Críticas Teatrais

Machado de Assis

IDÉIAS SOBRE O TEATRO

I

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A arte dramática não é ainda entre nós um culto; as vocações definem-se e educam-se como um resultado acidental. As perspectivas do belo não são ainda o imã da cena; o fundo de uma posição importante ou de um emprego suave, é que para lá impele as tendências balbuciantes. As exceções neste caso são tão raras, tão isoladas que não constituem um protesto a verdade absoluta da asserção.

Não sendo, pois a arte um culto, a idéia desapareceu do teatro e ele reduziu-se ao simples foro de uma secretaria de estado. Desceu para lá o oficial com todos os seus atavios: a pêndula marcou a hora do trabalho, e o talento prendeu-se no monótono emprego de copiar as formas comuns, cedidas e fatigantes de um aviso sobre a regularidade da limpeza pública.

Ora, a espontaneidade pára onde o oficial começa; os talentos, em vez de se expandirem no largo das concepções infinitas, limitaram-se à estrada indicada pelo resultado real e representativo das suas fadigas de trinta dias. Prometeu atou-se ao Cáucaso.

Daqui uma porção de páginas perdidas. As vocações viciosas e simpáticas sufocaram debaixo da atmosfera de gelo, que parece pesar, como um sudário de morto, sobre a tenda da arte. Daqui o pouco ouro que havia, lá vai quase despercebido no meio da terra que preenche a âmbula sagrada.

Serão desconhecidas as causas dessa prostituição imoral? Não é difícil assinalar a primeira, e talvez a única que maiores efeitos tem produzido. Entre nós não há iniciativa.

Não há iniciativa, isto é, não há mão poderosa que abra uma direção aos espíritos; há terreno, não há semente; há rebanho, não há pastor; há platéia, mas não há outro sistema.

A arte para nós foi sempre órfã; adornou-se nos esforços, impossíveis quase, de alguns caracteres de ferro, mas, caminho certo, estrela alvo, nunca os teve.

Assim, basta a boa vontade de um exame ligeiro sobre a nossa situação artística para reconhecer que estamos na infância da moral; e que ainda tateamos para darmos com a porta da adolescência que parece escondida nas trevas do futuro.

A iniciativa em arte dramática não se limita ao estreito círculo do tablado – vai além da rampa, vai ao povo. As platéias estão aqui perfeitamente educadas? A resposta é negativa.

Uma platéia avançada, com um tablado balbuciante e errado, é um anacronismo, uma impossibilidade. Há uma interna relação entre uma e outro. Sófocles hoje faria rir ou enjoaria as massas; e as platéias gregas pateariam de boa vontade uma cena de Dumas ou Barrière.

A iniciativa, pois, deve ter uma mira única: a educação. Demonstrar aos iniciados as verdades e as concepções da arte; e conduzir os espíritos flutuantes e contraídos da platéia à esfera dessas concepções e dessas verdades. Desta harmonia recíproca de direções que a platéia e o talento se acham arredados no caminho da civilização.

Aqui há um completo deslocamento: a arte divorciou-se do público. Há entre a rampa e a platéia um vácuo imenso de que nem uma nem outra se apercebe.

A platéia ainda dominada pela impressão de uma atmosfera, dissipada hoje no verdadeiro mundo da arte, – não pode sentir claramente as condições vitais de uma nova esfera que parece encerrar o espírito moderno. Ora, à arte tocava a exploração dos novos mares que se lhe apresentam no horizonte, assim como o abrir gradual, mas, urgente, dos olhos do público. Uma iniciativa firme e fecunda é o elixir necessário à situação; um dedo que, grupando platéia e tablado, folheie a ambos a grande bíblia da arte moderna com todas as relações sociais, é do que precisamos na atualidade.

Hoje não há mais pretensões, creio eu, de metodizar uma luta de escola, e estabelecer a concorrência de dois princípios. É claro ou é simples que a arte não pode aberrar das condições atuais da sociedade para perder-se no mundo labiríntico das abstrações. O teatro é para o povo o que o Coro era para o antigo teatro grego; uma iniciativa de moral e civilização. Ora, não se pode moralizar fatos de pura abstração em proveito das sociedades; a arte não deve desvairar-se no doido infinito das concepções ideais, mas identificar-se com o fundo das massas; copiar, acompanhar o povo em seus diversos movimentos, nos vários modos da sua atividade.

Copiar a civilização existente e adicionar-lhe uma partícula, é uma das forças mais produtivas com que conta a sociedade em sua marcha de progresso ascendente.

Assim os desvios de uma sociedade de transição lá vão passando e à arte moderna toca corrigi-la de todo. Querer levantar luta entre um princípio falso, decaído, e uma idéia verdadeira que se levanta, é encerrar nas grades de uma gaiola as verdades puras que se evidenciam no cérebro de Salomão de Caus.

Estas apreensões são tomadas de alto e constituem as bordas da cratera que é preciso entrar.

Desçamos até as aplicações locais.

A arena da arte dramática entre nós é tão limitada, que é difícil fazer aplicações sem parecer assinalar fatos, ou ferir individualidades. De resto, é de sobre individualidades e fatos que irradiam os vícios e as virtudes, e sobre eles assenta sempre a análise. Todas as suscetibilidades, pois, são inconseqüentes, – a menos que o erro ou a maledicência modelem estas ligeiras apreciações.

A reforma da arte dramática estendeu-se até nós e pareceu dominar definitivamente uma fração da sociedade.

Mas isso é o resultado de um esforço isolado operando por um grupo de homens. Não tem ação larga sobre a sociedade. Esse esforço tem-se mantido e produzido os mais belos efeitos; inoculou em algumas artérias o sangue das novas idéias, mas não o pode ainda fazer relativamente a todo o corpo social.

Não há aqui iniciativa direta e relacionada com todos os outros grupos e filhos da arte.

A sua ação sobre o povo limita-se a um círculo tão pequeno que dificilmente faria resvalar os novos dogmas em todas as direções sociais.

Fora dessa manifestação singular e isolada, – há algumas vocações que de bom grado acompanharia o movimento artístico de sorte a tomarem uma direção mais de acordo com as opiniões do século. Mas são ainda vocações isoladas, manifestações imponentes. Tudo é abafado e se perde na grande massa.

Assinaladas e postas de parte certas crenças ainda cheias de fé, esse amor ainda santificado, o que resta? Os mercadores entraram no templo e lá foram pendurar as suas alfaias de fancaria. São os jesuítas da arte; os jesuítas expuseram o Cristo por tabuleta e curvaram-se sobre o balcão para absorver as fortunas. Os novos invasores fizeram o mesmo, a arte é a inscrição com que parecem absorver fortunas e seiva.

A arte dramática tornou-se definitivamente uma carreira pública.

Dirigiram mal as tendências e o povo. Diante das vocações colocaram os horizontes de um futuro inglório, e fizeram crer às turbas que o teatro foi feito para passatempo. Aquelas e este tomaram caminho errado; e divorciaram-se na estrada da civilização.

Deste mundo sem iniciativa nasceram o anacronismo, as anomalias, as contradições grotescas, as mascaradas, o marasmo. A musa do tablado doidejou com os vestidos de arlequim, – no meio das agrupadas de uma multidão ébria.

É um fiat de reforma que precisa este caos.

Há mister de mão hábil que ponha em ação, com proveito para a arte e para o país, as subvenções improdutivas, empregadas na aquisição de individualidades parasitas.

Esta necessidade palpitante não entra na vista dos nossos governos. Limitam-se ao apoio material das subvenções e deixam entregue ao teatro a mãos ou profanas ou maléficas.

O desleixo, as lutas internas, são os resultados lamentáveis desses desvios da arte. Levantar um paradeiro a essa corrente despenhada de desvarios, é a obra dos governos e das iniciativas verdadeiramente dedicadas.

O ESPELHO, 25 de setembro de 1859.

II

Se o teatro como tablado degenerou entre nós, o teatro como literatura é uma fantasia do espírito.

Não se argumente com meia dúzia de tentativas, que constituem apenas uma exceção; o poeta dramático não é ainda aqui um sacerdote, mas um crente de momento que tirou simplesmente o chapéu ao passar pela porta do templo. Orou e foi caminho.

O teatro tornou-se uma escola de aclimatação intelectual para que se transplantaram as concepções de estranhas atmosferas, de céus remotos. A missão nacional, renegou-a ele em seu caminhar na civilização; não tem cunho, reflete as sociedades estranhas, vai ao impulso de revoluções alheias à sociedade que representa, presbita da arte que não enxerga o que se move debaixo das mãos.

Será aridez de inteligência? não o creio. É fecunda de talentos a sociedade atual. Será falta de ânimo? talvez; mas será essencialmente falta de emulação. Essas é a causa legítima da ausência do poeta dramático; essa não outra.

Falta de emulação? Donde vem ela? Das platéias? Das platéias. Mas é preciso entender: das platéias, porque elas não têm, como disse, uma sedução real e conseqüente.

Já assinalei a ausência de iniciativa e a desordem que esteriliza e mata tanto elemento aproveitável que a arte em caos encerra. A essa falta de um raio condutor se prende ainda a deficiência de poetas dramáticos.

Uma educação viciosa constitui o paladar das platéias. Fizeram desfilar em face das multidões uma procissão de manjares esquisitos de um sabor estranho, no festim da arte, os naturalizaram sem cuidar dos elementos que fermentavam em torno de nossa sociedade, e que só esperavam uma mão para tomarem uma forma e uma direção.

As turbas não são o mármore que cede somente ao trescalar laborioso do escopro, são a argamassa que se amolda à pressão dos dedos. Era fácil dar-lhes uma fisionomia; deram-lha. Os olhos foram rasgados para verem segundo as conveniências singulares de uma autocracia absoluta.

Conseguiram fazê-lo.

Habituaram a platéia nos boulevards; elas esqueceram as distâncias e gravitam em um círculo vicioso. Esqueceram-se de si mesmas; e os czares da arte lisonjeiam-lhes a ilusão com esse manjar exclusivo que deitam à mesa pública.

Podiam dar a mão aos talentos que se grupam nos derradeiros degraus à espra de um chamado.

Nada! As tentativas nascem pelo esforço sobre humano de alguma inteligência onipotente, – mas passam depois de assinalar um sacrifício mais nada! E, de feito, não é mau este proceder. É uma mina o estrangeiro, há sempre que tomar à mão; e as inteligências não são máquinas dispostas às vontades e a conveniências especulativas.

Daqui o nascimento de uma entidade: o tradutor dramático, espécie de criado de servir que passa, de uma sala a outra, os pratos de uma cozinha estranha.

Ainda mais essa! Dessa deficiência de poetas dramáticos, que de coisas resultam! que deslocamentos! Vejamos.

Pelo lado da arte o teatro deixa de ser uma reprodução da vida social na esfera de sua localidade. A crítica resolverá debalde o escalpelo nesse ventre sem entranhas próprias, pode ir procurar o estudo do povo em outra face; no teatro não encontrará o cunho nacional; mas uma galeria bastarda, um grupo furta-cor, uma associação de nacionalidades.

A civilização perde assim a unidade. A arte, destinada a caminhar na vanguarda do povo como uma preceptora, – vai copiar as sociedades ultra-fronteiras.

Tarefa estéril! Não pára aqui. Consideremos o teatro como um canal de iniciação. O jornal e a tribuna são os outros dois meios de proclamação e educação pública. Quando se procura iniciar uma verdade busca-se um desses respiradouros e lança-se o ponto às multidões ignorantes. No país em que o jornal, a tribuna e o teatro tiverem um desenvolvimento conveniente – as caligens cairão aos olhos das massas; morrerá o privilégio, obra da noite e da sombra; e as castas superiores da sociedade ou rasgarão os seus pergaminhos ou cairão abraçadas com eles, como em sudários.

E assim, sempre assim; a palavra escrita na imprensa, a palavra falada na tribuna, ou a palavra dramatizada no teatro, produziu sempre uma transformação. É o grande fiat de todos os tempos.

Há porém uma diferença: na imprensa e na tribuna a verdade que se quer proclamar é discutida, analisada, e torcida nos cálculos da lógica; no teatro há um processo mais simples e mais ampliado; a verdade aparece nua, sem demonstração, sem análise.

Diante da imprensa e da tribuna as idéias abalroam-se, ferem-se, e lutam para acordar-se; em face do teatro o homem vê, sente, palpa; está diante de uma sociedade viva, que se move, que se levanta, que fala, e de cujo composto se deduz a verdade, que as massas colhem por meio de iniciação. De um lado a narração falada ou cifrada, de outro a narração estampada, a sociedade reproduzida no espelho fotográfico da forma dramática.

É quase capital a diferença.

Não só o teatro é um meio de propaganda, como também o meio mais eficaz, mais firme, mais insinuante.

É justamente o que não temos.

As massas que necessitam de verdades, não as encontrarão no teatro destinado à reprodução material e improdutiva de concepções deslocadas da nossa civilização, – e que trazem em si o cunho de sociedades afastadas.

É uma grande perda; o sangue da civilização, que se inocula também nas veias do povo pelo teatro, não desce a animar o corpo social: ele se levantará dificilmente embora a geração presente enxergue o contrário com seus olhos de esperança.

Insisto pois na asserção: o teatro não existe entre nós: as exceções são esforços isolados que não atuam, como disse já, sobre a sociedade em geral. Não há um teatro nem poeta dramático…

Dura verdade, com efeito! Como! pois imitamos as frivolidades estrangeiras, e não aceitamos os seus dogmas de arte? É um problema talvez; as sociedades infantes parecem balbuciar as verdades que deviam proclamar para o próprio engrandecimento. Nós temos medo da luz, por isso que a empanamos de fumo e vapor.

Sem literatura dramática, e, com um tablado, regular aqui, é verdade, mas deslocado e defeituoso ali e além, – não podemos aspirar a um grande passo na civilização. A arte cumpre assinalar como um relevo na história as aspirações éticas do povo – e aperfeiçoá-las e conduzi-las para um resultado de grandioso futuro.

O que é necessário para esse fim? Iniciativa e mais iniciativa.

O ESPELHO, 2 de outubro de 1859.

O CONSERVATÓRIO DRAMÁTICO A literatura dramática tem, como todo o povo constituído, um corpo policial, que lhe serve de censura e pena: é o conservatório.

Dois são, ou devem ser, os fins desta instituição: o moral e o intelectual. Preenche o primeiro na correção das feições menos decentes das concepções dramáticas; atinge ao segundo analisando e decidindo sobre o mérito literário – dessas mesmas concepções.

Como estes alvos um conservatório dramático é mais que útil, é necessário. A crítica oficial, tribunal sem apelação, garantido pelo governo, sustentado pela opinião pública, é a mais fecunda das críticas, quando pautada pela razão, e despida das estratégias surdas.

Todas as tentativas, pois, toda a idéia para nulificar uma instituição como esta, é nulificar, o teatro, e tirar-lhe a feição civilizadora que porventura lhe assiste.

Corresponderá à definição que aqui damos desse tribunal de censura, à instituição que temos aí chamada – Conservatório Dramático? Se não corresponde, onde está a causa desse divórcio entre a idéia e o corpo? Dando à primeira pergunta uma negativa, vejamos onde existe essa causa. É evidente que na base, na constituição interna, na lei de organização. As atribuições do Conservatório limitam-se a apontar os pontos descarnados do corpo que a decência manda cobrir: nunca as ofensas feitas às leis do país, e à religião… do Estado; mais nada.

Assim procede o primeiro fim a que se propõe uma corporação dessa ordem; mas o segundo? nem uma concessão, nem um direito.

Organizado desta maneira era inútil reunir os homens da literatura nesse tribunal; um grupo de vestais bastava.

Não sei que razão se pode alegar em defesa da organização atual do nosso Conservatório, não sei. Viciado na primitiva, não tem ainda hoje uma fórmula e um fim mais razoável com as aspirações e com o senso comum.

Preenchendo o primeiro dos dois alvos a que deve atender, o Conservatório em vez de se constituir um corpo deliberativo, torna-se uma simples máquina, instrumento comum, não sem ação, que traça os seus juízos sobre as linhas implacáveis de um estatuto que lhe serve de norma.

Julgar de uma composição pelo que toca às ofensas feitas à moral, às leis e à religião, não é discutir-lhe o mérito puramente. Literário no pensamento criador, na construção cênica, no desenho dos caracteres, na disposição das figuras, no jogo da língua.

Na segunda hipótese há mister de conhecimentos mais amplos, e conhecimentos tais que possam legitimar uma magistratura intelectual. Na primeira, como disse, basta apenas meia dúzia de vestais e duas ou três daquelas fidalgas devotas do rei de Mafra. Estava preenchido o fim.

Julgar do valor literário de uma composição, é exercer uma função civilizadora, ao mesmo tempo que praticar um direito do espírito; é tomar um caráter menos vassalo, e de mais inciativa e deliberação.

Contudo por vezes as inteligências do nosso Conservatório como que sacodem esse freio que lhe serve de lei, e entram no exercício desse direito que se lhe nega; não deliberam, é verdade, mas protestam. A estátua lá vai tomar vida nas mãos de Prometeu, mas a inferioridade do mármore fica assinalada com a autópsia do escopro.

Mas ganha a literatura, ganha a arte com essas análises da sombra? Ganha, quando muito, o arquivo. A análise das concepções, o estudo das prosódias, vão morrer, ou pelo menos dormir no pó das estantes.

Não é esta a missão de um Conservatório dramático. Antes negar a inteligência que limitá-la ao estudo enfadonho das indecências e marcar-lhe as inspirações pelos artigos de uma lei viciosa.

E – note-se bem! – é esta uma questão de grande alcance. Qual é a influência de um Conservatório organizado desta forma? E que respeito pode inspirar assim ao teatro? Trocam-se os papéis. A instituição perde o direito de juiz e desce na razão da ascendência do teatro.

Façam ampliar as atribuições desse corpo; procurem dar-lhe outro caráter mais sério, outros direitos mais iniciadores; façam dessa sacristia de igreja um Tribunal de censura.

Completem, porém, toda essa mudança de forma. Qual é o resultado do anônimo? Se o Conservatório é um júri deliberativo, deve ser inteligente; e por que não há de a inteligência minguar os seus juízos? Em matéria de arte eu não conheço suscetibilidades nem interesses.

Emancipem o espírito, hão de respeitar-lhe as decisões.

O ESPELHO, 25 de dezembro de 1859.

________________________ REVISTA DOS TEATROS SUMÁRIO: – Ginásio Dramático; reflexões filosóficas a propósito de Um asno morto, sábado passado; um drama a vôo de pássaro, aplicación del cuento; romantismo e realismo; tradução e representação. Teatro de S.

Pedro; Cobé. – Duas palavras. – Uma promessa. – Opinião do cronista sobre as cabeças loiras.

A vida, li não sei onde é uma ponte lançada entre duas margens de um rio; de um lado e do outro a eternidade.

Se essa eternidade é de vida real e contemplativa, ou do nada obscuro, não reza a crônica, nem me quero eu aprofundar nisso. Mas uma ponte lançada entre duas margens não se pode negar, é uma figura perfeita.

É doloroso o atravessar dessa ponte. Velha e a desabar, há seis mil anos têm por ela passado reis e povos numa procissão de fantasmas ébrios, na qual uns vão colhendo as flores aquáticas que reverdecem à altura da ponte, e outros afastados das bordas vão tropeçando a cada passo nessa via dolorosa. Afinal tudo isso desaparece como fumo que o vento leva em seus caprichos, e o homem, à semelhança de um charuto, desfaz a sua última cinza, quia pulvis est.

Este resultado, por pouco doce que pareça, é contudo evidente e inevitável, como um parasita; e a minha amável leitora não pode duvidar que no fim da vida está sempre a morte. Ésquilo já no seu tempo perguntava se o que chamamos morte não seria antes a vida. É provável que a esta hora tenha tido resposta.

São reflexões filosóficas de muito peso e que me fervem cá no cérebro a propósito de um asno… morto, minhas leitoras. Foi sábado passado, no querido ginásio, onde é provável que estivessem as cabeças galantes que me cumprimentam agora nestas páginas.

Asno morto é um drama em cinco atos, um prólogo e um epílogo, tirado do romance de Jules Janin, do mesmo título.

Como me ocorrem reflexões filosóficas a propósito de um asno, em vez de divagações amorosas, a propósito dos olhos que estrelavam a sala por lá, não sei. Do que posso informar à minha interessante leitora, é que o drama de Barrière, além de ser um drama completo, até nos defeitos da escola, é uma demonstração daquela ponte de que falei ao abrir esta revista.

Mais tarde aplicaremos el cuento.

Por agora encoste-se a leitora no fofo da sua poltrona com toda a indolência daquela baigneuse de V. Hugo, e procure grupar comigo as diversas circunstâncias que formam o pensamento do asno morto. É um trabalho doce para mim, e se for para a minha leitora, nada teremos a invejar de Goya. Mãos à obra.

Henriqueta Brenard é uma rapariga aldeã que vivia no regaço da paz em casa dos seus pais, um honrado vendedor de trigos, e uma matrona respeitável, a Sra. Marta. Um campônio da vizinhança está apaixonado pela menina Henriqueta, e vem pedi-la aos bons e velhos aldeãos. Estes dão o seu consentimento. A menina, porém, está apaixonada por sua vez por um Roberto que lhe soube captar o coração, e que nada tem de campônio. Entretanto acode à vontade dos pais.

Um pacto oculto prende este Roberto a um tal Picheric, cavalheiro de fortuna, espadachim consumado, alma de pedra, caráter repugnante, maneiras de tartufo, e um sangue frio digno de melhor organização. Não tendo nada a perder, mas tudo a ganhar, este homem arrisca tudo, e não se lhe dá dos meios, visando o fim; acompanha Roberto por toda a parte, como o seu Mefistófeles, e, tendo descoberto os amores do seu companheiro, trata de afastá-lo. Roberto porém não tem vontade de por um ponto final ao sei idílio, e como que lhe luz um pouco de ouro no meio da terra grosseira que lhe enche a âmbula vital.

Levado pelo amor, escreve um bilhete que faz passar por baixo da porta de Henriqueta.

É ocasião de falar do estrangeiro.

O estrangeiro é uma figura grave e circunspeta que negócios políticos trouxeram pela estrada fora, e que um temporal repentino levou à cabana do vendedor de trigos. Um olhar profundamente magnético faz deste homem um ente superior. A primeira vez que se encontrou só com Henriqueta na sala da cabana, exerceu ele a sua ação simpática sobre ela por intermédio do qual pôs-se em contato com ocorrências absolutamente estranhas ao drama. Senhor agora da intenção de Roberto, por vê-lo colocar o bilhete debaixo da porta de Henriqueta, ele impede que essa menina vá à entrevista que se lhe pede, fazendo cair sobre ela o peso de seu olhar atraente.

O prólogo acaba aqui. – “Vais ver em sonhos, diz o estrangeiro, o que te sucederia se fosses a essa fatal entrevista. Entretanto vou escrever a meus amigos”.

Os cinco atos são uma série de acontecimentos terríveis, de atribulações amargas por que a pobre menina teria de passar. Primeiro a desonra, mais tarde quase uma maldição; estes sucumbem, aqueles suicidam-se; é uma procissão de terrores que tem a infelicidade de não ser nova no mundo real. No meio disto tudo, dois meliantes que vão à cata de fortuna e posição, que procuram pelo jogo e pelo assassinato o punhal e o baralho, a cuja invenção deu causa um rei maluco, como a bela leitora sabe. Esses dois varões sem probidade são Pecheric e Roberto; Warner e Júlio.

O epílogo começa pela derradeira situação de prólogo; e estrangeiro lacra a sua última carta, defronte de Henriqueta que se debate num pesadelo, o final do ato 5º. – Ele levanta-se e acorda-a. É uma bela cena. Henriqueta reconhece a realidade, que seus pais estão vivos, e livre de seu sonho terrível abraça-os. Roberto aparece então a dizer a Henriqueta que debalde esperara, no lugar por ele indicado; mas ela, a quem no seu pesadelo se revelava um futuro terrível, – aceita com toda a vontade a mão de Maturino, o campônio que a pedira no prólogo. Repelido por ela, e descoberto na aldeia, ele procura fugir a instâncias de Picheric, mas cai nas mãos da polícia, que apareceu tão a horas, tão oportuna, como não acontece cá pelas nossas bandas.

Tudo se regozija, e o drama romântico em todo o seu correr – acaba numa atmosfera profunda de romantismo.

Descontado o acanhamento do artista, a leitora tem nesses traços vagos e trêmulos uma idéia aproximada do drama. Passamos então à aplicación del cuento.

O que é esse prólogo de uma vida plácida e tranqüila, e esse epílogo de idêntico aspecto senão as duas margens desse rio de que falei? Os cinco atos que medeiam, esse pesadelo terrível de Henriqueta, são uma imagem da vida, sonho terrível que se esvai na morte, como disse o êmulo de Ovídio. Creio que é fácil a demonstração.

Eis aí pois o que eu acho de bom nesse drama, e se não foi a intenção de seus autores foi um acaso feliz. Desculpem as leitoras esta relação sutil que encontro aqui, mas é que eu tenho a bossa do filosofismo.

O Asno morto pertence à escola romântica e foi ousado pisando a cena em que tem reinado a escola realista. Pertenço a esta última por mais sensata, mais natural, e de mais iniciativa moralizadora e civilizadora. Contudo não posso deixar de reconhecer no drama de sábado passado um belo trabalho em relação à escola a que pertence. Os dois renegados é sempre um belo drama, mas que entretanto é todo banhado de romantismo. O seu a cujo é, dizem os legistas.

A tradução é boa e só encontrei um engage que me fez mau efeito; mas são coisas que passam, e nem é de supor outra coisa tendo-se ocupado desse trabalho importante a Sra. Velluti.

A representação foi bem, mas primaram os Srs. Furtado Coelho, Moutinho, Joaquim Augusto, Jeller e Graça. O Sr. Moutinho foi perfeito, sobretudo no quarto ato, apesar de seu papel tão pequeno. O Sr. Furtado Coelho na morte do 5º ato esteve sublime e mostrou ainda uma vez os seus talentos dramáticos. O Graça é sempre o Graça, um grande artista. Num mesquinho papel mostrouse artista, e, como leiloeiro, não esteve abaixo de Cannoll ou outro qualquer do ofício.

A Sra. Velluti, no papel difícil e trabalhoso de Henriqueta, esteve verdadeiramente inspirada e mostrou, como tantas vezes, que possui o fogo sagrado da arte.

Há talvez observações a fazer, mas o longo desta mo impede, e eu tenho pressa de passar ao teatro de S. Pedro.

Dê-me a leitora o braço. E desprendendo-se… mas agora me lembro: o asno morto que descrevi viu a leitora tudo menos o asno. É culpa minha. O asno é quadrúpede (há-os bípedes) que pertencem ao vendedor de trigos, e que morre no correr do drama, revivendo porém no epílogo, por isso que morreu nos sonhos de Henriqueta.

Como se prende aquele asno morto ao drama, não o sei eu, é segredo do Sr. Barrière e seu colega.

Dê-me a leitora o braço e vamos ao teatro de S. Pedro.

Deste teatro pouco tenho a dizer.

Estou ainda debaixo da impressão do excelente drama do nosso autor dramático o Dr.

Joaquim Manuel de Macedo, – Cobé. – Foi ali representado, no dia 7 de setembro, grande página da nossa primeira independência.

É um belo drama como verso, como ação, como desenvolvimento. Todos já sabem que o autor da Moreninha faz lindíssimos versos. Os de drama são de mestre. Um pincel adequado traçou com talento os caracteres, desenhou a situação, e no meio de grandes belezas chegou a um desfecho sanguinolento, nada conforme com o gosto dramático moderno, mas decerto o único, que reclamava a situação. É um escravo que ama à senhora, e que se sacrifica por ela – matando o noivo que lhe estava destinado, mas a quem ela não amava decerto. Essa moça, Branca, ama entretanto a um outro, e Cobé, o pobre escravo – a quem uma sociedade de demônios tirara o direito de amar, quando reconhecia (ainda hoje) o direito de torcer a consciência e as faculdades de um homem, Cobé sabe morrer por ela.

Como vê minha leitora, respira um grande princípio democrático o drama do Sr. Macedo; – e se a minha leitora é do mesmo credo, estamos ambos de acordo.

Mais de espaço falarei minuciosamente do drama do Sr. Macedo. Esta semana foi toda de festejos e eu andei, desculpe a comparação, numa dobadoira.

Por agora vou dar o ponto final. Descanse os seus lindos olhos; e se gostou da minha prosa espere-me domingo.

Não é bom cansar as cabeças loiras.

11 de setembro de 1859.

________________________ SUMÁRIO: – Sr. Pedro. – Sineiro de S. Paulo. – Ginásio. – Feio de corpo – bonito n’alma. – Os amores de um marinheiro. Luís.

Prometi na minha revista passada algumas considerações sobre o Sineiro de S. Paulo. Fiz mal; contava com mais algumas representações do drama, e enganado em minhas esperanças, achome agora com apreensões muito fugitivas para uma crítica precisa e imparcial.

Desta vez realizei um provérbio… oriental creio eu: ninguém deve contar com as suas esperanças; verdade tão simples que não precisava as honras de um provérbio.

As apreensões do drama e do desempenho. Sobre o todo talvez pudesse dizer alguma coisa.

Estranhei o anúncio do Sineiro de S. Paulo. Não me pareceu coerente arrancar do pó do arquivo aquele drama, velho na forma e no fundo, pautado sobre os preceitos de uma escola decaída, limpo totalmente de mérito literário.

Estamos no meio-dia do século. A arte, como todos os elementos sociais, tem se apurado, e o termo em que tocou, é tão avançado já, que nenhuma força conservadora, poderá fazê-la retroceder.

Assim, reprovei inteiramente aquela exumação. O Sineiro de S. Paulo não podia satisfazer às necessidades do povo, nem justificava um longo estudo de desempenho.

São fáceis de conceber estas asserções; e eu que as escrevo conto com os espíritos que vêem na arte, não uma carreira pública, mas uma aspiração nobre, uma iniciativa civilizadora e um culto nacional.

Tenho ainda ilusões. Creio ainda que a consciência do dever é alguma coisa; e que a fortuna pública não está só em um farto erário, mas também na acumulação e circulação de uma riqueza moral.

Talvez seja ilusão; mas estou com o meu século. Consola-me isto.

Não faço aqui uma diatribe. Estou no meio termo. Não nego, não poderei negar o talento do Sr. João Caetano; seria desmentido cruelmente pelos fatos.

Mas também não lhe calo os defeitos. Ele os tem, e devia desprender-se deles. No Sineiro de S. Paulo, esses defeitos se revelaram mais de uma vez. Há frases bonitas, cenas tocantes, mas há em compensação verdadeiras nódoas que mal assentam na arte e no artista.

Espero segunda representação para entrar detalhadamente no exame desse drama. O que deploro desde já é a tendência arqueológica de por à luz da atualidade essas composições-múmias, regalo de antepassados infantes que mediam o mérito dramático de uma peça pelo número dos abalos nervosos.

Não entro agora em considerações sobre o teatro de S. Paulo; pouco espaço me dão. As que devia fazer, creio que deixo entrever nestas poucas palavras que expendi.

Amor ao trabalho e coragem de dedicação. Se não for essa uma norma de vida, aquele tablado histórico, em vez de colher louros capitolinos, ver-se-á exposto à classificação pouco decente de hospital de Inválidos. Não lhe desejo essa posição.

Agora vamos ter ao Ginásio, onde se deu, como segunda prova do Sr. Alfredo Silva, a comédia Feio de corpo, bonito n’alma.

Conhece esta composição, minha leitora? É do Sr. José Romano, autor do drama Vinte e nove.

Escrita debaixo de um sentimento liberal, e com intenção filosófica, nem assim o Sr. José Romano conseguiu fazer uma obra completa. Adivinha-se a substância, mas a forma é mesquinha demais para satisfazer a crítica.

A idéia capital da comédia é revelar a beleza da alma na deformidade do corpo; Antônio é o Quasímodo, menos a figura épica; entre o ferreiro e o sineiro de Notre Dame há um largo espaço; aquele tem a verdade; este tem mais ainda, tem a grandeza.

Estas observações não servem de crítica. José Romano não pretendeu fazer um Quasímodo do seu Antônio, e por conseqüência o seu valor está a par da sua composição.

Há uma coisa ainda que separa Antônio do Sineiro de V. Hugo, mas que o separa realçando-o, mas que o separa levantando-o, na apreciação moral. Antônio é bonito n’alma por um sentimento de amizade, por uma confraternização de operário. Se a gratidão embeleza Quasímodo é o pagamento de serviço, uma dívida de dedicação. Antônio é pelo desinteresse que se eleva, pela fraternidade da bigorna. Avantaja-se mais.

O Sr. Alfredo foi bem no papel, apesar de tão limitadas proporções. Tinha a vencer a dificuldade de comover depois de fazer rir: venceu-a. Moço de aspirações e de talento não desmentiu a idéia que sonhou e faz nascer no público. Já lhe dirigi a minha saudação, e sancionando-a agora, protesto-lhe aqui imparcialidade severa, para laurear-lhe o merecimento ou castigar-lhe os defeitos, cronista como sou.

O Sr. Augusto foi artista no seu desempenho; devia ser operário, foi. As maneiras rudes do ferreiro não são decerto os modos elegantes do cavalheiro de Maubreuil. Soube marcar as distâncias.

A Sra. Eugênia Câmara, colocada na comédia, sua especialidade, fez a aldeã, segundo os conhecedores do tipo, perfeitamente. Não sou do número desses conhecedores, mas posso, pela tradição que tenho, sancionar a opinião geral.

O Sr. Martins, no desempenho de um literato parasita, não satisfez plenamente nem a crítica nem o público. Aconselho ao artista mais ainda; e lembro-lhe as luvas de pelica, de que o diálogo fala a cada passo, e de que ele se esqueceu, creio. Da mesma maneira lhe lembro que o exterior com que se apresenta não está de acordo com a individualidade que reproduz.

Houve terça-feira Os amores de um marinheiro, cena desempenhada pelo Sr. Moutinho.

O criador de Manuel Escolta, desempenhou-a como sempre. Deu vida àquela página sentimental, com um estudo completo do caráter. Na descrição da tempestade, no lugar em que, narrando com o gesto parece que segura realmente o leme, e nos derradeiros pedaços da cena, pronuncia chorando, mereceu bem os aplausos que lhe deram, poucos talvez na opinião da revista.

É um artista de inspiração e estudo; tem sem dúvida uma especialidade, mas eu já fiz sentir que as especialidades são comuns na arte. E depois, que especialidade a do Sr. Moutinho! Vejam o Torneiro, vejam Manuel Escolta! E Baltasar, então! Ainda ontem (12) o lavrador do Luís deu ao público mais uma ocasião de ser apreciado. É ainda o lavrador de que falei, com o estudo dos menores gestos, de todas as inflexões. Tanto melhor! confirma a opinião da crítica e do público.

O Sr. Furtado foi ontem um digno companheiro de Baltasar. Teve frases ditas com expressões, sobretudo aquele trecho em que faz a Elisa uma vista retrospectiva da sociedade; e o outro em que desenha a Joaquim a missão do sacerdote. O monólogo do 2º ato vale bem o monólogo do Abel e Caim; há como que uma identidade de situação.

O Sr. Graça e o Sr. Augusto estiveram como sempre na altura da sua missão.

Elisa, a figura arquétipo do amor e do sacrifício, não preciso dizer que achou uma inteligente intérprete na Sra. Gabriela; já o fiz sentir em outra parte, onde dei parte minuciosa do seu desempenho, e onde não sei se fiz notar os finais do primeiro e segundo atos em que a criadora de Marco se transfigura em frases eloqüentes de amor e de paixão.

Não farei análise mais funda. A minha probidade de cronista está satisfeita; mas dela não precisa a consciência pública para avaliar o desempenho da Elisa de Valinho. Não se comenta Shakespeare, admira-se.

Termino aqui, minha leitora. Vou amanhã (domingo) a S. Januário, e do que houver lhe darei conta na minha próxima revista.

Anuncia-se também no Ginásio as Mulheres terríveis. É a Odisséia da Sra. Velluti, e se a leitora ainda não viu essa linda comédia, não deve faltar a ela.

 

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