Os Orizes

Machado de Assis

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I

Nunca as armas cristãs, nem do Evangelho
O lume criador, nem frecha estranha
O vale penetraram dos guerreiros
Que, entre serros altíssimos sentado,
Orgulhoso descansa. Único o vento,
Quando as asas desprega impetuoso,
Os campos varre e as selvas estremece,
Um pouco leva, ao recatado asilo,
Da poeira da terra. Acaso o raio
Alguma vez nos ásperos penedos,
Com fogo escreve a assolação e o susto.
Mas olhos de homem, não; mas braço afeito
A pleitear na guerra, a abrir ousado
Caminho entre a espessura da floresta,
Não afrontara nunca os atrevidos
Muros que a natureza a pino erguera
Como eterna atalaia.

II

Um povo indócil
Nessas brenhas achou ditosa pátria,
Livre, como o rebelde pensamento
Que ímpia força não doma, e airoso volve
Inteiro à eternidade. Guerra longa
E porfiosa os adestrou nas armas;
Rudes são nos costumes mais que quantos
Há criado este sol, quantos na guerra
O tacape meneiam vigoroso.
Só nas festas de plumas se ataviam
Ou na pele do tigre o corpo envolvem,
Que o sol queimou, que a rispidez do inverno
Endureceu como os robustos troncos
Que só verga o tufão. Tecer não usam
A preguiçosa rede em que se embale
O corpo fatigado do guerreiro,
Nem as tabas erguer como outros povos;
Mas à sombra das árvores antigas,
Ou nas medonhas cavas dos rochedos,
No duro chão, sobre mofinas ervas,
Acham sono de paz, jamais tolhido
De ambições, de remorsos. Indomável
Essa terra não é; pronto lhes volve
O semeado pão; vicejam flores
Com que a rudez tempera a extensa mata,
E o fruto pende dos curvados ramos
Do arvoredo. Harta messe do homem rude,
Que tem na ponta da farpada seta
O pesado tapir, que lhes não foge,
Nhandu, que à flor de terra inquieta voa,
Sobejo pasto, e deleitoso e puro
Da selvagem nação. Nunca vaidade
De seu nome souberam, mas a força,
Mas a destreza do provado braço
Os foros são do império a que hão sujeito
Todo aquele sertão. Murmuram longe,
Contra eles, as gentes debeladas
Vingança e ódio. Os ecos repetiram
Muita vez a pocema de combate;
Nuvens e nuvens de afiadas setas
Todo o ar cobriram; mas o extremo grito
Da vitória final só deles fora.

III

Despem armas de guerra; a paz os chama
E o seu bárbaro rito. Alveja perto
O dia em que primeiro a voz levante
A ave sagrada, o nume de seus bosques,
Que de agouro chamamos, Cupuaba
Melancólica e feia, mas ditosa
E benéfica entre eles. Não se curvam
Ao nome de Tupã, que a noite e o dia
No céu reparte, e ao ríspido guerreiro
Guarda os sonhos do Ibaque e eternas danças.
Seu deus único é ela, a benfazeja
Ave amada, que os campos despovoa
Das venenosas serpes – viva imagem
Do tempo vingador, lento e seguro,
Que as calúnias, a inveja e o ódio apagam,
E ao conspurcado nome o alvor primeiro
Restitui. Uso é deles celebrar-lhe
Com festas o primeiro e o extremo canto.

IV

Terminara o cruento sacrifício.
Ensopa o chão da dilatada selva
Sangue de caititus, que o pio intento
Largos meses cevou; bárbara usança
Também de alheios climas. As donzelas,
Mal saídas da infância, inda embebidas
Nos ledos jogos de primeira idade,
Ao brutal sacrifício… Oh! cala, esconde,
Lábio cristão, mais bárbaro costume.

V

Agora a dança, agora alegres vinhos,
Três dias há que de inimigos povos
Esquecidos os trazem. Sobre um tronco
Sentado o chefe, carregado o rosto,
Inquieto o olhar, o gesto pensativo,
Como alheio ao prazer, de quando em quando
À multidão dos seus a vista alonga,
E um rugido no peito lhe murmura.
Quem a fronte enrugara do guerreiro?
Inimigo não foi, que o medo nunca
O sangue lhe esfriou, nem vão receio
Da batalha futura o desenlace
Lhe fez incerto. Intrépidos como ele
Poucos vira este céu. Seu forte braço,
Quando vibra o tacape nas pelejas,
De rasgados cadáveres o campo
Inteiro alastra, e ao peito do inimigo,
Como um grito de morte a voz lhe soa.
Nem só nas gentes o terror infunde;
É fama que em seus olhos cor da noite,
Inda criança, um gênio lhe deixara
Misteriosa luz, que as forças quebra
Da onça e do jaguar. Certo é que um dia
(A tribo o conta, e seus pajés o juram)
Um dia em que, do filho acompanhado,
Ia costeando a orla da floresta,
Um possante jaguar, escancarando
A boca, em frente do famoso chefe
Estacara. De longe um grito surdo
Solta o jovem guerreiro; logo a seta
Embebe no arco, e o tiro sibilante
Ia já disparar, quando de assombro
A mão lhe afrouxa a distendida corda.
A fera o colo tímida abatera,
Sem ousar despregar os fulvos olhos
Dos olhos do inimigo. Ureth ousado
Arco e frechas atira para longe,
A massa empunha, e lento, e lento avança;
Três vezes volteando a arma terrível,
Enfim despede o golpe; um grito apenas.
Único atroa o solitário campo,
E a fera jaz, e o vencedor sobre ela

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