Uma Loureira

Machado de Assis

Capítulo I

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Havia grande agitação em casa do comendador Nunes, em certa noite de abril de 1860.

Não era comendador o sr. Nicolau Nunes, era apenas oficial da Ordem da Rosa, mas todos lhe davam o título de comendador, e o sr. Nunes não resistia a esta deliciosa falsificação. A princípio reclamou sorrindo contra a liberdade dos amigos, que desta maneira emendaram a parcimônia do governo. Mas os amigos insistiam no tratamento, e até hoje ainda se não descobriu o meio de recusarmos uma coisa que desejamos do fundo d’alma ser comendador, e quando falou ao seu compadre, o conselheiro F., foi com a mira na comenda. O conselheiro empenhou-se com o ministro, e este apenas consentiu em dar o hábito ao sr. Nunes. Graças aos empenhos, pôde o candidato obter o oficialato.

Era ele um homem de 45 anos, um tanto calvo, bem apessoado, nariz não vulgar, se atendermos no tamanho, mas vulgaríssimo se lhe estudarmos a expressão. O nariz é um livro, até hoje pouco estudado pelos romancistas, que aliás se presumem grandes analistas da pessoa humana. Eu, quando vejo alguém pela primeira vez, não lhe estudo a boca nem os olhos, nem as mãos; estudo-lhe o nariz. Mostra-me o nariz, e eu direi quem és.

O nariz do comendador Nunes era a coisa mais vulgar deste mundo; não exprimia coisa nenhuma de jeito, nem de elevação. Era um promontório, nada mais. E, todavia, o comendador Nunes tirava grande vaidade do nariz, por lhe haver dito um sobrinho que era nariz romano. Havia, é verdade, uma corcova no meio da extensa linha nasal do comendador Nunes, e naturalmente foi por zombaria que o sobrinho chamou àquilo romano. A corcova era um acervo de protuberâncias irregulares e impossíveis. Em suma, podia-se dizer que a cara do comendador Nunes era composta de dois Estados divididos por uma cordilheira extensa.

Fora destas circunstâncias nasais, nada havia que dizer da pessoa do comendador Nunes. Era boa figura e boa alma.

Dizer quais eram os seus meios de vida, e o seu passado, importa pouco para a nossa história. Basta dizer que se quisesse deixar de trabalhar, já tinha que comer, e deixar aos filhos, e à esposa.

A esposa do comendador Nunes era uma rechonchuda senhora de 46 anos, relativamente fresca, pouco amiga de brilhar fora de casa, e toda dada aos cuidados do governo doméstico. O seu casamento com o comendador Nunes foi feito contra a vontade do pai, pela razão de que, nesse tempo, Nunes não tinha vintém. Mas o pai era boa alma, e apenas soube que o genro ia fazendo fortuna, fez as pazes com a filha. Morreu nos braços de ambos.

Amaram-se muito os dois esposos, e os frutos desse amor foram nada menos de dez filhos, dos quais apenas escaparam três, Luísa, Nicolau e Pedrinho.

Nicolau tinha 20 anos, Pedrinho 7, e apesar desta notável diferença de idade não se pode dizer quem tinha mais juízo, se Pedrinho, se Nicolau.

Desejoso de o ver em boa posição literária, Nunes mandara o filho passar alguns anos na Academia de São Paulo, e realmente ele os passou ali, até obter uma carta de bacharel. O diploma dado ao jovem Nicolau podia fazer crer que ele de fato sabia alguma coisa; mas era completa ilusão. Nicolau saiu sabendo pouco mais ou menos o que sabia antes de lá entrar.

Em compensação, ninguém era mais versado no esticado das luvas, no talhado da casaca, no apertado da bota, e outras coisas assim, em que Nicolau era mais que bacharel, era doutor de borla e capelo.

Luísa tinha 18 anos, e podia-se dizer que era a flor da família. Baixinha e delgada, um tanto pálida e morena, Luísa inspirava facilmente simpatia, e mais do que simpatia a quem a visse pela primeira vez. Vestia bem, mas aborrecia o luxo. Tocava piano, mas aborrecia a música. Alguns caprichos tinha que, à primeira vista, poderiam desagradar à gente, mas, bem pesadas as coisas, as suas qualidades venciam os caprichos; o que era uma grande compensação.

D. Feliciana tinha na filha todas as suas esperanças de imortalidade. Dizia ela que a sua ascendência era uma linha não interrompida de donas-de-casa. Queria que a filha fosse uma digna descendente de tão preclaro sangue, e continuasse a tradição que recebera. Luísa dava esperança disso.

Tal era a família Nunes.

Capítulo II

Como ia dizendo, grande era a agitação em casa do comendador Nunes em certa noite de abril de 1860.

A causa desta agitação era nada menos que a apresentação de um rapaz, recentemente chegado do Norte, parente remoto dos Nunes e indigitado noivo da menina Luísa.

Chamava-se Alberto o rapaz, e tinha seus 27 anos feitos. A natureza o dotara de uma excelente figura e de um bom coração. Não escrevi à toa estes qualificativos; o coração de Alberto era bom, mas a figura era muito melhor.

O pai do candidato escrevera dois meses antes ao comendador Nunes uma carta em que lhe anunciava a vinda do filho, aludia às conversas que tiveram ambos os velhos acerca do enlace matrimonial dos pequenos.

O comendador recebeu esta carta logo depois do jantar, e não a leu, porque era regra sua não ler nada depois do jantar, sob pretexto de que lhe perturbaria a digestão.

Pedrinho, que tinha tanto juízo como o irmão bacharel, achou a carta em cima da mesa, fê-la em pedaços para arranjar canoas de papel e armar assim uma esquadra dentro de uma bacia. Quando deram por esta travessura três quartas partes da carta já estavam em nada, porque o pequeno vendo que alguns navios não navegavam bem, de todo os destruiu.

Os pedaços que ficaram eram apenas palavras soltas, e com algum sentido… mas que sentido! Só restavam palavras vagas e terríveis: teus… amores… Luísa… ele… flor em botão… lembras-te?

Quando a senhora D. Feliciana leu essas perguntas misteriosas sentiu que o sangue lhe subia todo ao coração, e depois à cabeça; estava iminente um ataque apoplético. Acalmou-se felizmente, mas ninguém pôde estancar-lhe as lágrimas.

Durante o longo tempo de casado nunca a senhora D. Feliciana duvidara uma vez sequer do marido, que aliás foi sempre o mais refinado hipócrita que o diabo mandou a este mundo. Aquele golpe, no fim de tantos anos, foi tremendo. Debalde o comendador Nunes alegava que de fragmentos nenhum sentido se poderia tirar, a esposa ofendida persistia nas recriminações e repetia as palavras soltas da carta.

— Queridinha, disse o comendador, esperemos outra carta, e tu verás a minha inocência mais pura que a de uma criança de berço.

— Ingrato!

— Feliciana!

— Vai-te, monstro!

— Mas, minha filha…

— Flor em botão!

— É uma frase vaga.

— Teus amores!…

— Duas palavras soltas; pode ser que ele quisesse dizer. ” Já vês…

— Lembras-te?

— Que tem isso? Que há nessa palavra que possa encerrar um crime?

— Ele!

E nisto passaram longas horas e longos dias.

Afinal, Feliciana se foi acalmando com o tempo, e ao cabo de um mês veio nova carta do pai de Alberto dizendo que impreterivelmente o rapaz estava aqui daí a um mês.

Por felicidade do comendador Nunes, o pai do noivo não tinha a musa fértil, e a segunda carta era mais ou menos do mesmo teor da primeira, e a senhora D. Feliciana, já convencida, esqueceu completamente os rigores do marido.

Comunicada a notícia ao objeto dela, que era a menina Luísa, nenhuma objeção fez esta ao casamento, e disse que estaria por tudo o que o pai quisesse.

— Isso não, disse o comendador, eu não te obrigo a casar com ele. Se gostares do rapaz, serás sua esposa; no caso contrário, fá-lo-ei voltar com as mãos abanando.

— Hei de gostar, respondeu Luísa.

— Tens algum namoro? perguntou Nunes com alguma hesitação.

— Nenhum.

Suspeitando que podia haver alguma coisa, que a menina não ousaria confiar-lhe, Nunes incumbiu a mulher de sondar o coração da pequena.

Revestiu-se a senhora D. Feliciana daquela meiga severidade, que tanto quadrava com o seu caráter, e interrogou francamente a filha.

— Luísa, disse ela, eu fui feliz no meu casamento porque amei muito teu pai. Só há uma coisa que faça uma noiva feliz, é o amor. O que é amor, Luísa?

— Não sei, mamãe.

Feliciana suspirou.

— Não sabes? disse ela.

— Não sei

— É incrível!

— É verdade.

— E serei eu com os meus quarenta e seis anos, que te ensine o que é o amor? Estás zombando comigo. Nunca sentiste nada por algum rapaz?

Luísa hesitou.

— Ah! disse a mãe, vejo que sentiste já

— Senti uma vez palpitar-me o coração, disse Luísa, ao ver um rapaz, que logo no dia seguinte me escreveu uma carta…

— E tu respondeste?

— Respondi.

— Desgraçada! Nunca se respondem a estas cartas sem ter certeza das intenções do autor delas. Teu pai… Mas deixemos isto. Respondeste só uma vez?…

— Respondi vinte e cinco vezes.

— Jesus!

— Mas ele casou com outra, segundo soube depois…

— Aí está. Vê que imprudência…

— Mas nós trocamos as cartas.

— Foi só esse, não?

— Depois veio outro…

D. Feliciana pôs as mãos na cabeça.

— A esse escrevi só quinze.

— Só quinze! E veio mais outro?

— Foi o último.

— Quantas?

— Trinta e sete.

— Santo Nome de Jesus!

D. Feliciana estava louca de surpresa. Luísa, a muito custo conseguiu acalmá-la.

— Mas em suma, disse a boa mãe, ao menos agora não amas nenhum?

— Agora nenhum.

D. Feliciana respirou, e foi tranqüilizar o marido acerca do coração da filha. Luísa contemplou a mãe com verdadeiro amor, e foi para o quarto responder à quinta carta do alferes Coutinho, amigo íntimo do bacharel Nunes.

Capítulo III

Repito, e agora será a última vez, grande era a agitação em casa do comendador Nunes nesta noite de abril de 1860.

Luísa já estava vestida de ponto em branco e encostada à janela conversava com uma amiga que morava na vizinhança e costumava ir lá tomar chá com a família.

D. Feliciana, também preparada, dava as ordens convenientes para que o futuro genro recebesse uma boa impressão quando lá chegasse.

O comendador Nunes estava fora; o paquete do Norte havia chegado perto das ave-marias, e o comendador foi a bordo receber o viajante. Acompanhava-o Nicolau. Quanto a Pedrinho, travesso como um milhão de diabos, ora puxava o vestido da irmã, ora tocava tambor no chapéu do Vaz (pai da amiga de Luísa), ora surripiava um doce.

O sr. Vaz, a cada travessura do pequeno, ria com aquele riso amarelo de quem não acha graça nenhuma; e por duas vezes esteve tentado a dar-lhe um beliscão. Luísa não reparava no irmão, tão entretida estava nas suas confidências amorosas com a filha do Vaz.

— Mas você está disposta a casar com esse sujeito a quem não conhece? perguntava a filha do Vaz a Luísa, encostadas ambas à janela.

— Ora Chiquinha, você parece tola, respondia Luísa. Eu disse que casava, mas isso depende das circunstâncias. O Coutinho pode roer-me a corda como já roeu à Amélia, e não é bom ficar desprevenida. Além disso, pode ser que o Alberto me agrade mais.

— Mais do que o Coutinho?

— Sim.

— É impossível.

— Quem sabe? Eu gosto de Coutinho, mas estou certa de que ele não é a flor de todos os homens. Pode haver outros mais bonitos…

— Isso há, concordou maliciosamente a Chiquinha.

— Por exemplo, o Antonico.

Chiquinha fez um sinal afirmativo.

— Como vai ele?

— Está bom. Pediu-me uma trança de cabelos anteontem…

— Sim!

— E eu respondi que depois, quando estivesse mais certa de seu amor.

Neste ponto do diálogo, o Vaz que estava na sala fungou uma pitada. Luísa reparou que era feio deixá-lo só, e saíram ambas da janela.

Entretanto, a senhora D. Feliciana dera as últimas ordens e veio para a sala. Bateram sete horas, e o viajante não aparecia. A esposa do comendador Nunes estava ansiosa por ver o genro, e a futura noiva sentia uma coisa que se parecia com a curiosidade. Chiquinha fazia os seus cálculos.

— Se ela não o quiser, pensava esta dócil criatura, e se ele me agradar sacrifico o Antonico.

Vinte minutos depois houve um rumor na escada, e D. Feliciana correu ao patamar para receber o candidato.

Entraram efetivamente na sala os três personagens esperados, o Nunes, o filho e Alberto. Todos os olhos se cravaram neste, e durante dois minutos, ninguém viu mais ninguém na sala.

Alberto compreendeu facilmente que era objeto da atenção geral, e não se perturbou. Pelo contrário, subiram-lhe à cabeça uns fumos de soberba, e esta boa impressão lhe desatou a língua e deu livre curso aos cumprimentos.

Era um rapaz como qualquer outro. Apresentava-se bem, e não falava mal. Nada tinha em suas feições que fosse notável, exceto um certo modo de olhar quando alguém lhe falava, um certo ar de impaciência. Isto mesmo ninguém lho notou então, nem depois naquela casa.

Passaremos por alto as primeiras horas da conversa, que foram empregadas em narrar a viagem, a referir as notícias que mais ou menos podiam interessar às duas famílias.

As 10 horas vieram dizer que o chá estava na mesa, e não era chá, e sim uma esplêndida ceia preparada com o esmero dos grandes dias. Alberto deu o braço a D. Feliciana, que já estava cativa das maneiras dele, e todos se encaminharam para a sala de jantar.

A situação daquelas diferentes pessoas já estava muito modificada; a ceia acabou por estabelecer entre Alberto e os outros uma discreta familiaridade.

Entretanto, apesar da extrema amabilidade do rapaz, parecia que Luísa não estava contente. O comendador Nunes sondava com os olhos a fisionomia da filha, e estava inquieto por não ver nela o menor vestígio de alegria. Feliciana toda enlevada nos modos e palavras de Alberto não dera fé daquela circunstância, ao passo que Chiquinha, descobrindo no rosto de Luísa uns sinais de despeito, parecia alegrar-se com isto, e sorrir-lhe a idéia de sacrificar desta vez o Antonico.

Reparava nestas coisas o Alberto? Não. A preocupação principal do candidato, durante a ceia, era a ceia, e nada mais. Outras qualidades podiam faltar ao rapaz, mas uma já lhe notava o pai da Chiquinha: a voracidade.

Alberto era capaz de comer a ração de um regimento.

Vaz reparou nesta circunstância, como já tinha reparado em outras. Nem parece que o pai de Chiquinha viesse a este mundo para outra coisa. Tinha olho fino e língua afiada. Ninguém podia escapar ao seu terrível binóculo.

Alberto tinha deixado a mala em um hotel onde alugou sala e quarto. O comendador, não desejando que o rapaz se sacrificasse mais aquela noite, que pedia descanso, pediu a Alberto que não fizesse cerimônia, e apenas julgasse que eram horas se fosse embora.

Alberto, entretanto, parecia disposto a não usar tão cedo da faculdade que lhe dava Nunes. Amável, conversado e prendado, o nosso Alberto entreteve a família até muito tarde; mas por fim saiu, com grande pena de D. Feliciana e grande satisfação de Luísa.

Por que motivo esta satisfação? Tal era a pergunta que a si mesmo fazia o comendador quando Alberto se retirara.

— Sabes que mais, Feliciana? disse o Nunes apenas se achou no quarto com a mulher, creio que a rapariga não simpatizou com o Alberto.

— Não?

— Não tirei os olhos dela, e posso afiançar que parecia extremamente aborrecida.

— Pode ser, observou D. Feliciana, mas isso não é uma razão.

— Não é?

— Não é.

Nunes abanou a cabeça.

— Raras vezes se pode vir a gostar de uma pessoa de que se não gostou logo, disse ele sentenciosamente.

— Oh! isso não! respondeu logo a mulher, também eu quando te vi antipatizei solenemente contigo, e entretanto…

— Sim, mas isso é raro.

— Menos do que pensas.

Houve um silêncio.

— E contudo este casamento era muito do meu agrado, suspirou o marido.

— Deixa estar que eu arranjo tudo.

Com estas palavras de D. Feliciana terminou a conversa.

Capítulo IV

Qual era a causa da tristeza ou aborrecimento de Luísa?

Quem a adivinhou foi Chiquinha. A causa foi um despeito de moça bonita. Alberto era amável demais, amável com todos, olhando para ela com a mesma indiferença com que olhava para as outras pessoas.

Luísa não queria ser olhada assim.

Imaginava ela que um rapaz, que fizera uma viagem para vir apresentar-se candidato à sua mão; devia prestar-lhe alguma homenagem, em vez de a tratar com a mesma delicadeza que dispensava aos outros.

No dia seguinte estas impressões de Luísa estavam mais dissipadas. O sono foi a causa disso, e também a reflexão.

— Talvez que ele não ousasse… pensava ela.

E esperou que ele lá fosse nesse dia.

Pouco depois do almoço recebeu Luísa uma carta do alferes Coutinho. O namorado já tinha notícia do pretendente, e escrevera a epístola meia lacrimosa, meia ameaçadora. Era notável o seguinte período:

….. Podes, mulher ingrata, calcar a teus pés o meu coração, cujo crime foi amar-te com todas as suas forças, e palpitar por ti a todas as horas!… Mas o que tu não podes, o que ninguém poderia nem Deus, é fazer com que eu te não ame agora e sempre, e até debaixo da fria campa!… E um amor destes merece desprezo, Luísa?…

A epístola do alferes impressionou a moça.

— Este ama-me, pensava ela, e o outro!…

O outro chegou pouco depois, já reformado na roupa, já mais cortesão com a moça. Um quarto de hora bastou para que Luísa modificasse a sua opinião a respeito do rapaz.

Alberto aproveitou as liberdades que lhe davam com ela para lhe dizer que a achava mais bela do que a sua imaginação sonhara.

— E de ordinário, acrescentou ele, a nossa imaginação nos ilude. Se desta vez estive abaixo da realidade, a causa disto é que a sua beleza está além da imaginação humana.

Neste sentido fez o noivo um discurso obscuro, oco e mal alinhavado, que ela ouviu com delícias.

— Veio de tão longe para zombar de mim? perguntou ela.

— Zombar! disse Alberto ficando sério.

— Oh! perdão, disse ela, eu não queria ofendê-lo; mas creio que isso só por zombaria se poderia dizer…

— Oh! nunca! exclamou Alberto apertando docemente a mão de Luísa.

O comendador surpreendeu esta cena, e a sua alegria não conheceu limites. Todavia era conveniente dissimulá-la, e assim o fez.

— Tudo caminha bem, dizia ele consigo. O rapaz não é peco.

E não era. Nessa mesma tarde perguntou ele a Luísa se queria aceitá-lo por esposo. A moça não contava com esta pergunta à queima-roupa e não soube que lhe responder.

— Não quer? perguntou o rapaz.

— Eu não disse isso.

— Mas responda.

— Isso é com meu pai.

— Com seu pai? perguntou Alberto espantado; mas ele governa então o seu coração?…

Luísa nada respondeu, nem podia responder. Houve um longo silêncio; Alberto foi o primeiro que falou.

— Então, disse ele; que me responde?

— Deixe-me refletir.

Alberto fez uma careta.

— Refletir? perguntou ele. Mas o amor é uma coisa e a reflexão é outra.

É verdade, respondeu a moça; e neste caso, deixe que eu o ame.

Não contando com esta resposta, Alberto empalideceu, e viu bem que era uma espécie de castigo que ela queria dar-lhe por causa da sua intempestiva reflexão. Pareceu-lhe que fora esquisito falar de amor a uma moça a quem via pela primeira vez.

Luísa não se arrependeu da pequena lição dada ao pretendente, e pareceu-lhe conveniente conservá-lo na incerteza durante alguns dias, a fim de o castigar ainda mais.

Não contava ela porém com o golpe que lhe preparava o alferes Coutinho.

Já sabemos que este alferes era íntimo amigo de Nicolau. Várias vezes o filho de Nunes o convidara para ir à casa do pai; mas Coutinho sempre recusara o convite delicadamente, e parece que o fazia justamente para se não aproximar de Luísa.

Como?

É verdade. Na opinião de Coutinho, o amor não vive só de mistério, vive também de distância.

A máxima poderia ser excelente, mas no caso atual não prestava para nada. Coutinho compreendeu isto perfeitamente, e com destreza conseguiu ser convidado nessa noite por Nicolau para lá ir.

De maneira que, no meio de seus devaneios poéticos, ouvindo as narrações que Alberto fazia diante da família encantada com o narrador, Luísa viu assomar à porta a figura do irmão e a do alferes.

Luísa reteve um grito.

Nicolau apresentou o amigo a toda a família, e a conversa um pouco esfriou com a chegada do novo personagem; mas não tardou que continuasse no mesmo tom.

Luísa não ousava olhar para um nem para outro. Alberto nada percebeu nos primeiros momentos; mas Coutinho tinha os olhos cravados nela com tanta insistência, que era impossível não ver nele, senão um rival feliz, ao menos um pretendente resoluto.

— Veremos! disse ele consigo.

— Quem vencerá? perguntava a si mesmo o alferes Coutinho olhando a furto para o candidato do Norte.

Capítulo V

Ao passo que o Nunes e D. Feliciana se davam por felizes julgando bem encaminhadas as coisas, e Chiquinha premeditava trocar o Antonico pelo Alberto, uma luta se tratava no espírito de Luísa.

Uma luta neste caso era já probabilidade de vitória para Alberto, visto que o outro era o namorado antigo, aceito e amado. O coração de Luísa parecia feito para estas situações dúbias em que a vaidade de moça toma as feições do amor, com tanta habilidade que ilude os mais.

Alberto tinha qualidades brilhantes, ainda que não sólidas; mas Coutinho era já o namorado aceito, e sempre deixava saudades.

Demais Alberto era um bom casamento, mas a moça sentia que ele queria dominá-la depois, e já pressentia nele alguns sintomas de vontade imperiosa; ao passo que o alferes, exceto alguns rompantes sem conseqüência, era um verdadeiro paz d’ senhor vem ter comigo, declara que ama D. Luísa e propõe que um de nós ceda o campo ao outro. Claro é que sou eu o condenado a ceder.

— O senhor não me deixou acabar, observou Alberto.

— Acabe.

— Eu não desejo que um de nós se resolva desde já a deixar o campo; o que eu proponho é que cada um de nós procure saber se tem elementos para se fazer eleger noivo da moça de que se trata. Isto só pode saber apresentando cada um de nós o seu ultimatum. Ela escolherá em conformidade do seu coração e o vencido retirar-se-á para as tendas.

Leitor desconfiado, não digas que isto é impossível; eu estou contando um fato autêntico; e posto não esteja isto de acordo com as regras da arte, eu conto o caso, como o caso foi.

Coutinho fez algumas objeções à proposta do rival. Alegou a primeira razão de todas, a singularidade da situação que se ia criar entre ambos a respeito de uma moça, que ambos deviam respeitar.

— Não esqueçamos que ela tem alguma coisa, disse ele, e isto pode parecer um jogo em que o ganho consiste precisamente no dote de D. Luísa.

— Eu também tenho alguma coisa, respondeu Alberto com altivez.

— Bem sei, disse Coutinho, mas eu não tenho nada, e a meu respeito a objeção fica de pé. Espero que me acredite que eu neste negócio não tenho em mim os bens daquele anjo, e que só o coração me arrasta sabe Deus a que drama íntimo!

Se Alberto fosse mais penetrante, ou Coutinho menos dissimulado, descobrir-se-ia que este pretexto de Coutinho era mais teatral que verdadeiro. Amava sem dúvida a moça, mas não a amaria talvez se não tivesse nada de seu.

Coutinho expôs ainda outras objeções que a seu ver eram valiosas, mas todas as desfez Alberto com algumas razões suas, e ao cabo de duas horas ficou assentado que os dois campeões mediriam as suas forças e procurariam obter de D. Luísa a resposta decisiva. O preferido comunicaria logo ao outro o resultado da campanha, e o outro abateria as armas.

— Mas que prazo lhe parece melhor? perguntou Alberto.

— Quinze dias, respondeu Coutinho.

Despediram-se.

VIII

O comendador Nunes estava ansioso por falar à filha e resolver a crise por um meio violento; mas Alberto fez com que ele prometesse neutralidade.

— Deixe que eu arranjo tudo, disse o candidato do Norte.

— Mas…

— Fie-se em mim. Disse alguma coisa à senhora D. Feliciana?

— Nada.

— Pois não convém que ela saiba nada.

Entraram os dois campeões na luta suprema. As condições eram aparentemente diversas, mas bem apreciadas eram iguais. Se Coutinho não ia lá com tanta freqüência, em compensação era o candidato para quem ela mais pendia; se Alberto tinha a facilidade de lhe falar mais vezes e estar mais assiduamente com ela, em compensação era o menos aceito dos dois.

Coutinho tinha o recurso das cartas, e entrou a usar dele com todas as forças. Nunca o vocabulário de Cupido subiu a maior grau de calor e entusiasmo; Coutinho empregava todas as tintas da palheta: o cor-de-rosa da felicidade conjugal, o sombrio e negro dos desesperos, o sangüíneo das revoluções últimas; tudo fez o seu papel nas epístolas do pretendente fluminense.

Alberto compreendeu que a epístola devia acompanhar os seus meios de campanha, e usou dela com descomunal liberalidade.

Luísa ignorava todas as circunstâncias acima referidas, e o redobrar de esforços da parte dos dois candidatos não fez mais do que alimentar-lhe a natural vaidade de moça bonita.

Entretanto, veio uma carta do pai de Alberto instante por uma resolução definitiva; Alberto resolveu dar o grande golpe e dirigiu-se à esquiva moça

— D. Luísa, lhe disse ele, já sabe que eu ardo, que eu sinto dentro de mim um terrível fogo que me há de consumir.

— Mas…

— Ouça-me. Era meu interesse conservar as ilusões em vez de me expor a um desengano certo; mas há situações que não comportam dúvidas; eu prefiro uma cruel franqueza; farei depois o que me inspirar o desespero.

Luísa sorria-se sem dizer palavra.

— Zomba comigo, já vejo, disse melancolicamente Alberto.

— Oh! não!

— Então fale!

— Pois bem…

Hesitou.

— Diga, ama-me? instou Alberto.

— Amo, respondeu Luísa deitando a fugir.

O paraíso de Maomé, com todas as delícias prometidas no Alcorão, não chega aos pés da felicidade que a simples resposta da moça introduziu na alma do pobre candidato.

Alberto saiu para a rua.

Precisava de ar.

De tarde foi ter com o rival.

— Enfim! disse ele ao entrar.

— Que há? perguntou Coutinho tranqüilamente.

— Tudo está decidido, respondeu Alberto.

— Derrota?

— Vitória! Perguntei-lhe se me amava; disse-me claramente que sim. Não pode imaginar o prazer que eu senti quando ouvi de seus lábios a mais doce palavra que os homens inventaram.

— Imagino tanto mais esse prazer, redargüiu fleugmaticamente o Coutinho, quanto que eu mesmo ouvi essa palavra a meu respeito.

Alberto enfiou.

— Quando?

— Ontem de noite.

— É impossível! clamou Alberto furioso.

— E já depois disso, continuou Coutinho finamente, recebi esta carta que é a confirmação do que ontem lhe ouvi.

Dizendo isto apresentou a Alberto uma carta de Luísa.

— De maneira que… balbuciou Alberto.

— De maneira que, concluiu Coutinho, estamos na situação em que nos achamos antes.

— Olhe, eu teria deixado o campo se não me parecesse covardia, e se não sofresse horrivelmente com a separação, porque eu amo-a com todas as forças de minha alma.

— Como eu, disse Coutinho.

— Que faremos? perguntou Alberto depois de uma pausa.

— Insistir.

— Como?

— Cada um de nós lhe perguntará se ela quer casar e nos escolhe para noivo. A isto não é possível que ela dê a mesma resposta a ambos; há de decidir-se por um.

Dando este conselho, Coutinho procedia velhacamente porque justamente alguns minutos antes de entrar Alberto tinha mandado uma carta à moça perguntando se podia ir pedir-lhe a mão ao pai, e esperava que a resposta chegasse logo e pusesse termo ao conflito.

Mas a resposta não veio.

Ficou convencionado que dentro de oito dias tudo estaria resolvido, e um deles seria o vencedor.

Luísa disse à noite ao Coutinho que não mandara resposta à carta por não ter podido escrever.

— Mamãe anda muito desconfiada, disse ela.

— Bem, mas que me responde agora? perguntou Coutinho.

— Oh! deixe-me escrever, disse a moça, eu quero dizer-lhe tudo o que sinto… espere, sim?

Coutinho declarou que esperava.

— Contudo… disse ele.

— O quê?

— Se não fosse agradável a resposta, se não fosse a vida que eu espero e me é necessária?

Isto era ver se obtinha logo a resposta.

Luísa respondeu:

— Não seja desanimado…

— Então?

— Olhe, mamãe que está com os olhos em mim.

Oito dias se passaram nestas dúvidas até que os dois candidatos, por comum acordo, mandaram uma carta à moça, um verdadeiro ultimatum.

Era uma sexta-feira, dia aziago, e além disso 13 do mês. Os míseros pretendentes não repararam nisso, e atreveram-se a lutar com a fortuna em dia de tamanha desgraça.

Coutinho foi então à casa de Alberto.

— Mandei a minha carta, disse o fluminense.

— E eu a minha.

— Esperemos a resposta.

— Que lhe parece? perguntou Alberto.

— Parece-me… Não sei que me há de parecer, respondeu o Coutinho; eu tenho todas as provas de ela me amar loucamente.

— Tanto não digo eu, observou Alberto; loucamente não creio que me ame, mas cuido que sou amado.

O fim evidente de cada um destes personagens era assustar o adversário, caso este ficasse vitorioso. Entraram a alegar cartas apaixonadas, flores, tranças de cabelo, e o Coutinho chegou até a confessar um beijo na mão.

De repente abre-se a porta.

Entra o comendador Nunes pálido e trêmulo.

— Que é isto? disseram os dois.

Nunes deixou-se cair em uma cadeira, e com a voz trêmula e o olhar desvairado, confessou a sua desgraça.

Luísa fugira com o primo!

Fonte: pt.wikisource.org

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