói, por nós chorado,
Que da excelsa virtude os lauros goza.

Na mente vos observo: ei-lo a teu lado
Implorando ao Senhor, que os maus flagela,
Perdão para o seu povo alucinado.

Despido o véu corpóreo, ó alma bela,
No seio de imortal felicidade,
Só sentes não voar mais cedo a ela.

Enquanto aos monstros de hórrida maldade
Murmura a seu pesar no peito iroso
A voz da vingadora Eternidade.

Desfruta suma glória, ó par ditoso,
Logra em perpétua paz júbilo imenso,
Que o mundo consternado, e respeitoso,

Te apronta as aras, te dispõe o incenso.

IDÍLIOS

FILENA, OU A SAUDADE
(Pastoril)

Que terna, que saudosa cantilena
Ao som da lira Melibeu soltava,
O pastor Melibeu, que por Filena,
Pela branca Filena em vão chorava!
Inda me fere o peito aguda pena,
Quando recordo os ais, que o triste dava,
O pranto que vertia, amargo, e justo
À sombra, que ali faz aquele arbusto.

Tu, maviosa a choros, e a clamores,
Tu, Vénus (Vénus só na formosura)
Luz de meus olhos, únicos amores
Desta alma, e seu prazer, sua ventura;
Que reclinada, amarrotando as flores,
Descansas em meu peito a face pura,
Ouve-me os ais, e as queixas de outro amante.
Que ao teu no ardente extremo é semelhante.

"Céus! (assim começou, e eu escondido
Entre as copadas árvores o ouvia)
Por vós em duras mágoas convertido
Vejo enfim todo o bem, que possuía:
À cândida Filena estar unido
Julgastes que um pastor não merecia:
A mais doce prisão de Amor partistes.
Ajuda, triste lira, os versos tristes.

Mal haja a lei dos fados inclemente!
O seu poder, o seu rigor praguejo:
Morte! Geral verdugo! Estás contente?
Já saciaste o sôfrego desejo?…
Mas Filena inda é viva, inda me sente
Suspirar nos seus braços: inda a beijo!…
Ah meus olhos, morreu: sem alma a vistes.
Ajuda, triste lira, os versos tristes.

Em ti, cara Filena, a sepultura
Tem de Amor, tem das Graças o tesouro;
Ali te arranca a morte acerba, e dura
Da mimosa cabeça as tranças de ouro:
Eis terra, eis cinza, eis nada a formosura…
Ah! Que não pude perceber o agouro
Com que esta perda, oh fados, me advertistes!
Ajuda, triste lira, os versos tristes.

Um dia, há tempos, Lénia, a feiticeira,
Me disse: ‘Grande mal te está guardado!’
Não mo quis declarar, e ave agoureira
De noite me piou sobre o telhado:
Cuidei que perderia a sementeira,
O rebanho, o rafeiro… ah desgraçado!
Perdeste mais, e a tanto inda resistes!
Ajuda, triste lira, os versos tristes.

A tua meiga voz, o teu carinho
Maior falta me faz, minha Filena,
Que lá no bosque ao rouxinol sôzinho
Da presa amiga a doce cantilena:
O teu branco, amoroso cordeirinho,
Mal que se viu sem ti, morreu de pena:
Balar saudoso, á montes, vós o ouvistes.
Ajuda, triste lira, os versos tristes.

O meu rebanho definhou de sorte,
Depois que te perdi, que anda caindo;
Seca estes campos o hálito da Morte
Desde que ela sumiu teu gesto lindo:
Rogo-lhe vezes mil, que me transporte
Lá onde, como estrela, estás luzindo,
Lá onde alegre para sempre existes.
Ajuda, triste lira, os versos tristes.

A roseira também, que tu plantaste,
Teu prazer, e prazer da Natureza,
Murchou-se logo assim que te murchaste,
Oh flor na duração, flor na beleza!
A pequenina rola, que apanhaste,
Não comeu mais, finou-se de fraqueza:
Porque blasfémia, ó deuses, me punistes?
Ajuda, triste lira, os versos tristes.

Já pelas selvas, ao raiar da aurora,
Caçando, as tenras aves não persigo;
Tudo me anseia, me enfastia agora,
Nem sofro os que por dó vêm ter comigo:
Figura-me a saudade a toda a hora
Ternas delícias, que logrei contigo.
Ah! Quão depressa, gostos meus, fugistes!
Ajuda, triste lira, os versos tristes.

Como as formigas pelo chão, no Estio,
Ou como as folhas pelo chão, de Inverno,
No aflito coração, que em ais te envio,
Jazem penas cruéis, quais as do Inferno:
Ora me sinto arder, outr’hora esfrio,
Desfaz-me em ânsias um veneno interno:
Talvez meus pés, oh víboras, feristes!
Ajuda, triste lira, os versos tristes.

Nos troncos, e nos mármores gravemos
Memórias de Filena idolatrada,
Tão digna de suspiros, e de extremos,
De tantos corações tão cobiçada:
Amor! Amor! Seu nome eternizemos…
Ai, que me falta a voz! Socorro, amada;
Conforta-me dos Céus, aonde assistes!
Não mais, á triste lira, ó versos tristes."

QUEIXUMES DO PASTOR ELMANO
CONTRA A FALSIDADE DA PASTORA

URSELINA

Metido tenho a mão na consciência.
E não falo senão verdades puras.
Que me ensinou a viva experiência.
Camões, Soneto LXXXVII

Seu manto desdobrava a noite escura,
E a rã no charco, o lobo na espessura
Vociferando, os ares atroavam;
Do trabalho diurno já cessavam
Os rudes, vigorosos camponeses:
O vaqueiro, cantando atrás das teses,
Após as cabras o pastor cantando,
Iam para as malhadas caminhando;
Tudo jazia em paz, menos o triste,
O desgraçado Elmano, a quem feriste,
Ó pernicioso Amor, cruel deidade,
Flagelo da infeliz humanidade:
Tudo enfim descansava, excepto Elmano,
Que a mão do Fado, universal tirano,
Sentia sobre si descarregada;
Que, longe da paterna choça amada,
Dependente vivia em lar, estranho
Sendo os desgostos seus o seu rebanho.
Honrados maiorais o ser lhe deram
Lá junto ao Sado ameno, e lhe fizeram
Das artes cortesãs prezar o estudo:
As Musas o encantaram mais que tudo,
Ateando-lhe n’alma o fogo santo,
Que estúpidos mortais desdenham tanto.
Inflamado com ele, ao som da lira
Quebrava dos tufões a força, a ira,

E o venerando Tejo sossegado,
A cuja fresca praia o trouxe o Fado,
Mil vezes, para ouvir-lhe as ternas mágoas,
A limosa cabeça ergueu das águas.
Cego, convulso, pálido, e sem tino
Entrava na cabana de Francino
O desditoso Elmano. Entre os pastores
Geral estimação, gerais louvores
Francino com justiça desfrutava:
Alto saber o espírito lhe ornava,
Na vasta capital fora criado,
E por expertos mestres cultivado.
Doce nó de amizade os dois unia,
Concorrendo a razão, e a simpatia
Para tão bela, e plácida aliança.
Notando, pois, a fúnebre mudança,
Que no aspecto do amigo aparecia,
Assim Francino a causa lhe inquiria:

FRANCINO

Que tens, Elmano? Que fatal desgosto
Banha de tristes lágrimas teu rosto?
Tu, que ainda há brevíssimos instantes,
Te aclamavas feliz entre os amantes,
Logrando mil carinhos, mil favores
De Urselina gentil, dos teus amores,
Vens tão choroso, tão aflito agora!
Ah! Conta-me a paixão que te devora,
Das ânsias tuas o motivo explica:
Comunicado o mal, mais brando fica.

ELMANO

Ai de mim! Venho louco, estou perdido.
Oh peito ingrato! Coração fingido!

Oh desumana, oh bárbara pastora!
Fementida mulher enganadora!…
E tiveste valor para a mais feia
Traição, que pode conceber a ideia?
É possível! É certo! Oh céus! Socorro!…
Eu pasmo, eu desespero, eu ardo, eu morro.

FRANCINO

Amigo, torna em ti, recobra alento,
Declara-me o teu íntimo tormento.
Do cego frenesi, que te domina,
Quem é causa, pastor? É Urselina?

ELMANO

Quem, senão ela (oh céus!) me obrigaria
A tão pasmoso extremo? A Sorte impia
Com todo o seu poder nunca tem feito
Desmaiar a constância de meu peito;
Quem me abate é Amor, não o Destino.
Eu te conto o meu mal, eu vou, Francino,
Retratar-te a mais negra, a mais horrível
De todas as traições. Não é possível
Nos ermos encontrar da Líbia ardente
Monstro, seja leão, seja serpente,
Que possa comparar-se à fera humana,

Que com tanto rigor me desengana.
Quantas vezes notaste, honrado amigo,
Finezas, que a traidora obrou comigo!
Quantas vezes daqui presenciaste
Seus gestos, seus afagos, e julgaste,
Que o mais ardente amor, a fé mais pura
Pagavam minha cândida ternura!
Ouve, e conhecerás (ai de mim triste!)
Que foi sonho, ilusão tudo o que viste.
Já sabes, que no dia em que ligado
A Márcio Jónio foi pelo sagrado,
Indissolúvel nó, cantei louvores
A tão ditosos, tão fiéis amores,
E o número aumentei dos convidados;
Já sabes as meiguices, e os agrados,
Com que a minha infiel me fez ditoso;
Ali traçando um baile harmonioso,
Por parceiro me quis; ali sentada
Junto a mim, vezes mil a refalsada
Protestou, que em sua alma eu só vivia,
Que eu era dos seus olhos a alegria,
Dando-me a bela mão furtivamente,
Que, ardendo de paixão, beijei contente.
Pediu-me a desleal, que ali tornasse,
Que tão doce prazer lhe não roubasse:
Guiado por Amor, fui inda agora
Seu desejo cumprir, que antes não fora,
Porque não sentiria este martírio,
Este ardor, esta raiva, este delírio.
Jónio, que estava à porta da cabana,
Me veio receber.., ah! Quanto engana
Uma aparencia alegre, e carinhosa!
Entrei, pus logo os olhos n’aleivosa,
Que, em vez de me tratar com meigo agrado,
Tinha nas faces o desdém pintado.

Pasmado da mudança repentina,
Lhe disse: "Amado bem, cara Urselina,
Tu comigo tão áspera? Eu ignoro
Em que pude agravar quem tanto adoro."
Isto dizendo, avizinhei-me a ela,
Que estava ao pé da rústica janela,
E da terna pergunta não fez caso,
Nem o rosto voltou, e olhando acaso
A próxima cabana de Nigela,
Vi encostado Inálio à porta dela
Olhar para Urselina, adeus dizer-lhe,
E sem pejo a cruel corresponder-lhe
Cum doce riso, um gesto namorado,
De amantes expressões acompanhado.
Fervendo no peito o amor, e a ira,
Logo, logo em pedaços fiz a lira,
E em mil imprecaçôes, em mil queixumes
O furor exalei dos meus ciúmes,
Ameaçando a infiel, que eu me vingava
No odioso rival, que me afrontava,
Se uma satisfação, que Inálio visse,
Logo o meu pundonor não ressarcisse.
Prometeu-me que sim, mas de repente
A meus olhos se esconde, e vai contente
O lerdo, o baixo amante encher de glória,
Que não cabia em si pela vitória,
Que a pior das traições lhe tinha dado.
Fiquei louco, fiquei desesperado,
Contemplando este assombro nunca visto
Nem na imaginação. Não pára nisto
Daquela ingrata a pérfida baixeza:
De novas fúrias cruelmente acesa,
Procura Aónio, inerte pegureiro,
Que é o riso da gente no terreiro
Quando sai a bailar, e a cada passo

Se esquece da harmonia, e do compasso,
Sendo falto de prendas, e de siso
Como o louco Magálio, o rude Anfriso.
Urselina lhe diz, que me incitasse,
A que a choça de Jónio abandonasse,
Persuadindo-me, enfim, que não devia
Presenciar a afronta, que sofria.
Acreditei o indigno conselheiro
E saí da cabana, onde primeiro
Tinha logrado os mimos da perjura,
Que assim desenganou minha ternura.
Ah génio desleal, falaz perverso!
Ai! Não me alucinava o meu ciúme,
Era mais do que justo o meu queixume,
Quando (triste de mim!) quando julgava
Que Inálio, inda que simples, te agradava!
Acusei-te mil vezes de fingida,
De que a ele querias ver-te unida
Em laços de Himeneu; mas tu negaste
Sempre o que hoje sem pejo declaraste.
Traidora! Eu não dizia, eu não jurava,
Que o meu sossego ao teu sacrificava!
Ah! Porque me não deste o desengano,
Que eu te pedia, coração tirano?
Se Inálio, porque tem campos, e gados,
Numerosos casais, amplos montados,
Atrai esse teu génio interesseiro’
E eu, posto que leal, que verdadeiro,
De clara geração, de sangue honrado,
Caducos, frágeis bens não devo ao fado,
E por isso não posso no teu peito
Produzir da ternura o doce efeito;
Que razão te obrigou a acarinhar-me,
E de um fingido amor capacitar-me?
Coração em perfídias atolado,
Impia, se o não tivesse inda criado
A vingadora mão de Jove eterno,
Devia para ti criar o Inferno!

FRANCINO

Consola-te, pastor; essa perjura
Não deve motivar tua amargura;
Castiga-lhe a traição, e o fingimento
Lançando-a num profundo esquecimento.
Que mais satisfação, que mais vingança
Queres da vil, da súbita mudança,
Que ver exposta a pérfida pastora
Ao ludíbrio geral? Uma traidora,
Uma fera, uma ingrata, inda que bela,
Não merece a paixão, que tens por ela.
Pondera, que não foste injuriado
De seu duro desprezo inesperado;
Que o feminil capricho extravagante
Não te deslustra o mérito brilhante.
Nenhum, nenhum pastor n’aldeia ignora,
Que essa, que te deixou, foi até’gora
Carinhosa contigo, e fez patente
Sua correspondência a toda a gente:
Demonstrações em público te dava
De amorosa paixão, mas não te amava:
Baixo costume, natural fraqueza
É que a fez parecer de amor acesa;
Aquela alma não arde, não se inflama,
A todos corresponde, a ninguém ama.
Bem se viu com Bersálio, e com Laurénio
Seu inconstante, seu volúvel génio:
Té no mais desprezível dos pastores

É capaz de empregar seus vis amores:
Nunca soube escolher, tudo lhe agrada,
E inda que astutamente infatuada
Faça crer aos amantes o contrário,
É sabido seu carácter vário.
Isto em teu coração gravado fique,
E não queiras, pastor, maior despique:
Se até’gora calei quanto te digo,
Foi por não te afligir, prezado amigo.
Pouco importa perder quem nada vale.
Contente-te, que toda a aldeia fale
Contra a sua imprudente aleivosia;
Que, se pensasse bem no que fazia,
Jamais o falso monstro, que te deixa,
Fechara a tudo os olhos como fecha.
Deveria lembrar-se a fementida
De que a sua afeição foi conhecida,
De que inda em tuas mãos tens os penhores
De seus furtivos, tácitos favores,
Para não te obrigar com tal injúria
A que dos zelos a violenta fúria
Despedaçasse um véu misterioso,
Um véu tão necessário como honroso.
Mas verás se mais hora menos hora
Não é punida a infiel pastora:
Douradas esperanças lisonjeiras
Nutrem-lhe ideias vãs, e interesseiras;
Mas Inálio é como ela ambicioso,
E só deseja um himeneu lucroso,
Que lhe farte a cobiça, os bens lhe aumente:
Ele próprio mo disse, ele não mente,
Que a sua natural simplicidade
Não pode mascarar a sã verdade.
Eia, pois, cesse o pranto, enxuga o rosto,
Adora a Providência em teu desgosto;
Não delires, pastor, não desesperes,
Que és feliz em saber quem são mulheres.

ELMANO

Sim, meu amado, meu leal Francino,
Eu dou mil graças ao poder divino
Por me livrar do engano em que vivia:
Eu lutarei coa terna simpatia,
Que me fez adorar uma inconstante,
Aos falsos crocodilos semelhante.
Embora logre Inálio os seus agrados
Fingidos, mentirosos, estudados.
O sórdido interesse é quem a inspira:
Se da fortuna o meu rival sentira
A triste, perniciosa variedade;
Se a violência de horrível tempestade
Lhe derribasse as férteis oliveiras,
Se o fogo lhe engolisse as sementeiras,
Se a cheia lhe afogasse os nédios gados,
Verias os desdéns, e em desagrados
Mudar-se logo o amor, que finge a astuta,
Que de negra cobiça a voz escuta:
Tu a verias outra vez comigo
As chamas assoprar do afecto antigo,
Mendigando razões para aplacar-me,
Para me convencer, para enganar-me.
Mas ah paixão! Teu ímpeto reprime,
E busque-se vingança igual ao crime.
Ritália bela, encanto dos pastores,
Merece meus suspiros, meus amores:
Com ela fui mil vezes desatento,
Negando-lhe o devido acatamento

Por cumprir o preceito rigoroso
De Urselina infiel, que no enganoso,
No detestável peito encerra, e nutre
Da venenosa inveja o feio abutre,
Porque a meiga Ritália é mais do que ela
Branda, risonha, delicada, e bela,
Quanto é mais agradável, mais formosa
Que as outras flores a punícea rosa.
Ritália desde agora o lindo objecto
Será do meu fiel, constante afecto:
Arrebatado em êxtases de gosto,
Louvores de seus olhos, de seu rosto
Farei voar nas asas da ternura,
E assim me vingarei duma perjura.
Ela, por timbre meu, o escute, o saiba,
E o coração no peito lhe não caiba
De inveja, de furor: eu, entretanto,
Troque em plácido riso o triste pranto,
E a fria indif’rença, com que intento
Recompensar-lhe o torpe fingimento,
Até tão alto grau nesta alma cresça
Que eu veja a desleal, e a não conheça.

CANTATA

À MORTE DE INÊS DE CASTRO

As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo, chorando, memoraram.
Camões, Lusíadas

Longe do caro esposo Inês formosa
Na margem do Mondego
As amorosas faces aljofrava
De mavioso pranto.
Os melindrosos, cândidos penhores
Do tálamo furtivo
Os filhinhos gentis, imagens dela,
No regaço da mãe serenos gozam
O sono da inocência.
Coro subtil de alígeros Favónios
Que os ares embrandece,
Ora enlevado afaga
Com as plumas azuis o par mimoso,
Ora solto, inquieto
Em leda travessura, em doce brinco,
Pela amante saudosa,
Pelos tenros meninos se reparte,
E com ténue murmúrio vai prender-se
Das áureas tranças nos anéis brilhantes.
Primavera louçã, quadra macia
Da ternura, e das flores,
Que à bela Natureza o seio esmaltas,
Que no prazer de Amor ao mundo apuras
Prazer da existência,
Tu de Inês lacrimosa
As mágoas não distrais com teus encantos.
Debalde o rouxinol, cantor de amores,
Nos versos naturais os sons varia;
O límpido Mondego em vão serpeia

Cum benigno sussurro, entre boninas
De lustroso matiz, alvo perfume;
Em vão se doura o Sol de luz mais viva,
Os céus de mais pureza em vão se adornam
Por divertir-te, oh Castro!
Objectos de alegria Amor enjoam
Se Amor é desgraçado.
A meiga voz dos Zéfiros, do rio,
Não te convida o sono:
Só de já fatigada
Na luta de amargosos pensamentos
Cerras, mísera, os olhos;
Mas não há para ti, para os amantes
Sono plácido, e mudo:
Não dorme a fantasia, Amor não dorme:
Ou gratas ilusões, ou negros sonhos
Assomando na ideia espertam, rompem
O silêncio da morte.
Ah! Que fausta visão de Inês se apossa!
Que cena, que espectáculo assombroso
A paixão lhe afigura aos olhos d’alma!
Em marmóreo salão de altas colunas,
A sólio majestoso, e rutilante
Junto ao régio amador se crê subida:
Graças de neve a púrpura lhe envolve,
Pende augusto dossel do tecto de ouro;
Rico diadema de radioso esmalte
Lhe cobre as tranças, mais formosas que ele;
Nos luzentes degraus do trono excelso
Pomposos cortesãos o orgulho acurvam;
A lisonja sagaz lhe adoça os lábios,
O monstro da política se aterra,
E se Inês perseguia, Inês adora.
Ela escuta os extremos,
Os vivas populares; vê o amante

Nos olhos estudar-lhe as leis que dita;
O prazer a transporta, amor a encanta:
Prémios, dádivas mil ao justo, ao sábio
Magnânima confere,
Rainha esquece o que sofreu vassala:
De sublimes acções orna a grandeza,
Felicita os mortais, do ceptro é digna,
Impera em corações… Mas, céus!… Que estrondo
O sonho encantador lhe desvanece!
Inês sobressaltada
Desperta e de repente aos olhos turvos
Da vistosa ilusão lhe foge o quadro.
Ministros do Furor, três vis algozes,
De buídos punhais a dextra armada,
Contra a bela infeliz bramindo avançam.
Ela grita, ela treme, ela descora,
Os frutos da ternura ao seio aperta,
Invocando a piedade, os Céus, o amante;
Mas de mármore aos ais, de bronze ao pranto,
À suave atracção da formosura,
Vós, brutos assassinos,
No peito lhe enterrais os ímpios ferros.
Cai nas sombras da morte
A vítima de Amor lavada em sangue:
As rosas, os jasmins da face amena
Para sempre desbotam;
Dos olhos se lhe some o doce lume,
E no fatal momento
Balbucia arquejando: – "Esposo! Esposo’
Os tristes inocentes
À triste mãe se abraçam,
E soltam de agonia inútil choro.
Ao suspiro exalado,
Final suspiro da formosa extinta,
Os Amores acodem.

Mostra a prole de Inês, e tua, ó Vénus,
Igual consternação, e igual beleza:
Uns dos outros os cândidos meninos
Só nas asas diferem
(Que jazem pelo campo em mil pedaços
Carcases de marfim, virotes de ouro)
Súbito voam dois do coro alado;
Este, raivoso, a demandar vingança
No tribunal de Jove,
Aquele a conduzir o infausto anúncio
Ao descuidado amante.
Nas cem tubas da Fama o grão desastre Irá pelo universo:
Hão-de chorar-te, Inês, na Hircânia os tigres,
No torrado sertão da Líbia fera
As serpes, os leões hão-de chorar-te.
Do Mondego, que atónito recua,
Do sentido Mondego as alvas filhas
Em tropel doloroso
Das urnas de cristal eis vêm surgindo;
Eis, atentas no horror do caso infando,
Terríveis maldições dos lábios vibram
Aos monstros infernais, que vão fugindo.
Já c’roam de cipreste a malfadada,
E, arrepelando as nítidas madeixas,
Lhe urdem saudosas, lúgubres endeichas.
Tu, Eco, as decoraste;
E cortadas dos ais, assim ressoam
Nos côncavos penedos, que magoam:

"Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores;
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.

Mísero esposo,
Desata o pranto,
Que o teu encanto
Já não é teu.

Sua alma pura
Nos Céus se encerra;
Triste da Terra,
Porque a perdeu.

Contra a cruenta
Raiva ferina
Face divina
Não lhe valeu.

Tem roto o seio,
Tesouro oculto,
Bárbaro insulto
Se lhe atreveu.

De dor e espanto
No carro de ouro
O númen louro
Desfaleceu.

Aves sinistras
Aqui piaram,
Lobos uivaram,
O chão tremeu.

Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores;
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.

Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores;
Morrei, Amores,
Que Inês morreu."

EPÍSTOLA

PENA DE TALIÂO
(Ao padre José Agostinho de Macedo)

Tu nihil invita dices, faciesve Minerva2. (2TU NIHIL … MINERVA Nada digas
ou faças sem o benep1ácito de Minerva.

Horácio, Arte Poét., V. 385

Invidia rumpantur ut ilia Codro3.( 3INVIDIA CODRO Para que se rompam de inveja
os flancos de Codro.)

Virg., Éclogas,

Sátiras prestam, sátiras se estimam
Quando nelas Calúnia o fel não verte,

Quando voz de censor, não voz de zoilo
O vício nota, o mérito gradua;

Quando forçado epíteto afrontoso
(Tal, que nem cabe a ti) não cabe àqueles
Que já na infância consultavam Febo.

Elmiros de Paris, Cotins, são vivos
No metro de Boileau, mordaz, mas pulcro;

Codros, Crispinos, Cluvienos soam
No latido feroz do cão de Aquino,

Desse cuja moral, mordendo, imitas,
E cuja fantasia em vão rastejas,

Nos ígneos versos, que Venusa ilustram,
Nos que de fama eterna honraram Mântua,

Envoltos no ludíbrio existem Bávios,
Mévios existem, e a existência deles,

Se pudesses durar, seria a tua.

Refalsado animal, das trevas sócio,
Depõe, não vistas de cordeiro a pele!

Da razão, da moral o tom, que arrogas,
Jamais purificou teus lábios torpes,

Torpes do lodaçal, donde zunindo
(Nuvens de insectos vis) te sobem trovas
À mente erma de ideias, nua de arte.

Como hás-de, ó Zoilo, eternizar meu nome,
Se os Fados permanência ao teu vedaram?

Se a ponte, que atravessa o mudo rio,
Que os vates, que os heróis transpõem seguros,

Tem fatal boqueirão, por onde absorto
Irás ao vilipêndio, irás ao nada,
Ficando em cima ileso, honrado o nome,
Que em ditérios plebeus, em chulas frases
Debalde intentas submergir contigo?
Empraza-te a Razão; responde… e treme!

Do filósofo a tez, a tez do amante,
Meditativo aspecto, imagem d’alma,
Em que fundas paixões a essência minam
(Paixões da natureza, e não das tuas)

O que aparece em mim, à vista abjecto,
A mesta palidez, o olhar sombrio,
O que preterição desengenhosa
Dos sujos trívios na linguagem aponta,
Que importa, ó Zoilo, ao literário mundo?

Que importa descarnado, e macilento
Não ter meu rosto o que alicia os olhos,
Enquanto nédio, e rechonchudo, à custa
De vão festeiro, estúpida irmandade,
Repimpado nos púlpitos, que aviltas,
Afofas teus sermões, venais fazendas
(Cujos credores nos elísios fervem),
Trovejas, enrouqueces, não comoves,
Gelas a contrição no centro d’alma;
Ostentas férreo númen, céus de bronze,
E, a cada berro minorando a turba,
Compras n’aldeia do barbeiro o voto,
Ali triunfas, e a cidade enjoas?

Tu, de cérebro pingue, e pingue face
Farisaica ironia em vão rebuças
Com que a penúria ao desvalido exprobras:
Que tem coa Natureza o que é da Sorte?
Ou dá-me o plano de atrair-lhe as graças
(Mas sem que roje escravo) ou não profanes
Indigência e moral, quais tu não citas.

Pões-me de inútil, de vadio a tacha,
Tu, que vadio, errante, obeso, inútil,
As praças de Ulisseia à toa oprimes,
Ou do bom Daniel na térrea estância
Peçonhas de invectiva espremes d’alma,
Que entre negros chapéus também negreja,
E ante o caixeiro boquiaberto arrotas,
Arrotas ante o vulgo a enciclopédia;
Fadas, agouras o esplendor, que invejas,
Arranhas mortos, atassalhas vivos,
Insultas a grandeza, a imunidade
Do eterno Mantuano, e dás a Estácio
Um grau, que entregue ao deus, que ardendo em estro
De Tebas o cantor tentar não ousa,
Quando a Musa da morte enfreia os voos,
E quer que a Eneida cá de longe adore.

Da preferência atroz inda não pago
Das Graças ao cultor, de Amor ao vate,
De Nasónia elegia aos sons piedosos,
Que o Ponto ouviu com dor, com mágoa o Tibre,
Versos prepões, sarmático-latinos,
Versos, que inda ao burel, e ao claustro cheiram,
E que, afrontoso a ti, de aplausos c’roas,
Só por distarem de teus versos pouco.

Sanguessuga de pútridos autores,
Que vais com cobre vil remir das tendas,
Enquanto palavroso impões aos néscios,
E a crédulo tropel roncando afirmas
Que revolveste o que roçaste apenas;
(Falo das artes, das ciências falo):
Enquanto a estátua da Ignorância elevas,
Os dias eu consumo, eu velo as noites
Nos desornados, indigentes lares;

Submisso aos fados meus ali componho
À pesada existência honesto arrimo,
Coa mão, que Febo estende aos seus, a poucos.
Ali deveres, que não tens nem prezas;

Com fraternal piedade acato, exerço,
Cultivo afectos à tua alma estranhos,
Dando à virtude quanto dás ao vício;
Não me envilece ali de um frade o soldo:

Ali me esforça ao génio as ígneas asas
Coração benfazejo, e tanto, e tanto
Que a ti, seu depressor, protege, acolhe;
Que em redondo carácter te propaga
A rapsódia servil, poema intruso,

Pilhagem, que fizeste em mil volumes,
Atulhado armazém de alheios fardos,
Onde a Monotonia os mexe, os volve,
E onde a teimosa apóstrofe se esfalfa,
Já cos céus entendendo, e já coa terra.

Inda não me elevei do Pindo ao cume
Com fama, que assoberbe os sumos vates;
Porém, graças ao dom, que não desdouras
Coa birra estulta de emperradas trovas,
Vou sobranceiro a ti, de longe te olho,
E na pública voz, que se não merca,
Elmano a cisne aspira, Elmiro é ganso,
É ganso que patinha, e se enlameia
Em podres lodaçais, pauis do Letes.
A círculos pueris, a vãos Narcisos,
A Lucrécias na sala, e Lais na alcova,
E inda às sérias do tempo os "bravos" poupo;
Insulso ritmador de facho e setas,
Nugas não douro, não mendigo aplausos
De vácuas frontes, plagiárias línguas;
Não sou, nem de improviso, o que és de espaço!

Claro auditório meu, vingai-me a glória!
Vós, que em versos altíssonos mil vezes
Me vistes ir voando às fontes do Estro,
Dizei, se me surgiram Grécia, Roma
Nas prontas explosões do entusiasmo.
Se a razão, se a moral, se as leis, se a pátria
Do metro destemido objectos foram,
Ou das Marílias de hoje o riso ensosso,
Dos olhos o comércio, e não das almas,
O melindre sagaz, lição materna,
E a mercantil firmeza, a cem votada?
Dizei… Mas contra ti sobeja Elmano;
Teus uivos, teus latidos não me aterram;
Sou do novo trifauce Alcides novo;
Inda não farto de arrancá-lo às sombras
As três gargantas levarei de um golpe;
E se a canina espuma, ou sangue infecto
Monstros gerar, que multiplique a morte,
Das Fúrias o tição lhes torre as frontes.

Braveja, detractor, braveja, insano!…
Arde, blasfema em vão, de algoz te sirva
Tenaz verdade, que te rói por dentro.
Na voz deprimes o que admiras n’alma;

Se provas queres, eu te exibo as provas
Do que teu coração desdiz dos lábios.
Traz à mente o lugar, e a vez primeira
Em que, dado à tristeza, e curvo aos ferros,
Olhaste, ouviste Elmano, e grande o creste,
Quando inda os voos tímido soltava
Na imensidade azul, que aos astros guia;
Quando (não como por sistema o finges,
Mas só da Natureza endereçado)
Seguia o rasto de amorosos cisnes,
Pousando muito aquém do grau que ocupa:
Ainda carecente da ígnea força
Que à pátria deu Leandro, Inês, Medeia,
O Antro dos zelos, de Areneu e Argira
A história, que o sabor colheu de Ovídio,
Na dicção narrativa experta, idónea,
E o mais, às Musas grato, e grato a Lísia.

Da estância, onde nem sempre habita o crime,
Epístola sem sal por ti guisada,
Em tais louvores incluiu meu nome:
Versos escuta, que negar não podes;
Estilo é teu, monotonia é tua;
O que neles se envolve, escuta, em prémio
Da empresa, que tomei, de os pôr na mente:
"Do centro desta gruta triste, e muda,
Fecundo Elmano, pelas Musas dado,
O prisioneiro Elmiro te saúda,
De teus áureos talentos encantado;
De ti só fala, só por ti suspira,
Em teu divino canto arrebatado…
Quem "fértil" nomeaste, e quem "divino"
Hoje é servil, monótono, infecundo,
De texto opimo intérprete engoiado?

Coa idade e estudo o géílio em todos cresce,
E em mim desfaleceu coa idade, e estudo?

Responde ao teu juiz, ao são critério,
Réu de lesa-razão! Trazer à pátria
Nova fertilidade em plantas novas,
Manter-lhe as flores, conservar lhe os frutos,
Quais eram no sabor, na tez, na forma,
Sendo o tronco, a raiz, a copa os mesmos,
Sem que os estranhe, os desconheça o dono,
É fadiga vulgar? Não tem mais preço
Do que esse, que os carretos galardoa
Do galego boçal nos férreos ombros?
Verter com melodia, ardor, pureza
O metro peregrino em luso metro,
Dos idiotismos aplanando o estorvo,
De um, doutro idioma discernindo os génios,
O carácter do texto expor na glosa,
Próprio tornando, e natural o alheio,
É ser bugio, ou papagaio, Elmiro?
Confronta originais, e as cópias deles;
Verás se a Musa, que de rastos pintas,
No voo altivo o Sulmonense atinge,
Castel transcende, e com Delille ombreia.

Citas um verso mau, mil bons não citas?
Citas um verso mau, que não transforma
Em matos os jardins? É natureza
Estarem par a par espinhos, flores.
E não sabes, malévolo, que a regra
Une a ténues objectos simples frases?
Se imparcial, se crítico escrevesses,
Centenas de áureos versos apontaras,

Sem de um só deduzir sentença iníqua.
De Ausónia o quadro, ou venerando, ou belo,
Com justa, sábia mão presentarias;
Idades cento blasonando ao longe
Coa ruína imortal da excelsa Roma;
Ante as aras carpindo Amor, Saudade,
E ao Céu medrosas lágrimas furtando;
Aos amigos dos homens, e aos dos numes
Na terra verdejando elísios novos;
correntes sem rumor, como as do Letes,
os males na memória adormecendo,
em mármores coríntios alvejantes
o grande Fénelon, e o grande Henrique.
Se o rival de Virgílio (o que proclamas,
Porque de Gália é filho, e não de Lísia,
A cujo seio, em que borbulham génios,
Chamas com língua audaz estéril deles)
Se o rival de Virgflio ouvisse os versos
De intérprete fiel, não rude escravo,
Honrara cum sorriso úteis suores.

Pede ao mole Belmiro, anão de Febo,
Ao que ergues uma vez, e mil derrubas;
Pede ao vampiro, que a ti mesmo há pouco
Nas tendas, nos cafés deveu sarcasmos;
Pede ao bom Melizeu, d’Arcádia Fauno,
De avelada existência, e mente exausta,
Que afectas lamentar, e astuto abates,
Que por alféloa troca os sons de Euterpe
(Os sons da sua Euterpe, e não da minha),
Diz ao teu coro, de garganta indócil
(Sem que esqueça o Pigmeu no corpo, e n’alma).
Dize dos corvos de Ulisseia ao bando
Que, intérpretes qual fui, de exímios vates,
Não pagos de ir no rasto o voo alteiem:
Ou tu mesmo apresenta, of’rece à crise
De gordo original versão mirrada,
Sulcado o Estácio teu de unhadas minhas,
De muitas, que sofreste, e que aproveitas;
Nele (oh mágoa! Oh labéu!) por ti mudados
A pompa na indigência, o luto em riso;
Mostra em teus versos as imagens suas
Tíbias, informes, encolhidas, mortas:
Desdentado leão, leão sem garras,
Que à longa idade sucumbiu, rugindo;
Mas leão, que de perto inda é terrível,
E que no quadro teu vale um cordeiro.
Ousa mais: – a Lusíada não sumas,
Que o número de versos fez poema,
Tal que seu mesmo pai sem dor o enterra.
Expõe no tribunal da Eternidade
Monumentos de audácia, e não de engenho;
O prólogo alteroso, em que abocanhas
Do luso Homero as veneráveis cinzas,
E não de inepto, de apoucado arguas
Quem, porque teme a queda, encolhe as asas;
Quem, de efémeros "vivas" não contente,
Chegando a mais que tu, se atreve a menos.

Nem sômente Melpómene dispensa
Grão nome, nem Calíope sômente.
Como os Voltaires na memória vivem,
La Fontaines, Chaulieus subsistem nela:
Todos têm nome, e grau: tu mesmo o dizes,
Contraditório, túmido versista.
Tema, que escolhes, género, que abraças,
Não te honra, nem desluz: no desempenho
O lustre, a glória estão. Tem jus à fama

O vate, ou cante heróis, ou cante amores,
Contanto que de Febo as leis não torça,
Aos mui vários assuntos ajustadas.
Coa matéria convém casar o estilo:
Levante-se a expressão, se é grande a ideia,
Se a ideia é negra, a locução negreje,
E ténue sendo, se atenue a frase.

Segue o que tens de cor, mas não praticas,
Serás o que não és, o que não foste,
Quando das "Musas no Almanaque" (ai triste!)
Que a par de seus irmãos morreu de traça,
Forjaste de uma freira equórea ninfa,
Jacinta de um Tritão fingiste acesa:
Chamaste grande, harmónico a Lereno,
Ao fusco trovador, que em papagaio
Converteste depois, havendo impado
Com tabernal chanfana, alarve almoço,
A expensas do coitado orangotango,
Que uma serpe engordou, cevando Elmiro,
Os teus vícios em rosto aos mais não lances,
Tu, Fúria, tu, dragão, que entornas peste,
Por sistema, por hábito, e por génio.
Os sete, que detrais, em que te agravam?
Querias par a par subir com eles,
Nas asas do louvor a ignotos climas?

Que disseras, mordaz, quando a mimosa,
Quando a celeste Catalani exala
Milagres de ternura, e de harmonia,
Sim, que disseras, se, ultrajando a cena,
De rouquenha bandurra um biltre armado
Ante a assembleia extática impingisse
Solfa, mazomba, hispânico bolero?
Pois isto, ó Zoilo, tão impróprio fora
Como anexar teu nome aos sete, e a outros,
Que do silêncio meu não colhem manchas,
Nem carecem de mim, por si famosos,
E há muito em lira eterna ao pólo erguidos.

Verdade! rectidão! Vós sois meus numes!
Vê se as adoro, ó Zoilo: eu amo Alcino,
Filinto, Córidon, Elpino eu louvo;

Todo me apraz Dorindo, Alfeno em parte;
Nas trevas para mim reluz Tomino;

Nos génios transcendentes me arrebato,
Prezo alunos febeus, desprezo Elmiros.
De alta justiça quê mais prova exiges?

Tu, que de iníquo e parcial me increpas,
Tu, que em vez de razões opróbrios vibras
Perante um mundo, que te sabe a história!

Tu, que afeito à moral dos Tupinambas,
Tens ampla consciência, onde Amizade,
Onde Amor, e outros vínculos sagrados
São nomes vãos, fantásticos direitos;

Tu… mas língua de bronze, e voz de ferro
Mal de teus vícios a expressão dariam.
Indómito molosso, ardido ex-frade,
É contigo a razão qual é coas ondas
Arte, e saber de náufrago piloto:
Serás qual és, e morrerás qual vives.

Prossegue em detrair-me, em praguejar-me,
Porque Délio dos "prólogos" te exclui;
Pregoa, espalha em sátiras, em lojes
Que Zoilos não mereço, e sê meu Zoilo;
Chama-me de Tisífone enteado,
Porque em fêmeo-belmírico falsete
Não pinto os zelos, não descrevo a morte:

Erra versos, e versos sentenceia;
Condena-me a cantar de Ulina, e de anos;
Agrega o magro Elmano ao fulo Esbarra;
Ignora o "baquear" que é verbo antigo,
Dos Sousas, dos Arrais sàmente usado;
Metonímias, sinédoques dispensa;
Da-me as pueris antíteses, que odeio;
De estafador de anáforas me encoima;
Faz (entre insânias) um prodígio, faz
Qual anda o caranguejo andar meus versos;
Supõe-me entre barris, entre marujos;
(Dalguns talvez teu sangue as veias honre!)
Mas não desmaies na carreira; avante,
Eia, ardor, coração… vaidade, ao menos.
As oitavas ao "Gama" esconde embora,
Nisso não perdes tu, nem perde o mundo;
Mas venha o mais! Epístolas, sonetos,
Odes, canções, metamorfoses, tudo…
Na frente põe teu nome, e estou vingado.

GLOSAS

Que eu fosse enfim desgraçado
Escreveu do Fado a mão;
Lei do Fado não se muda;
Triste do meu coração !

GLOSA

Três vezes sobre meus lares
Vozeou, quando eu nascia,
Ave, que aborrece o dia,
Que prevê cruéis azares:
Amor dividira os ares
De seus tormentos cercado;
À funda estância do Fado
O voo havia abatido,
E ambos tinham resolvido
Que eu fosse enfim desgraçado.

– Esse, que os primeiros ais
Vai soltar triste, e choroso,
Seja à Fortuna odioso,
Seja pesado aos mortais:
Dos mimos de Amor jamais
Desfrute a consolação;
Ame, porém ame em vão,
Ferva-lhe n’alma o ciúme
-Isto no horrendo volume
Escreveu do Fado a mão

Cresci, cresceram comigo
Meus danos, e num transporte
Curva maga a ler-me a sorte
Com roucas preces obrigo:
Eis que toma um livro antigo,
Abre, vê, folheia, estuda,
Té que me diz carrancuda:
"Nos caracteres que olhei
Fim ao teu mal não achei;
Lei do Fado não se muda"

Absorto, convulso, e frio,
Deixo de erriçada grenha
A Fúria em côncava penha,
Seu lar medonho, e sombrio:
Debalde luto, e porfio
Contra a Sorte desde então;
Céus! Não achar compaixão!
Céus! Amar sem ser amado!
Bárbara lei do meu fado!
Triste do meu coração !

A minha Lília morreu.

GLOSA

Assim como as flores vivem
A minha Lília viveu;
Assim como as flores morrem
A minha Lilia morreu.

Assomando o negro dia,
Ave sinistra gemeu;
Cumpriu-se o funesto agouro:
A minha Lilia morreu

Desfalece, ó Natureza,
Acelera o fado teu;
Esta voz te guie ao nada:
A minha Lilia morreu.

Fadou-me o caso medonho
Vate, que nos astros leu;
Os vates são como os numes:
A minha Lilia morreu.

Que é do Sol? Que é do Universo?
Tudo desapareceu;
Foi-se toda a Natureza:
A minha Lilia morreu.

A minha ventura, e Lília
Num só laço Amor prendeu:
Morreu a minha ventura,
A minha Lilia morreu.

Em parte da minha essência
Minha essência pereceu;
Não vivo senão metade:
A minha Lilia morreu.

Oh quanto ganhava o mundo!
Oh quanto o mundo perdeu!
Doce lucro, e triste perda!
A minha Lilia morreu.

Para exultar o Universo
A minha Lília nasceu;
Para os numes exultarem
A minha Lilia morreu.

Meu coração desgraçado,
Desgraçado porque és meu,
Evapora-te em suspiros:
A minha Lilia morreu.

As estrelas se apagaram,
A Natureza tremeu,
Os promontórios gemeram,
A minha Lilia morreu.

Disse, ao ver sereno eflúvio,
Que o puro Olimpo correu:
Aquela é a alma de Lília,
A minha Lilia morreu.

APÔLOGO

OS DOIS GATOS

D ois bichanos se encontraram
Sobre uma trapeira um dia:
(Creio que não foi no tempo
Da amorosa gritaria).

De um deles todo o conchego
Era dormir no borralho;
O outro em leito de senhora
Tinha mimoso agasalho.

Ao primeiro o dono humilde
Espinhas apenas dava;
Com esquisitos manjares
O segundo se engordava.

Miou, e lambeu-o aquele
Por o ver da sua casta;
Eis que o brutinho orgulhoso
De si com desdém o afasta.

Aguda unha vibrando
Lhe diz: "Gato vil e pobre,
Tens semelhante ousadia
Comigo, opulento, e nobre?

Cuidas que sou como tu?
Asneirão, quanto te enganas!
Entendes que me sustento
De espinhas, ou barbatanas?

Logro tudo o que desejo,
Dão-me de comer na mão;
Tu lazeras, e dormimos
Eu na cama, e tu no chão.

Poderás dizer-me a isto
Que nunca te conheci;
Mas para ver que não minto
Basta-me olhar para ti."

"Ui! (responde-lhe o gatorro,
Mostrando um ar de estranheza)
És mais que eu? Que distinção
Pôs em nós a Natureza?

Tens mais valor? Eis aqui
A ocasião de o provar."
"Nada (acode o cavalheiro)
Eu não costumo brigar."

"Então (torna-lhe enfadado
O nosso vilão ruim)
Se tu não és mais valente,
Em que és sup’rior a mim?

Tu não mias?" – "Mio. – E sentes
Gosto em pilhar algum rato?"
"Sim." – "E o comes?" – "Oh! Se o como ! "
"Logo não passas de um gato.

Abate, pois, esse orgulho,
Intratável criatura:
Não tens mais nobreza que eu;
O que tens é mais ventura. "

EPIGRAMAS

Para curar febres podres
Um doutor se foi chamar,
Que, feitas as cerimónias,
Começou a receitar.

A cada penada sua
O enfermo arrancava um ai.
"Não se assuste (diz o Galeno)
Que inda desta se não vai.

"Ah senhor! (torna o coitado,
Como quem seu fado espreita)
Da moléstia não me assusto,
Assusto-me da receita."

Um escrivão fez um roubo;
Diz-lhe o juiz: "Que razão
Teve para fazer isto?"
Responde: – "Ser escrivão."

Rechonchudo franciscano
Desenrolava um sermão;
E defronte por acaso
Lhe ficara um beberrão.

Tratava dos bens celestes,
Proferindo: "Ouvintes meus,
Que ditas, que imensa glória
Para os justos guarda um Deus!

Falsos, momentâneos gostos
Há neste mundo mesquinho:
Mas no Céu há bens sem conto…
Pergunta o bêbado: – "E vinho?"

Uma terra dizem que há,
Onde a fome acerba e dura,
Cabo dos médicos dá:
Porque é isto? É porque lá
Pagam sômente a quem cura.

Homem de génio impaciente,
Tendo uma dor infernal,
Pedia para matar-se
Um veneno, ou um punhal.

"Não há (lhe disse um vizinho
Velho, que pensava bem)
Não há punhal, nem veneno;
Mas o médico ai vem.

EPITÁFIO

De Elmano eis sobre o mármore sagrado
A lira, em que chorava, ou ria Amores;
Ser deles, ser das Musas foi seu fado:
Honrem-lhe a lira vates, e amadores.

FIM

Um Procurador de Causas

Um procurador de causas
Tinha na destra de harpia
Nojenta, incurável chaga,
Que até ossos lhe roía.

Exclama um taful ao vê-lo:
"Que pena de Talião!
Quem com a mão roeu tanto
Ficou roído na mão".

Visão Realizada

Sonhei que a mim correndo o gnídeo nume
Vinha coa Morte, co Ciúme ao lado,
E me bradava: <<Escolhe, desgraçado,
Queres a Morte, ou queres o Ciúme?

>>Não é pior daquela fouce o gume
Que a ponta dos farpões que tens provado;
Mas o monstro voraz, por mim criado,
Quanto horror há no Inferno em si resume.>>

Disse; e eu dando um suspiro: <<Ah, não m’espantes
Coa a vista dessa fúria!… Amor, clemência!
Antes mil mortes, mil infernos antes!>>

Nisto acordei com dor, com impaciência;
E não vos encontrando, olhos brilhantes,
Vi que era a minha morte a vossa ausência!

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