Os Sertões

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Euclides da Cunha

Capítulo I

Preliminares. A entrada do sertão. Terra ignota. Em caminho para Monte Santo. Primeiras impressões. Um sonho de geólogo.

O Planalto Central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que descamba para a costa oriental em andares, ou
repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza afastando-o consideravelmente para o interior.

De sorte que quem o contorna, seguindo para o norte, observa notáveis mudanças de relevos: a principio o traço contínuo e dominante das montanhas, precintando-o, com destaque saliente, sobre a linha projetante das praias; depois, no segmento de orla marítima entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral revolto, feito da envergadura desarticulada das serras, riçado de cumeadas e corroído de angras, e escancelando-se em baias, repartindo-se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito secular que ali se trava entre os mares e a terra; em seguida, transposto o 15° paralelo, a atenuação de todos os acidentes — serranias que se arredondam e suavizam as linhas dos taludes, fracionadas em morros de encostas indistintas no horizonte que se amplia; até que em plena faixa costeira da Bahia, o olhar, livre
dos anteparos de serras que até lá o repulsam e abreviam, se dilata em cheio para o ocidente, mergulhando no âmago da terra amplíssima lentamente emergindo num ondear longínquo de chapadas…

Este facies geográfico resume a morfogenia do grande maciço continental.

Demonstra-o análise mais íntima feita por um corte meridiano qualquer, acompanhando à bacia do S. Francisco.

Vê-se, do fato, que três formações geognósticas
díspares, de idades mal determinadas, aí se substituem, ou se
entrelaçam, em estratificações discordantes, formando
o predomínio exclusivo de umas, ou a combinação de todas,
os traços variáveis da fisionomia da terra. Surgem primeiro
as possantes massas gnaissegraníticas, que a partir do extremo sul
se encurvam em desmedido anfiteatro, alteando as paisagens admiráveis
que tanto encantam e iludem as vistas inexpertas dos forasteiros. A princípio
abeiradas do mar progridem em sucessivas cadeias, sem rebentos laterais, até
as raias do litoral paulista, feito dilatado muro de arrimo sustentando as
formações sedimentárias do interior. A terra sobranceia
o oceano, dominante, do fastígio das escarpas; e quem a alcança
como quem vinga a rampa de um majestoso palco, justifica todos os exageros
descritivos — do gongorismo de Rocha Pita às extravagâncias
geniais de Buckle — que fazem deste país região privilegiada,
onde a natureza armou a sua mais portentosa oficina.

É que, de feito, sob o tríplice aspecto astronômico,
topográfico e geológico a nenhuma se afigura tão afeiçoada
à Vida.

Transmontadas as serras, sob a linha fulgurante do trópico, vêem-se,
estirados para o ocidente e norte, extensos chapadões cuja urdidura
de camadas horizontais de grés argiloso, intercaladas de emersões
calcárias, ou diques de rochas eruptivas básicas, do mesmo passo
lhes explica a exuberância sem par e as áreas complanadas e vastas.
A terra atrai irresistivelmente o homem, arrebatando-o na própria correnteza
dos rios que, do Iguaçu ao Tietê, traçando originalíssima
rede hidrográfica, correm da costa para os sertões, como se
nascessem nos mares e canalizassem as suas energias eternas para os recessos
das matas opulentas. Rasgam facilmente aqueles estratos em traçados
uniformes, sem talvegues deprimidos, e dão ao conjunto dos terrenos
até além do Paraná a feição de largos plainos
ondulados, desmedidos.

Entretanto, para leste a natureza é diversa.

Estereografa-se, duramente, nas placas rígidas dos afloramentos gnáissicos;
e o talude dos planaltos dobra-se do socalco da Mantiqueira, onde se encaixa
o Paraíba, ou desfaz-se em rebentos que, após apontarem as alturas
de píncaros centralizados pelo Itatiaia, levam até o âmago
de Minas as paisagens alpestres do litoral. Mas ao penetrar-se este Estado
nota-se, malgrado o tumultuar das serranias, lenta descensão geral
para o norte. Como nos altos chapadões de São Paulo e do Paraná,
todas as caudais revelam este pendor insensível com derivarem em leitos
contorcidos e vencendo, contrafeitas, o antagonismo permanente das montanhas:
o rio Grande rompe, rasgando-a com a força viva da corrente, a serra
da Canastra, e, norteados pela meridiana, abrem-se adiante os fundos vales
de erosão do rio das Velhas e do S. Francisco. Ao mesmo tempo, transpostas
as sublevações que vão de Barbacena a Ouro Preto, as
formações primitivas desaparecem, mesmo nas maiores eminências,
e jazem sotopostas a complexas séries de xistos metamórficos,
infiltrados de veeiros fartos, nas paragens lendárias do ouro.

A mudança estrutural origina quadros naturais mais imponentes que
os da borda marítima. A região continua alpestre. O caráter
das rochas, exposto nas abas dos cerros de quartzito, ou nas grimpas em que
se empilham as placas do itacolomito avassalando as alturas, aviva todos os
acidentes, desde os maciços que vão de Ouro Branco a Sabará,
à zona diamantina expandindo-se para nordeste nas chapadas que se desenrolam
nivelando-se às cimas da serra do Espinhaço; e esta, apesar
da sugestiva denominação de Eschwege, mal sobressai, entre aquelas
lombadas definidoras de uma situação dominante. Dali descem,
acachoantes, para o levante, tombando em catadupas ou saltando “travessões”
sucessivos, todos os rios que do Jequitinhonha ao Doce procuram os terraços
inferiores do planalto arrimados à serra dos Aimorés; e volvem
águas remansadas para o poente os que se destinam à bacia de
captação do S. Francisco, em cujo vale, depois de percorridas
ao sul as interessantes formações calcárias do rio das
Velhas, salpintadas de lagos, solapadas de sumidouros e ribeirões subterrâneos,
onde se abrem as cavernas d<STRONG>O HOMEM</STRONG>pré-histórico
de Lund, se acentuam outras transições na contextura superficial
do solo.

De fato, as camadas anteriores, que vimos superpostas às rochas graníticas,
decaem, por sua vez sotopondo-se a outras, mais modernas de espessos estratos
de grés.

Novo horizonte geológico reponta com um traço original e interessante.
Mal estudado embora, caracteriza-o notável significação
orográfica, porque as cordilheiras dominantes do sul ali se extinguem,
soterradas, numa inumação estupenda, pelos possantes estratos
mais recentes, que as circundam. A terra, porém, permanece elevada,
alongando-se em planuras amplas, ou avultando em falsas montanhas de denudação,
descendo em aclives fortes, mas tendo os dorsos alargados em plainos inscritos
num horizonte de nível, apenas apontoado a leste pelos vértices
dos albardões distantes, que perlongam a costa.

Verifica-se. assim, a tendência para um aplainamento geral.

Porque, neste coincidir das terras altas do interior e a depressão
das formações arqueanas, a região montanhosa de minas
se vai prendendo, sem ressaltos, à extensa zona dos tabuleiros do norte.

A serra do Grão Mogol raiando as lindes da Bahia, é o primeiro
espécimen dessas esplêndidas chapadas imitando cordilheiras,
que tanto perturbam aos geógrafos descuidados; e as demais que a convizinham,
da do Cabral mais próxima, à da Mata da Corda alongando-se para
Goiás, modelam-se de maneira idêntica. Os sulcos de erosão
que as retalham são cortes geológicos expressivos. Ostentam
em plano vertical, sucedendo-se a partir da base, as mesmas rochas que vimos
substituírem em alongado roteiro pela superfície: embaixo os
rebentos graníticos decaídos pelo fundo dos vales, em cômoros
esparsos; à meia encosta, inclinadas, as placas xistosas mais recentes;
no alto, sobrepujando-as, ou circuitando-lhes os flancos em vales monoclínicos,
os lençóis de grés, predominantes e oferecendo aos agentes
meteóricos plasticidade admirável aos mais caprichosos modelos.
Sem linhas de cumeadas, as maiores serranias nada mais são que planuras
altas, extensas rechãs terminando de chofre em encostas abruptas, na
molduragem golpeante do regímen torrencial sobre o terreno permeável
e móvel. Caindo por ali há séculos as fortes enxurradas,
derivando a princípio em linhas divagantes de drenagem, foram pouco
a pouco reprofundando-as, talhando-as em quebradas que se fizeram cañons,
e se fizeram vales em declive, até orlarem de escarpamentos e despenhadeiros
aqueles plainos soerguidos. E consoante a resistência dos materiais
trabalhados variaram nos aspectos: aqui apontam, rijamente, sobre as áreas
de nível, os últimos fragmentos das rochas enterradas, desvendando-se
em fraguedos que mal relembram, na altura, o antiqüíssimo “Himalaia
brasileiro”, desbarrancado, em desintegração contínua,
por todo o curso das idades; adiante, mais caprichosos, se escalonam em alinhamentos
incorretos de menires colossais, ou em círculos enormes, recordando
na disposição dos grandes blocos superpostos, em rimas, muramentos
desmantelados de ciclópicos coliseus em ruínas ou então,
pelos visos das escarpas, oblíquos e sobreanceando as planuras que,
interopostos, ladeiam, lembram aduelas desconformes, restos da monstruosa
abóbada da antiga cordilheira, desabada…

Mas desaparecem de todo em vários pontos.

Estiram-se então planuras vastas. Galgando-as pelos taludes, que as
soerguem dando-lhes a aparência exata de tabuleiros suspensos, topam-se,
a centenas de metros, extensas áreas ampliando-se, boleadas, pelos
quadrantes, numa prolongação indefinida, de mares. É
a paragem formosíssima dos campos gerais, expandida em chapadões
ondulantes –grandes tablados onde campeia a sociedade rude dos vaqueiros…

Atravessêmo-la.

Adiante, a partir de Monte Alto, estas conformações naturais
se bipartem: no rumo firme do norte a série do grés figura-se
progredir até ao plateau arenoso do Açuruá, associando-se
ao calcário que aviva as paisagens na orla do grande rio, prendendo-as
às linhas dos cerros talhados em diáclase, tão bem expressos
no perfil fantástico do Bom Jesus da Lapa; enquanto para nordeste,
graças a degradações intensas (porque a serra Geral segue
por ali como anteparo aos alísios, condensando-os em diluvianos aguaceiros),
se desvendam, ressurgindo, as formações antigas.

Desenterram-se as montanhas.

Reponta a região diamantina, na Bahia, revivendo inteiramente a de
Minas, como um desdobramento ou antes um prolongamento, porque é a
mesma formação mineira rasgando, afinal, os lençóis
de grés, e alteando-se com os mesmos contornos alpestres e perturbados,
nos alcantis que irradiam da Tromba ou avultam para o norte nos xistos huronianos
das cadeias paralelas de Sincorá.

Deste ponto em diante, porém, o eixo da serra Geral se fragmenta,
indefinido. Desfaz-se. A cordilheira eriça-se de contrafortes e talhados
de onde saltam, acachoando, em despenhos, para o levante, as nascentes do
Paraguaçu, e um dédalo de serranias tortuosas, pouco elevadas
mas inúmeras, cruza-se embaralhadamente sobre o largo dos gerais, cobrindo-os.
Transmuda-se o caráter topográfico, retratando o desapoderado
embater dos elementos, que ali reagem há milênios entre montanhas
derruídas, e a queda, até então gradativa, dos planaltos
começa a derivar em desnivelamentos consideráveis. Revela-os
o S. Francisco, no vivo infletir com que torce para o levante, indicando do
mesmo passo a transformação geral da região.

Esta é mais deprimida e mais revolta.

Cai para os terraços inferiores, entre um tumultuar de morros, incoerentemente
esparsos. Último rebento da serra principal, a da Itiúba reúne-lhe
alguns galhos indecisos, fundindo as expansões setentrionais das da
Furna, Cocais e Sincorá. Alteia-se um momento, mas descai logo para
todos os rumos: para o norte, originando a corredeira de quatrocentos quilômetros
à jusante do Sobradinho; para o sul, em segmentos dispersos que vão
até além do Monte Santo; e para leste, passando sob as chapadas
de Jeremoabo, até se desvendar no salto prodigioso de Paulo Afonso.

E o observador que seguindo este itinerário deixa as paragens em que
se revezam, em contraste belíssimo, a amplitude dos gerais e o fastígio
das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido…

A entrada sertão

Está sobre um socalco do maciço continental, ao norte.

Demarca-o de uma banda, abrangendo dois quadrantes, em semicírculo,
o rio de S. Francisco: e de outra, encurvando também para sudeste,
numa normal a direção primitiva, o curso flexuoso do Itapicuru-açu.
Segundo a mediana, correndo quase paralelo entre aqueles, com o mesmo descambar
expressivo para a costa, vê-se o traço de um outro rio, o Vaza-Barris,
o Irapiranga dos tapuias, cujo trecho de Jeremoabo para as cabeceiras é
uma fantasia de cartógrafo. De fato, no estupendo degrau, por onde
descem para o mar ou para jusante de Paulo Afonso as rampas esbarrancadas
do planalto, não há situações de equilíbrio
para uma rede hidrográfica normal. Ali reina a drenagem caótica
das torrentes, a naquele da Bahia facies excepcional e selvagem.

Terra ignota

Abordando-o, compreende-se que até hoje escasseiem sobre tão
grande trato de território, que quase abarcaria a Holanda (9º
11′ — 10º 20′ de lat. e 4° — 3° de long. O.R.J. ), notícias
exatas ou pormenorizadas. As nossas melhores cartas, enfeixando informes escassos,
lá têm um claro expressivo, um hiato, Terra ignota, em que se
aventura o rabisco de um rio problemático ou idealização
de uma corda de serras.

E. que transpondo o Itapicuru, pelo lado do sul, as mais avançadas
turmas de povoadores estacaram em vilarejos minúsculos — Maçacará,
Cumbe ou Bom Conselho — entre os quais o decaído Monte Santo tem visos
de cidade: transmontada a Itiúba, a sudoeste, disseminaram-se pelos
povoados que a abeiram acompanhando insignificantes cursos de água,
ou pelas raras fazendas de gado, estremados todos por uma tapera obscura —
Uauá, ao norte e a leste pararam às margens do S. Francisco,
entre Capim Grosso e Santo Antônio da Glória.

Apenas naquele último rumo se avantajou uma vila secular, Jeremoabo,
batizando o máximo esforço de penetração em tais
lugares, evitados sempre pelas vagas humanas, que vinham do litoral baiano
procurando o interior.

Uma ou outra o cortou, rápida, fugindo, sem deixar traços.

Nenhuma lá se fixou. Não se podia fixar. O estranho território,
a menos de quarenta léguas da antiga metrópole, predestinava-se
a atravessar absolutamente esquecido os quatrocentos anos da nossa história.
Porque enquanto as bandeiras do sul lhe paravam à beira e envesgando,
depois, pelos flancos da Itiúba, se lançavam para Pernambuco
e Piauí até o Maranhão as do levante, repelidas pela
barreira intransponível de Paulo Afonso, iam procurar, no Paraguaçu
e rios que lhe demoram ao sul, linhas de acesso mais praticáveis, Deixavam-no
de permeio, inabordável, ignoto.

É que mesmo trilhando o último daqueles rumos, adstritas a
itinerário menos longo, as salteava impressionadoramente o aspecto
estranho da terra repontando em transições imprevistas.

Deixando a orla marítima e seguindo em cheio para o ocidente, tinham,
transcorridas poucas léguas, amolentada ou desinfluída a atração
das “entradas” aventurosas, e extinta a miragem do litoral opulento.
Logo a partir de Camassari as formações antigas cobrem-se de
escassas manchas terciárias, alternando com exíguas bacias cretáceas,
revestidas do terreno arenoso de Alagoinhas que mal esgarçam, a leste,
as emersões calcárias de Inhambupe. A vegetação
em roda transmuda-se, copiando estas alternativas com a precisão de
um decalque. Rarefazem-se as matas, ou empobrecem. Extinguem-se, por fim,
depois de lançarem rebentos esparsos pelo topo das serranias; e estas
mesmo, aqui e ali, cada vez mais raras, ilham-se ou avançam em promontório
nas planuras desnudas dos campos, onde uma flora característica —
arbustos flexuosos entrechassados de bromélias rubras — prepondera
exclusiva em largas áreas, mal dominada pela vegetação
vigorosa irradiante da Pojuca sobre o massapé feraz das camadas cretáceas
decompostas.

Deste lugar em diante, reaparecem os terrenos terciários esterilizadores,
sobre os mais antigos que, entretanto, depois, dominam em toda a zona centralizada
em Serrinha. Os morros do Lopes e do Lajedo aprumam-se, à maneira de
disformes pirâmides de blocos arredondados e lisos; e os que se sucedem,
beirando de um e outro lado as abas das serras da Saúde e da Itiúba,
até Vila Nova da Rainha e Juazeiro, copiam-lhes os mesmos contornos
das encostas estaladas, exumando a ossatura partida das montanhas.

O observador tem a impressão de seguir torneando a truncadura malgradada
da borda de um planalto.

Calca, de fato, estrada três vezes secular, histórica vereda
por onde avançavam os rudes sertanistas nas suas excursões para
o interior.

Não a alteraram nunca.

Não a variou, mais tarde, a civilização, justapondo
aos rastos do bandeirante os trilhos de uma via férrea.

Porque o caminho em cuja longura de cem léguas, da Bahia ao Juazeiro,
se entroncam numerosíssimos desvios para o poente e para o sul, jamais
comportou, a partir de seu trecho médio, variante apreciável
para leste e para o norte.

Calcando-o, em demanda do Piauí, Pernambuco, Maranhão e Pará,
os povoadores, consoante vários destinos, dividiam-se em Serrinha.
E progredindo para Juazeiro, ou volvendo à direita, pela estrada real
do Bom Conselho que, desde o século 17, os levava a Santo Antônio
da Glória e Pernambuco — uns e outros contorneavam sempre, evitando-a
sempre, a paragem sinistra e desolada, subtraindo-se a uma travessia torturante.

De sorte que aquelas duas linhas de penetração, que vão
interferir o S. Francisco em pontos afastados — Juazeiro e Santo Antônio
da Glória –, formavam, desde aqueles tempos, as lindes de um deserto.

Em caminho para Monte Santo

No entanto quem se abalança a atravessá-lo, partindo de Queimadas
para nordeste, não se surpreende a princípio. Recurvo em meandros,
o Itapicuru alenta vegetação vivaz; e as barrancas pedregosas
do Jacurici debruam-se de pequenas matas. O terreno, areento e chão,
permite travessia desafogada e rápida. Aos lados do caminho ondulam
tabuleiros rasos. A pedra, aflorando em lajedos horizontais, mal movimenta
o solo, esgarçando a tênue capa das areias que o revestem.

Vêem-se, porém, depois, lugares que se vão tornando crescentemente
áridos.

Varada a estreita faixa de cerrados, que perlongam aquele último rio,
está-se em pleno agreste, no dizer expressivo dos matutos: arbúsculos
quase sem pega sobre a terra escassa, enredados de esgalhos de onde irrompem,
solitários, cereus rígidos e salientes, dando ao conjunto a
aparência de uma margem de desertos. E o facies daquele sertão
inóspito vai-se esboçando, lenta e impressionadoramente…

Galga-se uma ondulação qualquer — e ele se desvenda ou se
deixa adivinhar, ao longe, no quadro tristonho de um horizonte monótono
em que se esbate, uniforme, sem um traço diversamente colorido, o pardo
requeimado das caatingas.

Intercorrem ainda paragens menos estéreis, e nos trechos em que se
operou a decomposição in situ do granito, originando algumas
manchas argilosas, as copas virentes dos ouricurizeiros circuitam — parêntesis
breves abertos na aridez geral — as bordas das ipueiras. Estas lagoas mortas,
segundo a bela etimologia indígena, demarcam obrigatória escala
ao caminhante. Associando-se às cacimbas e “caldeirões”,
em que se abre a pedra, são-lhe recurso único na viagem penosíssima.
Verdadeiros oásis, têm contudo, não raro, um aspecto lúgubre:
localizadas em depressões, entre colinas nuas, envoltas pelos mandacarus
despidos e tristes, como espectros de árvores; ou num colo de chapada,
recortando-se com destaque no chão poento e pardo, graças à
placa verde-negra das algas unicelulares que as revestem.

Algumas denotam um esforço dos filhos do sertão. Encontram-se,
orlando-as, erguidos como represas entre as encostas, toscos muramentos de
pedra seca. Lembram monumentos de uma sociedade obscura. Patrimônio
comum dos que por ali se agitam nas aperturas do clima feroz, vêm em
geral, de remoto passado. Delinearam-nos os que se afoitaram primeiro com
as vicissitudes de uma entrada naquelas bandas. E persistem indestrutíveis,
porque o sertanejo, por mais escoteiro que siga, jamais deixa de levar uma
pedra que calce as suas junturas vacilantes.

Mas transpostos estes pontos — imperfeita cópia das barragens romanas
remanescentes na Tunísia — entra-se outra vez nos areais exsicados.
E avançando célere, sobretudo nos trechos em que se sucedem
pequenas ondulações, todas da mesma forma e do mesmo modo dispostas,
o viajante mais rápido tem a sensação da imobilidade.
Patenteiam-se-lhe uniformes, os mesmos quadros, num horizonte invariável
que se afasta à medida que ele avança. Raras vezes, como no
povoado minúsculo de Cansanção, larga emersão
de terreno fértil se recama de vegetação virente.

Despontam vivendas pobres; algumas desertas pela retirada dos vaqueiros que
a seca espavoriu; em ruínas, outras, agravando todas no aspecto paupérrimo
o traço melancólico das paisagens…

Nas cercanias de Quirinquinquá, porem, começa a movimentar-se
o solo. O pequeno sítio ali ereto alevanta-se já sobre alta
expansão granítica, e atentando-se para o norte divisa-se região
diversa — riçada de vales e serranias, perdendo-se ao longe em grimpas
fugitivas. A serra de Monte Santo, com um perfil de todo oposto aos redondos
contornos que lhe desenhou o ilustre Martins, empina-se, a pique, na frente,
em possante dique de quartzito branco, de azulados tons, em relevo sobre a
massa gnáissica que Constitui toda a base do solo. Dominante sobre
seu enorme paredão, vincado pelas linhas dos estratos, expostas pela
erosão eólia, afigura-se cortina de muralha monumental. Termina
em crista altíssima, estremando-lhe o desenvolvimento no rumo de 13°
NE, a cavaleiro da vila que se lhe erige no sopé. Centraliza um horizonte
vasto. Observa-se, então, que atenuados para o sul e leste, os acidentes
predominantes da terra progridem avassalando os quadrantes do norte.

O sítio do Caldeirão, três léguas adiante, ergue-se
à margem dessa sublevação metamórfica; e alcançando-o,
e transpondo entra-se. afinal, em cheio, no sertão adusto…

Primeiras impressões

É uma paragem impressionadora

As condições estruturais da terra lá se vincularam à
violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos
estupendos. O regímen torrencial dos climas excessivos, sobrevindo,
de súbito, depois das insolações demoradas, e embatendo
naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe
todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos
rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos,
e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando
duramente a cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça — dispondo-se
em cenários em que ressalta predominante, o aspecto atormentado das
paisagens.

Porque o que estas denunciam — no enterroado do chão, no desmantelo
dos cerros quase desnudos, no contorcido dos leitos secos dos ribeirões
efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma flora
decídua embaralhada em esgalhos — é de algum modo o martírio
da terra, brutalmente golpeada pelos elementos variáveis, distribuídos
por todas as modalidades climáticas. De um lado a extrema secura dos
ares, no estio, facilitando pela irradiação noturna a perda
instantânea do calor absorvido pelas rochas expostas às soalheiras,
impõe-lhes a alternativa de alturas e quedas termométricas repentinas:
e daí um jogar de dilatações e contrações
que as disjunge, abrindo-as segundo os planos de menor resistência.
De outro, as chuvas que fecham, de improviso, os ciclos adurentes das secas,
precipitam estas reações demoradas.

As forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima
e na superfície sem intervalos na ação demolidora, substituindo-se,
com intercadência invariável, nas duas estações
únicas da região.

Dissociam-na nos verões queimosos; degradam-na nos invernos torrenciais.
Vão do desequilíbrio molecular, agindo surdamente, à
dinâmica portentosa das tormentas. Ligam-se e completam-se. E consoante
o preponderar de uma e outra, ou o entrelaçamento de ambas, modificam-se
os aspectos naturais. As mesmas assomadas gnáissicas caprichosamente
cindidas em planos quase geométricos, à maneira de silhares,
que surgem em numerosos pontos, dando, às vezes, a ilusão de
encontrar-se, de repente, naqueles ermos vazios, majestosas ruinarias de castelos
— adiante se cercam de fraguedos, em desordem, mal seguros sobre as bases
estreitas, em ângulos de queda, incombentes e instáveis, feito
loghans oscilantes, ou grandes desmoronamentos de dolmens; e mais longe desaparecem
sob acervos de blocos, com a imagem perfeita desses “mares de pedra”
tão característicos dos lugares onde imperam os regímens
excessivos. Pelas abas dos cerros, que tumultuam em roda — restos de velhíssimas
chapadas corroídas –, se derramam, ora em alinhamentos relembrando
velhos caminhos de geleiras, ora esparsos a esmo, espessos lastros de seixos
e lajens fraturadas, delatando idênticas violências. As arestas
dos fragmentos, onde persistem ainda cimentados ao quartzo os cristais de
feldspato, são novos atestados desses eleitos físicos e mecânicos
que, despedaçando as rochas, sem que se decomponham os seus elementos
formadores, se avantajaram ao vagar dos agentes químicos em função
dos fatos meteorológicos normais.

Deste modo se tem a cada passo, em todos os pontos, um lineamento incisivo
de rudeza extrema. Atenuando-o em parte, deparam-se várzeas deprimidas,
sedes de antigos lagos, extintos agora em ipueiras apauladas, que demarcam
os pousos dos vaqueiros. Recortam-nas, no entanto, abertos em caixão,
os leitos as mais das vezes secos de ribeirões que só se enchem
nas breves estações das chuvas. Obstruídos, na maioria,
de espessos lastros de blocos entre os quais, fora das enchentes súbitas,
defluem tênues fios de água, são uma reprodução
completa dos oueds que marginam o Saara. Despontam-lhes em geral, normais
às barrancas, estratos de um talcoxisto azul-escuro em placas brunidas
reverberando a luz em fulgurar metálico — e sobre elas, cobrindo extensas
áreas, camadas menos resistentes de argila vermelha, cindidas de veios
de quartzo, interceptando-lhes, discordantes, os planos estratigráficos.
Estas últimas formações, silurianas talvez, cobrem de
todo as demais à medida que se caminha para NE e apropriam-se a contornos
mais corretos. Esclarecem a gênese dos tabuleiros rasos, que se desatam,
cobertos de uma vegetação resistente, de mangabeiras, até
Jeremoabo.

Para o norte, porém, inclinam-se mais fortemente as camadas. Sucedem-se
cômoros despidos, de pendores resvalantes, descaindo em quebradas onde
enxurram torrentes periódicas, solapando-os; e pelos seus topos divisam-se,
alinhadas em fileiras, destacadas em lâminas, as mesmas infiltrações
quartzosas, expostas pela decomposição dos xistos em que se
embebem.

À luz crua dos dias sertanejos aqueles cerros, aspérrimos rebrilham,
estonteadoramente — ofuscante, num irradiar ardentíssimo.

As erosões constantes quebram, porém, a continuidade destes
estratos que ademais, noutros pontos, desaparecem sob as formações
calcárias. Mas o conjunto pouco se transmuda. A feição
ruiniforme destas, casa-se bem a dos outros acidentes. E nos trechos em que
elas se estiram, planas, pelo solo, desabrigadas de todo ante a acidez corrosiva
dos aguaceiros tempestuosos, crivam-se, escarificadas, de cavidades circulares
e acanaladuras fundas, diminutas mas inúmeras, tangenciando-se em quinas
de rebordos cortantes, em pontas e duríssimos estrepes que impossibilitam
as marchas.

Deste modo, por qualquer vereda, sucedem-se acidentes pouco elevados mas
abruptos, pelos quais tornejam os caminhos, quando não se justapõem
por muitas légua aos leitos vazios dos ribeirões esgotados.
E por mais inexperto que seja o observador — ao deixar as perspectivas majestosas,
que se desdobram ao Sul, trocando-as pelos cenários emocionantes daquela
natureza torturada, tem a impressão persistente de calcar o fundo recém-sublevado
de um mar extinto, tendo ainda estereotipada naquelas camadas rígidas
a agitação das ondas e das voragens…

Um sonho de geólogo

É uma sugestão empolgante.

Vai-se de boa sombra com um naturalista algo romântico, imaginando-se
que por ali turbilhonaram, largo tempo, na idade terciária, as vagas
e as correntes.

Porque, a despeito da escassez de dados permitindo uma dessas profecias retrospectivas,
no dizer elegante de Huxley, capaz de esboçar a situação
daquela zona em idades remotas, todos os caracteres que sumariamos reforçam
a concepção aventurosa.

Alentam-na ainda: o estranho desnudamento da terra; os alinhamentos notáveis
em que jazem os materiais fraturados, orlando, em verdadeiras curvas de nível,
os flancos das serranias; as escarpas dos tabuleiros terminando em taludes
a prumo, que recordam falaises; e, até certo ponto, os restos da fauna
pliocena, que fazem dos caldeirões enormes ossuários de mastodontes,
cheios de vértebras caldeirões desconjuntadas e partidas, como
se ali a vida fosse, de chofre, salteada e extinta pelas energias revoltas
de um cataclismo.

Há também a presunção derivada de situação
anterior, exposta em dados positivos. As pesquisas de Fred. Hartt, de fato,
estabelecem, nas terras circunjacentes a Paulo Afonso, a existência
de inegáveis bacias cretáceas; e sendo os fósseis que
as definem idênticos aos encontrados no Peru e México, e contemporâneos
dos que Agassiz descobriu no Panamá — todos estes elementos se acolchetam
no deduzir-se que vasto oceano cretáceo rolou as suas ondas sobre as
terras fronteiras das duas Américas, ligando o Atlântico ao Pacífico.
Cobria, assim, grande parte dos Estados setentrionais brasileiros, indo bater
contra os terraços superiores dos planaltos, onde extensos depósitos
sedimentários denunciam idade mais antiga, o paleozóico médio.

Então, destacadas das grandes ilhas emergentes, as grimpas mais altas
das nossas cordilheiras mal apontavam ao norte, na solidão imensa das
águas…

Não existiam os Andes o Amazonas, largo canal entre altiplanuras das
Guianas e as do continente, separava-as, ilhadas. Para as bandas do sul o
maciço de Goiás — o mais antigo do mundo — segundo a dedução
dedução de Gerber, o de Minas e parte do Planalto Paulista,
onde fulgurava, em plena atividade, o vulcão de Caldas, constituíam
o núcleo do continente futuro . . .

Porque se operava lentamente uma sublevação geral: as Nassas
graníticas alteavam-se ao norte arrastando o conjunto geral das terras
numa rotação vagarosa em torno de um eixo, imaginado por Em.
Liais entre os chapadões de Barbacena e a Bolívia. Simultaneamente
,ao abrir-se a época terciária, se realiza o fato prodigioso
do alevantamento dos Andes; novas terras afloram nas águas: tranca-se,
num extremo, o canal amazônico, transmudando-se no maior dos rios; ampliam-se
os arquipélagos esparsos, e ganglionam-se em istmos, e fundem-se; arredondam-se,
maiores, os contornos das costas; e integra-se lentamente, a América.

Então os terrenos da extrema setentrional da Bahia, que se resumiam
nos cachopos de quartzito de Monte Santo e visos de Itiúba, esparsos
pelas águas, avolumaram-se, num ascender contínuo. Elas nesse
vagaroso altear-se, enquanto as regiões mais altas recém-desvendadas,
se salpintavam de lagos, toda a parte média daquela escarpa permanecia
imersa. Uma corrente impetuosa, de que é forma decaído a atual
da nossa costa, enlaçava-a. E embatendo-a longamente, domina enquanto
o resto do país, ao sul, se erigia já constituído, e
corroendo-a, e triturando-a, remoinhando para oeste e arrebatando todos os
materiais desagregados, modelava aquele recanto da Bahia até que ele
emergisse de todo, seguindo o movimento geral das terras, feito informe amontoado
de montanhas derruídas.

O regímen desértico ali se firmou, então, em flagrante
antagonismo com as disposições geográficas: sobre uma
escarpa, onde nada recorda as depressões sem escoamento dos desertos
clássicos.

Acredita-se que a região incipiente ainda está preparando-se
para a Vida: o líquen ainda ataca a pedra, fecundando a terra. E lutando
tenazmente com o flagelar do clima, uma flora de resistência rara por
ali entretece a trama das raízes, obstando, em parte, que as torrentes
arrebatem todos os princípios exsolvidos — acumulando-os pouco a pouco
na conquista da paragem desolada cujos contornos suaviza — sem impedir, contudo,
nos estios longos, as insolações inclementes e as águas
selvagens, degradando o solo.

Daí a impressão dolorosa que nos domina ao atravessarmos aquele
ignoto trecho do sertão — quase um deserto — quer se aperte entre
as dobras de serranias nuas ou se estire, monotonamente, em descampados grandes…

Capítulo II

Golpe de vista do alto de Monte Santo. Do alto da Favela.

Do alto da serra de Monte Santo atentando-se para a região, estendida
em torno num raio de quinze léguas, nota-se, como num mapa em relevo,
a sua conformação orográfica. E vê-se que as cordas
de serras, ao invés de se alongarem para o nascente, medianas aos traçados
do Vaza-Barris e Itapicuru, formando-lhes o divortium aquarum, progridem para
o norte.

Mostram-no as serras Grande e do Atanásio, correndo, e a princípio
distintas, uma para NO e outra para N e fundindo-se na do Acaru, onde abrolham
os mananciais intermitentes do Bendegó e seus tributários efêmeros.
Unificadas, aliam-se às de Caraíbas e do Lopes e nestas de novo
se embebem, formando-se as massas do Cambaio, de onde irradiam as pequenas
cadeias do Coxomongó e Calumbi, e para o noroeste os píncaros
torreantes do Caipã. Obediente à mesma tendência, a do
Aracati, lançando-se a NO, à borda dos tabuleiros de Jeremoabo,
progride, descontínua, naquele rumo e, depois de entalhada pelo Vaza-Barris
em Cocorobó, inflete para o poente, repartindo-se nas da Canabrava
e Poço-de-Cima, que a prolongam. Todas traçam, afinal, elítica
curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura
ondeante onde se erigia o arraial de Canudos — e daí para o norte,
de novo se dispersam e decaem até acabarem em chapadas altas à
borda do S. Francisco.

Deste modo, no ascender para o norte, procurando o chapadão que o
Parnaíba escava, aquele talude dos planaltos parece dobrar-se num ressalto,
perturbando toda a área de drenagem do S. Francisco abaixo da confluência
do Patamuté, num traçado de torrentes sem nome, inapreciáveis
na mais favorável escala, e impondo ao Vaza-Barris um curso tortuoso
do qual ele se liberta em Jeremoabo, ao infletir para a costa.

Este é um rio sem afluentes. Falta-lhe conformidade com o declive
da terra. Os seus pequenas tributários, o Bendegó e Caraíbas,
volvendo águas transitórias, dentro dos leitos rudemente escavados,
não traduzem as depressões do solo. Têm a existência
fugitiva das estações chuvosas. São, antes, canais de
esgotamento, abertos a esmo pelos enxurros — ou correntes velozes que, adstritas
aos relevos topográficos mais próximos, estão, não
raro, em desarmonia com as disposições orográficas gerais.
São rios que sobem. Enchem-se de súbito; transbordam; reprofundam
os leitos, anulando o obstáculo do declive geral do solo; rolam por
alguns dias para o rio principal; e desaparecem, volvendo ao primitivo aspecto
de valos em torcicolos, cheios de pedras, e secos.

O próprio Vaza-Barris, rio sem nascentes em cujo leito viçam
gramíneas e pastam os rebanhos, não teria o traçado atual
se corrente perene lhe assegurasse um perfil de equilíbrio através
de esforço contínuo e longo. A sua função como
agente geológico é revolucionária. As mais vezes cortado,
fracionando-se em gânglios estagnados, ou seco, à maneira de
larga estrada poenta e tortuosa, quando cresce, empanzinado, nas cheias, captando
as águas selvagens que estrepitam nos pendores, volve por algumas semanas
águas barrentas e revoltas, extinguindo-se logo em esgotamento completo,
vazando, como o indica o dizer português, substituindo-lhe com vantagem
a antiga denominação indígena. É uma onda tombando
das vertentes da Itiúba, multiplicando a energia da corrente no apertado
dos desfiladeiros, e correndo veloz entre barrancos, ou entalada em serras,
até Jeremoabo.

Vimos como a natureza, em roda, lhe imita o regímen brutal — calcando-o
em terreno agro, sem os cenários opulentos das serras e dos tabuleiros
ou dos sem-fins das chapadas — mas feito um misto em que tais disposições
naturais se baralham, em confusão pasmosa: planícies que de
perto revelam séries de cômoros, retalhados de algares; morros
que o contraste das várzeas faz de grande altura e estão poucas
dezenas de metros sobre o solo, e tabuleiros que em sendo percorridos mostram
a acidentação caótica de boqueirões escancelados
e brutos. Nada mais dos belos efeitos das denudações lentas,
no remodelar os pendores, no despertar os horizontes e no desatar — amplíssimos
— os gerais pelo teso das cordilheiras, dando aos quadros naturais a encantadora
grandeza de perspectivas em que o céu e a terra se fundem em difusão
longínqua e surpreendedora de cores…

Entretanto, inesperado quadro esperava o viandante que subia, depois desta
travessia em que supõe pisar escombros de terremotos, as ondulações
mais próximas de Canudos.

Do alto da Favela

Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar para abranger de um lance
o conjunto da terra. E nada mais divisava recordando-lhe os cenários
contemplados. Tinha na frente a antítese do que vira. Ali estavam os
mesmos acidentes e o mesmo chão, embaixo, fundamente revolto, sob o
indumento áspero dos pedregais e caatingas estonadas… Mas a reunião
de tantos traços incorretos e duros — arregoados divagantes de algares,
sulcos de despenhadeiros, socavas de bocainas, criava-lhe perspectiva inteiramente
nova. E quase compreendia que os matutos crendeiros de imaginativa ingênua,
acreditassem que “ali era o céu…”.

O arraial, adiante e embaixo, erigia-se no mesmo solo perturbado. Mas vistos
daquele ponto, de permeio a distância suavizando-lhes as encostas e
aplainando-os — todos os serrotes breves e inúmeros, projetando-se
em plano inferior e estendendo-se, uniformes, pelos quadrantes, davam-lhe
a ilusão de uma planície ondulante e grande.

Em roda uma elipse majestosa de montanhas…

A Canabrava, a nordeste, de perfil abaulado e simples; a do Poço de
cima, próxima, mas íngreme e alta; a de Cocorobó, no
levante, ondulando em seladas, dispersa em esporões; as vertentes retilíneas
do Calumbi ao sul; as grimpas do Cambaio, no correr para o poente; e, para
o norte, os contornos agitados do Caipã –ligam-se e articulam-se no
infletir gradual traçando, fechada, a curva desmedida.

Vendo ao longe, quase de nível, trancando-lhe o horizonte, aquelas
grimpas altaneiras, o observador tinha a impressão alentadora de se
achar sobre plateau elevadíssimo, páramo incomparável
repousando sobre as serras.

Na planície rugada, embaixo, mal se lobrigavam os pequenos cursos
d’água, divagando, serpeantes…

Um único se distinguia, o Vaza-Barris. Atravessava-a, torcendo-se
em meandros. Presa numa dessas voltas via-se uma depressão maior, circundada
de colinas… E atulhando-a, enchendo-a toda de confusos tetos incontáveis,
um acervo enorme de casebres…

Capítulo III

O clima. Higrômetros singulares.

Dos breves apontamentos indicados, resulta que os caracteres geológicos
e topográficos, a par dos demais agentes físicos, mutuam naqueles
lugares as influências características de modo a não se
poder afirmar qual o preponderante.

Se, por um lado, as condições genéticas reagem fortemente
sobre os últimos, estes, por sua vez, contribuíram para o agravamento
daquelas; e todas persistem nas influência recíprocas. Deste
perene conflito feito num círculo vicioso indefinido, ressalta a dignificação
mesológica do local. Não há abrangê-la em todas
modalidades. Escasseiam-nos as observações às coisas
desta terra, com uma inércia cômoda de mendigos fartos.

Nenhum pioneiro da ciência suportou ainda as agruras daquele rincão
sertanejo, em prazo suficiente para o definir.

Martius por lá passou, com a mira essencial de observar o aerólito,
que tombara à margem do Bendegó e era já, desde 1810,
conhecido nas academias européias, graças a F. Mornay e Wollaston.
Rompendo, porém, a região selvagem, desertus austral, como a
batizou, mal atentou para a teria recamada de uma flora extravagante, sylva
horrida, no seu latim alarmado. Os que o antecederam e sucederam palmilharam,
ferretoados da canícula, as mesmas trilhas rápidas, de quem
foge. De sorte que sempre evitado, aquele sertão, até hoje desconhecido,
ainda o será por muito tempo.

O que se segue são vagas conjeturas. Atravessamo-lo no prelúdio
de um estio ardente e, vendo-o apenas nessa quadra, vimo-lo sob o pior aspecto.
O que escrevemos tem o traço defeituoso dessa impressão isolada,
desfavorecida, ademais, por um meio contraposto à serenidade do pensamento,
tolhido pelas emoções da guerra. Além disto os dados
de um termômetro único e de um aneróide suspeito, misérrimo
arsenal científico com que ali lidamos, nem mesmo vagos lineamentos
darão de climas que divergem segundo as menores disposições
topográficas, criando aspectos díspares entre lugares limítrofes.
O de Monte Santo, por ex., que é, ao primeiro comparar, muito superior
ao de Queimadas, diverge do dos lugares que lhe demoram ao norte, sem a continuidade
que era lícito prever de sua situação intermédia.
A proximidade das massas montanhosas torna-o estável, lembrando um
regímen marítimo em pleno continente: escala térmica
oscilando em amplitudes insignificantes; firmamento onde a transparência
dos ares é completa e a limpidez inalterável; e ventos reinantes,
o SE no inverno e o NE no estio — alternando-se com rigorismo raro. Mas está
insulado. Para qualquer das bandas, deixa-o o viajante num dia de viagem.
Se vai para o norte, salteiam-no transições fortíssimas:
a temperatura aumenta; carrega-se o azul dos céus; embaciam-se os ares;
e as ventanias rolam desorientadamente de todos os quadrantes — ante a tiragem
intensa dos terrenos desabrigados, que dali por diante se estiram. Ao mesmo
tempo espelha-se o regímen excessivo: o termômetro oscila em
graus disparatados passando, já em outubro, dos dias com 35° à
sombra para as madrugadas frias.

No ascender do verão acentua-se o desequilíbrio. Crescem a
um tempo as máximas e as mínimas, até que no fastígio
das secas transcorram as horas num intermitir inaturável de dias queimosos
e noites enregeladas.

A terra desnuda tendo contrapostas, em permanente conflito, as capacidades
emissiva e absorvente dos materiais que a formam, do mesmo passo armazena
os ardores das soalheiras e deles se esgota, de improviso. Insola-se e enregela-se,
em 24 horas. Fere-a o sol e ela absorve-lhe os raios, e multiplica-os e reflete-os,
e refrata-os, num reverberar ofuscante: pelo topo dos cerros, pelo esbarrancado
das encostas, incendeiam-se as acendalhas da sílica fraturada, rebrilhantes,
numa trama vibrátil de centelhas; a atmosfera junto ao chão
vibra num ondular vivíssimo de bocas de fornalha em que se pressente
visível, no expandir das colunas aquecidas, a efervescência dos
ares; e o dia, incomparável no fulgor, fulmina a natureza silenciosa,
em cujo seio se abate, imóvel, na quietude de um longo espasmo, a galhada
sem folhas da flora sucumbida.

Desce a noite, sem crepúsculo, de chofre — um salto da treva por
cima de uma franja vermelha do poente — e todo este calor se perde no espaço
numa irradiação intensíssima, caindo a temperatura de
súbito, numa queda única, assombrosa . . .

Ocorrem, todavia, variantes cruéis. Propelidas pelo nordeste, espessas
nuvens, tufando em cúmulos, pairam ao entardecer sobre as areias incendidas.
Desaparece o sol e a coluna mercurial permanece imóvel, ou, de preferência,
sobe. A noite sobrevém em fogo; a terra irradia como um sol escuro,
porque se sente uma dolorosa impressão de faúlhas invisíveis;
mas toda a ardência reflui sobre ela, recambiada pelas nuvens. O barômetro
cai, como nas proximidades das tormentas; e mal se respira no bochorno inaturável
em que toda a adustão golfada pela soalheira se concentra numa hora
única da noite.

Por um contraste explicável, este fato jamais sucede nos paroxismos
estivais das secas, em que prevalece a intercadência de dias esbraseados
e noites frigidíssimas, agravando todas as angústias dos martirizados
sertanejos.

Copiando o mesmo singular desequilíbrio das forças que trabalham
a terra, os ventos ali chegam, em geral, turbilhonando revoltos, em rebojos
largos. E, nos meses em que se acentua, o nordeste grava em tudo sinais que
lhe recordam o rumo.

Estas agitações dos ares desaparecem, entretanto, por longos
meses; reinando calmarias pesadas — ares imóveis sob a placidez luminosa
dos dias causticantes. Imperceptíveis exercem-se, então, as
correntes ascensionais dos vapores aquecidos sugando à terra a umidade
exígua; e quando se prolongam, esboçando o prelúdio entristecedor
da seca, a secura da atmosfera atinge a graus anormalíssimos.

Higrômetros singulares

Não a observamos através do rigorismo de processos clássicos,
mas graças a higrômetros inesperados e bizarros.

Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo
à monotonia de um canhoneio frouxo de tiros espaçados e soturnos,
encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas
se dispunham circulando a um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros
virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores
rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em
abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando
a vegetação franzina.

O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido
por ela — braços largamente abertos, face volvida para os céus,
— um soldado descansava.

Descansava… havia três meses.

Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da mannlicher estrondada, o
cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam
que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra,
certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada
de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não
fora percebido. Não compartira, por isto, à vala comum de menos
de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última
vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera
do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade
lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três
meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus,
para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes…

E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços
fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador
cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore
benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da
matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida
sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível.
Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema
dos ares.

Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimens empalhados,
de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas
e o arcabouço engelhado e duro.

À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava
impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o alferes Wanderley; e
abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar, porém, estrebuchando
malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta,
entalado entre fraguedos. Ficou quase em pé, com as patas dianteiras
firmes num ressalto da pedra… E ali estacou feito um animal fantástico,
aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso
da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando,
ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas
crinas ondulantes . . .

Quando aquelas lufadas, caindo a súbitas, se compunham com as colunas
ascendentes, em remoinhos turbilhonantes, à maneira de minúsculos
ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente adusto:
cada partícula de areia suspensa do solo gretado e duro irradiava em
todos os sentidos, feito um foco calorífico, a surda combustão
da terra.

Fora disto — nas longas calmarias, fenômenos óticos bizarros.

Do topo da Favela, se a prumo dardejava o sol e a atmosfera estagnada imobilizava
a natureza em torno, atentando-se para os descambados, ao longe, não
se distinguia o solo.

O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio das camadas desigualmente
aquecidas, parecendo varar através de um prisma desmedido e intáctil,
e não distinguia a base das montanhas, como que suspensas. Então,
ao norte da Canabrava, numa enorme expansão dos plainos perturbados,
via-se um ondular estonteador; estranho palpitar de vagas longínquas;
a ilusão maravilhosa de um seio de mar, largo, irisado, sobre que caísse,
e refrangesse, e ressaltasse a luz esparsa em cintilações ofuscantes…

Capítulo IV

As secas. Hipóteses sobre a sua gênese. As caatingas.

O sertão de Canudos é um índice sumariando a fisiografia
dos sertões do Norte. Resume-os, enfeixa os seus aspectos predominantes
numa escala reduzida. É-lhes de algum modo uma zona central comum.

De fato, a inflexão peninsular, extremada pelo cabo de S. Roque, faz
que para ele convirjam as lindes interiores de seis Estados — Sergipe, Alagoas,
Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí — que o tocam ou
demoram distantes poucas léguas.

Desse modo é natural que as vicissitudes climáticas daqueles
nele se exercitem com a mesma intensidade, nomeadamente em sua manifestação
mais incisiva, definida numa palavra que é o terror máximo dos
rudes partícios que por ali se agitam — a seca.

Escusamo-nos de longamente a estudar, averbando o desbarate dos mais robustos
espíritos no aprofundar-lhe a gênese, tateantes ao través
de sem número de agentes complexos e fugitivos. Indiquemos, porém,
inscrita num traçado de números inflexíveis, esta fatalidade
inexorável.

De fato, os seus ciclos — porque o são no rigorismo técnico
do termo — abrem-se e encerram-se com um ritmo tão notável
que recordam o desdobramento de uma lei natural, ainda ignorada.

Revelou-o, pela primeira vez, o senador Tomás Pompeu, traçando
um quadro por si mesmo bastante eloqüente, em que os aparecimentos das
secas, no século passado e atual, se defrontam em paralelismo singular,
sendo de presumir que ligeiras discrepâncias indiquem apenas defeitos
de observação ou desvios na tradição oral que
as registrou.

De qualquer modo ressalta à simples contemplação uma
coincidência repetida bastante para que se remova a intrusão
do acaso.

Assim, para citarmos apenas as maiores, as secas de (1710-1711), (1723-1727),
(1736-1737), (1744-1745), (1777-1778), do século 18, se justapõem
às de ( 1808-1809 ), ( 1824-1825 ) (1835-1837), (1844-1845), (1877-1879),
do atual.

Esta coincidência, espelhando-se quase invariável, como se surgisse
do decalque de uma quadra sobre outra, acentua-se ainda na identidade das
quadras remansadas e longas que, em ambas, atreguaram a progressão
dos estragos.

De fato, sendo, no século passado, o maior interregno de 32 anos (1745-1777),
houve no nosso outro absolutamente igual e, o que é sobremaneira notável,
com a correspondência exatíssima das datas (1845-1877).

Continuando num exame mais íntimo do quadro, destacam-se novos dados
fixos e positivos, aparecendo com um rigorismo de incógnitas que se
desvendam. Observa-se, então, uma cedência raro perturbada na
marcha do flagelo, intercortado de intervalos pouco díspares entre
nove e doze anos, e sucedendo-se de maneira a permitirem previsões
seguras sobre a sua irrupção.

Entretanto, apesar desta simplicidade extrema nos resultados imediatos, o
problema, que se pode traduzir na fórmula aritmética mais simples,
permanece insolúvel.

Hipóteses sobre a gênese das secas

Impressionado pela razão desta progressão raro alterada, e
fixando-a um tanto forçadamente em doze anos, um naturalista, o barão
de Capanema, teve o pensamento de rastrear nos fatos extraterrestres, tão
característicos pelos períodos invioláveis em que se
sucedem, a sua origem remota. E encontrou na regularidade com que repontam
e se extinguem, intermitentemente, as manchas da fotosfera solar, um símile
completo.

De fato, aqueles núcleos obscuros, alguns mais vastos que a Terra,
negrejando dentro da cercadura fulgurante das fáculas, lentamente derivando
à feição da rotação do Sol, têm entre
o máximo e o mínimo da intensidade, um período que pode
variar de nove a doze anos. E como desde muito a intuição genial
de Herschel lhes descobrira o influxo apreciável na dosagem de calor
emitido para a Terra, a correlação surgia inabalável,
neste estear-se em dados geométricos e físicos acolchetando-se
num efeito único.

Restava equiparar o mínimo das manchas, anteparo à irradiação
do grande astro, ao fastígio das secas no planeta torturado — de modo
a patentear, cômpares, os períodos de umas e outras.

Falhou neste ponto, em que pese à sua forma atraentíssima,
a teoria planeada: raramente coincidem as datas do paroxismo estival, no Norte,
com as daquele.

O malogro desta tentativa, entretanto, denuncia menos a desvalia de uma aproximação
imposta rigorosamente por circunstâncias tão notáveis,
do que o exclusivismo de atentar-se para uma causa única. Porque a
questão, com a complexidade imanente aos fatos concretos, se atém,
de preferência, a razões secundárias, mais próximas
e enérgicas, e estas, em modalidades progredindo, contínuas,
da natureza do solo à disposição geográfica, só
serão definitivamente sistematizadas quando extensa série de
observações permitir a definição dos agentes preponderantes
do clima sertanejo.

Como quer que seja, o penoso regímen dos Estados do Norte está
em função de agentes desordenados e fugitivos, sem leis ainda
definidas, sujeitas às perturbações locais, derivadas
da natureza da terra, e a reações mais amplas, promanadas das
disposições geográficas. Daí as correntes aéreas
que o desequilibram e variam.

Determina-o em grande parte, e talvez de modo preponderante, a monção
de nordeste, oriunda da forte aspiração dos planaltos interiores
que, em vasta superfície alargada até ao Mato Grosso, são,
como se sabe, sede de grandes depressões barométricas, no estio.
Atraído por estas, o nordeste vivo, ao entrar, de dezembro a março,
pelas costas setentrionais, é singularmente favorecido pela própria
conformação da terra, na passagem célere por sobre os
chapadões desnudos que irradiando intensamente lhe alteiam o ponto
de saturação diminuindo as probabilidades das chuvas, e repelindo-o,
de modo a lhe permitir acarretar para os recessos do continente, intacta,
sobre os mananciais dos grandes rios, toda a umidade absorvida na travessia
dos mares.

De fato, a disposição orográfica dos sertões,
à parte ligeiras variantes — cordas de serras que se alinham para
nordeste paralelamente à monção reinante — , facilita
a travessia desta. Canaliza-a. Não a contrabate num antagonismo de
encostas, abarreirando-a, alteando-a, provocando-lhe resfriamento e a condensação
em chuvas.

Um dos motivos das secas repousa, assim, na disposição topográfica.

Falta às terras flageladas do Norte uma alta serrania que, correndo
em direção perpendicular àquele vento, determine a dynamic
colding, consoante um dizer expressivo.

Um fato natural de ordem mais elevada esclarece esta hipótese.

Assim é que as secas aparecem sempre entre duas datas fixadas há
muito pela prática dos sertanejos, de 12 de dezembro a 19 de março.
Fora de tais limites não há um exemplo único de extinção
de secas. Se os atravessam, prolongam-se fatalmente por todo o decorrer do
ano, até que se reabra outra vez aquela quadra. Sendo assim e lembrando-nos
que é precisamente dentro deste intervalo que a longa faixa das calmas
equatoriais, no seu lento oscilar em torno do equador, paira no zênite
daqueles Estados. levando a borda até aos extremos da Bahia, não
poderemos considerá-la, para o caso, com a função de
uma montanha ideal que correndo de leste a oeste corrigindo momentaneamente
lastimável disposição orográfica, se anteponha
a monção e lhe provoque a parada, a ascensão das correntes,
o resfriamento subseqüente e a condensação imediata nos
aguaceiros diluvianos que tombam então, de súbito, sobre os
sertões ?

Este desfiar de conjeturas tem o valor de indicar quantos fatores remotos
podem incidir numa questão que duplamente nos interessa pelo seu traço
superior na ciência, e pelo seu significado mais íntimo no envolver
o destino de extenso trato do nosso país. Remove, por isto, a segundo
plano o influxo até hoje inutilmente agitado dos alísios, e
é de alguma sorte fortalecido pela intuição do próprio
sertanejo para quem a persistência do nordeste — o vento da seca, como
o batiza expressivamente — equivale à permanência de uma situação
irremediável e crudelíssima.

As quadras benéficas chegam de improviso.

Depois de dois ou três anos, como de 1877-1879, em que a insolação
rescalda intensamente as chapadas desnudas, a sua própria intensidade
origina um reagente inevitável. Decai afinal, por toda a parte, de
modo considerável, a pressão atmosférica. Apruma-se maior
e mais bem definida, a barreira das correntes ascensionais dos ares aquecidos,
antepostas às que entram pelo litoral. E entrechocadas umas e outras,
num desencadear de tufões violentos, alteiam-se, retalhadas de raios,
nublando em minutos o firmamento todo, desfazendo-se logo depois em aguaceiros
fortes sobre os desertos recrestados.

Então parece tornar-se visível o anteparo das colunas ascendentes,
que determinam o fenômeno, na colisão formidável com o
nordeste.

Segundo numerosas testemunhas — as primeiras bátegas despenhadas
da altura não atingem a terra. A meio caminho se evaporam entre as
camadas referventes que sobem, e volvem, repelidas, às nuvens, para,
outra vez condensando-se, precipitarem-se de novo e novamente refluírem;
até tocarem o solo que a princípio não umedecem, tornando
ainda aos espaços com rapidez maior, numa vaporização
quase como se houvessem caído sobre chapas incandescentes, para mais
uma vez descerem, numa permuta rápida e contínua, até
que se formem, afinal, os primeiros fios de água derivando pelas pedras,
as primeiras torrentes em despenhos pelas encostas, afluindo em regatos já
avolumados entre as quebradas, concentrando-se tumultuariamente em ribeirões
correntosos; adensando-se, estes, em rios barrentos traçados ao acaso,
à feição dos declives, em cujas correntezas passam velozmente
os esgalhos das árvores arrancadas, rolando todos e arrebentando na
mesma onda, no mesmo caos de águas revoltas e escuras…

Se ao assalto subitâneo se sucedem as chuvas regulares, transmudam-se
os sertões, revivescendo. Passam, porém não raro, num
giro célere, de ciclone. A drenagem rápida do terreno e a evaporação,
que se estabelece logo mais viva, tornam-nos, outra vez, desolados e áridos.
E penetrando-lhes a atmosfera ardente, os ventos duplicam a capacidade higrométrica,
e vão, dia a dia, absorvendo a umidade exígua da terra –reabrindo
o ciclo inflexível das secas…

As caatingas

Então, a travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva
que a de uma estepe nua.

Nesta, ao menos, o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a perspectiva
das planuras francas.

Ao passo que a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o;
enlaça-o na trama espinescente e não o atrai; repulsa-o com
as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças;
e desdobra-se-lhe na frente léguas e léguas, imutável
no aspecto desolado: árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos,
revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se
flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante
. . .

Embora esta não tenha as espécies reduzidas dos desertos —
mimosas tolhiças ou eufórbias ásperas sobre o tapete
das gramíneas murchas — e se afigure farta de vegetais distintos,
as suas árvores, vistas em conjunto, semelham uma só família
de poucos gêneros, quase reduzida a uma espécie invariável,
divergindo apenas no tamanho, tendo todas a mesma conformação,
a mesma aparência de vegetais morrendo, quase sem troncos, em esgalhos
logo ao irromper do chão. É que por um efeito explicável
de adaptação às condições estreitas do
meio ingrato, evolvendo penosamente em círculos estreitos, aquelas
mesmo que tanto se diversificam nas matas ali se talham por um molde único.
Transmudam-se, e em lenta metamorfose vão tendendo para limitadíssimo
número de tipos caracterizados pelos atributos dos que possuem maior
capacidade de resistência.

Esta impõe-se, tenaz e inflexível.

A luta pela vida, que nas florestas se traduz como uma tendência irreprimível
para a luz, desatando-se os arbustos em cipós, elásticos, distensos,
fugindo ao afogado das sombras e alteando-se presos mais aos raios do Sol
do que aos troncos seculares de ali, de todo oposta, é mais obscura,
é mais original, é mais comovedora. O Sol é o inimigo
que é forçoso evitar, iludir ou combater. E evitando-o pressente-se
de algum modo, como o indicaremos adiante, a inumação da flora
moribunda, enterrando-se os caules pelo solo. Mas como este, por seu turno,
é áspero e duro, exsicado pelas drenagens dos pendores ou esterilizado
pela sucção dos estratos completando as insolações,
entre dois meios desfavoráveis — espaços candentes e terrenos
agros –as plantas mais robustas trazem no aspecto anormalíssimo, impressos,
todos os estigmas desta batalha surda.

As leguminosas, altaneiras noutros lugares, ali se tornam anãs. Ao
mesmo tempo ampliam o âmbito das frondes, alargando a superfície
de contato com o ar, para a absorção dos escassos elementos
nele difundidos. Atrofiam as raízes mestras batendo contra o subsolo
impenetrável e substituem-nas pela expansão irradiante das radículas
secundárias, ganglionando-as em tubérculos túmidos de
seiva. Amiúdam as folhas. Fitam-nas rijamente, duras como cisalhas,
à ponta dos galhos para diminuírem o campo da insolação.
Revestem de um indumento protetor os frutos, rígidos, às vezes,
como estróbilos. Dão-lhes na deiscência perfeita com que
as vagens se abrem, estalando como se houvessem molas de aço, admiráveis
aparelhos para propagação das sementes, espalhando-as profusamente
pelo chão. E têm, todas, sem excetuar uma única, no perfume
suavíssimo das flores , anteparos intácteis que nas noites frias
sobre elas se alevantam e se arqueiam obstando a que sofram de chofre as quedas
de temperatura, tendas invisíveis e encantadoras, resguardando-as…

Assim disposta, a árvore aparelha-se para reagir contra o regímen
bruto.

Ajusta-se sobre os sertões o cautério das secas; esterilizam-se
os ares urentes; empedra-se o chão, gretando, recrestado; ruge o nordeste
nos ermos; e, como um cilício dilacerador, a caatinga estende sobre
a terra as ramagens de espinhos… Mas, reduzidas todas as funções,
a planta, estivando, em vida latente, alimenta-se das reservas que armazena
nas quadras remansadas e rompe os estios, pronta a transfigurar-se entre os
deslumbramentos da primavera.

Algumas, em terrenos mais favoráveis, iludem ainda melhor as intempéries,
em disposição singularíssima.

Vêem-se numerosos aglomerados em capões ou salpintando, isolados,
as macegas, arbúsculos de pouco mais de metro de alto, de largas folhas
espessas e luzidias, exuberando floração ridente em meio da
desolação geral. São os cajueiros anões, os típicos
anacardia humilis das chapadas áridas, os cajuís dos indígenas.
Estes vegetais estranhos, quando ablaqueados em roda, mostram raízes
que se entranham a surpreendente profundura. Não há desenraizá-los.
O eixo descendente aumenta-lhes maior à medida que se escava. Por fim
se nota que ele vai repartindo-se em divisões dicotômicas. Progride
pela terra dentro até a um caule único e vigoroso, embaixo.

Não são raízes, são galhos. E os pequeninos arbúsculos,
esparsos, ou repontando em tufos, abrangendo às vezes largas áreas,
uma árvore única e enorme, inteiramente soterrada.

Espancado pelas canículas, fustigado dos sóis, roído
dos enxurros, torturado pelos ventos, o vegetal parece derrear-se aos embates
desses elementos antagônicos e abroquelar-se daquele modo, invisível,
no solo sobre que alevanta apenas os mais altos renovos da fronde majestosa.

Outros, sem esta conformação, se aparelham de outra sorte.

As águas que fogem no volver selvagem das torrentes, ou entre as camadas
inclinadas dos xistos, ficam retidas, longo tempo, nas espatas das bromélias,
aviventando-as. No pino dos verões, um pé de macambira é
para o matuto sequioso um copo d’água cristalina e pura. Os caroás
verdoengos, de flores triunfais e altas; os gravatás e ananases bravos,
trançados em touceiras impenetráveis, copiam-lhe a mesma forma,
adrede feita àquelas paragens estéreis. As suas folhas ensiformes,
lisas e lustrosas, como as da maioria dos vegetais sertanejos, facilitam a
condensação dos vapores escassos trazidos pelos ventos, por
maneira a debelar-se o perigo máximo à vida vegetativa, resultante
de larga evaporação pelas folhas, esgotando e vencendo a absorção
pelas radículas.

Sucedem-se outros, diversamente apercebidos, sob novos aprestos, mas igualmente
resistentes.

As nopaleas e cactus, nativas em toda a parte, entram na categoria das fontes
vegetais, de Saint-Hilaire. Tipos clássicos da flora desértica,
mais resistentes que os demais, quando decaem a seu lado, fulminadas, as árvores
todas, persistem inalteráveis ou mais vívidos talvez. Afeiçoaram-se
aos regímens bárbaros; repelem os climas benignos em que estiolam
e definham. Ao passo que o ambiente em fogo dos desertos parece estimular
melhor a circulação da seiva entre os seus cladódios
túmidos.

As favelas, anônimas ainda na ciência — ignoradas dos sábios,
conhecidas demais pelos tabaréus –talvez um futuro gênero cauterium
das leguminosas, têm, nas folhas de células alongadas em vilosidades,
notáveis aprestos de condensação, absorção
e defesa. Por um lado, a sua epiderme ao resfriar-se, à noite, muito
abaixo da temperatura do ar, provoca, a despeito da secura deste, breves precipitações
de orvalho; por outro, a mão, que a toca, toca uma chapa incandescente
de ardência inaturável.

Ora, quando ao revés das anteriores as espécies não
se mostram tão bem armadas para a reação vitoriosa, observam-se
dispositivos porventura mais interessantes: unem-se, intimamente abraçadas,
transmudando-se em plantas sociais. Não podendo revidar isoladas, disciplinam-se,
congregam-se, arregimentam-se. São deste número todas as cesalpinas
e as catingueiras, constituindo, nos trechos em que aparecem, sessenta por
cento das caatingas; os alecrins-dos-tabuleiros, e os canudos-de-pito, heliotrópios
arbustivos de caule oco, pintalgado de branco e flores em espiga, destinados
a emprestar o nome ao mais lendário dos vilarejos…

Não estão no quadro das plantas sociais brasileiras, de Humboldt,
e é possível que as primeiras vicejem, noutros climas, isoladas.
Ali se associam. E, estreitamente solidárias as suas raízes,
no subsolo, em apertada trama, retém as águas, retêm as
terras que se desagregam, e formam, ao cabo, num longo esforço, o solo
arável em que nascem, vencendo, pela capilaridade do inextricável
tecido de radículas enredadas em malhas numerosas, a sucção
insaciável dos estratos e das areias. E vivem. Vivem é o termo
— porque há, no fato, um traço superior à passividade
da evolução vegetativa…

O juazeiro

Têm o mesmo caráter os juazeiros, que raro perdem as folhas
de um verde intenso, adrede modeladas às reações vigorosas
da luz. Sucedem-se meses e anos ardentes. Empobrece-se inteiramente o solo
aspérrimo. Mas, nessas quadras cruéis, em que as soalheiras
se agravam, à vezes, com os incêndios espontaneamente acesos
pelas ventanias atritando rijamente os galhos secos e estonados sobre o depauperamento
geral da vida, em roda, eles agitam as ramagens virentes, alheios às
estações, floridos sempre, salpintando o deserto com as flores
cor de ouro, álacres, esbatidas no pardo dos restolhos — à
maneira de oásis verdejantes e festivos.

A dureza dos elementos cresce, entretanto, em certas quadras, ao ponto de
os desnudar: é que se enterroaram há muito os fundos das cacimbas,
e os leitos endurecidos das ipueiras mostram, feito enormes carimbos, em moldes,
os rastros velhos das boiadas; e o sertão de todo se impropriou à
vida.

Então, sobre a natureza morta, apenas se alteiam os cereus esguios
e silentes, aprumando os caules circulares repartidos em colunas poliédricas
e uniformes, na simetria impecável de enormes candelabros. E avultando
ao descer das tardes breves sobre aqueles ermos, quando os abotoam grandes
frutos vermelhos destacando-se, nítidos, à meia luz dos crepúsculos,
eles dão a ilusão emocionante de círios enormes, fincados
a esmo no solo, espalhados pelas chapadas, e acesos…

Caracterizam a flora caprichosa da plenitude do estio.

Os mandacarus ( cereus jaramacaru ), atingindo notável altura, raro
aparecendo em grupos, assomando isolados acima da vegetação
caótica, são novidade atraente, a princípio. Atuam pelo
contraste. Aprumam-se tesos triunfalmente, enquanto por toda a banda a flora
se deprime. O olhar, perturbado pelo acomodar-se à contemplação
penosa dos acervos de ramalhos estorcidos, descansa e retifica-se percorrendo
os seus caules direitos e corretos. No fim de algum tempo, porém, são
uma obsessão acabrunhadora. Gravam em tudo monotonia inaturável,
sucedendo-se constantes, uniformes, idênticos todos, todos do mesmo
porte, igualmente afastados, distribuídos com uma ordem singular pelo
deserto.

Os xiquexiques (cactus peruvianus) são uma variante de proporções
inferiores, fracionando-se em ramos fervilhantes de espinhos, recurvos e rasteiros,
recamados de flores alvíssimas. Procuram os lugares ásperos
e ardentes. São os vegetais clássicos dos areais queimosos.
Aprazem-se no leito abrasante das lajens graníticas feridas pelos sóis.

Têm como sócios inseparáveis neste habitat, que as próprias
orquídeas evitam, os cabeças-de-frade, deselegantes e monstruosos
melocactos de forma elipsoidal, acanalada, de gomos espinescentes, convergindo-lhes
no vértice superior formado uma flor única intensamente rubra.
Aparecem de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando, realmente,
no tamanho, na conformação, no modo por que se espalham, a imagem
singular de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo,
numa desordem trágica. É que estreitíssima frincha lhes
permitiu insinuar, através da rocha, a raiz longa e capilar até
a parte inferior, onde acaso existam, livres de evaporação,
uns restos de umidade.

E a vasta família, revestindo todos os aspectos, decai, a pouco e
pouco, até aos quipás reptantes, espinhosos, humílimos,
trançados sobre a terra à maneira de espartos de um capacho
dilacerador; às ripsalides serpeantes, flexuosas, como víboras
verdes pelos ramos, de parceria com os frágeis cactos epifitas, de
um glauco empalecido, presos por adligantes aos estipites dos ouricurizeiros,
fugindo do solo bárbaro para o remanso da copa da palmeira.

Aqui, ali, outras modalidades: as palmatórias-do-inferno opúntias
de palmas diminutas, diabolicamente erriçadas de espinhos — com o
vivo carmim das cochonilhas que alimentam; orladas de flores rutilantes, quebrando
alacremente a tristeza solene das paisagens…

E pouco mais especializa quem anda, pelos dias claros, por aqueles ermos,
entre árvores sem folhas e sem flores. Toda a flora, como em uma derrubada,
se mistura em baralhamento indescritível. É a catanduva, mato
doente, da etimologia indígena, dolorosamente caída sobre o
seu terrível leito de espinhos !

Vingado um cômoro qualquer, postas em torno as vistas, perturba-as
o mesmo cenário desolador: a vegetação agonizante, doente
e informe, exausta, num espasmo doloroso…

É a sylva oestu aphylla, a sylva borrida, de Martius, abrindo no seio
iluminado da natureza tropical um vácuo de deserto.

Compreende-se, então, a verdade da frase paradoxal, de Aug. de Saint-Hilaire:
“Há, ali, toda a melancolia dos invernos, com um sol ardente e
os ardores do verão!”

A luz crua dos dias longos flameja sobre a terra imóvel e não
a anima. Reverberam as infiltrações de quartzo pelos cerros
calcários, desordenadamente esparsos pelos ermos, num alvejar de banquises;
e, oscilando à ponta dos ramos secos das árvores inteiriçadas,
dependuram-se as tilândsias alvacentas, lembrando flocos esgarçados,
de neve, dando ao conjunto o aspecto de uma paisagem glacial de vegetação
hibernante, nos gelos . . .

A tormenta

Mas no empardecer de uma tarde qualquer, de março, rápidas
tardes sem crepúsculos, prestes afogadas na noite, as estrelas pela
primeira vez cintilam vivamente.

Nuvens volumosas abarreiram ao longe os horizontes, recortando-os em relevos
imponentes de montanhas negras.

Sobem vagarosamente; incham, bolhando em lentos e desmesurados rebojos, na
altura; enquanto os ventos tumultuam nos plainos, sacudindo e retorcendo as
galhadas.

Embruscado em minutos, o firmamento golpeia-se de relâmpagos precípites,
sucessivos, sarjando fundamente a imprimadura negra da tormenta. Reboam ruidosamente
as trovoadas fortes. As bátegas de chuva tombam grossas, espaçadamente,
sobre o chão, adunando-se logo em aguaceiro diluviano…

Ressurreição da flora

E ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o deserto.

Sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora
tropical.

É uma mutação de apoteose.

Os mulungus rotundos, à borda das cacimbas cheias, estafolhas; as
caraíbas e baraúnas altas refrondescem à margem dos ribeirões
refertos; ramalham, ressoantes, os marizeiros esgalhados, à passagem
das virações suaves; assomam, vivazes, amortecendo as truncaduras
das quebradas, as quixabeiras de folhas pequeninas e frutos que lembram contas
de ônix; mais virentes, adensam-se os icozeiros pelas várzeas,
sob o ondular festivo das copas dos ouricuris: ondeiam, móveis, avivando
a paisagem, acamando-se nos plainos, arredondando as encostas, as moitas floridas
do alecrim-dos-tabuleiros, de caules finos e flexíveis; as umburanas
perfumam os ares, filtrando-os nas frondes enfolhadas, e — dominando a revivescência
geral — não já pela altura senão pelo gracioso do porte,
os umbuzeiros alevantam dois metros sobre o chão, irradiantes em círculo,
os galhos numerosos.

O umbuzeiro

É a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das
rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros. Representa
o mais frisante exemplo de adaptação da flora sertaneja. Foi,
talvez, de talhe mais vigoroso e alto — e veio descaindo, pouco a pouco,
numa interdecadência de estios flamívomos e invernos torrenciais,
modificando-se à feição do meio, desinvoluindo, até
se preparar para a resistência e reagindo, por fim, desafiando as secas
duradouras, sustentando-se nas quadras miseráveis mercê da energia
vital que economiza nas estações benéficas das reservas
guardadas em grande cópia nas raízes.

E reparte-as com o homem. Se não existisse o umbuzeiro aquele trato
de sertão, tão estéril que nele escasseiam os carnaubais
tão providencialmente dispersos nos que o convizinham até ao
Ceará, estaria despovoado. O umbu é para o infeliz matuto que
ali vive o mesmo que a mauritia para os garaunos dos llanos.

Alimenta-o e mitiga-lhe a sede. Abre-lhe o seio acariciador e amigo, onde
os ramos recurvos e entrelaçados parecem de propósito feitos
para a armação das redes bamboantes. E ao chegarem os tempos
felizes dá-lhe os frutos de sabor esquisito para o preparo da umbuzada
tradicional.

O gado, mesmo nos dias de abastança, cobiça o sumo acidulado
das suas folhas. Realça-se-lhe, então, o porte, levantada, em
recorte firme, a copa arredondada, num plano perfeito sobre o chão,
à altura atingida pelos bois mais altos, ao modo de plantas ornamentais
entregues à solicitude de práticos jardineiros. Assim decotadas
semelham grandes calotas esféricas. Dominam a flora sertaneja nos tempos
felizes, como os cereus melancólicos nos paroxismos estivais.

A jurema

As juremas, prediletas dos caboclos — o seu haxixe capitoso, fornecendo-lhes,
grátis, inestimável beberagem, que os revigora depois das caminhadas
longas, extinguindo-lhes as fadigas em momentos, feito um filtro mágico
— derramam-se em sebes, impenetráveis tranqueiras disfarçadas
em folhas diminutas; refrondam os marizeiros raros — misteriosas árvores
que pressagiam a volta das chuvas e das épocas aneladas do “verde”
e o termo da “magrém” — quando, em pleno flagelar da seca,
Ihes porejam na casca ressequida dos troncos algumas gotas d’água;
reverdecem os angicos; lourejam os juás em moitas, e as baraúnas
de flores em cachos, e os araticuns à ourela dos banhados… mas, destacando-se,
esparsos pelas chapadas, ou no bolear dos cerros, os umbuzeiros, estrelando
flores alvíssimas, abrolhando em folhas, que passam em fugitivos cambiantes
de um verde pálido ao róseo vivo dos rebentos novos, atraem
melhor o olhar, são a nota mais feliz do cenário deslumbrante.

O sertão é um paraíso

E o sertão é um paraíso…

Ressurge ao mesmo tempo a fauna resistente das caatingas: disparam pelas
baixadas úmidas os caititus esquivos; passam, em varas, pelas tigüeras
num estrídulo estrepitar de maxilas percutindo, os queixadas de canela
ruiva; correm pelos tabuleiros altos, em bandos, esporeando-se com os ferrões
de sob as asas, as emas velocíssimas; e as seriemas de vozes lamentosas,
e as sericóias vibrantes, cantam nos balsedos, à fimbria dos
banhados onde vem beber o tapir estacando um momento no seu trote, brutal,
inflexivelmente retilíneo, pela caatinga, derribando árvores;
e as próprias suçuaranas, aterrando os mocós espertos
que se aninham aos pares, nas luras dos fraguedos, pulam, alegres, nas macegas
altas, antes de quedarem nas tocaias traiçoeiras aos veados ariscos
ou novilhos desgarrados…

Manhãs sertanejas

Sucedem-se manhãs sem par, em que o irradiar do levante incendido
retinge a púrpura das eritrinas e destaca melhor, engrinaldando as
umburanas de casca arroxeada, os festões multicores das bignônias.
Animam-se os ares numa palpitação de asas, céleres, ruflando.
— Sulcam-nos as notas de clarins estranhos. Num tumultuar de desencontrados
vôos passam, em bandos, as pombas bravas que remigram, e rolam as turbas
turbulentas das maritacas estridentes… enquanto feliz, deslembrado de mágoas,
segue o campeiro pelos arrastadores, tangendo a boiada farta, e entoando a
cantiga predileta…

Assim se vão os dias.

Passam-se um, dois, seis meses venturosos, derivados da exuberância
da terra, até que surdamente, imperceptivelmente, num ritmo maldito,
se despeguem, a pouco e pouco, e caiam, as folhas e as flores, e a seca se
desenhe outra vez nas ramagens mortas das árvores decíduas…

Capítulo V

Uma categoria geográfica que Hegel não citou. Como se faz um
deserto. Como se extingue o deserto. O martírio secular da terra.

Resumamos, enfeixemos estas linhas esparsas.

Hegel delineou três categorias geográficas como elementos fundamentais
colaborando com outros no reagi: sobre o homem, criando diferenciações
étnicas:

As estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies
áridas; os vales férteis, profusamente irrigados; os litorais
e as ilhas.

Os llanos da Venezuela; as savanas que alargam o vale do Mississípi,
os pampas desmedidos e o próprio Atacama desatado sobre os Andes —
vasto terraço onde vagueiam dunas — inscrevem-se rigorosamente nos
primeiros.

Em que pese aos estios longos, as trombas formidáveis de areia, e
ao saltear de súbitas inundações, não se incompatibilizam
com a vida.

Mas não fixam o homem à terra.

A sua flora rudimentar, de gramíneas e ciperáceas, reviçando
vigorosa nas quadras pluviosas, é um incentivo à vida pastoril,
às sociedades errantes dos pegureiros, passando móveis, num
constante armar e desarmar de tendas, por aqueles plainas — rápidas,
dispersas aos primeiros fulgores do verão.

Não atraem. Patenteiam sempre o mesmo cenário de uma monotonia
acabrunhadora, com a variante única da cor: um oceano imóvel,
sem vagas e sem praias.

Têm a força centrífuga do deserto: repelem; desunem;
dispersam. Não se podem ligar a humanidade pelo vinculo nupcial do
sulco dos arados. São um isolador étnico como as cordilheiras
e o mar, ou as estepes da Mongólia, varejadas, em corridas doidas,
pelas catervas turbulentas dos tártaros errabundos.

Aos sertões do Norte, porém, que à primeira vista se
lhes equiparam, falta um lugar no quadro do pensador germânico.

Ao atravessá-los no estio, crê-se que entram, de molde, naquela
primeira subdivisão; ao atravessá-los no inverno, acredita-se
que são parte essencial da segunda.

Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes…

Na plenitude das secas são positivamente o deserto. Mas quando estas
não se prolongam ao ponto de originarem penosíssimos êxodos,
o homem luta como as árvores, com as reservas armazenadas nos dias
de abastança e, neste combate feroz, anônimo, terrivelmente obscuro,
afogado na solidão das chapadas, a natureza não o abandona de
todo. Ampara-o muito além das horas de desesperança, que acompanham
o esgotamento das últimas cacimbas.

Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em mutações
fantásticas, contrastando com a desolação anterior. Os
vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros escalvados, repentinamente
verdejantes. A vegetação recama de flores, cobrindo-os, os grotões
escancelados, e disfarça a dureza das barrancas, e arredonda em colinas
os acervos de blocos disjungidos — de sorte que as chapadas grandes, intermeadas
de convales, se ligam em curvas mais suaves aos tabuleiros altos. Cai a temperatura.
Com o desaparecer das soalheiras anula-se a secura anormal dos ares. Novos
tons na paisagem: a transparência do espaço salienta as linhas
mais ligeiras, em todas as variantes da forma e da cor.

Dilatam-se os horizontes. O firmamento sem o azul carregado dos desertos
alteia-se, mais profundo, ante o expandir revivescente da terra.

E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo,
sem dono.

Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora;
o empedramento do solo; a nudez da flora; e nas ocasiões em que os
estios se ligam sem a intermitência das chuvas — o espasmo assombrador
da seca.

A natureza compraz-se em um jogo de antíteses.

Eles impõem por isto uma divisão especial naquele quadro. A
mais interessante e expressiva de todas — posta, como mediadora, entre os
vales nimiamente férteis e as estepes mais áridas.

Relegando a outras páginas a sua significação como fator
de diferenciação étnica, vejamos o seu papel na economia
da terra.

A natureza não cria normalmente os desertos. Combate-os, repulsa-os.
Desdobram-se, lacunas inexplicáveis, às vezes sob as linhas
astronômicas definidoras da exuberância máxima da vida.
Expressos no tipo clássico do Saara — que é um termo genérico
da região maninha dilatada do Atlântico ao Indico, entrando pelo
Egito e pela Síria, assumindo todos os aspectos da enorme depressão
africana ao plateau arábico ardentíssimo de Nedjed e avançando
daí para as areias dos bejabans, na Pérsia — são tão
ilógicos que o maior dos naturalistas lobrigou a gênese daquele
na ação tumultuaria de um cataclismo, uma irrupção
do Atlântico, precipitando-se, águas revoltas, num irresistível
remoinhar de correntes, sobre o Norte da- África e desnudando-a furiosamente.

Esta explicação de Humboldt, embora se erija apenas como hipótese
brilhante, tem um significado superior.

Extinta a preponderância do calor central e normalizados os climas,
do extremo norte e do extremo sul, a partir dos pólos inabitáveis,
a existência vegetativa progride para a linha equinocial. Sob esta ficam
as zonas exuberantes por excelência, onde os arbustos de outras se fazem
árvores e o regímen, oscilando em duas estações
únicas, determina uniformidade favorável à evolução
dos organismos simples, presos diretamente às variações
do meio. A fatalidade astronômica da inclinação da eclética,
que coloca a Terra em condições biológicas inferiores
às de outros planetas, mal se percebe nas paragens onde uma montanha
única sintetiza, do sopé às cumeadas, todos os climas
do mundo.

Entretanto, por elas passa, interferindo a fronteira ideal dos hemisférios,
o equador termal, de traçado perturbadíssimo de inflexões
vivas, partindo-se nos pontos singulares em que a vida é impossível;
passando dos desertos às florestas, do Saara, que o repuxa para o norte,
à Índia opulentíssima, depois de tangenciar a ponta meridional
da Arábia paupérrima; varando o Pacífico num longo traço
— rarefeito colar de ilhas desertas e escalvadas — e abeirando, depois,
em lento descambar para o sul, a Hilae portentosa do Amazonas.

É o homem permanentemente fatigado.

Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em
tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na
cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à
imobilidade e à quietude.

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso.
Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações
completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear
das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando
novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe,
alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte;
e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos
os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar
do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador
de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de
força e agilidade extraordinárias.

Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento,
em todos os pormenores da vida sertaneja — caracterizado sempre pela intercadência
impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas.

É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante;
sem posição, pernas coladas ao bojo da montaria, tronco pendido
para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos
cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos
como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando morosamente, a passo, pelas
chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma
o “campeão” que cavalga na rede amolecedora em que atravessa
dois terços da existência.

Mas se uma rês “alevantada” envereda, esquiva, adiante, pela
caatinga garranchenta, ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha, ei-lo
em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas
da montaria e partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos
inextricáveis das juremas.

Vimo-lo neste steeple-chase bárbaro.

Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que
se lhe antolhem quebradas, acervos de pedras, coivaras, moiras de espinhos
ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar o garrote
desgarrado, porque “por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu cavalo”…

Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças a pressão
dos jarretes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro
bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando nas macegas altas;
saltando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados; rompendo,
célere, pelos espinheirais mordentes; precipitando-se, a toda brida,
no largo dos tabuleiros . . .

A sua compleição robusta ostenta-se, nesse momento, em toda
a plenitude. Como que é o cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo
pequenino e frágil, sustenta-o nas rédeas improvisadas de caroá,
suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na carreira -estribando curto, pernas
encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso colado no arção
— “escanchado no rastro” do novilho esquivo: aqui curvando-se agilíssimo,
sob um ramalho, que lhe roça quase pela sela; além desmontando,
de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para fugir
ao embate de um tronco percebido no último momento e galgando, logo
depois, num pulo, o selim; — e galopando sempre, através de todos
os obstáculos, sopesando à destra sem a perder nunca, sem a
deixar no inextricável dos cipoais, a longa aguilhada de ponta de ferro
encastoada em couro, que por si só constituiria, noutras mãos,
sérios obstáculos à travessia…

Mas terminada a refrega, restituída ao rebanho a rès dominada,
ei-lo, de novo caído sobre o lombilho retovado, outra vez desgracioso
e inerte, oscilando à feição da andadura lenta’ com a
aparência triste de um inválido esmorecido.

Tipos díspares: o jagunço e o gaúcho

O gaúcho do Sul, ao encontrá-lo nesse instante, sobreolhá-lo-ia
comiserado.

O vaqueiro do Norte é a sua antítese. Na postura, no gesto,
na palavra, na índole e nos hábitos não há equipará-los.
O primeiro, filho dos plainos sem fins, afeito às correrias fáceis
nos pampas e adaptado a uma natureza carinhosa que o encanta, tem, certo,
feição mais cavalheirosa e atraente. A luta pela vida não
lhe assume o caráter selvagem da dos sertões do Norte. Não
conhece os horrores da seca e os combates cruentos com a terra árida
e exsicada. Não o entristecem as cenas periódicas da devastação
e da miséria, o quadro assombrador da absoluta pobreza do solo calcinado,
exaurido pela adustão dos sóis bravios do Equador. Não
tem, no meio das horas tranqüilas da felicidade, a preocupação
do futuro, que é sempre uma ameaça, tornando aquela instável
e fugitiva. Desperta para a vida amando a natureza deslumbrante que o aviventa;
e passa pela vida, aventureiro, jovial, diserto, valente e fanfarrão,
despreocupado, tendo o trabalho como uma diversão que lhe permite as
disparadas, domando distancias, nas pastagens planas, tendo aos ombros, palpitando
aos ventos o pala inseparável, como uma flâmula festivamente
desdobrada.

As suas vestes são um traje de festa, ante a vestimenta rústica
do vaqueiro. As amplas bombachas, adrede talhadas para a movimentação
fácil sobre os baguaís, no galope fechado ou no corcovear raivoso,
não se estragam em espinhos dilaceradores de caatingas. O seu poncho
vistoso jamais fica perdido, embaraçado nos esgalhos das árvores
garranchentas. E, rompendo pelas coxilhas, arrebatadamente na marcha do redomão
desensofrido, calçando as largas botas russilhonas, em que retinem
as rosetas das esporas de prata; lenço de seda encarnado, ao pescoço;
coberto pelo sombreiro de enormes abas flexíveis, e tendo à
cinta, rebrilhando, presas pela guaiaca, a pistola e a faca — é um
vitorioso jovial e forte. O cavalo, sócio inseparável desta
existência algo romanesca, é quase objeto de luxo. Demonstra-o
o arreamento complicado e espetaculoso. O gaúcho andrajoso sobre um
“pingo” bem aperado está decente, está corretíssimo.
Pode atravessar sem vexames os vilarejos em festa.

O vaqueiro

O vaqueiro, porém, criou-se em condições opostas, em
uma intermitência, raro perturbada, de horas felizes e horas cruéis,
de abastança e misérias — tendo sobre a cabeça, como
ameaça perene, o sol, arrastando de envolta, no volver das estações,
períodos sucessivos de devastações e desgraças.

Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes. Fez-se
homem, quase sem ter sido criança. Salteou-o, logo, intercalando-lhe
agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas no sertão.
Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado
à vida. Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas, exigindo-lhe
imperiosamente a convergência de todas as energias.

Fez-se forte, esperto, resignado e prático.

Aprestou-se, cedo, para a luta.

O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro
antigo exausto da refrega. As vestes são uma armadura. Envolto no gibão
de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também
de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas,
cosidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladas em
joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas
e guarda-pés de pele de veado — é como a forma grosseira de
um campeador medieval desgarrado em nosso tempo.

Esta armadura, porém, de um vermelho pardo, como se fosse de bronze
flexível, não tem cintilações, não rebrilha
ferida pelo sol. É fosca e poenta. Envolve ao combatente de uma batalha
sem vitórias.. .

A sela da montaria, feita por ele mesmo, imita o lombilho rio-grandense,
mas é mais curta e cavada, sem os apetrechos luxuosos daquele. São
acessórios uma manta de pele de bode, um couro resistente, cobrindo
as ancas do animal, peitorais que lhe resguardam o peito, e as joelheiras
apresilhadas às juntas.

Este equipamento do homem e do cavalo talha-se à feição
do meio. Vestidos doutro modo não romperiam, incólumes, as caatingas
e os pedregais cortantes.

Nada mais monótono e feio, entretanto, do que esta vestimenta original,
de uma só cor — o pardo avermelhado do couro curtido — sem uma variante,
sem uma lista sequer diversamente colorida. Apenas, de longe em longe, nas
raras encamisadas em que aos descantes da viola o matuto deslembra as horas
fatigadas, surge uma novidade — um colete vistoso de pele de gato do mato
ou de suçuarana, com o pelo mosqueado virado para fora, ou uma bromélia
rubra e álacre fincada no chapéu de couro.

Isto, porém, é incidente passageiro e raro.

Extintas as horas do folguedo, o sertanejo perde o desgarre folgazão
— largamente expandido nos sapateados, em que o estalo seco das alpercatas
sobre o chão se perde nos tinidos das esporas e soalhas dos pandeiros,
acompanhando a cadência das violas vibrando nos rasgados — e cai na
postura habitual, tosco, deselegante e anguloso, num estranho manifestar de
desnervamento e cansaço extraordinários.

Ora, nada mais explicável do que este permanente contraste entre extremas
manifestações de força e agilidade e longos intervalos
de apatia.

Perfeita tradução moral dos agentes físicos da sua terra,
o sertanejo do norte teve uma árdua aprendizagem de reveses. Afez-se,
cedo, a encontrá-los, de chofre, e a reagir, de pronto.

Atravessa a vida entre ciladas, surpresas repentinas de uma natureza incompreensível,
e não perde um minuto de tréguas. É o batalhador perenemente
combalido e exausto, perenemente audacioso e forte; preparando-se sempre para
um rencontro que não vence e em que se não deixa vencer; passando
da máxima quietude à máxima agitação; da
rede preguiçosa e cômoda para o lombilho duro, que o arrebata
como um raio pelos arrastadores estreitos, em busca das malhadas. Reflete,
nestas aparências que se contrabatem, a própria natureza que
o rodeia — passiva ante o jogo dos elementos e passando, sem transição
sensível, de uma estação à outra, da maior exuberância
à penúria dos desertos incendidos, sob o reverberar dos estios
abrasantes.

É inconstante como ela. É natural que o seja. Viver é
adaptar-se. Ela talhou-o à sua imagem: bárbaro, impetuoso, abrupto.
. .

O gaúcho

O gaúcho, o pealador valente, é, certo, inimitável,
numa carga guerreira; precipitando-se, ao ressoar estrídulo dos clarins
vibrantes, pelos pampas, com o conto da lança enristada, firme no estribo;
atufando-se loucamente nos entreveros; desaparecendo, com um grito triunfal,
na voragem do combate, onde espadanam cintilações de espadas;
transmudando o cavalo em projétil e varanda quadrados e levando de
rojo o adversário no rompão das ferraduras, ou tombando, prestes,
na luta, em que entra com despreocupação soberana pela vida.

O jagunço

O jagunço é menos teatralmente heróico; é mais
tenaz; é mais resistente; é mais perigoso; é mais forte;
é mais duro.

Raro assume esta feição romanesca e gloriosa. Procura o adversário
com o propósito firme de o destruir, seja como for.

Está afeiçoado aos prélios obscuros e longos, sem expansões
entusiásticas. A sua vida é uma conquista arduamente feita,
em faina diuturna. Guarda-a como capital precioso. Não esperdiça
a mais ligeira contração muscular, a mais leve vibração
nervosa sem a certeza do resultado. Calcula friamente o pugilato. Ao “riscar
da faca” não dá um golpe em falso. Ao apontar a lazarina
longa ou o trabuco pesado, dorme na pontaria. . .

Se, ineficaz o arremesso fulminante, contrário enterreirado não
baqueia, o gaúcho, vencido ou pulseado, é fragílimo nas
aperturas de uma situação inferior ou indecisa.

O jagunço, não. Recua. Mas, no recuar é mais temeroso
ainda. É um negacear demoníaco. O adversário tem, daquela
hora em diante, visando-o pelo cano da espingarda, um ódio inextinguível,
oculto no sombreado das tocaias…

Os vaqueiros

Esta oposição de caracteres acentua-se nas quadras normais.

Assim todo sertanejo é vaqueiro. À parte a agricultura rudimentar
das plantações da vazante pela beira dos rios, para a aquisição
de cereais de primeira necessidade, a criação de gado é,
ali, a sorte de trabalho menos impropriada ao homem e à terra.

Entretanto não há vislumbrar nas fazendas do sertão
a azáfama festiva das estâncias do Sul.

“Parar o rodeio” é para o gaúcho uma festa diária,
de que as cavalhadas espetaculosas são ampliações apenas.
No âmbito estreito das mangueiras ou em pleno campo, ajuntando o gado
costeado ou encalçando os bois esquivos pelas sangas e banhados, os
pealadores, capatazes e peões, preando à ilhapa dos laços
o potro bravio, ou fazendo tombar, fulminado pelas bolas silvantes, o touro
alçado, nas evoluções rápidas das carreiras, como
se tirassem “argolinhas”, seguem no alarido e na alacridade de uma
diversão tumultuosa. Nos trabalhos mais calmos, quando nos rodeios
marcam o gado, curam-lhe as feridas, apartam os que se destinam às
charqueadas, separam os novilhos tambeiros ou escolhem os baguais condenados
às chilenas do domador — o mesmo fogo, que encandesce as marcas, dá
as brasas para os ágapes rudes de assados com couro ou ferve a água
para o chimarrão amargo.

Decorre-lhes a vida variada e farta.

Servidão

inconsciente

O mesmo não acontece ao Norte. Ao contrário do entancieiro,
o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios
que nunca viu, às vezes. Herdaram velho vício histórico.
Como os opulentos sesmeiros da colônia, usufruem, parasitariamente,
as rendas das suas terras, sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes
servos submissos.

Graças a um contrato pelo qual percebem certa percentagem dos produtos,
ali ficam, anônimos — nascendo, vivendo e morrendo na mesma quadra
de terra — perdidos nos arrastadores e mocambos; e cuidando, a vida inteira,
fielmente, dos rebanhos que Ihes não pertencem.

O verdadeiro dono, ausente, conhece-lhes a fidelidade sem par. Não
os fiscaliza. Sabe-lhes, quando muito, os nomes.

Envoltos, então, no traje característico, os sertanejos encourados
erguem a choupana de pau-a-pique &agragrave; borda das cacimbas, rapidamente,
como se armassem tendas; e entregam-se, abnegados, à servidão
que não avaliam.

A primeira coisa que fazem é aprender o a b c e, afinal, toda a exigência
da arte em que são eméritos: conhecer os “ferros”
das suas fazendas e os das circunvizinhas. Chamam-se assim os sinais de todos
os feitios, ou letras, ou desenhos caprichosos como siglas, impressos, por
tatuagem a fogo, nas ancas do animal, completados pelos cortes, em pequenos
ângulos, nas orelhas. Ferrado o boi, está garantido. Pode romper
tranqueiras e tresmalhar-se. Leva, indelével, a indicação
que o reporá na “solta” primitiva. Porque o vaqueiro não
se contentando com ter de cor os ferros de sua fazenda, aprende os das demais.
Chega, às vezes por extraordinário esforço de memória,
a conhecer, uma por uma, não só as reses de que cuida, como
as dos vizinhos, incluindo-lhes a genealogia e hábitos característicos,
e os nomes, e as idades etc. Deste modo, quando surge no seu logrador um animal
alheio, cuja marca conhece, o restitui de pronto. No caso contrário,
conserva o intruso, tratando-o como aos demais. Mas não o leva à
feira anual, nem o aplica em trabalho algum; deixa-o morrer de velho. Não
lhe pertence.

Se é uma vaca e dá cria, ferra a esta com o mesmo sinal desconhecido,
que reproduz com perfeição admirável; e assim pratica
com toda a descendência daquela. De quatro em quatro bezerros, porém,
separa um, para si. É a sua paga. Estabelece com o patrão desconhecido
o mesmo convênio que tem com o outro. E cumpre estritamente, sem juízes
e sem testemunhas, o estranho contrato, que ninguém escreveu ou sugeriu.

Sucede muitas vezes ser decifrada, afinal, uma marca somente depois de muitos
anos, e o criador feliz receber, ao invés da peça única
que lhe fugira e da qual se deslembrara, numa ponta de gado, todos os produtos
dela.

Parece fantasia este fato, vulgar, entretanto, nos sertões.

Indicamo-lo como traço encantador da probidade dos matutos. Os grandes
proprietários da terra e dos rebanhos a conhecem. Têm, todos,
com o vaqueiro o mesmo trato de parceria, resumido na cláusula única
de lhe darem, em troca dos cuidados que ele despende, um quarto dos produtos
da fazenda. E sabem que nunca se violará a percentagem.

O ajuste de contas faz-se no fim do inverno e realiza-se, ordinariamente,
sem que esteja presente a parte mais interessada. É formalidade dispensável.
O vaqueiro separa escrupulosamente a grande maioria de novas cabeças
pertencentes ao patrão (nas quais imprime o sinal da fazenda) das poucas,
um quarto, que lhe couberam por sorte. Grava nestas o seu sinal particular;
e conserva-as ou vende-as. Escreve ao patrão, dando-lhe conta minuciosa
de todo o movimento do sítio, alongando-se aos mínimos pormenores;
e continua na faina ininterrupta.

Esta, ainda que, em dadas ocasiões, fatigante, é a mais rudimentar
possível. Não existe no Norte uma indústria pastoril.
O gado vive e multiplica-se à gandaia. Ferrados em junho, os garrotes
novos perdem-se nas caatingas, com o resto das malhadas. Ali os rareiam epizootias
intensas, em que se sobrelevam o “rengue” e o “mal triste”.
Os vaqueiros mal procuram atenuá-las. Restinguem a atividade às
corridas desabaladas pelos arrastadores. Se a bicheira devasta a tropa, sabem
de específico mais eficaz que o mercúrio: a reza. Não
precisam de ver o animal doente. Voltam-se apenas na direção
em que ele se acha e rezam, tracejando no chão inextricáveis
linhas cabalísticas. Ou então, o que é ainda mais transcendente,
curam-no pelo rastro.

E assim passam numa agitação estéril.

Raro, um incidente, uma variante alegre, quebra a sua vida monótona.

Solidários todos, auxiliam-se incondicionalmente em todas as conjunturas.
Se foge a algum boi levantadiço, toma da “guiada”, põe
pernas ao campeão. e ei-lo escanchado no rastro, jogado pelas veredas
tiradas a facão. Se não pode levar avante a empresa, “pede
campo”, frase característica daquela cavalaria rústica,
aos companheiros mais vizinhos, e lá seguem todos, aos dez, aos vinte,
rápidos, ruidosos, amigos — “campeando”, voando pelos tombadores
e esquadrinhando as caatingas até que o bruto, “desautorizado”
dê a venta no termo da corrida, ou tombe, de rijo, mancornado às
mãos possantes que se lhe aferram aos chifres.

A vaquejada

Esta solidariedade de esforços evidencia-se melhor na “vaquejada”,
trabalho consistindo essencialmente no reunir, e discriminar depois, os gados
de diferentes fazendas convizinhas, que por ali vivem em comum, de mistura,
em um compáscuo único e enorme, sem cercas e sem valos.

Realizam-na de junho a julho.

Escolhido um lugar mais ou menos central, as mais das vezes uma várzea
complanada e limpa, o “rodeador”, congrega-se a vaqueirama das vizinhanças.
Concertam nos dispositivos da empresa. Distribuem-se as funções
que a cada um caberão na lide. E para logo, irradiantes pela superfície
da arena, arremetem com as caatingas que a envolvem os encourados atléticos.

O quadro tem a movimentação selvagem e assombrosa de uma corrida
de tártaros.

Desaparecem em minutos os sertanejos, perdendo-se no matagal circundante.
O rodeio permanece por algum tempo deserto. . .

De repente estruge ao lado um estrídulo tropel de cascos sobre pedras,
um estrépido de galhos estalando, um estalar de chifres embatendo;
tufa nos ares, em novelos, uma nuvem de pó; rompe, a súbitas,
na clareira, embolada, uma ponta de gado; e, logo após, sobre o cavalo
que estaca esbarrado, o vaqueiro, teso nos estribos…

Traz apenas exígua parte do rebanho. Entrega-a aos companheiros que
ali ficam, `’de esteira”; e volve em galope desabalado, renovando a pesquisa.
Enquanto outros repontam além, mais outros, sucessivamente, por toda
a banda, por todo o âmbito do rodeio, que se anima, e tumultua em disparos:
bois às marradas ou escarvando o chão, cavalos curveteando,
confundidos e embaralhados sobre os plainos vibrantes num prolongado rumor
de terremoto. Aos lados, na caatinga, os menos felizes se agitam às
voltas com os marruás recalcitrantes. O touro largado ou o garrote
vadio em geral refoge à revista. Afunda na caatinga. Segue-o o vaqueiro.
Cose-se-lhe no rastro. Vai com ele às últimas bibocas. Não
o larga; até que surja o ensejo para um ato decisivo: alcançar
repentinamente o fugitivo, de arranco; cair logo para o lado da sela, suspenso
num estribo e uma das mãos presa às crinas do cavalo; agarrar
com a outra a cauda do boi em disparada e com um rapelão fortíssimo,
de banda, derribá-lo pesadamente em terra… Põe-lhe depois
a pela ou a máscara de couro, levando-o jugulado ou vendado para o
rodeador.

Ali o recebem ruidosamente os companheiros. Conta-lhes a façanha.
Contam-lhe outras idênticas, e trocam-se as impressões heróicas
numa adjetivação ad boc, que vai num crescendo do “destalado”
ríspido ao “temero” pronunciado num trêmulo enrouquecido
e longo.

Depois, ao findar do dia, a última tarefa: contam as cabeças
reunidas. Apartam-nas. Separam-se, seguindo cada um para sua fazenda tangendo
por diante as reses respectivas. E pelos ermos ecoam melancolicamente as notas
do “aboiado” . . .

A arribada

Segue a boiada vagarosamente, à cadência daquele canto triste
e preguiçoso. Escanchado, desgraciosamente, na sela, o vaqueiro, que
a revê unida e acrescida de novas crias, rumina os lucros prováveis:
o que toca ao patrão, e o que lhe toca a ele, pelo trato feito. Vai
dali mesmo contando as peças destinadas à feira; considera,
aqui, um velho boi que ele conhece há dez anos e nunca levou à
feira, mercê de uma amizade antiga; além, um mumbica claudicante,
em cujo flanco se enterra estrepe agudo, que é preciso arrancar; mais
longe, mascarado, cabeça alta e desafiadora, seguindo apenas guiado
pela compressão dos outros, o garrote bravo, que subjugou, pegando-o
“de saia”, e derrubando-o, na caatinga; acolá, soberbo, caminhando
folgado, porque os demais o respeitam, abrindo-lhe em roda um claro, largo
pescoço, envergadura de búfalo, o touro vigoroso, inveja de
toda a redondeza, cujas armas regidas e curtas relembram, estaladas, rombas
e cheias de terra, guampaços formidáveis, em luta com os rivais
possantes, nos logradouros; além, para toda a banda, outras peças,
conhecidas todas, revivendo-lhe todas, uma a uma, um incidente, um pormenor
qualquer da sua existência primitiva e simples.

E prosseguem, em ordem, lentos, ao toar merencório da cantiga, que
parece acalentá-los, embalando-os com o refrão monótono:

E cou mansão

E cou…è caõ…

ecoando saudoso nos descampados mudos…

Estouro da boiada

De súbito, porém, ondula um frêmito sulcando, num estremeção
repentino, aqueles centenares de dorsos luzidios. Há uma parada instantânea
.Entrebatem-se, enredam-se, trançam-se e alteiam-se fisgando vivamente
o espaço, e inclinam-se, embaralham-se milhares ele chifres. Vibra
uma trepidação no solo; e a boiada estoura. . .

A boiada arranca.

Nada explica, às vezes, o acontecimento, aliás vulgar, que
é o desespero dos campeiros.

Origina o incidente mais trivial — o súbito vôo rasteiro de
uma araquã ou a corrida de um mocó esquivo. Uma rês se
espanta e o contágio, uma descarga nervosa subitânea, transfunde
o espanto sobre o rebanho inteiro. É um solavanco único, assombroso,
atirando, de pancada, por diante, revoltos, misturando-os embolados, em vertiginosos
disparos, aqueles maciços corpos tão normalmente tardos e morosos.

E lá se vão: não há mais contê-los ou alcançá-los.
Acamam-se as caatingas, árvores dobradas, partidas, estalando em lascas
e gravetos; desbordam de repente as baixadas num marulho de chifres; estrepitam,
britando e esfarelando as pedras, torrentes de cascos pelos tombadores; rola
surdamente pelos tabuleiros ruído soturno e longo de trovão
longínquo…

Destroem-se em minutos, feito montes de leivas, antigas roças penosamente
cultivadas; extinguem-se, em lameiros revolvidos, as ipueiras rasas; abatem-se,
apisoados, os pousos; ou esvaziam-se, deixando-os os habitantes espavoridos,
fugindo para os lados, evitando o rumo retilíneo em que se despenha
a “arribada” — milhares de corpos que são um corpo único,
monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico, precipitado
na carreira doida. E sobre este tumulto, arrodeando-o, ou arremessando-se
impetuoso na esteira de destroços, que deixa após si aquela
avalancha viva, largado numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos,
e cerros, e galhadas — enristado o ferrão, rédeas soltas, soltos
os estribos, estirado sobre o lombilho, preso às crinas do cavalo —
o vaqueiro !

Já se lhe tem associado, em caminho, os companheiros, que escutaram,
de longe, o estouro da boiada. Renova-se a lida: novos esforços, novos
arremessos, novas façanhas, novos riscos e novos perigos a despender,
a atravessar e a vencer, até que o boiadão, não já
pelo trabalho dos que o encalçam e rebatem pelos flancos senão
pelo cansaço, a pouco e pouco afrouxe e estaque, inteiramente abombado.

Reaviam-no à vereda da fazenda; e ressoam, de novo, pelos ermos, entristecedoramente.
as notas melancólicas do aboiado.

Tradições

Volvem os vaqueiros ao pouso e ali, nas redes bamboantes, relatando as peripécias
da vaquejada ou famosas aventuras de feira, passam as horas matando, na significação
completa do termo, o tempo, e desalterando-se com a umbuzada saborosíssima,
ou merendando a iguaria incomparável de jerimum com leite.

Se a quadra é propícia, e vão bem as plantações
da vazante, e viça o “panasco” e o “mimoso” nas
soltas dilatadas, e nada revela o aparecimento da seca, refinam a ociosidade
nos braços da preguiça benfazeja. Seguem para as vilas se por
lá se fazem festas de cavalhadas e mouramas, divertimentos anacrônicos
que os povoados sertanejos reproduzem, intactos, com os mesmos programas de
há três séculos. E entre eles a exótica “encamisada”,
que é o mais curioso exemplo do aferro às mais remotas tradições.
Velhíssima cópia das vetustas quadras dos fossados ou arrancadas
noturnas, na Península, contra os castelos árabes, e de todo
esquecido na terra onde nasceu, onde a sua mesma significação
é hoje inusitado arcaísmo, esta diversão dispendiosa
e interessante, feita à luz de lanternas e archotes, com os seus longos
cortejos de homens a pé, vestidos de branco, ou à maneira de
muçulmanos, e outros a cavalo em animais estranhamente ajaezados, desfilando
rápidos, em escaramuças e simulados recontros, é o encanto
máximo dos matutos folgazãos.

Danças

Nem todos, porém, a compartem. Baldos de recursos para se alongarem
das rancharias, agitam-se, então, nos folguedos costumeiros. Encourados
de novo, seguem para os sambas e cateretês ruidosos, os solteiros, famanazes
no ‘desafio, sobraçando os machetes, que vibram no “choradinho”
ou “baião”, e os casados levando toda a “obrigação”,
a família. Nas choupanas em festa recebem-se os convivas com estrepitosas
salvas de ronqueiras e como em geral não há espaço para
tantos, arma-se fora, no terreiro varrido, revestido de ramagens, mobiliado
de cepos e troncos, e raros tamboretes, mas imenso, alumiado pelo luar e pelas
estrelas! o salão de baile. “Despontam o dia” com uns largos
traços de aguardente, a “teimosa”. E rompem estrídulamente
os sapateados vivos.

Um cabra destalado ralha na viola. Serenam, em vagarosos meneios, as caboclas
bonitas. Revoluteia,, “brabo e corado”, o sertanejo moço.

Desafios

Nos intervalos travam-se os desafios.

Enterreiram-se, adversários, dois cantores rudes. As rimas saltam
e casam-se em quadras muita vez belíssimas.

Nas horas de Deus, amém,

Não é zombaria, não!

Desafio o mundo inteiro

Pra cantar nesta função !

O adversário retruca logo, levantando-lhe o último verso da
quadra:

Pra cantar nesta função,

Amigo, meu camarada,

Aceita teu desafio

O “fama” deste sertão!

É o começo da luta que só termina quando um dos bardos
se engasga numa rima difícil e titubeia, repinicando nervosamente o
machete, sob uma avalancha de risos saudando-lhe a derrota. E a noite vai
deslizando rápida no folguedo que se generaliza, até que as
barras venham quebrando e cantem as sericóias nas ipueiras, dando o
sinal de debandar ao agrupamento folgazão.

Terminada a festa volvem os vaqueiros à tarefa ou à rede preguiçosa.

Alguns, de ano em ano, arrancam dos pousos tranquilos para remotas paragens.
Transpõem o S. Francisco; mergulham nos gerais enormes do ocidente,
vastos planaltos indefinidos em que se confundem as bacias daquele e do Tocantins
em alagados de onde partem os rios indiferentemente para o levante e para
o poente; e penetram em Goiás, ou, avantajando-se mais para o norte,
as serras do Piauí.

Vão à compra de gados. Aqueles lugares longínquos, pobres
e obscuros vilarejos que o Porto Nacional extrema, animam-se, então,
passageiramente, com a romaria dos “baianos” São os autocratas
das feiras. Dentro da armadura de couro, galhardos, brandindo a guiada, sobre
os cavalos ariscos, entram naqueles vilarejos com um desgarre atrevido de
triunfadores felizes. E ao tornarem — quando não se perdem para todo
o sempre, sem tino, na “travessia” perigosa dos descampados uniformes
— reatam a mesma vida monótona e primitiva.

A seca

De repente, uma variante trágica.

Aproxima-se a seca.

O sertanejo adivinha-a e graças ao ritmo singular com que se desencadeia
o flagelo.

Entretanto não foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida
pelo limbo candente que irradia do Ceará.

Buckle, em página notável, assinala a anomalia de se não
afeiçoar nunca, o homem, às calamidades naturais que o rodeiam.
Nenhum povo tem mais pavor aos terremotos que o peruano; e no Peru as crianças
ao nascerem tem o berço embalado pelas vibrações da terra.

Mas o nosso sertanejo faz exceção à regra. A seca não
o apavora. É um complemento à sua vida tormentosa, emoldurando-a
em cenários tremendos. Enfrenta-a, estóico. Apesar das dolorosas
tradições que conhece através de um sem numero de terríveis
episódios, alimenta a todo o transe esperanças de uma resistência
impossível.

Com os escassos recursos das próprias observações e
das dos seus maiores, em que ensinamentos práticos se misturam a extravagantes
crendices, tem procurado estudar o mal, para o conhecer, suportar e suplantar.
Aparelha-se com singular serenidade para a luta. Dois ou três meses
antes do solstício de verão, especa e fortalece os muros dos
açudes, ou limpa as cacimbas. Faz os roçados e arregoa as estreitas
faixas de solo arável à orla dos ribeirões. Está
preparado para as plantações ligeiras à vinda das primeiras
chuvas.

Procura em seguida desvendar o futuro. Volve o olhar para as alturas; atenta
longamente nos quadrantes; e perquire os traços mais fugitivos das
paisagens.

Os sintomas do flagelo despontam-lhe, então, encadeados em série,
sucedendo-se inflexíveis, como sinais comemorativos de uma moléstia
cíclica, da sezão assombradora da Terra. Passam as “chuvas
do caju” em outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes delidos
nos ares ardentes, sem deixarem traços; e “pintam” as caatingas,
aqui, ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores
marcescentes, cada vez mais numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma
combustão abafada, sem chamas; e greta-se o chão; e abaixa-se
vagarosamente o nível das cacimbas… Do mesmo passo nota que os dias,
estuando logo ao alvorecer, transcorrem abrasantes, à medida que as
noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera absorve-lhe,
com avidez de esponja, o suor na fronte, enquanto a armadura de couro, sem
mais a flexibilidade primitiva, se lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida,
feito uma couraça de bronze. E ao descer das tardes, dia a dia menores
e sem crepúsculos, considera, entristecido, nos ares, em bandos, as
primeiras aves emigrantes, transvoando a outros climas.

É o prelúdio da sua desgraça.

Vê-o acentuar-se num crescendo, até dezembro.

Precautela-se: revista, apreensivo, as malhadas. Percorre os logradouros
longos. Procura entre as chapadas que se esterilizam várzeas mais benignas
para onde tange os rebanhos. E espera, resignado, o dia 13 daquele mês
Porque, em tal data, usança avoenga lhe faculta sondar o futuro, interrogando
a Providência.

E a experiência tradicional de Santa Luzia. No dia 12 ao anoitecer
expõe ao relento, em linha, seis pedrinhas de sal, que representam,
em ordem sucessiva da esquerda para a direita, os seis meses vindouros, de
janeiro a junho. Ao alvorecer de 13 observa-as: se estão intactas,
pressagiam a seca; se a primeira apenas se deliu, transmudada em aljôfar
límpido, é certa a chuva em janeiro; se a segunda, em fevereiro;
se a maioria ou todas, é inevitável o inverno benfazejo.

Esta experiência é belíssima. Em que pese ao estigma
supersticioso, tem base positiva, e é aceitável desde que se
considera que dela se colhe a maior ou menor dosagem de vapor d’água
nos ares, e, dedutivamente, maiores ou menores probabilidades de depressões
barométricas, capazes de atrair o afluxo das chuvas.

Entretanto, embora tradicional, esta prova deixa ainda vacilante o sertanejo.
Nem sempre desanima, ante os seus piores vaticínios. Aguarda, paciente,
o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos elementos. Atravessa
três longos meses de expectativa ansiosa e no dia de S. José,
19 de março, procura novo augúrio, o último.

Aquele dia é para ele o índice dos meses subseqüentes.
Retrata-lhe, abreviadas em doze horas, todas as alternativas climáticas
vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o inverno: se, ao contrário,
o Sol atravessa abrasadoramente o firmamento claro, estão por terra
todas as suas esperanças.

A seca é inevitável.

Insulamento no deserto

Então se transfigura. Não é mais o indolente incorrigível
ou o impulsivo violento, vivendo às disparadas pelos arrastadores.
Transcende a sua situação rudimentar. Resignado e tenaz, com
a placabilidade superior dos fortes, encara de fito a fatalidade incoercível;
e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas,
tragédias espantosas. Não há revivê-las ou episodiá-las.
Surgem de uma luta que ninguém descreve — a insurreição
da terra contra o homem. A princípio este reza, olhos postos na altura.
O seu primeiro amparo é a fé religiosa. Sobraçando os
santos milagreiros, cruzes alçadas, andores erguidos, bandeiras do
Divino ruflando, lá se vão, descampados em fora, famílias
inteiras — não já os fortes e sadios senão os próprios
velhos combalidos e enfermos claudicantes, carregando aos ombros e à
cabeça as pedras dos caminhos, mudando os santos de uns para outros
lugares. Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos, por onde passam
as lentas procissões propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham
longas noites nas chapadas, pervagantes as velas dos penitentes… Mas os
céus persistem sinistramente claros; o Sol fulmina a Terra; progride
o espasmo assombrados da seca. O matuto considera a prole apavorada; contempla
entristecido os bois sucumbidos, que se agrupam sobre as fundagens das ipueiras,
ou, ao longe, em grupos erradios e lentos, pescoços dobrados, acaroados
com o chão, em mugidos prantivos “farejando a água”;
— e sem que se lhe amorteça a crença, sem duvidar da Providência
que o esmaga, murmurando às mesmas horas as preces costumeiras, apresta-se
ao sacrifício. Arremete de alvião a enxada com a terra, buscando
nos estratos inferiores a água que fugiu da superfície. Atinge-os
às vezes; outras, após enormes fadigas, esbarra em uma lajem
que lhe anula todo o esforço despendido; e outras vezes, o que é
mais corrente, depois de desvendar tênue lençol líquido
subterrâneo, o vê desaparecer um, dois dias passados, evaporando-se,
ou sugado pelo solo. Acompanha-o tenazmente, reprofundando a mina, em cata
do tesouro fugitivo. Volve, por fim, exausto, à beira da própria
cova que abriu, feito um desenterrado. Mas como frugalidade rara lhe permite
passar os dias com alguns manelos de paçoca, não se lhe afrouxa,
tão de pronto, o ânimo.

Ali está, em torno, a caatinga, o seu celeiro agreste. Esquadrinha-o.
Talha em pedaços os mandacarus que desalteram, ou as ramas verdoengas
dos juazeiros que alimentam os magros bois famintos; derruba os estipites
dos ouricuris e rala-os, amassa-os, cozinha-os, fazendo um pão sinistro,
o “bró”, que incha os ventres num enfarte ilusório,
empanzinando o faminto; atesta os jiraus de coquilhos; arranca as raízes
túmidas dos umbuzeiros, que lhe dessedentam os filhos, reservando para
si o sumo adstringente dos cladódios do xiquexique, que enrouquece
ou extinguem a voz de quem o bebe, e demasia-se em trabalhos, apelando infatigável
para todos os recursos — forte e carinhoso — defendendo-se e estendendo
à prole abatida e aos rebanhos confiados a energia sobre-humana.

Baldam-se-lhe, porém, os esforços.

A natureza não o combate apenas com o deserto. Povoa-a, contrastando
com a fuga das seriemas, que emigram para outros “tabuleiros”, e
jandaias, que fogem para o litoral remoto, uma fauna cruel. Miríades
de morcegos agravam a “magrém”, abatendo-se sobre o gado,
dizimando-o. Chocalham as cascavéis, inúmeras, tanto mais numerosas
quanto mais ardente o estio, entre as macegas recrestadas.

À noite, a suçuarana traiçoeira e ladra, que lhe rouba
os bezerros e os novilhos, vem beirar a sua lancharia pobre.

É mais um inimigo a suplantar.

Afugenta-a e espanta-a, precipitando-se com um tição aceso
no terreiro deserto. E se ela não recua, assalta-a. Mas não
a tiro, porque sabe que, desviada a mira, ou pouco eficaz o chumbo, a onça,
“vindo em cima da fumaça”, é invencível.

O pugilato é mais comovente. O atleta enfraquecido, tendo à
mão esquerda a forquilha e à direita a faca, irrita e desafia
a fera, provoca-lhe o bote e apara-a no ar, trespassando-a de um golpe.

Nem sempre, porém, pode aventurar-se à façanha arriscada.
Uma moléstia extravagante completa a sua desdita — a hemeralopia.
Esta falsa cegueira é paradoxalmente feita pelas reações
da luz; nasce dos dias claros e quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo
ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do olhar.
Mas o Sol se esconde no poente a vítima nada mais vê. Está
cega. A noite afoga-se de súbito, antes de envolver a Terra. E na manhã
seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo-se no primeiro lampejo do levante,
para se apagar, de novo, à tarde, com intermitência dolorosa.

Renasce-lhe com ela a energia. Ainda se não considera vencido. Restam-lhe,
para desalterar e sustentar os filhos, os talos tenros, os mangarás
das bromélias selvagens. Ilude-os com essas iguarias bárbaras.

Segue, a pé agora, porque se Ihe parte o coração só
de olhar para o cavalo, para os logradouros. Contempla ali a ruína
da fazenda: bois espectrais, vivos não se sabe como, caídos
sob as árvores mortas, mal soerguendo o arcabouço murcho sobre
as pernas secas, marchando vagarosamente, cambaleantes; bois mortos há
dias e intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não
rompem a bicadas as suas peles esturradas; bois jururus, em roda da clareira
de chão entorroado onde foi a aguada predileta; e, o que mais Ihe dói,
os que ainda não de todo exaustos o procuram, e o circundam, confiantes,
urrando em longo apelo triste que parece um choro.

E nem um cereus avulta mais em torno; foram ruminadas as últimas ramas
verdes dos juás…

Trançam-se, porém, ao lado, impenetráveis renques de
macambiras. É ainda um recurso. Incendeia-os, batendo o isqueiro nas
acendalhas das folhas ressequidas para os despir, em combustão rápida,
dos espinhos. E quando os rolos de fumo se enovelam e se diluem no ar puríssimo,
vêem-se, correndo de todos os lados, em tropel moroso de estropeados,
os magros bois famintos, em busca do último repasto.

Por fim tudo se esgota e a situação não muda. Não
há probabilidade sequer de chuvas. A casca das marizeiras não
transuda, prenunciando-as. O nordeste persiste intenso, rolando, pelas chapadas,
zunindo em prolongações uivadas na galhada estrepitante das
caatingas e o Sol alastra, reverberando no firmamento claro, os incêndios
inextinguíveis da canícula. O sertanejo, assoberbado de reveses,
dobra-se afinal.

Passa certo dia, a sua porta, a primeira turma de “retirantes”.
V&ecirecirc;-a, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo adiante
numa nuvem de poeira, na curva do caminho… No outro dia, outra. E outras.
É o sertão que se esvazia.

Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se
vão caminho em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se
vai ele no êxodo penosíssimo para a costa, para as serras distantes,
para quaisquer lugares onde o não mate o elemento primordial da vida.

Atinge-os. Salva-se.

Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o saudade do sertão.
Remigra. E torna feliz, revigorado, cantando; esquecido de infortúnios,
buscando as mesmas horas passageiras da ventura perdidiça e instável,
os mesmos dias longos de transes e provações demoradas.

Religião mestiça

Insulado deste modo no país, que o não conhece, em luta aberta
com o meio, que lhe parece haver estampado na organização e
no temperamento a sua rudeza extraordinária, nômade ou mal fixo
à terra, o sertanejo não tem, por bem dizer, ainda capacidade
orgânica para se afeiçoar a situação mais alta.

O círculo estreito da atividade remorou-lhe o aperfeiçoamento
psíquico. Está na fase religiosa de um monoteísmo incompreendido,
eivado de misticismo extravagante, em que se rebate o fetichismo do índio
e do africano. E o homem primitivo, audacioso e forte, mas ao mesmo tempo
crédulo, deixando-se facilmente arrebatar pelas superstições
mais absurdas. Uma análise destas revelaria a fusão de estádios
emocionais distintos.

A sua religião é como ele — mestiça.

Resumo dos caracteres físicos e fisiológicos das raças
de que surge, sumaria-lhes identicamente as qualidades morais. E um índice
da vida de três povos. E as suas crenças singulares traduzem
essa aproximação violenta de tendências distintas. E desnecessário
descrevê-las. As lendas arrepiadoras do caapora travesso e maldoso,
atravessando célere, montado em caititu arisco, as chapadas desertas,
nas noites misteriosas de luares claros; os sacis diabólicos, de barrete
vermelho à cabeça, assaltando o viandante retardatário,
nas noites aziagas das sextas-feiras, de parceria com os lobisomens e mulas-sem-cabeça
notívagos; todos os mal-assombramentos, todas as tentações
do maldito ou do diabo — este trágico emissário dos rancores
celestes em comissão na Terra; as rezas dirigidas a S. Campeiro, canonizado
in partibus, ao qual se acendem velas pelos campos, para que favoreça
a descoberta de objetos perdidos; as benzeduras cabalísticas para curar
os animais, para ‘amassar” e “vender” sezões; todas
as visualidades, todas aparições fantásticas, todas as
profecias esdrúxulas de messias insanos; e as romarias piedosas; e
as missões; e as penitências…. todas as manifestações
complexas de religiosidade indefinida são explicáveis.

Fatores históricos da religião mestiça

Não seria difícil caracterizá-las como uma mestiçagem
de crenças. Ali estão, francos, o antropismo do selvagem, o
animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional
da raça superior, na época do descobrimento e da colonização.

Este último é um caso notável de atavismo, na Historia.

Considerando as agitações religiosas do sertão e os
evangelizadores e messias singulares, que, intermitentemente, o atravessam,
ascetas mortificados de flagícios, encalçados sempre pelos sequazes
numerosos, que fanatizam, que arrastam, que dominam, que endoidecem — espontaneamente
recordamos a fase mais crítica da alma portuguesa, a partir do final
do século 16, quando, depois de haver por momentos centralizado a História,
o mais interessante dos povos caiu, de súbito, em decomposição
rápida, mal disfarçada pela corte oriental de d. Manuel.

O povoamento do Brasil fez-se, intenso, com d. João III, precisamente
no fastígio de completo desequilíbrio moral, quando “todos
os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo peninsular”.

Uma grande herança de abusões extravagantes, extinta na orla
marítima pelo influxo modificador de outras crenças e de outras
raças, no sertão ficou intacta. Trouxeram-na as gentes impressionáveis,
que afluíram para a nossa terra, depois de desfeito no Oriente o sonho
miraculoso da Índia. Vinham cheias daquele misticismo feroz, em que
o fervor religioso reverberava à cadência forte das fogueiras
inquisitoriais, lavrando intensas na península. Eram parcelas do mesmo
povo que em Lisboa, sob a obsessão dolorosa dos milagres e assaltado
de súbitas alucinações, via, sobre o paço dos
reis, ataúdes agoureiros, línguas de flamas misteriosas, catervas
de mouros de albornozes brancos, passando processionalmente; combates de paladinos
nas alturas… E da mesma gente que após Alcácer-Quibir, em
plena “caquexia nacional”, segundo o dizer vigoroso de Oliveira
Martins, procurava, ante a ruína iminente, como salvação
única, a fórmula superior das esperanças messiânicas.

De feito, considerando as desordens sertanejas, hoje, e os messias insanos
que as provocam, irresistivelmente nos assaltam, empolgantes’ as figuras dos
profetas peninsulares de outrora–o rei de Penamacor, o rei da Ericeira, errantes
pelas faldas das serras, devotados ao martírio, arrebatando na mesma
idealização, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio,
as multidões crendeiras.

Esta justaposição histórica calca-se sobre três
séculos. Mas é exata, completa, sem dobras. Imóvel o
tempo sobre a rústica sociedade sertaneja, despeada do movimento geral
da evolução humana, ela respira ainda na mesma atmosfera moral
dos iluminados que encalçavam, doidos, o Miguelinho ou o Bandarra.
Nem lhe falta, para completar o símile, o misticismo político
do sebastianismo. Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de modo singularmente
impressionador, nos sertões do Norte.

Mas não antecipemos.

Caráter variável da religiosidade

sertaneja

Estes estigmas atávicos tiveram entre nós, favoráveis,
as reações do meio, determinando psicologia especial.

O homem dos sertões — pelo que esboçamos — mais do que qualquer
outro, está em função imediata da terra. É uma
variável dependente no jogar dos elementos. Da consciência da
fraqueza para os debelar resulta, mais forte, este apelar constante para o
maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido
da divindade. Em paragens mais benéficas a necessidade de uma tutela
sobrenatural não seria tão imperiosa. Ali, porém, as
tendências pessoais como que se acolchetam às vicissitudes externas,
e deste entrelaçamento resulta, copiando o contraste que observamos
entre a exaltação impulsiva e a apatia enervadora da atividade,
a indiferença fatalista pelo futuro e a exaltação religiosa.
Os ensinamentos dos missionários não poderiam exercitar-se estremes
das tendências gerais da sua época. Por isto, como um palimpsesto,
a consciência imperfeita dos matutos revela nas quadras agitadas, rompendo
dentre os ideais belíssimos do catolicismo incompreendido, todos os
estigmas de estádio inferior.

É que, mesmo em períodos normais, a sua religião é
indefinida e vária. Da mesma forma que os negros Haúças,
adaptando à liturgia todo o ritual iorubano, realizam o fato anômalo,
mas vulgar mesmo na capital da Bahia, de seguirem para as solenidades da Igreja
por ordem dos fetiches, os sertanejos, herdeiros infelizes de vícios
seculares, saem das missas consagradas para os ágapes selvagens dos
candomblés africanos ou poracês do tupi. Não espanta que
patenteiem, na religiosidade indefinida, antinomias surpreendentes.

Quem vê a família sertaneja, ao cair da noite, ante o oratório
tosco ou registro paupérrimo, à meia luz das candeias de azeite,
orando pelas almas dos mortos queridos, ou procurando alentos à vida
tormentosa, encanta-se.

O culto dos mortos é impressionador. Nos lugares remotos, longe dos
povoados, inumam-nos à beira das estradas, para que não fiquem
de todo em abandono, para que os rodeiem sempre as preces dos viandantes,
para que nos ângulos da cruz deponham estes, sempre, uma flor, um ramo,
uma recordação fugaz mas renovada sempre. E o vaqueiro, que
segue arrebatadamente, estaca, prestes, o cavalo, ante o humilde monumento
— uma cruz sobre pedras arrumadas — e, a cabeça descoberta, passa
vagaroso, rezando pela salvação de quem ele nunca viu talvez,
talvez de um inimigo.

A terra é o exílio insuportável, o morto um bem -aventurado
sempre.

O falecimento de uma criança é um dia de festa. Ressoam as
violas na cabana dos pobres pais, jubilosos entre as lágrimas; referve
o samba turbulento; vibram nos ares, fortes, as coplas dos desafios; enquanto,
a uma banda, entre duas velas de carnaúba, coroado de flores, o anjinho
exposto espelha, no último sorriso paralisado, a felicidade suprema
da volta para os céus, para a felicidade eterna — que é a preocupação
dominadora daquelas almas ingênuas e primitivas.

No entanto há traços repulsivos no quadro desta religiosidade
de aspectos tão interessantes, aberrações brutais, que
a derrancam ou maculam.

A “Pedra Bonita”

As agitações sertanejas, do Maranhão à Bahia,
não tiveram ainda um historiador. Não as esboçaremos
sequer. Tomemos um fato, entre muitos, ao acaso.

No termo de Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações
graníticas da costa se alteiam, em formas caprichosas, na serra Talhada,
dominando, majestosos, toda a região em torno e convergindo em largo
anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a
pique. No âmbito daquele, como púlpito gigantesco, ergue-se um
bloco solitário — a Pedra Bonita.

Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades
religiosas dos Achantis. Um mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali congregou
toda a população dos sítios convizinhos e, engrimpando-se
à pedra, anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado
do rei d. Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a pancadas
de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças,
esparzido sobre ela em holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua
guarda fulgurante, castigando, inexorável, a humanidade ingrata, mas
cumulando de riquezas os que houvessem contribuído para o desencanto.

Passou pelo sertão um frêmito de necrose…

O transviado encontrara meio propício ao contágio da sua insânia.
Em torno da ara monstruosa comprimiam-se as mães erguendo os filhos
pequeninos e lutavam, procurando-lhes a primazia no sacrifício… O
sangue espadanava sobre a rocha jorrando, acumulando-se em torno; e, afirmam
os jornais do tempo, em copia tal que, depois de desfeita aquela lúgubre
farsa, era impossível a permanência no lugar infeccionado.

Por outro lado, fatos igualmente impressionadores contrabatem tais aberrações.
A alma de um matuto é inerte ante as influências que a agitam.
De acordo com estas pode ir da extrema brutalidade ao máximo devotamento.

Vimo-la, neste instante, pervertida pelo fanatismo. Vejamo-la transfigurada
pela fé.

Monte Santo

Monte Santo é um lugar lendário.

Quando, no século 17, as descobertas das minas determinaram a atração
do interior sobre o litoral, os aventureiros que ao norte investiam com o
sertão, demandando as serras da Jacobina, arrebatados pela miragem
das minas de prata e rastreando o itinerário enigmático de Belchior
Dias, ali estacionavam longo tempo. A serra solitária — a Piquaraçá
dos roteiros caprichosos — , dominando os horizontes, norteava-lhes a marcha
vacilante.

Além disto, atraía-os por si mesma, irresistivelmente.

É que em um de seus flancos, escritas em caligrafia ciclópica
com grandes pedras arrumadas, apareciam letras singulares — um A, um L e
um S — ladeadas por uma cruz, de modo a fazerem crer que estava ali e não
avante, para o ocidente ou para o sul, o el-dorado apetecido.

Esquadrinharam-na, porém, debalde os êmulos do Muribeca astuto,
seguindo, afinal, para outros rumos, com as suas tropas de potiguaras mansos
e forasteiros armados de biscainhos . . .

A serra desapareceu outra vez entre as chapadas que domina …

No fim do século passado, porém, descobriu-a um missionário
— Apolônio de Todi. Vindo da missão de Maçacará,
o maior apóstolo do Norte impressionou-se tanto com o aspecto da montanha,
“achando-a semelhante ao calvário de Jerusalém”, que
planeou logo a ereção de uma capela. Ia ser a primeira do mais
tosco e do mais imponente templo da fé religiosa.

Descreve o sacerdote, longamente, o começo e o curso dos trabalhos
e o auxílio franco que lhe deram os povoadores dos lugares próximos.
Pinta a última solenidade, procissão majestosa e lenta ascendendo
a montanha, entre as raladas de tufão violento que se alteou das planícies
apagando as tochas; e, por fim, o sermão terminal da penitencia, exortando
o povo a “que nos dias santos viesse visitar os santos lugares, já
que vivia em tão grande desamparo das coisas espirituais”.

“E aqui, termina , sem pensar em mais nada disse que daí em diante
não chamariam mais serra de Piquaraçá, mas sim Monte
Santo.”

E fez-se o templo prodigioso, monumento erguido pela natureza e pela fé,
mais alto que as mais altas catedrais da Terra.

A população sertaneja completou a empresa do missionário.

Hoje quem sobe a extensa via-sacra de três quilômetros de comprimento,
em que se origem, a espaços, 25 capelas de alvenaria, encerrando painéis
dos “passos”, avalia a constância e a tenacidade do esforço
despendido.

Amparada por muros capeados; calçada em certos trechos; tendo, noutros,
como leito, a rocha viva talhada em degraus, ou rampeada, aquela estrada branca,
de quartzolito, onde ressoam, há cem anos, as litanias das procissões
da quaresma e têm passado legiões de penitentes, é um
prodígio de engenharia rude e audaciosa. Começa investindo com
a montanha, segundo a normal de máximo declive, em rampa de cerca de
vinte graus. Na quarta ou quinta capelinha inflete à esquerda e progride
menos íngreme. Adiante, a partir da capela maior — ermida interessantíssima
ereta num ressalto da pedra a cavaleiro do abismo — , volta à direita,
diminuindo de declive até a linha de cumeadas. Segue por esta segundo
uma selada breve. Depois se alteia, de improviso, retilínea, em ladeira
forte, arremetendo com o vértice pontiagudo do monte, até o
Calvário no alto !

A medida que ascende, ofegante, estacionando nos “passos”, o observador
depara perspectivas que seguem num crescendo de grandezas soberanas: primeiro,
os planos das chapadas e tabuleiros, esbatidos embaixo em planícies
vastas; depois, as serranias remotas, agrupadas, longe, em todos os quadrantes;
e, atingindo o alto, o olhar a cavaleiro das serras — o espaço indefinido,
a emoção estranha de altura imensa, realçada pelo aspecto
da pequena vila, embaixo, mal percebida na confusão caótica
dos telhados.

E quando, pela Semana Santa, convergem ali as famílias da redondeza
e passam os crentes pelos mesmos flancos em que vaguearam outrora, inquietos
de ambição, os aventureiros ambiciosos, vê-se que Apolônio
de Todi, mais hábil que o Muribeca, decifrou o segredo das grandes
letras de pedra descobrindo o el-dorado maravilhoso, a mina opulentíssima
oculta no deserto…

As missões atuais

Infelizmente o apóstolo não teve continuadores. Salvo raríssimas
exceções, o missionário moderno é um agente prejudicialíssimo
no agravar todos os desequilíbrios do estado emocional dos tabaréus.
Sem a altitude dos que o antecederam, a sua ação é negativa:
destrói, apaga e perverte o que incutiram de bom naqueles espíritos
ingênuos os ensinamentos dos primeiros evangelizadores, dos quais não
tem o talento e não tem a arte surpreendente da transfiguração
das almas. Segue vulgarmente processo inverso do daqueles: não aconselha
e consola, aterra e amaldiçoa; não ora, esbraveja. E brutal
e traiçoeiro. Surge das dobras do hábito escuro como da sombra
de uma emboscada armada à credulidade incondicional dos que o escutam.
Sobe ao púlpito das igrejas do sertão e não alevanta
a imagem arrebatadora dos céus; descreve o inferno truculento e flamívomo,
numa algaravia de frases rebarbativas a que completam gestos de maluco e esgares
de truão.

É ridículo, e é medonho. Tem o privilégio estranho
das bufonerias melodramáticas. As parvoíces saem-lhe da boca
trágicas.

Não traça ante os matutos simples a feição honesta
e superior da vida — não a conhece; mas brama em todos os tons contra
o pecado; esboça grosseiros quadros de torturas; e espalha sobre o
auditório fulminado avalanchas de penitencias, extravagando largo tempo,
em palavrear interminável, fungando as pitadas habituais e engendrando
catástrofes, abrindo alternativamente a caixa de rapé e a boceta
de Pandora…

E alucina o sertanejo crédulo; alucina-o, deprime-o, perverte-o.

Os “Serenos”

Busquemos um exemplo único, o último.

Em 1850 os sertões de Cariri foram alvorotados pelas depredações
dos Serenos, exercitando o roubo em larga escala.

Aquela denominação indicava “companhias de penitentes”
que à noite, nas encruzilhadas ermas, em torno das cruzes misteriosas,
se agrupavam, adoidadamente, numa agitação macabra de flagelantes,
impondo-se o cilício dos espinhos, das urtigas e outros duros tratos
de penitência. Ora, aqueles agitados saíram certo dia, repentinamente,
da matriz do Crato, dispersos, em desalinho — mulheres em prantos, homens
apreensivos, crianças trementes — em procura dos flagícios
duramente impostos. Dentro da igreja, missionários recém-vindos
haviam profetizado próximo fim do mundo. Deus o dissera — em mau português,
em mau italiano e em mau latim — estava farto dos desmandos da Terra…

E os derivados foram pelos sertões em fora, esmolando, chorando, rezando,
numa mandria deprimente, e como a caridade pública não os podia
satisfazer a todos, acabaram — roubando.

Era fatal. Os instrutores do crime foram, afinal, infelicitar outros lugares
e a justiça a custo reprimiu o banditismo incipiente.

Capítulo IV

Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo. Um
gnóstico bronco. Grande homem pelo avesso, representante natural do
meio em que nasceu. Antecedentes de família: os Maciéis. Uma
vida bem auspiciada. Primeiros reveses; e a queda. Como se faz um monstro.
Peregrinações e martírios. Lendas. As prédicas.
Preceitos de montanista. Profecias. Um heresiarca do século 2 em plena
idade moderna. Tentativa de reação legal. Hégira para
o sertão.

É natural que estas camadas profundas da nossa estratificação
étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária — Antônio
Conselheiro…

A imagem é corretíssima.

Da mesma forma que o geólogo, interpretando a inclinação
e a orientação dos estratos truncados de antigas formações,
esboça o perfil de uma montanha extinta, o historiador só pode
avaliar a altitude daquele homem, que por si nada valeu, considerando a psicologia
da sociedade que o criou. Isolado, ele se perde na turba dos nevróticos
vulgares. Pode ser incluído numa modalidade qualquer de psicose progressiva.
Mas, posto em função do meio, assombra. É uma diátese
e é uma síntese. As fases singulares da sua existência
não são, talvez, períodos sucessivos de uma moléstia
grave, mas são, com certeza, resumo abreviado dos aspectos predominantes
de mal social gravíssimo. Por isto o infeliz, destinado à solicitude
dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater
de encontro a uma civilização, indo para a História como
poderia ter ido para o hospício. Porque ele para o historiador não
foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres
diferenciais — vagos, indecisos, mal percebidos quando dispersos na multidão,
mas enérgicos e definidos, quando resumidos numa individualidade.

Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às
aberrações católicas, todas as tendências impulsivas
das raças inferiores, livremente exercitadas na indisciplina da vida
sertaneja, se condensaram no seu misticismo feroz e extravagante. Ele foi,
simultaneamente, o elemento ativo e passivo da agitação de que
surgiu. O temperamento mais impressionável apenas fê-lo absorver
as crenças ambientes, a princípio numa quase passividade pela
própria receptividade mórbida do espirito torturado de reveses,
e elas refluíram, depois, mais fortemente, sobre o próprio meio
de onde haviam partido, partindo da sua consciência delirante.

É difícil traçar no fenômeno a linha divisória
entre as tendências pessoais e as tendências coletivas: a vida
resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de
sua sociedade…

Acompanhar a primeira é seguir paralelamente e com mais rapidez a
segunda: acompanhá-las juntas é observar a mais completa mutualidade
de influxos.

Considerando em torno, o falso apóstolo, que o próprio excesso
de subjetivismo predispusera à revolta contra a ordem natural, como
que observou a fórmula do próprio delírio. Não
era um incompreendido. A multidão aclamava-o representante natural
das suas aspirações mais altas. Não foi, por isto, além.
Não deslizou para a demência. No gravitar contínuo para
o mínimo de uma curva, para o completo obscurecimento da razão,
o meio reagindo por sua vez amparou-o, corrigindo-o, fazendo-o estabelecer
encadeamento nunca destruído nas mais exageradas concepções,
certa ordem no próprio desvario, coerência indestrutível
em. todos os atos e disciplina rara em todas as paixões, de sorte que
ao atravessar, largos anos, nas práticas ascéticas, o sertão
alvorotado, tinha na atitude, na palavra e no gesto, a tranqüilidade,
a altitude e a resignação soberana de um apóstolo antigo.

Doente grave, só lhe pode ser aplicado o conceito da paranóia,
de Tanzi e Riva.

Em seu desvio ideativo vibrou sempre, a bem dizer exclusiva, a nota étnica.
Foi um documento raro de atavismo.

A constituição mórbida levando-o a interpretar caprichosamente
as condições objetivas, e alterando-lhe as relações
com o mundo exterior, traduz-se fundamentalmente como uma regressão
ao estádio mental dos tipos ancestrais da espécie.

Um gnóstico bronco

Evitada a intrusão dispensável de um médico, um antropologista
encontrá-lo-ia normal, marcando logicamente certo nível da mentalidade
humana, recuando no tempo, fixando uma fase remota da evolução.
O que o primeiro caracterizaria como caso franco de delírio sistematizado,
na fase persecutória ou de grandezas, o segundo indicaria como fenômeno
de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização
— um anacronismo palmar, a revivescência de atributos psíquicos
remotíssimos. Os traços mais típicos do seu misticismo
estranho, mas naturalíssimo para nós, já foram, dentro
de nossa era, aspectos religiosos vulgares. Deixando mesmo de lado o influxo
das raças inferiores, vimo-los há pouco, de relance, em período
angustioso da vida portuguesa.

Poderíamos apontá-los em cenário mais amplo. Bastava
que volvêssemos aos primeiros dias da Igreja, quando o gnosticismo universal
se erigia como transição obrigatória entre o paganismo
e o cristianismo, na última fase do mundo romano em que, precedendo
o assalto dos bárbaros, a literatura latina do ocidente declinou, de
súbito, mal substituída pelos sofistas e letrados tacanhos de
Bizâncio.

Com efeito, os montanistas da Frígia, os adamitas infames, os ofiolatras,
os maniqueus bifrontes entre o ideal cristão emergente e o budismo
antigo, os discípulos de Markos, os encratitas abstinentes e macerados
de flagícios, todas as seitas em que se fracionava a religião
nascente, com os seus doutores histéricos e exegeses hiperbólicas,
forneceriam hoje casos repugnantes de insânia. E foram normais. Acolchetaram-se
bem a todas as tendências da época em que as extravagâncias
de Alexandre Abnótico abalavam a Roma de Marco Aurélio, com
as suas procissões fantásticas, os seus mistérios e os
seus sacrifícios tremendos de leões lançados vivos ao
Danúbio, com solenidades imponentes presididas pelo imperador filósofo…

A história repete-se.

Antônio Conselheiro foi um gnóstico bronco.

Veremos mais longe a exação do símile.

Grande homem pelo avesso

Paranóico indiferente, este dizer, talvez, mesmo não lhe possa
ser ajustado, inteiro. A regressão ideativa que patenteou, caracterizando-lhe
o temperamento vesânico, é, certo, um caso notável de
degenerescência intelectual, mas não o isolou — incompreendido,
desequilibrado, retrógrado, rebelde — no meio em que agiu.

Ao contrário, este fortaleceu-o. Era o profeta, o emissário
das alturas, transfigurado por ilapso estupendo, mas adstrito a todas as contingências
humanas, passível do sofrimento e da morte, e tendo uma função
exclusiva: apontar aos pecadores o caminho da salvação. Satisfez-se
sempre com este papel de delegado dos céus. Não foi além.
Era um servo jungido à tarefa dura; e lá se foi, caminho dos
sertões bravios, largo tempo, arrastando a carcaça claudicante,
arrebatado por aquela idéia fixa, mas de algum modo lúcido em
todos os atos, impressionando pela firmeza nunca abalada e seguindo para um
objetivo fixo com finalidade irresistível.

A sua frágil consciência oscilava em torno dessa posição
média, expressa pela linha ideal que Maudsley lamenta não se
poder traçar entre o bom senso e a insânia.

Parou aí indefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa
zona mental onde se confundem facínoras e heróis, reformadores
brilhantes e aleijões tacanhos, e se acotovelam gênios e degenerados.
Não a transpôs. Recalcado pela disciplina vigorosa de uma sociedade
culta, a sua nevrose explodiria na revolta, o seu misticismo comprimido esmagaria
a razão. Ali, vibrando a primeira uníssona com o sentimento
ambiente, difundido o segundo pelas almas todas que em torno se congregavam,
se normalizaram.

Representante natural do meio em que nasceu

O fator sociológico, que cultivara a psicose mística do indivíduo,
limitou-a sem a comprimir, numa harmonia salvadora. De sorte que o espírito
predisposto para a rebeldia franca contra a ordem natural cedeu à única
reação de que era passível. Cristalizou num ambiente
propício de erros e superstições comuns.

Antecedentes de família. Os Maciéis

A sua biografia compendia e resume a existência da sociedade sertaneja.
Esclarece o conceito etiológico da doença que o vitimou. Delineemo-la
de passagem.

“Os Maciéis, que formavam, nos sertões entre Quixeramobim
e Tamboril, uma família numerosa de homens válidos, ágeis,
inteligentes e bravos, vivendo de vaqueirice e pequena criação,
vieram, pela lei fatal dos tempos, a fazer parte dos grandes fastos criminais
do Ceará, em uma guerra de família. Seus êmulos foram
os Araújos, que formavam uma família rica, filiada a outras
das mais antigas do norte da província.

Viviam na mesma região, tendo como sede principal a povoação
de Boa Viagem, que demora cerca de dez léguas de Quixeramobim.

Foi uma das lutas mais sangrentas dos sertões do Ceará, a que
se travou entre estes dois grupos de homens, desiguais na fortuna e posição
oficial, ambos embravecidos na prática das violências, e numerosos.”

Assim começa o narrador consciencioso breve notícia sobre a
genealogia de Antônio Conselheiro.

Os fatos criminosos a que se refere são um episódio apenas
entre as razias, quase permanentes, da vida turbulenta dos sertões.
Copiam mil outros de que ressaltam, evidentes, a prepotência sem freios
dos mandões de aldeia e a exploração pecaminosa por eles
exercida sobre a bravura instintiva do sertanejo. Luta de famílias
— é uma variante apenas de tantas outras, que ali surgem, intermináveis,
comprometendo as próprias descendências que esposam as desavenças
dos avós, criando uma quase predisposição fisiológica
e tornando hereditários os rancores e as vinganças.

Lutas entre Maciéis e Araújos

Surgiu de incidente mínimo: pretensos roubos cometidos pelos Maciéis
em propriedade de família numerosa, a dos Araújos.

Tudo indicava serem aqueles vítimas de acusação descabida.
Eram “homens vigorosos, simpáticos, bem apessoados. verdadeiros
e serviçais” gozando em toda a redondeza de reputação
invejável.

Araújo da Costa e um seu parente, Silvestre Rodrigues Veras, não
viam, porém, com bons olhos, a família pobre que lhes balanceava
a influência, sem a justificativa de vastos latifúndios e boiadas
grandes. Criadores opulentos, senhores de baraço e cutelo, vezados
a fazer justiça por si mesmos, concertaram em dar exemplar castigo
aos delinqüentes. E como estes eram bravos até à temeridade,
chamaram a postos a guarda pretoriana dos capangas.

Assim apercebidos abalaram na expedição criminosa para Quixeramobim.

Mas volveram logo depois, contra a expectativa geral, em derrota. Os Maciéis,
reunida toda a parentela, rapazes desempenados e temeros, haviam-se afrontado
com a malta assalariada, repelindo-a vigorosamente, suplantando-a, espavorindo-a.

O fato passou em 1333.

Batidos, mal sofreando o desapontamento e a cólera, os potentados,
cuja imbecilidade triunfante passara por tão duro trato, apelaram para
recursos mais enérgicos. Não faltavam então, como não
faltam hoje, facínoras de fama que lhes alugassem a coragem. Conseguiram
dois, dos melhores: José Joaquim de Meneses, pernambucano, sanhudo,
célebre pela rivalidade sanguinolenta com os Mourões famosos;
e um cangaceiro terrível, Vicente Lopes, de Aracatiaçu. Reunida
a matula turbulenta, a que se ligaram os filhos e genros de Silvestre, seguiu,
de pronto, para a empreitada criminosa.

Ao acercarem-se, porém, da vivenda dos Maciéis, os sicários
— embora fossem em maior número — temeram-lhes a resistência.
Propuseram-lhes que se entregassem, garantindo-lhes, sob palavra, a vida.
Aqueles, certos de não poderem resistir por muito tempo, aquiesceram.
Renderam-se. A palavra de honra dos bandidos teve o valor que poderia ter.
Quando seguiam debaixo de escolta e algemados, para a cadeia de Sobral, logo
no primeiro dia da viagem foram os presos trucidados. Morreram nesta ocasião,
entre outros, o chefe da família, Antônio Maciel, e um avô
de Antônio Conselheiro .

Mas um tio deste, Miguel Carlos, logrou escapar. Manietado além disto
com as pernas amarradas por baixo da barriga do cavalo que montava, a sua
fuga é inexplicável. Afirma-a, contudo, a sisudez de cronista
sincero.

Ora, os Araújos tinham deixado fugir o seu pior adversário.
Perseguiram-no. Bem armados, bem montados, encalçaram-no, prestes,
em monteria bárbara, como se fossem sobre rastros de suçuarana
bravia. O foragido, porém, emérito batedor de matas, seguido
na fuga por uma irmã, iludiu por algum tempo a escolta perseguidora
chefiada por Pedro Martins Veras; e no sítio da Passagem, perto de
Quixeramobim, ocultou-se exausto, numa choupana abandonada, coberta de ramos
de oiticica.

Ali chegaram, em breve, rastreando-o, os perseguidores. Eram nove horas da
manhã. Houve então uma refrega desigual e tremenda. O temerário
sertanejo, embora estropiado e doente de um pé que luxara, afrontou-se
com a horda assaltante, estendendo logo em terra a um certo Teotônio,
desordeiro façanhudo, que se avantajara aos demais. Este caiu transversalmente
à soleira da porta, impedindo-a que se fechasse. A irmã de Miguel
Carlos, quando procurava arrastá-lo dali, caiu atravessada por uma
bala. Alvejara-a o próprio Pedro Veras, que pagou logo a façanha,
levando à queima-roupa uma carga de chumbo. Morto o cabecilha, os agressores
recuaram por momentos, o suficiente para que o assaltado trancasse rapidamente
a porta.

Isto feito, o casebre fez-se um reduto. Pelas frinchas das paredes estourava
de minuto em minuto um tiro de espingarda. Os bandidos não ousaram
investi-lo; mas foram de cobardia feroz. Atearam fogo à cobertura de
folhas.

O efeito foi pronto. Mal podendo respirar no abrigo em chamas, Miguel Carlos
resolve abandoná-lo. Derrama toda a água de um pote na direção
do fundo da choupana, apagando momentaneamente as brasas, e, saltando por
sobre o cadáver da irmã, arroja-se, de clavina sobraçada
e parnaíba em punho, contra o círculo assaltante. Rompe-o e
afunda na caatinga. . .

Tempos depois um dos Araújos contratou casamento com a filha de rico
criador de Tapaiara; e no dia das núpcias, já perto da igreja,
tombou varado por uma bala, entre o alarma dos convivas e o desespero da noiva
desditosa.

Velava, inextinguivelmente, a vingança do sertanejo…

Este tinha, agora, uma sócia no rancor justificado e fundo, outra
irmã, Helena Maciel, a “Nêmesis da família”,
conforme o dizer do cronista referido. A sua vida transcorria em lances perigosos,
muitos dos quais desconhecidos senão fabulados pela imaginação
fecunda dos matutos. O certo, porém, é que, desfazendo a urdidura
de todas as tocaias, não raro lhe caiu sob a faca o espião incauto
que o rastreava, em Quixeramobim.

Diz a narrativa a que acima nos reportamos:

“Parece que Miguel Carlos tinha ali protetores que o garantiam. O que
é certo é que, não obstante a sorte tivera aquele seu
apaniguado, costumava estar na vila.

Uma noite, estando à porta da loja de Manuel Procópio de Freitas,
viu entrar um indivíduo, que procurava comprar aguardente. Dando-o
como espião, falou em matá-lo ali mesmo, mas, sendo detido pelo
dono da casa, tratou de acompanhar o suspeito, e o matou, à faca, ao
sair da vila, no riacho da Palha.

Uma manhã, finalmente, saiu da casa de Antônio Caetano de Oliveira,
casado com uma sua parenta, e foi banhar-se no rio, que corre por trás
dessa casa, situada quase no extremo da praça principal da vila, junto
a garganta que conduz a pequena praça Cotovelo. Nos fundos da casa
indicada era então a embocadura do riacho da Palha, que em forma quase
circular contornava aquela praça, e de inverno constituía uma
cinta lindíssima de águas represadas. Miguel Carlos estava já
despido, como muitos companheiros, quando surgiu um grupo de inimigos, que
o esperavam acocorados por entre o denso “mata-pasto”. Estranhos
e parentes de Miguel Carlos, tomando as roupas depostas na areia, e vestindo-as
ao mesmo tempo que corriam, puseram-se em fuga. Em ceroulas somente, e com
a sua faca em punho, ele correu também na direção dos
fundos de uma casa, que quase enfrenta com a embocadura do riacho da Palha;
casa na qual morava em 1845 Manuel Francisco da Costa. Miguel Carlos chegou
a abrir o portão do quintal, de varas, da casa indicada; mas, quando
quis fechá-lo, foi prostrado por um tiro, partido do séquito
que o perseguia. Outros dizem que isto se dera quando ele passava pelo buraco
da cerca de uma vazante que havia por ali. Agonizava, caído, com a
sua faca na mão, quando Manuel de Araújo, chefe do bando, irmão
do noivo outrora assassinado, pegando-o por uma perna, lhe cravou uma faca.
Moribundo, Miguel Carlos lhe respondeu no mesmo instante com outra facada
na carótida, morrendo ambos instantaneamente, este por baixo daquele
! Helena Maciel, correndo em fúria ao lugar do conflito, pisou a pés
a cara do matador de seu irmão, dizendo-se satisfeita da perda dele
pelo fim que dera ao seu inimigo !”

Pretendem que os sicários tinham passado a noite em casa de Inácio
Mendes Guerreiro, da família de Araújo, agente do correio da
Vila. Vinham a título de prender os Maciéis; mas, só
no propósito de matá-los.

Helena não se abateu com esta desgraça. Nêmesis da família
imolou um inimigo aos manes do seu irmão. Foi ela, como ousou confessar
muitos anos depois, quem mandou espancar barbaramente a André Jacinto
de Souza Pimentel, moço de família importante da vila, aparentado
com os Araújos, a quem atribuía os avisos que estes recebiam
em Boa Viagem, das vindas de Miguel Carlos. Desse espancamento resultou uma
lesão cardíaca, que fez morrer em transes horrorosos o infeliz,
em verdade culpado dessa derradeira agressão dos Araújos.

O fato de ter sido o crime perpetrado por soldados do destacamento de linha,
ao mando do alferes Francisco Gregório Pinto, homem insolente, de baixa
educação e origem, com quem Pimentel andava inimizado, fez acreditar
muito tempo que fora esse oficial mal reputado o autor do crime.

Helena deixara-se ficar queda e silenciosa.

Inúmeras vítimas anônimas fez esta lota sertaneja, que
dizimava os sequazes das duas famílias, sendo o último dos Maciéis
— Antônio Maciel, irmão de Miguel Carlos, morto em Boa Viagem.
Ficou célebre muito tempo a valentia de Miguel Carlos e era por ele
e seus parentes a estima e respeito dos coevos, testemunhas da energia dessa
família, dentre a qual surgiram tantos homens de esforço, para
uma luta com poderosos tais, como os da Boa Viagem e Tamboril.

Uma vida bem auspiciada

Nada se sabe ao certo sobre o papel que coube a Vicente Mendes Maciel, pai
de Antônio Vicente Mendes Maciel ( o Conselheiro ), nesta luta deplorável.
Os seus contemporâneos pintam-no como “homem irascível mas
de excelente caráter, meio visionário e desconfiado, mas de
tanta capacidade que, sendo analfabeto, negociava largamente em fazendas,
trazendo tudo perfeitamente contado e medido de memória, sem mesmo
ter escrita para os devedores”.

O filho, sob a disciplina de um pai de honradez proverbial e ríspido,
teve educação que de algum modo o isolou da turbulência
da família. Indicam-no testemunhas de vista, ainda existentes, como
adolescente tranqüilo e tímido, sem o entusiasmo feliz dos que
seguem as primeiras escalas da vida; retraído, avesso à troça,
raro deixando a casa de negócio do pai, em Quixeramobim, de todo entregue
aos misteres de caixeiro consciencioso, deixando passar e desaparecer vazia
a quadra triunfal dos vinte anos. Todas as histórias, ou lendas entretecidas
de exageros, segundo o hábito dos narradores do sertão, em que
eram muita vez protagonistas os seus próprios parentes, eram-lhe entoadas
em torno evidenciando-lhes sempre a coragem tradicional e rara. A sugestão
das narrativas, porém, tinha o corretivo enérgico da ríspida
sisudez do velho Mendes Maciel e não abalava o animo do rapaz. Talvez
ficasse latente, pronta a se expandir em condições mais favoráveis.
O certo é que falecendo aquele em 1855, vinte anos depois dos trágicos
sucessos que rememoramos, Antônio Maciel prosseguiu na mesma vida corretíssima
e calma.

Arrostando com a tarefa de velar por três irmãs solteiras revelou
abnegação rara. Somente depois de as ter casado procurou, por
sua vez, um enlace que lhe foi nefasto.

Primeiros reveses

Data daí a sua existência dramática. A mulher foi a sobrecarga
adicionada à tremenda tara hereditária, que desequilibraria
uma vida iniciada sob os melhores auspícios.

A partir de 1858 todos os seus atos denotam uma transformação
de caráter. Perde os hábitos sedentários. Incompatibilidades
de gênio com a esposa ou, o que é mais verossímil, a péssima
índole desta, tornam instável a sua situação.

Em poucos anos vive em diversas vilas e povoados. Adota diversas profissões.

Nesta agitação, porém, percebe-se a luta de um caráter
que se não deixa abater. Tendo ficado sem bens de fortuna, Antônio
Maciel, nesta fase preparatória de sua vida, a despeito das desordens
do lar, ao chegar a qualquer nova sede de residência procura logo um
emprego, um meio qualquer honesto de subsistência. Em 1859, mudando-se
para Sobral, emprega-se como caixeiro. Demora-se, porém, pouco ali.
Segue para Campo Grande, onde desempenha as funções modestas
de escrivão do juiz de paz. Daí, sem grande demora, se desloca
para Ipu. Faz-se solicitador, ou requerente no forum.

Nota-se já em tudo isto um crescendo para profissões menos
trabalhosas, exigindo cada vez menos a constância do esforço;
o contínuo despear-se da disciplina primitiva, a tendência acentuada
para a atividade mais irrequieta e mais estéril, o descambar para a
vadiagem franca. Ia-se-lhe ao mesmo tempo, na desarmonia do lar, a antiga
serenidade.

Este período de vida mostra-o, todavia, aparelhado de sentimentos
dignos. Ali estavam, em torno, permanentes lutas partidárias abrindo-lhe
carreira aventurosa, em que poderia entrar como tantos outros, ligando-se
aos condutícios de qualquer conquistador de urnas, para o que tinha
o prestígio tradicional da família. Evitou-as sempre. E na descensão
contínua, percebe-se alguém que perde o terreno, mas lentamente,
reagindo, numa exaustão dolorosa.

A queda

De repente, surge-lhe revés violento. O plano inclinado daquela vida
em declive termina, de golpe, em queda formidável. Foge-lhe a mulher,
em Ipu, raptada por um policial. Foi o desfecho. Fulminado de vergonha, o
infeliz procura o recesso dos sertões, paragens desconhecidas, onde
lhe não saibam o nome; o abrigo da absoluta obscuridade.

Desce para o sul do Ceará.

Ao passar em Paus Brancos, na estrada do Crato, fere com ímpeto de
alucinado, à noite, um parente, que o hospedara. Fazem-se breves inquirições
policiais, tolhidas logo pela própria vítima reconhecendo a
não culpabilidade do agressor. Salva-se da prisão. Prossegue
depois para o sul, à toa, na direção do Crato. E desaparece…

Passam-se dez anos. O moço infeliz de Quixeramobim ficou de todo esquecido.
Apenas uma ou outra vez lhe recordavam o nome e o termo escandaloso da existência,
em que era magna pars um Lovelace de coturno reúno, um sargento de
polícia.

Graças a este incidente, algo ridículo, ficara nas paragens
natais breve resquício de sua lembrança.

Morrera por assim dizer.

Como se faz um monstro

… E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos
ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso,
dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico
bastão em que se apóia o passo tardo dos peregrinos…

É desconhecida a sua existência durante tão largo período.
Um velho caboclo, preso em Canudos nos últimos dias da campanha, disse-me
algo a respeito, mas vagamente, sem precisar datas, sem pormenores característicos.
Conhecera-o nos sertões de Pernambuco, um ou dois anos depois da partida
do Crato. Das palavras desta testemunha, concluí que Antônio
Maciel, ainda moço, já impressionava vivamente a imaginação
dos sertanejos. Aparecia por aqueles lugares sem destino fixo, errante. Nada
referia sobre o passado. Praticava em frases breves e raros monossílabos.
Andava sem rumo certo, de um pouso para outro, indiferente à vida e
aos perigos, alimentando-se mal e ocasionalmente, dormindo ao relento à
beira dos caminhos, numa penitência demorada e rude…

Tornou-se logo alguma coisa de fantástico ou mal-assombrado para aquelas
gentes simples. Ao abeirar-se das rancharias dos tropeiros aquele velho singular,
de pouco mais de trinta anos, fazia que cessassem os improvisos e as violas
festivas.

Era natural. Ele surdia — esquálido e macerado — dentro do hábito
escorrido, sem relevos, mudo, como uma sombra, das chapadas povoadas de duendes…

Passava, buscando outros lugares, deixando absortos os matutos supersticiosos.

Dominava-os, por fim, sem o querer.

No seio de uma sociedade primitiva, que pelas qualidades étnicas e
influxo das santas missões malévolas compreendia melhor a vida
pelo incompreendido dos milagres, o seu viver misterioso rodeou-o logo de
não vulgar prestígio, agravando-lhe, talvez, o temperamento
delirante. A pouco e pouco todo 0 domínio que, sem cálculo,
derramava em torno, parece haver refluído sobre si mesmo. Todas as
conjeturas ou lendas que para logo o circundaram fizeram o ambiente propício
ao germinar do próprio desvario. A sua insânia estava, ali, exteriorizada.
Espelhavam-na a admiração intensa e o respeito absoluto que
o tornaram em pouco tempo árbitro incondicional de todas as divergências
ou brigas, conselheiro predileto em todas as decisões. A multidão
poupara-lhe o indagar torturante acerca do próprio estado emotivo,
o esforço dessas interrogativas angustiosas e dessa intuspecção
delirante, entre os quais envolve a loucura nos cérebros abalados.
Remodelava-o à sua imagem. Criava-o. Ampliava-lhe, desmesuradamente,
a vida, lançando-lhe dentro os erros de 2 mil anos.

Precisava de alguém que lhe traduzisse a idealização
indefinida, e a guiasse nas trilhas misteriosas para os céus…

O evangelizador surgiu, monstruoso, mas autômato.

Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas
esta condensava o obscurantismo de três raças.

E cresceu tanto que se projetou na História…

Peregrinações e martírios

Dos sertões de Pernambuco passou aos de Sergipe, aparecendo na cidade
de Itabaiana em 1874.

Ali chegou, como em toda a parte, desconhecido e suspeito, impressionando
pelos trajes esquisitos — camisolão azul, sem cintura; chapéu
de abas largas derrubadas, e sandálias. Às costas um surrão
de couro em que trazia papel, pena e tinta, a Missão Abreviada e as
Horas Marianas.

Vivia de esmolas, das quais recusava qualquer excesso, pedindo apenas o sustento
de cada dia. Procurava os pousos solitários. Não aceitava leito
algum, além de uma tábua nua e, na falta desta, o chão
duro.

Assim pervagou largo tempo, até aparecer nos sertões, ao norte
da Bahia. Ia-lhe crescendo o prestígio. Já não seguia
só. Encalçavam-no na rota desnorteada os primeiros fiéis.
Não os chamara. Chegavam-lhe espontâneos, felizes por atravessarem
com ele os mesmos dias de provações e misérias.

Eram, no geral, gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho, farândula
de vencidos da vida, vezada à mandria e à rapina.

Um dos adeptos carregava o templo único, então, da religião
minúscula e nascente: um oratório tosco, de cedro, encerrando
a imagem do Cristo.

Nas paradas pelos caminhos prendiam-no a um galho de árvore; e, genuflexos,
rezavam. Entravam com ele, triunfalmente erguido, pelos vilarejos e povoados,
num coro de ladainhas.

Assim se apresentou o Conselheiro, em 1816, na vila do Itapicuru-de-Cima.
Já tinha grande renome.

Di-lo documento expressivo publicado aquele ano, na capital do Império.

“Apareceu no sertão do norte um indivíduo, que se diz
chamar Antônio Conselheiro, e que exerce grande influencia no espírito
das classes populares servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos,
com que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou
crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e alimenta-se
tenuamente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive
a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões,
que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo sentimentos
religiosos, vai arrebanhando o povo e guindo-o a seu gosto. Revela ser homem
inteligente, mas sem cultura”.

Estes dizeres rigorosamente verídicos, de um anuário impresso
centenares de léguas de distancia, delatam bem a fama que ele já
granjeara.

Lendas

Entretanto a vila de Itapicuru esteve para ser o fecho da sua carreira extraordinária.
Foi, ali, naquele mesmo ano, entre o espanto dos fiéis, inopinadamente
preso. Determinara a prisão uma falsidade, que o seu modo de vida excepcional
e as antigas desordens domésticas de algum modo justificavam: diziam-no
assassino da esposa e da própria mãe.

Era uma lenda arrepiadora.

Contavam que a última, desadorando a nora, imaginara perdê-la.
Revelara, por isto, que era traído; e como este, surpreso, lhe exigisse
provas do delito, propôs-se apresentá-las sem tardança.
Aconselhou-o a que fantasiasse qualquer viagem, permanecendo, porém,
nos arredores, porque veria, à noite, invadir-lhe o lar o sedutor que
o desonrara. Aceito o alvitre, o infeliz, cavalgando e afastando-se cerca
de meia légua, torceu depois de rédeas, tornando, furtivamente,
por desfreqüentados desvios, para uma espera adrede escolhida, de onde
pudesse observar bem e agir de pronto.

Ali quedou longas horas, até lobrigar, de fato, noite velha, um vulto
aproximando-se de sua vivenda. Viu-o achegar-se cautelosamente e galgar uma
das janelas. E não lhe deu tempo para entrar. Abateu-o com um tiro.

Penetrou, em seguida, de um salto, no lar e fulminou com outra descarga a
esposa infiel, adormecida.

Voltou, depois, para reconhecer o homem que matara… e viu com horror que
era a sua própria mãe, que se disfarçara daquele modo
para a consecução do plano diabólico.

Fugira, então, na mesma hora apavorado, doido, abandonando tudo, ao
acaso, pelos sertões em fora…

A imaginação popular, como se vê, começava a romancear-lhe
a vida, com um traço vigoroso de originalidade trágica.

O asceta

Como quer que fosse, porém, o certo é que em 1870 a repressão
legal o atingiu quando já se ultimara a evolução do seu
espírito, imerso de todo no sonho de onde não mais despertaria.
O asceta despontava, inteiriço, da rudeza disciplinar de quinze anos
de penitência. Requintara nessa aprendizagem de martírios, que
tanto preconizam os velhos luminares da Igreja. Vinha do tirocínio
brutal da fome, da sede, das fadigas, das angústias recalcadas e das
misérias fundas. Não tinha dores desconhecidas. A epiderme seca
rugava-se-lhe como uma couraça amolgada e rota sobre a carne morta.
Anestesiara-a com a própria dor; macerara-a e sarjara-a de cilícios
mais duros que os buréis de esparto; trouxera-a, de rojo, pelas pedras
dos caminhos; esturrara-a nos rescaldos das secas; inteiriçara-a nos
relentos frios; adormecera-a em transitórios repousos, nos leitos dilacerantes
das caatingas…

Abeirara muitas vezes a morte nos jejuns prolongados, com requinte de ascetismo
que surpreenderia Tertuliano, esse

sombrio propagandista da eliminação lenta da matéria,
“descarregando-se do seu sangue, fardo pesado e importuno da alma impaciente
por fugir…”

Para quem estava neste tirocínio de amarguras, aquela ordem de prisão
era incidente mínimo. Recebeu-a indiferente. Proibiu aos fiéis
que o defendessem. Entregou-se. Levaram-no à capital da Bahia. Ali,
a sua fisionomia estranha: face morta, rígida como uma máscara,
sem olhar e sem risos; pálpebras descidas dentro de órbitas
profundas; e o seu entrajar singularíssimo; e o seu aspecto repugnante,
de desenterrado, dentro do camisolão comprido, feito uma mortalha preta;
e os longos cabelos corredios e poentos caindo pelos ombros, emaranhando-se
nos pelos duros da barba descuidada, que descia até à cintura
— aferroaram a curiosidade geral.

Passou pelas ruas entre ovações de esconjuros e “pelos
sinais” dos crentes assustados e das beatas retransidas de sustos.

Interrogaram-no os juízes estupefatos.

Acusavam-no de velhos crimes, cometidos no torrão nativo. Ouviu o
interrogatório e as acusações, e não murmurou
sequer, revestido de impassibilidade marmórea.

A escolta que o trouxera, soube-se depois, espancara-o covardemente nas estradas.
Não formulou a mais leve queixa.

Quedou na tranqüila indiferença superior de um estóico.

Apenas — e este pormenor curioso ouvimo-lo a pessoa insuspeita — no dia
do embarque para o Ceará pediu às autoridades que o livrassem
da curiosidade pública, a única coisa que o vexava.

Chegando à terra natal, reconhecida a improcedência da denúncia,
é posto em liberdade. E no mesmo ano reaparece na Bahia entre os discípulos,
que o aguardavam sempre.

Esta volta — coincidindo, segundo afirmam, com o dia que prefixara, no momento
de ser preso–tomou aspectos de milagre.

Tresdobrou a sua influência.

Vagueia, então, algum tempo, pelos sertões de Curaçá,
estacionando ( 1877 ) de preferência em Chorrochó, lugarejo de
poucas centenas de habitantes, cuja feira movimentada congrega a maioria dos
povoadores daquele trecho do S. Francisco. Uma capela elegante indica-lhe,
ainda hoje, a estada. E, mais venerável talvez, pequena árvore,
à entrada da vila, que foi por muito tempo objeto de uma fitolatria
extraordinária. À sua sombra descansara o peregrino. Era um
arbusto sagrado. A sua sombra curavam-se os crédulos doentes; as suas
folhas eram panacéia infalível.

O povo começava a grande série de milagres de que não
cogitava talvez o infeliz…

De 1877 a 1887 erra por aqueles sertões, em todos os sentidos, chegando
mesmo até ao litoral, em Vila do Conde ( 1887 ).

Em toda esta área não há, talvez, uma cidade ou povoado
onde não tenha aparecido. Alagoinhas, Inhambupe, Bom Conselho, Jeremoabo,
Cumbe, Mucambo, Maçacará, Pombal, Monte Santo, Tucano e outros
viram-no chegar, acompanhado da farândola de fiéis. Em quase
todas deixava um traço da passagem: aqui um cemitério arruinado,
de muros reconstruídos; além uma igreja renovada; adiante uma
capela que se erguia, elegante sempre.

A sua entrada nos povoados, seguido pela multidão contrita, em silencio,
alevantando imagens, cruzes e bandeiras do Divino, era solene e impressionadora.
Paralisavam-se as ocupações normais. Ermavam-se as oficinas
e as culturas. A população convergia para a vila onde, em compensação,
avultava o movimento das feiras; e durante alguns dias, eclipsando as autoridades
locais, o penitente errante e humilde monopolizava o mando, fazia-se autoridade
única.

Erguiam-se na praça, revestidas de folhagens, as latadas, onde à
tarde entoavam, os devotos, terços e ladainhas; e quando era grande
a concorrência, improvisava-se um palanque ao lado do barracão
da feira, no centro do largo, para que a palavra do profeta pudesse irradiar
para todos os pontos e edificar todos os crentes.

As prédicas

Ele ali subia e pregava. Era assombroso, afirmam testemunhas existentes.
Uma oratória bárbara e arrepiadora, feita de excertos truncados
das Horas Marianas, desconexa, abstrusa, agravada, às vezes, pela ousadia
extrema das citações latinas; transcorrendo em frases sacudidas;
misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos
vulgares da moral cristã e de profecias esdrúxulas…

Era truanesco e era pavoroso.

Imagine-se um bufão arrebatado numa visão do Apocalise…

Parco de gestos, falava largo tempo, olhos em terra, sem encarar a multidão
abatida sob a algaravia, que derivava demoradamente, ao arrepio do bom senso,
em melopéia fatigante.

Tinha, entretanto, ao que parece, a preocupação do efeito produzido
por uma ou outra frase mais decisiva. Enunciava-a e emudecia; alevantava a
cabeça, descerrava de golpe as pálpebras; viam-se-lhe então
os olhos extremamente negros e vivos, e o olhar — uma cintilação
ofuscante… Ninguém ousava contemplá-lo. A multidão
sucumbida abaixava, por sua vez, as vistas, fascinada, sob o estranho hipnotismo
daquela insânia formidável.

E o grande desventurado realizava, nesta ocasião, o seu único
milagre: conseguia não se tornar ridículo…

Nestas prédicas, em que fazia vitoriosa concorrência aos capuchinhos
vagabundos das missões, estadeava o sistema religioso incongruente
e vago. Ora, quem as ouviu não se forra a aproximações
históricas sugestivas. Relendo as páginas memoráveis
em que Renan faz ressurgir, pelo galvanismo do seu belo estilo, os adoidados
chefes de seita dos primeiros séculos, nota-se a revivescência
integral de suas aberrações extintas. Não há desejar
mais completa reprodução do mesmo sistema, das mesmas imagens,
das mesmas fórmulas hiperbólicas, das mesmas palavras quase.
É um exemplo belíssimo da identidade dos estados evolutivos
entre os povos. O retrógrado do sertão reproduz o facies dos
místicos do passado. Considerando-o, sente-se o efeito maravilhoso
de uma perspectiva através dos séculos…

Está fora do nosso tempo. Está de todo entre esses retardatários
que Fouillée compara, em imagem feliz, à des coureurs sur le
champ de la civilisation, de plus en plus en retard.

Preceitos de montanista

É um dissidente do molde exato de Themison. Insurge-se contra a Igreja
romana, e vibra-lhe objurgatórias, estadeando o mesmo argumento que
aquele: ela perdeu a sua glória e obedece a Satanás. Esboça
uma moral que é a tradução justalinear da de Montano:
a castidade exagerada ao máximo horror pela mulher, contrastando com
a licença absoluta para o amor livre, atingindo quase à extinção
do casamento.

O frígio pregava-a, talvez como o cearense, pelos ressaibos remanescentes
das desditas conjugais. Ambos proíbem severamente que as moças
se ataviem; bramam contra as vestes realçadoras; insistem do mesmo
modo, especialmente sobre o luxo dos toucados; e — o que é singularíssimo
— cominam, ambos, o mesmo castigo a este pecado: o demônio dos cabelos,
punindo as vaidosas com dilaceradores pentes de espinho.

A beleza era-lhes a face tentadora de Satã. O Conselheiro extremou-se
mesmo no mostrar por ela invencível horror. Nunca mais olhou para uma
mulher. Falava de costas mesmo às beatas velhas, feitas para amansarem
sátiros.

Profecias

Ora, esta identidade avulta, mais frisante, quando se comparam com as do
passado as concepções absurdas do esmaniado apóstolo
sertanejo. Como os montanistas, ele surgia no epílogo da Terra… O
mesmo milenarismo extravagante, o mesmo pavor do anti-Cristo despontando na
derrocada universal da vida. O fim do mundo próximo…

Que os fiéis abandonassem todos os haveres, tudo quanto os maculasse
com um leve traço da vaidade. Todas as fortunas estavam a pique da
catástrofe iminente e fora temeridade inútil conservá-las.

Que abdicassem as venturas mais fugazes e fizessem da vida um purgatório
duro; e não a manchassem nunca com o sacrilégio de um sorriso.
O juízo final aproximava-se, inflexível.

Prenunciavam-no anos sucessivos de desgraças:

“. . .Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão;
então o certão virará praia e a praia virará certão.

” Em 1897 haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor
e um só rebanho.

” Em 1898 haverá muitos chapéus e poucas cabeças.

” Em 1899 ficarão as águas em sangue e o planeta hade
apparecer no nascente com o raio do sol que o ramo se confrontará na
terra e a terra em algum lugar se confrontará no céu…

” Hade chover uma grande chuva de estrellas e ahi será o fim
do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. Deus disse no Evangelho: eu
tenho um rebanho que anda fóra deste aprisco e é preciso que
se reunam porque há um só pastor e um só rebanho !”

Como os antigos, o predestinado atingia a terra pela vontade divina. Fora
o próprio Cristo que pressagiara a sua vinda quando

“na hora nona, descançando no monte das Oliveiras um dos seus
apóstolos perguntou: Senhor! para o fim desta edade que signaes vós
deixaes ?

“Elle respondeu: muitos signaes na Lua, no Sol e nas Estrellas. Hade
apparecer um Anjo mandado por meu pae terno, prégando sermões
pelas portas, fazendo povoações nos desertos, fazendo egrejas
e capellinhas e dando seus conselhos…”

E no meio desse extravagar adoidado, rompendo dentre o messianismo religioso,
o messianismo da raça levando-o à insurreição
contra a forma republicana:

“Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações,
o Brazil com o Brazil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prussia com a Prussia,
das ondas do mar D. Sebastião sahirá com todo o seu exercito.

“Desde o princípio do mundo que encantou com todo seu exercito
e o restituio em guerra.

“E quando encantou-se afincou a espada na pedra, ella foi até
os copos e elle disse: Adeus mundo!

“Até mil e tantos a dois mil não chegarás !

“Neste dia quando sahir com o seu exercito tira a todos no fio da espada
deste papel da Republica. O fim desta guerra se acabará na Santa Casa
de Roma e o sangue hade ir até á junta grossa . . . ”

Um heresiarca do século 2 em plena idade moderna

O profetismo tinha, como se vê, na sua boca, o mesmo tom com que despontou
na Frígia, avançando para 0 Ocidente. Anunciava, idêntico,
o juízo de Deus, a desgraça dos poderosos, o esmagamento do
mundo profano, o reino de mil anos e suas delícias.

Não haverá, com efeito, nisto, um traço superior do
judaísmo ?

Não há encobri-lo. Ademais este voltar-se à idade de
ouro dos apóstolos e sibilistas, revivendo vetustas ilusões,
não é uma novidade. É o permanente refluxo do cristianismo
para o seu berço judaico. Montano reproduz-se em toda a história,
mais ou menos alterado consoante o caráter dos povos, mas delatando,
na mesma rebeldia contra a jerarquia eclesiástica, na mesma exploração
do sobrenatural, e no mesmo ansiar pelos céus, a feição
primitivamente sonhadora da velha religião, antes que a deformassem
os sofistas canonizados dos concílios.

A exemplo de seus comparsas do passado, Antônio Conselheiro era um
pietista ansiando pelo reino de Deus, prometido, delongado sempre e, ao cabo,
de todo esquecido pela Igreja ortodoxa do século 2.

Abeirara-se apenas do catolicismo mal compreendido.

Tentativas de reação legal

Coerente com a missão a que se devotara, ordenava, depois destas homílias,
penitências que, de ordinário redundavam em benefício
das localidades. Reconstruíam-se templos abatidos; renovavam-se cemitérios
em abandono; erigiam-se construções novas e elegantes. Os pedreiros
e carpinteiros trabalhavam de graça; os abastados forneciam, grátis,
os materiais indispensáveis; o povo carregava pedras. Durante dias
seguidos, na azáfama piedosa, se agitavam os operários cujos
salários se averbavam nos céus.

E terminada a empresa o predestinado abalava… para onde ? Ao acaso, tomando
a primeira vereda, pelos sertões em fora, pelas chapadas multívias,
sem olhar sequer para os que o encalçavam.

Não o contrariava o antagonismo de um adversário perigoso,
o padre. A dar-se crédito a testemunho valioso , aquele, em geral,
estimulava-lhe ou permitia-lhe as práticas pelas quais, sem nada usufruir,
promovia todos os atos de onde saem os rendimentos do clero: batizados, desobrigas,
festas e novenas.

Os vigários toleravam com boa sombra os despropósitos do Santo
endemoninhado que ao menos lhe acrescia a côngrua reduzida. Percebeu-o
em 1882, o arcebispo da Bahia, procurando por paradeiro a esta transigência,
senão mal disfarçada proteção, por uma circular
dirigida a todos os párocos.

“Chegando ao nosso conhecimento que, pelas freguesias do centro deste
arcebispado, anda um indivíduo denominado Antônio Conselheiro,
pregando ao povo, que se reúne para ouvi-lo, doutrinas supersticiosas
e uma moral excessivamente rígida com que está perturbando as
consciências e enfraquecendo, não pouco, a autoridade dos párocos
destes lugares, ordenamos a V. Rev.ma, que não consinta em sua freguesia
semelhante abuso, fazendo saber aos paroquianos que Ihes proibimos, absolutamente,
de se reunirem para ouvir tal pregação, visto como, competindo
na Igreja católica, somente aos ministros da religião, a missão
santa de doutrinar os novos, um secular, quem quer que ele seja, ainda quando
muito instruído e virtuoso. não tem autoridade para exercê-lo.

“Entretanto sirva isto para excitar cada vez

mais o zelo que V. Rev.ma, no exercício do ministério da pregação,
a fim de que os seus paroquianos, suficientemente instruídos, não
se deixem levar por todo o vento de doutrina etc.”

Foi inútil a intervenção da Igreja.

Antônio Conselheiro continuou sem embaraços a sua marcha de
desnorteado apóstolo, pervagando nos sertões. E, como se desejasse
reviver sempre a lembrança da primeira perseguição sofrida,
volve constantemente ao Itapicuru, cuja autoridade policial, por fim, apelou
para os poderes constituídos, em oficio onde, depois de historiar ligeiramente
os antecedentes do agitador, disse:

“. . . Fez neste termo seu acampamento e presentemente está no
referido arraial construindo uma capela a expensas do povo.

“Conquanto esta obra seja de algum melhoramento, aliás dispensável,
para o lugar, todavia os excessos e sacrifícios não compensam
este bem, e, pelo modo por que estão os ânimos, é mais
justo e fundado o receio de grandes desgraças.

“Para que V. S. saiba quem é Antônio Conselheiro, basta
dizer que é acompanhado por centenas e centenas de pessoas, que ouvem-no
e cumprem suas ordens de preferência às do vigário da
paróquia.

“O fanatismo não tem limites e assim é que, sem medo de
erro, e firmado em fatos, posso afirmar que adoram-no, como se fosse um Deus
vivo.

“Nos dias de sermões, terços e ladainhas, o ajuntamento
sobe a mil pessoas. Na construção desta capela, cuja féria
semanal é de quase cem mil-réis, décuplo do que devia
ser pago, estão empregados cearenses, aos quais Antônio Conselheiro
presta a mais cega proteção, tolerando e dissimulando os atentados
que cometem, e esse dinheiro sai dos crédulos e ignorantes, que, além
de não trabalharem, vendem o pouco que possuem e até furtam
para que não haja a menor falta, sem falar nas quantias arrecadadas
que tem sido remetidas para outras obras do Chorrochó, termo do Capim
Grosso.”

E depois de apontar a última tropelia dos fanáticos:

“Havendo desinteligência entre o grupo de Antônio Conselheiro
e o vigário de Inhambupe, está aquele municiado como se tivesse
de ferir uma batalha campal, e consta que estão à espera que
o vigário vá ao lugar denominado Junco para assassiná-lo.
Faz medo aos transeuntes passar por alto, vendo aqueles malvados munidos de
cacetes, facas, facões, clavinotes; e ai daquele que for suspeito de
ser infenso a Antônio Conselheiro.”

Ao que se figura, este apelo, feito em termos tão alarmantes, não
foi correspondido. Nenhuma providencia se tomou até meados de 1887,
quando a diocese da Bahia interveio de novo, oficiando o arcebispo ao presidente
da província, pedindo providências que contivessem o “indivíduo
Antônio Vicente Mendes Maciel que, pregando doutrinas subversivas, fazia
um grande mal à religião e ao Estado, distraindo o povo de suas
obrigações e arrastando-o após si, procurando convencer
de que era Espírito-Santo etc.”

Ante o reclamo, o presidente daquela província dirigiu-se ao ministro
do Império, pedindo um lugar para o tresloucado no hospício
de alienados do Rio. O ministro respondeu ao presidente contrapondo o notável
argumento de não haver, naquele estabelecimento, lugar algum vago;
e o presidente oficiou de novo ao prelado, tornando-o ciente da resolução
admirável do governo.

Assim se abriu e se fechou o ciclo das providências legais que se fizeram
durante o Império.

Mais lendas

O Conselheiro continuou sem tropeços na missão pervertedora,
avultando na imaginação popular.

Apareciam as primeiras lendas.

Não as arquivaremos todas.

Fundou o arraial do Bom Jesus; e contam as gentes assombradas que em certa
ocasião, quando se construía a belíssima igreja que lá
está, esforçando-se debalde dez operários por erguerem
pesado baldrame, o predestinado trepou sobre o madeiro e ordenou, em seguida,
que dois homens apenas o levantem; e o que não haviam conseguido tantos,
realizaram os dois rapidamente, sem esforço algum…

Outra vez — ouvi o estranho caso a pessoas que se não haviam deixado
fanatizar! — chegou a Monte Santo e determinou que se fizesse uma procissão
pela montanha acima, até a última capela, no alto. Iniciou-se
à tarde a cerimônia. A multidão derivou, lenta, pela encosta
clivosa, entoando benditos, estacionando nos “passos”, contrita.
Ele seguia na frente — grave e sinistro — descoberto, agitada pela ventania
forte a cabeleira longa, arrimando-se ao bordão inseparável.
Desceu a noite. Acenderam-se as tochas dos penitentes, e a procissão,
estendida na linha de cumeadas, traçou uma estrada luminosa no dorso
da montanha…

Ao chegar à Santa Cruz, no alto, Antônio Conselheiro, ofegante,
senta-se no primeiro degrau da tosca escada de pedra, e queda-se estático,
contemplando os céus, o olhar imerso nas estrelas…

A primeira onda de fiéis enche logo o âmbito restrito da capela,
enquanto outros permanecem fora ajoelhados sobre a rocha aspérrima.

O contemplativo, então, levanta-se. Mal sofreia o cansaço.
Entre alas respeitosas, penetra, por sua vez, na capela, pendida para o chão
a cabeça, humílimo e abatido, arfando.

Ao abeirar-se do alta-mor, porém, ergue o rosto pálido, emoldurado
pelos cabelos em desalinho. E a multidão estremece toda, assombrada…
Duas lágrimas sangrentas rolam, vagarosamente, no rosto imaculado da
Virgem Santíssima…

Estas e outras lendas são ainda correntes no sertão. natural.
Espécie de grande homem pelo avesso, Antônio Conselheiro reunia
no misticismo doentio todos os erros e superstições que formam
o coeficiente de redução da nossa nacionalidade. Arrastava o
povo sertanejo não porque o dominasse, mas porque o dominavam as aberrações
daquele. Favorecia-o o meio e ele realizava, às vezes, como vimos,
o absurdo de ser útil. Obedecia à finalidade irresistível
de velhos impulsos ancestrais; e jugulado por ela espelhava em todos os atos
a placabilidade de um evangelhista incomparável.

De feito, amortecia-lhe a nevrose inexplicável placidez.

Certo dia o vigário de uma freguesia sertaneja vê chegar à
sua porta um homem extremamente magro e sucumbido: longos cabelos despenteados
pelos ombros, longas barbas descendo pelo peito; uma velha figura de peregrino
a que não faltavam o crucifixo tradicional, suspenso a um lado entre
as camândulas da cintura, e o manto poento e gasto, e a borracha d’água,
e o bordão comprido…

Dá-lhe o pároco com que se alimente, aceita um pedaço
de pão apenas; oferece-lhe um leito, prefere uma tábua sobre
que se deita sem cobertas, vestido, sem mesmo desatacar as sandálias.

No outro dia o singularíssimo hóspede, que poucas palavras
até então pronunciara, pede ao padre lhe conceda pregar por
ocasião da festa que ia realizar-se na igreja.

— Irmão não tendes ordens; a Igreja não permite que
pregueis.

— Deixai-me, então, fazer a via-sacra.

— Também não posso, vou eu fazê-la, contraveio mais
uma vez o sacerdote.

O peregrino, então, encarou-o fito por algum tempo, e sem dizer palavra
tirou de sob a túnica um lenço. Sacudiu o pó das alpercatas.
E partiu.

Era o clássico protesto inofensivo e tranqüilo dos apóstolos
. . .

Hégira para o sertão

A reação, porém, crescendo, malignou-lhe o animo. Dominador
incondicional, principiou de se irritar ante a menor contrariedade.

Certa vez, em Natuba, estando ausente o vigário, com quem não
estava em boas graças, apareceu e mandou carregar pedras para consertos
da igreja. Chega o padre; vê a invasão dos domínios sagrados;
irrita-se e resolve pôr embargos à desordem. Era homem prático;
apelou para o egoísmo humano.

Tendo a Câmara, dias antes, imposto aos proprietários o calçamento
dos passeios das casas, cedeu ao povo, para tal fim, as pedras já acumuladas.

O Conselheiro não se limitou, desta vez, a sacudir as sandálias.
Saiu-lhe da boca a primeira maldição, às portas da cidade
ingrata; e partiu.

Tempos depois, a pedido do mesmo vigário, certa influência política
do local o chamou. O templo desabava em ruínas; o mato invadira todo
o cemitério; e a freguesia era pobre. Só podia renová-los
quem tão bem dispunha dos matutos crédulos. O apóstolo
deferiu ao convite. Mas fê-lo através de imposições
discricionárias, relembrando, com altanaria destoante da pacatez antiga,
a afronta recebida.

Iam-no tornando mau.

Viu a República com maus olhos e pregou, coerente, a rebeldia contra
as novas leis. Assumiu desde 1893 uma feição combatente inteiramente
nova.

Originou-a fato de pouca monta.

Decretada a autonomia dos municípios, as Câmaras das localidades
do interior da Bahia tinham afixado nas tábuas tradicionais, que substituem
a imprensa, editais para a cobrança de impostos etc.

Ao surgir esta novidade Antônio Conselheiro estava em Bom Conselho.
Irritou-o a imposição; e planeou revide imediato. Reuniu o povo
num dia de feira e, entre gritos sediciosos e estrepitar de foguetes, mandou
queimar as tábuas numa fogueira, no largo. Levantou a voz sobre o “auto-de-fé”,
que a fraqueza das autoridades não impedira, e pregou abertamente a
insurreição contra as leis.

Avaliou, depois, a gravidade do atentado.

Deixou a vila, tomando pela estrada de Monte Santo, para o norte.

O acontecimento repercutira na capital, de onde partiu numerosa força
de polícia para prender o rebelde e dissolver os grupos turbulentos.
Estes naquela época não excediam a duzentos homens. A tropa
alcançou-os em Maceté, lugar desabrigado e estéril entre
Tucano e Cumbe, nas cercanias dás serras do Ovó. As trinta praças,
bem armadas, atacaram impetuosamente a turba de penitentes depauperados, certas
de os destroçarem à primeira descarga. Deram, porém,
de frente, com os jagunços destemerosos. Foram inteiramente desbaratadas,
precipitando-se na fuga, de que fora o primeiro a dar o exemplo o próprio
comandante.

Esta batalha minúscula teria, infelizmente, mais tarde muitas cópias
ampliadas.

Realizada a façanha, os crentes acompanharam, reatando a marcha, a
hégira do profeta. Não procuravam mais os povoados, como dantes.
Demandavam o deserto.

O desbarato da tropa prenunciava-lhes perseguições mais vigorosas;
e, certos do amparo da natureza selvagem, contavam com a vitória enterreirando
entre as caatingas os novos contendores. Estes partiram, de fato, sem perda
de tempo, da Bahia, em número de oitenta praças, de linha. Mas
não prosseguiram além de Serrinha, de onde tornaram sem se aventurarem
com o sertão. Antônio Conselheiro, porém, não se
iludiu com o inexplicável recuo, que o salvara. Arrastou a matula de
fiéis, a que se aliavam, dia a dia, dezenas de prosélitos, pelas
trilhas sertanejas fora, seguindo prefixado rumo.

Conhecia o sertão. Percorrera-o todo numa romaria ininterrupta de
vinte anos. Sabia de paragens ignotas de onde o não arrancariam. Marcara-as
já, talvez prevenindo futuras vicissitudes.

Endireitou, rumo firme, em cheio para o norte.

Os crentes acompanharam-no. Não inquiriram para onde seguiam. E atravessaram
serranias íngremes, tabuleiros estéreis e chapadas rasas, longos
dias, vagarosamente, na marcha cadenciada pelo toar das ladainhas e pelo passo
tardo do profeta. . .

Capítulo V

Canudos — antecedentes — aspecto original — e crescimento vertiginoso.
Regimen da urbs. Polícia de bandidos. População multiforme.
O templo. Estrada para o céu. As rezas. Agrupamentos bizarros. Por
que não pregar contra a República ? Uma missão abortada.
Maldição sobre a Jerusalém de taipa.

Canudos , velha fazenda de gado à beira do Vaza-Barris, era, em 1890,
uma tapera de cerca de cinqüenta capuabas de pau-a-pique.

Já em 1876, segundo o testemunho de um sacerdote, que ali fora, como
tantos outros, e nomeadamente o vigário de Cumbe, em visita espiritual
às gentes de todo despeadas da terra, lá se aglomerava, agregada
à fazenda então ainda florescente, população suspeita
e ociosa, “armada até aos dentes” e “cuja ocupação,
quase exclusiva, consistia em beber aguardente e pitar uns esquisitos cachimbos
de barro em canudos de metro de extensão” , de tubos naturalmente
fornecidos pelas solanáceas (canudos-de-pito), vicejantes em grande
cópia à beira do rio.

Assim, antes da vinda do Conselheiro, já o lugarejo obscuro — e o
seu nome claramente se explica — tinha, como a maioria dos que jazem desconhecidos
pelos nossos sertões, muitos germens da desordem e do crime. Estava,
porém, em plena decadência quando lá chegou aquele em
1893: tajupares em abandono; vazios os pousos; e, no alto de um esporão
da Favela, destelhada, reduzida às paredes exteriores, a antiga vivenda
senhoril, em ruínas…

Data daquele ano a sua revivescência e crescimento rápido. O
aldeamento efêmero dos matutos vadios, centralizado pela igreja velha,
que já existia, ia transmudar-se, ampliando-se, em pouco tempo, na
Tróia de taipa dos jagunços.

Era o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação
do governo maldito.

A sua topografia interessante modelava-o ante a imaginação
daquelas gentes simples como o primeiro degrau, amplíssimo e alto,
para os céus…

Crescimento vertiginoso

Não surpreende que para lá convergissem, partindo de todos
os pontos, turmas sucessivas de povoadores convergentes das vilas e povoados
mais remotos.

Diz uma testemunha : “Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas,
e até do Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal a aluvião
de famílias que subiam para os Canudos, lugar escolhido por Antônio
Conselheiro para o centro de suas operações. Causava dó
verem-se expostos à venda, nas feiras, extraordinária quantidade
de gado cavalar, vacum, caprino etc., além de outros objetos, por preços
de nonada, como terrenos, casas etc. O anelo extremo era vender, apurar algum
dinheiro e ir reparti-lo com o Santo Conselheiro.”

Assim se mudavam os lares.

Inhambupe, Tucano, Cumbe, Itapicuru, Bom Conselho, Natuba, Maçacará,
Monte Santo, Jeremoabo, Uauá, e demais lugares próximos; Entre
Rios, Mundo Novo, Jacobina, Itabaiana e outros sítios remotos, forneciam
constantes contingentes. Os raros viajantes que se arriscavam a viagens naquele
sertão topavam grupos sucessivos de fiéis que seguiam, ajoujados
de fardos, carregando as mobílias toscas, as canastras e os oratórios,
para o lugar eleito. Isoladas a princípio, essas turmas adunavam-se
pelos caminhos, aliando-se a outras, chegando, afinal, conjuntas, a Canudos.

O arraial crescia vertiginosamente, coalhando as colinas.

A edificação rudimentar permitia à multidão sem
lares fazer até doze casas por dia; e, à medida que se formava,
a tapera colossal parecia estereografar a feição moral da sociedade
ali acoitada. Era a objetivação daquela insânia imensa.

Documento iniludível permitindo o corpo de delito direto sobre os
desmandos de um povo.

Aquilo se fazia a esmo, adoidadamente.

Aspecto original

A urbs monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro. O povoado
novo surgia, dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia
velho. Visto de longe, desdobrado pelos cômoros, atulhando as canhadas,
cobrindo área enorme, truncado nas quebradas, revolto nos pendores
— tinha o aspecto perfeito de uma cidade cujo solo houvesse sido sacudido
e brutalmente dobrado por um terremoto.

Não se distinguiam as ruas. Substituía-as dédalo desesperador
de becos estreitíssimos, mal separando o baralhamento caótico
dos casebres feitos ao acaso, testadas volvidas para todos os pontos, cumeeiras
orientando-se para todos os rumos, como se tudo aquilo fosse construído,
febrilmente, numa noite, por uma multidão de loucos…

Feitas de pau-a-pique e divididas em três compartimentos minúsculos,
as casas eram paródia grosseira da antiga morada romana: um vestíbulo
exíguo, um atrium servindo ao mesmo tempo de cozinha, sala de jantar
e de recepção; e uma alcova lateral, furna escuríssima
mal revelada por uma porta estreita e baixa. Cobertas de camadas espessas
de vinte centímetros, de barro, sobre ramos de icó, lembravam
as choupanas dos gauleses de César. Traíam a fase transitória
entre a caverna primitiva e a casa. Se as edificações em suas
modalidades evolutivas objetivam a personalidade humana, o casebre de teto
de argila dos jagunços equiparado ao wigwan dos peles-vermelhas sugeria
paralelo deplorável. O mesmo desconforto e, sobretudo, a mesma pobreza
repugnante, traduzindo de certo modo, mais do que a miséria do homem,
a decrepitude da raça.

Quando o olhar se acomodava à penumbra daqueles cômodos exíguos,
lobrigava, invariavelmente, trastes raros e grosseiros: um banco tosco; dois
ou três banquinhos com a forma de escabelos; igual número de
caixas de cedro, ou canastras; um jirau pendido do teto; e as redes. Eram
toda a mobília. Nem camas, nem mesas. Pendurados aos cantos, viam-se
insignificantes acessórios: o bogó ou borracha, espécie
de balde de couro para o transporte de água; pares de caçuás
( jacás de cipó ) e os aiós, bolsa de caça, feita
das fibras de caroá. Ao fundo do único quarto, um oratório
tosco. Neste, copiando a mesma feição achamboada do conjunto,
santos mal acabados, imagens de linhas duras, a objetivarem a religião
mestiça em traços incisivos de manipansos: Santos Antônios
proteiformes e africanizados, de aspecto bronco, de fetiches; Marias Santíssimas,
feias como megeras…

Por fim as armas — a mesma revivescência de estádios remotos:
o facão jacaré, de folha larga e forte; a parnaíba dos
cangaceiros, longa como uma espada; o ferrão ou guiada. de três
metros de comprido, sem a elegância das lanças, reproduzindo
os piques antigos; os cacetes ocos e cheios pela metade de chumbo, pesados
como montantes; as bestas e as espingardas.

Entre estas últimas, gradações completas, desde a de
cano fino, carregada com escumilha, até à “legítima
de Braga”, cevada com chumbo grosso, ao trabuco brutal ao modo de uma
colubrina portátil, capaz de arremessar calhaus e pontas de chifre,
à lazarina ligeira, ou ao bacamarte de boca-de-sino.

Nada mais. De nada mais necessitava aquela gente. Canudos surgia com a feição
média entre a de um acampamento de guerreiros e a de um vasto kraal
africano. A ausência de ruas, as praças que, à parte a
das igrejas, nada mais eram que o fundo comum dos quintais, e os casebres
unidos, tornavam-no como vivenda única, amplíssima, estendida
pelas colinas, e destinada a abrigar por pouco tempo o clã tumultuário
de Antônio Conselheiro.

Sem a alvura reveladora das paredes caiadas e telhados encaliçados,
a certa distancia era visível. Confundia-se com o próprio chão.
Aparecia, de perto, de chofre, constrito numa volta do Vaza-Barrís,
que o limitava do levante ao sul abarcando-o.

Emoldurava-o uma natureza morta: paisagens tristes; colinas nuas, uniformes,
prolongando-se, ondeantes, até às serranias distantes, sem uma
nesga de mato; rasgadas de lascas de talcoxisto, mal revestidas, em raros
pontos, de acervos de bromélias, encimadas, noutros, pelos cactos esguios
e solitários. O monte da Favela, ao sul, empolava-se mais alto, tendo
no sopé, fronteiro à praça, alguns pés de quixabeiras,
agrupados em horto selvagem. À meia encosta via-se solitária,
em ruínas, a antiga casa da fazenda…

A uma banda, perto e dominante, um contraforte, o morro dos Pelados, termina
de chofre em barranca a prumo sobre o rio e este, dali por diante progredindo
numa inflexão forte para montante, abarca o povoado em leito escavado
e fundo, como um fosso. Ali vão ter quebradas de bordas a pique, abertas
pelas erosões intensas por onde, no inverno, rolam acachoando afluentes
efêmeros tendo os nomes falsos de rios: o Mucuim, o Umburanas, e outro,
que sucessos ulteriores denominariam da Providência.

Canudos, assim circunvalado quase todo pelo Vaza-Barris, embatia ao sul contra
as vertentes da Favela e dominado no ocidente pelas lombas mais altas de flancos
em escarpa em que se comprimia aquele nas enchentes, desatava-se para o levante
segundo o expandir dos plainos ondulados. As montanhas longínquas fechavam-se
em roda, formando, quase contínua, uma elipse de eixos dilatados. Feito
postigos em baluarte desmedido, abriam-se, estreitas, as gargantas em que
passavam os caminhos: o do Uauá, estrangulado entre os pendores fortes
do Caipã; o de Jeremoabo, insinuando-se nos desfiladeiros de Cocorobó;
o do Cambaio, em aclives, investindo com as vertentes do Calumbi; e o do Rosário.

Ora, por estas veredas, prendendo, no se ligarem a outras trilhas, o povoado
nascente ao fundo dos sertões do Piauí, Ceará, Pernambuco
e Sergipe — chegavam sucessivas caravanas de fiéis. Vinham de todos
os pontos, carregando os haveres todos; e, transpostas as últimas voltas
do caminho, quando divisavam o campanário humilde da antiga Capela,
caíam genuflexos sobre o chão aspérrimo. Estava atingido
o termo da romagem. Estavam salvos da pavorosa hecatombe, que vaticinavam
as profecias do evangelizador. Pisavam, afinal, a terra da promissão
— Canaã sagrada, que o Bom Jesus isolara do resto do mundo por uma
cintura de serras…

Chegavam, estropiados da jornada longa, mas felizes. Acampavam à gandaia
pelo alto dos cômoros. A noite acendiam-se as fogueiras nos pousos dos
peregrinos relentados. Uma faixa fulgurante enlaçava o arraial; e,
uníssonas, entrecruzavam-se, ressoando nos pousos e nas casas, as vozes
da multidão penitente, na melopéia plangente dos benditos.

Ao clarear da manhã entregavam-se à azáfama da construção
dos casebres. Estes, a princípio apinhando-se próximos à
depressão em que se erigia a primitiva igreja, e descendo desnivelados
ao viés das encostas breves até ao rio, começaram a salpintar,
esparsos, o terreno rugado, mais longe.

Construções ligeiras, distantes do núcleo compacto da
casaria, pareciam obedecer ao traçado de um plano de defesa. Sucediam-se
escalonadas, ladeando os caminhos. Marginavam o de Jeremoabo, eretas numa
e outra margem do Vaza-Barris, para jusante, até Trabubu e o ribeirão
de Macambira. Pontilhavam o do Rosário, transpondo o rio e contornando
a Favela. Espalhavam-se pelos cerros que se sucediam inúmeros seguindo
o rumo de Uauá. Inscritas em cercas impenteráveis de gravatás,
plantados na borda de um fosso envolvente, cada uma era, do mesmo passo, um
lar e um reduto. Dispunham-se formando linhas irregulares de baluartes.

Porque a cidade selvagem, desde o princípio, tinha em torno, acompanhando-a
no crescimento rápido, um círculo formidável de trincheiras
cavadas em todos os pendores, enfiando todas as veredas, planos de fogo volvidos,
rasantes com o chão, para todos os rumos. Veladas por touceiras inextricáveis
de macambiras ou lascas de pedra, não se revelavam a distancia. Vindo
do levante, o viajor que as abeirasse, ao divisar, esparsas sobre os cerros,
as choupanas exíguas à maneira de guaritas, acreditaria topar
uma rancharia esparsa de vaqueiros inofensivos. Atingia, de repente, a casaria
compacta, surpreso, como se caísse numa tocaia.

Para quem viesse do sul, porém, pelo Rosário ou Calumbi, galgado
o alto da Favela, ou as ladeiras fortes que se derivam para o rio Sargento,
o casario aparecia a um quilômetro, ao norte, esbatido num plano inferior,
francamente exposto, de modo a se poder num lance único de vista aquilatar-lhe
as condições de defesa.

Eram na aparência deploráveis. O arraial parecia disposto para
o choque das cargas fulminantes, rolando impetuosas, com a força viva
de uma queda, pelos aclives abruptos. O inimigo, livre de escaladas penosas,
varejá-lo-ia em tiros mergulhantes. Podia assediá-lo todo, batendo
todas as estradas, com uma bateria única.

Tinha, entretanto, condições táticas preexcelentes.
Compreendera-as algum Vauban inculto…

Fechado ao sul pelo morro, descendo escancelado de gargantas até ao
rio, fechavam-no, a oeste, uma muralha e um valo. De fato, infletindo naquele
rumo, o Vaza-Barris, comprimido entre as últimas casas e as escarpas
a pique dos morros sobranceiros, torcia para norte feito um cañon fundo.
A sua curva forte rodeava, circunvalando-a, a depressão em que se erigia
o povoado, que se trancava a leste pelas colinas, a oeste e norte pelas ladeiras
das terras mais altas, que dali se entumescem até aos contrafortes
extremos do Cambaio e do Caipã; e ao sul pela montanha.

Canudos era uma tapera dentro de uma furna. A praça das igrejas, rente
ao rio, demarcava-lhe a área mais baixa. Dali, segundo um eixo orientado
ao norte, se expandia alteando-se a. pouco e pouco, em plano inclinado breve,
feito um valo largo, em declive. Lá dentro se apertavam os casebres,
atulhando toda a baixada, subindo, mais esparsos, pelas encostas de leste,
transbordando, afinal, nas exíguas vivendas que vimos salpitando, raras,
o alto dos cerros minados de trincheiras. A grei revoltosa — como se vê
— não se ilhava em uma eminência, assoberbando os horizontes,
a cavaleiro dos assaltos. Entocara-se. Naquela região belíssima,
em que as linhas de cumeadas se rebatem no plano alto dos tabuleiros, escolhera
precisamente o trecho que recorda uma vala comum enorme.. .

Regímen da “urbs”

Lá se firmou logo um regímen modelado pela religiosidade do
apóstolo extravagante.

Jugulada pelo seu prestígio, a população tinha, engravecidas,
todas as condições do estádio social inferior. Na falta
da irmandade do sangue, a consangüinidade moral dera-lhe a forma exata
de um clã, em que as leis eram o arbítrio do chefe e a justiça
as suas decisões irrevogáveis. Canudos estereotipava o facies
dúbio dos primeiros agrupamentos bárbaros.

O sertanejo simples transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso
e bruto. Absorvia-o a psicose coletiva. E adotava, ao cabo, o nome até
então consagrado aos turbulentos de feira, aos valentões das
refregas eleitorais e saqueadores de cidades — jagunços.

População multiforme

De sorte que ao fim de algum tempo a população constituída
dos mais dispares elementos, do crente fervoroso abdicando de si todas as
comodidades da vida noutras paragens, ao bandido solto, que lá chegava
de clavinote ao ombro em busca de novo campo de façanhas, se fez a
comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta, crescendo
sem evolver, sem órgãos e sem funções especializadas,
pela só justaposição mecânica de levas sucessivas
à maneira de um polipeiro humano. É natural que absorvesse,
intactas, todas as tendências do homem extraordinário do qual
a aparência protéica — de santo exilado na terra, de fetiche
de carne e osso, e de bonzo claudicante –estava adrede talhada para reviver
os estigmas degenerativos de três raças.

Aceitando, às cegas, tudo quanto lhe ensinara aquele; imersa de todo
no sonho religioso; vivendo sob a preocupação doentia da outra
vida, resumia o mundo na linha de serranias que a cingiam. Não cogitava
de instituições garantidoras de um destino na terra.

Eram-lhe inúteis. Canudos era o cosmos.

E este mesmo transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala
terminal, de onde decampariam sem demora; o último pouso na travessia
de um deserto — a Terra. Os jagunços errantes ali armavam pela derradeira
vez as tendas, na romaria miraculosa para os céus…

Nada queriam desta vida. Por isto a propriedade tornou-se-lhes uma forma
exagerada do coletivismo tribal dos beduínos: a apropriação
pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da
terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos
donos recebiam exígua quota-parte, revertendo o resto para a “companhia”.
Os recém-vindos entregavam ao Conselheiro noventa e nove por cento
do que traziam, incluindo os santos destinados ao santuário comum.
Reputavam-se felizes com a migalha restante. Bastava-lhes de sobra. O profeta
ensinara-lhes a temer o pecado mortal do bem-estar mais breve. Voluntários
da miséria e da dor, eram venturosos na medida das provações
sofridas. Viam-se bem, vendo-se em andrajos. Este desprendimento levado às
últimas conseqüências chegava a despi-los das belas qualidades
morais, longamente apuradas na existência patriarcal dos sertões.
Para Antônio Conselheiro — e neste ponto ele ainda copia velhos modelos
históricos — a virtude era como que o reflexo superior da vaidade.
Uma quase impiedade. A tentativa de enobrecer a existência na terra
implicava de certo modo a indiferença pela felicidade sobrenatural
iminente, o olvido do além maravilhoso anelado.

O seu senso moral deprimido só compreendia a posse deste pelo contraste
das agruras suportadas.

De todas as páginas de catecismo que soletrara ficara-lhe preceito
único:

Bem-aventurados os que sofrem. . .

A extrema dor era a extrema-unção. O sofrimento duro a absolvição
plenária; e teriaga infalível para a peçonha dos maiores
vícios.

Que os homens se desmandassem ou agissem virtuosamente — era questão
de somenos . Consentia de boa feição que errassem, mas que todas
as impurezas e todas as escorralhas de uma vida infame caíssem, afinal,
gota a gota, nas lágrimas vertidas.

Ao saber de caso escandaloso em que a lubricidade de um devasso maculara
incauto donzela teve, certa vez, uma frase ferozmente cínica, que os
sertanejos repetiam depois sem lhe aquilatarem a torpeza:

“Seguiu o destino de todas; passou por baixo da árvore do bem
e do mal !”

Não é para admirar que se esboçasse logo, em Canudos,
a promiscuidade de um hetairismo infrene. Os filhos espúrios não
tinham à fronte o labéu indelével da origem, a situação
infamante dos bancklings entre os germanos. Eram legião.

Porque o dominador, se não estimulava, tolerava o amor livre. Nos
conselhos diários não cogitava da vida conjugal, traçando
normas aos casais ingênuos. E era lógico. Contados os últimos
dias do mundo, fora malbaratá-los agitando preceitos vãos, quando
o cataclismo iminente viria, em breve, apagar para sempre as uniões
mais íntimas, dispersar os lares e confundir no mesmo vórtice
todas as virtudes e todas as abominações. O que urgia era antecipá-lo
pelas provações e pelo martírio. Pregava, então,
os jejuns prolongados, as agonias da fome, a lenta exaustão da vida.
Dava o exemplo fazendo constar, pelos fiéis mais íntimos, que
atravessava os dias alimentando-se com um pires de farinha. Conta-se que em
certo dia foi visitado por um crente abastado das cercanias. Repartiu com
ele a refeição escassa; e este — milagre que abalou o arraial
inteiro ! — saiu, do banquete minúsculo, repleto, empanzinado, como
se volvesse de festim soberbo.

Este regímen severo tinha efeito duplo: tornava, pela própria
debilidade, mais vibrátil a enervação enferma dos crentes
e preparava-os para as aperturas dos assédios, talvez previstos. Era,
talvez, intenção recôndita de Antônio Conselheiro.
Nem de outro modo se compreende que permitisse assistissem no arraial indivíduos
cuja índole se contrapunha à sua placabilidade humilde.

Canudos era o homízio de famigerados facínoras. Ali chegavam,
de permeio com os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros
heróis da faca e da garrucha. E estes foram logo os mais quistos daquele
homem singular, os seus ajudantes de ordens prediletos, garantindo-lhe a autoridade
inviolável. Eram, por um contraste natural, os seus melhores discípulos.
A seita esdrúxula — caso de simbiose moral em que o belo ideal cristão
surgia mostruoso dentre aberrações fetichistas — tinha os seus
naturais representantes nos Batistas truculentos, capazes de carregar os bacamartes
homicidas com as contas dos rosários…

Polícia de bandidos

Graças a seus braços fortes, Antônio Conselheiro dominava
o arraial, corrigindo os que saíam das trilhas demarcadas. Na cadeia
ali paradoxalmente instituída — a “poeira”, no dizer dos
jagunços — viam-se diariamente, presos pelos que haviam cometido a
leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável
de faltar às rezas.

Inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes
atentados, a justiça era, como tudo o mais, antinômica, no clã
policiado por facínoras. Visava uma delinqüência especial,
traduzindo-se na inversão completa do conceito do crime. Exercitava-se,
não raro duramente, cominando penas severíssimas sobre leves
faltas.

O uso da aguardente, por exemplo, era delito sério. Ai! dipsomaníaco
incorrigível que rompesse o interdito imposto!

Conta-se que de uma feita alguns tropeiros inexpertos, vindos do Juazeiro,
foram ter a Canudos, levando alguns barris do líquido inconcesso. Atraía-os
o engodo de lucro inevitável. Levavam a eterna cúmplice das
horas ociosas dos matutos. Ao chegarem, porém, tiveram, depois de descarregarem
na praça a carga valiosa, desagradável surpresa. Viram, ali
mesmo, abertos os barris, a machado, e inutilizado o contrabando sacrílego.
E volveram rápidos, desapontados, tendo às mãos, ao invés
do ganho apetecido, o ardor de muitas dúzias de palmatoadas, amargos
bolos com que os presenteara aquela gente ingrata.

Este caso é expressivo. Sólida experiência ensinara ao
Conselheiro todos os perigos que adviriam deste haxixe nacional. Interdizia-o
menos por debelar um vício que para prevenir desordens. Mas, fora do
povoado, estas podiam espalhar-se à larga. Dali partiam bandos turbulentos
arremetendo com os arredores. Toda a sorte de tropelias eram permitidas, desde
que aumentassem o patrimônio da grei. Em 1894, as algaras, chefiadas
por valentões de nota, tornaram-se alarmantes. Foram em um crescendo
tal, de depredações e desacatos, que despertaram a atenção
dos poderes constituídos, originando mesmo calorosa e inútil
discussão na Assembléia Estadual da Bahia.

Depredações

Em dilatado raio em torno de Canudos, talavam-se fazendas, saqueavam-se lugarejos,
conquistavam-se cidades ! No Bom Conselho, uma horda atrevida, depois de se
apossar da Vila, pô-la em estado de sítio, dispersou as autoridades,
a começar pelo juiz da comarca e, como entreato hilariante na razia
escandalosa, torturou o escrivão dos casamentos que se viu em palpos
de aranhas para impedir que os crentes sarcásticos lhe abrissem, tosquiando-o,
uma coroa larga, que lhe justificasse o invadir as atribuições
sagradas do vigário.

Os desordeiros volviam cheios de despojos para o arraial, onde ninguém
Ihes tomava conta dos desmandos.

Muitas vezes, diz o testemunho unânime da população sertaneja,
tais expedições eram sugeridas por intuito diverso. Alguns fiéis
abastados tinham veleidades políticas. Sobrevinha a quadra eleitoral.
Os grandes conquistadores de urnas que, a exemplo de milhares de comparsas
disseminados neste país, transformam a fantasia do sufrágio
universal na clava de Hércules da nossa dignidade, apelavam para o
Conselheiro.

Canudos fazia-se, então, provisoriamente, o quartel das guardas pretorianas
dos capangas, que de lá partiam, trilhando rumos prefixos, para reforçarem,
a pau e a tiro, a soberania popular, expressa na imbecilidade triunfante de
um régulo qualquer; e para o estraçoamento das atas; e para
as mazorcas periódicas que a lei marca, denominando-as “eleições”,
eufemismo que é entre nós o mais vivo traço das ousadias
da linguagem. A nossa civilização de empréstimo arregimentava,
como sempre o fez, o banditismo sertanejo.

Ora, estas arrancadas eram um ensinamento. Eram úteis. Eram exercícios
práticos indispensáveis ao preparo para recontros mais valentes.
Compreendera-as, talvez, assim, o Conselheiro. Tolerava-as. No arraial, porém
, exigia, digamos em falta de outro termo — porque os léxicos não
o têm para exprimir um tumulto disciplinado — ordem inalterável.
Ali permaneciam, inofensivos porque eram inválidos, os seus melhores
crentes: mulheres, crianças, velhos alquebrados, doentes inúteis.
Viviam parasitariamente da solicitude do chefe, que Ihes era o Santo protetor,
ao qual saudavam entoando versos há vinte e tantos anos correntes nos
sertões:

Do céu veio uma luz

Que Jesus Cristo mandou

Santo Antônio Aparecido

Dos castigos nos livrou!

Quem ouvir e não aprender

Quem souber e não ensinar

No dia do Juízo

A sua alma penara!

Estas velhas quadras, que a tradição guardara, lembravam ao
infeliz os primeiros dias da vida atormentada e avivam-lhe, porventura, os
últimos tragos da vaidade, no confronto vantajoso com o santo milagreiro
por excelência.

O certo é que abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas
e produtos do trabalho comum. Compreendia que aquela massa, na aparência
inútil, era o cerne vigoroso do arraial. Formavam-na os eleitos, felizes
por terem aos ombros os frangalhos imundos, esfiapados sambenitos de uma penitência,
que Ihes fora a própria vida; bem-aventurados porque o passo trôpego,
remorado pelas muletas e pelas anquiloses, Ihes era a celeridade máxima,
no avançar para a felicidade eterna.

O templo

Além disto ali os aguardava, no termo da jornada, a última
penitência: a construção do templo.

A antiga capela não bastava. Era frágil e pequena. Mal sobranceava
os colmos achatados. Retratava por demais, no aspecto modestíssimo,
a pureza principal da religião antiga.

Era necessário que se lhe contrapusesse a arx monstruosa, erigida
como se fosse o molde monumental da seita combatente.

Começou a erigir-se a igreja nova. Desde antemanhã, enquanto
uns se entregavam às culturas ou tangiam os rebanhos de cabras, ou
abalavam para “fazer o saco” nas vilas próximas, e outros,
dispersando-se em piquetes vigilantes, estacionavam nas cercanias, bombeando
quem chegava, o resto do povo moirejava na missão sagrada.

Defrontando o antigo, o novo templo erguia-se no outro extremo da praça.
Era retangular, e vasto, e pesado. As paredes mestras, espessas, recordavam
muralhas de reduto. Durante muito tempo teria esta feição anômala,
antes que as duas torres muito altas, com ousadias de um gótico rude
e imperfeito, o transfigurassem.

É que a catedral admirável dos jagunços tinha essa eloqüência
silenciosa dos edifícios, de que nos fala Bossuet…

Devia ser como foi. Devia surgir, mole, formidável e bruta, da extrema
fraqueza humana, alteada pelos músculos gastos dos velhos, pelos braços
débeis das mulheres e das crianças. Cabia-lhes a forma dúbia
de santuário e de antro, de fortaleza e de templo, irmanando no mesmo
âmbito, onde ressoariam mais tarde as ladainhas e as balas, a suprema
piedade e os supremos rancores…

Delineara-a o próprio Conselheiro. Velho arquiteto de igrejas, requintara
no monumento que lhe cerraria a carreira. Levantava, volvida para o levante,
aquela fachada estupenda, sem módulos, sem proporções,
sem regras; de estilo indecifrável, mascarada de frisos grosseiros
e volutas impossíveis, cabriolando num delírio de curvas incorretas;
rasgada de ogivas horrorosas, esburacada de troneiras; informe e brutal, feito
a testada de um hipogeu desenterrado; como se tentasse objetivar, a pedra
e cal, a própria desordem do espírito delirante.

Era a sua obra-prima. Ali passava os dias, sobre os andaimes altos e bailéus
bamboantes. O povo enxameando embaixo, na azáfama do transporte dos
materiais, estremecia muita vez ao vê-lo passar, lentamente, sobre as
tábuas flexuosas e oscilantes, impassível, sem um tremor no
rosto bronzeado e rígido, feito uma cariátide errante sobre
o edifício monstruoso.

Não faltavam braços para a tarefa. .Não cessavam reforços
e recursos à sociedade acampada no deserto. Metade, por assim dizer,
das gentes de Tucano e de Itapicuru para lá abalou. De Alagoinhas,
Feira de Santana e Santa Luzia, iam toda a sorte de auxílios. De Jeremoabo,
Bom Conselho e Simão Dias, grandes fornecimentos de gados.

Não assombravam aos recém-vindos os quadros que se lhes antolhavam.
Tinham-nos como obrigatória a prova desafiando-lhes a fé inabalável.

Estrada para o céu

Os ingênuos contos sertanejos desde muito Ihes haviam revelado as estradas
facinadoramente traiçoeiras que levam ao inferno. Canudos, imunda ante-sala
do paraíso, pobre peristilo dos céus, devia ser assim mesmo
— repugnante, aterrador, horrendo…

Entretanto, lá tinham ido, muitos, alimentando esperanças singulares.
“Os aliciadores da seita se ocupam em persuadir o povo de que todo aquele
que se quiser salvar precisa vir para Canudos, porque nos outros lugares tudo
está contaminado e perdido pela República. Ali, porém,
nem é preciso trabalhar, é a terra da promissão, onde
corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas.”

Chagavam.

Deparavam o Vaza-Barris seco, ou empanzinado, volvendo apenas águas
barrentas das enchentes, entre os flancos entorroados das colinas…

Tinham esvaecida a miragem feliz; mas não se despeavam no misticismo
lamentável. . .

As rezas

Ao cair da tarde, a voz do sino apelidava os fiéis para a oração.
Cessavam os trabalhos. O povo adensava-se sob a latada coberta de folhagens.
Derramava-se pela praça. Ajoelhava-se.

Difundia-se nos ares o coro da primiera reza.

A noite sobrevinha, prestes, mal prenunciada pelo crepúsculo sertanejo,
fugitivo e breve como o dos desertos.

Fulguravam as fogueiras, que era costume acenderem-se acompanhando o perímetro
do largo. E os seus clarões vacilantes emolduravam a cena meio afogada
nas sombras.

Consoante antiga praxe, ou, melhor, capricho de A. Conselheiro , a multidão
repartia-se, separados os sexos, em dois agrupamentos destacados . E em cada
um deles s um baralhamento enorme de contrastes…

Agrupamentos bizarros

Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas
— êmulas das bruxas das igrejas — revestidas da capona preta lembrando
a holandilha fúnebre da Inquisição: as “solteiras”
, termo que nos sertões tem o pior dos significados, desenvoltas e
despejadas, “soltas” na gandaíce sem freios; as “moças
donzelas” ou “moças damas”, recatadas e tímidas;
e honestas mães de famílias; nivelando-se pelas mesmas rezas
.

Faces murchas de velhas — esgrouviados viragos em cuja boca deve ser um
pecado mortal a prece; rostos austeros de matronas simples; fisionomias ingênuas
de raparigas crédulas, misturavam-se em conjunto estranho.

Todas as idades, todos os tipos, todas as cores…

Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros, de caboclas,
trunfas escandalosas, de africanas madeixas castanhas e louras de brancas
legítimas embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo, sem uma flor.
o toucado

ou a coifa mais pobre. Nos vestuários singelos, de algodão
ou de chita, deselegantes e escorridos, não havia lobrigar-se a garridice
menos pretensiosa: um xale de lã, uma mantilha ou um lenço de
cor, atenuando a monotonia das vestes encardidas quase reduzidas a saias e
camisas estraçoadas, deixando expostos os peitos cobertos de rosários,
de verônicas, de cruzes, de figas, de amuletos, de dentes de animais,
de bentinhos, ou de nôminas encerrando “cartas santas”, únicos
atavios que perdoava a ascese exigente do evangelizador.

Aqui, ali, extremando-se a relanços naqueles acervos de trapos, um
ou outro rosto formosíssimo, em que ressurgiam, impressionadoramente
suplantando impressionadoramente a miséria e o sombreado das outras
faces rebarbativas, as linhas dessa beleza imortal que o tipo judaico conserva
imutável através dos tempos. Madonas emparceiradas a fúrias,
belos olhos profundos, em cujos negrumes afuzila o desvario místico;
frontes adoráveis, mal escampadas sob os cabelos em desalinho, eram
profanação cruel afogando-se naquela matulagem repugnante que
exsudava do mesmo passo o fartum angulhento das carcaças imundas e
o lento salmear dos “benditos” lúgubres como responsórios…

As reveses, as fogueiras quase abafadas. vasquejando sob nuvens de fumo,
crepitam, revivendo ao sopro da viração noturna e chofrando
precípites clarões sobre a turba. Destaca-se, então,
mais compacto, o grupo varonil dos homens, mostrando idênticos contrastes:
vaqueiros rudes e fortes, trocando, como heróis decaídos, a
bela armadura de couro pelo uniforme reles de brim americano; criadores, ricos
os outrora, felizes pelo abandono das boiadas e dos pousos animados; e menos
numerosos, porem mais em destaque, gandaieiros de todos os matizes , recidivos
de todos os delitos.

Na claridade amortecida dos braseiros esbatem-se os seus perfis interessantes
e vários. Já são famosos alguns. Prestigia-os o renome
de arriscadas aventuras, que a imaginação popular romanceia
e amplia. Lugar-tenentes do ditador humilde, tomam armados a frente do ajuntamento.
Mas na há distinguir-se-lhes neste instante, na atitude e no gesto,
o desgarre provocante dos valentões incorrigíveis.

De joelhos, mãos enclavinhadas sobre o peito, o olhar tençoeiro
e mau e esvai-se-lhes contemplativo e vago. . .

José Venâncio, o terror da Volta Grande. deslumbra-se das dezoito
mortes cometidas e do espantalho dos processos à revelia, dobrando,
contrito, o fronte para a terra.

Ladeia-o o afoito Pajeú, rosto de bronze vincado de apófises
duras, mal aprumado o arcabouço atlético. Estático, mãos
postas, volve, como as suçuaranas em noite de luar, olhar absorto para
os céus. Logo após o seu ajudante de ordens inseparável,
Lalau, queda-se igualmente humílimo, joelhos dobrados sobre o trabuco
carregado. Chiquinho e João da Mota, dois irmãos aos quais estava
entregue o comando dos piquetes vigilantes nas entradas de Cocorobó
e Uauá, aparecem unidos, desfiando, crédulos, as contas do mesmo
rosário. Pedrão, cafuz entroncado e bruto, que com trinta homens
escolhidos guardava as vertentes da Canabrava, mal se distingue, afastado,
próximo de um digno êmulo de tropelias. Estêvão,
negro reforçado, disforme, corpo tatuado à bala e à faca,
que lograra vingar centenas de conflitos graças à disvulnerabilidade
rara. Era o guarda do Cambaio.

Joaquim Tranca-pés, outro espécimen de guerrilheiro sanhudo,
que velava no Angico, ombreia com o major Sariema, de estatura mais elegante,
lidador sem posição fixa, destemeroso mas irrequieto, talhado
para as arrancadas subitâneas e atrevidas. Antepõe-se-lhe, no
aspecto, o tragicômico Raimundo Boca-torta, do Itapicuru, espécie
de funâmbulo patibular, face contorcida em esgar ferino, como um traumatismo
hediondo. O ágil Chico Ema, a quem se confiara coluna volante de espias,
surge junto a um cabecilha de primeira linha, Norberto, predestinado à
chefia suprema nos últimos dias de Canudos.

Quinquim de Coiqui, um crente abnegado que alcançaria a primeira vitória
sobre a tropa legal; Antônio Fogueteiro, do Pau Ferro, incansável
aliciador de prosélitos; José Gamo; Fabrício de Cocobocó…

A massa restante dos fiéis volve-lhes, intermitentes, nos intervalos
dos kyries inçados de silabadas incríveis, olhares carinhosos,
refertos de esperanças.

O velho Macambira, pouco afeiçoado à luta, de “coração
mole”, segundo o dizer expressivo dos matutos, mas espírito infernal
no gizar tocaias incríveis; espécie de Imanus decrépito,
mas perigoso ainda, tomba de bruços no chão, tendo ao lado o
filho, Joaquim, criança arrojada e impávida, que figuraria em
belo lance de heroísmo, mais tarde.

Alheio à credulidade geral , um explorador solerte, Vila -Nova, finge
que ora, remascando cifras. E na frente de todos. O comandante da praça,
o “chefe do povo”, o astuto João Abade, abrange no olhar
dominador a turba genuflexa.

No meio destes perfis trágicos uma figura ridícula, Antônio
Beato, mulato espigado, magríssimo, adelgaçado pelos jejuns,
muito da privança do Conselheiro; meio sacristão, meio soldado,
misseiro de bacamarte, espiando, observando, indagando, insinuando-se jeitosamente
pelas casas, esquadrinhando todos os recantos do arraial, e transmitindo a
todo instante ao chefe supremo, que raro abandonava o santuário, as
novidades existentes. Completa-o, como um prolongamento, José Félix,
o Taramela, quinhoneiro da mesma predileção, guarda das igrejas,
chaveiro e mordomo do Conselheiro, tendo sob as ordens as beatas de vestidos
azuis cingidas de cordas de linho, encarregadas da roupa, da refeição
exígua daquele e de acenderem diariamente as fogueiras para as rezas.

E um tipo adorável, Manuel Quadrado, olhando para tudo aquilo com
indiferença nobilitadora. Era o curandeiro; o médico. Na multidão
suspeita a natureza tinha, afinal, um devoto. alheio à desordem, vivendo
num investigar perene pelas drogarias primitivas das matas.

O “beija” das imagens

As rezas, em geral, prolongavam-se. Percorridas todas as escalas das ladainhas,
todas as contas dos rosários, rimados todos os benditos, restava ainda
a cerimônia final do culto, remate obrigado daquelas.

Era o “beija” das imagens.

Instituíra-o o Conselheiro, completando no ritual fetichista a transmutação
do cristianismo incompreendido.

Antônio Beatinho, o altareiro, tomava de um crucifixo, contemplava-o
com o olhar diluído de um faquir em êxtase; aconchegava-o do
peito, prostrando-se profundamente; imprimia-lhe ósculo prolongado;
e entregava-o, com gesto amolentado, ao fiel mais próximo, que lhe
copiava, sem variantes, a mímica reverente. Depois erguia uma virgem
santa, reeditando os mesmos atos; depois o Bom Jesus. E lá vinham,
sucessivamente, todos os santos, e registros, e verônicas, e cruzes,
vagarosamente, entregues à multidão sequiosa, passando, um a
um , por todas as mãos, por todas as bocas e por todos os peitos. Ouviam-se
os beijos chirriantes, inúmeros e, num crescendo, extinguindo-lhes
a assonância surda, o vozear indistinto das prédicas balbuciadas
à meia voz, dos mea-culpas ansiosamente socados nos peitos arfantes
e das primeiras exclamações abafadas, reprimidas ainda, para
que se não perturbasse a solenidade.

O misticismo de cada um, porém, ia-se a pouco e pouco confundindo
na nevrose coletiva. De espaço a espaço a agitação
crescia, como se o tumulto invadisse a assembléia, adstrito às
fórmulas de programa preestabelecido, à medida que passavam
as sagradas relíquias. Por fim as últimas saíam, entregues
pelo Beato, quando as primeiras alcançavam as derradeiras filas dos
crentes. E cumulava-se a ebriez e o estonteamento daquelas almas simples.
Desbordavam as emoções isoladas, confundindo-se repentinamente,
avolumando-se, presas no contágio irreprimível da mesma febre;
e, como se as forças sobrenaturais, que o animismo ingênuo emprestava
às imagens, penetrassem afinal as consciências, desequilibrando-as
em violentos abalos, salteava à multidão um desvairamento irreprimível.
Estrugiam exclamações entre piedosas e coléricas; desatavam-se
movimentos impulsivos, de iluminados; estalavam gritos lancinantes, de desmaios.
Apertando ao peito as imagens babujadas de saliva, mulheres alucinadas tombavam
escabujando nas contorções violentas da histeria, crianças
assustadiças desandavam em choros; e, invadido pela mesma aura de loucura,
o grupo varonil dos lutadores, dentre o estrépito, e os tinidos, e
o estardalhaço das armas entrebatidas, vibrava no mesmo ictus assombroso,
em que explodia, desapoderadamente, o misticismo bárbaro…

Mas de repente o tumulto cessava.

Todos se quedavam ofegantes, olhares presos no extremo da latada junto à
porta do santuário, aberta e enquadrando a figura singular de Antônio
Conselheiro.

Este abeirava-se de uma mesa pequena. E pregava…

Por que não pregar contra a República ?

Pregava contra a República; é certo.

O antagonismo era inevitável. Era um derivativo à exacerbação
mística; uma variante forçada ao delírio religioso.

Mas não traduzia o mais pálido intuito político; o jagunço
é tão inapto para apreender a forma republicana como a monárquico-constitucional.

Ambas lhe são abstrações inacessíveis. É
espontaneamente adversário de ambas. Está na fase evolutiva
em que só é conceptível o império de um chefe
sacerdotal ou guerreiro.

Insistamos sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um refluxo em nossa
história. Tivemos, inopinadamente, ressurreta e em armas em nossa frente,
uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doido. Não
a conhecemos. Não podíamos conhecê-la. Os aventureiros
do século 17, porém, nela topariam relações antigas,
da mesma sorte que os iluminados da Idade Média se sentiriam à
vontade, neste século, entre os demonopatas de Varzenis ou entre os
Stundistas da Rússia. Porque essas psicoses epidêmicas despontam
em todos os tempos e em todos os lugares como anacronismos palmares, contrastes
inevitáveis na evolução desigual dos povos, patentes
sobretudo quando um largo movimento civilizador lhes impele vigorosamente
as camadas superiores.

Os perfectionists exagerados rompem, então, lógicos, dentre
o industrialismo triunfante da América do Norte, e a sombria Sturmisch,
inexplicavelmente inspirada pelo gênio de Klopstock, comparte o berço
da renascença alemã…

Entre nós o fenômeno foi porventura ainda mais explicável.

Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos
da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada,
a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais
modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país,
um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização
de empréstimo; respigando, em faina cega de copistas, tudo o que de
melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações,
tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências
da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso
modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta
terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar,
separam-no-los três séculos . . .

E quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre
eles se formasse um núcleo de maníacos, não vimos o traço
superior do acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito
de uma preocupação partidária. Tivemos um espanto comprometedor
ante aquelas aberrações monstruosas; e, com arrojo digno de
melhores causas, batemo-los a carga de baionetas. reeditando por nossa vez
o passado, numa “entrada” inglória, reabrindo nas paragens
infelizes as trilhas apagadas das bandeiras…

Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria
rebeldia contra a ordem natural, adversário sério, estrênuo
paladino do extinto regímen, capaz de derruir as instituições
nascentes.

E Canudos era a Vendéia…

Entretanto, quando nos últimos dias do arraial foi permitido o ingresso
nos casebres estraçoados, salteou o animo dos triunfadores decepção
dolorosa. A vitória duramente alcançada dera-lhes direito à
devassa dos lares em ruínas. Nada se eximiu à curiosidade insaciável.

Ora, no mais pobre dos saques que registra a História, onde foram
despojos opimos imagens mutiladas e rosários de coco, o que mais acirrava
a cobiça dos vitoriosos eram as cartas, quaisquer escritos e, principalmente
os desgraciosos versos encontrados. Pobres papéis, em que a ortografia
bárbara corria parelhas com os mais ingênuos absurdos e a escrita
irregular e feia parecia fotografar o pensamento torturado, eles resumiam
a psicologia da luta. Valiam tudo porque nada valiam. Registravam as prédicas
de Antônio Conselheiro; e, lendo-as, põe-se de manifesto quanto
eram elas afinal inócuas, refletindo o turvamento intelectual de um
infeliz. Porque o que nelas vibra em todas as linhas é a mesma religiosidade
difusa e incongruente, bem pouca significação política,
permitindo emprestar-se às tendências messiânicas expostas.
O rebelado arremetia com a ordem constituída porque se lhe afigurava
iminente o reino de delícias prometido. Prenunciava-o a República
— pecado mortal de um povo –heresia suprema indicadora do triunfo efêmero
do anti-Cristo. Os rudes poetas, rimando-lhe os desvairos em quadras incolores,
sem a espontaneidade forte dos improvisos sertanejos, deixaram bem vivos documentos
nos versos disparatados, que deletreamos pensando, como Renan, que há,
rude e eloqüente, a segunda Bíblia do gênero humano, nesse
gaguejar do povo.

Copiemos ao acaso alguns:

“Sahiu D. Pedro segundo

“Para o reino de Lisboa

“Acabosse a monarquia

“O Brasil ficou atôa !

A República era a impiedade:

“Garantidos pela lei

“Aquelles malvados estão

“Nós temos a lei de Deus

“Elles tem a lei do cão !

“Bem desgraçados são elles

“Pra fazerem a eleição

“Abatendo a lei de Deus

“Suspendendo a lei do cão !

“Casamento vão fazendo

“Só para o povo iludir

”Vão casar o povo todo

“No casamento civil!

O governo demoníaco, porém, desaparecerá em breve:

“D. Sebastião já chegou

“E traz muito regimento

“Acabando com o civil

“E fazendo o casamento !

“O Anti-Cristo nasceu

“Para o Brasil governar

“Mas ahi está o Conselheiro

“Para delle nos livrar!

” Visita nos vem fazer

“Nosso rei D. Sebastião.

“Coitado daquelle pobre

“Que estiver na lei do cão!

A lei do cão…

Este era o apotegma mais elevado da seita. Resumia-lhe o programa. Dispensa
todos os comentários.

Eram, realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados…

Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta.

Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain; e esse argumento único,
incisivo, supremo e moralizador — a bala.

Mas antes tentou-se empresa mais nobre e mais prática.

Uma missão abortada

Em 1895, em certa manhã de maio, no alto de um contraforte da Favela,
apareceu, ladeada de duas outras, figura estranha àqueles lugares.
Era um missionário capuchinho.

Considerou por instantes o arraial imenso, embaixo. Desceu devagar a encosta.

Daniel vai penetrar na furna dos leões ..

Acompanhemo-lo.

Seguido de frei Caetano de S. Léu e do vigário do Cumbe, frei
João Evangelista de Monte-Marciano passa o rio e abeira-se dos primeiros
casebres. Alcança a praça desbordante de povo “perto de
mil homens armados de bacamartes, garrucha, facão etc.”; e tem
a impressão de haver caído, de súbito, no meio de um
acampamento de beduínos. Não se lhe entibia, porém, o
ânimo blindado pela fortaleza tranqüila dos apóstolos. Passa,
impassível, por diante da capela, em cuja porta se adensam mais compactos
agrupamentos. Envereda logo por um beco tortuoso. Atravessa-o, seguido dos
companheiros de apostolado. Enquanto às portas os moradores surpreendidos
saem a vê-los, “ar irrequieto e o olhar ao mesmo tempo indagador
e sinistro, denunciando consciências perturbadas e intenções
hostis”.

Chega por fim à casa do velho vigário do Cumbe (que não
se abria há mais de ano, porque a tanto remontava a sua ausência,
ressentido por desacato que sofrera) e mal se refaz da jornada extenuadora.
Comoviam-no o espetáculo dos infelizes que acabava de encontrar armados
até os dentes, e o quadro emocionante daquela Tebaida turbulenta.

Antolham-se-lhe novas impressões desagradáveis.

A breve trecho passam-lhe à porta oito defuntos levados sem sinal
algum religioso para o cemitério ao fundo da igreja velha: oito redes
de caroá sob que arcavam carregadores ofegantes passando, rápidos,
ansiosos por alijá-las, como se na cidade sinistra o morto fosse um
desertor do martírio, indigno da atenção mais breve.

Entrementes, correra a nova da chegada, sem que o Conselheiro se abalasse
ao encontro dos emissários da Igreja. Permanecera indiferente, assistindo
aos trabalhos de reconstrução da capela. Procuraram-no, então,
os padres.

Deixam a casa. Tomam de novo pela viela sinuosa. Entram na praça.
Atravessam-na, sem que o menor brado hostil os perturbe, e ao chegarem à
sede dos trabalhos “os magotes de homens cerram fileiras junto à
porta da capela” abrindo-lhes extensa ala.

Do ajuntamento temeroso parte animadora saudação de paz: “Louvado
seja Nosso Senhor Jesus Cristal” à qual era de praxe a resposta:

“Para sempre seja louvado tão bom Senhor!”

Entram no pequeno templo e acham-se diante de Antônio Conselheiro,
que os acolhe com boa sombra; e, com a placabilidade habitual, dirige-lhes
a mesma saudação pacífica.

Retrato do Conselheiro

“Vestia túnica de azulão, tinha a cabeça descoberta
e empunhava um bordão. Os cabelos crescidos sem nenhum trato, a caírem
sobre os ombros; as longas barbas grisalhas mais para brancas; os olhos fundos
raramente levantados para fitar alguém; o rosto comprido de uma palidez
quase cadavérica; o porte grave e ar penitente” impressionaram
grandemente os recém-vindos .

Reanima-os, contudo, recepção quase cordial. De encontro ao
que previam, o Conselheiro parece aprazer-se da visita. Quebra a habitual
reserva e o obstinado mutismo. Informa-os do andamento dos trabalhos; convida-os
a visitá-los; e presta-se de boa feição a servir-lhes
de guia pelos repartimentos do edifício. E lá seguem todos,
vagarosos, guiados pelo velho solitário que orçava nesse tempo
dos sessenta anos, e cujo corpo franzino, arcado sobre o bordão, avançava
em andar remorado, sacudido de instante a instante por súbitos acessos
de tosse…

Não se podiam exigir melhores preliminares à missão.

Aquele agasalho era meia vitória. Mas coube ao missionário
anulá-la, desajeitadamente. Ao atingirem o coro, como se achassem um
tanto afastados do grosso dos fiéis, que os seguiam a distância,
pareceu-lhe que a oportunidade era de moldo para interpelação
decisiva.

Era uma precipitação, sobre inútil, contraproducente.
O insucesso sobreveio, inevitável.

. . . ” aproveitei a ocasião de estarmos quase a sós e
disse-lhe que o fim a que eu ia era todo de paz e que assim muito estranhava
só enxergar ali homens armados e não podia deixar de condenar
que se reunissem em lugar tão pobre tantas famílias entregues
à ociosidade, num abandono e misérias tais que diariamente se
davam de oito a nove óbitos. Por isto, de ordem, e em nome do sr. arcebispo,
ia abrir uma santa missão e aconselhar o povo a dispersar-se e a voltar
aos lares e ao trabalho no interesse de cada um e para o bem geral.”

Esta intransigência, este mal sopitado assomo, partindo a finura diplomática
nas arestas rígidas do dogma, não teria, certo, o beneplácito
de S. Gregório — o Grande — a quem não escandalizaram os ritos
bárbaros dos saxônios; e foi um desafio imprudente.

“Enquanto isto dizia, a capela e o coro enchiam-se de gente e ainda
não acabara eu de falar e já eles a uma voz clamavam:

Nós queremos acompanhar o nosso Conselheiro !”

Era a desordem iminente. Sobresteve-a, porém, a placidez admirável,
a mansuetude — por que não dizer cristã ? — de Antônio
Conselheiro. Que o próprio missionário fale:

“Este os fez calar, e voltando-se para mim disse:

— É para minha guarda que tenho comigo estes homens armados, porque
V. V.Rev.ma há de saber que a polícia atacou-me e quis matar-me
no lugar chamado Maceté, onde houve mortes de um e outro lado. No tempo
da monarquia deixei-me prender, porque reconhecia o governo, hoje não,
porque não reconheço a República.”

Esta explicação, de forma respeitosa e clara, não satisfez
o capuchinho, que tinha a coragem de um crente mas não o tato finíssimo
de um apóstolo. Contraveio, parafraseando a Prima-Petri:

“– Senhor, se é católico, deve considerar que a Igreja
condena as revoltas e, aceitando todas as formas de governo. ensina que os
poderes constituídos regem os povos em nome de Deus.”

Era quase, sem variantes, a própria frase de S. Paulo, em pleno reinado
de Nero…

E continuou:

“É assim em toda parte: a Franca, que é uma das principais
nações da Europa, foi monarquia por muitos séculos, mas
há mais de vinte anos é República; e todo o povo, sem
exceção dos monarquistas de lá, obedece às autoridades
e às leis do governo.”

Fr. Monte-Marciano, nesse remoer nulíssimas considerações
políticas, insciente da significação real da desordem
sertaneja, diz por si mesmo as causas do insucesso. Desdobrou, afinal, inteira,
a estatura anômala de propagandista, faltando apenas ter sob as dobras
do hábito a escopeta do cura de Santa Cruz:

“Nós, mesmo aqui no Brasil, a principiar do bispo até
o último católico, reconhecemos o governo atual; somente vós
não vós quereis sujeitar ?

É mau pensar esse, e uma doutrina errada a vossa!’

A frase final vibrou como uma apóstrofe. De dentro da multidão
partiu pronta, a réplica arrogante:

“V.Rev.ma é que tem uma falsa doutrina e não o nosso Conselheiro!”

Desta vez ainda o tumulto. prestes a explodir, retraiu-se a um gesto lento
do Conselheiro que. voltando-se para o missionário, disse

” — Eu não desarmo a minha gente, mas também não
estorvo a santa missão.”

Esta iniciava-se agora sob maus auspícios. Apesar disto correu em
paz até ao quarto dia, e concorridíssima: cerca de cinco mil
assistentes, entre os quais todos os homens válidos se destacavam :

“… carregando bacamartes, garruchas, espingardas, pistolas c facões,
de cartucheiras à cinta e gorro à cabeça, na atitude
de quem vai à guerra.”

Assistia-a também o Conselheiro, ao lado do altar, atento e impassível
como um fiscal severo, “deixando escapar alguma vez gestos de desaprovação
que os maiores da grei confimavam com incisivos protestos.”

Estes, contudo, ao que parece, não tinham gravidade alguma. Apenas
um ou outro exaltado, violando velho privilégio, se permitia sulcar
de apartes a oratória sagrada.

Assim que, praticando o pregador sobre o jejum, como meio de mortificar a
matéria e refrear as paixões, pela sobriedade, sem entretanto
exigir demoradas angústias, porque “podia-se jejuar muitas vezes
comendo carne ao jantar e tomando, pela manhã, uma chávena de
café”, tolheu-lhe o sermão irreverente e irônica
contradita:

— Ora ! isto não é jejum, é comer a fartar !”

No quarto dia da missão, porém, reincidindo o capuchinho no
descabido tema político pioraram as coisas. Começou intensa
propaganda contra a pregação do padre maçon protestante
e republicano” “emissário do governo e que de inteligência
com este ia abrir caminho à tropa que viria de surpresa prender o Conselheiro
e exterminar todos eles.”

Não se temeu aquele da rebelião emergente. Afrontou-se com
ela acirrando-a temerariamente. Escolheu como assunto da prédica subsequente
o homicídio, e, sem se furtar aos perigos da arrojada tese, falando
em corda na casa do enforcado espraiou se em alusões imprudentes que
temos por escusado registrar.

A reação foi imediata. Chefiava-a João Abade, cujo apito
vibrando e na praça, congregou todos os fiéis. O caso passou
em 20 de maio, sétimo da missão. Reunidos arrancaram dali em
algazarra estrepitante de vivas ao Bom Jesus e ao Divino Espírito Santo,
na direção da casa em que se acolhiam os visitantes, fazendo-lhes
sentir que deles não careciam para a salvação eterna.

Estava extinta a missão. Excetuando “55 casamentos de amancebados,
102 batizados e mais de 400 confissões” , o resultado fora nulo,
ou antes, negativo.

Maldição sobre a Jerusalém de taipa

O missionário “como outrora os apóstolos às portas
das cidades que os repeliam, sacudiu o pó das sandálias”
apelando para o veredictum tremendo da Justiça Divina…

E abalou, furtando-se a seguro pelos becos, acompanhado dos dois sócios
de reveses…

Galga a estrada coleante, entre os declives da Favela.

Atinge o alto da montanha. Pára um momento…

Considera pela última vez o povoado, embaixo…

É invadido de súbita onda de tristeza. Equipara-se ” ao
Divino Mestre diante de ,lerusalém.”

Mas amaldiçoou…

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