À Margem da História

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“Brasileiros”

Transacreana

Euclides da Cunha

Introdução

Foi Coelho Neto, grande amigo de Euclides, que o induziu a editar seus livros na Editôra Lello, de Portugal. O êxito editorial do autor de Livro de Prata (pelo assunto e pelo estilo) o animou a aconselhar seu colega da
Academia à prestigiosa casa do Pôrto.

A morte inesperada de Euclides, porém, as naturais dificuldades para os necessários contactos com editôres e a falta de afinidade dos portuguêses com a temática euclidiana fizeram com que as seguintes edições de Contrastes e Confrontos e À Margem da História se epaçassem cada vez mais e não tivessem a indispensável assistência direta do Autor, ou de revisores
afetios à matéria.

À Margem da História (obra póstuma que só saiu um mês após a morte do escritor) vem em sua 1ª edição

– provavelmente pela falta de uma revisão final de Euclides
– eivada de erros e descuidos. Graças ao zêlo de seus editôres,
as ediçòes seguintes se apresentam mais corretas e melhor revistas.
Sendo crescente entre nós o interêsse pela obra euclidiana e
dada a importância dos livros para a perfeita compreensão da
problemática do Autor, impunha-se fôssem eles editados entre
nós, na nossa ortografia e sob nosso cuidados revisórios.
Graças aos entendimentos da Editôra Lello Brasileira, de São
Paulo, conseguindo autorização da Editôra Lello, do Pôrto,
e com o estabelecimento de textos feito pelo Sr. Dermal Monfré, temos
agora (como iniciativa da editôra nacional em comemoração
ao Ano Euclidiano) os dois livros editados no Brasil.
À Margem da História compõe-se de quatro partes: Na Amazônia,
Terra Sem História (7 capítulos, sôbre essa região),
Vários Estudos (3 capítulos, assuntos americanos), Da Independência
à República (ensaio histórico) e Estrêlas Indecifráveis
(crônica).
O livro apresenta, bem nítidas, quatro constantes da personalidade
cultural de Euclides: o cultor da língua e verdadeiro esteta da linguagem,
o ensaísta e o humanista brasileiro.
Não há preciosismo no falar euclidiano; há, sim, o rigorismo
da palavra exata. Seu vocabulário riquíssimo, técnico
e profissional quando necessário, era-lhe o instrumento próprio
para captar tôdas as sutilezas da realidade e expor o logicismo de seu
raciocínio de investigador e a lucidez do intérprete.
Nas palavras densas, carregadas de emoções e evocações,
dispostas numa estruturação sintática de ritmo veemente,
que se torna frêmito de vida e poesia, temos a própria autenticidade
de Euclides, numa linguagem que é bem tropicalmente brasileira, no
transbordamento fenomenológico de formas, sons, calor e luz. Se n’Os
Sertões êle foi mais improvisado e por isso mais grandiloqüente
e espetacular, agora ei-lo mais equilíbrio e maturidade. O capítulo
Judas Ahsverus (que nasceu inteiriço como um bloco de beleza) continua
sendo uma das melhores páginas da língua portuguêsa.
O espírito científico de Euclides, sempre estudando e sumariando
os assuntos (formado na juventude conforme o espírito da época),
dado a hipóteses e prefigurações muitas vêzes discutíveis,
extravasa-se na insopitável vocação ao ensaísmo,
exigindo-lhe conhecimentos e pesquisas, para que se torne mais lúcido,
mais penetrante, melhor intérprete. Por isso achamos que há
necessidade de uma iniciação cultural para se sentir e compreender
Euclides. Não estranhamos ser êle um escritor pouco popular.
Sua irrefreável tendência à interpretação
fisiológica dos fenômenos naturais mostra-se através de
uma vibração romântica e idealística, fazendo surgir,
dos algarismos e teorias, sua figura inigualável de artista.
Euclides é inesgotável. Por mais que se queira defini-lo e caracterizá-lo,
ainda se descobrem novas veredas e magníficas perspectivas que escaparam
à delimitação…
Seu tema central é a pátria e a gente brasileira. N’Os
Sertões o objetivo último é o homem; n”Amazonia,
o tema principal é a terra.
Seu nacionalismo mais se prende à preocupação do bem
comum e da denúncia das estruturas desequilibradas de nossa sociedade.
Já de algum tempo era sua intenção escrever um “segundo
livro vingador”. Deveria referir-se à Amazônia, acusando
os descasos pela terra e o desprêzo pelo homem.
Deveria chamar-se Paraíso Perdido.
Não o completou, porém, e alguns de seus capítulos constituem
a Terra Sem História, que abre êste volume.
São, no entender de alguns euclidianos, as mais expressivas e belas
páginas de Euclides.
Quando, em 1904, escreveu a José Veríssimo sôbre sua ida
ao Acre (como Chefe da Comissão de Reconhecimento das Nascentes do
Rio Purus) confessa o intento: “Aquelas paragens, hoje, depois dos últimos
movimentos diplomáticos, estão como o Amazonas antes de Tavares
Bastos; se eu não tenho a visão admirável dêste,
tenho o seu mesmo anelo de revelar os prodígios da nossa terra”.
Seu desejo era mostrar os aspectos físicos e as riquezas essenciais
da exuberante região.
“Além disso, se as nações estrangeiras mandam cientistas
ao Brasil, que absurdo haverá no encarregar-se de idêntico objetivo
um brasileiro?”
O grande rio teve o intérprete à altura.
Conhecerá melhor a Amazônia aquêle que ler as páginas
de Terra Sem História. Não é sòmente a geografia
descritiva que o empolga; são suas transfigurações no
tempo.
O mesmo crítico da caatinga, d’Os Sertões, é aqui
o arrebatado revelador do sistema hidrográfico da (ainda hoje) desordenada
região. E se o sertanejo é antes de tudo um forte, o seringueiro,
é um tipo de lutador excepcional. Devido, porém, ao egoísmo
desenfreado dos patrões opulentos, o homem ali “trabalha para
escravizar-se”.
Se n’Os Sertões a denúncia fica mais como um alerta, aqui
Euclides é mais objetivo e recomenda leis trabalhistas (isso em 1906…)
para que “salvemos aquela sociedade obscura e abandonada”.
Enquanto Contrastes e Confrontos está recheado de estudos e ensaios
que são o desdobramento ou a complementação d’Os
Sertões, êste outro em nada a êles se assemelha, a não
ser pelo mesmo tema da integração nacional – através
da penetração na Amazônia – e o mesmo desvêlo pelo
sofrido homem de nossa pátria, o que faz de Euclides da Cunha um dos
primeiros e mais ardorosos cultores do humanismo brasileiro.
Continuam aqui suas preocupações e seus interêsses pelos
problemas americanos, principalmente os referentes à América
do Sul. Isso em 1904. Se os tivéssemos acompanhado e estudado com igual
dedicação e cuidado, hoje teríamos uma alinaça
latino-americana melhor e mais eficientemente estruturada e, conseqüentemente,
uma vida econômica e social mais condinzente com nossas possibilidades
e riquezas.
O historiador Euclides tem, no esbôço Da Independência
à República, um ensaio cuja leitura deve ser obrigatória
mesmo para os especialistas no assunto. É lúcido e original
na interpretação do evoluir de nosso processo histórico-social.
O livro termina com um capítulo que parece chamar a atenção
para os céus indecifráveis, assunto que hoje seria o ponto alto
das pesquisas científicas, nas penetrações espaciais.
É poesia, ciência e confissão do agnóstico diante
do infinito desconhecido e sua ânsia de decifrá-lo…
Os euclidianos brasileiros, exultantes, muito têm a agradecer à
Lello Brasileira S.A., pelo retôrno dêstes dois filhos pródigos…
Oswaldo Galotti
Grêmio Euclides da Cunha, de São José do Rio Pardo

Na Amazônia, Terra Sem História

Impressões Gerais

Ao revés da admiração ou do entusiasmo, o que nos sobressalteia
geralmente, diante do Amazonas, no desembocar do dédalo florido do
Tajapuru, aberto em cheio para o grande rio, é antes um desapontamento.
A massa de águas é, certo, sem par, capaz daquele terror a que
se refere Wallace; mas como todos nós desde mui cedo gizamos um Amazonas
ideal, mercê das páginas singularmente líricas dos não
sei quantos viajantes que desde Humboldt até hoje contemplaram a hiléia
prodigiosa, com um espanto quase religioso – sucede um caso vulgar de psicologia:
ao defrontarmos o Amazonas real, vemo-lo inferior à imagem subjetiva
há longo tempo prefigurada. Além disto, sob o conceito estritamente
artístico, isto é, como um trecho da terra desabrochando em
imagens capazes de se fundirem harmoniosamente na síntese de uma impressão
empolgante, é de todo em todo inferior a um sem número de outros
lugares do nosso país. Tôda a Amazônia, sob êste
aspecto, não vale o segmento do litoral que vai de Cabo Frio à
Ponta do Munduba.

É sem dúvida, o maior quadro da Terra; porém chatamente
rebatido num plano horizontal que mal alevantam de uma banda, à feição
de restos de uma enorme moldura que se quebrou, as serranias de arenito de
Monte Alegre e as serras graníticas das Guianas. E como lhe falta a
linha vertical, preexcelente na movimentação da paisagem, em
poucas horas o observador cede às fadigas de monotonia inaturável
e sente que o seu olhar, inexplicàvelmente, se abrevia nos sem-fins
daqueles horizontes vazios e indefinidos como o dos mares.
***
A impressão dominante que tive, e talvez correspondente a uma verdade
positiva, é esta: o homem, ali, é ainda um intruso impertinente.
Chegou sem ser esperado nem querido – quando a natureza ainda estava arrumando
o seu mais vasto e luxuoso salão. E encontrou uma opulenta desordem…
Os mesmos rios ainda não se firmaram nos leitos; parecem tatear uma
situação de equilíbrio derivando, divagantes, em meandros
instáveis, contorcidos sem “sacados”, cujos istmos a reveses
se rompem e se soldam numa desesperadora formação de ilhas e
de lagos de seis meses, e até criando formas topográficas novas
em que êstes dois aspectos se confundem; ou expandindo-se em “furos”
que se anastomosam, reticulados e de todo incaracterísticos, sem que
se saiba se tudo aquilo é bem uma bacia fluvial ou um mar profusamente
retalhado de estreitos.
Depois de uma única enchente se desmancham os trabalhos de um hidrógrafo.
A flora ostenta a mesma imperfeita grandeza. Nos meios-dias silenciosos –
porque as noites são fantàsticamente ruidosas -, quem segue
pela mata, vai com a vista embotada no verde-negro das fôlhas; e ao
deparar, de instante em instante, os fetos arborescentes emparelhando na altura
com as palmeiras, e as árvores de troncos reilíneos e paupérrimos
de flôres, tem a sensação angustiosa de um recuo às
mais remotas idades, como se rompesse os recessos de uma daquelas mudas florestas
carboníferas desvendadas pela visão retrospectiva dos geólogos.
Completa-a, ainda sob esta forma antiga, a fauna singular e monstruosa, onde
imperam, pela corpulência, os anfíbios, o que é ainda
uma impressão paleozóica. E quem segue pelos longos rios, não
raro encontra as formas animais que existem, imperfeitamente, como tipos abstratos
ou simples elos da escala evolutiva. A “cigana” desprezível,
por ex., que se empoleira nos galhos flexíveis das oiranas, trazendo
ainda na asa de vôo curto a garra do réptil…
Destarte a natureza é portentosa, mas incompleta. É uma construção
estupenda a que falta tôda a decoração interior. Compreende-se
bem isto: a Amazônia é talvez a terra mais nova do mundo, consoante
as conhecidas induções de Wallace e Frederico Hartt. Nasceu
da última convulsão geogênica que sublevou os Andes, e
mal ultimou o seu processo evolutivo com as várzes quaternárias
que se estão formando e lhe preponderam na topografia instável.
Tem tudo e falta-lhe tudo, porque lhe falta êsse encadeamento de fenômenos
desdobrados num ritmo vigoroso, de onde ressaltam, nítidas, as verdades
da arte e da ciência – e que é como que a grande lógica
inconsciente das coisas.
Daí esta singularidade: é de tôda a América a paragem
mais perlustrada dos sábios e é a menos conhecida. De Humboldt
a Em. Goeldi – do alvorar do século passado aos nossos dias, perquirem-na,
ansiosos, todos os eleitos. Pois bem, lêde-os. Vereis que nenhum deixou
a calha principal do grande vale; e que ali mesmo cada um se acolheu, deslumbrado,
no recanto de uma especialidade. Wallace, Mawe, W. Edwards, d’Orbigny,
Martius, Bates, Agassiz, para citar os que me acodem na primeira linha, reduziram-se
a geniais escrevedores de monografias.
A literatura científica amazônica, amplíssima, reflete
bem a fisiografia amazônica: é surpreendente, preciosíssima,
desconexa. Quem quer que se abalance a deletreá-la, ficará,
ao cabo dêsse esforço, bem cpouco além do limiar de um
mundo maravilhoso.
Há uma frase do Professor Frederico Hartt que delata bem o delíquio
dos mais robustos espíritos diante daquela enormidade. Êle estudava
a geologia do Amazonas quando em dado momento se encontrou tão despeado
das concisas fórmulas científicas e tão alcandorado no
sonho, que teve de colhêr, de súbito, tôdas as velas à
fantasia:
– “Não sou poeta. Falo a prosa da minha ciência. Revenons!”
Escreveu; e encarrilhou-se nas deduções rigorosas. Mas decorridas
duas páginas não se forrou a novos arrebatamentos e reincidiu
no enlêvo… É que o grande rio, malgrado a sua monotonia soberana,
evoca em tanta maneira o maravilhoso, que empolga por igual o cronista ingênuo,
o aventureiro romântico e o sábio precavido. As “amazonas”
de Orellana, os titânicos curriquerês de Guillaume de L’Isle
e a Mana del Dorado de Walter Raleigh, formando no passado um tão deslumbrante
ciclo quase mitológico, acolchetam-se em nossos dias às mais
imaginosas hipóteses da ciência. Há uma hipertrofia da
imaginação no ajustar-se ao desconforme da terra, desequilibrando-se
a mais sólida mentalidade que lhe balanceie a grandeza. Daí,
no próprio terreno das indagações objetivas, as visões
de Humboldt e a série de conjeturas em que se retravam, ou contrastam,
todos os conceitos, desde a dinâmica de terremotos de Russell Wallace
ao bíblico formidável das galerias pré-diluvianas de
Agassiz.
Parece que ali a imponência dos problemas implica o discurso vagaroso
das análises: às induções avantajam-se demasiado
os lances da fantasia. As verdades desfecham em hipérboles. E figura-se
alguma vez em idealizar aforrado o que ressai nos elementos tangíveis
da realidade surpreendedora, por maneira que o sonhador mais desensofrido
se encontre bem na parceria dos sábios deslumbrados.
Vai-se, por ex., com Fred. Katzer a seriar, a escandir e aconfrontar velhíssimos
petrefactos ou graptólitos numa longa romaria ideal pelos mais remotos
pontos nas mais remotas idades – largo tempo, a debater-se entre as classificações
maciças, a enredar-se na trama das raízes gregas das nomenclaturas
bravias – e de improviso, os dizeres da ciência desfecham num quase
idealismo: as análises rematam-nas prodígios; as vistas abreviadas
nos microscópios desapertam-se no descortino de um passado muitas vêzes
milenário; e esboçados os contornos estupendos de uma geografia
morta, alonga-se-lhe aos olhos a perspectiva indefinida daquele extinto oceano
médio-devônico que afogava todo o Mato Grosso e a Bolívia,
cobrindo quase tôda a América meridional e chofrando no levante
as antiqüíssimas arribas de Goiás, últimos litorais
do continente brasilio-etiópico que aterrava o Atlântico indo
abranger a África… Segue-se com os naturalistas da Comissão
Morgan, e a história geológica, a despeito de linhas mais seguras,
não perde o traço grandioso, desenvolvendo-se às duas
margens do largo canal terciário que por longo tempo separou os planaltos
brasileiros e os das Guianas, até que o vagaroso sublevar dos Andes,
no Ocidente, serrando-lhe um dos extremos, o transmudasse em golfo, em estuário,
em rio.
Ao cabo, ainda atendo-se aos fatos atuais da fisiografia amazônica,
restam outros agentes nímio perturbadores da fria serenidade das observações
científicas.

* * *

Basta mostrar-se de relance que, ainda nos casos mais simples, há
no Amazonas um flagrante desvio do processo ordinário da evolução
das formas topográficas.
Em tôda a parte a terra é um bloco onde se exercita a molduragem
dos agentes externos entre os quais os grandes rios se erigem como principais
fatôres, no lhe remodelarem os acidentes naturais, suavizando-lhos.
Compensando a degradação das vertentes com o alteamento dos
vales, correndo montanhas e edificando planuras, êles vão em
geral entrelaçando as açòes destrutivas e reconstrutoras,
de modo que as paisagens, lento e lento transfiguradas, reflitam os efeitos
de uma estatuária portentosa.
Assim o Hoang-Ho aumentou a China com um delta, que é uma província
nova; e, ainda mais expressivo, o Mississipi assombra o naturalista, com a
expansão secular do atêrro desmedido que em breve chegará
às bordas da profundura onde se encaixa o Gulf-Stream. Nas suas águas
barrentas andam os continentes dissolvidos. Mudam-se países. Deconstituem-se
territórios. E há um encadeamento tão lógico nos
seus esforços contínuos, onde incidem as grandes energias naturais,
que o acompanhá-los implica algumas vêzes o acompanhar-se o próprio
rumo de um aspecto qualquer da atividade humana: das páginas de Herôdoto
às de Maspéro, contempla-se a gênese de uma civilização
de par com a de um delta; e o paralelismo é tão exato, que se
justificam os exageros dos que, a exemplo de Metchnikoff, vêem nos grandes
rios a causa preeminente do desenvolvimento das nações.
Ao passo que no Amazonas, o contrário. O que nêle se destaca
é a função destruidora, exclusiva. A enorme caudal está
destruindo a terra. O Professor Hartt, impressionado ante as suas águas
sempre barrentas, calculou que “se sôbre uma linha férrea
corresse dia e noite, sem parar, um trem contínuo carregado de tijuco
e areias, esta enorme quantidade de materiais seria ainda menor do que a de
fato é transportada pelas águas…”
Mas tôda esta massa de terras diluídas não se regenera.
O maior dos rios não tem delta. A Ilha de Marajó, constituída
por uma flora seletiva, de vegetais afeitos ao meio maremático e ao
inconsistente da vasa, é uma miragem de território. Se a despissem,
ficariam só as superfícies rasadas dos “mondongos”
empantanados, apagando-se no nivelamento das águas; ou, salteadamente,
algumas pontas de fragueados de arenito endurecido, esparsas, a êsmo,
na amplidão de uma baía. À luz das deduções
rigorosas de Walter Bates, comprovando as conjeturas anteriores de Martius,
o que ali está sob o disfarce das matas, é uma ruína:
restos desmantelados do continente, que outrora se estirava, unido, das costas
de Belém às de Macapá – e que se tem de restaurar, hipotèticamente,
em passado longínquo, para explicar-se a identidade das faunas terrestres,
hoje separadas pelo rio, do Norte do Brasil e das Guianas.
O Amazonas, entretanto, poderia reconstruí-lo em pouco tempo, com os
só 3.000.000 de metros cúbicos de sedimentos, que carrega em
vinte e quatro horas. Mas dissipa-os. A sua corrente túrbida, adensada
nos últimos lances de seu itinerário de 6.000 milhas, com os
desmontes dos litorais, que dia a dia se desbarrancam, fazendo recuar a costa
que se desenrola desde o Paru ao Araguari, decanta-se tôda no Atlântico.
E os resíduos das ilhas demolidas – entre as quais a de Caviana que
lhe foi antiga barragem e se bipartiu no correr de nossa vida histórica
– vão cada vez mais delindo-se e desaparecendo, no permanente assalto
daquelas correntezas poderosas. Destarte, desafoga-se mais e mais a desembocadura
principal da grande artéria e acentua-se o seu desvio para o norte,
com o abandono contínuo das paragens que lhe demoram a leste e sôbre
as quais êle passou outrora, deixando ainda, nas áreas recém-desvendadas
dos brejos marajoaras, um atestado tangível daquele deslocamento lateral
do leito, que tem dado aos geólogos inexpertos a ilusão de um
levantamento ou de uma reconstrução da terra.
Porque, na realidade, esta se reconstitui mui longe das nossas plagas. Neste
ponto, o rio, que sôbre todos desafia o nosso lirismo patriótico,
é o menos brasileiro dos rios. É um estranho adversário,
entregue dia e noite à faina de solapar a sua própria terra.
Herbert Smith, iludido ante a poderosa massa de águas barrentas, que
o viajente vê em pleno Oceano antes de ver o Brasil, imaginou-lhe uma
tarefa portentosa: a construção de um continente. Explicou:
depondo-se aquêles sedimentos do fundo tranqüilo do Atlântico,
novas terras aflorariam nas vagas e ao cabo de um esfôrço milenário
encher-se-ia o golfão aberto, que se arqueia do Cabo Orange à
Ponta do Gurupi, dilatando-se desta sorte, consideràvelmente, para
nordeste, as terras paraenses.
The king is building his monument! bradou o naturalista encantado e acomodando
às ásperas sílabas britânicas um rapto fantasista
capaz de surpreender à mais ensofregada alma latina. Esqueceu-lhe,
porém, que aquêle originalíssimo sistema hidrográfico
não acaba com a terra, ao transpor o Cabo Norte; senão que vai,
sem margens, pelo mar dentro, em busca da corrente equatorial, onde aflui,
entregando-lhe todo aquêle plasma gerador de território. Os seus
materiais, distribuídos pelo imenso rio pelásgico que se prolonga
com o Gulf-Stream, vão concentrando-se e surgindo a flux, espaçadamente,
nas mais longínquas zonas: a partir das costas das Guianas, cujas lagunas,
a começar no Amapá, a mais e mais se dessecam avançando
em planuras de estepes pelo mar em fora, até aos litorais norte-americanos,
da Geórgia e das Carolinas, que se dilatam sem que lhes expliquem o
crescer contínuo os breves cursos d’água das vertentes
orientais dos Aleganis.
Naqueles lugares, o brasileiro salta: é estrangeiro, e está
pisando em terras brasileiras. Antolha-se-lhe um contra-senso pasmoso: à
ficção de direito estabelecendo por vêzes a extraterritorialidade,
que é a pátria sem a terra, contrapõe-se uma outra, rudemente
física: a terra sem a pátria. É o efeito maravilhoso
de uma espécie de imigração telúrica. A terra
abandona o homem. Vai em busca de outras latitudes. E o Amazonas, nesse construir
o seu verdadeiro delta em zonas tão remotas do outro hemisfério,
traduz, de fato, a viagem incógnita de um território em marcha,
mudando-se pelos tempos adiante, sem parar um segundo, e tornando cada vez
menores, num desgastamento ininterrupto, as largas superfícies que
atravessa.
Não se lhe apontam formações duradouras, ou fixas. Por
vêzes, nas arqueaduras de seus canais remansam-se as águas fazendo
que se deponham os sedimentos conduzidos e as sementes que acarretam. Então
as faculdades criadoras do rio despontam supreendedoramente. O baixio prestes
recém-formado e aflorando à superfície, delineia-se,
em contornos indecisos; define-se logo, vivamente; dilata-se e ascende, bombeando
levemente nas águas; e na ilha que se gera, crescendo e articulando-se
a olhos vistos, apontoada de cabuchos, que se alongam e se retorcem à
superfície à maneira de tentáculos de um prodigioso organismo
– desencadeia-se para logo a luta das espécies vegetais tão
viva e tão dramática que nem lhe faltam no baralhamento dos
colmos, das hastes ou das ramagens revôltas, estirando-se, enredando
e confundindo-se, todos os movimentos convulsivos de uma enorme batalha sem
ruídos: dos aningais, que consolidam o tijuco inconsistente com a infibratura
dos risomas estirados; aos mangues, que os suplantam e repelem para as bordas,
em violentos e tumultuários bracejos; aos javaris altaneiros, que por
sua vez recalcam os últimos expelindo-os para as margens apauladas,
e senhoreando os tesos consistentes…
Assim se erigiu recentemente a Ilha de Cururu, com dois km² de área;
e se reconstróem tôdas as que se observam acima dos canais de
Breves.
Mas formam-se para se destruírem, ou desocarem-se incessantemente.
As ilhas trabalhadas pelas mesmas correntes que as geraram, desbarrancam-se
a montante e restauram-se a jusante, e vão lento e lento derivando
rio abaixo, ao modo de monstruosos pontões desmastreados, de longas
proas abatidas e pôpas altas, a navegarem dia e noite com velocidade
insensível. Por fim, desgastam-se e acabam. A de Urucurituba durou
dez anos (1840-1850) mercê da superfície vastíssima; e
apagou-se numa enchente…
O mesmo fato, nas margens. Os litorais do Amazonas mal lhe definem a calha
desmedida. São margens que evitam o rio. Ficam-lhe, normalmente, fora
das águas, para além das vastas planuras salpintadas de “lagos
de terra firme”, que atenuam, feito compensadores, a violência
das caudais, nas cheias. Aí, num cenário mais amplo, se desdobra
por vêzes a aparência de uma construção, em larga
escala, de solo. O rio, multífluo nas grandes enchentes, vinga as ribanceiras
e desafoga-se nos plainos desimpedidos. Desarraíga florestas inteiras,
atulhando de troncos e esgalhos as depressões numerosas da várzes;
e nos remansos das planícies inundadas, decantam-se-lhe as águas
carregadas de detritos, numa colmatagem plenamente generalizada. Baixam as
águas e nota-se que o terreno cresceu; e alteia-se de cheia em cheia,
aprumando-se as “barreiras” altas, exsicando-se os pantanais e “igapós”,
esboçando-se os “firmes” ondeantes, para logo invadidos da
flora triunfal… até que num só assalto, de enchente, todo
êsse delta lateral se abata.
Numa só noite (29 de julho de 1866) as “terras caídas”
da margem esquerda do Amazonas desmoronaram numa linha contínua de
cinqüenta léguas.
É o processo antigo, invariável – patenteando-se ainda no diminuto
raio da nossa história. As ribanceiras a pique da antiga costa do Paru,
onde apareceram aos condutícios de Orellana as amazonas lendárias,
reduzem-se hoje a um baixio degredado, visível apenas nas vazantes
excessivas.
A inconstância tumultuária do rio retrata-se ademais nas suas
curvas infindáveis, desesperadoramente enleadas, recordando o roteiro
indeciso de um caminhante perdido, a esmar horizontes, volvendo-se a todos
os rumos ou arrojando-se à ventura em repentinos atalhos. Assim êle
se precipitou pela angustura afogante de Óbidos num abandono completo
do antigo leito, que ainda hoje se adivinha no enorme plaino maremático
ganglionado de lagoas, de Vila Franca; ou vai, noutros pontos, em “furos”
inopinados, afluir nos seus grandes afluentes, tornando-se ilògicamente
tributário dos próprios tributários; sempre desordenado,
e revôlto, e vacilante, destruindo e construindo, reconstruindo e devastando,
apagando numa hora o que erigiu em decênios – com a ânsia, com
a tortura, com o exaspêro de monstruoso artista incontentável
a retocar, a refazer e a recomeçar perpètuamente um quadro indefinido…

* * *

Tal é o rio; tal, a sua história: revôlta, desordenada,
incompleta.
A Amazônia selvagem sempre teve o dom de impressionar a civilização
distante. Desde os primeiros tempos da colônia, as mais imponentes expedições
e solenes visitas pastorais rumavam de preferência às suas plagas
desconhecidas. Para lá os mais veneráveis bispos, os mais garbosos
capitães-generais, os mais lúcidos cientistas. E do amanho do
solo que se tentou afeiçoar a exóticas especiarias, à
cultura do aborígine que se procurou erguer aos mais altos destinos,
a Matrópole longínqua demasiara-se em desvelos à terra
que sôbre tôdas lhe compensaria o perdimento da Índia portentosa.
Esforços vãos. As partidas demarcadoras, as missões apostólicas,
as viagens governamentais, com as suas frotas de centenares de canoas, e os
seus astrônomos comissários apercebidos de luxuosos instrumentos,
e os seus prelados, e os seus guerreiros, chegavam, intermitentemente, àqueles
rincões solitários, e armavam ràpidamente no altiplano
das “barreiras” as tendas suntuosas da civilização
em viagem. Regulavam as culturas; puliam as gentes; aformoseavam a terra.
Prosseguiam a outros pontos, ou voltavam – e as malocas, num momento transfiguradas,
decaíam de chôfre, volvendo à bruteza original.
Já nos fins do século XVIII, Alexandre Rodrigues Ferreira, ao
realizar a sua “viagem filosófica”, pela calha principal
do grande rio, andara entre ruínas. Na Vila de Barcelos, capital da
circunscrição longínqua, antolhara-se-lhe, tangível,
a imagem do progresso tìpicamente amazônico, naquele presuntuoso
Palácio das Demarcações – amplíssimo, monumental,
imponente – e coberto de sapé! Era um símbolo. Tudo vacilante,
efêmero, antinômico, na paragem estranha onde as próprias
cidades são errantes, como os homens, perpètuamente a mudarem
de sítio, deslocando-se à medida que o chão lhes foge
roído das correntezas, ou tombando nas “terras caídas”
das barreiras…
Vai-se de um a outro século na inaturável mesmice de renitentes
tentativas abortadas. As impressões dos mais lúcidos observadores
não se alteram, perpètuamente desenfluídas pelo espetáculo
de um presente lastimável contraposto à ilusão de um
passado grandioso.
Tenreiro Aranha em 1852, ao erigir-se a província do Amazonas, assumiu
a sua direção, e numa resenha retrospectiva diz-nos do extraordinário
progresso que se perdera, referindo-se a “manufaturas primorosas”,
a uma indústria extinta em que “o algodão, o anil, a mandioca
e o café tiveram cultura tal que dava para o consumo sobrando para
a exportação; e assim as fábricas de anil, as cordoarias
de piassaba, de fiação, tecidos e rêdes de algodão,
de palhinha ou de penas; as telhas e alvenaria; as de construção
civil e naval, com hábeis artistas, fazendo aparecer templos, palácios,
ou possantes embarcações…”
Recua-se, porém, exatamente um século, a buscar o período
decantado – e num grande desapontamento observa-se, à luz do relatório
feito em 1752 por outro insigne governador, o Capitão-General Furtado
de Mendonça, que a “capitania estava reduzida à última
ruína…” Assim se desconchavam os pareceres, agitando idênticos
desânimos. Ou então se harmonizavam de modo impressionador no
firmarem a mesma decadência das gentes singulares. Em 1762 o Bispo do
Grão-Pará, aquêle extraordinário Fr. João
de S. José – seráfico voltaireano que tinha no estilo os lampejos
da pena de Antônio Vieira – depois de resenhar os homens e as coisas,
“assentando que a raíz dos vícios da terra é a preguiça”,
resumiu os traços característicos dos habitantes, dêste
modo desalentador: – “lascívia, bebedice e furto.” Passam-se
cem anos justos. Procura-se saber se tudo aquilo melhorou; abrem-se as páginas
austeras de Russel Wallace, e vê-se que alguma vez elas parecem traduzir,
ao pé da letra, os dizeres do arguto beneditino, porque a sociedade
indisciplinada passa diante das vistas surpreendidas do sábio – drinking,
gambling and lying – bebendo, dançando, zombando – na mesma dolorosíssima
inconsciência da vida…
Assim, essa indiferença pecaminosa dos atributos superiores, êsse
sistemático renunciar de escrúpulos e êsse coração
leve para o êrro, são seculares; e surgem de um doloroso tirocínio
histórico, que vem da”Casa do Paricá” à “barraca”
dos seringueiros. Compulsai os nossos velhos cronistas, com especialidade
o imaginoso Padre João Daniel, e avaliareis o travamento de motivos
físicos e morais que há muito, ali, entibiam os caracteres.
E lêde Tenreiro Aranha, José Veríssimo, dezenas de outros.
Nestes livros se espalham, fracionadas, tôdas as cenas de um dos maiores
dramas da impiedade na História.
Depois há o incoercível da fatalidade física. Aquela
natureza soberana e brutal, em pleno expandir das suas energias, é
uma adversária do homem. No perpétuo banho de vapor, de que
nos fala Bates, compreende-se sem dúvida a vida vegetativa sem riscos
e folgada, mas não a delicada vibração do espírito
na dinâmica das idéias, nem a tensão superior da vontade
nos atos que se alheiem dos impulsos meramente egoísticos. Não
exagero. Um médico italiano – belíssimo talento – o Dr. Luigi
Buscalione, que por ali andou há pouco tempo, caracterizou as duas
primeiras fases da influência climatérica – sôbre o forasteiro
– a princípio sob a forma de uma superexcitação das funções
psíquicas e sensuais, acompanhada, depois, de um lento enfraquecer-se
de tôdas as faculdades, a começar pelas mais nobres…
Mas neste apelar para o clássico conceito da influência climática
esqueceu-lhe, como a tantos outros, influxo porventura secundário,
mas apreciável, da própria inconstância da base física
onde se agita a sociedade.
A volubilidade do rio contagia o homem. No Amazonas, em geral, sucede isto:
o observador errante que lhe percorre a bacia em busca de variados aspectos,
sente, ao cabo de centenares de milhas, a impressão de circular num
itinerário fechado, onde se lhe deparam as mesmas praias ou barreiras
ou ilhas, e as mesmas florestas e igapós estirando-se a perder de vista
pelos horizontes vacios; – o observador imóvel que lhe estacione às
margens, sobressalteia-se, intermitentemente, diante de transfigurações
inopinadas. Os cenários, invariáveis no espaço, transmudam-se
no tempo. Diante do homem errante, a natureza é estável; e aos
olhos do homem sedentário que planeie submetê-la à estabilidade
das culturas, aparece espantosamente revôlta e volúvel, surpreendendo-o,
assaltando-o por vêzes, quase sempre afugentando-o e espavorindo-o.
A adaptação exercita-se pelo nomadismo.
Daí, em grande parte, a paralisia completa das gentes que ali vagam,
há três séculos, numa agitação tumultuária
e estéril.

* * *

Como quer que seja, para a Amazônia de agora devera restaurar-se integralmente,
na definição da sua psicologia coletiva, o mesmo doloroso apotegma
– ultra equinotialem non peccavi – que Barlaeus engenhou para os desmandos
da época colonial.
Os mesmos amazonenses, espirituosamente, o perceberam. À entrada de
Manaus existe a belíssima Ilha de Marapatá – e essa ilha tem
uma função alarmante. É o mais original dos lazaretos
– um lazareto de almas! Ali, dizem, o recém-vindo deixa a consciência…
Meça-se o alcance dêste prodígio da fantasia popular.
A ilha que existe fronteira à bôca do Purus, perdeu o antigo
nome geográfico e chama-se “Ilha da Consciência”; e
o mesmo acontece a uma outra, semelhante, na foz do Juruá. É
uma preocupação: o homem, ao penetrar as duas portas que levam
ao paraíso diabólico dos seringais, abdica às melhores
qualidades nativas e fulmina-se a si próprio, a rir, com aquela ironia
formidável.
É que, realmente, nas paragens exuberantes das heveas e castilloas,
o aguarda a mais criminosa organização do trabalho que ainda
engenhou o mais desaçamado egoísmo.
De feito, o seringueiro – e não designamos o patrão opulento,
senão o freguês jungido à gleba das “estradas”
-, o seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha
para escravizar-se.
Demonstra-se esta enormidade precitando-a com alguns cifrões secamente
positivos e seguros.
Vêde esta conta de venda de um homem:
No próprio dia em que parte do Ceará, o seringueiro principia
a dever: deve a passagem de proa até ao Pará (35$000), e o dinheiro
que recebeu para preparar-se (150$000). Depois vem a importância do
transporte, num “gaiola” qualquer de Belém ao barracão
longínquo a que se destina, e que é, na média, de 150$000.
Aditem-se cêrca de 800$000 para os seguintes utensílios invariáveis:
um boião de furo, uma bacia, mil tigelinhas, uma machadinha de ferro,
um machado, um terçado, um refle (carabina Winchester) e duzentas balas,
dois pratos, duas colheres, duas xícaras, duas panelas, uma cafeteira,
dois carretéis de linha e um agulheiro. Nada mais. Aí temos
o nosso homem no “barracão” senhoril, antes de seguir para
a barraca, no centro, que o patrão lhe designará. Ainda é
um “brabo”, isto é, ainda não aprendeu o “corte
da madeira” e já deve 1:135$000. Segue para o pôsto solitário
encalçado de um comboio levando-lhe a bagagem e víveres, rigorosamente
marcados, que lhe bastem para três meses: 3 paneiros de farinha de água,
1 saco de feijão, outro, pequeno, de sal, 20 quilos de arroz, 30 de
xarque, 21 de café, 30 de açúcar, 6 latas de banha, 8
libras de fumo e 20 gramas de quinino. Tudo isto lhe custa cêrca de
750$000. Ainda não deu um talho de machadinha, ainda é o “brabo”
canhestro, de quem chasqueia o “manso” experimentado, e já
tem o compromisso sério de 2:090$000.
Admitamos agora uma série de condições favoráveis,
que jamais concorrem: a) que seja solteiro; b) que chegue à barraca
em maio, quando começa o “corte”; c) que não adoeça
e seja conduzido ao barracão, subordinado a uma despesa de 10$000 diários;
d) que nada compre além daqueles víveres – e que seja sóbrio,
tenaz, incorruptível; um estóico firmemente lançado no
caminho da fortuna arrostando uma penitência dolorosa e longa. Vamos
além – admitamos que, malgrado a sua inexperiência, consiga tirar
logo 350 quilos de borracha fina e 100 de sernambi, por ano, o que é
difícil, ao menos no Purus.
Pois bem, ultimada a safra, êste tenaz, êste estóico, êste
indivíduo raro ali, ainda deve. O patrão é, conforme
o contrato mais geral, quem lhe diz o preço da fazenda e lhe escritura
as contas. Os 350 quilos remunerados hoje a 5$000 rendem-lhe 1:750$000; os
100 de sernambi, a 2$500, 250$000. Total 2:000$000.
É ainda devedor e raro deixa de o ser. No ano seguinte já é
“manso”: conhece os segredos do serviço e pode tirar de 600
a 700 quilos. Mas considere-se que permaneceu inativo durante todo o período
da enchente, de novembro a maio _ sete meses em que a simples subsistência
lhe acarreta um excesso superior ao duplo do que trouxe em víveres,
ou seja, em números redondos, 1:500$000 – admitindo-se ainda que não
precise renovar uma só peça de ferramenta ou de roupa e que
não teve a mais passageira enfermidade. É evidente que, mesmo
nêste caso especialíssimo, raro é o seringueiro capaz
de emancipar-se pela fortuna.
Agora vêde o quadro real. Aquêle tipo de lutador é excepcional.
O homem de ordinário leva àqueles lugares a imprevidência
característica da nossa raça; muitas vêzes carrega a família,
que lhe multiplica os encargos; e quase sempre adoece, mercê da incontinência
generalizada.
Adicionai a isto o desastroso contrato unilateral, que lhe impõe o
patrão. Os “regulamentos” dos seringais são a êste
propósito dolorosamente expressivos. Lendo-os, vê-se o renascer
de um feudalismo acalcanhado e bronco. O patrão inflexível decreta,
num emperramento gramatical estupendo, coisas assombrosas.

Por exemplo: a pesada multa de 100$000 comina-se a êstes crimes abomináveis:
a) ‘fazer na árvore um corte inferior ao gume do machado”;
b) “levantar o tampo da madeira na ocasião de ser cortada”;
c) “sangrar com machacinhas de cabo maior de quatro palmos”.

Além disto o trabalhador só pode comprar no armazém
do barracão, “não podendo comprar a qualquer outro, sob
pena de passar pela multa de 50% sôbre a importância comprada”.
Farpeiem-se de aspas êstes dizeres brutos. Ante êles é
quase harmoniosa a gagueira terrível de Caliban.
É natural que ao fim de alguns anos o “freguês” esteja
irremediàvelmente perdido. A sua dívida avulta ameaçadoramente:
três, quatro, cinco, dez contos, às vêzes, que não
pagará nunca. Queda, então, na mórbida impassibilidade
de um felá desprotegido dobrando tôda a cerviz à servidão
completa. O “regulamento” é impiedoso: “Qualquer “freguês”
ou “aviado” não poderá retirar-se sem que liqüide
tôdas as suas transações comerciais…” Fugir? Nem
cuida em tal. Aterra-o o desmarcado da distância a percorrer. Buscar
outro barracão? Há entre os patrões acôrdo de não
aceitarem, uns os empregados de outros, antes de saldadas as dívidas,
e ainda há pouco tempo houve no Acre numerosa reunião para sistematizar-se
essa aliança, criando-se pesadas multas aos patrões recalcitrantes.
Agora, dizei-me, que resta, no fim de um qüinqüênio, do aventuroso
sertanejo que demanda aquelas paragens, ferretoado da ânsia de riquezas?
Não o ligam sequer à terra. Um artigo do famoso “regulamento”
torna-o eterno hóspede dentro da própria casa. Citemo-lo com
todo o brutesco de sua expressão imbecil e feroz: “Tôdas
as benfeitorias que o liqüidado tiver feito nesta propriedade perderá
totalmente o direito uma vez que retire-se.”
Daí o quadro doloroso que patenteiam, de ordinário, as pequenas
barracas. O viajante procura-as e mal descobre, entre as sororocas, a estreitíssima
trilha que conduz à vivenda, meio afogada no mato. É que o morador
não despende o mais ligeiro esfôrço em melhorar o sítio
de onde pode ser expelido em uma hora, sem direito à reclamação
mais breve.
Esta resenha comportaria alguns exemplos bem dolorosos. Fôra inútil
apontá-los. Dela ressalta impressionadoramente a urgência de
medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que
nobilite o esfôrço do homem; uma justiça austera que lhe
cerceie os desmandos; e uma forma qualquer do homestead que o consorcie definitivamente
à terra.

Rios em Abandono

O geógrafo norte-americano Morris Davis revelou o “ciclo vital”
dos rios. Era uma concepção revolucionária; e não
houve cientista jungido à enfezada geografia descritiva, dominante
ainda entre nós, que se não escandalizasse ante o conceito desassombrado
do yankee. Mas o antagonismo foi passageiro e frágil. Uma simples monografia,
Rivers and Valleys of Pennsylvania, deslocou, de golpe, desde 1889, tôda
a fortaleza inerte da rotina; e firmou um nôvo rumo ao critério
geográfico, não já apenas pelo associar à forma
a estrutura dos terrenos, completando os facies inexpressivos das superfícies
com os elementos geológicos, senão também esclarecendo
a gênese dos mais breves acidentes e descobrindo nas linhas pinturescas
da móvel fisionomia da terra a expressão eloqüente das
energias naturais que a modelaram e sem cessar a transfiguram. Por fim ninguém
mais estranhou que Morris Davis, impelido aos últimos corolários
da nova doutrina, se abalançasse a uma espécie de fisiologia
monstruosa e descrevesse dramàticamente as complexas vicissitudes da
existência milenária dos fartos cursos de águas, mostrando-no-los
com uma infância irrequieta, uma adolescência revôlta, uma
virilidade equilibrada e uma velhice ou uma decrepitude melancólica,
como se êles fôssem estupendos organismos sujeitos à concorrência
e à seleção, destinados ao triunfo, ou ao aniquilamento,
consoante mais ou menos se adaptam às condições exteriores.
Não acompanharemos o genial biógrafo dos rios pensilvânicos
no explanar a teoria admirável, que é o caso impressionador
de uma entrada triunfante – ou de uma rush atrevida – da imaginação
e da fantasia nos remansos da ciência. Baasta-nos notar que ela foi
aceita em tôda a linha e é infrangível, esteando-se em
dados indutivos e seguros.
Tôdas as caudais, de feito, atravessam períodos inevitáveis,
de ritmos uniformes e constantes, malgrado a variabilidade do teatro em que
se operam: a princípio indecisas, errantes e frágeis, derivando
ao acaso, ao viés dos pendores, como à procura de um berço
em cada dobra do chão, e acumulando-se nos numerosos lagos, incoerentemente
esparsos, onde repousam; depois, definidas nas primeiras linhas de drenagem
mais estáveis e fundas para onde convergem, adensadas, as chuvas, formando-se
o aparelho das correntes, reprofundando-se os leitos esboçados e iniciando-se
com a energia tumultuária das cachoeiras o choque secular com as asperezas
da terra, longo tempo; até que, extintos os empeços estruturais,
estabelecido um leito e definido um traçado, o rio se constitua, com
os seus afluentes fixos, um declive contínuo em curvaturas regulares,
um talvegue ajustado à contextura do solo e à diferenciação
morfológica que lhe reflete a um tempo os seus vários estádios
– das cabeceiras onde perduram as águas selvagens do antigo regime
torrencial, ao curso médio que lhe caracteriza a situação
presente, e ao trecho inferior, prefigurando-lhe a decrepitude, onde êle
se espraia repousadamente e constrói pela colmatagem das vasas que
acarreta com velocidade insensível, a própria planície
aluvial em que descansa.
É a fase de madureza. O rio está na plenitude da vida, depois
da molduragem complexa de todos os relevos. Atinge-a rematando um esfôrço
pertinaz, que é por vêzes tôda a história geológica
da região.
Não houve um ponto em todo o percurso de centenares ou de milhares
de quilômetros que êle não atacasse, um grão de
areia que não removesse, balanceando as escavações a
montante com os aterros a jusante – construindo-se a si mesmo – obediente
à tendência universal para as situações estáveis.
Adquiriu, por fim, o seu perfil longitudinal de equilíbrio, e êste,
ainda abrupto nas vertentes, onde a correnteza é máxima e o
volume mínimo, vem contìnuamente amortecendo-se, em sucessivo
decair de declive, até ao quase horizontalismo no nível de base,
da foz, onde aquêles elementos se invertem, resultando o equilíbrio
dinâmico do sistema da relação inversa entre as massas
liqüidas e as velocidades que se arrastam.
Como quer que seja, desde que alcança êste período, todos
os elementos do seu talvegue, projetados em plano vertical, desenham-se com
a forma aproximada de um ramo de desmedida parábola, de concavidade
volvida para as alturas.
Assim se traduz geomètricamente um fato mecânico complexo. E
bem que a tendência para aquela figura seja em geral perturbada ou extinta
nas camadas de resistência variável, onde as rochas desvendadas
originam o antagonismo das cachoeiras, é inegável que a curva
parabólica se delineia nos terrenos homogêneos como sendo a forma
definitiva da secção longitudinal de todos os rios no remate
de suas vicissitudes evolutivas.

* * *

O Purus é um dos melhores exemplos.
Desenhando-se-lhe o perfil em tôda a extensão itinerária
de 3210 quilômetros que vai da embocadura no Solimões aos últimos
manadeiros do Ribeirão Pucani, na serrania deprimida e sem nome que
separa as maiores bacias hidrográficas da Terra, chega-se muito aproximadamente
àquele ramo de parábola.
Pelo menos nenhuma outra curva o definirá melhor.
Demonstra-o êste quadro onde os vários trechos se sucedem de
modo a acompanhar-se em todo o seu percurso a queda regularíssima das
águas:

SECÇÕES Distâncias Diferenças Declividade Declive

itinerárias de nível geral quilométrico
(Km) (metros) (metros)
Das nascentes ao Curiuja 117 189 1/619 1,60
Do Curiuja a Curanja 278 60 1/4500 0,22
De curanja à foz do Chandless 304 49 1/6500 0,16
Do Chandless à foz do Iaco 300 39 1/7700 0,13
Do Iaco ao Acre 237 27 1/8700 0,115
Do Acre ao Pani 233 20 1/11000 0,085
Do Pani ao Mucuím 740 58 1/12900 0,077
Do Mucuím ao Solimões 990 15 1/66700 0,015

Aí só há um dado vacilante: o que resulta da diferença
de nível nos pontos extremos do último trecho. Deduzimo-lo adotando
um mínimo de 18 metros para altura da foz do Purus, sôbre o nível
do mar, quando ela é certamente maior e mais favorável, portanto,
às nossas conclusões. Os demais elementos, devemo-los aos trabalhos
de William Chandless e às nossas observações recentes.
Ora, ao mais rápido lance de vistas, e sem que se exija um desenho
facílimo, verifica-se que o grande rio, atravessando um terreno homogêneo
e mais ou menos impermeável, subordinado a um declive que, apesar de
diminuto, é dominante na vasta planura, onde as chuvas se distribuem
com regularidade incomparável – é dos que mais se adaptam às
condições teóricas indicadas por Morris Davis; e no ultimar
a sua evolução geológica retrata-se admiràvelmente
na parábola majestosa de que tratamos há pouco.
No estudar o seu regime geral vamos, portanto, com a firmeza de quem discute
a equação de uma curva.
Assim, considerando o primeiro trecho, aquela declividade de 1,60m por quilômetro,
tão diversa da que se lhe sucede, de 0,22m, diz-nos para logo, dispensando
o exame local, que o verdadeiro Alto-Purus – demarcado oficialmente a partir
da bôca do Acre, e estendido por alguns geógrafos ainda mais
para jusante – principia de fato muito além, a 3079 quilômetros
da foz, na confluência do Cujar e do Curiuja, os dois tributários
em que êle se reparte numa dicotomia perfeita, perdendo o nome e esgalhando-se
largamente fracionado pelos mais remotos pontos da sua vasta bacia de captação.
Por outro lado, o declive real de mal se aproxima da conhecida relação
firmada como o limite mínimo das vertentes torrenciais.
Conclui-se, então, de pronto, que o rio, até no seu último
segmento, onde é sempre mais difícil e remorada a regularização
dos leitos, está numa fase avançadíssima de desenvolvimento.
É o caso excepcional de uma grande artéria, entre as maiores
existentes, capaz de ser navegada nas mais extremas nascentes, durante as
cheias que lhe encubram os numerosos degraus das corredeiras – porque em tal
quadra, admitindo que as águas subam de três metros numa calha
de dez, com aquêle declive, que corresponde a 0,0015m por metro, o simples
emprêgo da fórmula de D’Aubuisson, nos diz que as corrrentes
derivarão com a velocidade máxima de apenas 2,20m, fàcilmente
balanceada por uma lancha veloz.
Ora, estas deduções resultantes de breve contemplação
de um quadro tão expressivo que dispensa o diagrama correspondente,
ressaltam, vivamente, às mais incuriosas vistas de observador escoteiro,
que ali passe depois de varar a planura amazônica num itinerário
de quinhentas léguas.
De fato, o que sobremaneira o impressiona é o espetáculo da
terra profundamente trabalhada pelo indefinido e incomensurável esfôrço
dos formadores do rio. Chega, depois de trilhar o canyon coleante do Pucani,
ao sopé das últimas vertentes; defronta a clivosa escarpa de
uma corda insignificante de cerros deprimidos; vinga-lhe em três minutos
a altura relativa de sessenta metros escassos – e não acredita que
esteja na fronteira hidrográfica mais extraordinária do globo,
podendo ir de uma passada única do Vale do Amazonas ao Vale do Ucaiáli…
A altura em que se vê não lhe basta a desapertar os horizontes,
ou a atalaiar as distâncias. É inapreciável. Não
há abrangê-la com a escala mais favorável dos mapas. E
sem dúvida jamais compreenderia tão indeciso divortium aquarum
a tão opulentas artérias, se ao buscar aquêles rincões,
varando, ao arrepio das itaipavas, por dentro das calhas reprofundadas do
Cujar, do Cavaljane e do Pucani, o observador se não habituasse a contemplar,
longos dias, os mais enérgicos efeitos da dinâmica poderosa das
águas que transmudaram a paragem outrora mais em relêvo e dominante.
Não lhe importa a inópia de conhecimentos paleontológicos
ou a carência de fósseis norteadores. Está, evidentemente,
sôbre a ruinaria de uma sublevação quase extinta, cujo
sinclinal êle pôde reconstruir, prolongando as linhas dos estratos
que afloram nos sulcos onde se encaixam aquêles últimos tributários,
denunciando todos na tranqüilidade relativa, quase remansados nos intervalos
de suas corredeiras (restos de velhíssimas catadupas destruídas),
a derradeira fase de uma luta em que o Purus, para alongar a sua seção
de estabilidade, teve que derruir montanhas. Pelo menos a atividade erosiva
e o volume de materiais arrebatados de todos aquêles pendores, foram
incalculáveis, para que as linhas de drenagem se abatessem até
aos substrato rochoso e declinasse, como vimos, aos graus apropriados aos
cursos navegáveis.
Apesar disto, a transição para o trecho seguinte ainda é
repentina. Passa-se da declividade quilométrica de 4,60m, para a de
0,22m.
Mas é o único salto. Daí por diante, como o revela o
quadro anterior, até ao último segmento extremado pela foz,
onde para descer-se um metro se tem de caminhar 66,700, a atenuação
dos declives prossegue com uma regularidade perfeita, incluindo o Purus entre
as caudais de todo regularizadas, cujo “ciclo vital” progressivo
vai cerrrando-se.
Não aprofunda mais o leito. Os próprios afloramentos de grés
(Parasandstein) aparecendo nas vazantes, dispersos entre Huitanaã e
a embocadura do Acre, e dali para cima ainda mais raros até pouco além
do Iaco, reforçam a afirmativa, bem que na aparência a invalidem.
Restos de antigas corredeiras desmanteladas surgem como testemunhos das erosões
primitivas e não provocam, em geral, o mínimo desnivelamento.
O pequeno povoado da Cachoeira, que se erige defrontando um trecho tranqüilo
do rio, tem o mais impróprio dos nomes, expressivo apenas no recordar
um acidente perdido em remoto passado geológico e do qual perduram
apenas alguns blocos desordenadamente acumulados em minúsculos recifes,
e breves “travessões”. Ali, como nos outros trechos, o mesmo
quadro da terra estirando-se, complanada, pelos quadrantes, ou docemente ondulada
denunciando a mais completa molduragem, associa-se aos demais caracteres no
sugerir a derradeira fase do processo evolutivo do vale.
Um elemento apenas falta: a regularidade na sucessão das curvas de
nível das vertentes imediatas às margens, que se fronteiam.
Qualquer seção transversal do Purus representa as mais das vêzes
uma praia deprimida que mal se alteia vagarosamente até ao rebordo
longínquo da planície pouco elevada, contraposta a uma barranca
despenhada, como a da margem oposta à bôca do Chandless, ou caindo
às vêzes a prumo, feito uma muralha, como na situação
admirável do Catai.
É que à imutabilidade daquele perfil de equilíbrio se
antepões a variabilidade da sua planta, em escala capaz de justificar
os que o incluem entre os rios “cujos leitos e margens não estão
sequer delineados em seus perfis de estrutura definida a assente”.
Realmente, o Purus, um dos mais tortuosos cursos d’água que se
registram, é também dos que mais variam de leito. Divaga, consoante
o dizer dos modernos geógrafos. A própria velocidade diminuta,
que adquiriu e vai decrescendo sempre até ao quase rebalsamento, nas
cercanias da foz, aliada à inconsistência dos terrenos aluvianos,
formados por êle mesmo com os materiais conduzidos das nascentes, determina-lhe
êste caráter volúvel. Às suas águas, derivando
em correntezas fracas, falta a quantidade de movimento necessária às
direções intorcíveis. O mínimo obstáculo
desloca-as. Um tronco de samaúma que tombe de uma das margens, abarreirando-se
ligeiramente, desvia o empuxo da massa líqüida contra a outra,
onde de pronto se exercita, menos em virtude da fôrça viva da
corrente que da incoerência das terras, intensíssima erosão
de efeitos precipitados.
A indecisa arqueadura, que logo se forma, circularmente, se acentua, e, à
medida que aumenta, vai tornando mais violentos os ataques da componente centrífuga
da correnteza que lhe solapa a concavidade crescente, fazendo que em poucos
anos todo o rio se afaste, lateralmente, do primitivo rumo. Mas como êste
se traçou adscrito aos pontos determinantes de um perfil de equilíbrio
inviolável, aquêle desvio nunca é uma bifurcação,
ou definitiva mudança. O rio, depois de rasgar o amplo círculo
de erosão, procura volver ao antigo canal, como quem contorneou apenas
um obstáculo encontrado em caminho.
O círculo por onde êle se alonga tende a fechar-se. De sorte
que tôda a área de terrenos abrangidos se transmuda em verdadeira
peníncula, ligada por um istmo tão delgado, às vêzes,
que o caminhante o atravessa em minutos, enquanto gasta um dia inteiro de
viagem, embarcado, para perlongar o contôrno da terra quase insulada.
Por fim esta se destaca, ilhando-se de todo. No sobrevir de uma enchente o
Purus despedaça a frágil barreira do istmo; e retoma, de golpe,
o primitivo curso, deixando à margem, a relembrar o desvio por onde
divagou, um lago anular, não raro amplíssimo. Prossegue. Reproduz
adiante outros meandros caprichosos, completados sempre pela criação
dos mesmos lagos, ou “sacados”. E assim vai – perpètuamente
oscilante aos lados de seu eixo invariável – num ritmo perfeito, refletindo
o jogar de leis mecânicas capazes de se sintetizarem numa fórmula,
que seria a tradução analítica de curioso movimento pendular
sôbre um plano de nível.
Desta maneira, ali se resolve naturalmente um dos mais sérios problemas
de hidráulica fluvial. De fato, aquêles lagos são verdadeiros
diques, funcionando com um duplo efeito: de um lado impedem as inundações
devastadoras, absorvendo os excessos das cheias transbordantes; de outro lado,
regulam o regime das águas, durante as grandes estiagens, em que se
abrem por si mesmos, automàticamente, “estourando”, para
usar uma expressão local, e restituindo ao rio empobrecido da vazante
parte das massas líqüidas que economizaram.
Não se calcula o valor dêstes trabalhos colossais da natureza.
Revela-no-los bem um confronto expressivo. Os hidráulicos franceses
que averbaram em 1856, como pormenor inverossímil, uma subida de 10,90m,
das águas do Garona, originando uma das inundações mais
funestas que têm ocorrido na Europa, – certo não compreenderiam
a própria existência do vasto território amazônico
convizinho ao Purus (que vale cêrca de cinqüenta Garonas cheios)
se soubessem que êle se alteia 15 metros na foz, onde tem uma milha
de largo, e que dali a montante as águas tufam num crescendo espantoso
até 23 metros sôbre as estiagens, na confluência do Acre.
No entanto estas enchentes são inócuas.
A massa líqüida, inflada logo às primeiras chuvas, sobe,
galgando velozmente as barrancas, e em poucos dias vai bater nos esteios dos
barracões eretos nos “firmes” mais altos do terreno… e
todo êste dilúvio em marcha não acachoa, não tumultua,
não se arremessa em correntezas vertiginosas, não enleia as
embarcações torcendo-as nas espirais vibrantes dos remoinhos
e não devasta a terra. Difunde-se; extingue-se silenciosamente; perde-se
inofensivo naqueles milhares de válvulas de segurança; e espraiando-se,
raso, pelo chão das matas, ou espalmando-se, desafogadamente, em desmarcadas
superfícies onde repontam, salteadas, as últimas ramas floridas
dos igapós afogados, vai, ao contrário, regenerando aquela mesma
terra, e reconstruindo-a porque a torna de ano em ano mais elevada com a colmatagem
perfeita de tôda a vasa que acarreta.
Assim, em tôda aquela planura, o notável afluente amazônico,
serpenteando nas inumeráveis sinuosas que lhe tornam as distâncias
itinerárias duplas das geográficas, inclui-se entre os mais
interessantes “rios trabalhadores”, construindo os diques submersíveis
que o aliviam nas enchentes – e lhe repontam, intermitentemente às
duas bandas, ora próximos, ora afastados, salpintando tôdas as
várzeas ribeirinhas, e avultando maiores e mais numerosos à
medida que se desce, e se amortecem os declives, até a larga baixada
centralizada em Canutama onde as grandes águas tranqüilas derivam
majestosamente, equilibradas, sulcando de meio a meio a vastidão de
nível de um mediterrâneo esparso.

* * *

Mas esta formação de lagos ou reservatórios naturais,
cuja função benéfica vimos de relance, acarreta inconvenientes
de tal porte, que tornam, por vêzes, em alguns pontos, quase impenetrável
uma artéria fluvial que pelos elementos privilegiados de seu perfil
concorre com as mais acessíveis à navegação regular.
Realmente nesse afanoso derruir de barrancas, para torcer-se em seus incontáveis
meandros, o Purus entope-se com as raízes e troncos das árvores
que o marginam.
Às vêzes é um lanço unido, de quilômetros,
de “barreira”, que lhe cai de uma vez e de súbito em cima,
atirando-lhe, desarraigada, sôbre o leito, uma floresta inteira.
O fato é vulgaríssimo. Conhecem-no todos os que por ali andam.
Não raro o viajante, à noite, desperta sacudido por uma vibração
de terremoto, e aturde-se apavorado ouvindo logo após o fragor indescritível
de miríades de frondes, de troncos, de galhos, entrebatendo-se, rangendo,
estalando e caindo todos a um tempo, num baque surdo e prolongado, lembrando
o assalto fulminante de um cataclismo e um desabamento da terra.
São, de fato, “as terras caídas”, das quais resultam
sempre duas sortes de obstáculos: de um lado o inextricável
acervo de galhadas e troncos, que se entrecruzam à superfície
d’água, ou irrompem em pontas ameaçadoras, do fundo; e
de outro as massas argilosas, ou argilo-arenosas que a corrente pouco veloz
não dissolve, permitindo-lhes acumularem-se nas minúsculas ilhotas
dos “torrões”, ou, mais prejudiciais, nos rasos bancos compactos
dos “salões”, impropriando a passagem aos mais diminutos
calados.
Não precisamos insistir neste fato.
A sua gravidade é intuitiva. E considerando-se que êle se reproduz
em tôda a extensão de 480 quilômetros, que vai da embocadura
ao Iaco à do Curiuja, onde se acumulam cada vez mais aquêles
entraves, indefinidamente crescentes, chega-se a concluir que o Purus, depois
de haver conseguido um dos mais regulares perfis de tôda a hidrografia
e de aparelhar-se com os melhores elementos predispostos a uma rara fixidez
de regime, erigindo-se modêlo admirável entre as caudais mais
bem talhadas à grande navegação – está, agora,
a pouco e pouco perdendo a maior parte dos seus resquisitos superiores, com
o progredir de um atravancamento em larga escala, que o tornará mais
tarde inteiramente impenetrável.
Dizemo-lo baseando-nos em penosa experiência culminada por um naufrágio.
Sobretudo além da embocadura do Chandless, multiplicam-se tanto êstes
empecilhos de todo estranhos à “tectônica” especial
do rio, que em longos “estirões”, com a profundidade média
de cinco a seis pés, nas vazantes, onde passariam carregadas as mais
poderosas lanchas, mal pode deslizar uma montaria ligeira. Escusamo-nos de
exemplificar alongando estas considerações ligeiras. Notemos
apenas que a partir do tributário precitado até a bifurcação
Cujar-Curiuja, o Purus em vários lugares parece correr por cima de
uma antiga derrubada. Vai-se como entre os galhos estonados e revoltos de
uma floresta morta. E se observarmos que, além dos empeços em
si mesmas encerrados, estas tranqueiras, rebalsando as águas que se
filtram entre os ramos unidos, facilitam a formação de tôda
a sorte de baixios, compreender-se-á em tôda a sua latitude o
progredimento contínuo dessa obstrução prejudicialíssima.
Porque os homens que ali mourejam – o caucheiro peruano com as suas tanganas
rijas, nas montarias velozes, o nosso seringueiro, com os varejões
que lhe impulsionam as ubás, ou o regatão de tôdas as
pátrias que por ali mercadeja nas ronceiras alvarengas arrastadas à
sirga – nunca intervêm para melhorar a sua única e magnífica
estrada; passam e repassam nas paragens perigosas; esbarram mil vêzes
a canoa num tronco caído há dez anos junto à beira de
um canal; insinuam-se mil vêzes com as maiores dificuldades numa ramagem
revôlta barrando-lhes de lado a lado o caminho, encalham e arrastam
penosamente as canoas sôbre os mesmos “salões” de argila
endurecida; vêzes sem conta arriscam-se ao naufrágio, precipitando,
ao som das águas, as ubás contra as pontas duríssimas
dos troncos que se enristam invisíveis, submersos de um palmo – mas
não despendem o mínimo esfôrço e não despedem
um golpe único de facão ou de machado num só daqueles
paus, para desafogar a travessia.
As lanchas, e até os vapores, que ali vão aparecendo mais a
miúdo, à medida que avultam as safras dos cento e vinte opulentos
seringais que já se abriram acima da confluência do Iaco, viajam,
invariàvelmente, nas quadras favoráveis das cheias, quando aquêles
entraves se afogam em alguns metros de fundo.
Sobem, velozes, o rio; descarregam, precipitadamente, em vários pontos
as mercadorias consignadas; carregam-se de borracha; e tornam logo, precípites,
águas abaixo, fugindo. Apesar disto, algumas não se forram a
repentinas descidas de nível, prendendo-as. E lá se ficam, longos
meses – esperando a outra enchente, ou o inesperado de um “repiquete”
propício, invernando paradoxalmente sob as soalheiras caniculares –
nas mais curiosas situações: ora em pleno rio, agarradas pelos
centenares de braços das árvores sêcas, que as imobilizam;
ora a meio da barranca, onde as surpreendeu a vazante, grosseiramente especadas,
encombentes, com as proas afocinhando, inclinadas, em riscos permanentes de
queda; ora no alto de uma barreira, como autênticos navios-fantasmas,
aparecendo, de improviso e surpreendedoramente, em plena entrada da mata majestosa.
O contraste desta navegação com as admiráveis condições
técnicas imanentes ao rio é flagrante. O Purus – e como êle
todos os tributários meridionais do Amazonas, à parte o Madeira
– está inteiramente abandonado.
Entretanto o simples enunciado dêstes inconvenientes, evidentemente
alheios às suas admiráveis condiões estruturais, delata
que a remoção dêles, embora demorada, não demanda
trabalhos excepcionais de engenharia e excepcionais dispêndios.
O que resta fazer, ao homem, é rudimentar e simples.
Os grandes, os sérios problemas de hidráulica fluvial que ali
houve, resolveu-os o próprio rio agindo no jôgo harmonioso das
forças naturais que o modelaram.
E êles representam um trabalho incalculável. O Purus é
uma das maiores dádivas entre tantas com que nos esmaga uma natureza
escandalosamente perdulária.
Vejamo-lo, de relance.
Tôda a hidráulica fluvial parece ter nascido entre os leitos
do Garona e do Loire, tais e tantos os monumentos que ali levantou a engenharia
francesa. Nunca o homem arremeteu com tamanha pertinácia o brilho com
a brutalidade dos elementos. Os romanos transfigurando a Argélia e
os holandêses construindo a Holanda, emparelham-se bem com os abnegados
profissionais que durante um século, impassíveis ante sucessivos
reveses, se devotaram à emprêsa exaustiva de paralisar torrentes,
de atenuar inundações e de encadear avalanchas, na dupla tentativa
de facilitar a navegação e de proteger os territórios
ribeirinhos.. E todo êsse magnífico esfôrço em que
se imortalizaram Deschamps, Dieulafoy e Belgrand, resuktou em grande parte
inútil. Inútil ou contraproducente. Os primores da engenharia
estragaram o Loire.
Os diques submersíveis ou insubmersíveis destinados a salvarem
as povoações, os canais de socorro que se lhes anexavam, as
margens artificiais ladeando em dezenas de quilômetros o leito menor
das caudais, os enrocamentos antepostos às erosões, as barragens
antepostas às correntezas – tinham em geral a duração
efêmera dos seis meses da estiagem, tal a inconstância irreparável
daquelas artérias.
Por fim engenharam-se estupendos reservatórios alcandorados nos Pireneus,
escalonando-se por todos os pendores, para armazenar as inundações.
E armazenavam catástrofes – rompendo-se-ljes os muros, de onde saltavvam
as ondas despenhadas varrendo povoados inteiros…
Mas ainda quando estas ruturas dos reservatórios compensadores não
formassem os episódios mais dramáticos da história da
engenharia, e êles pudessem erigir-se estáveis e sem riscos,
nós, quaisquer que fôssem os nossos esforços e os nossos
dispêndios, jamais os construiríamos como no-los construiu o
Purus.
Considere-se, para isto, êste exemplo. Duponchel, para dar ao Neste
– um pequeno rio com a despesa média de 25 metros cúbicos –
um modêlo constante, que lhe amortecesse as inundações,
calculou um reservatório de 300.000.000.000 de litros e recuou antte
o algarismo colossal.
Ora, o Neste é três vêzes menor que o Iaco, que, entretanto,
não se inclui entre os maiores afluentes do Purus.
Diante dêstes dados formidáveis põe-se de manifesto que
a construção de reservatórios compensadores no grande
rio seria o mesmo que fazer um mar; e conclui-se que os existentes, numerosíssimos,
às suas margens, representam um capital inestimável e acima
dos mais ousados orçamentos.
Precisamos ao menos conservá-lo. Aproveitemos uma lição
velha de um século. O Mississipi, que no seu curso inferior retrata
o traçado do Purus com a exação de um decalque, era,
pelas mesmas causas, ainda mais inçado de empecilhos, tornando-o quase
impenetrável e em muitos lugares de todo intransponível. Alguns
dos seus tributários não estavam apenas trancados: desapareciam,
literalmente, sob os abatises.
No entanto o grande rio, hoje transfigurado, desenha-se como um dos traços
mais vivos da pertinácia norte-americana.
Lá está, porém, no seu vale, em um de seus afluentes,
o Rio Vermelho, um caso desalentador. É um rio perdido. O yankee descobriu-o
tarde demais. A desmedida tranqueira, the great raft, exatamente formada como
as que estão formando-se no Purus, estira o labirinto de seus madeiros
e das suas frondes mortas por 630 quilômetros – e lá está,
indestrutível, depois de desafiar durante vinte e dois anos os maiores
esforços para uma desobstrução impossível.
Estabelecida a proporção entre aquêle rio minúsculo
e o Purus, entre nós e os norte-americanos, aquilatam-se as dificuldades
que nos aguardarão, se progredirem os obstáculos apontados,
e cuja remoção atual, completando-se com a defesa, embora rudimentar,
das margens mais ameaçadas pelas erosões, é ainda de
relativa facilidade. Ao mesmo passo se atenuarão consideràvelmente
as “divagações” precitadas, que constituem verdadeira
anomalia num rio aparelhado de um perfil de estabilidade demonstrável
até geomètricamente, como vimos.
De qualquer modo urge iniciar-se desde já modestíssimo, mais
ininterrupto, passando de govêrno a govêrno, numa tentativa persistente
e inquebrantável, que seja uma espécie de compromisso de honra
com o futuro, um serviço organizado de melhoramentos, pequeno embora
em comêço, mas crescente com os nossos recursos – que nos salve
o majestoso rio.
Von den Stein, com a agudeza irrivalizável de seu belo espírito,
comparou, algures, pinturescamente, o Xingu a um “enteado” da nossa
geografia.
Estiremos o paralelo.
O Purus é um enjeitado.
Precisamos incorporá-lo ao nosso progresso, do qual êle será,
ao cabo, um dos maiores fatôres, porque é pelo seu leito desmedido
em fora que se traça, nestes dias, uma das mais arrojadas linhas da
nossa expansão histórica.

Um clima caluniado

Na definição climática das circunscrições
territoriais criadas pelo Tratado de Petrópolis tem-se incluído
sempre um elemento curiosíssimo, ante o qual o psicólogo mais
rombo suplanta a competência do Professor Hann, ou qualquer outro mestre
em coisas meteorológicas: o desfafflecimento moral dos que para lá
seguem e levam desde o dia da partida a preocupação absorvente
da volta no mais breve prazo possível. Cria-se uma nova sorte de exilados
– o exilado que pede o exílio, lutando por vêzes para o conseguir,
repelindo outros concorrentes, ao mesmo passo que vai adensando na fantasia
alarmada as mais lutuosas imagens no prefigurar o paraíso tenebroso
que o atrai.
Parte, e leva no próprio estado emotivo a receptividade a tôdas
as moléstias.
Atravessa quinze dias infindáveis a contornear a nossa costa. Entra
no Amazonas. Reanima-se um momento ante a fisionomia singular da terra; mas
para logo acabrunha-o a imensidade deprimida – onde o olhar lhe morre no próprio
quadro que contempla, certo enorme, mas em branco e reduzido às molduras
indecisas das margens afastadas. Sobe o grande rio; e vão-se-lhe os
dias inúteis ante a imobilidade estranha das paisagens de uma só
côr, de uma só altura e de um só modêlo, com a sensação
angustiosa de uma parada na vida: atônicas tôdas as impressões,
extinta a idéia do tempo, que a sucessão das aparências
exteriores, uniformes, não revela – e retraída a alma numa nostalgia
que não é apenas a saudade da terra nativa, mas da Terra, das
formas naturais tradicionalmente vinculadas às nossas contemplações,
que ali se não vêem, ou se não destacam na uniformidade
das planuras…
Entra por um dos grandes tributários, o Juruá ou o Purus. Atinge
ao seu objetivo remoto; e todos os desalentos se lhe agravam. A terra é,
naturalmente, desgraciosa e triste, porque é nova. Está em ser.
Faltam-lhe à vestimenta de matas os recortes artísticos do trabalho.
Há paisagens curtas que vemos por vêzes, subjetivamente, como
um reflexo subconsciente de velhas contemplações ancestrais.
Os cerros ondulantes, os vales, os litorais que se recortam de angras, e os
próprios desertos recrestados, afeiçoam-se-nos às vistas
por maneira a admitirmos um modo qualquer de reminiscência atávica.
Vendo-os pela primeira vez, temos o encanto de equipararmos o que imaginamos
com o que se nos antolha, numa exteriorização tangível
de contornos anteriormente idealizados.
Ali, não. Desaparecem as formas topográficas mais associadas
à existência humana. Há alguma coisa extraterrestre naquela
natureza anfíbia, misto de águas e de terras, que se oculta,
completamente nivelada, na sua própria grandeza. E sente-se bem que
ela permaneceria para sempre impenetrável se não se desentranhasse
em preciosos produtos adquiridos de pronto sem a constância e a continuidade
das culturas. As gentes que a povoam talham-se-lhe pela braveza. Não
a cultivam, aformoseando-a: domam-na. O cearense, o paraibano, os sertanejos
nortistas, em geral, ali estacionam, cumprindo, sem o saberem, uma das maiores
emprêsas dêstes tempos. Estão amansando o deserto. E as
suas almas simples, a um tempo ingênuas e heróicas, disciplinadas
pelos reveses, garantem-lhes, mais que os organismos robustos, o triunfo na
campanha formidável.
O recém-vindo do Sul chega em pleno desdobrar-se daquela azáfama
tumultuária, e, de ordinário, sucumbe. Assombram-no, do mesmo
lance, a face desconhecida da paisagem e o quadro daquela sociedade de caboclos
titânicos que ali estão construindo um território. Sente-se
deslocado no espaço e no tempo; não já fora da pátria,
senão arredio da cultura humana, extraviado num recanto da floresta
e num desvão obscurecido da História.
Não resiste. Concentra todos os alentos que lhe restam para o só
efeito de permanecer algum tempo, inútil e inerte, no pôsto que
lhe marcaram; mal desempenhando os mais simples deveres; indo-se-lhe os olhos
em todos os vapôres que descem – e o espírito ausente nos lares
afastados, longo tempo, em um exaustivo agitar de apreensões e conjeturas
– até que o sacuda, inesperadamente,, em pleno dia canicular, um súbito
estremeção de frio, delatando-lhe a vinda salvadora, e por vêzes
recônditamente anelada, da febre. E é uma surprêsa gratíssima.
A vida desperta-se-lhe de golpe, naquela cotovelada da morte que passou por
perto. O impaludismo significa-lhe, antes de tudo, a carta de alforria de
um atestado médico. É a volta. A volta sem temores, a fuga justificável,
a deserção que se legaliza, e o mêdo sobredoirado de heroísmo,
desafiando o espanto dos que lhe ouvem o romance alarmante das moléstias
que devastam a paragem maldita.
Porque é preciso coonestar o recuo. Então cada igarapé
sem nome é um Ganges pestilento e lúgubre; e os igapós,
ou os lagos, espalmam-se nas várzeas empantanadas como lagunas Pontinas
incontáveis. Traça-se um quadro nosológico arrepiador
e trágico, num imaginoso fabular de agruras; e, dia a dia, a natureza
caluniada prlo homem vai aparecendo naquelas bandas, ante as imaginações
iludidas, como se lá se demarcasse a paragem clássica da miséria
e da morte…

* * *

O exagêro é palmar. O Acre, ou, em geral, as planuras amazônicas
cindidas a meio pelo longo sulco do Purus, têm talvez a letalidade vulgaríssima
em todos os lugares recém-abertos ao povoamento. Mas consideràvelmente
reduzida.
Demonstra-no-lo um ligeiro confronto.
As Escolas de Medicina Colonial da Inglaterra e da França, revelam-nos,
pelos simples títulos, os resguardos com que se rodeia sempre o transplante
dos povos para os novos habitats. Há esta linha de nobreza no moderno
imperialismo expansionista capaz de absolver-lhe os máximos atentados:
os seus brilhantes generais transmudam-se em batedores anônimos dos
médicos e dos engenheiros; as maiores batalhas fazem-se-lhe simples
reconhecimento da campanha ulterior, contra o clima; e o domínio das
raças incompetentes é o comêço da redenção
dos territórios, num giro magnífico que do Tonquim à
Índia, ao Egito, à Tunísia, ao Sudão, à
Ilha de Cuba, e às Filipinas, vai generalizando em todos os meridianos
a emprêsa maravilhosa do saneamento da terra.
Da terra e do homem. A tarefa é dúplice. Aos conquistadores
tranqüilos não lhes basta o perquirir as causas meteorológicas
ou telúricas das moléstias imanentes aos trechos recém-consquitados,
na escala indefinida que vai das anemias estivais às febres polimorfas.
Resta-lhes o encargo maior de justapor os novos organismos aos novos meios,
corrigindo-lhes os temperamentos, destruindo-lhes velhos hábitos incompatíveis,
ou criando-lhes outros até se construir, por um processo a um tempo
compensador e estimulante, o indivíduo inteiramente aclimado, tão
outro por vêzes nos seus caracteres físicos e psíquicos
que é, verdadeiramente, um indígena artificial transfigurado
pela higiene. Para isto o colono, ou o emigrante, torna-se em tôda a
parte um pupilo do Estado. Todos os seus atos, desde o dia da partida, prefixo
nas estações mais convenientes, aos últimos pormenores
de alimentação, ou de vestir, predeterminam-se em regulamentos
rigorosos. Dentro dos lineamentos largos das características fundamentais
do clima quente para onde êle se desloca, urde-se a trama de uma higiene
individual, onde se prevêem tôdas as necessidades, todos os acidentes
e até os perigos da instabilidadde orgânica inevitável
à fase fisiológica da adaptação a um meio cósmico,
cujo influxo deprimente sôbre o europeu vai da musculatura, que se desfibra,
à própria fortaleza de espírito, que se deprime. Assim
as medidas profiláticas, que começam inspirando-se no estudo
dos fatôres físicos acabam, não raro, prolongando-se em
belíssimo código de moral demonstrada. De permeio com os preceitos
vulgares para o reagir contra a temperatura alta, e a umidade excessiva que
lhe abatem a tensão arteerial e a atividade, lhe trancam as válvulas
de segurança dos poros e lhe fatigam o coração e os nervos,
criando-lhe, ao cabo, a iminência mórbida para os males que se
desdobram do impaludismo que lhe solapa a vida, às dermatoses que lhe
devastam a pele – despontam, mais eficazes e decisivos, os que o aparelham
para reagir aos desânimos, à melancolia da existência monótona
e primitiva; às amarguras crescentes da saudade; à irritabilidade
provinda dos ares intensamente eletrizados e refulgentes; ao isolamento –
e, sobretudo, ao quebrantar-se da vontade numa decadência espiritual
subitânea e profunda, que se afigura a moléstia únida
de tais paragens, de onde as demais se derivam como exclusivos sintomas.
Abra-se qualquer regulamento de higiene colonial. Ressaltam à mais
breve leitura os esforços incomparáveis das modernas missões
e o seu apostolado complexo que, ao revés das antigas, não visam
arrebatar para a civilização a barbaria transfigurada, senão
transplantar, integralmente, a própria civilização para
o seio adverso e rude dos territórios bárbaros.
Nas suas páginas, o que por vêzes nos maravilha maos do que os
prodígios da previdência e do saber, desenvolvidos para afeiçoar
o forasteiro ao meio, é o curso sobremaneira lento, senão o
malôgro dos mais pertinazes esforços.
A França na Indochina, de clima quase temperado, despendeu quinze anos
de trabalhos contínuos para que sobrestivesse a mortalidade; e, obedecendo
aos pareceres dos seus melhores cientistas, renunciou, depois de longas tentativas,
ao povoamento sistemático da África equatorial. O mesmo sucede
no geral das colônias inglêsas, alemãs ou belgas. Basate-nos
notar que a estadia regulamentar dos seus agentes oficiais tem o período
máximo de três anos. A volta aos lares nativos é uma medida
de segurança indispensável a restaurar-lhes os organismos combalidos.
Dêste modo, a despeito de tão grandes sacrifícios e dispêncdios,
e dos prodígios de engenharia sanitária que transformam a rudeza
topográfica dos lugares novos, formando-se uma verdadeira geografia
artística, o que nêles se forma, por fim, são umas sociedades
precárias de perpétuos convalescentes jungidos a dietas inflexíveis
e vivendo através das fórmulas inaturáveis dos receituários
complexos.
Ora, comparando-se estas colonizações adstritas às cláusulas
de rigorosos estatutos – e de efeitos tão escassos – com o povoamento
tumultuário, com a colonização à gandaia do Acre
– de resultados surpreendentes – certo não se faz mister registrar
um só elemento para o asserto de que o regime da região malsinada
não é apenas sobradamente superior ao da maioria dos trechos
recém-abertos à expansão colonizadora, senão também
ao da grande maioria dos países normalmente habitados.
De fato – à parte o favorável deslocamento paralelo ao equador,
demandando as mesmas latitudes – não se conhece na História
exemplo mais golpeante de emigração tão anárquica,
tão precipitada e tão violadora dos mais vulgares preceitos
de aclimamento, quanto o da que desde 1879 até hoje atirou, em sucessivas
levas, as populações sertanejas do território entre a
Paraíba e o Ceará, para aquêle recanto da Amazônia.
Acompanhando-a, mesmo de relance, põe-se de manifesto que lhe faltou
desde o princípio, não só a marcha lenta e progressiva
das migrações seguras, como os mais ordinários resguardos
administrativos.
O povoamento do Acre é um caso histórico inteiramente fortuito,
fora da diretriz do nosso progresso.
Tem um reverso tormentoso que ninguém ignora: as sêcas periódicas
dos nossos sertões do Norte, ocasionando o êxodo em massa das
multidões flageladas. Não o determinou uma crise de crescimento,
ou excesso de vida desbordante, capaz de reanimar outras paragens, dilatando-se
em itinerários que são o diagrama visível da marcha triunfante
das raças; mas a escassez da vida e a derrota completa ante as calamidades
naturais. As suas linhas baralham-se nos traçados revoltos de uma fuga.
Agravou-o sempre uma seleção natural invertida: todos os fracos,
todos os inúteis, todos os doentes e todos os sacrificados expedidos
a êsmo, como o rebotalho das gentes, para o deserrto. Quando as grandes
sêcas de 1879-1880, 1889-1890, 1900-1901 flamejavam sôbre os sertões
adustos, e as cidades do litoral se enchiam em poucas semanas de uma população
adventícia de famintos assombrosos, devorados das febres e das bexigas
– a preocupação exclusiva dos podêres públicos
consistia no libertá-las quanto antes daquelas invasões de bárbaros
moribundos que infestavam o Brasil. Abarrotavam-se, às carreiras, os
vapôres, com aquêles fardos agitantes consignados à morte.
Mandavam-nos para a Amazônia – vastíssima, despovoada, quase
ignota – o que eqüivalia a expatriá-los dentro da própria
pátria. A multidão martirizada, perdidos todos os direitos,
rotos os laços de família, que se fracionava no tumulto dos
embarques acelerados, partia para aquelas bandas levando uma carta de prego
para o desconhecido; e ia, com os seus famintos, os seus febrentos e os seus
variolosos, em condições de malignar e corromper as localidades
mais salubres do mundo. Mas feita a tarefa expurgatória, não
se curava mais dela. Cessava a intervenção governamental. Nunca,
até aos nossos dias, a acompanhou um só agente oficial, ou um
médico. Os banidos levavam a missão dolorosíssima e única
de desaparecerem…
E não desapareceram. Ao contrário, em menos de trinta anos,
o Estado que era uma vaga expressão geográfica, um deserto empantanado,
a estirar-se, sem lindes, para sudoeste, definiu-se de chôfre, avantajando-se
aos primeiros pontos do nosso desenvolvimento econômico
A sua capital – uma cidade de dez anos sôbre uma tapera de dois séculos
– transformou-se na metrópole da maior navegação fluvial
da América do Sul. E naquele extremo sudoeste amazônico, quase
misterioso, onde um homem admirável, William Chandless, penetrara 3.200
quilômetros sem lhe encontrar o fim – cem mil sertanejos, ou cem mil
ressuscitados,, apareciam inesperadamente e repatriavam-se de um modo original
e heróico: dilatando a pátria até aos terrenos novos
que tinham desvendado.
Abram-se os últimos relatórios das prefeituras do Acre. Nas
suas páginas maravilha-nos mais do que as transformaçòes
sem par que ali se verificam, o absoluto abandono e o completo relaxo com
que ainda se efetua o seu povoamento. Hoje, como há trinta anos, mesmo
fora das aperturas e dos tumultos das sêcas, os imigrantes avançam
sem o mínimo resquardo, ou assistência oficial.
No entanto, as populações transplantadas se fixam, vinculadas
ao solo; o progresso demográfico é surpreendente – e das cabeceiras
do Juruá à confluência do Abunã alonga-se, cada
vez mais procurada, a terra da promissão do Norte do Brasil.

* * *

O paralelo é expressivo. Não se compreende a reputaçào
de insalubridade de um tal clima. Evidentemente o que se realizou e se realiza
ainda, embora em menor escala no Acre, foi a “seleção telúrica”,
de que nos fala Kirchoff: uma sorte de magistratura natural, ou revista severa
exercida pela natureza nos indivíduos que a procuram, para só
conceder o direito da existência aos que se lhe afeiçoam.
Mas o processo é geral.
Em tôdas as latitudes foi sempre gravíssima nos seus primórdios
a afinidade eletiva entre a terra e o homem. salvam-se os que melhor balanceiam
os fatôres do clima e os atributos pessoais. O aclimado surge de um
binário de fôrças físicas e morais que vão,
de um lado, dos elementos mais sensíveis, térmicos ou higrométricos,
ou barométricos, às mais subjetivas impressões oriundas
dos aspectos da paisagem; e de outro, da resistência vital da célula
ou do tonus muscular, às energias mais complexas e refinadas do caráter.
Durante os primeiros tempos, antes que a transmissão hereditária
das qualidades de resistência, adquiridas, garanta a integridade individual
com a própria adaptação da raça, a letalidade
inevitável, e até necessária, apenas denuncia os efeitos
de um processo seletivo. Tôda a aclimação é dêsse
modo um plebiscito permanente em que o estrangeiro se elege para a vida. Nos
trópicos, é natural que o escrutínio biológico
tenha um caráter gravíssimo.
Não há fraudes que lhe minorem as exigências. Caem-lhe
sob o exame incorruptível, por igual, – o tuberculoso inapto à
maior atividade respiratória nos ares adurentes, pobres de oxigênio,
e o lascivo desmandado; o cardíaco sucumbido pela queda da tensão
arterial, e o alcoólico candidato contumaz a tôdas as endemias;
o infático colhido de pronto pela anemia e o glutão; o noctívago
desfibrado nas vigílias, ou o indolente estagnado nas sestas enervantes;
e o colérico, o neurastênico de nervos a vibrarem nos ares eletrizados,
descompassadamente, sob o influxo misterioso dos firmamentos deslumbrantes,
até aos paroxismos da demência tropical que o fulmina, de pancada,
como uma espécie de insolação do espírito.
A cada deslize fisiológico ou moral antepõe-se o coretivo da
reação física. E chama-se insalubridade o que é
um apuramento, a eliminação generalizada dos incompetentes.
Ao cabo verifica-se algumas vêzes que não é o clima que
é mau; é o homem.
Foi o que suedeu em grande parte no Acre. As turmas povoadoras que para lá
seguiram, sem o exame prévio dos que as formavam e nas mais deploráveis
condições de transporte, deparavam, além de tudo isto,
com um estado social que ainda mais lhes engravescia a instabilidade e a fraqueza.
Aguardava-as e ainda as aguarda, bem que numa escala menor, a mais imperfeita
organização do trabalho que ainda engenhou o egoísmo
humano.
Repitamos. O sertanejo emigrante realiza, ali, uma anomalia sôbre a
qual nunca é demasiado insistir: é o homem que trabalha para
escravizar-se.
Enquanto o colono italiano se desloca de Gênova à mais remota
fazenda de S. Paulo, paternalmente assistido pelos nossos podêres públicos,
o cearense efetua, à sua custa e de todo em todo desamparado, uma viagem
mais difícil, em que os adiantamentos feitos pelos contratadores insaciáveis,
inçados de parcelas fantásticas e de preços inauditos,
o transformam as mais das vêzes em devedor para sempre insolvente.
A sua atividade, desde o primeiro golpe de machadinha, constringe-se para
logo num círculo vicioso inaturável: o debater-se exaustivo
para saldar uma dívida que se avoluma, ameaçadoramente, acompanhando-lhe
os esforços e as fadigas para saldá-la.
E vê-se completamente só na faina dolorosa. A exploração
da seringa, neste ponto pior que a do caucho, impõe o isolamento. Há
um laivo siberiano naquele trabalho. Dostoïewski sombrearia as suas páginas
mais lúgubres com esta tortura: a do homem constrangido a calcar durante
a vida inteira a mesma “estrada”, de que êle é o único
transeunte, trilha obscurecida, estreitíssima e circulante, que o leva,
intermitentemente e desesperadamente, ao mesmo ponto de partida. Nesta emprêsa
de Sísifo, a rolar em vez de um bloco o seu próprio corpo –
partindo, chegando e partindo – nas voltas constritoras de um círculo
demoníaco, no seu eterno giro de encarcerado numa prisão sem
muros, agravada por um ofício rudimentar que êle aprende em uma
hora para exercê-lo tôda a vida, automàticamente, por simples
movimentos reflexos – se não o enrija uma sólida estrutura moral,
vão-se-lhe, com a inteligência atrofiada, tôdas as esperanças,
e as ilusões ingênuas, e a tonificante alacridade que o arrebataram
àquele lance, à aventura, em busca da fortuna.
Paralelamente, a decadência orgânica.
A alimentação, que é a base mais firme da higiene tropical,
não lha fornece, durante largos anos, a mais rudimentar cultura. Constitui-se,
ao revés de todos os preceitos, adstrita aos fornecimentos escassos
de tôdas as conservas suspeitas e nocivas, com o derivativo aleatório
das caçadas.
Sobretudo isto, o abandono. O seringueiro é, obrigatòriamente,
profissionalmente, um solitário.
Mesmo no Acre pròpriamente dito, onde a densidade maior das árvores
de borracha permite a abertura de 16 “estradas” numa légua
quadrada, tôda esta área capaz de sustentar, de acôrdo
com a unidade agrícola corrente, cinqüenta famílias de
pequenos lavradores, requer a atividade de oito homens apenas, que lá
se espalham e raramente se vêem. Calcule-se um seringal médio,
de duzentas “estradas”: tem cêrca de 15 léguas quadradas;
e êste latifúndio, que se povoaria à larga com 3.000 habitantes
ativos, comporta apenas a população invisível de 100
trabalhadores, exageradamente dispersos.
É a conservação sistemática do deserto, e a prisão
celular do homem na amplitude desafogada da terra.

* * *

Ante êstes lineamentos de um quadro social tão anômalo,
não é apenas opinável a letalidade do Acre. O que ressalta,
irreprimível, é o conceito de uma salubridade capaz de garantir
tantas existências submetidas a tão imperfeito regime. Acredita-se
até que as características tropicais meramente teóricas,
se reduzem aos paralelos de baixas latitudes, de 8º a 11º,
que interferem a região; e aquilatando-se a influência moderadora
sem dúvida exercida pela estupenda massa de florestas, que a circulam
e a invadem, chega-se a concluir que ulteriores observações
meteorológicas, mal iniciadas agora, talvez lhe apaguem nos mapas a
isoterma de 25 graus que a êsmo lhe traçaram.
Porque a despeito do incorreto e do vicioso do povoamento e da vida, a sociedade
recém-chegada aclima-se e progride.
Ao mais incurioso viajante que perlustre o Purus não escapa a transformação
lenta e contínua.

O primitivo explorador vai, afinal, ajustando-se ao solo, sôbre o qual
pisou durante tanto tempo indiferente. As suas barracas desafogam-se nas derrubadas;
e já nas praias, que as vazantes desvendam, já nos “firmes”,
a cavaleiro das cheias, se delineiam as primeiras áreas de cultura.
Os tristonhos barracões cobertos de fôlhas de ubuçu, transmudam-se
em vivendas regulares, ou amplos sobrados de pedrra e cal. Sebastopol, Canacori,
S. Luís de Cassianã, Itatuba, Realeza, e dezenas de outros sítios
do Baixo-Purus; Liberdade e Concórdia, nos mais longínquos trechos,
com as suas casas numerosas, que se arruam às vêzes ao lado de
pequenas igrejas, ampliam-se em verdadeiras vilas. São a imagem material
do domínio e da posse definitiva.
A evolução é, dêste modo, tangível.
Delatam-na até os nomes originais, extravagantes alguns, mas eloqüentes
todos, das primitivas e das recentes fundações. Na terra sem
história os primeiros fatos escrevem-se, esparsos e desunidos, nas
denominações dos sítios. De um lado está a fase
inicial e tormentosa da adaptação, evocando tristezas, martírios,
até gritos de desalento ou de socorro; e o viajante lê nas grandes
tabuletas suspensas às paredes das casas, de chapa para o rio: Valha-nos
Deus, Saudades, S. João da Miséria, Escondido, Inferno… De
outro um forte renascimento de esperanças e a jovialidade desbordante
das gentes redimidas: Bom Princípio, Nôvo Encanto, Triunfo, Quero
ver!, Liberdade, Concórdia, Paraíso…
À medida que se sobe o rio a renascença se acentua. Passada
a confluência do Acre vai-se, em vários trechos, entre as estâncias
que se defrontam ou se ligam às margens, como se se percorresse cultíssima
paragem há muito descoberta. Nada mais do tôsco e do brutesco
dos primitivos abarracamentos.
Em Catiana, em Macapá, como nas demais a montante, até à
última, Sobral, com a minúscula plantação de cafeeiros
que lhe bastam ao consumo, nota-se em tudo, da pequena cultura que se generaliza,
aos pomares bem cuidados, o esfôrço carinhoso do povoador que
aformoseia a terra para não mais a abandonar.
E os homens são admiráveis.
Vimo-los de perto; conversamo-los.
Guardamos-lhes os nomes e os apelidos bizarros – do opulento Caboclo-Real,
da Cachoeira, ao gárrulo Cai N’água das cercanias do Chandless;
do velho João Amarelo, que fundou Catai, e leva ainda, sem titubear,
pelos torcicolos das “estradas”, os seus setenta anos trabalhosos,
ao destemeroso Antônio Dourado, da Terra Alta, impecável atirador
de rifle, cujos lances de ousadia nas arrancadas de 1903, com os caucheiros,
são uma página vibrante de bravura.
Considerando-os, ou revendo-lhes a integridade orgânica a ressaltar-lhes
das musculaturas interiças, ou a beleza moral das almas varonis que
derrotaram o deserto – e recordando as circunstâncias lastimáveis,
que os rodearam nos primeiros dias do povoamento ou que ainda os rodeiam,
porventura minoradas – não se lhes explicam as existências vigorosas
sob regime climatológico tão maligno e bruto como o que se fantasiou
no Acre.
Não vinga, ademais, o argumento de que o sertanejo nortista, ou mais
incisivamente, o jagunço, dotado da abstinência pastoral e guerreira
do árabe, se tenha apercebido para o nôvo habitat, sob a disciplina
inexorável das sêcas, além de haver-se deslocado seguindo
mais ou menos os paralelos do torrão nativo
O Purus e o Juruá abriram-se há muito à entrada dos mais
díspares forasteiros – do sírio, que chega de Beirute, e vai
pouco a pouco suplantando o português no comércio do “regatão”;
ao italiano aventuroso e artista que lhes bate as margens, longos meses, com
a sua máquina fotográfica a colecionar os mais típicos
rostos de silvícolas e aspectos bravios de paisagens; ao saxônio
fleumático, trocando as suas brumas pelos esplendores dos ares equatoriais.
E, na grande maioria, lá vivem todos; agitam-se, prosperam e acabam
longevos.
Registre-se êste caso. Em 1872, Barrington Brown e William Lidstone
percorreram o Baixo-Purus, até Huitanaã, embarcados na lancha
Guajará, sob o comando do Capitão Hoefner, a german speaking
both english and portuguese in addition, consoante explicam os dois viajantes
no interessante livro que escreveram.
Há trinta e cinco anos…
E o Capitão Hoefner lá está, eterno comandante de lancha,
a mourejar sem descanso sôbre aquelas águas malditas, onde fervilham
os piuns sugadores, os carapanãs emissários das febres, e se
espalmam, derivando à feição da correnteza insensível,
os mururés boiantes, de flôres violáceas recordando as
grinaldas tristonhas dos enterros. Mas não agourentaram o germano.
Vimo-lo, em fins de 1905, na confluência do Acre. É um velho
vivaz e prestadio, diligente e ativo, de rosto aberto e rosado, emoldurado
de cabelos inteiramente brancos. Se aparecesse em Berlim, mal lhe descobririam
na pele, de leve amorenada, o sombrio estigma dos trópicos.
Multiplicam-se os casos dêste teor, acordes todos na extinção
de uma lenda.
Resta, talvez, à teimosia no propagá-la, um derradeiro argumento:
aquêles caboclos rijos e êsse saxônico excepcional não
são efeitos do meio; surgem a despeito do meio; triunfam num final
de luta, em que sucumbiram, em maior número, os que se não aparelhavam
dos mesmos requisitos de robustez, energia e abstinência.
Neste caso atiremos de lado, de uma vez, um estéril sentimentalismo
e reconheçamos naquele clima um função superior. Ante
as circunstâncias nocivas que originaram e impulsionaram o povoamento
do Acre, largos anos aberto à intrusão de tôdas as moléstias
e de todos os vícios favorecidos pela indiferença dos podêres
públicos, êle exercitou uma fiscalização incorruptível,
libertando aquêle território de calamidades e desmandos, que
seriam além de tôda a proporção, muito maiores
do que os que ainda hoje lá se observam.
Policiou, saneou, moralizou. Elegeu e elege para a vida os mais dignos. Eliminou
e elimina os incapazes, pela fuga ou pela morte.
E é por certo um clima admirável o que prepara as paragens novas
para os fortes, para os perseverantes e para os bons.

Os Caucheiros

Aquém da margem direita do Ucaiáli e das terras onduladas,
onde se formam os manadeiros do Javari, do Juruá e do Purus, apareceu
há cêrca de cinqüenta anos uma sociedade nova. Formara-se
obscuramente. Perdida longo tempo no afogado das selvas, apenas a conheciam
raros comerciantes do Pará, onde, desde 1862, começaram a chegar,
provindas daqueles pontos remotos, as pranchas pardo-escuras de uma outra
goma elástica concorrente com a seringa às exigências
da indústria.
Era o caucho. E caucheiros apelidaram-se para logo os aventurosos sertanistas
que batiam atrevidamente aquêles rincões ignorados.
Vinham do ocidente, transpondo os Andes e suportando todos os climas da Terra,
dos litorais adustos do Pacífico às punas enregeladas das cordilheiras.
Entre êles e o torrão nativo ficavam duas muralhas altas de seis
mil metros e um longo valo escancelado em abismos. Adiante os plainos amazônicos:
um estiramento de centenares de milhas para NE, a perder-se, indefinido, na
prolongação atlântica, sem a ajuda de um cêrro balizando
a imensidade.
Nunca se armou tão imponente cenário a tão pequeninos
atôres.
É natural que os sertanistas pervagassem largos anos, esparsos, diminutos,
invisíveis, tateantes no perpétuo crepúsculo daquelas
matas longínquas, onde, mais sérias que o desmedido das distâncias
e os bravios da espessura, outras dificuldades lhes renteavam ou perturbavam
os passos vacilantes.
Realmente, tôda a zona em que se traça, ainda pontuada, a linha
limítrofe brasílio-peruana, e irradiam para os quadrantes os
formadores do Purus e do Juruá, as vertentes mais setentrionais do
Urubamba e os últimos esgalhos do Madre de Diós, figurava entre
as mais desconhecidas da América, menos em virtude de suas condiçòes
físicas excepcionais, vencidas em 1844 por F. Castelnau, que pelo renome
temeroso das tribos que a povoam e se tornaram, sob o nome genérico
de chunchos, o máximo pavor dos mais destemerosos pioneiros.
Não há nomeá-las tôdas. Quem sobe o Purus, contemplando
de longe em longe, até às cercanias da Cachoeira, os paumaris
rarescentes, mal recordando os antigos donos daquelas várzeas; e dali
para montante os ipurinás inofensivos; ou a partir do Iaco, os tucunas
que já nascem velhos, tanto se lhes reflete na compleição
tolhiça a decrepitude da raça – tem a maior das surprêsas
ao deparar nas cabeceiras do rio com os silvícolas singulares que as
animam. Discordes nos hábitos e na procedência, lá se
comprimem em ajuntamento forçado; os amauacas mansos que se agregam
aos puestos dos extratores do caucho; os coronauas indomáveis, senhores
das cabeceiras do Curanja; os piros acobreados, de rebrilhantes dentes tintos
de resina escura que lhes dão aos rostos, quando sorriem, indefiníveis
traços de ameaças sombrias; os barbudos caxibos afeitos ao extermínio
em correrias de duzentos anos sôbre os destroços das missões
do Pachitéa; os conibos de crânios deformados e bustos espantadamente
listrados de vermelho e azul; os setebos, sipibos e iurimauas; os mashcos
corpulentos, do Mano, evocando no desconforme da estatura os gigantes fabulados
pelos primeiros cartógrafos da Amazônia; e, sôbre todos,
suplantando-os na fama e no valor, os campas aguerridos do Urubamba…
A variedade das cabildas em área tão reduzida trai a pressão
estranha que as sonstringe. O ajuntamento é forçado.
Elas estão, evidentemente, nos últimos redutos para onde refluíram
no desfecho de uma campanha secular, que vem do apostolado das Maynas às
expedições modernas e cujos episódios culminantes se
perderam para a História.
O narrados dêstes dias chega no final de um drama, e contempla supreendido
o seu último quadro prestes a cerrar-se.
A civilização, bàrbaramente armada de rifles fulminantes,
assedia completamente ali a barbaria encantoada: os peruanos pelo ocidente
e pelo sul; os brasileiros em todo o quadrante de NE; no de SE, trancando
o vale do Madre de Diós, os bolivianos.
E os caucheiros aparecem como os mais avantajados batedores da sinistra catequese
a ferro e fogo, que vai exterminando naqueles sertões remotíssimos
os mais interessantes aborígenes sul-americanos.

* * *

Esta missão histórica advém-lhes da fragilidade de uma
árvore. O caucheiro é forçadamente um nômade votado
ao combate, à destruição e a uma vida errante ou tumulturária,
porque a castilloa elástica que lhe fornece a borracha apetecida, não
permite, como as heveas brasileiras, uma exploração estável,
pelo renovar periòdicamente o suco vital que lhe retiram. É
execepcionalmente sensível. Desde que a golpeiem, morre, ou definha
durante largo tempo, inútil. Assim o extrator derruba-a de uma vez
para aproveitá-la tôda. Atora-a, depois, de metro em metro, desde
as sapopembas aos últimos galhos das frondes; e abrindo no chão,
ao longo do madeiro derrubado, rasas cavidades retangulares correspondentes
às secções dos toros, delas retira, ao fim de uma semana,
as pranchas valiosas, enquanto os restos aderidos à casca, nos rebordos
dos cortes, ou esparsos a êsmo pelo solo, constituem, reunidos, o sernambi
de qualidade inferior.
O processo, como se vê, é rudimentar e rápido. Esgota-se
em pouco tempo o cauchal mais exuberante; e como as castilloas não
se distribuem regularmente pelas matas, viçando em grupos por vêzes
bastante separados, os exploradores deslocam-se a outros rumos, reeditando
quase sem variantes tôdas as peripécias daquela vida aleatória
de caçadores de árvores.
Dêste modo o nomadismo impõe-se-lhes. É-lhes condição
inviolável de êxito. Afundam temeràriamente no deserto;
insulam-se em sucessivos sítios e não revêem nunca os
caminhos percorridos. Condenados ao desconhecido, afeiçoam-se às
paragens ínvias e inteiramente novas. Alcançam-nas: abandonam-nas.
Prosseguem e não se restribam nas posições às
vêzes àrduamente conquistadas.
Atingindo qualquer trecho onde os pés de caucho se descubram, levantam
à beira de uma quebrada o primeiro tambo de paxiúba, e atiram-se
à tarefa agitadíssima. Os seus primeiros instrumentos de trabalho
são a carabina Winchestewr – o rifle curto adrede disposto aos recontros
no trançado das ramarias -, o machete cortante que lhes destrana os
cipoais, e a bússola portátil, norteando-se no embaralhado das
veredas. Tomam-nos e lançam-se a uma revista cautelosa das cercanias.
Vão em busca do selvagem que devem combater e exterminar ou escravizar,
para que do mesmo lance tenham tôda a segurança no nôvo
pôsto de trabalhos e braços que lhos impulsionem.
São bem poucos às vêzes os que se abalançam a esta
preliminar obrigatória e temerária: meia dúzia de homens,
dispersando-se e mergulhando silenciosamente na espessura. E lá se
vão, perquirindo e sondando todos os recessos; batendo palmo a palmo
todos os recantos suspeitos; anotando de cor, num exaustivo levantamento topográfico,
de memória, os mais variados acidentes; ao mesmo passo que com os olhos
e ouvidos armados aos mais fugitivos aspectos e aos mais vagos rumôres
dos ares murmurantes da floresta, vão premunindo-se dos resguardos
e ardilezas que se exigem naquele assombroso duelo sevilhano com o deserto.
Alguns não tornam mais. Outros, volvem indenes aos pousos, depois da
perquirição inútil. Algum, porém, ao cabo da pesquisa
fatigante, lobriga ao longe, meio indistintas nas folhagens, as primeiras
cabanas do selvagem.
Mal refreia um grito de triunfo, e não volve logo a comunicar aos companheiros
o achado.
Refina a sua astúcia extraordinária. Cose-se com o chão,
e, de rastros, fareando el peligro, aproxima-se quando pode do inimigo descuidado.
Há, realmente, neste lance, um traço comovente de heroísmo.
O homem perdido na solidão absoluta vai procurar o bárbaro,
levando a escolta única das dezoito balas de seu rifle carregado.
É um rastejamento longo, tortuoso e lento, em que êle aproveita
todos os acidentes, encobrindo-se por detrás dos troncos ou entaliscando-se
nos ângulos das sapopembas, deslizando sem ruído sôbre
as camadas das ramas decompostas, ou insinuando-se entre as hastes unidas
das helicônias de largas fôlhas protetoras, até que possa,
no têrmo da investida surda e angustiosa, contemplar e ouvir de perto,
quase à orla do terreiro claro, os adversários inexpertos, e
inscientes do civilizado sinistro que os espia e os conta e lhes observa as
maneiras e lhes avalia os recursos – e volta depois do exame minucioso, levando
aos companheiros, que o aguardam, todos os informes necessários à
“conquista”.
Conquita é o têrmo predileto, usado por uma espécie de
reminiscência atávica das antiqüíssimas algaras dos
condutícios de Pizarro. Mas não a efetuam pelas armas sem esgotarem
os efeitos da diplomacia rudimentar dos presentes mais apetecidos do selvagem.
A um ouvimos certa vez o processo seguido: “Se los atrae al tambo por
medio de regalos: ropa, rifles, machetes, etc.; y sin hacerlos trabajar, se
les deja que vayan al tolderio a decir a sus compañeros el como son
tratados por los caucheros, que nos los obligan a trabajar, sino que les aconsejan
que trabajen un poco y a voluntad, para pagar aquello que les dieron…”
Êstes meios pacíficos, porém, são em geral falíveis.
A regra é a caçada impiedosa, à bala. É o lado
heróico da emprêsa: um grupo inapreciável arrojando-se
à montaria de uma multidão.
Não se lhe pormenorizam os episódios.
Subordina-se a uma tática invariável: a máxima rapidez
do tiro e a máxima temeridade. São garantias certas do triunfo.
É incalculável o número de minúsculas batalhas
travadas naqueles sertões onde reduzidos grupos bem armados suplantam
tribos inteiras, sacrificadas a um tempo pelas suas armas grosseiras e pela
afoiteza no arremeterem com as descargas rolantes das carabinas.
Citemos um exemplo único. Quando Carlos Fiscarrald chegou em 1892 às
cabeceiras do Madre de Diós, vindo do Ucaiáli pelo varadouro
aberto no istmo que lhe conserva o nome, procurou captar do melhor modo os
mashcos indomáveis que as senhoreavam. Trazia entre os piros que conquistara
um intérprete inteligente e leal. Conseguiu sem dificuldades ver e
conservar o curaca selvagem.
A conferência foi rápida e curiosíssima.
O notável explorador, depois de apresentar ao “infiel” os
recursos que trazia e o seu pequeno exército, onde se misturavam as
fisionomias díspares das tribos que subjugara, tentou demonstrar-lhe
as vantagens da aliança que lhe oferecia contrapostas aos inconvenientes
de uma luta desastrosa. Por única resposta o mashco perguntou-lhe pelas
flexas que trazia. E Fiscarrald entregou-lhe, sorrindo, uma cápsula
de Winchester.
O selvagem examinou-a, longo tempo, absorto ante a pequenez do projétil.
Procurou, debalde, ferir-se, roçando rijamente a bala contra o peito.
Não o conseguindo, tomou uma de suas flexas; cravou-a, de golpe, no
outro braço, varando-o. Sorriu, por sua vez, indiferente à dor,
contemplando com orgulho o seu próprio sangue que esguichava… e sem
dizer palavra deu as costas ao sertanista surpreendido, voltando para o seu
tolderío com a ilusão de uma superioridade que a breve trecho
seria inteiramente desfeita. De fatom meia hora depois, cêrca de cem
mashcos, inclusive o chefe recalcitrante e ingênuo, jaziam trucidados
sôbre a margem, cujo nome, Playa Mashcos, ainda hoje relembra êste
sanguinolento episódio…
Assim vai desbravando-se a região bravia. Varejadas as redondezas,
mortos ou escravizados num raio de poucas léguas os aborígenes,
os caucheiros agitam-se febrilmente na azáfama estonteadora. Em alguns
meses ao lado do primitivo tambo multiplicam-se outros; a casucha solitária
transmuda-se em amplo barracón ou embarcadero ruidos; e adensam-se
por vêzes as vivendas em caseríos, a exemplo de Cocama e Curanja,
à margem do Purus, a espelharem, repentinamente, no deserto, a miragem
de um progresso que surge, se desenvolve e acaba num decênio. Os caucheiros
ali estacionam até que caia o último pé de caucho. Chegam,
destróem, vão-se embora. Nada pedem, em geral, à terra,
à parte exíguas plantações de iúcas e bananas,
a que se dedicam os índios domesticados. A única agricultura
regular, embora diminuta, que se observa no Alto-Purus, para lá das
últimas barracas dos nossos seringueiros, e a do algodão, dos
campas aldeados, que até nisto delatam a independência nativa:
colhendo, cardando, fiando, tecendo e pintando as cushmas de que se revestem,
e descem-lhes dos ombros até aos pés, com o feitio de longas
togas grosseiras. Assim, entre os estranhos civilizados que ali chegam de
arrancada para ferir e matar o homem e a árvore, estacionando apenas
o tempo necessário a que ambos se extingam, seguindo a outros rumos
onde renovam as mesmas tropelias, passando como uma vaga devastadora e deixando
ainda mais selvagem a própria selvageria – aquêles bárbaros
singulares patenteiam o único aspecto tranqüilo das culturas.
O contraste é empolgante. Seguindo do povoado campa de Tingoleales
para o sítio peruano de Shamboyaco, perto da foz do Rio Manuel Urbano,
o viajante não passa, como a princípio acredita, dos estádios
mais primitivos aos mais elevados da evolução humana. Tem uma
surprêsa maior. Vai da barbaria franca a uma sorte de civilização
caduca em que todos os estigmas daquela ressaltam, mais incisivos, dentre
as próprias conquistas do progresso.
Aborda a estância peruana; e nas primeiras horas encanta-o o quadro
de uma existência movimentada e ruidosa. A vivenda principal e as que
se lhe subordinam, arruadas alguma vez à maneira de pequenas vilas,
erigem-se sempre num ponto bem escolhido a cavaleiro do rio; e a despeito
de se construírem exclusivamente com as fôlhas e estípites
da paxiúba – que é a palmeira providencial da Amazônia
– são em geral de dois andares e têm na elegância das linhas
e nas varandas desafogadas, que as circuitam, uma aparência de todo
contraposta ao aspecto tristonho dos chatos barracões dos nossos seringueiros.
No terreiro amplo, acabando na crista da baranca caindo em talude vivo sôbre
o rio, uma agitação animadora e álacre; carregadores
possantes passando em longas filas sucessivas arcados sob as pranchas de caucho;
administradores ativos rompendo das portas do andar térreo e correndo
para tôda a banda, para os armazéns refertos de conservas ou
para as tendas fulgurantes, onde estridulam malhos e bigornas, reparando as
achas e machetes.
Embaixo no embarcadero, coalhado das ubás velozes, onde as tanganas
fisgam vivamente os ares, vozeia a algazarra dos práticos e proeiros,
e espalmam-se nas águas as balsas feitas exclusivamente de caucho,
formando-se sôbre o “caminho que marcha” a “mercadoria
que conduz os condutores”. E em todo o correr da ladeira que dali serpeia
até em cima, as saias vermelhas e os corpinhos brancos das cholas graciosas
de Iquitos, passando e entrecruzando-se, num embandeiramento festivo…
O viajante atravessa os grupos agitados e as surprêsas não cessam.
Galga a escada que o leva à varanda da frente, para onde dão
os principais repartimentos da vivenda. No alto o caucheiro – um triunfador
jovial e desempenado sôbre os rijos tacões das suas botas de
mateiro – recebe-o ruidosamente, abrindo-lhe de par em par as portas numa
hospitalidade espetaculosa e franca. E completa-se o encanto. Extinta a noção
do tempo, ou do longo espaço de milhares de quilômetros gastos
no sulcar os rios solitários para atingir aquela estância longínqua,
o forasteiro insensìvelmente se imagina em algum entreposto comercial
de qualquer cidade da costa. Nada lhe falta ao engano: o longo balcão
de pinho abarreirando a sala principal e cerrando o recinto, onde se aprumam
as prateleiras atestadas de mercadorias; os empregados solícitos obedientes
às ordens do guarda-livros corretíssimo, que o cumprimentou
ao entrar e volveu logo à sua escrita, acurvado sôbre a secretária
inclinada; o copo de cerveja que lhe oferecem, ao invés da chicha tradicional;
a folhinha artística a um lado, marcando o dia certo do ano; os jornais
de Manaus e de Lima; e até – o que é inverossímil – a
tortura requintada e culta de um fonógrafo, gaguejando, emperradamente,
naquele fundo de desertos, uma ária predileta de tenor famoso…

* * *

Mas tôda esta exterioridade surpreendente desaparece ante uma observação
permitindo ao visitante ver o que lhe não mostra o seu garboso hospedeiro.
A desilusão assalta-o então de chôfre; e é impressionadora.
Aquêle reflexo de vida superior não vai além da escassa
nesga de chão, de menos de um hectare, constrita entre a mata ameaçadora
e próxima, ao fundo, e a barranca despenhada rio adiante.
Fora dêste falso cenário, o drama real que se desenrola é
quase inconcebível para o nosso tempo.
Abaixo do caucheiro opulento, numa escala deplorável, do mestiço
loretqno que ali vai em busca de fortuna ao quíchua deprimido trazido
das cordilheiras, há uma série indefinida de espoliados. Para
vê-los tem-se que varar os obscuros recessos da mata sem caminhos e
buscá-los nas urmanas solitárias, onde assistem completamente
sós, acompanhados apenas do rifle inseparável, que lhes garante
a existência com os recursos aleatórios das caçadas. Ali
mourejam improfàicuamente longos anos; enfermam, devorados das moléstias;
e extinguem-se no absoluto abandono. Quatrocentos homens às vêzes,
que ninguém vê, dispersos por aquelas quebradas, e mal aparecendo
de longe em longe no castelo de palha do acalcanhado barão que os escraviza.
O “conquistador” não os vigia. Sabe que lhe não fogem.
Em roda, num raio de seis léguas, que é todo o seu domínio,
a região, inçada de outros infieles, é intransponível.
O deserto é um feitor perpètuamente vigilante. Guarda-lhe a
escravatura numerosa. Os mesmos campas altanados, que êle captou esgrimindo
uma perfídia magistral contra a bravura ingênua do bárbaro,
não o deixam mais, temendo os próprios irmãos bravios,
que nunca lhes perdoam a submissão transitória.
Desta sorte o aventureiro feliz que dois anos antes, em Lima ou Arequipa,
exercitava o trato mais gentil – sente-se inteiramente livre da pressão
e dos infinitos corretivos da vida social, e adquirindo a consciência
do mando ilimitado, ao mesmo tempo que o invade o sentimento da impunidade
para todos os caprichos e delitos, cai, de um salto, numa selvageria originalíssima,
em que entra sem ter tempo de perder os atributos superiores do meio onde
nasceu.
Realmente, o caucheiro não é apenas um tipo inédito na
História. É, sobretudo, antinômico e paradoxal. No mais
pormenorizado quadro etnográfico não há um lugar para
êle. A princípio figura-se-nos um caso vulgar de civilizado que
se barbariza, num recuo espantoso em que se lhe apagam os caracteres superiores
nas formas primitivas da atividade.
E é um engano. Êstes estádios contrapostos êle não
os combina criando uma atividade híbrida embora, mas definida e estável.
Junta-os apenas sem os caldear. É um caso de mimetismo psíquico
de homem que se finge bárbaro para vencer o bárbaro. É
caballero e selvagem, consoante as circunstâncias. O dualismo curioso
de quem procura manter intactos os melhores ensinamentos morais ao lado de
uma moral fundada especialmente para o deserto – reponta em todos os atos
da sua existência revôlta. O mesmo homem que com invejável
retitude esforça-se por satisfazer os seus compromissos, que às
vêzes sobem a milhares de contos, com os exportadores de Iquitos ou
Manaus, não vacila em iludir o peón miserável que o serve,
em alguns quilos de sernambi ordinário; ou passa por vêzes da
mais refinada galanteria à máxima brutalidade, deixando em meio
um sorriso cativante e uma mesura impecável, para saltar com um rugido,
de cuchillo rebrilhante em punho, sôbre o cholo desobediente que o afronta.
A selvageria é uma máscara que êle põe e retira
à vontade.
Não há ajustá-la ao molde incomparável dos nossos
bandeirantes. Antônio Rapôso, por exemplo, tem um destaque admirável
entre todos os conquistadores sul-americanos. O seu heroísmo é
brutal, maciço, sem frinchas, sem dobras, sem disfarces. Avança
ininteligentemente, mecânicamente, inflexìvelmente, como uma
fôrça natural desencadeada. A diagonal de mil e quinhentas léguas
que traçou de São Paulo até ao Pacífico, cortando
tôda a América do Sul, por cima de rios, de chapadões,
de pantanais, de corixas estagnadas, de desertos, de cordilheiras, de páramos
nevados e de litorais aspérrimos, entre o espanto e as ruínas
de cem trilhos suplantadas, é um lance apavorante, de epopéia.
Mas sente-se bem naquela ousadia individual a concentraçào maravilhosa
de tôdas as ousadias de uma época.
O bandeirante foi brutal, inexorável, mas lógico.
Foi o super-homem do deserto.
O caucheiro é irritantemente absurdo na sua brutalidade elegante, na
sua galanteria sanguinolenta e no seu heroísmo à gandaia. É
o homúnculo da civilização.
Mas compreende-se esta antilogia. O aventureiro ali vai com a preocupação
exclusiva de enriquecer e voltar; voltar quanto antes, fugindo àquela
terra melancólica e empantanada que parece não ter solidez para
agüentar o próprio pêso material de uma sociedade. Acompanha-o,
em tôdas as conjunturas da sua atividade nervosa e precipitada, o espetáculo
das cidades vastas, onde brilhará um dia, transformado em esterlinos
o oro negro do caucho. Dominado de todo pela nostalgia incurável da
paragem nativa, que êle deixou precisamente para a rever apercebido
de recursos que lhe facultem maiores somas de felicidades – atira-se às
florestas: enterreira e subjuga os selvagens; resiste ao impaludismo e às
fadigas; agita-se, adoidadamente, durante quatro, cinco, seis anos; acumula
algumas centenas de milhares de soles e desaparece, de repente…
Surge em Paris. Atravessa em pleno esplendor dos teatros ruidosos e dos salões,
seis meses de vida delirante, sem que lhe descubram, destoando da correção
impecável das vestes e das maneiras, o mais leve resquício do
nomadismo profissional. Arruína-se galhardamente; e volta… Reata
a faina antiga: novos quatro ou seis anos de trabalhos forçados; nova
fortuna prestes adquirida; nôvo volver ansioso em busca da fortuna perdidiça,
numa oscilação estupenda das avenidas fulgurantes para as florestas
solitárias.

A êste propósito correm as mais curiosas versões, em
que se destacam famosos caucheiros conhecidíssimos em Manaus.
Neste viver oscilante êle dá a tudo quanto pratica, na terra
que devasta e desama, um caráter provisório – desde a casa que
constrói em dez dias para durar cinco anos, às mais afetuosas
ligações que às vêzes duram anos e êle destrói
num dia. Neste ponto, sobretudo, desenha-se-lhe a inconstância irrivalizável.
Um dêles, como lhe perguntássemos, em Curanja, onde desposara
a amauaca gentilíssima que lhe assistia há dez anos com os desvelos
de uma espôsa exemplar, retorquiu-nos, levemente irônico:
– Me han hecho regalo em Pachitéa.
Um regalo, um presente, um traste que êle abandonaria à primeira
eventualidade, sem cuidados.
Reportado negociante daquele vilarejo decaído, que em Lima ou Iquitos
seria um belo molde de burguês pacífico e abstêmio, ali
hambriento de mujeres, apresenta aos amigos e ao forasteiro adventício,
o seu harém escandaloso, onde se estremam a interessante Mercedes,
de ojillos de venado, que custou uma batalha contra os coronauas, e a encantadora
Facunda de grandes olhos selvagens e cismadores, que lhe custou cem soles.
E narra o tráfico criminoso, a rir, absolutamente impune, e sem temores.
Não há leis. Cada um traz o código penal no rifle que
sobraça, e exercita a justiça a seu alvedrio, sem que o chamem
a contas. Num dia, de julho de 1905, quando chegava ao último puesto
caucheiro do Purus uma comissão mi9sta de reconhecimento, todos os
que a compunham, brasileiros e peruanos, viram um corpo desnudo e atrozmente
mutilado, lançado à margem esquerda do rio, num claro entre
as frecheiras. Era o cadáver de uma amauaca. Fôra morta por vingança,
explicou-se vagamente depois. E nào se tratou mais do incidente – coisa
de nonada e trivialíssima na paragem revolvida pelas gentes que a atravessam
e não povoam, e passam deixando-a ainda mais triste com os escombros
das estâncias abandonadas…

* * *

Estas lá estão em tôdas as voltas do Alto-Purus, aparecendo,
entristecedoras, sob os vários aspectos que vão das urmanas
humildes dos peões às vivendas outrora senhoris dos caucheiros.
Pouco acima do Shamboyaco, uma, sôbre tôdas, nos impressionou,
quando descíamos.
Fôra um pôsto de primeira ordem. Saltamos para o examinar; e vingando
a custo a barranca malgradada, descobrindo em cima o velho caminho invadido
de vassouras bravas, chegamos ao terreiro onde o matagal inextricável
ia peneirando e cobrindo os acervos de vasilhas velhas, farragens repugnantes,
restos de ferramentas, e ciscalhos em montes deixados pelos prófugos
habitantes. A casa principal, defronte, meio estruída, tetos abatidos,
paredes encombentes e a tombarem despegando-se dos esteios desaprumados, figurava-se
sustida apenas pelas lianas que lhe irrompiam de todos os pontos, furando-lhe
a cobertura, enleando-se-lhe nas vigas vacilantes, amarrando-lhas, e estirando-se
à feição de cabos até as árvores mais próximas,
onde se enlaçavam impedindo-lhe o desabamento completo; e as vivendas
menores, anexas, cobertas de trepadeiras exuberando floração
ridente, apagavam-se, desaparecendo a pouco e pouco na constrição
irresistível da mata que reconquistava o seu terreno primitivo.
Mal atentamos, porém, no magnífico lance regenerador, da flora,
juncando de corolas e festões garridos aquela ruinaria deplorável.
Não estava inteiramente desabitada a tapera.
Num dos casebres mais conservados aguardava-nos o último habitante.
Piro, amauaca ou campa, nào se lhe distinguia a origem. Os próprios
traços da espécie humana, transmudava-lhos a aparência
repulsiva: um tronco desconforme, inchado pelo impaludismo, tomando-lhe a
figura tôda, em pleno contraste com os braços finos e as pernas
esmirradas e tolhiças como as de um feto monstruoso.
Acocorado a um canto, contemplava-nos impassível. Tinha a um lado todos
os seus haveres: um cacho de bananas verdes.
Esta coisa indefinível que por analogia cruel sugerida pelas circunstâncias
se nos figurou menos um homem que uma bola de caucho ali jogada a êsmo,
esquecida pelos extratores – respondeu-nos às perguntas num regougo
quase extinto e numa língua de todo incompreensível. Por fim,
com enorme esforço levantou um braço; estirou-o, lento, para
a frente, como a indicar alguma coisa que houvesse seguido para muito longe,
para além de todos aquêles matos e rios; e balbuciou, deixando-o
cair pesadamente, como se tivesse erguido um grande pêso:
– “Amigos”.
Compreendia-se: amigos, companheiros, sócios dos dias agitados das
safras, que tinham partido para aquelas bandas, abandonando-o ali, na solidão
absoluta.
Das palavras castelhanas que aprendera restava-lhe aquela única; e
o desventurado murmurando-a como um tocante gesto de saudade, fulminava sem
o saber – com um sarcasmo pungentíssimo – os desmandados aventureiros
que àquela hora prosseguiam na faina devastadora: abrindo a tiros de
carabinas e a golpes de machetes novas veredas a seus itinerários revoltos,
e desvendando outras paragens ignoradas, onde deixariam, como ali haviam deixado,
no desabamento dos casebres ou na figura lastimável do aborígene
sacrificado, os únicos frutos de suas lides tumultuárias, de
construtores de ruínas…

Judas-Ahsverus

No sábado da Aleluia os seringueiros do Alto-Purus desforram-se de
seus dias tristes. É um desafôgo. Ante a concepção
rudimentar da vida santificam-se-lhes, nesse dia, tôdas as maldades.
Acreditam numa sanção litúrgica aos máximos deslizes.
Nas alturas, o Homem-Deus, sob o encanto da vinda do filho ressurreto e despeado
das insídias humanas, sorri, complacentemente, à alegria feroz
que arrebenta cá embaixo. E os seringueiros vingam-se, ruidosamente,
dos seus dias tristes.
Não tiveram missas solenes, nem procisões luxuosas, nem lavapés
tocantes, nem prédicas comovidas. Tôda a Semana Santa correu-lhes
na mesmice torturante daquela existência imóvel, feita de idênticos
dias de penúrias, os meios jejuns permanentes, de tristezas e de pesares,
que lhes parecem uma interminável Sexta-feira da Paixão, a estirar-se,
angustiosamente, indefinida, pelo ano todo afora.
Alguns recordam que nas paragens nativas, durante aquela quadra fúnebre,
se retraem tôdas as atividades – despovoando-se as ruas, paralisando-se
os negócios, ermando-se os caminhos – e que as luzes agonizam nos círios
bruxuleantes, e as vozes se amortecem nas rezas e nos retiros, caindo um grande
silêncio misterioso sôbre as cidades, as vilas e os sertões
profundos onde as gentes entristecidas se associal à mágoa prodigiosa
de Deus. E consideram, absortos, que êsses sete sias excepcionais, passageiros
em tôda a parte e em tôda a parte adrede estabelecidos a maior
realce de outros dias mais numerosos, de felicidade – lhes são, ali,
a existência inteira, monótona, obscura, dolorisíssima
e anônima, a girar acabrunhadoramente na via dolorosa inalterável,
sem princípio e sem fim, do círculo fechado das “estradas”.
Então pelas almas simples entra-lhes, obscurecendo as miragens mais
deslumbrantes da fé, a sombra espêssa de um conceito singularmente
pessimista da vida: certo, o Redentor universal não os redimiu; esqueceu-os
para sempre, ou não os viu talvez, tão relegados se acham à
borda do rio solitário, que no próprio volver das suas águas
é o primeiro a fugir, eternamente, àqueles tristes e desfreqüentados
rincões.
Mas não se rebelam, ou blasfemam. O seringueiro rude, ao revés
do italiano artista, não abusa da bondade de seu deus desmandando-se
em convícios. É mais forte; é mais digno. Resignou-se
à desdita. Não murmura. Não reza. As preces ansiosas
sobem por vêzes ao céu, levando disfarçadamente o travo
de um ressentimento contra a divindade; e êle não se queixa.
Tem a noção prática, tangível, sem raciocínios,
sem diluições metafísicas, maciça e inexorável
– um grande pêso a esmagar-lhe inteiramente a vida – da fatalidade;
e submete-se a ela sem subterfugir na covardia de um pedido, com os joelhos
dobrados. Seria um esforço inútil. Domina-lhe o critério
rudimentar uma convicção talvez demasiado objetiva, ou ingênua,
mas irredutível, a entrar-lhe a todo o instante pelos olhos a distância
que o afasta dos homens; e os grandes olhos de Deus não podem descer
até àqueles brejais, manchando-se. Não lhe vale a pena
penitenciar-se, o que é um meio cauteloso de rebelar-se, reclamando
uma promoção na escala indefinida da bem-aventurança.
Há concorrentes mais felizes, mais bem protegidos, mais vistos, nas
capelas, nas igrejas, nas catedrais, e nas cidades ricas onde se estadeia
o fausto do sofrimento uniformizado de prêto, ou fulgindo na irradiação
das lágrimas, e galhardeando tristezas…
Ali – é seguir, impassível e mudo, estóicamente, no grande
isolamento da sua desventura.
Além disto, só lhe é lícito punir-se da ambição
maldita que o conduziu àqueles lugares para entregá-lo, maniatado
e escravo, aos traficantes impunes que o iludem – e êste pecado é
o seu próprio castigo, transmudando-lhe a vida numa interminável
penitência. O que lhe resta a fazer é desvendá-la e arrancá-la
da penumbra das matas, mostrando-a, nuamente, na sua forma apavorante, à
humanidade longínqua…
Ora, para isso, a Igreja dá-lhe um emissário sinistro: Judas;
e um único dia feliz: o sábado prefixo aos mais santos atentados,
às balbúrdias confessáveis, à turbulência
mística dos eleitos e à divinizaçào da vingança.
Mas o mostrengo de palha, trivialíssimo, de todos os lugares e de todos
os tempos, não lhe basta à missão complexa e grave. Vem
batido demais pelos séculos em fora, tão pisoado, tão
decaído e tão apedrejado que se tornou vulgar na sua infinita
miséria, monopolizando o ódio universal e apequenando-se, mais
e mais, diante de tantos que o malquerem.
Faz-se-lhe mister, ao menos, acentuar-lhe as linhas mais vivas e cruéis;
e mascarar-lhe no rosto de pano, a laivos de carvão, uma tortura tão
trágica, e em tanta maneira próxima da realidade, que o eterno
condenado pareça ressuscitar ao mesmo tempo que a sua divina vítima,
de modo a desafiar uma repulsa mais espontânea e um mais compreensível
revide, satisfazendo à saciedade as almas ressentidas dos crentes,
com a imagem tanto possível perfeita da sua miséria e das suas
agonias terríveis.
E o seringueiro abalança-se a êsse prodígio de estatuária,
auxiliado pelos filhos pequeninos, que deliram, ruidosos, sem risadas, a correrem
por tôda a banda, em busca das palhas esparsas e da farragem repulsiva
de velhas roupas imprestáveis, encantados com a tarefa funambulesca,
que lhes quebra tão de golpe a monotonia tristonha de uma existência
invariável e quieta.
O judas faz-se como se fêz sempre: um par de calças e uma camisa
velha, grosseiramente cosidos, cheios de palhiças e mulambos; braços
horizontais, abertos, e pernas em ângulo, sem juntas, sem relevos, sem
dobras, aprumando-se, espantadamente, empalado, no centro do terreiro. Por
cima uma bola desgraciosa representando a cabeça. É o manequim
vulgar, que surge em tôda a parte e satisfaz à maioria das gentes.
Não basta ao seringueiro. É-lhe apenas o bloco de onde vai tirar
a estátua, que é a sua obra-prima, a criação espantosa
do seu gênio rude longamente trabalhado de reveses; onde outros talvez
distingam traços admiráveis de uma ironia sutilíssima,
mas que é para êle apenas a expressão concreta de uma
realidade dolorosa.
E principia, às voltas com a figura disforme: salienta-lhe e afeiçoa-lhe
o nariz; reprofunda-lhe as órbitas; esbate-lhe a fronte; acentua-lhe
os zigomas; e aguça-lhe o queixo, numa massagem cuidadosa e lenta;
pinta-lhe as sobrancelhas, e abre-lhe com dois riscos demorados, pacientemente,
os olhos, em geral tristes e cheios de um olhar misterioso; desenha-lhe a
bôca, sombreada de um bigode ralo, de guias decaídas aos cantos.
Veste-lhe, depois, umas calças e uma camisa de algodão, ainda
servíveis; calça-lhe umas botas velhas, cambadas…
Recua meia dúzia de passos. Contempla-a durante alguns minutos. Estuda-a.
Em tôrno a filharada, silenciosa agora, queda-se expectante, assistindo
ao desdobrar da concepção, que a maravilha.
Volve ao seu homúnculo: retoca-lhe uma pálpebra; aviva um ricto
expressivo na arqueadura do lábio; sombreia-lhe um pouco mais o rosto,
cavando-o; ajeita-lhe melhor a cabeça; arqueia-lhe os braços;
repuxa e reifica-lhe as vestes…
Nôvo recuo, compassado, lento, remirando-o, para apanhar de um lance,
numa vista de conjunto, a impressão exata, a s;intese de tôdas
aquelas linhas; e renovar a faina com uma pertinácia e uma tortura
de artista incontentável. Novos retoques, mais delicados, mais cuidadosos,
mais sérios: um tenuíssimo esbatido de sombra, um traço
quase imperceptível na bôca refegada, uma torção
insignificante no pescoço engravatado de trapos…
E o monstro, lento e lento, num transfigurar-se insensível, vai-se
tornando em homem. Pelo menos a ilusão é empolgante…
Repentinamente o bronco estatuário tem um gesto mais comovedor do que
o parla! ansiosíssimo, de Miguel-Ângelo: arranca o seu próprio
sombreiro; atira-o à cabeça do Judas; e os filhinhos todos recuam,
num grito, vendo retratar-se na figura desengonçada e sinistra o vulto
do seu próprio pai.
É um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua
imagem. Vinga-se de si mesmo: pune-se, afinal, da ambiçào maldita
que o levou àquela terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe
parte os ímpetos da rebeldia recalcando-o cada vez mais ao plano inferior
da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu, escravo, à
gleba empantanada dos traficantes, que o iludiram.
Isto, porém, não lhe satisfaz. A imagem material da sua desdita
não deve permanecer inútil num exíguo terreiro de barraca,
afogada na espessura impenetrável, que furta o quadro de suas mágoas,
perpètuamente anônimas, aos próprios olhos de Deus. O
rio que lhe passa à porta é uma estrada para tôda a Terra.
Que a Terra tôda contemple o seu infortúnio, o seu exaspêro
cruciante, a sua desvalia, o seu aniquilamento iníquo, exteriorizados,
golpeantemente, e propalados por um estranho e mudo pregoeiro…
Embaixo, adrede construída desde a véspera, vê-se uma
jangada de quatro paus boiantes, rijamente travejados. Aguarda o viajante
macabro. Condu-lo, prestes, para lá, arrastando-o em descida, pelo
viés dos barrancos avergoados de enxurros.
A breve trecho a figura demoníaca apruma-se, especada, à pôpa
da embarcaçào ligeira.
Faz-lhe os últimos reparos: arranja-lhe ainda uma vez as vestes; arruma-lhe
às costas um saco cheio de ciscalho e pedras; mete-lhe à cintura
alguma inútil pistola enferrujada, sem fechos, ou um caxerenguengue
gasto; e fazendo-lhe curiosas recomendaçòes, ou dando-lhe os
mais singulares conselhos, impele, ao cabo, a jangada fantástica para
o fio da corrente.

* * *

E Judas feito Ahsverus vai avançando vagarosamente para o meio do
rio. Então os vizinhos mais próximos, que se adensam, curiosos,
no alto das barrancas, intervêem ruidosamente, saudando com repetidas
descargas de rifles aquêle botafora. As balas chofram a superfície
líqüida, erriçando-a; cravam-se na embarcação,
lascando-a; atingem o tripulante espantoso; trespassam-no. Êle vacila
um momento no seu pedestal flutuante, fustigado a tiros, indeciso, como a
esmar um rumo, durante alguns minutos, até se reaviar no sentido geral
da correnteza. E a figura desgraciosa, trágica, arrepiadoramente burlesca,
com os seus gestos desmanchados, de demônio e truão, desafiando
maldições e risadas, lá se vai na lúgubre viagem
sem destino e sem fim, a descer, a descer sempre, desequilibradamente, aos
rodopios, tonteando em tôdas as voltas, à mercê das correntezas,
“de bubuia” sôbre as grandes águas.
Não pára mais. À medida que avança, o espantalho
errante vai espalhando em roda a desolação e o terror: as aves,
retransidas de mêdo, acolhem-se, mudas, ao recesso das frondes; os pesados
anfíbios mergulham, cautos, nas profunduras, espavoridos por aquela
sombra que ao cair das tardes e ao subir das manhãs se desata estirando-se,
lutuosamente, pela superfície do rio; os homens correm às armas
e numa fúria recortada de espantos, fazendo o “pelo sinal”
e aperrando os gatilhos, alvejam-no desapiedadamente.
Não defronta a mais pobre barraca sem receber uma descarga rolante
e um apedrejamento.
As balas esfuziam-lhe em tôrno; varam-no; as águas, zimbradas
pelas pedras, encrespam-se em círculos ondeantes; a jangada balança;
e, acompanhando-lhe os movimentos, agitam-se-lhe os braços e êle
parece agradecer em canhestras mesuras as manifestações rancorosas
em que tempesteiam tiros, e gritos, sarcasmos pungentes e esconjuros e sobretudo
maldições que revivem, na palavra descansada dos matutos, êste
eco de um anátema vibrando há vinte séculos:
– Caminha, desgraçado!
Caminha. Não pára. Afasta-se no volver das águas. Livra-se
dos perseguidores. Desliza, em silêncio, por um estirão retilíneo
e longo; contorneia a arqueadura suavíssima de uma praia deserta. De
súbito, no vencer uma volta, outra habitação: mulheres
e crianças, que êle surpreende à beira do rio, a subirem,
desabaladamente, pela barranca acima, desandando em prantos e clamores. E
logo depois, do alto, o espingardeamento, as pedradas, os convícios,
os remoques.
Dois ou três minutos de alaridos e tumulto, até que o judeu errante
se forre ao alcance máximo da trajetória dos rifles, descendo…
E vai descendo, descendo… Por fim não segue mais isolado. Aliam-se-lhe
na estrada dolorosa outros sócios de infortúnio; outros aleijões
apavorantes sôbre as mesmas jangadas diminuta entregues ao acaso das
correntes, surgindo de todos os lados, vários no aspecto e nos gestos:
ora muito rijos, amarrados aos postes que os sustentam; ora em desengonços,
desequilibrando-se aos menores balanços, atrapalhadamente, como ébrios;
ou fatídicos, braços alçados, ameaçadores, amaldiçoando;
outros humílimos, acurvados num acabrunhamento profundo; e por vêzes,
mais deploráveis, os que se divisam à ponta de uma corda amarrada
no extremo do mastro esguio e recurvo, a balouçarem, enforcados…
Passam todos aos pares, ou em filas, descendo, descendo vagarosamente…
Às vêzes o rio alarga-se num imenso círculo; remansa-se;
a sua corrente torce-se e vai em giros muito lentos perlongando as margens,
traçando a espiral amplíssima de um redemoinho imperceptível
e traiçoeiro. Os fantasmas vagabundos penetram nestes amplos recintos
de águas mortas, rebalsadas; e estacam por momentos. Ajuntam-se. Rodeiam-se
em lentas e silenciosas revistas. Misturam-se. Cruzam então pela primera
vez os olhares imóveis e falsos de seus olhos fingidos; e baralham-se-lhes
numa agitação revôlta os gestos paralisados e as estaturas
rígidas. Há a ilusão de um estupendo tumulto sem ruídos
e de um estranho conciliábulo, agitadíssimo, travando-se em
segredos, num abafamento de vozes inaudíveis.
Depois, a pouco e pouco, debandam. Afastam-se; dispersam-se. E acompanhando
a correnteza, que se retifica na última espira dos remansos – lá
se vão, em filas, um a um, vagarosamente, processionalmente, rio abaixo,
descendo…

“Brasileiros”

O Peru tem duas histórias fundamentalmente distintas. Uma, a do comum
dos livros, teatral e ruidosa, reduz-se ao romance rocambolesco dos marechais
instantâneos dos pronunciamentos. A outra é obscura e fecunda.
Desdobra-se no deserto. É mais comovente; é mais grave; é
mais ampla. Prolonga, noutros cenários, as tradições
gloriosas das lutas da Independência; e veio até aos nossos dias
tão impartível e sem hiatos, apesar de seus aspectos variáveis,
que pode acapitular-se sob o título único, geralmente adotado
pelos melhores publicistas daquela República: El Problema del oriente.
A designação é perfeita. Trata-se de assunto rigorosamente
positivo a resolver.
Ao peruano não lho impuseram maciços argumentos de sociólogos
ou a intuição feliz de um estadista, senão o próprio
empuxo material do meio. Constrangida numa fita de terrenos adustos entre
as cordilheiras e o mar, onde acampara durante três séculos iludida
pelo fausto dos conquistadores e dos vice-reis, a nacionalidade, maior herdeira
das virtudes e dos vícios por igual notáveis da Espanha cavalheiresca
e decaída do século XVII, compreendeu afinal, pelo simples instinto
da defesa, a necessidade imperiosa de abandonar a clausura isolante que a
seqüestrava de todo o resto da Terra.
E começou a transmontar os Andes…
Fôra longo recontar a sua hégira para o levante, nas investidas
sucessivas por cinco penosíssimas estradas desesperadoramente retorcidas
no boleado das serras, empinando-se em ladeiras altas de milhares de metros,
e unindo os portos do litoral entre Mollendo e Paita às paragens apetecidas
da montaña na extrema orla amazônica expandida do pongo de Manseriche
às urmanas acachoantes do Urubamba.
Baste-nos notar que depois de transposta a última cordilheira do Oriente
e atingida a bacia do Ucaiáli, pôs-se de manifesto aos seus mais
incuriosos pioneiros, a par da exuberância do vale maravilhoso capaz
de regenerar-lhes a nacionalidade exausta, uma anomalia física oriunda
dos relevos orográficos ali predominantes: a melhor porção
do país entre os que mais se afiguram ribeirinhos do Pacífico,
tem como único e verdadeiro mar, capaz de consorciá-la pelo
intercâmbio comercial à civilização longínque,
o Atlântico, que se lhe prende graças aos três longos sulcos
desimpedidos do Purus, do Juruá e do Ucaiáli.
Nenhum milagre de engenharia lhos substituirá com vantagem. A linha
férrea de Oroya e as que se lhe emparelham nas ousadias do traçado
– tornejando escarpas a pique, enfiando em túneis afogados nas nuvens,
e correndo em viadutos alcandorados nos abismos – não criarão
sistemas de comunicações mais práticas e seguras.
As suas condições técnicas excepcionais, industrialmente
desastrosas, tornam-nas para sempre impropriadas a transportarem, sem fretes
excessivos, os produtos do Oriente, ainda quando a abertura do Canal de Panamá
dispense, mais tarde, a longa travessia contorneante do Cabo Horn.
Assim, a saída para o Atlântico, pelo Amazonas e seus tributários
de sudoeste, se tornou a primeira solução claríssima
do problema. E nas paragens novas, erigidas administrativamente no atual Departamento
de Loreto, começou para logo um intensivo trabalho de domínio,
que persiste, crescente, em nossos dias.
Abriram-se caminhos demandando a opulenta zona fluvial; planearam-se, a despeito
de sucessivos malogros, colônias militares e agrícolas, reatou-se,
na revivescência das missões apostólicas, a tradição
admirável dos jesuítas de Maynas; engenhou-se uma vasta regulamentação
de terras; construiu-se o pôrto de Iquitos, e, para aviventar-se o povoamento,
aboliram-se todos os impostos, agindo o homem aforradamente na terra feracíssima.
Ao mesmo tempo as expedições geográficas, iniciadas em
1834 por P. Beltran e W. Smith, em que tanto se ilustraram depois F. de Castelnau,
Faustino Maldonado, A. Raimondi, John Tucker e hoje G. Stiglich, rumaram a
todos os quadrantes, ininterruptas e pertinazes, na tarefa complexa que era
uma espécie de levantamento expedito de uma nova pátria.
Aos caudilhos irrequietos contrapuseram-se os exploradores tranqüilos.
No litoral revôlto pelas sedições e guerrilhas sistematizava-se
a incapacidade crônica dos governos revolucionários, e, derrancados
os melhores estímulos da recente campanha pela liberdade, os bravos
salteadores do poder desmandavam-se num militarismo pernicioso que ali, como
em tôda parte, era a fraqueza irritável da nação
enfêrma. Nos desertos floridos da montaña ao arrepio ou à
feição dos rios ignorados, remoinhando nos giros estonteantes
das muyunas, canoas despedidas, de frecha, nas correntadas céleres
dos pongos, ou embatendo nas travancas abruptas das cachoeiras – os geógrafos,
os prefeitos e os missionários demarcavam novos cenários à
pátria regenerada e, apurando em tirocínio de perigos os mais
nobres atributos da sua raça, reconstruíram o caráter
nacional que se abatera, e davam àqueles rumos, secamente definidos
por traçados geométricos, um prolongamento inesperado na História.
Porque o problema do Oriente, afinal, incluía nas suas numerosas incógnitas
os destinos do Peru inteiro.
Reconheciam-nos os próprios caudilhos esmaniados. Não raro no
estavanado e vacilante de seus atos, entre dois fuzilamentos ou entre dois
combates, acertavam de considerar por momentos as paragens insistentemente
aneladas, e muito dêles, de golpe, transfiguravam-se patenteando lúcidos
descortinos de estadistas.
A êste propósito poderiam citar-se numerosos casos delatadores
da política bifronte, do mesmo passo reconstituinte e demolidora, que
com o rigorismo de um decalque retrata na ordem moral do Peru o contraste
físico entre o Ocidente obscurecido, onde as energias se quebrantam
malignadas pela história emocional epidêmica dos pronunciamentos
– e o Levante resplandecente, onde alvorecem as esperanças renascidas.

* * *

Aponte-se um exemplo.
Em 1841 a República estava a pique das maiores catástrofes.
Imperava D. Agustín Gamarra. Aquêle zambo cesareano refletia
nos atos tumultuários os desequilíbrios de seu temperamento
instável, de mestiço, ferrotoado dos temores e das impaciências
de um prestígio improvisado, à ventura, nos sobressaltos das
guerrilhas.
O seu govêrno – govêrno de quem inaugurou no Peru o regime das
deposições apeando o virtuodo La Mar – foi naturalmente agitadíssimo.
O restaurador impôsto pelas armas dos chilenos, de Bulnes, sôbre
os destroços da efêmera confederação perúvio-boliviana,
assediado pelas ambições contrariadas, pelas exigências
dos condutícios incontentáveis e pelas ameaças dos conspiradores
recidivos, tonteava na vertigem daquela eminência, onde chegara desprendendo-se
da parceria dos cholos e pisoando todos os melindres aristocráticos
da terra que sôbre tôdas herdara a sobranceria tradicional da
Espanha. Nas conjunturas prementes dependeu-lhe, por vêzes, a fortuna,
até do gesto de uma mulher – a sua própria espôsa, amazona
gentilmente heróica, que não raro travando de uma espada e precipitando-se,
à espora feita, a cavalo, pelo campo das manobras ou no mais aceso
dos combates, ia eletrizar com a presença encantadora os coronéis
embevecidos e os regimentos vacilantes…
Assim não se poderiam exigir à vida em tanta maneira perturbada
e romântica, daquele presidente, ponderosas medidas administrativas.
Acompanhamo-la apenas com o interêsse artístico de quem segue
a urdidura de imaginosa novela sulcada de episódios alarmantes, ou
dramáticos, até desfechar no sacrifício, inútil
e glorioso, do protagonista, sucumbindo sob uma carga furiosa dos lanceiros
bolivianos nas esplanadas de Viacho…
Mas no volver de uma das páginas salteia-nos esta surprêsa:
“El ciudadano Agustín Gamarra – Gran mariscal restaurador del
Perú, benemérito a la patria in grado heroico y eminente, etc.
“Considerando que para promover la navigación por vapor en el
rio de Amazonas y sus confluentes és necesario proporcionar facilidades
y ventagens que indemnicen a los empresarios…
“Decreta: 1º Se concebe al ciudadano brasileiro D. Antonio Marcelino
Pereira Ribeiro el privilegio exclusivo de navegar por buques de vapor en
el rio Amazonas, en la parte que corresponde al Perú e todos sus afluentes.
“… 3º Los buques de vapor levarón el pabellón
brasileiro…
“Dada en la casa de Gobierno de Lima a 6 de Julio de 1841.”
Êste decreto, extratado nos trechos principais, inculca ao mesmo tempo
o caudilho, no recacho presuntuoso que lhe emprestam aquêles adjetivos
e substantivos constrangidos a escoltarem-lhe o nome, e o governante, que
primeiro traçou aos seus patrícios a marcha regeneradora para
o Oriente. Mas não o reproduzimos apenas para realce dos aspectos contrariantes
da História Peruana; senão também para destacar aquela
figura de brasileiro, que seria inexpressiva se não constituísse
o primeiro têrmo de uma série de compatriotas obscuros, erradios
dos nossos fastos e elegendo-se por atos memoráveis entre os melhores
servidores da nação vizinha.
De fato, à medida que se rastreia a marcha peruana para o levante,
exposta em todos os seuspormenores, miudeada em regulamentos, em decretos,
em circulares e em ofícios – porque é a suprema preocupação
política, militar e administrativa do Peru – observa-se nas referências
obrigatórias e incisivas ao elemento brasileiro, o intercurso de uma
outra avançada obscura, mas vigorosa, e contrapondo-se-lhe numa expansão
tão enérgica, para o ocidente, que com os seus efeitos a despontarem
de longe em longe, precisamente nos períodos mais decisivos da primeira,
se restauraria todo um capítulo da nossa História, que se perdeu
ou se fracionou despercebido à visão embotada dos cronistas,
para ressurgir agora, esparso em fragmentos surpreendentes, nas entrelinhas
da História de outro povo.
É o que demonstram outros casos, entre nós inéditos.
Apontemo-los de relance.

* * *

No período abrangido pelos governos do austero Marechal Castilla,
as explorações prosseguiram. Castelnau desceu das cabeceiras
do Urubamba às ribas do Amazonas; Maldonado imortalizou-se descobrindo,
numa excursão temerária, a nova estrada para o Atlântico
ajustada ao sulco desmedido do Madre de Diós; e Raimondi desvendou
os tesouros da mesopotâmia de 16.000 léguas quadradas de terras
exuberantes, interferidas pelos cursos do Huallaga e do Ucaiáli. Por
fim Montferrir calculou, rigorosamente, as riquezas da Canaã vastíssima:
50.000.000 de hectares, valendo o mínimo de meio bilhão de pesos.
A aritmética tornava-se quase lírica nesta dilatação
de números maravilhosos.
As medidas governamentais do grande Marechal tiveram para logo o alento dos
mais enérgicos estímulos patrióticos, a par do anseio
de fortuna dos mais desassombrados aventureiros.
Os peruanos, iludidos durante largo tempo no litoral estéril, viam
pela primeira vez o nôvo mundo. E a conquista da terra, numa de suas
fases mais agudas, desenrolou-se em tôda a plenitude.
Então, contravindo a tantas esperanças sob o amparo das mais
lúcidas resoluções governativas – leis, regulamentos
e decretos enfeixando-se num volumoso compêndio de administração
fecunda e militante – principiou uma fase desalentadora de brilhantes tentativas
abortícias.
As colônias planeadas, e para logo erigidas, espelhavam por algum tempo
naqueles rincões solitários a fantasmagoria de um progresso
artificial; e extinguiam-se prestes. Já em 1854 o governador de Loreto,
pueblo obscuro cujo nome irradia hoje abrangendo aquêles lugares, ao
informar do estado de duas colonizações sucessivas que ali se
estabeleceram, centralizadas em Caballo-Cocha, próximas à fronteira
do Brasil, indicava-as completamente extintas. E idênticos malogros
generalizavam-se por tôda a banda.
Eram naturais. As vagas humanas nas paragens virgens não se aquietam
de súbito. Carateriza-as nos primeiros estádios a instabilidade
inevitável imposta pela própria força viva adquirida
no movimento da maarcha. Precedendo ao equilíbrio das culturas, surge
a pesquisa dos frutos ou das riquezas imediatas, como a permitir aos recém-vindos,
na vida errante das colheitas, dos garimpos, dos pastoreios ou das caçadas,
um reconhecimento imprescindível do seu nôvo habitat, antes da
escolha de uma situação de descanso.
É a eterna função social do nomadismo, que mesmo no Peru
já se manifestara na azáfama devastadora dos cascarileros, desvendando
as paragens ignotas que vão dos cerros de Carabaya às vertentes
mais aastadas do Beni.
Êste incentivo, porém, ali, estava extinto.
Por aquêle tempo, uma tenaz explorador, Marckam, comissionado pelo govêrno
inglês, andava nas regiões da quina calisaya; e conseguira transplantar
tão prontamente para as Índias aquêle elemento da fortuna
peruana que, já em 1862, mais de quatro milhões de árvores,
em Darjeeling, com a produção extraordinária de 370 toneladas
de quinino, iniciavam uma concorrência triunfante no primeiro assalto.
Dêste modo, as paragens tão ansiosamente apetecidas mostravam-se,
ante os novos povoadores, desnudas dêsses recursos que em tôda
a parte se figuram adrede predispostos a que não se desenfluam as esperanças
sempre exageradas dos que emigram.
Não lhes bastariam, certo, as bombonaças para os chapéus
de palha oriundos da indústria graciosa das mulheres do Moyobamba,
ou os cascalhos auríferos das vertentes do Pastaza guardadas pelos
huambizas ferocíssimos.
Assim, todos os atos, e magníficos decretos, e lúcidos regulamentos,
e generosas concessões de terras, do último govêrno de
Castilla, desfechariam nos mais lastimáveis insucessos se, precisamente
na derradeira quadra da sua presidência, e no mesmo ano (1862) em que
a cultura indiana da quina arrebatava daqueles desertos o seu maior atrativo
_ um anônimo, um outro imortal humílimo evadido da nossa História,
não aparecesse, eclipsando de golpe os mais imponentes lances administrativos
e oferecendo aos peruanos o reagente enérgico que os alentaria até
aos nossos dias na rota da Amazônia.
Um brasileiro descobriu o caucho; ou, pelo menos, instituiu ali a indústria
extrativa correspondente.
No reconstruir êste trecho da nossa História, que versado mais
tarde por um historiador merecerá o título de “Expansão
Brasileira na Amazônia”, não vamos desacompanhados.
Diz-nos um narrador sincero:
“Antes do ano de 1862, não tinha ainda sido explorada a incalculável
riqueza da goma elástica… Depois da entrada de alguns brasileiros
para o território do Departamento, principalmente do laborioso José
Joaquim Ribeiro, começou êste rico produto a figurar no catálogo
dos que o Departamento exporta para o Brasil. A primeira quantidade exportada
foi de 2.088 quilogramas, produto dos ensaios daquele brasileiro que muito
teria contribuído para o desenvolvimento dessa indústria, se
ao iniciá-la não encontrasse contrariedades nascidas do cupidismo
de alguns agentes subalternos que contra êle exerceram todos os ardis…”
Não comentemos o desquerer das autoridades peruanas. Era antigo. Desde
1811 o reportado D. Manoel Ijurra denunciava “los Brazileros más
próximos al Perú que tienen la bárbara costumbre de armar
expediciones militares con objeto de haccer correrías sobre los indios
Maynas, atropelando muchas veces las autoridades…”; ou apresentava-os
como “absolutos monopolizadores del comercio de importación o
exportación.” Cinco anos depois, em ofício alarmante, o
Subprefeito de Maynas solicitava providências urgentíssimas “al
intuito de que los Brazileros moradores de Caballo-Cocha, salgan fuera de
esta provincia, se buenamente no quieren, por la fuerza”; e pintava-os
laivando-os dos mais denegridos estigmas. Por fim o Governador-Geral das Missões
(1849) determinou se exigissem passaportes de todos os brasileiros que lá
entrassem, gaguejando num castelhano emperrado esta razão curiosíssima:
“que no se experimentaba provecho alguno en estos negociantes del Brazil;
ni menos hay bayonetas con que poder conterlos; hacen lo que quieren metiendo-se
por los rios, extraendo zarza, manteca, salado e otras especies…”
Não prossigamos.
Adivinha-se nestas linhas, que poderiam ser prolongadas, a invasão
formidável que se alastrava avassaladora para o ocidente, desafiando
os ódios do estrangeiro; espraiando-se pelo vale do grande rio, por
Loreto, Caballo-Cocha, Moremote, Perenate, Iquitos, até Nauta, na embocadura
do Ucaiáli; subindo pelo Ucaiáli em fora até além
do Pachitéa: deixando nos mais vários pontos, nos sítios
numerosos, nas trilhas coleantes do deserto, e até nos costumes ainda
persistentes, os traços indeléveis da passagem.
Se a historiássemos contraporíanos às verrinas oficiais
dos subprefeitos apavorados, cujos dizeres se pejoravam à medida que
progredia aquela surda conquista do solo, os próprios conceitos de
Antonio Raimondi. Mas aquêle belo tipo de Joaquim Ribeiro, que em 1868
o maior naturalista peruano foi encontrar nas margens do Itaia possuindo as
melhores fazendas do Departamento, concretiza uma réplica irrefragável.
Não o pearam tão pequeninos empeços. Criada a indústria
extrativa, a exportação da borracha a partir de 1871 erigiu-se
preeminente entre as dos demais produtos de Loreto. E as turmas dos extratores,
sem nenhuns amparos oficiais, rompendo espontâneos de tôda a parte
e arremetentes com as mais desfreqüentadas espessuras, ultimaram em pocuo
tempo a emprêsa quase secular tantas vêzes cindida de reveses.
Desvendou-se todo o Oriente.
Mas há um reverso no quadro.
A exploração do caucho como a praticam os peruanos, derribando
as árvores, e passando sempre à cata de novas “manchas”
de castilloas ainda nào conhecidas, em nomadismo profissional interminável,
que os leva à prática de todos os atentados nos recontros inevitáveis
com os aborígenes – acarreta a desorganização sistemática
da sociedade. O caucheiro, eterno caçador de territórios, não
tem pega sôbre a terra. Nessa atividade primitiva apuram-se-lhe, exclusivos,
os atributos da astúcia, da agilidade e da fôrça. Por
fim, um bárbaro individualismo. Há uma involução
lastimável no homem perpètuamente arredio dos povoados, errante
de rio em rio, de espessura em espessura, sempre em busca de uma mata virgem
onde se oculte ou se homizie como um foragido da civilização.

A sua passagem foi nefasta. Ao cabo de 30 anos de povoamento, as margens
do Ucaiáli, tão nobilitadas outrora pela abnegação
dos missionários de Sarayaco, patenteiam, hoje, nos seus vilarejos
diminutos, uma decadência moral indescritível.
O Coronel Pedro Portillo, atual Prefeito de Loreto, que as visitou em 1899,
denunciou-a, indignado: Alli no hay leyes… El más fuerte que tiene
más rifles, es el dueño de la justicia”. Verberou depois
o tráfico escandaloso de escravos. E, afinados pelo mesmo tom, um sem-número
de outros excursionistas, que fôra longo citar, delatam, em narativas
expressivas, o regime de tropelias que se normalizou naquelas terras – e se
amplia seguindo os rastros do homem que passa pelo deserto com o só
efeito de barbarizar a própria barbaria.

* * *

Ora, na presciência dos inconvenientes desta exploração,
que, entretanto, determinou o pleno desdobramento de seu domínio no
Oriente, o govêrno peruano nunca renunciou ao seu primitivo propósito
de uma colonização intensiva. E para ao mesmo tempo garantir
o tráfego do melhor caminho para o Amazonas, pelo Ucaiáli, que
vai da estação terminus de Oroya aos tributários principais
do Pachitéa, estabeleceu em 1857, à margem de um dêles,
o Rio Pozuzo, a colônia alemã, que sôbre tôdas lhe
monopolizou os cuidados e uma solicitude nunca interrompida.
Realmente, a situação era admirável. À média
distância de Iquitos, próxima aos afluentes navegáveis
do Ucaiáli e num solo exuberante, o núcleo estabelecido era,
militar e administrativamente, o mais firme ponto estratégico daquele
combate com o deserto, justificando-se os esforços e extraordinárias
despesas que se fizeram para um rápido desenvolvimento, que as melhores
condições naturais favoreciam.
Mas não lhe vingou o plano. A exemplo do que acontecera em Loreto,
os novos povoadores, embora mais persistentes, anulavam-se, estéreis.
A colônia paralisara-se, tolhiça, entre os esplendores da floresta.
Reduziu-se a culturas rudimentares que mal lhe satisfaziam o consumo. E o
progresso demográfico, quase insensível, retratava-se numa prole
linfática, em que o rijo arcabouço prussiano se engelhava na
envergadura esmirrada do quíchua. Ao visitá-la, em 1870, o Prefeito
de Huanuco, Coronel Vizcarra, quedou atônito e comovido: os colonos
apresentaram-se-lhe andrajosos e famintos, pedindo-lhe pão e vestes
para velarem a nudez. O romântico D. Manoel Pinzás, que descreveu
a viagem, pinta-nos em longos períodos soluçantes os lances
daquele cuadro desgarrador!, suspendendo-o em dois rijos pontos de admiração.
Viu-o ainda, passado um lustro, com as mesmas côres sombrias, o Dr.
Santiago Tavara, ao descrever a primeira viagem do Almirante Tucker.
Por fim, transcorridos trinta anos, o Coronel P. Portillo na sua rota do Ucaiáli
teve notícias certas do núcleo povoador: era uma Tebaida aterradora.
Lá dentro os primitivos colonos e os seus rebentos degenerados agitavam-se
vítimas de um fanatismo irremediável, na mandria dolorosa das
penitências, a rezarem, a desfiarem rosários e a entoarem umas
ladainhas intermináveis numa concorrência escandalosa com os
guaribas da floresta.
Ora, o excursionista, que é hoje um dos mais lúcidos políticos
peruanos, para agravar-lse-lhe o desapontamento ante êste malôgro
completo da colônia predileta da sua terra, tivera dias antes, ao passar
em Puerto Victoria, na confluência do Pichis e do Palcazu, formadores
do Pachitéa, um espetáculo completamente diverso. De fato, Puerto
Victoria surgira e desenvolvera-se, tornando-se a estância mais animada
e opulenta daquela redondeza, sem que o govêrno peruano soubesse ao
menos do seu aparecimento.
Jamais cogitara em povoar aquêle trecho.
A paragem era malsinada. Rodeavam-na os mais bravios entre os selvagens sul-americanos:
os campas do Pajonal, ao sul, e ao norte os caxibos indomáveis, que
em 1866 haviam trucidado em Chonta-Isla, que lhe demora a jusante, os oficiais
de marinha Tavara e West. O Prefeito Benito Arana, que ali andara naquele
mesmo ano, fôra, em som de guerra, com dois vapôres e uma lancha
artilhada, em revide àquela afronta sanguinolenta. Saltou em terra;
meteu-se pela mata; travou pequeninos recontros em formidáveis tiroteios;
volveu num triunfo singularíssimo, encalçado de perto pelos
selvagens, que o frechavam; embarcou no tumulto da sua gente vitoriosa, e
fugindo; canhoneou furiosamente as barrancas; volveu, precípite, águas
abaixo, deixando na Playa del Castigo um traço romanesco da sua emprêsa
tormentosa…
E durante três decênios a região sinistra permaneceu no
isolamento que lhe criavam as gente apavoradas…
Até que, provindos do ocidente e vencendo à voga arrancada,
nas ubás esguias, as correntezas fortes do Pachitéa, atravessaram-na
de extremo a extremo e foram abordar na confluência do Pichis alguns
aventureiros destemerosos.
Eram uns caboclos entroncados, de tez morena e baça, e musculatura
sêca e poderosa. Não eram caucheiros. A palavra remorada não
lhes vibrava na fanfarrice ruidosa. Ao invés de um tambo, improvisaram
um tejupar mal arranjado. Não se armaram do cuchillo, misto de punhal
e de navalha. Pendiam-lhes à cintura as facas de arrasto, longas como
as espadas.
Aperceberam-se sem ruídos para a emprêsa e penetraram, vagarosamente,
na floresta…
Não se conhecem as peripécias da entrada temerária, que
foram sem dúvida excepcionalmente dramáticas. Os caxibos têm
no próprio nome a legenda da sua ferocidade. Caxi, morcego; bo, semelhante.
Figuradamente: sugadores de sangue. Ainda nos seus raros momentos de jovialidade
aquêles bárbaros assustam, quando o riso lhes descobre os dentes
retintos do sumo negro da palmeira chonta; ou estiram-se de bruços,
acaroados com o chão, as bôcas junto à terra, ululando
longamente as notas demoradas de uma melopéia selvagem.
Atravessaram, indenes na bruteza, trezentos anos de catequese; e são
ainda a tribo mais bravia do vale do Ucaiáli.
Mas ao que se figura não pulsearam com vantagem o vigor nos novos pioneiros.
É que o bárbaro sanguinário tinha pela frente, enterreirando-o,
um adversário mais temeroso, o jagunço.
Os recém-vindos eram brasileiros do Norte; e o seu patrão, Pedro
C. de Oliveira, mais um modêlo de lidador obscuro aparecendo em lances
de fecundas iniciativas entre os acontecimentos de uma história estranha.
Para aquilatar-se-lhe a valia, observemos de relance que em janeiro de 1900
foi nomeado, apesar da sua nacionalidade, governador de tôda a zona
que o seu barracão centralizava.
O Coronel Portillo, que ali deparou agasalho sincero sem o pregão de
rasgados oferecimentos, tão característico da nossa gens obscura,
trai em todos os conceitos que emitiu no seu relatório – desde o primeiro
dia até desperdir-se da “muy estimable familia del señor
Olivera”, o encanto que lhe causou a estância animadíssima
no centro de suas culturas fartas, e inteligentemente locada com as numerosas
vivendas circulantes no alto da barranca, a prumo sôbre a margem esquerda
do rio, que se alcançava subindo uma longa escadaria resistente e tôsca.
Cativaram-no, sobretudo, os valentes tranqüilos que se lhe mostraram
modestíssimos em pleno triunfo sôbre a barbaria e a terra. Por
fim, à sua visão esclarecida não escapou que aquêle
forasteiro, sem um decreto e sem uma subvenção, resolvera o
problema colimado pelo govêrno de seu país, fundando no lugar
mais conveniente a estação garantidora da “via central”
demandando a Amazônia. Disse-o nuamente: Pôrto Vitória
era o lugar mais apropriado para a guarnição militar e alfândega
que protegessem a importação e exportação da colônia
de Chanchamayo, norte de Pajonal, Tarma e montañas do Palcazu, Matro
e Pozuzo.
Concluiu: “La casa de Olivera debe ser tomada por el Supremo Gobierno
como la más aparente para las oficinas de la capitania, aduana e comandancia
militar.”
Foi aceito o alvitre. Um decreto do Presidente Pierola ordenou a demarcação
de Puerto Victoria para estabelecer-se comisaría destinada a proteger
os colonizadores daquelas terras; e num grande ciúme da situação
vantajosa adquirida revelou o intento de uma posse exclusiva “no consentiendo,
alli, en el radio de un quilómetro, poblador alguno”.
O Peru conseguira realmente uma estação fluvial admirável.
E os brasileiros retiraram-se.
Passaram cinco anos.
Em 1905 um touriste parisiense, J. Delebecque, desceu o Pachitéa, em
viagem para o Amazonas, e não notaria a estância outrora florescente
se não o acompanhassem alguns índios mansos conhecedores dos
lugares.
No alto da barranca, que os enxurros solapavam, viam-se apenas alguns tetos
abatidos e restos de culturas afogadas num carrascal bravio.
O pôrto era uma ruína.
O viajante ali permaneceu por algumas horas a fim de secar as suas roupas
encharcadas ao calor de uma fogueira feita com as portas desquiciadas e ombreiras
vacilantes das vivendas, consoante praticam todos os que por ali passam na
travessia de Iquitos; e considerou, melancòlicamente, que daquele jeito
Puerto Victoria seria em breve apenas uma recordação.
Depois abalou rio abaixo, a tôda a voga, fugindo da paragem que se ermana
no mais completo abandono…

Transacreana

A carta da Amazônia, no trato que demora ao ocidente do Madeira, é
o diagrama de seu povoamento inicial. A história da paragem nova, antes
de escrever-se, desenha-se. Não se lê, vê-se. Resume-se
nos longos e torturosos riscos do Purus, do Juruá e do Javari.
São linhas naturais de comunicação a que nenhumas se
emparelham no favorecer um dilatado domínio. Geomètricamente,
os seus talvegues, rumados no sentido geral de SO para NE, num quase paralelismo,
oblíquos aos meridianos, facultam avançamentos simultâneos
em latitude e em longitude; sob o aspecto físico, à parte os
entraves artificiais oriundos do abandono em que jazem, estiram-se de todo
desimpedidos. Travam-se-lhes os mais privilegiados requisitos. Na grande maioria
dos rios amazônicos, e sobretudo no Vale do Ucaiáli, os empeços
naturais acumulam-se ao ponto de originarem estranhos têrmos geográficos.
Nêles não há citar-se um só. Nem pongos vertiginosos,
nem despenhadas urmanas, nem muiúnas remoinhantes ou vueltas del diablo
desesperadores…
Daí esta expressiva conseqüência histórica: enquanto
no Tocantins, no Tapajós, no Madeira e no Rio Negro, o povoamento,
iniciado desde os tempos coloniais, se entorpeceu ou retrogradou, retratando-se
na ruinaria dos vilarejos a caírem com as barrancas solapadas, ali,
ajustando-se-lhes às margens, progrediu tão de improviso que
determinou, em menos de cinqüenta anos, uma dilatação de
fronteiras.
Era inevitável. O forasteiro, ao penetrar o Purus ou o Juruá,
não carecia de excepcionais recursos à emprêsa. Uma canoa
maneira e um varejão, ou um remo, aparelhavam-no às mais espantosas
viagens. O rio carregava-o; guiava-o; alimentando-o; protegendo-o. Restava-lhe
o só esfôrço de colhêr à ourela das matas
marginais as especiarias valiosas; atestar com elas os seus barcos primitivos
e volver águas abaixo – dormindo em cima da fortuna adquirida sem trabalho.
A terra farta, mercê duma armazenagem milenária de riquezas,
excluía a cultura. Abria-se-lhe em avenidas fluviais maravilhosas.
Impôs-lhe a tarefa exclusiva das colheitas. Por fim tornou-lhe lógico
o nomadismo.
O nome de “montaria”, da sua ubá aligeirada, é extremamente
expressivo. Ela o ajustou àquelas solidões de nível,
como o cavalo adaptou o tártaro às estepes. Esta diferença
apenas: ao passo que o calmuco tem nos infinitos pontos do horizonte infinitos
rumos atraindo-o ao nomadismo irradiante à roda da sua iurta, que ao
mudar-se se afigura imóvel no círculo indefinido das planuras
– o jacumaúba amazonense, subordinado a roteiros lineares, adscrito
a direções imutáveis, ficou largo tempo constrangido
entre as barrancas dos rios. Mal poderia libertar-se em desvios de poucas
léguas pelos sulcos laterais dos tributários. Ao invés
do que se acredita, aquelas rêdes hidrográficas, entretecidas
de malhas tão contínuas, não misturam as águas
das caudais diversas em largas anastomoses, insinuando-se pelas imperceptíveis
linhas de vertentes abatidas nas planícies encharcadas. O paranamirim
volve sempre ao leito principal de onde se esgalhou; e o igarapé acaba
no lago que êle alimentou nas cheias para que o alimente nas vazantes,
correndo em sentidos opostos consoante as estações; ou extingue-se,
ampliando-se nos plainos empantanados escondidos pela flórula anfíbia
dos igapós inextricáveis de lianas. Entre um curso d’água
e outro, a faixa da floresta substitui a montanha que não existe. É
um isolador. Separa. E subdividiu, de fato, em longos caminhos isolados, as
massas povoadoras que demandavam aquela zona.
Viu-se então, de par com primitivas condições tão
favoráveis, êste reverso: o homem, em vez de senhorear a terra,
escravizava-se ao rio. O povoamento não se expandia: estirava-se. Progredia
em longas filas, ou volvia sôbre si mesmo sem deixar os sulcos em que
se encaixa – tendendo a imobilizar-se na aparência de um progresso ilusório,
de recuos e avançadas, do aventureiro que parte, penetra fundo a terra,
explora-a e volta pelas mesmas trilhas – ou renova, monòtonamente,
os mesmos itinerários da sua inambulação invariável.
Ao cabo, a breve, mas agitadíssima história das paragens novas,
à parte ligeiras variantes, ia imprimindo-se tôda, secamente,
naquelas extensas linhas desatadas para SO: três ou quatro riscos, três
ou quatro desenhos de rios, coleando, indefinidos, num deserto…

* * *

Ora, êste aspecto social desalentador, criado sobretudo pelas condições
em comêço tão favoráveis, dos rios, corrige-se
pela ligação transversa de seus grandes vales.
A idéia não é original, nem nova. Há muito tempo,
com intuição admirável, os rudes povoadores daqueles
longínquos recantos realizaram-na com a abertura dos primeiros varadouros.
O varadouro – legado da atividade heróica dos paulistas compartido
hoje pelo amazonense, pelo boliviano e pelo peruano – é a vereda atalhadora
que vai por terra de uma vertente fluvial a outra.
A princípio tortuoso e breve, apagando-se no afogado da espessura,
êle reflete a própria marcha indecisa da sociedade nascente e
titubeante, que abandonou o regaço dos rios para caminhar por si. E
foi crescendo com ela. Hoje nas suas trilhas estreitíssimas, de um
metro de largura, tiradas a facão, estirando-se por tôda a parte,
entretecendo-se em voltas inumeráveis, ou encruzilhadas, e ligando
os afluentes esgalhados de tôdas as cabeceiras, do Acre para o Purus,
dêste para o Juruá e daí para o Ucaiáli, vai traçando-se
a história contemporânea do nôvo território, de
um modo de todo contraposto à primitiva submissão ao fatalismo
imponente das grandes linhas naturais de comunicação.
Nos seus torcicolos, impostos pelas linhas mais altas das pequenas vertentes
deprimidas, sente-se um estranho movimento irrequieto, de revolta. Trilhando-os,
o homem é, de fato, um insubmisso. Insurge-se contra a natureza carinhosa
e traiçoeira, que o enriquecia e matava. Repele-lhe tanto os amparos
antigos que realiza na maior das mesopotâmias a anomalia de navegar
em sêco; ou esta transfiguração: carrega de um rio para
o outro o barco que o carregava outrora. Por fim, numa afirmativa crescente
da vontade, vai estirando de rio em rio, retramada com os infinitos fios dos
igarapés, a rêde aprisionadora, de malhas cada vez menores e
mais numerosas, que lhe entregará em breve a terra dominada.
E do Acre para o Iaco, para o Tauamano e para o Orton: do Purus para o Madre
de Diós, para o Ucaiáli, para o Javari, trilhando aforradamente
o território em todos os quadrantes, os acreanos, despeados do antigo
traço de união do Amazonas longínquo, que os submetia,
dispersos, ao litoral afastado, vão em cada uma daquelas veredas atrevidas,
firmando um símbolo tangível de independência e de posse.
Tomemos um exemplo de testemunho estrangeiro.
Em 1904 o oficial da marinha peruana, Germano Stiglich, encontrou no Javari
vários brasileiros, que o surpreenderam com a simples narrativa de
uma travessia costumeira, ante a qual se apequenavam as suas mais estiradas
rotas de explorador notável. Registrou-a em um de seus relatórios:
os sertanistas entram pelo Javar, subindo o Itacoaí até às
cabeceiras; varam dali, por terra a buscarem as vertentes do Ipixuna: alcançam-nas;
transmontam-nas; descem o pequeno tributário; chegam ao Juruá;
navegam até S. Felipe, onde infletem, penetrando o Tarauacá,
o Envira e o Jurupari até onde subam as suas canoas ligeiras; deixam-nas;
rompem outra vez por terra a encontrarem o Purus nas cercanias de Sobral;
descem, embarcados, 760 km do grande rio até a foz do Ituxi; e enveredando
por êste último, vão, depois de uma outra varação
por terra, atingir o Abunã, que baixam, abordando, afinal à
margem esquerda do Madeira.
A derrota, com a percentagem de 20% sôbre as retas da desmedida linha
quebrada que a define, avalia-se em 3.000 km, ou o dôbro da estrada
tradicional, dos bandeirantes, entre S. Paulo e Cuiabá. Os obscuros
pioneiros prolongam a êstes dias a tradição heróica
das entradas, que constituem o único aspecto original da nossa História.
Aquêle roteiro, entretanto, alonga-se contorcendo-se em voltas sobremaneira
extensas. Abreviemo-lo, baseando-nos em alguns dados seguros.
Partindo de Remate dos Males, no Javari, nas cercanias de Tabatinga, o viajante,
em qualquer estação, pode sulcar num dia o Itacoaí até
a confluência do Ituí, percorrendo 140 km itinerários.
Prossegue por terra em terreno firme, no rumo de SE pelo extenso varadouro
de 190 km que corta as cabeceiras do Jutaí e termina em S. Felipe,
à margem do Juruá, empregando apenas cinco dias de marcha. Sobe
o Tarauacá, embarcado, até a foz do Envira; e desta à
do Jurupari, prosseguindo a buscar as suas mais altas vertentes, num percurso
máximo de 350 km que vencerá em pouco mais de uma semana. Rompe
o breve varadouro que o leva ao Furo do Juruá, e atinge, descendo-o,
ao fim de dois dias, de lancha, realizados os ligeiros reparos de que carece
o rio. A sede da Prefeitura do Alto-Purus, distante 24 km, alcança-se
em duas horas de navegação; e dali, pelo varadouro do Oriente,
longo de 25 léguas percorrido normalmente em cinco dias, chega-se ao
seringal Bajé, &aagrave; margem esquerda do Acre. Transpondo êste
rio e seguindo para leste a cortar os derradeiros tributários do Iquiri
e os campos do Gavião, o caminhante vai ao Abunã, a jusante
da embocadura do Tipamanu, e daí ao Beni, na confluência do Madeira,
percorrendo cêrca de 300 km em oito dias, por terra.
Dêste modo, em pouco mais de um mês de travessia, vencendo-se
907 km por águas e 660 por terra, pode-se vir de Tabatinga a Vila Bela,
diagonalmente, de um a outro extremo da Amazônia, naquele itinerário
de 250 léguas.
A êstes números falta, sem dúvida, o rigorismo das quilometragens
regulares; mas não variam talvez de um décimo sôbre a
realidade, à parte os dados demasiado falíveis relativos à
navegação do Tarauacá e ao rumo por terra do Jurupari
ao Purus.
Excluamo-los nesta variante: partindo do mesmo ponto à margem do Javari
e sulcando o Itacoaí até aos seus derradeiros formadores, o
viajante encontra o antigo varadouro do Ipixuna que o conduz ao Juruá
e a Cruzeiro do Sul, capital do Departamento, em percurso pouco maior do que
o anterior por S. Felipe.
Ora, de Cruzeiro do Sul às sedes dos departamentos do Purus e do Acre
podem remover-se todos os inconvenientes daquela navegação precária,
sujeita a fatigante roteiro.
De fato, o extenso segmento retilíneo, de 605 km, da linha Cunha Gomes,
é a própria linha de ensaio de um varadouro notável ligando
as três sedes administrativas. Dando-se-lhe o desenvolvimento exagerado
de 20% sôbre a distância, terá a extensão de 726
km; ou sejam, exatamente, 110 léguas, que podem ser transpostas em
grande parte, a cavalo, em menos de doze dias.
Observe-se, de passagem, que êste projeto não se delineia nos
riscos arbitrários a que se avezam os exploradores de mapas, ou consoante
“o conhecido processo do Tzar Nicolau I, riscando com a unha do polegar
o traçado da estrada de Petersburgo a Moscou”.
Esteia-se em reconhecimentos, certo despidos de azimutes, ou cotas esclarecedoras
de aneróides, mas práticos e concludentes. O primeiro trecho,
normal ao vale do Taruacá, planeado pelo General Taumaturgo de Azevedo,
já se acha em grande parte aberto por um seringueiro de Cocamera –
e estende-se em terrenos tão afeiçoados à marcha que,
depois de concluído o caminho, “ir-se-á do Juruá
ao Tarauacá, a cavalo, em quatro dias” conforme afirma o ex-Prefeito
em seu penúltimo relatório; ao passo que atualmente, para efetuar-se
a mesma viagem, “em vapor, que faça poucas escalas e dobre a foz
do Tarauacá, consomem-se 15 dias, no mínimo”.
O segmento intermediário, de Barcelona ou Nôvo Destino à
confluência do Caeté, no Iaco, por sua vez estudado pela Prefeitura
do Alto-Purus, é de execução facílima, todo desatado
sôbre breve altiplano livre das inundações. E o último,
do Iaco ao Acre, tem há muito tempo um tráfego permanente.
Dêste modo a grande estrada de 726 km, unindo os três departamentos,
e capaz de prolongar-se de um lado até ao Amazonas, pelo Javari, e
de outro até ao Madeira, pelo Abunã, está de todo reconhecida,
e na maior parte trilhada.
A intervenção urgentíssima do Govêrno Federal impõe-se
como dever elementaríssimo de aviventar e reunir tantos esforços
parcelados.
Deve consistir porém no estabelecimento de uma via férrea –
a única estrada de ferro urgente e indispensável no Território
do Acre.
Atalhemos uma objeção inicial.
A fisiografia amazônica figura-se sempre obstáculo indispensável
a tais emprêsas. Mas os que a agitam, em argumentos que temos por escusado
reproduzir, não podem, certo, compreender as linhas férreas
da Índia. De fato, no Industão pròpriamente dito, o nivelamento
superficial, o solo aluviano de areias e argilas acumuladas em espessuras
indefinidas, e as características climáticas, patenteiam-se
em condições idênticas. Ali, como na Amazônia, os
rios destacam-se pela grandeza, volumes excessivos nas cheias, amplitudes
das inundações, e volubilidade dos canais nos leitos divagantes.
Os nulla incontáveis, serpeantes por toda a banda, desenham-se na hidrografia
caótica dos igarapés; e o Purus, o Juruá, o Acre e seus
tributários, não variam tanto de curso e de regime quanto o
Ganges e os rios de Punjab, cujas pontes foram o maior problema que resolveu
a engenharia inglêsa.
Na Índia, como entre nós, não faltaram profissionais
apavorados ante as dificuldades naturais – esquecidos de que a engenharia
existe precisamente para vencê-las. Ao discutir-se o memorandum Kennedy,
onde germinou a viação indu, o Coronel Grant, do corpo de engenheiros
de Bombaim, pilheriou sisudamente, propondo com a maior seriedade que os trilhos
se suspendessem em todo o correr das linhas por meio de séries regulares
de cadeias, em rijos postes fronteantes, a oito pés acima do solo…
E desafiou o humor magnífico de seus fleugmáticos colegas. Os
rígidos railroadmen replicaram-lhe tempos depois, esmagadoramente,
com a West Indian Peninsular, e nobilitaram tôda a engenharia de estradas
de ferro obedecendo a uma de suas fórmulas mais civilizadoras, enunciada
por Mac-George: “In every country it is necessary that railway should
be ladi out with references to the distribuition of population and to the
necessities of people, rather than to the mere physical characteristics of
its geography…”
Ora, no caso atual, ainda êsses caracteres físicos e geográficos
evidenciam-se favoráveis.
A estrada de Cruzeiro do Sul ao Acre não irá, como as do Sul
do nosso país, justapondo-se à diretriz dos grandes vales, porque
tem um destino diverso. Estas últimas, sobretudo em S. Paulo, são
tipos clássicos de linhas de penetração: levam o povoamento
ao âmago da terra. Naquele recanto amazônico esta função,
como o vimos, é desempenhada pelos cursos d’água. À
linha planeada resta o destino de distribuir o povoamento, que já existe.
É uma auxiliar dos rios. Corta-lhes, por isto, transversa, os vales.
Daí esta conseqüência inegável: adapta-se, naturalmente,
mercê da própria direção, às deprimidas
áreas divisórias dos afluentes laterais, e, acompanhando-os,
forra-se em grande parte aos empecilhos daquela hidrografia embaralhada.
Por outro lado, ao sul do paralelo de 8º persiste, certo, o facies
predominante da enorme várzea amazonense. Mas atenuado. A inconstância
tumultuária das águas não se retrata em curvas tão
numerosas e volúveis. Os terrenos, expandindo-se em ondulações
ligeiras com a altitude média, absoluta, de 200 metros, são,
no geral, firmes e a cavaleiro das enchentes. Trilhamo-los em vários
pontos. Está-se, visívelmente, sôbre formações
mais antigas, definidas e estáveis, que as da imensa planura pós-quaternária
onde ainda se adivinham as derradeiras transformações geológicas
do Amazonas, no conflito inevitável entre os cursos d’água
inconstantes e a várzea inconsistente.
Além disto, os obstáculos naturais, reduzem-nos, ou amortecem-nos,
os traçados que se lhes afeiçoes. A via férrea em questão
deve modelar-se pelas condições técnicas menos dispendiosas
a um primeiro estabelecimento – caracterizando-se, sobretudo, por uma via
singela, de bitola reduzida, de 0,76 m ou 0,91 m, ou no máximo de 1,0
m entre trilhos, que lhe permita os maiores declives e as menores curvas,
dando-lhe plasticidade para volver-se em busca dos terrenos mais altos e estáveis,
que lhe alteiem o grado acima das zonas inundadas em traçados quase
à flor da terra. Deve nascer como nasceram as maiores estradas atuais:
trilhos de 18 quilos, no máximo, por metro corrente, capazes de locomotivas
de escasso pêso aderente de 15 a 20 toneladas; curvas que se arqueiem
até aos raios de 50 metros; e declives que se aprumem até 5%
submetidos a todos os movimentos do solo.
Não os tem muito melhores a Central Pacific, de Nevada, com a sua bitola
estreita, sem balastro, serpeando com a mesma levidade de trilhos em curvas
de 90 metros, e tornejando pendores em rampas inclassificáveis. Ou
o Transiberiano, onde locomotivas de 30 toneladas, rebocando 1/6 de pêso
aderente sôbre trilhos de 19 quilos, andando com a velocidade de 20
km por hora, não raro recuavam, desandando, constrangidas, se encontravam
de frente, repelindo-as, ponteiras, as ventanias ríspidas das estepes…
Sem dúvida, de uma tal superestrutura, a que se liga o imperfeito do
material rodante, de tração ou transporte, resultará
reduzidíssima capacidade de tráfego. Mas a linha acreana, a
exemplo da Union Pacific Railway, não vai satisfazer um tráfego,
que não existe, senão criar o que deve existir.
Como as norte-americanas, construir-se-á aceleradamente, para reconstruir-se
vagarosamente.
É um processo generalizado. Tôdas as grandes estradas, no evitarem
os empeços que se lhes antolham transpondo as depressões e iludindo
os maiores cortes com os mais primitivos recursos que lhes facultem um rápido
estiramento dos trilhos, erigem-se nos primeiros tempos como verdadeiros caminhos
de guerra contra o deserto, imperfeitos, selvagens. E como para justificar
o asserto, o primeiro engenheiro das suas obras rudimentares – que hoje se
fazem como há dois mil anos – de suas estacadas, de suas pontes e pontilhões
de madeira mal lavradas, superpostas em linhas sôbre os styli fixi dos
tanchões roliços, é César.
Depois evolvem; e crescem, aperfeiçoando os elementos da sua estrutura
complexa, como se fôssem enormes organismos vivos.

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