Peru Versus Bolívia

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Capítulo VII

Capítulo VIII

Euclides da Cunha

… mais il est permis, même ou plus faible,

d’avoir une bonne intention et de la dire.
Victor Hugo

Capítulo I

A questão de limites entre a Bolívia e o Peru, submetida pelo Tratado de arbitragem de 31 de dezembro de 1902 ao juízo e decisão do governo argentino, envolve a maior superfície territorial que ainda se discutiu entre dous Estados.
A Bolívia, por comprazer ao desejo expresso da nação colitigante, parte da base de quase mil quilômetros, estendida entre
o Madeira e o Javari, da linha divisória do Tratado preliminar de Santo Ildefonso, e reclama todo o território que lhe demora ao sul, limitado a oeste pelo curso do Ucayali até aos formadores do Urubamba e vertentes meridionais do Madre de Dios à esquerda do Inambari, reduzindo a máxima expansão oriental dos domínios peruanos à meridiana do rio Suches, e excluindo-os, inteiramente, dos vales amazônicos que se sucedem do Juruá ao Mamoré. O Peru, baseando-se, fundamentalmente, na mesma linha, exige os mesmos terrenos dilatados, extremando-os no levante com os thalwegs do Madeira e do Mamoré até à foz do Iruani, e ao sul com os do Madidi e Tambopata, por maneira a incluir no pleito largas superfícies de terras brasileiras, ao mesmo passo que agrava o hinterland boliviano, recalcando-o nas altas nascentes e cursos médios do Mamoré e do Beni.

O esboço cartográfico anexo pormenoriza os principais segmentos
do irregularíssimo quadrilátero litigioso – cujas áreas
se deduzem, com segurança, em números redondos:

Região ao sul do Madre de Dios 93 000 km
Região entre o Madre de Dios, Abunã,
Acre Meridional e paralelo 11º
73000 km
Região a oeste da linha Inambari-Javari 130 000 km
Região ao norte do paralelo
11º até a linha de Santo Ildefonso, conforme as últimas
pretensões peruanas
424 000 km
TOTAL 720000 km

Destes algarismos derivam-se paralelos que os tornam ainda mais eloqüentes.
Assim, a zona controvertida ultrapassa as superfícies de nossos Estados
de Minas, Rio de Janeiro e Espírito Santo, que somadas atingirão
no máximo a 690 000 quilômetros quadrados; avassalaria o bloco
continental, que se constituísse juntando um terço da Espanha
e toda a França; abrange mais do triplo do Uruguai; e corresponde a
25 Bélgicas – o que a torna, de acordo com a densidade demográfica
da última, capaz de uma população de 180.000.000 de habitantes,
quádrupla da atual da América do Sul, dupla da atual dos Estados
Unidos da América do Norte.
Não prolonguemos os confrontos.
Repregamo-los, adrede, de numerosas cifras, por eliminar quaisquer exageros,
que os dispensa a realidade surpreendente. O que se vê, e se mede e
se calcula, geometricamente, a planímetro e a régua, é
a base física capaz de por si só conter uma enorme nacionalidade,
e ao atentar-se que precisamente nos seus recessos, ainda não de todo
conhecidos, se efetua nestes dias um incomparável povoamento intensivo,
atraído pela privilegiada flora geradora da matéria-prima entre
todas mais crescentemente exigida pela indústria moderna – põe-se
de manifesto que o debate arbitral, em andamento, não entende apenas
dos interesses imediatos das Repúblicas litigantes, senão também
dos que se ligam, sob várias modalidades, à economia geral,
à política, e até à civilização
de todo o continente.
Daí, o interesse que desperta é a legitimidade da sua discussão,
ao menos durante a litispendência, antes da sentença do juiz
soberano e inapelável. Além disto, a este mesmo árbitro
não lhe bastará a massa formidável de documentos cartográficos
e históricos fornecidos pelos Governos interessados, apequenando-se
na tarefa medíocre e exaustiva de contrastar um sem-número de
linhas embaralhadas, e datas no geral inexpressivas; ou derivando ao pecaminoso
anacronismo de agitar – inteiriços, enrilhados e rígidos – alguns
velhos documentos coloniais, diante das exigências mui outras e das
fórmulas mais liberais do direito atual entre as nações.

Embora, adstritas à praxe corrente nos deslindamentos hispano-americanos,
as duas partes contratantes acordassem no submeter-lhe ao juízo os
territórios que em 1810 compartiam as jurisdições das
Audiências de Charcas (Bolívia) e de Lima (Peru), de modo que
a sentença se haja de calcar, antes de tudo, sobre as antiquíssimas

Cédulas reais, os dizeres emperrados da caótica Recopilación
de Leys de Indias,
ou sobre as últimas Ordenanças de intendentes,
de 1792 e 1803, é evidente que estas caducas, e não raro contraditórias,
resoluções do mais retrógrado imperialismo da história,
retardatárias de séculos, no fixarem as raias meramente judiciárias,
ou administrativas, das parcelas dos Vice-reinados do Peru e Buenos Aires, contravirão,
em muitos pontos, aos limites políticos dos dous Estados constituídos
mais tarde com o mais ruidoso repúdio das antigas instituições
que os vitimavam.
Baste considerar-se que desde 1824, remate da independência de ambos,
eles não jazeram num seqüestro marroquino, ou chinês, próprio
a justificar este transplante integral de tão remotas velharias para
o nosso tempo. Formaram-se; evolveram; expandiram-se; e no discurso deste processo
histórico, que foi o da organização de suas próprias
nacionalidades, vincularam-se, já expressamente, mediante outras decisões
e tratados, já pelo intercâmbio inevitável dos interesses
e das idéias, a existência das nações limítrofes,
determinando deveres e direitos mais legítimos, entre os quais se destacam
os relativos aos próprios territórios, que se intentam deslindar
com as vetustas barreiras vice-reais, num grande salto mortal de cem anos, flagrantemente
violador de toda a continuidade histórica.
Assim, no tocante ao Brasil, ambas as nações litigantes, desde
1851 e 1867, até 1903, pleitearam, à saciedade por vezes, a situação
e grandeza das extremas setentrionais e ocidentais daquelas terras. Em debates,
em convênios, em tratados, explícitos, solenes, balancearam à
luz de outros princípios os interesses recíprocos; e no se firmarem,
quer pelos lados do Peru, quer pelos da Bolívia, novos marcos demarcadores,
o que sempre se patenteou em todos os documentos, das notas ministeriais às
derradeiras instruções aos comissários, foi sobretudo o
abandono daquela mesma divisória de Santo Ildefonso – linha mais valiosa
do atual litígio – que as duas Repúblicas, urna após outra,
reconheceram de todo impropriada a erigir-se em diretriz predominante das novas
raias divisórias.
Destruíram-na, ou alteraram-na. O Peru eliminou-a em 1851; a Bolívia
transmudou-a na oblíqua de 1867. A imaginosa fronteira que jamais obtivera
sanção definitiva das primitivas metrópoles interessadas
– conservando-se na história mercê do próprio abandono em
que permaneceu o trato mais desconhecido da América do Sul – extinguiu-se
com o simples avance dos conhecimentos geográficos, sancionados pelas
mais inequívocas convenções políticas e administrativas.

Entretanto, ressurge, de surpresa, agora. Dizem-no os recentes mapas oficiais
peruanos, sobre os quais cabeceará, longos dias, o árbitro, no
desenredo da questão monótona.

A barreira colonial renasce num majestoso traço imperialista, espichada,
e deslocando-se para o norte, golpeantemente, em pleno seio da Amazônia.
Depois de tantas resoluções debatidas, afirmadas e ratificadas
em numerosos atos oficiais, a República sonhadora do Pacífico
abandona, de improviso, os compromissos oriundos da sua existência autônoma
e, abdicando a própria altitude política, volve, às recuadas,
aos tempos em que ainda não existia, acolhendo-se à placenta
morta da metrópole extinta, e revivendo, entre as singularidades desse
processo retrospectivo, as fantasmagorias do Vice-reinado, cujo acabamento
foi a primeira condição da sua própria vida.
O caso é original nos registros atrapalhados dos deslindes territoriais.

Realiza-se, em ponto grande, o fato vulgar do geômetra bisonho, a tontear
entre os riscos perturbadores de um problema errado, apelando para o recurso
extremo de apagar a lousa.
Mas não se passam com o mesmo desafogo as esponjas sobre os mapas.

Demonstremo-lo.
Contemplemos nos seus vários aspectos, desde o nascedouro abortício
à caduquice lastimável – periclitante e vária, à
mercê dos lápis arbitrários dos copistas de mapas – aquela
risca fantástica e curiosa de uma espécie de geografia espectral.

E deduzam-se, depois, alguns corolários firmes.
Encravado nas terras questionadas, vê-se o território brasileiro
do Acre – 191 000 quilômetros quadrados, que são a única
circunscrição definida e segura na espessa penumbra geográfica
onde em todos os sentidos as fronteiras se diluem.
O nosso interesse é manifesto.
Discutamo-lo.
Vejamos como os lados do amplíssimo quadrilátero litigioso se
patenteiam bambeantes e incertos, ou desvaliosos, ou falsos, gravados de discordâncias
inexplicáveis entre as posições ora sujeitas ao parecer
arbitral e as que até bem pouco tempo lhes marcavam todos os documentos
oficiais das Repúblicas contendoras.
E, sobretudo, notemos como a linha geodesia de 1777, assinalada entre o Madeira
e o Javari – que por largos anos foi o pior embaraço da nossa diplomacia,
e novamente a ameaça, pressuposta uma solução favorável

ao Peru – apareceu desde O Tratado de 1750, em que pela primeira vez
se delineou, com os mais evidentes estigmas de inviabilidade.
Sabe-se como se fez o Tratado de 1750.
Até aquele ano a geografia política sul-americana desenhara-se,
romanticamente, adscrita ao meridiano de Tordesilhas, que entrava pelo Pará
a sair em Santa Catarina, dilatando a soberania espanhola sobre quatro quintos
do Novo Mundo. Ainda em pleno século XVII mapas refletem a ingênua
e portentosa partilha. Todo o continente mal chega a escrever-se num título
vago e magnífico – Peruvia – em sete maiúsculas dominantes,
alinhadas, em curva apreensora, pelo centro das terras, desde Panamá
ao cabo Hom.
A alguns cartógrafos não lhes satisfazia a impressão gráfica
a entrar, tão viva, pelos olhos espantados ante domínios tão
vastos. Aditavam, complacentes: “Peruvia, íd est, novz orbis
pars meridionalis.”

E a imaginativa desapertava-se-lhes no bosquejarem, pinturescamente, em toda
a extensão das cartas, forros dos liames incômodos das fronteiras,
tudo quanto o idealismo ensofregado da época engenhara a povoar as novas
terras – da “Lagoa dourada”, ao norte, ao Regio gigantum, da
Patagônia, ao sul, passando pelos monumentos da teocracia incomparável
dos Incas. De sorte que, por vezes, mal lhes sobrava o espaço para a
caricatura de três ou quatro caboclos desfibrados, no extremo oriental,
onde se lia, em caracteres diminutos, inapercebido, ou relegado a expansão
peninsular do cabo de São Roque, um outro nome, Brasília,
tendo, não raro, um subtítulo arrepiadoramente epigramático:
Psitacorum regio.
Ora, na mesma época em que se romanceavam assuntos tão graves,
em narrativas lardeadas de extravagantes devaneios, a situação
real das paragens debuxadas era mui diversa. A linha imaginaria de Alexandre
VI perdera, de fato, a retitude da sua definição astronômica,
e partira-se, ou torcera-se, deslocando-se para o ocidente.
Não nos desviemos na tentativa impossível de enfeixar em poucas
linhas um movimento histórico, onde incidem os mais complexos motivos
das energias étnicas oriundas do caráter excepcional dos nossos
mamalucos, as causas administrativas resultantes dos sistemas coloniais, de
todo contrapostos, de Portugal e Espanha. O fato é que na plenitude da
expansão povoadora, quando a sombria legislação castelhana
enclausurava os colonos no círculo intransponível dos distritos,
sob a disciplina dos corregedores, vedando-lhes novos descobrimentos, ou entradas,
sob “pena de muerte y perdimento de todos sus bienes,”(1)
os portugueses avançavam mil léguas pelo Amazonas acima, e nas
bandas do sul os nossos extraordinários mestiços sertanejos iam
do Iguaçu as extremas do Mato Grosso, perlongando o valo tortuoso e longo
do rio Paraguai.
Os paulistas desarranjavam toda a geografia política sul-americana.
Desde o alvorar daquele século delatavam-nos a metrópole castelhana
as vozes alarmadas dos missionários e dos Vice-reis, persistentes, clamantes,
sucessivas, em cartas, em ofícios, em expressivos informes, que adensados
num livro seriam a mais fiel apologia da raça nova e triunfante, naquele
irromper tão de golpe e já apercebida de atributos surpreendedores
para a conquista da terra. Porque naquelas missivas angustiosas, incontáveis,
refletindo a preocupação exclusiva de todos os delegados coloniais,
martela, monotonamente, um estribilho único. Este: providências
e medidas urgentíssimas “a contener os portugueses del rio de
S. Pablo
…” E quando cessa é para ceder a variantes piores:
em 1638, por exemplo: o licenciado Presidente da Audiência de Charcas,
depois de descrever a marcha da invasão, sobrestante no território
de Moxos e com energia virtual capaz de a conduzir mais longe, sacudiu, irreverentemente,
a sonolência respeitável do venerando Conselho das Índias
com uma conjectura apavorante:
“…puede suceder que ellos se apoderen de las cordilleras del Itatim,
y sean señores de todo el corazón del Pírú!…”

Seriam infindáveis transcrições deste teor.
Abreviemos.
O Tratado de 1750 surgiu imposto por estas conjunturas prementes, que ele mesmo
denuncia. Foi a glorificação da mais extraordinária marcha
colonizadora que se conhece, desencadeada para o poente e apisoando os mais
rígidos convênios, que se pactuaram entre Tordesilhas e Utrecht.
Sancionou o triunfo de uma raça sobre outra. O que se viu, concretamente,
maciçamente, depois da sua assinatura, sob o carimbo esmagador do fato
consumado, foi que uma crescera, triplicando os primitivos domínios,
e que a outra diminuíra, ou recuara, a abrigar-se, assombrada, no espaldão
dos Andes.
E o seu efeito predominante, O seu significado imperecível, consistiu,
essencialmente, em deslocar, pela primeira vez, das relações civis
para as internacionais, o princípio superior da posse baseado na capacidade
para o domínio eficaz e povoamento efetivo das novas regiões.

Porque no tocante as linhas limítrofes, esboçadas, foi vacilante
e dúbio.
A sua exegese está nas minutas, cartas, propostas, contrapropostas e
proêmios, que se cruzaram entre Aranjuez e Lisboa, na esgrima magistral
do espírito vibrátil de Alexandre de Gusmão e a diplomacia
cautelosa de Carvajal y Lancaster. E deletreando-os, o que sobretudo se destaca
são as incertezas de ambas as metrópoles, na partilha do continente,
subordinando-o às divisas naturais, mal definidas ou confusas, no imperfeito
dos conhecimentos geográficos.
Ora, entre todas elas, pelo correr da extensa orla fronteiriça, desde
Castillos Grandes aos contrafortes de Parima, sobrelevava-se, sobremaneira indecisa,
principalmente a que se devera rumar da margem esquerda do Madeira em direção
à direita do Javari.
Nos demais segmentos da enorme divisa os pareceres acentuavam-se em traços
mais ou menos firmes. Ali dispartiam, duvidosos. Alexandre de Gusmão,
desde o começo das negociações, em 1748, ao instruir o
plenipotenciário Visconde de Vila Nova de Cerveira, definiu aquele trecho
como “o mais difícil de toda a demarcação de limites”;
e confessou que todo o material existente a elucidá-lo consistia numa
pequena carta das missões de Moxos, “que traz o tomo duodécimo
des lettres édifiantes”, e cm dous roteiros de sertanistas
nossos, que até lá se tinha avantajado; concluindo que era forçoso
se contentassem com tão escassos elementos, porque se houvessem de aguardar
“os que se mandassem formar no mesmo país, ficaria a conclusão
do tratado para as calendas gregas”.
Por seu turno o Plenipotenciário espanhol, em longo ofício àquele
titular, depois de formular o seu parecer quanto ao melhor rumo da linha na
paragem perturbadora, acrescentou, nuamente, que o alvitre era o mais claro
que se lhe afigurava, “conveniendo en que de la misión de Santa
Rosa (Guaporé) abajo, hasta ei Marañon, todos vamos a ciegas…”
E, feito um eco, o negociador português, tempos depois, ao versar
o mesmo lance, assentia:
“quanto ao espaço intermédio e deserto (entre o Madeira e
o Javari) confessamos de ambas as partes que estamos todos às cegas.”(2)

Os ministros, como se vê, titubeavam em pleno desconhecido; até
que, por evitar dilatórios pareceres, e sem repararem em algumas léguas
de terras desertas, onde sobravam tantas às duas coroas, consoante confessaram
imprudentemente – riscaram, a ventura, para o ocidente, a começar da
média distância entre as confluências do Madeira e do Mamoré,
a controvertida raia, predestinada a tão funesta influência no
futuro, para sempre ambígua, ou absurda, e malsinada pelos seus próprios
inventores, que de algum modo acenaram à tolerância das nações
vindouras, antecipando um recurso absolutório naquela recíproca
confissão de a haverem planeado e discutido inteiramente às cegas.

É uma gênese expressiva. Pelo menos clamorosamente contraposta
à durabilidade que se pretende emprestar a uma concepção
tão frágil, e à tentativa dos que hoje procuram revivê-la
com os mesmos traços que a malignaram ao nascer.
Porque o Tratado preliminar, ulterior, de Santo Ildefonso, não a alterou.
Reproduziu-a, copiando-a, no mais completo decalque.
A linha de 1777, que agora se restaura, é a mesma que se riscou, às
apalpadelas, em 1750. Persistia a ignorância total daquela imensa zona;
e os novos plenipotenciários, depois de acentuarem, ou ampliarem, esclarecendo-os,
vários tratos da fronteira, que permaneceu quase inalterável,
ao chegarem à mesma faixa de terrenos ignotos, lançaram-se, com
o mesmo salto no escuro, da semidistância prefixa para o poente desconhecido
e impérvio, percorrendo, a ciegas, trezentas léguas estiradas,
de ermo.
Tão conclusivos, porém, e de intuitiva previsão, se lhes
antolhavam os inconvenientes infirmativos da demarcação, tateante
em tão espessa sombra geográfica, que, malgrado tratar-se de acordo
preliminar, disposto “a servir de base e fundamento ao definitivo de limites,
que se haveria de estender a seu tempo”,(3) os negociadores, não
lhes bastando restrição tão explícita, encurtando
por si mesmo o alcance de um convênio que se pretende blindar de um caráter
inviolável ao fim de 130 anos, como se inferissem as grandes divergências
futuras, e de ânimo feito a precautelá-las, anexaram-lhe os “Artigos
Separados”, que o completam e esclarecem.
São curiosos estes artigos, que de ordinário se excluem no citar-se
o famoso conchavo internacional. Devendo ficar por algum tempo secretos, por
conveniências mútuas e transitórias, eles eram-lhe imanentes,
sendo redigidos e subscritos no mesmo dia.
Mostra-no-lo este preâmbulo:
“Por consideraciones de conveniencia recíproca para las dos
coronas, han resuelto Sus Majestades Católica y Fidelísíma
extender los seguintes artículos separados, que habrán de quedar
secretos, hasta que los dos soberanos determínen otra cosa de común
acuerdo, debiendo tener desde ahora estos artículos separados la misma
fuerza y vigor que los del Tratado Preliminar de Limites que se ha firmado hoy.

Os dizeres perimem quaisquer desvios de interpretação. E as novas
cláusulas contrabalançam, se é que não superam,
as do acordo principal. Pelo menos a primeira restringe-lhe os efeitos, sobrestando-lhos,
com o subordiná-los a condições iniludivelmente suspensivas.

Sublinhemos o original castelhano:
“Artículo 1º – El Tratado preliminar de limites concluido
en este dia servirá de base y fundamento a otros tres que los dos altos
contrayentes han convenido y ajustado en la forma siguiente: primero un Tratado
de perpetua y indisoluble alianza.. . En segundo lugar un Tratado de comercio.
.. y en tercero lugar un Tratado Definitivo de Limites para unos y otros dominios,
luego que hayan venido todas las noticias y praticádose las operaciones
necesarias para especificarlos.”

Assim exinanido e desarticulado, o singular arranjo, que a mais retrógrada
metafísica política vem espichando desde os tempos das metrópoles
até hoje, através das mais díspares fases sociais, reduz-se
a simples convenção preparatória para a formação
ulterior, ou pouco remota, de três verdadeiros tratados.
Era o seu efeito único, a sua razão, a sua finalidade incontrastável.

De sorte que os demarcadores, em que se salientavam o ilustre Francisco Requena,
e, entre os portugueses, homens da valia de um Lacerda e Almeida, ou Silva Pontes,
não iam, de um modo geral, balizar sobre o terreno as linhas predeterminadas,
senão discutir, consoante as instruções que os norteavam,
e resolver, esclarecidos pelo exame direto das paragens exploradas, acerca das
que fossem mais convenientes e naturais para os limites a estatuírem-se
no acordo definitivo.
Ora, entre estas, a mais obscura era a que analisamos, com ser a única
linha geodésica, planeada a esmo no deserto, de uma demarcação
que desde 1750 se esteava, fundamentalmente no critério dos limites arcifínios
ajustando-se às divisórias naturais,
Entretanto, nunca um geógrafo espanhol andou pelo Madeira.
Violou-se, desta forma, por parte de Espanha, a obrigação contraída.

Fizeram-no os portugueses Silva Pontes e Lacerda e Almeida, aos quais a metrópole,
em 1781, deferira o encargo de determinarem a semidistância precitada,
e informarem se o ponto correspondente poderia ser a origem da linha leste-oeste.

Os abnegados astrônomos, depois de lhe deduzirem a latitude rigorosa (7º
38′ 45″) patentearam-no impropriado ao objetivo requerido, e alvitraram
o da confluência do Beni (10º 20′ lat. S.), sendo este parecer aceito
pelo Governo português, que o transmitiu ao espanhol, de inteiro acordo
com a razão expressa do compromisso preliminar.
Notificada a Espanha desta resolução, a circunstância de
não mais cuidarem, as duas coroas, destes deslindamentos, certo não
invalida o direito da parte contratante que foi a única, naquele trecho,
a cumprir as cláusulas prescritas do que se convencionara. Mas se a despeito
disto, e por obedecer à praxe trivialíssima de que as demarcações
só se tornam efetivas depois de aprovadas pelos interessados, se consideram
nulos os novos limites propostos pelos únicos comissários que
perlustraram a região – que valor jurídico, ou político,
poderá emprestar-se à duvidosa divisa que, vagamente referida
num acordo preliminar e devendo ser fixada mediante estudos in loco, não
foi sequer percorrida pelos comissários espanhóis?
São monstruosas estas antilogias: um trecho de fronteira debate-se, planeia-se,
e surge desde a origem com os mais frisantes estigmas de inviabilidade, repudiado
pelos próprios negociadores que, engenhando-o, se penitenciaram, sem
rebuços, do indesculpável deslize de o haverem concebido completamente
às cegas; mais tarde outros plenipotenciários, com as mesmas dúvidas,
perdidos nas mesmas obscuridades, salteados dos mesmos escrúpulos, sujeitam
as suas linhas definitivas, a sua existência real e efetiva, à
condição inviolável do estudo dos terrenos indivisos; nesse
pressuposto, um dos contratantes, cumprindo-a, propõe a variante indispensável;
o outro, infringindo a obrigação contraída, o que corresponde
a anular-se o convênio, queda-se na mais culposa, ou calculada indiferença;
passam os tempos, longos anos, dezenas de anos, um século inteiro, a
maior mora que ainda se viu na história; realizam-se nesse vasto interregno
mudanças e transfigurações nas circunstâncias políticas,
sociais e morais, das partes contratantes, que extinguiriam ou quebrantariam
a força obrigatória de verdadeiros tratados definitivos e íntegros;
– e essa monstruosidade, esse caso típico de teratologia político-geográfica,
tolhiço e abortício, enjeitado a princípio pelos seus mesmos
progenitores, transferido depois a um investigar futuro numa época em
que os caprichos dinásticos não possuíam barreiras – ressurge
de uma hibernação secular, inteiriço, intangível,
inviolável, tentando renovar a preexistência precária exatamente
num tempo em que, desde as noticias geográficas mais exatas aos princípios
políticos mais liberais, todos os elementos convergem no engravescer-lhe
a debilidade congênita irremediável. –
Evidentemente não é necessário – através das controvérsias
intermináveis dos internacionalistas – apelar-se para a guerra de 1801,
entre as metrópoles signatárias, e para o consecutivo tratado
de Badajoz, que não renovou os compromissos anteriores, para se manifestar
a nulidade de um acordo, onde se acumulam à maravilha tantas dúvidas,
tantos deveres não cumpridos, e tantas infrações flagrantes.

Uma autoridade científica justamente venerada no Peru, Antonio Raimondi,
referindo-se ao Tratado definitivo de 1750, mostra-no-lo “inválido
de hecho por la demora de su ejecución”,
dez anos apenas depois
de haver sido celebrado.(4)
E era um Tratado definitivo.
Admitida esta relação, não será escandalosamente
exorbitante um prazo décuplo para que se invalide um outro – preliminar
– e adstrito a cláusulas que se não satisfizeram?

*
Assim o entenderam os estadistas peruanos em 1851.
Ao firmar-se em 23 de outubro daquele ano o Tratado de limites, nas terras
confinantes do extremo noroeste, pelo art. 7? dele
“concordaram as altas partes contratantes em que os limites do Império
do Brasil com a República do Peru fossem regulados em conformidade

do princípio – uti possídetis – e, por conseguinte, reconheciam,
respectivamente, como fronteira, a povoação de Tabatinga e dai
para o norte em linha reta a encontrar o Japurá, defronte da foz do Apoparis;
e de Tabatinga para o sul o rio Javari, desde a sua confluência no Amazonas.”

É tudo quanto há sobre fronteiras; e é significativo.
Não se rastreia aí a mais vaga, a mais pálida, a mais indireta,
ou implícita, ou fugitiva referência à convenção
de 1777 – e menos ainda à recalcitrante linha leste-oeste. Entretanto,
se lhe restassem os mais bruxuleantes vislumbres de vigor, ela se imporia, imperiosamente
explícita. Baste observar-se que a malograda linha, concebida a ciegas,
teria de ultimar-se, obrigatoriamente, na margem direita do Javari. Nomeado
este, dever-se-ia nomeá-la. Não o fizeram, porém, os modernos
estadistas. Não deviam fazê-lo. Foram lúcidos. Foram lógicos.
A base das novas negociações era outra. O Tratado preliminar de
1777 estava extinto. O de 1851 surgia exatamente em virtude deste fato; e era
tão outro o seu princípio norteador, que se lhe não compreenderia
a enxertadura no decrépito convênio afistulado de tantos desacertos
originais.
Assim acordaram, de um e de outro lado, brasileiros e peruanos.
A demonstração não é casuística, nem se alcandora
em transcendentais premissas. É geométrica, é astronômica,
é massudamente física e positiva.
Conhecia-se desde os fins do século XVIII a média distância
entre a foz do Madeira, no Amazonas, e a do Guaporé, no Mamoré,
deduzida pelos comissários portugueses. As operações astronômicas
correspondentes não emudeceram no abafamento dos arquivos. Publicaram-se.
E delas resultava por um cálculo simplíssimo a latitude meridional
de 7º 38′ 45″.(5)
Ora, esta determinação única de um ponto bastava a definir-se
toda a linha, em direção e grandeza, atento o seu caráter
rigoroso, e expresso, de paralela ao equador, e a circunstância, também
clara, de terminar à margem direita de um rio, no ocidente, o Javari.

Assim, em 1851, admitida, ad absurdum, a letra do Tratado de 1777,
se sabia que a velhíssima divisa remataria – inflexivelmente – à
margem daquele tributário amazônico, aos 6º 38′ 45″ de
lat. S. Portanto, na vigência de tão monotonamente referido Tratado,
tinha-se que nomear, por força, aquele ponto, até aonde aquele
curso de água serviria de divisa natural.
É conclusivo.
Entretanto, a Convenção de 1851 não o fixou. Nem aludiu
a tal circunstância. A fronteira iria até aonde fosse o rio. Os
dizeres são límpidos: “De Tabatinga para o Sul a fronteira
é o rio Javari, desde a sua confluência no Amazonas.” Todo
o Javari, fosse aonde fosse. Indefinidamente, o Javari… E mais tarde, em nota
oficial de 20 de dezembro de 1867, dezesseis anos transcorridos, o Ministro
das Relações Exteriores do Peru ainda fortalecia o conceito, confirmando-o,
com o declarar que, ante o último Tratado,
“todo el curso del Javary es limite comun para los Estados contratantes”.(6)

Sancionava-se o mais completo olvido do anacronismo de 1777.
Não há forrar-se ao asserto: a divisa perlongava o grande tributário
do Amazonas até o fim, sem estacar no paralelo definido pela
latitude da semidistância do Madeira.
Relegava-se do ajuste a linha colonial.
Para admitir-se o contrário fora preciso apelar para o maravilhoso, para
o caso estupendo de se acharem as nascentes do Javari exatissimamente, sem o
destoar de um segundo, naquela mesma altura, e que pressumissem tão rara
coincidência os dois países contratantes; ou que, por último,
conjecturassem, ao menos, estarem as referidas nascentes ao norte da latitude
nomeada.
Mas nem mesmo este recurso resta aos modernos partidários da imaginosa
fronteira.
Mostram-no-lo os mais sisudos documentos peruanos.
Registremos um só, porém preeminente.
D. Mateo Paz Soldan é uma figura tradicional e dominante na invejável
cultura da República vizinha. Era uma alma superior, amantíssima
de sua terra e justamente vaidosa de suas grandes tradições. Ao
mesmo passo um espírito de cultura integral pouco vulgar. Astrônomo
e naturalista, humanista profundo e escritor brilhante a par de tão privilegiados
atributos foi o maior geógrafo de seu país. A sua obra é
ainda hoje clássica. E a sua palavra, no seu tempo, indiscutível.

Procuremo-la, extratando-a com a maior fidelidade do trabalho que, por ter sido
publicado em 1863, em Paris, à custa do Governo peruano, tem o tríplice
valor do nome que o nobilita, do título oficial que o reveste, e da própria
data em que apareceu, no sistematizar, de maneira insofismável, as noções
que então havia acerca da geografia da República.
Ora, no tocante ao desenvolvimento do rio Javari, o pensar do mestre expõe-se
sem atavios: considera-o indefinido; prefigura-o dilatadíssimo:
“On sait seulernent qu’il entre dans le fleuve des Amazones sous le
4º 38′ lat. S. et qu’il paraît étre un écoulement de
l’Apurimac.”
(7)
Atente-se que o Apurimac tem os seus manadeiros além de 15º de lat.
S.; e avalie-se o desmedido estiramento que em 1863, doze anos depois do Tratado
de 1851, figurava possuir um rio que todo ele se erigira, por um compromisso
solene, em fronteira brasílio-peruana.
À luz desses argumentos, a paralela, que só poderia traçar-se
a partir de suas cabeceiras (porque todo ele era divisa) em busca do
Madeira, entregar-nos-ia a melhor porção do genuíno Peru,
do Peru incásico e legendário, e quase todo o departamento de
Cuzco.

O absurdo é evidente.
Vê-se bem que o atingimos, como em geometria, pelo havermos partido

de um dado ad absurdum. Só o remove a tese contrária:
os Governos contratantes excluíram, de todo em todo, aquela linha dos
efeitos do Tratado de 1831.
Apesar disto, prossigamos.
Observemos praticamente confirmada esta dedução.
O mesmo Paz Soldan, no mesmo livro – livro oficial, cristalizando todo o conhecimento
geográfico do tempo -, traça os limites orientais da República.
A linguagem é resplandecente. Não há miopia intelectual
que se lhe furte. Diz:
“De Tabatinga vers la Sud, la rivère Janary a partir de son
confluen ce avec le fleuve des Amazones, jusqu’à sa source et de là
une ligne parallèle vers de 10º de lat. sud “
(8)
Esta paralela não é mais a de Santo Ildefonso, já pela
sua situação, em demasia deslocada para o sul, já pelo
indefinido daquele vers le 10 de lat. sud, já pelo preposterar
o sentido da demarcação, delineando-a a partir do Javari, sem
lhe ocorrer uma célebre semidistância, tão fatigantemente
nomeada, que devera marcar-se no Madeira; e, finalmente, porque não
se destinava, no ponderoso parecer do reputado geógrafo, a dilatar-se
até ao Madeira, visto como sobre ela,
“sur la ligne parallèle tirée sous la 10º de lar.
Sud, què sert de limìte au Brésil il faut
abaisser
une perpendiculaire du Nord au Sud. Ensuit on recontre la cordillère
que se prolonge do Nord au sud;
elle sert de limite jusqu’au 15º
28′ da lat.
S. e 71º 45′ da long. O. Paris”.
Leia-se um mapa qualquer; balanceiem-se estes elementos claros: a paralela,
assim definida, como se deduz do enunciado acima, e como se gravou na carta
do próprio Paz Soldan – ia terminar no Purus…
Deste modo a linha ab-rogada em 1851, pela razão superior de um Tratado,
delia-se de todo em 1863, ante o juízo austero do cientista de mais
alto renome da República peruana.
Por fim o Tratado de 27 de março de 1867, entre a Bolívia e
o Brasil, removeu-lhe os destroços, e, registre-se esta circunstância
notável, sancionou o parecer proposto havia 86 anos pelos comissários
portugueses, o qual se não efetuara pela indiferença criminosa
da Espanha, deslindando as extremas meridionais, naquele trecho, a partir
da foz do Beni (10º 20′) para o ocidente, até encontrar o Javari.

Menos se explica ainda que, após tantos decênios, a desenlapasse,
e coonestasse, uma corporação de alta responsabilidade pelo
seu caráter oficial, e que, baseando-se nela, o chefe do Arquivo Especial
de Limites, do Peru, a arquivasse numa carta, a mesma carta, certo, que se
entregou ao juízo austero de um árbitro, arrastando o Governo
peruano a sancionar o mais calvo e injustificável erro, que ainda se
perpetrou na simples leitura de um convênio.
Temo-la sob os olhos.(11)
Lá está a claudicante divisa na sua derradeira tortura, rigorosamente
firmada pelo paralelo de 6º 52′ 15″.
Intercepta o Purus em Vista Alegre; o Juruá, no barracão “Recife”;
e separa, ditatorialmente, num garboso rasgo imperialista de tiralinhas napoleônico,
mais de 500 estâncias brasileiras, do resto do país, e entre
elas algumas vilas, Antimari, São Felipe, Cruzeiro do Sul, e uma cidade,
Lábrea.
A carta do Arquivo Especial de Limites, modelada por ela, completa-a, preestabelecendo
um esboço de divisão administrativa.
No aforrado anelo de se apossarem de domínios tão ricos, os
geógrafos oficiais do Peru não aguardam a sentença soberana
do árbitro. Predeterminam; prefixam; prefiguram as futuras barreiras.
Prejulgam a própria causa. Tudo aquilo já tem um nome – Provincia
do Ucayali:
longa lista de terras, estirando-se, fatidicamente, por treze
graus de longitude, do Madeira para o ocidente, e apavorando-nos com uma tremenda
aquarela de carmim vivíssimo, e fortes tons sangüíneos,
tragicamente sugestivos…
A elástica fronteira assim se estica, hoje, nas regiões exuberantes
da borracha.
Pena é que uma outra variante destrua o pinturesco desses desenhos
lírico-cartográficos.
Arquivemo-la.
É uma variante sobremodo eloqüente no delatar que, a cabo de tantíssimas
e velhas garatujas, ainda hoje, em nosso tempo, no mesmo país, na mesma
cidade, talvez na mesma rua, no mesmo ano, talvez no mesmo dia, riscada pelos
desenhistas oficiais, à luz das mesmas preocupações,
a lastimável linha divisória… não e a mesma.
Defrontem-se as cartas de S. G. de Lima e Arquivo Especial de Limites, ambas
do Peru. Desconchavam-se. Na primeira, já o vimos, ela ressurge, ameaçadoramente,
guindada para o norte, com a sua direção intorcível de
leste para oeste. Na segunda, não é sequer a sombra do que foi.
Não é mais uma paralela. É uma oblíqua. Parte
da mesma semidistância erradíssima, e vai descambando. Incide
no paralelo de 7º, ao atravessar o Tarauacá;
e continua a descambar, a cair. E cai, descendo sempre, a perder-se, ou a
refugiar-se, nas cabeceiras remotas do Javari…
É o último avatar da singularíssima invencionice. Não
o qualifiquemos. Nem afirmemos, com o Sr. Manuel Rouaud y Paz Soldan, sobrinho
do cientista precitado, ao versar o mesmo
assunto em 1869:
“Enfin como el Tratado de 1851 ha determinado los limites actuales,
todas estas discusiones no son sino de um interés puramente histórico.”
(12)

Digamos: a base principal das pretensões peruanas, no vertente litígio
com a Bolívia, submetida ao exame e ao juízo do Governo argentino,
além de ser incaracterística e vaga, ilógica e inviável,
nula de direito e de fato, volúvel ou passiva ante os caprichos de
todos os cartógrafos – está errada, flagrantemente errada –
geométrica, astronômica, geográfica, política,
jurídica e historicamente errada.

E consideremos outros aspectos deste assunto.

Capítulo II

Os antigos mapas sul-americanos têm às vezes a eloqüência
de seus próprios erros.
Abraham Ortelius, Joan Martines, ou Thevet, sendo os mais falsos desenhadores
do Novo Mundo, foram exatos cronistas de seus primeiros dias. A figura do
continente deformado, quase retangular, com as suas cordilheiras de molde
invariável, rios coleando nas mais regulares sinuosas, e amplas terras
uniformes, ermas de acidentes físicos, cheias de seres anormais e extravagantes
– é, certo, incorretíssima. Mas tem rigorismos fotográficos
no retratar uma época. Sem o quererem, os cartógrafos, tão

absorvidos na pintura do novo typus orbis, desenhavam-lhe as sociedades
nascentes; e os seus riscos incorretos, gizados à ventura, conforme
lhos ditava a fantasia, tornam-se linhas estranhamente descritivas. Num prodígio
de síntese, valem livros. A impressão que se nos amortece, e
vai partindo-se no volver das páginas mais vigorosas, ali desfecha
num golpe único do olhar. E vemos, como não no-lo mostrariam
os mais lúcidos historiadores, os aspectos dominantes do regímen
instituído pela conquista das recém-descobertas regiões.

Considere-se o antigo Vice-reinado do Peru.
Ninguém o compreende, de pronto, sem a sugestão de uma daquelas
informes caricaturas continentais, que lhe resumem, exagerando-os, os traços
incisivos. Sob todas as faces, da administrativa à política,
à civil e à religiosa, a sua aparência mais viva é
a de suas velhas cartas: monstruosa, artificial, extravagante… O desenhista
que lhe riscou, do Panamá à Patagônia, a costa ocidental,
maciça, inarticulada, quase sem dobras, perlongando. inteiriçamente,
o Mare magelanicum, descreveu-lhe ao mesmo tempo, com um traço,
a sociedade rudimentar, sem órgãos, duma grande simplicidade
tribal, ou primitiva; e ao figurar-lhe no levante, por vezes com áureas
iluminuras, as minas numerosas, as serranias auríferas, as lagoas doiradas,
os palácios argênteos guardando os tesouros incalculáveis
dos Incas, denunciou o objetivo exclusivo de seus novos povoadores.
De fato, ali não se fundou uma colônia, no significado que, já
naquele tempo, lhe sabiam dar os portugueses. A terra, indivisa e sem fins,
não se abria ao exercício das atividades, firmando-se a correlação
entre as suas energias desencadeadas pelas culturas e as forças sociais
consecutivas. Era uma inexpressiva e vasta propriedade. Não era, ainda,
um domínio de Espanha, ou o prolongamento ultramarino, onde ela se
refugiasse naquele ameaçador entardecer da Idade Média, carregando
o seu velho fanatismo católico, a sua lealdade feroz e a sua ferocidade
cavalheiresca, abalados aos primeiros fulgores da Reforma. Era um feudo. Um
donativo papal a um rei. O maior dos latifúndios sancionado por uma
bula. Uma sesmaria que se explorava de longe, desastradamente, de dentro do
Escurial; e mandada por um magnífico feitor, que era a sombra passiva
do soberano longínquo, o Vice-rei.
Sabe-se no que consistiu a exploração. Delatam-na, melhor que
os historiadores, os cartógrafos. No mapa de Descaliers não
se vê um rio, ou uma serrania, não se lobriga um acidente físico;
vêem-se cidades maravilhosas, vêem-se minas estupendas, e sobre
umas e outras, pisoando-as, uns tremendos batalhões de castelhanos
barbudos, a tropearem em arrancadas violentas.
Não há concisão fulminante, de Tácito, que valha
aqueles riscos lapidários…
Com efeito, a diretriz intorcível da colonização espanhola,
traçou-a a primeira tropa de Pizarro, que entrou pelo Peru e caminhou
cem léguas para saquear um templo. O processo não variou. Não
podia variar. Ali estavam, diante dos conquistadores, gratuitas, requerendo-lhes
o só trabalho de apanhá-las, as riquezas surpreendentes da imponente
teocracia que ruíra desde o primeiro assalto; e eles volveram, logicamente,
em recuo obrigatório, às formas primitivas da atividade militar,
sob o impulso irresistível, e até material, do passado milenário
que os estonteava.
Assentou-se, então, o regímen daquela centralização
estúpida, que lanceiam os pontos de admiração de todos
os historiógrafos.
Mas era compreensível. O Vice-rei, procurador bastante de um proprietário,
devia, de fato, enfeixar todas as atribuições, das que entendiam
de simples casos administrativos, aos assuntos da guerra, às delicadas
exigências da justiça. Além disto, o grande ajuntamento
ilícito, de soldados e exatores, adscrito a um esforço único,
sem funções especializadas, amorfo e inconsistente chegando,
acampando, saqueando, saindo – não tinha as exigências complexas
de uma sociedade, ou, sequer, de um esboço de sociedade.
Mostram-no as próprias leis, que os regulavam, vedando-lhes a todos,
do Vice-rei ao último intendente, o se ligarem à paragem nova
pelos vínculos da família, ou da propriedade. Nem um palmo de
terra os prendia ao Novo Mundo; nem uma afeição os vinculava
a seus destinos.
Os recém-vindos alheavam-se, por sistema, dos hábitos e interesses
do país. Naquele saquear-se uma civilização estranha,
baqueada, impunha-se-lhes a atividade exclusiva de atestarem os galeões
da metrópole com todos os seus efeitos. Fora inconveniente qualquer
adaptação, favorecida pelo cruzamento, aparelhando os povoadores
de outros atributos de resistência aos novos cenários que se
lhes abriam. O título de espanhol, título único a todos
os empregos, devera conservar-se intacto na sua mais áspera rigidez
nativa, blindado pelo orgulho característico da raça, como um
privilégio e uma necessidade política. Embaixo, o filho do país,
embora o aparelhassem qualidades superiores, submetia-se ao pecado original
de ali ter nascido. O forasteiro mais achamboado e bronco fulminava-o com
uma frase, que rompeu séculos, entre o espanto dos cronistas, concentrando
a fórmula mais altaneira e pejorativa de um domínio:
“Eres criollo y basta…
Deste modo, ia formando-se o agregado absurdo, que era uma espécie
de anômalo inorganismo social, sem tendências pessoais definidas,
crescendo apenas mecanicamente, como as pedras crescem, pelas superposições
sucessivas das levas que partiam de Cádiz
Daí, a instabilidade. A mínima vontade individual rebelde, combalia-o.
A sua história, nos primeiros dias, reduzida a monótona resenha
de intermitentes revoltas, traduz-se num círculo vicioso fatigante:
qualquer capitão feliz, gérmen ancestral dos caudilhos futuros,
ao voltar de uma campanha vitoriosa, contra os Incas remanescentes, tornava-se
um perigo público que era preciso afastar. . . inventando-se outra
expedição, que o distraísse.
Por exemplo: o primeiro esboço de subdivisão política
do incomensurável domínio, a gobernación de
Nueva Toledo, que seria mais tarde o Chile – não atendeu a um princípio
elevado de governo. Foi um recurso de ocasião e um meio desesperado,
aventando-se entre pavores, de afastar Diego Almagro, o perigoso sócio
de Pizarro, para as solidões longínquas do estreito de Magalhães.

Multiplicavam-se sucessos semelhantes. E o domínio castelhano, na América
do Sul, consistindo na vasta pilhagem de uma sociedade morta – difuso, inarticulado,
informe – como no-lo desenham os antigos cartógrafos, antes de organizar-se
ia decompondo-se lastimavelmente.

*

Então criou-se a Audiência e Chancelaria Real de La Plata, ou
de Charcas, que seria mais tarde a Bolívia, desligando-se daquele conjunto
amorfo, como se desliga um mundo de uma nebulosa.
A velhíssima imagem impõe-se. Realmente, ali houve, sobretudo,
um fato de evolução: o primeiro sinal da vida no ajuntamento
gregário, cuja significação política se perdia,
indeterminada, no vago de um conceito geográfico imaginoso. Não
há mesmo, talvez, nenhum outro em que melhor se comprazam os que se
aventuram a estender aos sucessos sociais o princípio universal da
redistribuição da matéria e da força.
Mas não nos delongaremos por aí.
Falam por si mesmos os acontecimentos, no revelarem que a Bolívia foi,
entre todas as repúblicas espanholas, a primeira que se delineou em
um passado longínquo, rodeando-se, desde o princípio, com os
mais notáveis elementos de uma organização poderosa.

As Cédulas Reais que a constituíram, e entre todas a de 29 de

agosto de 1563, são o inesperado exemplo de uma resolução
da metrópole castelhana, na América, que se discutiu e se afirmou
sobranceira aos caprichos da vontade real ilimitada. Retratam a primeira medida
governamental, digna deste nome, subordinando-se, esclarecidamente, às
exigências do meio. Os seus motivos resultaram de fatores físicos,
tangíveis: a distância, e os sérios embaraços de
comunicações entre a sede litorânea do governo, em Lima,
e as paragens remotas, no levante. Entre estas e aquela, aprumam-se os paredões
das cordilheiras, ásperos, abruptos, não raro impraticáveis,
alongando os caminhos no torneado das vertentes, agravando-os nos pendores,
estirando-os, monotonamente, pelo desnudo das punas enregeladas.

Deste modo, o alvará da metrópole sancionava uma condição
imposta pela harmonia natural.
Destaque-se bem este caso: determinou-o a mais imponente fatalidade física
de todo o Novo Mundo.
A Bolívia é uma criação dos Andes.
A Cédula Real, definitiva, de 26 de maio de 1573, rematando a gênese
do novo distrito, primeiro esboço de uma articulação
no organismo inteiriço e rudimentar do Vice-reinado, demonstra-o, claramente,
ao prescrever-lhe os limites. Considerando-a, observa-se que as suas divisas
ocidentais, ajustando-se às cordilheiras, são claras. Pormenorizam-se,
nomeiam-se, especificam-se até nas veredas que por ali serpeiam; e
a serrania de Vilcanota, último contraforte da cadeia principal, pelo
oriente, tornou-se, por isso mesmo, a última barreira oriental da antiga
Audiência de Los Reyes, ou de Lima, no Departamento de Cuzco, traçando-se,
rigorosamente, como um limite arcifínio indestrutível. Ao passo
que nos quadrantes de N E. e S. E., a entestar os domínios portugueses,
a nova Audiência se expandia em extremas incaracterísticas: ao
norte, as regiões ainda misteriosas, inçadas de infietes
genericamente designados pelos nomes de chunchos e mojos;
ao sul, os terrenos do Paraguai, e as províncias de Tucuman e
Juries, que hoje se integram na Confederação Argentina. E atendendo-se
que estas últimas se segregaram, naquela ocasião, da gobernación
transandina do Chile, que se já formara, trai-se, ainda neste
incidente, o determinismo natural daquele repartimento político administrativo
– no propósito manifesto de incluírem-se na nova circunscrição
todos os territórios cisandinos.
De feito, a magistral dos Andes orientais era a única divisória
compreensível e estável das duas Audiências, de Lima e
de Charcas, uma e outra ilimitadas nos outros rumos defrontando no poente
a vastidão do Pacífico, e no levante as terras indivisas dos
domínios lusitanos.
Ora, esta subdivisão, a princípio quase apenas judiciária,
e resultante imediata do antagonismo entre a centralização antiga
e a estrutura da terra, traduziu-se depois como o primeiro estalo no aparelho
inteiriço e patriarcal do Vice-reinado.
Realmente, o tribunal supremo instituído em La Plata, destinado a multiplicar-se
em doze outros, ulteriores, desde Buenos Aires até Nova Granada, balanceava,
não só por Ordenança expressa da metrópole, como
pela autonomia advinda daquele afastamento no âmago da terra, a influência
do delegado real.
O governo tornara-se mais complexo; e progrediu, diferenciando-se mais e mais,
à medida que o sistema regulador preexiste, sem plasticidade para o
regímen que nascia, se quebrantava, ou desaparecia, num decaimento
inevitável.
Não é preciso exemplificar. Não há, neste lance,
a voz dissonante de um só historiador.
Toda a evolução dos Estados hispano-americanos acentua-se e
desdobra-se no triunfo gradual e contínuo daqueles governantes mais
aditos ao povo, sobre o prestígio tradicional dos Vice-reis, em fases
tão golpeantes, nos seus efeitos, que já muito antes de 1810
estes últimos se reduziam a platônicas figuras, meramente decorativas,
porque o Conselho das Índias, na Espanha, e as Audiências pretoriais,
na América atribuíam-se todos os misteres de governo.
Assim germinaram com a Bolívia os fatores iniciais da independência
hispano-americana.
O próprio internamento favorecia-lhe a marcha gradativa para uma harmonia
superior de energias autônomas, ao mesmo passo que a distância
da costa a libertava da emigração tumultuária, ou atraída
pelo anseio exclusivo da vida aventurosa, em cata da fortuna. A cordilheira
foi – materialmente – um cordão sanitário. Ao menos, um desmedido
aparelho seletivo: para afrontá-la e transpô-la, requeriam-se
atributos excepcionais de coragem, pertinácia, vigor. E transpondo-as
os mais volúveis forasteiros fixavam-se, forçadamente, ao solo,
tolhidos pelas próprias dificuldades da volta.

Ao mesmo tempo, naquelas terras interiores, os jesuítas fundaram as
suas mais notáveis Missões, resguardando o elemento indígena,
que se dizimava no Peru sob o tríplice assalto simultâneo das

guerras, dos repartimentos e das mitas. Viram-se, então,
desde logo, fronteirando-se, o melhor das gentes forasteiras e o aborígine.
O cruzamento entrelaçou-se como em nenhuma outra possessão espanhola.
Surgiu uma gente nova, mais robusta, mais estável, equilibrando-se
ao meio, e refletindo, a par dos atributos físicos da aclimação,
mais firmes tendências para o domínio e para a luta nos dilatados
cenários que se lhe ofereciam.
Ora, por mais díspares que fossem tais estímulos, rompentes
do temperamento impulsivo dos mestiços recém-formados -retificou-os,
depois, harmonizando-os numa admirável solidariedade de esforços
e destinos, uma outra circunstância positiva incontrastável.

Não há obscurecê-la: a contigüidade dos domínios
de Portugal, no levante, foi, desde o século XVII, um reagente enérgico
para a organização autônoma da Bolívia. As forças,
que no litoral peruano se dispersavam e dispartiam em tumultos e revoltas
intestinas, ali se compunham num movimento geral e instintivo de defesa. Leiam-se
os cronistas do tempo. Os bolivianos acordaram na história aos prolongados
rumores de uma invasão. Adestraram-se desde cedo num tirocínio
de batalhas. Uniram-se sob o império de uma ameaça, que durou
dois séculos. Evoluíram, transfigurando-se, num persistente
apelo às energias heróicas do caráter. E disciplinaram-se:
os portugueses, no Oriente, eram, sem o saberem, os carregadores incorruptíveis
do grande ayuntamiento nacional que se formava.
Estudando-se a constituição territorial da Bolívia, ao
chegar-se a Cédula Real de 2 de novembro de 1661 que lhe segregou as
províncias de Tucuman e do Paraguai, para constituírem a Audiência
pretorial de Buenos Aires, nota-se, ainda uma vez, com a ordenança,
aparentemente arbitrária, da metrópole, obedeceu a motivos externos,
prementes, inadiáveis.
A Audiência de Charcas não diminuía, mutilada; consolidava-se,
concentrando-se. Definia-se. Indeterminada, a princípio, nos quadrantes
de N. E. e S. E., apenas demarcada no ocidente pelos Andes, lindava-se, agora,
rigorosamente, em toda a banda do sul. Permanecia, certo, indefinida em toda
a amplitude das terras setentrionais; mas, neste definido, define-se, eloqüentemente,
a sua missão histórica. Realmente, a invasão portuguesa,
estacionando à margem esquerda do rio Paraguai, alongava-se de suas
cabeceiras para o norte – indefinidamente – assoberbando o Mato Grosso e seguindo
as linhas naturais do Guaporé e do Madeira até ao Amazonas.

Ora, a Audiência de Charcas foi o bloco continental que lhe contrapôs
a Espanha.
Devia ser, como ela, indefinida na direção do norte.
Salientemos bem este fato, preeminente no atual litígio: o território
oriental de Charcas era, no dizer enérgico de um de seus mais famosos
presidentes, la barrera de todo el Alto Perú, (1) ante a vaga
assaltante dos invasores, que o ameaçavam na orla extensíssima
do levante.
É natural que as leis do Livro 2º da Recopilación das
Índias, de 1680, sistematizando, ou corrigindo, as cédulas e
ordenanças anteriores, no estabelecerem as raias das circunscrições,
em que, largamente, ia fragmentando-se o Vice-reinado, traçassem à
de Charcas, em pleno contraste com as linhas mais firmes de outros rumos,
as mais distensas e vagas no quadrante de N.E.
Os seus dizeres são significativos:.
“Partiendo términos por el septentrión con la Real
Audiencia de Lima y Provincias no descubiertas… por el levante con el mar
del Norte y línea de demarcación entre las coronas de los reynos
de Castilla y de Portugal por la parte de las provincias de Santa Cruz del
Brasil.”

Desta forma, as suas extremas setentrionais, apenas definidas nas terras mais
abeiradas da cordilheira, a defrontarem as do departamento de Cuzco, ampliavam-se
logo, indeterminadamente, para o norte, no difuso de uma penumbra geográfica,
provincias no descubiertas. E o que pode afigurar-se de restritivo
neste rumo desaparece de todo naquele desafogo largo para o levante. A lei
é límpida: os limites por ali iriam até onde fosse a
linha de demarcação entre Portugal e Espanha.
As províncias ainda não descobertas, mostra-o o próprio
impreciso desta expressão crepuscular, predestinavam-se a extinguir-se,
ou a recuar, continuadamente, ante o simples desenvolvimento de uma divisa
oriental, que se dilataria, margeando a meridiana, sem termos prefixos, até
aonde se estendessem as terras lusitanas, a extinguir-se no Atlântico
Norte.
Não há interpretação mais lógica. Todos
os antecedentes a esteiam, inabalável.
A fatalidade física, tangível e rijamente geognóstica,
que apontamos, há pouco, como determinante da constituição
territorial da Bolívia, harmoniza-se, neste caso, com as leis sociais
mais altas.

A sua missão histórica erigindo-a, no levante, em barreira
protetora dos domínios castelhanos, traçou-lhe desde o princípio,

naturalmente – no indeterminado das paragens ainda ignotas, ou no descubiertas,
uma diretriz inflexível para o norte, acompanhando, num movimento
heróico, os rastros da expansão lusitana.
Eram marchas paralelas, de objetivo dilatado, e cujo termo não poderia
prefixar-se.
A zona de ação da Audiência devotada à defesa das
possessões espanholas ampliar-se-ia consoante se ampliasse a do adversário
pertinaz que ela tinha de defrontar (até por ordem expressa da metrópole,
como veremos depois) em todo o desmedido de uma fronteira internacional.
Deste modo, a posse virtual daqueles territórios, de que ela se revestiu
historicamente, posse perigosíssima e grave, submetida às responsabilidades
tremendas de uma campanha perene, destaca-se, sem dúvida, superior à
posse efetiva e pacífica que, acaso, sobre eles ela exercitasse mais
tarde.

*

Com efeito, não há prodígios de perquirição
sutil e tenaz que nos revelem, por exemplo: até onde se estendiam,

ou sequer, onde se localizavam os prófugos infieles, Chunchos
e Mojos, cujas terras se incluíam nas de Charcas, ladeando
as províncias não sabidas.
Os recursos cartográficos são, neste caso, desesperadores.
Entretanto, são aquelas províncias não descobertas, constituídas
dos terrenos ocidentais do Madeira, em toda a faixa desatada da foz do Mamoré
à semidistância daquele, que se lhe contestam, e formam a presente
zona litigiosa.
Vimos-lhe, no capítulo anterior, a superfície enorme. E, se
nos alongássemos numa exposição analítica, mostraríamos
que ela se esboçou quando se lindaram, em 1680, as audiências
convizinhas, em que se tripartiu o Vice-reinado do Peru – como um território
relegado à apropriação futura, consoante a capacidade
delas, e neutro naquela divisão audiencial. Provincias no descubiertas
são palavras que ressoam, monotonamente, nos deslindes de 1680.
Entre a Audiência de Quito, que formaria depois o Equador e se estendia
naquele tempo para o sul até ao médio Ucayali; a de los Reyes,
ancestral do Peru, expandida para leste até as margens do Inambari,
limitando rigorosamente a diocese de Cuzco; e a de Charcas, expressão
histórica da Bolívia, limitada em todos os sentidos, exceto
no que lhe marcava um papel preeminente na evolução americana
– encravava-se a massa continental, ignota, impérvia e misteriosa,
velada quase até aos nossos dias, em toda a área que se alarga
entre o médio Madeira e o Javari.
Portanto, no ventilarem este ponto, com os decrépitos testemunhos coloniais
dos séculos XVI e XVII, uniformes apenas no darem uma expressão
legal à ignorância absoluta que havia acerca daqueles lugares,
os Estados colitigantes só podem iluminar, ou esclarecer, o assunto,
de uma maneira originalíssima:
apelando para os dados mais obscuros, dúbios e vacilantes, ou vendando-se
com aquela espessa noite geográfica, onde, como vimos, tanto se atarantaram,
tontos, “às cegas”, às encontroadas, completamente
perdidos no escuro, os negociantes de 1750.
Prescrevem aos misteriosos aborígines os mais vários e contrapostos
habitats ora às ourelas direitas do Ucayali; ora às
do Beni; ou, mais distantes, a estirarem-se pelas ribas do Amazonas.
Os selvagens vagabundos são, evidentemente, os mais erradios dos selvagens,
vagueando ao mesmo tempo pelas selvas e pelos mapas.
Por outro lado, os documentos escritos, memórias, roteiros, ou crônicas,
e até os mais lisamente legais – cédulas, ordenanças,
ou ofícios – engravescem e multiplicam sobremaneira todas as dúvidas.

Aprende-se a ignorar, lendo-os. Recordam típicos compêndios de
erros. Sistematizam o absurdo. A mentira ressalta-lhes divinizada nos mais
românticos devaneios. Nas suas linhas faz-se uma filtração
pelo avesso: a inteligência penetra-as, límpida; atravessa-as,
torturada; sai impura. Cada página é um diafragma, por onde
se nos insinuam, por endosmose, todas as sombras do passado. No emperramento
de seus termos duros, descontínuos a despeito da pobreza de vírgulas,
onde as idéias se desunem, desarticulando-se, deformadas ou decompostas,
retrata-se, irritantíssima, uma espécie de gagueira gráfica,
visível; e não há espírito que se equilibre nas
suas vacilações, nas suas alternativas, no vaivém de
seus repetimentos intermináveis, nos seus hiatos distensos, nas suas
pasmosas confusões originárias. Ali todas as opiniões
encontram um texto favorável. A verdade é bifronte. Firmam-se
todos os critérios. As deduções irradiam. Os conceitos
geográficos disparam. Lemos aquelas milhares de páginas; cirandamo-las:
não fica uma partícula de realidade. Fica uma preocupação:
esquecê-las no menor prazo possível.

Cada um daqueles cronistas, cada um daqueles geógrafos, ou mesmo historiógrafos,
cada um daqueles pequenos proprietários do Caos, como os estigmatizaria
Carlyle, é um desordeiro que se faz mister afastar pata que se não
perturbe o pleito.
Afas temo-los.
O deslindamento tem recursos mais positivos, mais lúcidos, mais sérios.

Esboçamos, retilínea e inquebrável, a diretriz histórica
da Bolívia.
Vejamos como ela se acentua e se ajusta em todos os seus pontos aos elementos
mais rigorosos no refletirem os intuitos da metrópole.

Capítulo III

Nas vésperas do Tratado de 1750, o domínio espanhol, na América
do Sul, repartia-se nos Vice-reinados do Peru e de Nova Granada, subdivididos
em várias audiências. O processo evolutivo acentuava-se em uma
descentralização contínua. A expressão política
– Vice-reinado – empalidecia. Extinguia-se, decompondo-se. Por fim se reduziu
à fórmula vaga e virtual do domínio, ou palavra genérica,
sem nenhum significativo positivo, servindo apenas a recordá-lo, de
modo geral e impreciso.
Um século antes de se transformarem em repúblicas independentes,
as audiências patenteavam-se, administrativamente, autônomas.

Assim, no se determinarem os limites atuais daquelas, deve-se atender de modo
exclusivo, e diríamos melhor, abstrato, aos das últimas.
É o único meio racional de resolver-se o problema.
Desde que uma delas, mercê da circunstância fortuita de haver
sido a sede do governo geral, atraia para o debate este elemento estranho,
perturba-o e complica-o. Viola, revolucionariamente, do mesmo passo, a evolução,
que a constitui, e um princípio universal de lógica. Quem quer
que nos atuais deslindamentos considere a República peruana revestida
do prestígio extinto de um Vice-reinado, que por igual se estendia
às outras circunscrições, recorda o matemático
obtuso e esmaniado, que intente resolver um problema de mecânica, entre
vários corpos, submetendo apenas um deles à gravidade, que se
exercita em todos. Vice-reinado, na ordem política sul-americana, era
uma palavra, como a de gravitação, na ordem física. Tinha
efeitos largamente generalizados.
No pleito atual, certo, não se defrontam o Vice-reinado do Peru e a
Bolívia. Fora contrapor uma nação a um fantasma. Enterreiram-se
o Peru e a Bolívia: a Audiência de Los Reyes e a de Charcas.

A nenhuma delas pertenciam, de uma maneira explícita, naqueles tempos

remotos, as provincias no discubiertas, constituintes do atual território
litigioso. Diríamos melhor: somente naquelas terras, que o desconhecido
conservava, incidiam os últimos lampejos do valor político do
Vice-reinado. Ele era, neste caso, o elemento conservador, ou a força
central que as retinha, de um modo transitório, até que a substituíssem,
como a substituíram noutros lugares, as energias regionais crescentes.
As audiências convizinhas iriam atraí-las numa luta de competência.
Ali teria de verificar-se a fórmula superior do progresso político
da América espanhola, consistindo no permanente triunfo dos governos
locais sobre a centralização primitiva. Não se pode negar
o asserto. Não se podem queimar todos os livros da história
sul-americana.
Assente este juízo, inabalável e infrangível, repitamos
que, sobre fatigante, seria impertinente e vá qualquer tentativa de
discriminar, ou definir, aquelas terras longínquas, numa quadra remota
em que a própria metrópole não as discriminava, ou definia.

O problema racional é este: houve na América do Sul um vasto
território desconhecido, extremando se, vagamente, com três audiências
espanholas – a de Charcas, a de Los Reyes e a de Quito – e todo o N E. dos
domínios lusitanos; pelo princípio regulador do desenvolvimento
das colônias castelhanas, aquele território, interjacente, na
faixa que lhe pertencesse, predestinava-se no gravitar na órbita de
uma daquelas audiências; – qual a que atraiu?
A de Charcas.
Dizem-no-lo decisivos documentos.

*

Voltemos à exegese do Tratado de 1750.
Vimos, ao versar o embaralhado assunto daquele segmento de fronteira, que
os graves negociadores, perdendo a inteiriça compostura diplomática,
se turvaram com uma sombra geográfica e, às apalpadelas, esgrimindo
magistralmente no vácuo, procurando-se e afastando-se, debateram-se
nas dúvidas ansiosíssimas de um verdadeiro duelo sevilhano.
Andaram às cegas – confessaram-no.
Mas ressaltam fulgores da controvérsia travada em tamanha escuridade.
Vejamo-los.
O efeito daquele tratado, ali, consistiu em substituir a divisa de Tordesilhas,
de um lado, pelas linhas naturais do Guaporé, do Mamoré e do
Madeira; e do outro, pela paralela traçada deste último no Javari.

Ora, os debates visando elucidá-las, as propostas, os anteprojetos
e, sobretudo, as instruções das duas chancelarias aos seus plenipotenciários,
patenteiam o deslindamento submetido ao critério essencial de estar
a vasta superfície entre o Madeira e o Javari incluída na jurisdição
de Charcas, extremada naqueles rumos pela província de Santa Cruz de
la Sierra, e, mais ao norte – indefinidamente – a apagar-se no desconhecido,
pelas das missões de Moxos.
Revelam-no para logo os elementos cartográficos. Relembre-se que foi
uma carta das províncias de Moxos, domínio daquela audiência,
o primeiro documento que se deparou a Alexandre de Gusmão para ensaiar
um juízo sobre a matéria.
Registrem-se, porém, outras, mais perfeitas. A geografia norteadora
do Tratado concretizou-se em dois mapas únicos: o denominado “das
Cortes” (decalque do de La Condamine), subscrito pelos plenipotenciários
Tomás da Silva Teles e Carvajal y Lancaster, e o dos irmãos
Jorge e Antônio Ulloa.
Este último é coetâneo das negociações.
Tem, ademais, a valia das suas fontes, genuinamente espanholas. Os deslizes
gráficos, elide-lhos o texto explicativo, que se insere na RELACIÓN
das viagens daqueles dois geógrafos, traduzindo, no tocante às
terras ultramarinas, o conceito claro da metrópole. E deletreando-a,
e ajustando-se-lhe os dizeres ao mapa, verifica-se que a Audiência de
Charcas, partindo das linhas naturais, invariáveis, da cordilheira
de Vilcanota, nas extremas do bispado de Cuzco, pertencente à de Los
Reyes, e dilatando-se para o sul até à de Buenos Aires, estendia-se

pelo oriente “hasta el Brasil sirviéndole de términos
el meridiano de demarcación”.

Um meridiano, uma linha astronômica indeterminada, a desatar-se para
o norte até ao mar, defrontando os países lusitanos.
Não se fala no Peru, propriamente dito, malgrado o elastério
do Vice-reinado. As terras colindantes com os portugueses, no quadrante de
N E., mais uma vez pressupunham-se depender da jurisdição de
Charcas. E foi, sem dúvida, contemplando aquela carta que Alexandre
de Gusmão, em ofício de 22 de novembro de 1748, ao plenipotenciário
Visconde de Vila de Cerveira, assentava, subordinando-se às noções
da época:
“…que o rio Guaporé se deve reputar o mesmo que os missionários
de Moxos chamam de São Miguel, e que os navegantes das Amazonas
apelidam da Madeira;
como também que todas as aldeias dos
Moxos e Chiquitos estão de aquele rio para o ocidente…
E, finalmente,
resulta que se não se pode apontar por aquela parte melhor confim do
que o mesmo rio, que já no Mato Grosso é caudaloso.”

Por esta forma começou a debuxar-se o Madeira como divisa geral entre
as terras brasileiras e Bolívianas.
Quanto à paralela, que se nomearia mais tarde de Santo Ildefonso, o
mesmo ministro, no mesmo papel, depois de observar que:
“em todo o espaço de terras que medeia entre o Madeira e o Javari
não podia ter lugar a regra de que as vertentes que baixassem para
o rio das Amazonas pertencessem a Portugal”,
porque
“deve saber-se que o rio dos Purus e outros que continuam até
ao Javari principiam desde a província dos Charcas”, adotou
“o arbítrio de seguir só na vizinhança da margem
ocidental do Guaporé, ou Madeira, ou cume de montes, que medeiam
entre o Mamoré e o rio das Amazonas, escolhendo depois para baliza
os rios que mais se chegarem no seu curso aos rumos de leste e oeste, para
se irem incorporar no dos Purus e nos outros superiores a ele…”
Aqui rebrilha uma visão, instantânea, de gênio.
Resulta destas palavras que os limites se não traçaram pelas
divisórias naturais das cabeceiras do Purus, e de outros que baixassem
para o Amazonas, porque a geografia absurda do tempo lhas deslocava, exageradamente,
para o sul. Gastaram-se 153 anos para restaurar-se o pensamento longínquo
dos antigos negociadores; e corrigir-se um erro.
O Tratado de Petrópolis, na sua estrutura sem frinchas, representava-se,
em largos lineamentos, no passado. E um exemplo admirável da nossa
continuidade histórica.

Mas reaviemo-nos. Naquelas frases denuncia-se a incerteza geográfica;
mas o pensamento dominante é seguro: lindavam-se, naquele trecho, os
domínios portugueses e as missões de Moxos, da maneira a mais
geral, em todo o correr do rio Guaporé ou da Madeira. O que se nomeia
é a província de Charcas; o que se especializa, no ocidente,
são as suas célebres reduções.
É um princípio invariável.
Transcorridos dois meses reproduzia-o, noutra nota (8 de fevereiro de 1749),
o notável Escrivão da Puridade, dirigindo-se ao mesmo titular:

“O pais que medeia entre o rio das Amazonas e a província
dos Charcas é
ideal e sem mais fundamento do que saber-se que
os rios grandes que deságuam no das Amazonas vem daquela parte e que
cordas de serras que vão acompanhando o Amazonas.”

E aditava-se que, malgrado isto, “não seria acertado que por causa
de uns desertos tão desvaliosos se suspendesse a conclusão de
um negócio tão importante a ambas as coroas”.
É evidente: entre as paragens lusitanas, do Amazonas, e a província
de Charcas,
havia uns desertos tão imprestáveis que não
poderiam ser obstáculo ao remate das negociações: um
desmedido res nullius, onde se riscaria, sem temores, a barreira
imaginária, predestinada a todos os deslizes, a todas as cincas e a
todas as diabruras de todos os doutores em atrapalhações geográficas.
Realmente, naqueles dizeres pontilha-se a famosa linha, que seria a de Santo
Ildefonso – a que se apegam, agora, os peruanos, como se fosse possível
agarrar uma sombra – trazendo desde o princípio, como estamos vendo,
os mais explícitos sinais de ser uma divisória entre a Audiência
de Charcas e as terras amazônicas, entre a Bolívia e o Brasil.

Continuemos a rastrear as negociações. Em 16 de maio de 1749,
outro grande ministro, Marco Antônio de Azeredo Coutinho, interveio
no debate; prolongou o pensamento de Alexandre de Gusmão; e no balancear
anterior proposta do governo espanhol, que sugerira o alvitre de lançar-se
aquela raia “a quarenta léguas pouco mais ou menos do rio das
Amazonas”, indicou ao plenipotenciário Cerveira outro meio mais
expedito:

“… e vem a ser que entre os dois rios da Madeira e Javari corram linha

leste-oeste em tal altura que fique repartido por igual aquelas terras
desconhecidas,
de sorte que desta linha à cidade, povo ou missão
que se achar mais setentrional no distrito do Governo de Santa Cruz de la
Sierra fique tanta distancia como da boca do rio dos Purus.”
O pensamento, acima exposto, acentua-se. Santa Cruz de la Sierra é
o nome mais tradicionalmente boliviano que se conhece. Deste modo, foi na
Audiência de Charcas que se encontrou o primeiro ponto fixo, a primeira
situação de equilíbrio em tantas vacilações.

Os terrenos repartir-se-iam por igual; e, certo, portugueses e espanhóis,
naquele tempo, não compreenderiam que, depois de estabelecidos tais
limites, se insinuasse por ali, ajustando-se-lhes, estreitíssima, pela
parte do sul, a estirar-se por mil e quinhentos quilômetros até
chegar ao Madeira, um tentáculo apreensor da longínqua Audiência
de Los Reyes. Porque não se lhe contrapunham apenas estes dizeres expressos
na nossa língua. Tolhiam-na juízos ainda mais precisos, expostos
em lídimo castelhano. Contravinha-lhe a própria Majestade Católica,
pelo órgão de seu mais rígido ministro.
Realmente, Carvajal y Lancaster, num Largo Proemio de todas las pretensiones,
depois de estudar a fronteira até ao Guaporé, propôs:

“Artículo 12 – Desde el término de la dicha línea
en la margen meridional del Guaporé continuará la frontera por
el medio de este rio
hasta los montes que median entre la provincia o
distrito de las misiones de los Mojos y el rio de las Amazonas…
Artículo 13 – Desde los montes referidos continuará la raya
por lo mas alto de ellos de suerte que las vertientes que desaguaren en el
Mamoré o eu otros rios que tal vez entren en el Guaporé, o de
San Miguel, pertenezcan a la corona de Es pana, y las vertientes que desaguaren
en el rio de las Amazonas, o otros que más abajo de los dichos montes
tal vez entren en el dicho rio San Miguel, pertenezcan a la corona de Portugal.
Continuando por las cumbres de los dichos montes y por los rios que más
se avecíndaren en su curso a los rumbos del Este e Oeste para incorporar-se
con los rios de los Purús, Coary y otros,
que bajan de la provincia
de Charcas a desaguar en la margen austral deI Amazonas, correrá
la frontera por el medio de las dichas cumbres y rios hasta el rio Javary..
.”

Não há disfarçar-se o significado destes artigos, em
que se repetem, à saciedade, os nomes, num propósito de clareza
absoluta.
Antes de considerá-los, porem, notemos, de novo, que o deslindamento
pactuado em Petrópolis, a 17 de novembro de 1903, mais uma vez se projetou,
em seus contornos gerais, naquele longínquo passado. Quem quer que
procure ajustar a uma carta moderna aquela proposta, submetida de um modo
tio frisante às linhas naturais dos cerros e rios referidos, pouco
se distanciará dos limites definitivamente estabelecidos, hoje, entre
o Brasil e a Bolívia. Com efeito, se se efetuasse a indicação
de Lancaster, os comissários teriam de locar a divisa a partir das
cercanias da confluência do Abunã. Era inevitável. Dali
para as bandas de N. O. expande-se, nivelada, a Amazônia, sem o ondular
da mais ligeira serrania, até ao grande rio. Deste modo, a divisória
seguiria para oeste, justapondo-se aos terrenos mais altos das vertentes que
derivam para a margem esquerda do Beni; prosseguiria pela corda de pequenos
montes, que W. Chandless revelou entre o Acre meridional e o Madre de Dios;
alongar-se-ia por ela até à série de colinas, em que
se arqueiam as bacias de captação do Puros e do Juruá;
e dali, infletindo para o norte, pela crista dos cerros encadeados de Contamana,
iria rematar, como se remata hoje, nas cabeceiras do Javari. A dedução
é rigorosa. O alvitre, a princípio aventado pelos portugueses,
depois pelos castelhanos, se não o invalidasse a inópia de conhecimentos
geográficos, teria removido tio longas controvérsias; e o litígio
atual não existiria.
Mas não nos desviemos. Seja como for, resulta daqueles artigos que
o pensamento de Carvajal y Lancaster consistiu em dispor a divisa entre o
Madeira e o Javari “desde los montes que median entre las provincias
de Mojos y el rio de las Amazonas”.

Nem se refere mais às terras não descobertas. Incluía-se,
logicamente, naquelas províncias. Eram o seu prolongamento natural,
geográfico, histórico, como vimos, e, afinal, político,
como veremos.
Tais limites, pelos motivos precitados, não se firmaram. Mas o critério
que os inspirou, firmou-se: a linha leste-oeste projetou-se entre as possessões
portuguesas e a Audiência de Charcas, pelo seu distrito mais setentrional,
de Moxos.
Não há fugir-se à evidência que se avoluma, e se
consolida, tornando-se, ao cabo, esmagadora.
Em 22 de novembro de 1749, iam adiantadas as negociações; e
Alexandre de Gusmão, no balancear as últimas propostas castelhanas,
depois de considerar vários inconvenientes, que se lhe antolhavam,
rematava com esta alternativa:
“De qualquer porção de terra que pretendêssemos em
outra parte resultaria avizinharmo-nos mais ou das províncias de
Charcas ou das de Quito
.”
A exclusão da Audiência de Los Reys era, como se evidencia, completa.

O negociador português apresentou, ao cabo, os últimos reparos
ao projeto espanhol:
“As palavras – situado en igual distancia poco más o menos
del rio Maranón y de las misiones de Mojos –
deixam este lugar
em muita incerteza porque as missões de Mochos são muitas
e ocupam grande espaço de norte a sul.
Para evitar ambigüidade
parece que será mais conveniente estabelecer-se fixamente o ponto do
meio entre o rio das Amazonas e a boca do Mamoré, ou a missão
mais setentrional dos Mochos; porque desta sorte terão os comissários
regra certa para se determinarem. E assim parece que deve dizer o artigo:
Situado en igual distancia del citado rio Maranón o Amazonas; y
de la boca del dicho Mamoré y desde aquel paraje continuará
por una línea este-oeste hasta encontrar con la ribera oriental dei
rio Javary…”

Assim se engenhou a linha, que foi a de Santo Ildefonso, e é hoje a
maior base das pretensões peruanas. Entretanto, ainda neste ultimar-se
das deliberações, ressalta, com evidência deslumbrante,
o direito da Bolívia. As suas missões setentrionais, de Moxos,
não são apenas as únicas que se interessam no debate;
esclarecem-se; são muitas e ocupam grandes superfícies de
norte a sul…

Ressurge a dedução que agitamos desde o princípio desta
análise. Repitamo-la, inalterável, no termo de um raciocínio
firme, em que a volta a considerações ditas e reditas, insistentes,
esmoedoras, triturantes, impõem-se como o próprio volver dos
dentes de uma engrenagem rigorosamente calculada: os limites da Audiência
de Charcas, naqueles lados, iriam até aonde fosse a linha demarcadora
de Portugal e Espanha.
A lei do L. 2o da Recopilación, de 1680, reproduzia-se, inviolável,
decorridos setenta anos, no parecer uniforme dos negociadores do Tratado de
1750. E a admirável diretriz histórica da Bolívia persistia
sob a sanção de um pacto internacional.
É natural que daí por diante o seu desdobramento se tornasse
ainda mais inflexível.

*

Desde que se realizou o Tratado de 1750, a expansão portuguesa, contida
nos rumos do ocidente, derivou com maior ímpeto para o norte, pelas
estradas naturais do Mamoré e do Madeira. Desenham-na, os pontos determinantes
de fundações perfeitamente definidas. Baste recordar-se a de

N. S. da Boa Viagem,(1) onde se aldearam os índios pamas, erecta,
em 1758, nas cercanias da cachoeira do Girau (9º 20′ 45″ 7 lat.
sul; 65º 04′ 42″ long. O. Greenwich).
Aí estio duas coordenadas astronômicas e uma data que, nesta
concisão numérica, valem muitas páginas eloqüentes.
Dizem, com o inflexível rigorismo destes números a travarem-se,
nítidos, no tempo e no espaço, que a posse portuguesa, efetiva,
naquelas paragens do Madeira, é uma vez e meia secular. Estabeleceu-se
há cento e quarenta e cinco anos. .. e está cento e setenta
quilômetros ao sul da singularíssima latitude (6º 52′ 15″)
das pretensões peruanas’
Ora, neste expandir-se, encalçou-a a influência boliviana. Faltou-lhe,
sem dúvida, um historiador. Não teve, também, os decisivos
efeitos de uma posse definida. Mas nos nossos antigos anais repontam as mais
inequívocas referências a um largo entrelaçamento entre
o trecho encachoeirado do Madeira e as missões de Moxos. Não
os citaremos. Por abreviar, continuemos pela magistral dos acontecimentos
que se não iludem, que não podem torcer-se, e impõem-se
por si mesmos, sem requintes de linguagem, maciçamente, com a estrutura
ciclópica de seu próprio peso.
O Tratado de 1750, com ser um pacto definitivo, e em parte executado pelo
implante dos marcos no Paraguai e foz do Jauru, foi efêmero. Malignou-o
a animadversão do Marquês de Pombal. Cancelou-o, em 1761, o Tratado
do Prado. De sorte que, num grande refluxo de trezentos anos, resvalaram as
duas metrópoles à imaginosa constituição territorial
de Tordesilhas – e os limites da Audiência de Charcas, de novo indefinidos,
debuxaram-se, outra vez, consoante à Recopilación das
Índias, marginando, indeterminadamente, o desmedido do meridiano demarcador.

Então, ao revés do movimento expansionista lusitano, que no
seu desencadear-se irrefreável para o ocidente motivara o Tratado de
1750, despontou a vigorosa expansão boliviana, desfechando para o norte
a buscar o Madre de Dios, pelas trilhas pacíficas dos missionários
de Santo Antônio de los Charcas, e para o levante, militarmente, num
enérgico revide contra os antigos adversários.
A história inverteu-se. Pela primeira vez, após três séculos
de recuos, a metrópole castelhana enterreirava a portuguesa, na América.
A Audiência de Charcas, sempre invadida, transfigurou-se numa reação
vigorosa; e o Mato Grosso, onde durante largo tempo se armaram os arraiais
dos invasores, foi teatro de uma defesa desesperadora contra os que o ameaçavam.
Em toda a lonjura das suas fronteiras ocidentais, intercisas, batia a tropeada
das guerrilhas, e “vociferavam ralhos castelhanos”. Os nossos fastos
são, neste lance, explícitos; todos os cronistas, acordes; e
se nos delongássemos, copiando-lhes as páginas comoventes, desenrolar-se-ia
o quadro de uma das maiores campanhas dos tempos da colônia.
“Será memorável o ano de 1763 pelas circunstâncias
da guerra que nos quiseram fazer os castelhanos, aliás os jesuítas
da província de Moxos…”
(2)
Assim inicia um deles a narrativa dos casos extraordinários que se
desenrolaram até as vésperas do Tratado de 1777.
Não foram algaras violentas e céleres, surgindo, devastando,
desaparecendo; senão uma guerra, que ainda em 1766 exigia socorros
urgentíssimos dos governos remotos, do Rio de Janeiro, Minas Gerais,
São Paulo e até do Pará, aos reclamos de D. Antônio
Rollin de Moura, Governador da capitania ameaçada.
Os ranchos bolivianos, ameaçadores, armavam-se da foz do Mamoré
a do Itonamas.
Mobilizaram-se os corpos de ordenanças, de dragões, e os pedestres;
paralisaram-se as minas; arregimentaram-se os aventureiros destemerosos; e,
num galhardo lance de misticismo heróico, confiando, solenemente, à
N. S. da Conceição, o bastão do comando na luta que se
abria, o austero capitão-general “com o mesmo espírito
e valor de D. João de Castro em Diu”, como nos diz o edificado
cronista, arremeteu com os inimigos, proclamando que “os portugueses
nunca eram poucos, porque sempre lhes sobravam os ânimos, os braços
e as espadas”.
E feriram-se combates, numerosos, mortíferos, insistentes…
O arruído das batalhas ecoou na Espanha; e mais uma vez, em documento
soleníssimo, a metrópole consagrou o domínio da Audiência
de Charcas naquelas terras agitadas.
A Cédula Real de 15 de setembro de 1772 resultou, com efeito, destes
sucessos alarmantes, delatados ao Conselho das Índias pelo Bispo de
Santa Cruz de la Sierra – e teve como objetivo essencial o garantir as divisas
espanholas ao longo do Madeira, desde o trecho encachoeirado, até
as origens do Guaporé.
Registre-se-lhe es te período dominante:
“Con motivo de este expediente se ha discorrido lo mucho que conviene
celar en el distrito de la Provincia de los Mojos el rio llamado Mamoré
que desciende de S. C. de la Sierra y Mojos hasta internarse en los establecimientos
de Portugal donde llaman los naturales el rio de la Madera; y formar en esta
confinación,
pasados los saltos grandes, un pueblo de espanoles
con algún pequeno castillo, que sirva para asegurar mis dominios contra
las frecuentes incursiones. .. que causan los portugueses
internados
por este rio de la Madera…”
Assim, o rio Madeira, ao parecer da metrópole, constituia a fronteira
dilatada da província boliviana, de Moxos; e ao Presidente de Charcas
ou, mais especialmente, ao Governador de Santa Cruz de la Sierra, impendia,
por determinação expressa, o dever de resguardar, ali, o território
castelhano, até além da zona encachoeirada, pasados los
saltos grandes.

Ora, o último destes, o de Santo Antônio, situa-se na latitude
sul de 8º 49″ 2″,6.
E mais uma coordenada rigorosa e significativa.
A metrópole submetia, iniludivelmente, à influência do
governo de Charcas todo o território ribeirinho, à margem esquerda
do Madeira, até quase à média distância indicada
nos delineamentos anteriores.
Vejamos como este pensamento se destaca, avolumando-se, em todos sucessos
ulteriores.

Capítulo IV

Destaque-se um fato capital.
Quando se realizava aquele revide contra os portugueses fronteiriços,
de Mato Grosso, a metrópole castelhana decretou a expulsão dos
jesuítas (1767), episódio culminante do reinado liberal de Carlos
III, que paliou por alguns decênios a decadência irremediável
de Espanha.
Mas a medida foi artificial e vã. Era-lhe de todo estranha a política
genuinamente espanhola, desde muito submetida à influência estrangeira.
A frente dos negócios, na Península, o Marquês de Grimaldi
era a sombra de Choiseul. As cédulas reais, de Madrid, minutavam-se
às vezes em Versailles.
Por isto o ato golpeante, ferindo em cheio as tradições nacionais,
foi violento e efêmero: um fluxo galvânico de política

artificial; ou uma verdadeira revolução par en haut. Embaixo,
a nacionalidade toda, sucumbida, reagia de uma maneira humilde e formidável:
com as missas, com as penitências e as procissões solenes; com
as atitudes cada vez mais abatidas, ou genuflexas, e as mãos inermes,
enclavinhando-se nas rezas, ou espalmando-se nos mea culpa consagrados…
Ao mesmo tempo que os graves doutores, na terra clássica das sangrias,
caturravam negando a circulação do sangue, mais de um século
depois de Harvey; e a Universidade de Salamanca, abóbada da cultura
castelhana, restaurava, platonicamente, o sistema de Aristóteles, repelindo
em público as teorias de Newton por destoarem da religião revelada.

Não maravilha que, apenas transcorridos vinte anos, a reação
irrompesse com a beatice furiosa de Carlos IV, e varresse, de pancada, todos
os enfeites de uma emancipação prematura e decorativa.
Porém não na América. A linha superior da política
de Grimaldi, prolongada depois, até 1788, por Florida Branca, manteve-se,
inalterável, na maioria das circunscrições sul-americanas;
e, principalmente, na de Charcas, que entretanto sobre todas se afigurava
uma feitura dos jesuítas.
De fato, fora o padre quem lhe aumentara o território. Enquanto as
decisões da metrópole lho expandiam, como vimos, no levante,
até ao médio Madeira – ele não só lhe fixava neste
lado o elemento indígena, como pelo Outro, no ocidente, lho dilatava
nas campanhas obscuras da catequese, por todo o trato da Amazônia que
se desata para N .O., da margem esquerda do Beni em rumo do Ucayali, onde
se iniciaram as missões Apollobamba, predestinadas a irradiarem sobre
as paragens em que se incluiria mais tarde o Território do Acre.
E o batedor pacífico dos desertos não se limitava a descobri-los.
Assistia em todos os misteres as sociedades nascentes. Era o médico,
o confessor, o juiz; o engenheiro que lhes abria as veredas e lhes locava
as cidades. Por fim o tático que as conduzia à luta. Viram-no
cair, por vezes, na batalha. Na guerra de 1763-86, contra os portugueses,
por exemplo, tombara o jesuíta Francisco Xavier, “que era o verdadeiro
comandante”, no dizer sincero de um cronista.
Entretanto, em que pese a este caráter profundamente religioso, as
“reduções” nasciam com os mais vivazes gérmens
democráticos. Releve-se a antinomia da frase: as fundações
jesuíticas na Bolívia foram uma vasta teocracia municipal. Pelo
menos em nenhum outro ponto o singularíssimo dizer – República
Jesuítica – foi mais compreensível. O missionário afrontava-se
com o bravio das matas nunca percorridas; reunia os selvagens erradios; catequizava-os;
disciplinava-os, adestrando-os para a defesa; aparelhava-os para a vida, instruindo-os
nos rudimentos do Governo, ou guiando-os na administração de
pueblos; e rematava todos esses esforços, deixando-os. A missão
desaparecia ao fim de um prazo de dez anos, prefixo pelas leis. A redução,
integrando-se na diocese mais próxima, extinguia-se na amplitude da
existência civil; a tribo transfigurava-se em civitas; a maloca
transmudava-se em vila; o pároco substituía o apóstolo;
o corregedor substituía o cacique. E o jesuíta reaviava-se às
trilhas dolorosas do deserto, em busca de outras selvas e de outros infieles,
retravando, obscuramente, nas solidões ignoradas, a sua imensa
batalha sem ruídos.

Deste modo, compreende-se que ele desaparecesse e o seu esforço ficasse;
e também ficasse, sobretudo na região que se considera (a partir
da orla povoada que ia de Exaltación e Cavinas para o norte) uma sociedade
nova e robusta, apta a prolongar-lhe a tarefa secular, transformando as missões
religiosas numa grande missão política, obediente ao mesmo rumo
intorcível e persistente para o norte.
E o que demonstram os sucessos imediatos à Cédula Real de 15
de setembro de 1772, acima nomeada.

*
Infelizmente é preciso ainda citar e transcrever.
Os documentos que revimos, e vamos rever, são monótonos. Volvem
e reviram os assertos; deformam-nos em numerosos incidentes, repisam-nos,
redizendo-no-los na inaturável iteração do estilo característico
da época, ou, melhor, da raça. P. Groussac denunciou-o numa
das suas belíssimas monografias: a redundância domina o conceito
do estilo castelhano. E um defeito originário, “análogo

ao paralelismo dos hebreus”, que transluz tão sobradamente
fatigante nos versículos reiterativos da Bíblia.
Daí o exaustivo desta análise, forçada a prosseguir ajustando-se
aos acidentes da história colonial, relatados pelos seus próprios
atores.
Não há outro processo. Para concertarem-se juízos não
valem primores de linguagem, ante os velhos dizeres, cheios de tão
esplêndida rudeza. E indispensável ainda uma vez ouvi-los. Escutando-os,
quase sem os comentar, concluímos que os debates de 1750, completados
pela Cédula Real de 1772, destacaram, em plena luz, a ingerência
exclusiva do Governo de Charcas em todo o N . E. dos domínios espanhóis,
do Guaporé ao médio Madeira. A evolução da autonomia
boliviana, deduzida a princípio no elastério de um raciocínio
teórico, ressaltou, afinal, de observações precisas.
Induziu-se. Mas é necessário demonstrar que ela foi contínua
até à quadra da independência; e, sobretudo, que se ampliou,
em grande parte, pelo outro quadrante de N .O.
Arquivam-se, felizmente, notáveis documentos quanto a este ponto.
Em 1774 um longo memorial, provindo da Audiência de Charcas (ou de la
Plata), foi confiado ao parecer do Conselho Extraordinário da metrópole.

Subscrevia-o o coronel de cavalaria, D. Bartolomé Berdugo, esperto
vaqueano daquelas regiões, que ali andara longo tempo e lhe batera
as fronteiras nas últimas refregas de Mato Grosso. Conhecia a terra.
A sua exposição revela, em todo o correr do discurso, extensíssimo
e analítico, um intento: mostrar a “lamentable ruina de las
provincias de misiones Moios y Chiquitos, que estuvieron a cargo de los regulares
jesuitas expulsos”
– um nobre objetivo:
“Afianzar aquellos terrenos que tanto codician las rayanos porsa
gueses” (los sagaces portugueses de Cuiabá!) –
e por fim
um meio: “a criação de governos político-militares
para regerem as duas províncias, “cada una de cosa de cento
e cincuenta leguas de jurisdición”, ficando
os governantes
sujeitos “al de Santa Cruz en lo militar, y a Charcas en lo politico
y civil”.
(1)
Estes extratos surpreendem. Não há iludir-se-lhes o significado
dominante: as gentes da circunscrição longínqua indicavam,
por si mesmas, à monarquia espanhola, os elementos formadores de seu
novo aparelho político, e reclamavam uma reorganização
urgentíssima, em que incidiam imperiosos antecedentes históricos.
Preposteravam todo o processo administrativo colonial. A Audiência superpunha-se
à Metrópole; e a Metrópole, que vimos a princípio
submeter-se à fatalidade física da terra, teria de dobrar-se
às energias sociais que ali se congraçavam.
O memorial de Berdugo começou para logo a penitência dos trâmites
complicadíssimos, em que se apuravam as células reais: foi ao
Conselho Extraordinário; passou ao exame individual dos ministros;
saiu para as mãos dos Fiscais do Peru e de Nova Espanha; discutiu-se
em varias “salas plenas” do Conselho das Índias; e miudeado,
ou esclarecido, linha por linha, nos mais íntimos refolhos, subiu,
afinal, ao rei. O debate durou três anos; e foi, relativamente, breve.
Porque ali se ampliou o notável destino político da Bolívia
e se descreveu, embora virtualmente em parte, o vasto teatro em que ele se
desenrolaria.
Proclamaram-nos, um e outro, austeras vozes antigas. Procuremo-las. Não
se corrompem testemunhas, isoladas das nossas pequeninas vidas, dentro da
História.
O primeiro a ajuizar na causa foi D. Pedro Rodriguez Campomanes, o polígrafo
surpreendedor que tentou fazer de um livro, Apéndice a la Educación,
um reagente enérgico e admirável para debelar a decadência
de seu país. Era, ao mesmo tempo, um estadista. O seu parecer foi breve;
aprovou os alvitres de Berdugo; propô-lo para Governador de uma das
províncias; e caracterizou o regímen geral das Missões.
Mas o que se lhe desprende, irresistivelmente, das palavras, é o pensamento
da autonomia incondicional da Audiência, que por uma ficção,
ou fenômeno típico de inércia governamental, continuava
adscrita às ordens do Vice-reinado de Lima. De fato, Campomanes sugeriu
que todos os atos concernentes à economia e restabelecimento daqueles
povos dependessem, sobretudo, do Presidente e Audiência de Charcas,
em virtude de la gran distancia del Virrey deI Perú.
Ora, esta idéia, levemente emitida, avolumou-se, e sobranceou, por
fim, todo o debate.
O memorial saiu-lhe das mãos para as de dous notáveis, o Marquês
de Val de Lírios e Dom Domingos Orrantia; e estes, divergindo em pormenores,
acordaram nestas afirmativas:
‘La distancia de Lima a Mojos es de cerca de 800 leguas de mal terreno.
Aquellas misiones
siempre han corrido sujeitas inmediatamente al
Gobierno de Charcas… Con esta consideración aun que se tubo
por conveniente encargar aí Virrey providencias sobre estos assuntos,
se le ordenó que lo hiciese con prudentes informes de aquel
Presidente… Pero que podrá adelantar su celo con estos informes,
si no tiene otros conocimientos y livres para acertar en su discernimiento?

E remataram, de maneira imperativa:
“Al presidente, audiencia y obispado de Charcas ha de se fiar todo
el negocio… El conocimiento de aquellos terrenos y su inmediación
hace fáciles las noticias, prontos los recursos y oportunas las providencias;
aun cuando vengan del Virrey las más acertadas, siempre la lentitud
es un inconveniente, que a veces hace irreparables los perjuicios…
“(2)

Assim, a metrópole, pela pena de seus mais proeminentes ministros,
desfechava as derradeiras pancadas na influência combalida do Vice-reinado
peruano.
Os ministros foram além. Previram o desenvolvimento futuro daquelas
paragens. De sorte que, embora não se tratasse de matéria explicitamente
incluída no expediente, se voltaram para as terras setentrionais, para
as velhas provincias no descubiertas, que se reconheciam de um modo
vago com o nome de Apollobamba confiadas então aos missionários
da ordem de São Francisco de los Charcas, e que hoje formam, de um
modo geral, a zona litigiosa.
Definiram-nas:
“Estas misiones se hallan situadas en los confines de la de Larecaja,
por donde se entra a éllas, aun que su primer pueblo distará
de ellas más de 400 leguas; por la parte occidental lindan con el rio
Beni cuya opuesta orilla pertenece a las misiones de Mojos.”

Há visível exagero na distância que, a ser exata, estiraria
as terras de Apollobamba até a Colômbia. Mas o erro serve a indicar
o conceito que se fazia delas. Eram, certo, vastíssimas. Como quer
que seja, a região desmesurada e vaga, acerca da qual se tem escrito
um sem-número de páginas, com o efeito único de a tornarem
ainda mais apagada e dúbia – mas que se estendia por todo o norte boliviano,
de onde se destacou o Acre – foi, expressamente, incluída na jurisdição
de Charcas.
“El Gobernador de Mojos puede serlo de Apollobamba.”
Opinaram, por último, os dous ministros. E três meses depois,
a 2 de julho de 1777, o Fiscal do Peru, isto é, o ministro especial
que entendia diretamente dos negócios sul-americanos, assentia:
“Y que en orden a lo apuntado por los Senores Marqués de Valdelirios
y Orrantia, relativo a las misiones de Apollobamba, será muy conveniente
se encargue su examen
al Presidente y Audiencia de Charcas.”
Conclui-se, positivamente: ao mesmo passo que esta se constituía, mais
e mais autônoma, investia-se na posse virtual dos amplos territórios
que lhe demoravam ao norte. A importância do hinterland das
possessões espanholas, sobrelevou-se, então, inesperadamente.
À medida que transitava de um para outro titular, o memorial de Bartolomé
Berdugo ia sugerindo novas indicações e alvitres. Os informes
acumulavam-se, em rimas, e com eles ia crescendo o edifício político
da Bolívia, acentuando-se os lineamentos gerais que se debuxaram em
tão remoto passado.
A 12 de novembro do mesmo ano (como se vê, vamos marchando cronologicamente,
sem preposterar uma data única) o dictamen do outro Fiscal,
de Nueva España, completou e avivou a idéia que se planeara
e se desenvolvera nos anteriores. Depois de descrever as críticas circunstâncias
daqueles países, “circumbalados de enemigos ambiciosos y sagaces”,
traçou um interessante quadro de reformas urgentes: construção
de fortes nos trechos mais apropriados a cobrirem as terras; estabelecimento
de colônias nos pontos mais vantajosos; escolas táticas de exercícios
militares, sistematizando a aprendizagem da guerra e o destemor dos perigos;
e, por último, um Governo político, no significado mais amplo,
“con todos sus ramos y demás dependencias de él”,
por maneira que com o tempo as mesmas províncias pudessem ocorrer
às suas próprias necessidades, à sua conservação,
ao seu aumento territorial e ao tráfico de suas raras riquezas naturais.

Por fim, enfeixou todas as medidas deste programa, quase revolucionário
para aquela época, propondo:

“…establecer un Gobierno y Capitania General en aquella frontera
que abrace, no solamente las misiones de Mojos, que hoy se consideran las
más expuestas, sino también la de Baures y Chiquitos sin excluir
la ciudad de Santa Cruz de la Sierra… fijando el
Gobernador y Capitan

General su domicilio en uno de los pueblos mis a propósito de
la dicha misión de Mojos…”

Releiam-se estas linhas, copiadas sem o discrepar de uma letra. Aí
está, visivelmente, a repontar, às claras, não já
uma Audiência revestida de excepcional autonomia, senão um verdadeiro
Vice-reinado, ou, pelo menos, um governo tendo um chefe condecorado com o
mesmo subtítulo pomposo dos Vice-reis (D. Pedro Cevallos, ao assumir
o Vice-reinado de Buenos Aires, tinha o posto imediato, e inferior, de tenente-general).

Então – evidentemente – o Governo de tal porte, que ali se devera implantar,
limitado ao sul pela latitude de Santa Cruz de la Sierra, não poderia
extremar-se ao norte apenas pela de Exaltación, ou de Reys.
Fora incompreensível tão imponente criação em
área tão exígua. A ilação é rigorosa:
o pueblo de Moxos, onde se erigisse a sede administrativa, deveria
ter, necessariamente, uma posição mais ou menos central entre
os limites meridionais indicados e os que se traçassem ao norte. E
neste caso, comprova-o o simples olhar sobre qualquer mapa, estes passariam
pelas extremas das atuais paragens litigiosas.
Seja como for, porém, a direção suprema da política
espanhola, na América, deslocara-se, transmontando os Andes, para o
levante.
O Conselho das Índias ratificou a suma dos informes apresentados, propondo
que se instituíssem os governos politico–militares de Moxos e Chiquitos,
sob a autoridade exclusiva da Audiência de Charcas. E como esta resolução,
por um requinte de resguardos, fosse ainda uma vez sujeita ao juízo
de Campomanes, antes de subir ao beneplácito régio – o notável
pensador, em ofício de 3 de maio de 1777, frisou, corrigiu, ou esclareceu,
os seus trechos principais. Ampliou o teatro da campanha defensiva, desenvolvendo-o
para o sul, até ao Pilcomayo e ao Chaco. Assim, a seu parecer, não
era bastante que os invasores fossem repelidos nas regiões limítrofes
de todo o norte boliviano:
“no basta contenerlos por el lado septentrional de Mato Grosso…

Note-se a valia da frase, defrontada com os assertos anteriores. É
ilativo que os governos recém-criados atenderiam, claramente, sem restrições,
não já somente à defesa da faixa oriental das fronteiras,
senão também à de toda zona setentrional de Mato Grosso,
onde se incluíam, naturalmente, as terras desconhecidas, que se estiravam
da margem esquerda do Madeira para o poente.
Pedro Campomanes, sugerindo a formação de idênticos governos
nos territórios do Chaco, declarava, de maneira explicita, que o problema
estava resolvido em toda a banda do norte, onde se firmava o papel
político e militar da Jurisdição de Charcas. Destacou-o,
ao cabo, revestido da mais completa autonomia. Disse: todas aquelas medidas,
em que se incluía até um programa científico de explorações
geográficas, com o levantamento de cartas e plantas das paragens novas
– ou províncias desconhecidas – deveriam efetuar-se sob a direção
exclusiva da nomeada audiência, “‘sin que el Virrey del Perú
tenga intervención alguna en estas dos provincias de Mojos y Chiquitos”.
(3)

Foi o desfecho. De tudo isto ressalta a própria impossibilidade material
de subordinar-se os vastos territórios do levante ao governo que assistia
em Lima. Ultimara-se um divórcio, imposto, desde o princípio,
pela fatalidade física, tangível, das distâncias e das
cordilheiras. A influência do Vice-reinado peruano, que hoje se pretende
inexplicavelmente restaurar, extinguia-se, sem transpor os Andes para o oriente,
em pleno regímen da colônia.
Além disto, destas resoluções, legalizadas logo depois
pela Cédula Real de 5 de agosto de 1777, que as reproduziu, não
decorre apenas aquela autonomia no gerir as terras fronteiriças. Ressalta
a capacidade legal para dilatá-las sobre as demais, desconhecidas,
que demorassem ao norte. Revela-no-lo o mesmo austero Fiscal, em ulterior
comunicação ao Presidente do Conselho das Índias. Referindo-se
à urgência de estender-se a defesa dos domínios castelhanos
até às missões de Maynas e Omaguas, no extremo noroeste,
por igual invadidas pelos portugueses, afirmou que aquelas fundações
remotas, a missão de Maynas e a de Omaguas, à margem do Amazonas,
“se dan las manos con las de Mojos y las que administran los franciscanos
sobre el rio de Ucayali”.
(4)
Deste modo, no pensar dos homens mais lúcidos da época, as províncias
de Moxos, com o seu prolongamento natural, de Apollobamba, dilatavam-se na
amplitude das planuras do N .O. até quase às ribas de Ucayali.

Não há cartas mais ou menos artísticas, e mais ou menos
falsas, ou inextricáveis divagações engravescidas pelos
dizeres dúbios de velhíssimos documentos, que mascarem a tese
vitoriosa em todo o debate anterior: na órbita expansiva da Audiência
de Charcas, ou de La Plata, cada vez mais ampla e mais autônoma, iam
caindo e gravitando as terras que se desatam da margem esquerda do Madeira
à direita do alto Javari, do território em litígio, onde
se encravam as prefeituras brasileiras do Acre, do Purus e de Juruá.

*

Ultimem-se os argumentos com uma prova prática, positiva e clara.
Logo depois destes debates celebrou-se o Tratado Preliminar de 1 de outubro
de 1777, que copiou, de um modo geral, os deslindamentos de 1750. E a metrópole
castelhana, para maior acerto nas demarcações, determinou, por
Ordem de 24 daquele mês, que, nos vários segmentos da enormíssima
divisa, corressem os trabalhos sob a direção de “los
respectivos gobernadores de las mencionadas fronteras”.

Constituíram-se, então, quatro partidas, que se modelaram pelas
Instrucciones de la Corte, prescrevendo-lhes os deveres.
Ora, para a terceira delas, destinada a atender aos deslindes desde a boca
do Jauru, pelo Guaporé, Mamoré e Madeira, até a margem
oriental do alto Javari, foi nomeado segundo comissário, chefiando-a,
o Governador de Moxos e Apollobamba, D. Ignacio Flores.
As instruções são precisas:
“… estando ya mandado anteriormente se eche mano de los gobernadores
rayanos a la frontera, puede el Gobernador de Mojos y demás individuos
que deben componer esta partida reunirse en la cabecera de dicha provincia.
(5)
Mais tarde o Capitão-general de Buenos Aires, D. Juan Vertiz, em ofício
de 18 de setembro de 1778, ao mesmo delegado, insistiu, recordando o encargo
que lhe era imanente, como governador rayano ou fronteiriço, e
esclarecendo-o em todos os pormenores. Assim, os terrenos de Moxos e Apollobamba,
pertencentes ao governo de Audiência de Charcas, eram limítrofes
com os portugueses, “desde a margem esquerda do Madeira até ao
Javari”.
E indispensável uma última citação, que, ademais,
terá a vantagem de assentar, outra vez, um conceito firme, no tocante
à célebre semidistância do Madeira, tão errada
pelos modernos geógrafos peruanos, no calculá-la, como vimos,
a partir da confluência do Beni:
“…Queda a arbitrio de Vmd. el paraje que juzgue más propio,
para después unir-se con los portugueses en la confluencia que forman
los dos rios Itenez y Guaporé con el Sararé; en donde tiene
principio la demarcaciôn de esta tercera División,
que debe
continuar por el mismo Guaporé hasta más abajo de su unión
con el rio Mamoré y después por las aguas de estos dos rios
ya unidos con el nombre de Madera basta el paraje situado em igual distancia
del rio Amazonas y de la boca del dicho Mamoré, buscando el punto igualmente
distante en uno y outro extremo, y de éste,
continuar por una
línea del este-oeste hasta igual latitud en la ribera oriental del
rio Javary…”
E repete logo adiante, com a inaturável redundância característica
da época:
“De lo expresado se deja percibir que llegando esta División
a
la confluencia del rio Guaporé y Mamoré debe observar
con la mayor exactitud la latitud de este punto, y de la misma suerte
se debe practicar en la barra del rio Madera, pues, sabidas las dos latitudes,
es fácil saber la media entre ambas para dar el punto que determina
el Trtado. Esta latitud media será la que se deba buscar subiendo el
río Javary…”
(6)
Não é preciso prosseguir.
Destes documentos oficiais, autênticos, resulta que ao governador fronteiriço,
de Moxos, incumbia a direção do deslindamento até ao
Javari.

Consoante as instruções claras da metrópole ele era rayano
até aquele rio.
Até lá se dilatavam as províncias setentrionais
de Charcas. As conclusões resultantes do debate, que analisamos, acolchetam-se,
desta sorte, com as instruções categóricas, oriundas
de soleníssimo pacto internacional.
De um lado, vê-se que a influência, cada vez maior e mais autônoma,
da circunscrição que seria mais tarde a Bolívia, se estendeu,
em virtude de determinações expressas, aos territórios
que se alongam pela margem esquerda do Madeira, até além dos
grandes saltos, de outro, que toda essa estirada faixa de terras, se desenvolveu
depois, em vastas superfícies, para o ocidente.
Ao mesmo tempo em todas as resoluções, quer no reorganizarem-se
governos particulares, quer no longo processo dos deslindes internacionais,
ficou, sistematicamente, de fora, despojado das mais breves partículas
de autoridade, o Vice-reinado do Peru.
pelo menos singular que ele apareça, agora, feito condição
apta a pesar nas deliberações de um tribunal supremo, depois
de uma desvalia decretada há mais de um século.
Trata-se, evidentemente, de um argumento frágil e perigoso.
Arrebenta nas mãos dos que o agitam.

Capítulo V

Intercorrente com estes sucessos, instituiu-se, por Cédula Real de
1o de agosto de 1776, o Vice-reinado das províncias do Rio da Prata
e de Charcas: ou, como se chamou depois, de Buenos Aires. Atender-se-ia melhor
à verdade histórica, dizendo com o Visconde de Porto Seguro:
Vice-reinado e capitania geral de todas as províncias da Audiência
de Charcas.(1) Admita-se, porém, que devesse erigir-se, como se erigiu,
a sede do novo Governo, naquele antigo porto da jurisdição de
Trinidad: ele estava no limiar dos domínios castelhanos cisandinos,
e, pela sua própria situação, na foz do grande rio, que
os ladeava pelo oriente em cerca de quatrocentas léguas, centralizava
todas as comunicações marítimas com a metrópole.

Além disto, as contendas, que se renhiam em Mato Grosso e Bolívia,
velavam-se, de algum modo, perdendo-se nos recessos de seus longínquos
cenários sertanejos; ao passo que se distinguiam, mais vivas, à
ourela do continente – onde assumiram, desde 1762, com a tomada da Colônia
do Sacramento, uma feição ruidosa e teatral.
De fato, nas largas faixas de terrenos fronteiros a Buenos Aires, que debruam
a banda oriental do estuário platino e se desatam em plainos desempedidos,
ou ondulam em albardões pelo revesso das coxilhas, até à
ponta extrema de Maldonado, expande-se o mais concorrido campo de manobras
das nossas campanhas coloniais.
Não as recordaremos. Conhecem-se-lhes as formas várias e revoltas;
e sabe-se como irradiaram, depois, vertiginosamente, para o nordeste. As disparadas
das cavalarias tumultuárias estenderam-nas até ao Rio Grande,
onde se inaugurou o tirocínio militar, bravio, dos gaúchos.
Os combates, dispersos em recontros, céleres e multiplicados, encantam-nos
por vezes: a coragem e a destreza, a celeridade e a força, harmonizam-se
à maravilha naqueles esplêndidos torneios, que se alongam nos
arrancos das carreiras impetuosas, ou regiram e tumultuam, entrecruzando-se
nos torcicolos das escaramuças, sobre as arenas desafogadas do pampa.
Mas, raro um desfecho decisivo ultima-os. A unidade da luta extingue-se, esparsa,
nas façanhas individuais. Em toda aquela agitação não
se vê um soldado: vêem-se heróis, centenas de heróis,
generais de si mesmos, exercitando, aforradamente, as suas tendências
num regímen de cavalheirescas tropelias, que formaram, desde há
muito, naqueles lados, uma espécie curiosíssima do romantismo
da guerra.
A robusta infantaria espanhola, nascida da disciplina de O’Reily, e os admiráveis
terços portugueses, endurados pelo Conde de Lippe, ali contramarcharam
longo tempo, vacilantes e inúteis, partindo-se-lhes a retitude militar

nos giros estonteadores dos entreveros. A nova tática, nascida
da velocidade e do deserto, anulava-os. Desencadeava-se em cargas impetuosas
e recuos repentinos. Definia-se no choque violento das lanças e na
fugacidade das patas dos cavalos. Problematizava todos os triunfos. E veio,
desde aquela quadra à da Independência, invariável, com
os seus desenlaces imprevistos e efeitos às vezes paradoxais, dos combates
platônicos de D. Juan Vertiz até à nossa inexplicável
vitória perdida de Ituzaingo. Ou até aos nossos dias, na vagabundagem
heróica dos caudilhos.
Deixemo-los, livrando-nos à fascinação do quadro. O nosso
assunto tem um traço torturante; é tristemente monótono,
e recorta-se de inumeráveis outros, atraentíssimos. Corre-se
a todo instante o perigo de perdê-lo, ou de abandoná-lo.
Tornemo-nos à tarefa obscura, em que se contraminam as mais exageradas
pretensões que ainda se sujeitaram à seriedade de um árbitro.

*

Felizmente não precisa rememorar-se o longo conflito da Colônia
do Sacramento, ou os seus antecedentes, para se ver que a nova Capitania Geral
surgiu para a batalha. Vimo-la, antes, despontar nas fronteiras de Mato Grosso,
e planear-se no Conselho das Índias, como remate e sanção
real à marcha progressiva da Audiência internada, que ia transfigurando-se
no crescente refinamento das mais enérgicas qualidades do caráter,
para a repulsa do estrangeiro. A diretriz histórica da Bolívia,
a princípio uma frase, traçou-se, afinal, com um rigorismo geométrico
de resultante numa composição de forças. Desenharam-na
os pareceres repetidos dos mais altos representantes da metrópole.
E, contraprovando-a, viu-se, através dos ditames claríssimos,
que se extrataram, a completa incompetência do procurador imperial,
que assistia em Lima, para dirigir, eficazmente, aquelas terras. Condenaram-no
todas as vozes. Condenou-o a própria voz do Marquês de Valdelirios,
D. Gaspar de Munive León Garabito Tello y Espinosa, que era peruano.

O novo Vice-reinado formar-se-ia mesmo sem a emergência dos negócios
alarmantes da Colônia. Ou melhor: somente eles, e a situação
marítima, mais favorável, de Buenos Aires, obstaram a que a
Audiência-metrópole se firmasse em La Paz, ou em Santa Cruz de
la Sierra, ou mais para o norte, como opinara o Fiscal de Nueva Espana. Ainda
em 1802, apesar de inteiramente constituído o Governo supremo nas margens
do Prata, o Conselho das Índias, “em pleno de três salas”,
propôs se instaurasse o de Charcas; e o Ministro D. Jorge Escobedo,
que andara na América como Visitador Geral dos tribunais de justiça
e real fazenda, e era a maior autoridade nas questões hispano-americanas,
afirmava haver:

una suma y urgente necesidad de que se declarasen independientes (as
terras bolivianas) de los dos Vireinados, y
que la provincia de Charcas
se erija en Gobierno y Capitania General para el distrito de su audiência“.
(2)
Era uma idéia antiga, a impor-se, irresistivelmente, como um remate
de autonomia adquirida.
O Vice-reinado de Buenos Aires, antecipando-se-lhe, obedeceu a motivos certo
mais alarmantes, porém menos profundos. A Cédula Real de 1776
improvisou-o sob a injunção de um Estado anômalo, de guerra.
D. Pedro de Cevallos, antes de tudo, era o comandante das tropas que se apresentaram
e partiram de Cádiz, “a tomar satisfacción de los portugueses
por los insultos cometidos”.

Governar traduzia-se-lhe noutro verbo: bater-se. Era menos um chefe político
que um chefe militar. O regímen Vice-real, evanescente na orla do Pacífico,
ali revivia, porque os acontecimentos retrogradavam. Volvia-se à atividade
militar do primeiro século da conquista. A descentralização,
que se realizara, superpunha-se, velando-a, sem a destruir, a unidade obrigatória
de um plano de campanha. E neste plano o organismo político da Audiência
longínqua, que até então reagira isolada contra os inimigos
pertinazes, ia ajustar-se admiravelmente. A metrópole, embora não
a elegesse à frente do regímen recém-criado, completava-lhe
apenas a ação. Ampliava-lha, engrandecendo-a. Nobilitava-lha,
hierarquicamente, dando-lhe, ao revés de um daqueles rudes lidadores,
como Bartolomeu Verdugo, que lhe bombeavam as fronteiras agitadas, um garboso
fidalgo ciumento de suas comendas, de sua linguagem, de sua bravura cuidadosamente
guardada dentro de uma couraça rebrilhante; desempenado e altivo, de
altos coturnos e esporas estridentes, corretamente vestido para residir na
História. Nada mais. Nada mais além desta imponente figura decorativa.
Porque no sistema recém-estabelecido a velha Audiência iria incluir-se,
íntegra, com as terras que arrebatara ao deserto, com a sua autonomia
cada vez maior, com as suas tendências originárias apuradas naquele
encerro de montanhas – e com a sua capacidade adquirida, crescente,e legal
como vimos, para o domínio amplo das paragens virgens, que ainda lhe
demoravam ao norte.
E explicita a Cédula Real:
“… he venido a crearos mil Virrey Gobernador y Capitán General
de la de Buenos Aires, Paraguay, Tucumán, Potosi, Santa
Cruz de
la Sierra,
Charcas y todos los corregimientos, pueblos, y territorios
a que se extiende la jurisdicción de aquela audiencia…”
A enumeração aí está, sucessiva, sem um hiato,
de sul para norte. Nomeia-se Charcas – e sucedem-se logo os corregimentos,
povoações e territórios que lhe pertenciam. Ora, o corregimiento
e o pueblo constituíam a derradeira subdivisão,
ou molécula integrante, do organismo colonial. Os “territórios”,
sem definição administrativa clara, eram, geograficamente, sem
limites: o indeciso, o indeterminado do país meio desconhecido e ermo,
que atrairia os povoadores convizinhos pela própria força natural,
irresistível, do vácuo.
Para eles e sobre eles irradiaria, no quadrante de N .O. a influência
boliviana, a avolumar-se autônoma.
Demonstramo-la, de relance, em linhas anteriores. Vão confirmá-la,
agora, outros ditames, supletivos, da metrópole. Extratemo-los, sentindo
a impossibilidade da transcrição integral.
Com efeito, o Vice-rei de Buenos Aires recebeu, datado de 5 de agosto de 1777,
um ofício de ultramar transmitindo-lhe as instruções
destinadas aos governadores das missões setentrionais de Charcas –
e viu para logo como se lhe reduzia a autoridade e o mando, ante determinações
invioláveis.
O famoso Vice-reinado apequenava-se, de fato, impacto na moldura das duas
margens do Prata, alongando-se no máximo até ao médio
Paraguai. O rei decretava estas coisas extraordinárias, que sarjamos
de sublinhas nos lances mais golpeantes:
“Las circunstancias locales de aquellos Países, noticias y
conocimientos que deben presidir a las determinaciones que bajan de ofrecerse
en tan importantes asuntos, han constituido al
Rey en la necesadad
de
que dependam estos Gobernadores inmediatamente sujetos del Presidente
y Audiência de Charcas, cuyo tribunal podrá providenciar
de prontos auxilios o su desempeno, y con más particularidad en punto
a Misiones en que lo tiene acreditado… Por estas tan sólidas razones
y por compreender Su Majestad igualmente
cuanto podrían atrasarse
aquellos prontos auxilios de haber de proceder para ellos la intervención
de Vuestra Excelencia como Virrey de aquel distrito, a que se agrega también
la justa consideración de las circunstancias en que Vuestra Excelencia
está constituido para la atención de otros asuntos .
há resueito Su Majestad, como ha expresado,
poner al cuidado de
aquel Presidente y Audiencia en lo principal aquellos nuevos establecimientos.

Leu o novo Vice-rei as instruções e avaliou os poderes que lhe
tiravam.
D. Ignacio Flores, Governador do Moxos e Apollobamba, não se aparelhava
apenas da maior independência e amplitude de governo para a defesa daqueles
rincões distantes, em todos os trechos das raias lusitanas, consoante
o determinado na antiga Cédula Real de 1772; senão que também
o revestia a faculdade de alterar as ordens existentes – as ordens emanadas
da metrópole! – apenas adstrito a condições de subordinar,
“al Presidente y audiencia de Charcas cuanto juzgase conveniente
variar para el mejor gobierno de los puebios tanto en lo espiritual
como en el temporal, pues este tribunal deberá proceder al examen
de los puntos y determinar lo que hallare justo,
sea por si, dándome
cuenta de lo que necesite mi Real determinación…”
(3)
Estava, evidentemente, raiando pela independência política, um
governo audiencial, cujas resoluções, sobranceiras às
do governo geral do Prata, se conjugavam de tal modo, diretamente, com as
de próprio rei.
E como a esclarecer e firmar bem o critério de que a sua ação
fosse alargando-se, aforradamente, pelas terras ignotas, – ainda não
descobertas, nem discriminadas – estatuíam as instruções:
deixar ao cuidado e esmero do governador, “vários asuntos
que sólo con la experiencia y práctica de los Países
de su mando pueden prometerse las ventajas que se desean.

Assim a locação das povoações e fortalezas ficou
ao arbítrio dele (me parece conveniente dejarla a vuestro arbitrio),
e poderia estabelecer-se em toda a extensão das divisas portuguesas,
até aonde estas corressem para o norte. Não há ilusão
possível. A ordem régia é terminante. D. Ignacio Flores,
delegado do Tribunal de Charcas, devia fundar aqueles redutos, com o fim de
“impedir que los portugueses se apoderen de la navegación
del rio Madera y de los de Mamoré e Itenez con los demás
que entran en éllos y van a desaguar en el Maranón”.
(4)

Pormenorizam-se, o Itenez, o Mamoré, o Madeira. Em qualquer trecho
dos territórios, que se estiram a partir da margem esquerda do último
– na foz do Mamoré, na do Beni, na do Abunã, ou mais para jusante
até Santo Antônio, transpostas as cachoeiras, poderia o Governo
de Charcas erigir os povoados e vilas, que entendesse, e dirigi-los, governando-os,
espiritual e temporalmente, sem que pudessem intervir os Capitães-generais
do Peru e de Buenos Aires, ou a própria metrópole, que lhe confiara,
solenemente, todo o destino daquelas regiões.
Deste modo, depois de se desprender, pelo desdobramento natural de suas energias
profundas, do Vice-reinado peruano, que a abrangera, a Bolívia crescera
ao ponto de não poder ser abrangida pelo de Buenos Aires. Persistiu,
ilesa, entre ambos. Criou-se autônoma, no seu esplêndido retiro
de montanhas. Manteve, intacta, a evolução característica
– étnica, social e política – que tanto a destaca, feito um
organismo à parte, entre todas as nações sul-americanas,
como a ordem física a destaca, nitidamente, dos rebordos das suas altiplanícies
majestosas aos vales complanados da montaña exuberante.
E quando se considera que a independência hispano-americana irrompeu
da rivalidade entre as Audiências, órgãos das esperanças
populares, prefigurando as Repúblicas atuais, e os Vice-reis, símbolos
da tradição imperial, não maravilha que na Bolívia,
onde o Governo regional subira tanto, se acendesse, e deflagrasse, e não
se extinguisse mais, o primeiro rastilho da insurreição do Equador;
ou que “la primera senal del alzamiento de los criollos americanos
fué dada por ella em 1809 en Chuquisaca y la Paz, um ano antes que
en Buenos Alres”,

como nos ensina a palavra austera de Bartolomeu Mitre.(5)
Mas não nos desviemos.
A criação do Vice-reinado platino serve também, no caso
vertente, a denunciar a extensão territorial a que se reduzira o do
Peru.

*

Os deslindamentos dos dous grandes Governos, determinados pela Ordem de 21
de maio de 1778, sofreram várias modificações e delongas,
oriundas, de um lado, das mudanças realizadas na estrutura das colônias,
pelas Ordenanças de Intendentes de 1782; o de outro, das exigências,
protestos e o mal contido despeito dos Vice-reis peruanos, sentindo escapar-se-lhes
o melhor de seus domínios, apesar do caráter meramente platônico
que eles tinham.
A este propósito ressaltam algumas afirmativas curiosas, que veremos
mais tarde.
Conclui-se que o encolhimento geográfico do Vice-reinado refletiu,
rigorosamente e materialmente, a sua considerável retração
política. Constringiu-se entre as cordilheiras e o Pacífico:
uma lista de terras, de quinhentas léguas estiradas, a estender-se
entre as muralhas dos Andes e a solidão indefinida das águas…

Os cuidados da metrópole, deslocando-se todos para o levante ameaçado,
evidentemente o abandonavam.
E podiam abandona-lo. Ele estava garantido pela própria força
formidável da inércia, paralisando todos os estímulos
e largos movimentos heróicos que vimos desdobrados no oriente.
A presença dos Vice-reis malsinara a Audiência-metrópole.
Ali, não precisamos redizer-lhe os fastos conhecidos, o vício
essencial da colonização espanhola, baseado no princípio
exclusivo de aumentar a custa dos países novos a opulência parasitária
da Península, imobilizara o progresso na sua expressão geral.
As atividades amorteciam-se em restrições de toda a sorte; tolhiam-nas
os monopólios régios; e afistulavam-nas as exações

degradantes dos dízimos, das taxas, das alcavalas
deprimentes, que noutros lugares se iludiam e se atenuavam com os contrabandos
e rebeldias favorecidos pelo afastamento e as distâncias. Lá
se exercitavam duramente intactas. Entre os 300 000 exatores que Humboldt,
aterrado, calculou nos domínios castelhanos, talvez a metade fervilhasse
centralizada pela magnífica cidade de Lima.
Por outro lado, a despeito de quinhentas léguas de costa, o insulamento
social do Peru era completo. A amplitude do oceano, na frente, não
o desafogava; comprimia-o.
Permitia uma fiscalização obstando os mais breves tratos do
estrangeiro. A metrópole bloqueou durante mais de dois séculos
a Audiência. Em 1789 um navio espanhol acertou de encontrar nos mares
remotíssimos do sul, além de 37o de latitude, um outro, inglês,
entregue à faina da pesca de baleias; e o caso desvalioso, o fortuito
incidente, abalou em tanta maneira o Vice-rei Teodoro Croix, que durante largo
tempo as caravelas lavraram as ondas entre Guayaquil e Iquique, de sobre-ronda
a quaisquer embarcações que se abeirassem do litoral inconcesso.
O comércio do estrangeiro – nas várias tentativas feitas pelos
ingleses, flamengos, portugueses e franceses – era um sinistro comércio
armado, de traficantes heróicos, conquistando mercados a disparos de
arcabuzes e colubrinas, derivando em lances romanescos de verdadeiros combates.

Sobre tudo isto o seqüestro espiritual absoluto.
A Revolução despertara os povos, vergando-os logo depois, ilogicamente,
ao peso das armas napoleônicas: a Espanha vibrara de um a outro extremo,
alarmando-se à tropeada da invasão… e estas novas estupendas
chegavam aos limeños diluídas nos longos períodos
abstrusos da Gazeta de Madrid. “As classes baixas, postas logo
depois das altas, porque não havia intermédias, estavam condenadas
a não receberem o menor vislumbre destes assuntos, que misteriosa e
enfaticamente se diziam assuntos de estudo.”(6)
Por fim, em 1790, em Lima, o Index Expurgatório relegava às
fogueiras purificadoras estas abominações: Robertson, Hume,
Shakespeare, Corneille, Racine, Voltaire, Boileau e Rousseau…
É natural que a Monarquia, toda volvida à defesa das possessões
do oriente, que lhe fugiam, já pelo próprio desenvolvimento,
já pelas ameaças do estrangeiro, pusesse em plano secundário
a vasta circunscrição que se cristalizara na submissão
absoluta; e lhe demarcasse, corretamente, esta desvalia, com a diminuição
territorial correlativa.
Mas os Vice-reis protestaram. São eloqüentes os protestos.
Arquive-se o primeiro, de D. Manuel Guirior, a quem se endereçara a
ordem régia precitada.
Dirigindo-se ao rei, em 20 de maio de 1778, agitando serôdios argumentos
relativos à inconveniência de dividir-se o Vice-reinado, rematou
desta maneira frisante:
“De lo dicho se percibe que el reino del Perú es un terreno
de 500 a 600 leguas de largo (comprimento) y de 50 a 60
de ancho (largura) con el mar por frente. La Cordillera o países
desconocidos a la espalda y con desplobados a uno y otro lado.”(7)

É preciso. Nenhuma referência às terras afastadas,
onde se vêem as do atual litígio. A palavra é oficial:
o reino do Peru internava-se, no máximo, por sessenta léguas.
A la espalda, as cordilheiras e os desertos.
A afirmativa é golpeante, sem atavios. Resume, admiravelmente, os limites
que restavam à primitiva Capitania Geral, tão grandemente reduzida
pela expansibilidade da Audiência oriental.
Mas o protesto visando corrigi-los, sobre tardio, era flagrantemente absurdo.

Os novos deslindamentos ajustavam-se às transfigurações
políticas.
O fenômeno era até expressivamente físico, na sua fórmula
evolutiva generalizada: as maiores massas deveriam, de feito, consolidar-se
nos pontos em que se haviam despendido maiores movimentos.
É o que confirmam os acontecimentos imediatos.

Capítulo VI

A longa argumentação anterior era indispensável.
Era preciso mostrar, à luz de documentos claros, que a Bolívia,
embora intentem transmudá-la em Polônia sul-americana, construiu
um destino mais elevado, que se não violará.
Quando se tornou República, nobilitando o nome do chefe preeminente
das campanhas da liberdade, capitalizava esforços seculares. Avançara
isolada, e fundamentalmente distinta das demais nações neo-espanholas,
na conquista de sua autonomia. Nenhuns vínculos a ligaram de fato aos
dous imponentes Vice-reinados, que a ladeavam, mas não a comprimiam.
O peso morto, esmagador, destes sistemas retrógrados e marasmados,
anulava-lhos a Audiência quase soberana, com a sua expansibilidade nativa
admirável, repelindo-os. Era, com efeito, na frase de Bartolomeu Mitre,

“un mundo, una raza, un organismo aparte”, que
dentro de si mesmo efetuara a sua evolução, pelo caldeamento
do sangue de outras gentes e equilíbrio de seus elementos constituintes.
Caminhara por si; e esta marcha, conforme no-la descreveram solenes vozes
antigas, através dos mais lúcidos ditames dos mais austeros
ministros, foi para o norte, indefinidamente para o norte, com um determinismo
inviolável, seguindo o itinerário marcado por um meridiano indistinto
numa penumbra geográfica, que ela deveria romper, arrebatadamente,
na esteira das vagas agitadas das invasões portuguesas. Em tal rumo,
que a arrastava para a atual zona litigiosa, a metrópole aparelhara-a
de excepcionais franquias. Armara-a para bater, a um tempo, a invasão
e o deserto. E nesta empresa os seus mestiços destemerosos fundaram
a rude nobiliarquia de um verdadeiro marquesado, nas fronteiras.
Ali, ela refinou os seus atributos nativos; e chegou à independência
administrativa antes de chegar à República.
Não se iludem estes fatos. Nem maravilha que no desdobramento do período
revolucionário, de 1809-1823, a Bolívia centralizasse por vezes
as esperanças hispano-americanas.
Vinha de uma tremenda escola de batalhas. O General Mitre, num luminoso confronto,
entre o Paraguai, rebento da civilização embrionária
enxertada no tronco indígena pelo espírito jesuítico,
e o Peru, onde se alentavam e se refaziam as forças realistas – descreve-a
revestida de energia estóica para a resistência e para a morte,
patenteando “uno de los espectáculos más heróicos
de la revolución sud-americana”.

Devem ler-se todas as páginas do notável historiador militar.(1)

A antiga barrera dos domínios castelhanos tornou-se, nos dias
mais sombrios da luta, a guarda incorruptível e indomável da
liberdade sul-americana. Completou o seu destino histórico. Firmou
uma continuidade perfeita na sua existência ativa e combatente.
Assim, esta continuidade de esforços, este incomparável destino,
e aquele determinismo inflexível, que vimos desdobrar-se, e aquela
diretriz superior, que rompeu, retilineamente, três séculos atumultuados,
se não podem excluir ao menos em muitos pontos podem retificar os riscos
às vezes inextricáveis dos cartógrafos, e os dizeres
ambíguos, ou incompletos, dos antigos documentos.
De outro modo, não há interpretar-se, logicamente, o uti
possidetis
de 1810.
Realmente é até um truísmo o escrever-se que o princípio
básico dos deslindamentos sul-americanos tem um elastério maior
que o velhíssimo uti possidetis, ita possideatis da jurisprudência
romana, que o transmitiu ao direito internacional. Engrandeceu no transitar
das relações individuais para as dos povos. Quando a Colômbia
o proclamou em 1819, instituindo a doutrina, aceita logo depois por todas
as Repúblicas espanholas, de que as bases físicas de nacionalidades
emergentes compreendessem as áreas demarcadas até 1810 pelas
leis da metrópole, pôs-se de manifesto que a posse de fato, efetiva
e tangível, não bastaria a firmar os deslindes entre elas. Impossibilitava
o seu efeito exclusivo a própria geografia da época. Entre umas
e outras jaziam enormes países desconhecidos. Assim, se lhe aditou
o critério superior, consistindo no direito de possuir, ou
melhor, na iminência da posse, demonstrada pelos antecedentes históricos,
reveladores ~a capacidade para o domínio sobre as terras convizinhas.

E o uti possidetis americano, ou criollo, consoante a adjetivação
pinturesca de Quijano Otero(2) – mercê do qual a Argentina se estendeu,
indefinidamente, pela Patagônia em fora, até às mais altas
latitudes austrais; e em virtude do qual, com o mesmo direito, adquirido através
de lutas mais penosas, e inabalavelmente garantido pelos documentos insofismáveis,
que extratamos, a Bolívia se avantajou, obediente a um roteiro secular,
até ao Acre.

As linhas anteriores eram indispensáveis. Demonstram, à saciedade,
a posse boliviana, virtual mas inalienável, sobre as paragens ignotas
que lhe demoravam ao norte; e, ao mesmo passo, o afastamento da influência
peruana, sobejas vezes expresso nos mais solenes documentos oriundos da metrópole.

Mas atalhemos. As páginas mais firmemente blindadas de fatos inegáveis
não se forram, às vezes, ao subjetivismo dos que as lêem.
Não raro se argúi de romancear imaginoso a argumentação
mais séna Querem-se datas certas, coordenadas impecáveis, números,
muitos números, numerosos números, e medições,
e desenhos incisivos, e dados, e elementos secamente tangíveis, massudamente
concretos, acaçapadissimamente positivos.
Então, continuemos, o mais que pudermos adscritos às linhas
invariáveis dos antigos mapas, e substituindo a pena pelas réguas,
os transferidores e os compassos.

*

De feito, a questão assume, agora, aspectos asperamente geométricos.

A derradeira fase da jurisdição territorial dos domínios
espanhóis retrata-se nas Ordenanças de Intendentes de 28 de
janeiro de 1782 e 23 de setembro de 1803, que demarcaram novas unidades administrativas,
modelando-as pelas raias dos bispados existentes. De acordo com elas mantiveram-se
as Audiências divididas em Intendências, prefigurando os Departamentos
atuais; e subdivididos, estes, em Partidos, representadas as antigas Províncias.
Foi toda a mudança. A administração colonial rotulava-se
com outras palavras. Pouco se alterou. A carta régia criadora reporta-se

ainda às “sabias leyes de Indias”, cujas “prudentes
y sabias reglas”,
prescreve “se observen exactamente por
los Intendentes”.

E, de fato, apenas as restringiu, ou ampliou, em pontos acessórios

Mas para a geografia geral das possessões a sua importância foi
sensível, e avulta, sobretudo, nos deslindamentos dos dous Vice-reinados,
que se modelaram pelas divisas particulares das respectivas Intendências,
por maneira a esclarecer completamente o atual litígio.
Com efeito, desde então as Audiencias de los Reyes e de Charcas
desenharam-se com a fisionomia geográfica que mantiveram, imutável,
até 1810, data do uti possidetis – que se diz sugerido por
Alexandre Humboldt.
Podem acompanhar-se os limites, preexistentes no princípio do século
passado, contemplando-se qualquer mapa moderno.
O Vice-reinado de Buenos Aires repartia-se nas Intendências de Buenos
Aires, Assunção do Paraguai, São Miguel de Tucumã,
Mendoza, Santa Cruz de la Sierra, La Paz, La Plata (arcebispado de Charcas)
e Potosi, correspondendo cada uma às áreas dos respectivos bispados;
além dos territórios de Moxos, Apollobamba, etc. O do Peru,
nas de Lima, Tarma, Huamanga, Huancavelica, Arequipa, Cuzco e Puno, em que
se tinham fracionado as suas cinco dioceses.
São nomes que vieram até aos nossos dias.
Vê-se, para logo, que a Audiência de Charcas entrava na constituição
do primeiro com as quatro secções de Santa Cruz, La Paz, La
Plata e Potosi, e as terras de Apollobamba e Moxos. A de Lima, ou de los
Reyes,
formava tudo o segundo. E compreende-se, de pronto, que a discriminação
de limites de ambos se reduz, para o nosso caso, no apontar os que separavam
os partidos mais setentrionais daquelas duas audiências.
Para isto não se faz mister seguir as várias fases do processo
demarcador, que foi longo.
Nomearam-se a este fim, sucessivamente, dous notáveis, os Visitadores-Gerais
D. José Antonio Areche e D. Jorge Escobedo que, de acordo com os Vice-reis,
deslindaram o complicado assunto, até ao desfecho, em 1796, ao se desligarem
do Governo de Charcas as províncias de Lampa, Azangaro, Carabaya e
outras, constituindo a Intendência de Puno desde então definitivamente
incorporada ao Peru. Desta sorte a Bolívia perdeu, naquela banda, vastos
territórios à margem ocidental do lago Titicaca, assim como
a divisa secular da cordilheira de Vilcanota, que se desenhara desde o princípio
de sua formação.
Não comentemos o caso. Consumou-se.
Mas para concertar-se juízo definitivo, considere-se, por momentos,
o Vice-reinado peruano pouco antes deste acréscimo de superfície;
e determine-se, depois, a sua grandeza exata, ao anexar-se-lhe aquela nova
intendência. E a marcha mais direta para verificar se de fato, como
hoje se pretende, ele se estendia pela Amazônia em fora até às
margens do Madeira. Porque a sua área nunca mais variou, ou cresceu,
naqueles lados, até os nossos dias.
Demonstram-no muitos dados oficiais.
Pouco antes daquele desmembramento, no remate dos acidentados deslindes, após
quatorze anos de estudos, o Capitão-general que governou o Peru, de
1790 a 1795, D. Francisco Gil y Lemos, entregou, por obedecer à lei,
ao seu sucessor, um relatório com o mapa de todos os seus domínios.
A valia deste documento é intuitiva, não já pelo caráter
legal, senão por aparecer ao cabo de prolongado pleito enfeixando-lhe
as resoluções finais.
Subscrevia-o D. André Baleato, conhecido cosmógrafo da época.(3)

Temo-lo sob as vistas. Vemos, de um lance, a que se reduziam as terras peruanas,
em 1795. E embora Gil y Lemos, na sua memória, advirta “que
el reyno deli Perú ha perdido mucho de aquela grandeza local que tuvo”,
e tenhamos assistido a sua decadência, quer mutilado pela criação
do de Buenos Aires, quer retraindo-se ante a expansão vigorosa de Charcas
– surpreendemo-nos.(4)
A área primitiva mal se lhe vislumbra na fita continental desatada
de Tumbez (3o 20′ lat. S.) até as costas de Atacama (21o 25′ lat. S.),
desenvolvendo-se por 423 léguas de vinte ao grau. A enorme extensão
meridiana contrasta, notavelmente, com a largura em demasia estreita. Todo
o Vice-reinado é uma irregular e longa faixa litorânea. Seguindo-se
de perto o geógrafo oficial, pormenorizaram-se-lhe em vários
pontos, ao longo dos paralelos, as expansões máximas para o
centro das terras:
“Por el paralelo de Arica desde la costa hasta lo más oriental
de su partido tiene 18 leguas;
por el de Pisco, hasta lo mas oriental
de la intendencia de Cuzco, 120 leguas; por el de Barranca basta lo más
oriental deI partido de Tarma, 44 leguas; por el de Sechura desde su enseada
hasta lo más oriental del partido de Chachapoias, 131 leguas.”

Partindo destas normais à costa, verdadeiras abscissas de uma longa
ordenada de 423 léguas, Baleato deduziu-lhes a média de 79,5
léguas; e depois a superfície total do Peru = 33628,5 léguas
quadradas.
Jamais se avaliou com um tal requinte de exação a área
de um país. O rigorismo geométrico aí se retrata em perpendiculares
definidas; o aritmético se aguça nas arestas cortantes das vírgulas
das decimais. O Vice-reinado é um debrum do Pacífico. Estira-se,
longamente, de norte a sul, por dezoito graus de latitude; porém, alarga-se
apenas de seis, no máximo, de longitude, para o oriente.
É positivo. É claríssimo. Contemplando aquele mapa, lendo
aqueles números, medindo aquelas linhas, o sucessor de Gil y Lemos
demarcava o perímetro imutável de seu governo. Viu-lhe, como
lhe estamos vendo, como todos podem ver-lhe, os limites: ao norte o Vice-reinado
de Nueva Granada, expandindo-se até cerca de 6o de lat. S.; a leste
o Pampa del Sacramento, inçado dos silvícolas bravos do Pajonal,
até a ourela esquerda do Ucayali, e mais para o sul a serrania de Vilcanota;
no extremo meridional, o deserto de Atacama e o Chile.
Era tudo. Para N E., a partir do fosso separador do Ucayali – precisamente
onde se localizam hoje as paragens litigiosas – lê-se, num grande espaço
em branco: Países incógnitos.
Países incógnitos, antigas terras no descubiertas, das
vetustas cédulas reais, territórios que prolongavam os de Apollobamba
e de Moxos, postos, de um modo gráfico, mensurável, visível,
inteiramente fora da alçada do Governo peruano. Ou, mais explicitamente:
em 1795 a Audiencia de Los Reyes não se ampliava, abarcando-os,
até alcançar os domínios portugueses.
Realmente, a sua intendência mais avançada em semelhante rumo,
a de Cuzco – que hoje se intenta espichar até o Madeira – ficava consideravelmente
distante deste rio. Qualquer carta revela que só poderia prolongá-la
até ali o partido norte-oriental de Paucartambo; e este cerrava-se
em raias inextensíveis e fixas. Demarcara-o, desde 1782, legalmente,
o Visitador Jorge Escobedo:
“…tiene de largo 26 leguas Norte-Sur sobre 5 a 7 de ancho… confina
por el nordeste com los Andes (Vilcanota) o montañas de indios
infieles…”(5)
Deste modo, em que pese aos erros da carta de Baleato – onde, por exemplo,
o Beni se desenha como tributário do Ucayali – a sua expressão
geral é segura: o Vice-reinado, ou a Audiência de Lima, em 1795,
no seu internamento máximo para o levante, estacava nas barrancas esquerdas
do Ucayali e, mais para o sul, nas cumeadas de Vilcanota.
Estabelecida esta base segura, prossigamos.
A Cédula Real de 1 de fevereiro de 1796 modificou estes limites, agregando
ao Peru a Intendência de Puno. O Vice-reinado cresceu, expandindo-se
para o oriente. Vejamos até onde foi.
O lance é capital e dominante, porque, definida esta expansão,
se define o seu último avance para o oriente. Os seus limites naqueles
lados naquele ano, são os próprios limites atuais. Nenhum outro
ato, ou lei, ou ordenança, ou tratado, os alterou até aos nossos
dias. Descrevê-los em 1796 é o mesmo que os descrever em 1810,
e agora.
Descrevamo-los; apelando o mais secamente que pudermos para elementos fixos,
infrangíveis, numéricos e geométricos.
A circunscrição, que a Cédula de 1796 integrou no território
peruano, compunha-se de cinco partidos – Chucuito, Puno, Lampa, Azangaro e
Carabaya – rigorosamente demarcados. O Vice-reinado ampliou-se pela justaposição
de um bloco territorial definido. Destes partidos, os quatro primeiros, e
mais meridionais, acarretaram-lhe uma dilatação para o levante,
que não ultrapassou o diâmetro maior do lago Titicaca, entre
os paralelos de 14o 30′ e 16o 30′. Não interessam, portanto, ao litígio
vertente. Resta o mais setentrional, de Carabaya, confinante com as terras
de Apollobamba, e, por isto, o único por onde poderia entrar e avançar
nos vales do Madre de Dios, do Beni e do Madeira a influência peruana.

Mas não entrou, nem avançou. O Partido de Carabaya, da Intendência
de Puno, a exemplo do de Paucartambo, da de Cuzco, encerrava-se todo em linhas
limítrofes absolutamente inalteráveis.
Delimitara-o, desde 1782, por ordem da metrópole, e de inteiro acordo
com o Vice-rei do Peru, o Visitador-Geral Jorge Escobedo:
“Tiene de largo 40 leguas (dous graus) norte-sud, y en parte 50 (dous
graus e meio) de ancho… confina por el Este con la provincia de Larecaja
(Charcas); por el nordeste y norte con las tierras de indios infieles,
de
que las separa el famoso rio Inambari.”(6)
Assim surgiu a linha divisória, lúcida e nobremente reclamada,
hoje, pela Bolívia.
Considere-se um mapa qualquer. Resulta esta evidência: a anexação
daquelas terras teve o efeito único de substituir a vetusta divisa
arcifínia de Vilcanota, por outra, igualmente natural e tangível,
mais para leste – a do thalweg do Inambari. Nas barreiras esquerdas
deste, quedou para sempre o Vice-reinado, ou a Audiencia de los Reyes,
no seu máximo alargamento para o levante. As terras não
descobertas, terras bravias de infieles, formadores da atual zona
disputada, ficavam fora das suas raias, a estirarem-se para N . E., a partir
da margem direita daquele rio. Os esclarecimentos a este respeito apinham-se,
incontáveis; e o reproduzi-los, sobre fatigante, implicaria póstuma
injustiça à clareza e à retitude do Visitador Escobedo.
Ademais reforçam-nos todos os mapas do tempo, feitos pelos que perlustraram
o país. O já anotado, de Figueroa, é francamente confirmativo.
O de D. Joaquim Atós, figura o Partido de Carabaya não só
circunscrito por uma linha divisória fechada, como abrangido em todo
o quadrante de N . E. pelos territórios de Moxos e Apollobamba.(7)
O de Pablo Orycain, elucidado por um breve texto, no qual se refere à
opulenta província “con sus bajos y demás quebradas
llenas de lavaderos de oro”,
mostra-no-la a confinar con los
chunchos,
e localiza os profugos selvagens nas misiones de Apollobamba,
além do Inambari, totalmente estranhas, portanto, ao Vice-reinado,
cujas barreiras lá se riscam, em destaque vivo, com visibilíssimos
traços amarelos.(8)
Elas assim permaneceram até 1810, e – sublinhemos uma afirmativa segura
– até 1851, data em que se fixaram os nossos limites definitivos
com o Peru. Não há engenhar-se o mais ligeiro argumento em contrário.

O Partido do Carabaya – único que permitiria ao Peru estender-se aos
vales do Madre de Dios, propriamente dito, do Beni e do Madeira – persistiu
sempre com aquela área, e com aquelas raias imutáveis, até
aos nossos tempos, nitidamente lindado ao oriente pelo Inambari. As provas
a este respeito fervilham. Mas por abreviar, e frisar mais uma vez o traço
de elevada imparcialidade, em que vai versando-se este assunto, apresentemos
uma apenas, genuinamente peruana, que por si só supre por muitas. Reclamemos,
ainda uma vez, o auxilio de D. Mateo Paz Soldan, o mestre tradicional da fisiografia
da República vizinha. E abrindo o seu livro, o seu magnífico
livro em boa hora impresso em Paris, à custa do Governo de sua terra,
leiamos, aprendamos:
“La province de Carabaye a environ 50 lieus (dous graus
e meio) de l’Est a Oeste…
est bornée au Nord et au Nord-Est
par le territotre des indiens barbares, appelés Crangues et Sumachuanes
et d’autres
dont la separa la fameuse reviere Ynanvari… a l’Est
par celle de Larecaje, de le Republique le Bolivie.”
(9)
Preciosíssimo excerto, este. De sorte que em 1863, oitenta anos depois
de primeira Ordenança de Intendentes, doze anos depois do Tratado de
limites de 1851, do Brasil com o Peru, e quatro anos apenas antes do da Bolívia
com o Brasil – o grande geógrafo, glória da cultura peruana,
decalcava os dizeres de Jorge Escobedo… Jamais uma verdade se impôs
com tamanho império. Há, até ali, surpreendentes laivos
de plágio. Paz Soldan tinha, por força, sobre a mesa e aberto,
o relatório do Visitador-Geral, de 1782… Não prossigamos.

Seja como for, naquelas linhas, deletreadas em todas as escolas do Peru, se
renteiam todas as pretensões peruanas visando as terras do Madre de
Dios, do Beni e do Madeira.
Não dão pega à mais ligeira dúvida.
De feito, como iludir-se o significado de tais palavras, que se renovam através
de quase um século, e o de linhas tão indeléveis, e a
sugestão gráfica a entrar-nos, fulgurantemente, pelos olhos
– destes mapas e destes relatórios, traçados por ordem da metrópole,
subscritos pelos Visitadores, com a referenda dos Vice-Reis, reproduzidos
em nossos dias pela maior autoridade peruana em tais assuntos, e discriminando
e estereotipando, de modo tão evidente, a distribuição
legal e geográfica daquelas terras?
As deduções são inabaláveis: em nenhum dos partidos
das duas intendências, de Puno e de Cuzco, do extremo nordeste do Vice-reinado
ou Audiência de Lima, inscritos em divisas que não mais se alteraram
até hoje, se incluíram os territórios ainda não
de todo conhecidos e descobertos, que com o nome vago de Apollobamba, ou qualquer
outro, se desenrolavam pelos vales meridionais da Amazônia. Em 1776
o Vice-reinado, cuja capacidade política para o domínio tanto
diminuíra, não se estendia, nem visava estender-se, até
às margens do Madeira.

Ora, aquela situação prolongou-se aos nossos dias.
Naquele tempo o Vice-reinado de Nova Granada – incubando, ainda latentes,
o Equador, a Colômbia e a Venezuela – dilatava-se para o sul pelo Ucayali
acima até a foz do Pachitéa, onde desde muito se erigira o aldeamento
de São Miguel de Conibos, fundado pela missão dos Maynas, do
bispado de Quito.
Não acompanharemos os grandes missionários entre os quais se
vêem os tipos esculturais do estóico P. Richter, ou daquele incomparável
Samuel Fritz, que foi o precursor de La Condamine e primeiro geógrafo
do Amazonas.
Para o nosso propósito, baste notar-se que desde 1750 as missões
de Maynas dilataram em tanta maneira o Governo de Nova Granada, ao longo do
Ucayali, que o do Peru não teve, como ficou repetidamente demonstrado,
a ingerência mais breve nos deslindes internacionais com as terras portuguesas.
Estava de lado, de fora. Entre estas e ele, a partir da margem direita daquele
rio, projetavam-se para leste os terrenos de Apollobamba, que, consoante a
frase valiosa do Ministro mais ilustre do Conselho das Índias, Pedro
Campomanes, se extremavam, de um lado, com o território de Moxos e
de outro com as missões do grande tributário do Amazonas.

“Se dan las manos con las de mojos y las que administran
los franciscanos sobre el rio Ucayali.”
(10)
Assim se limitavam, exclusivamente, naqueles lados e naqueles tempos, com
os domínios portugueses, a Audiência de Quito, pelo Governo de
Maynas, e a de Charcas, pelo de Moxos – delineando-se a divisória Madeira-Javari
na penumbra geográfica das paragens desconhecidas. E do mesmo modo
que o Governador de Moxos e Apollobamba, somente pela circunstância
de ser rayano, foi nomeado comissário da terceira partida,
destinada á demarcação em todo o trato que vai do Guaporé
ao Javari, o engenheiro Francisco Requena, que era o chefe da quarta, encarregada
do mesmo trabalho desde a foz do Javari até ao Orenoco, somente em
virtude deste cargo se revestiu do de Governador-Geral de Maynas, sujeito
ao Capitão-General de Nova Granada, D. Silvestre Albarea.
Não há patentear-se, de modo mais sintético, que somente
as duas jurisdições, de Quito e de Charcas, se extremavam naquela
época com o Brasil em todo o âmbito da bacia amazônica
que vai do Madeira à foz do Javari; a primeira, ao longo deste até
às cabeceiras; a segunda, destas, ou pouco a jusante, até à
semidistância do Tratado de 1777.
Mas esta situação mudou em 1802.
Urna Cédula Real de 15 de julho daquele ano, inspirada por Francisco
Requena, desmembrou a província de Maynas do Vice-reinado granadino,
anexando-a ao Peru, e submetendo as missões ao arcebispado de Lima.

Poderia mostrar-se que a famosa Cédula – último titulo territorial
do Peru – era inviável.
Malignou-a para sempre a parcialidade, ou a má-fé, comprovada,
de Requena, que a informou pondo-a a talho de uma lei preventiva e moralizadora,
da Recopilación:
(Que no se cumplan las cédulas eu que hubiere obrepción
o subrepción.)
(11)
Em torno dela há uma literatura político-geográfica em
que explodem os mais violentos panfletos. Nenhum dos velhos ditames coloniais
foi ainda mais discutido, ateando mais agitadas controvérsias.
Mas não desvendemos a gênese que a invalida. Vamos além:
admitamos, com Antonio Raimondi – o europeu mais peruano que ainda se viu
na América – a sua legitimidade e todos os seus efeitos. E mostremos,
mesmo maniatados nesta hipótese, sobradamente gratuita, que a carta
régia tão ampliadora da influência do Peru, ao ponto de
estirá-la sobre dois terços do Equador,(12) não a estendeu
de um metro sequer para o levante, a partir das margens direitas
do Ucayali e do Javari.
A suma da Cédula Real de 1802 é esta:
“He resueito agregar al Virreynato de Lima el Gobierno y Commandancia
General de Maynas no sólo por el rio Marañon abajo hasta las
fronteras de las colonias portuguesas, sino también por todos los demás
rios que entran al mismo Marañón por sus márgenes meridional
y septentrional,
que son: Morona, Pastaza, Ucayali, Nopo, Yavary, Putumayo,
Yapuri, y otros menos considerables, hasta el paraje en que estos
mismos rios por sus saltos y raudales inaccesibles no puedan ser navegables…”(13)

Aí está um documento admirável no mostrar que as divisórias
peruanas, naqueles lados, são – exclusivamente – as linhas naturais
do Javari, até perto de seus manadeiros, e o Ucayali até à
confluência do Tambo e o Urubamba (10o 55′ latitude sul), onde ele perde
o nome: divisas lucidamente reclamadas, hoje, pela Bolívia.
Com efeito, ante demarcação tão expressa, justificam-se
em toda a linha os negociadores peruanos, que pactuaram, em 1851, com o Brasil,

a fronteira arcifínia de todo o Javari, sem cogitarem da
semidistância do Madeira; e, ao mesmo passo, os comissários,
brasileiro e peruano, Barão de Tefé e Guilherme Black:, que
confirmaram, praticamente, aquele critério, implantando, em 1874, o
marco divisório definitivo nas cabeceiras do mesmo rio, até
onde, conforme declaram, “os obstáculos eram tantos que não
permitiam ir além”, ou seja, traduzindo-se a velha Cédula
Real, “hasta el paraje en que este mismo rio por sus saltos y
raudales inaccesibles no pudo más ser navegable…”

Realmente, não há turvar-se a limpidez da Cédula Real
de 1802. Esclarece-a, além disto, o mapa desenhado pelo próprio
Francisco Requena, em 1779.(14) As terras, que se aditaram ao Vice-reinado
de Lima, vêem-se, ali, circunscritas por uma curva fechada, nítida
e contínua, perlongando a margem esquerda do Javari, e deixando-a,
numa deflexão para o S.O., a interferir o Ucayali perto da latitude
acima escrita.
Os deslindes, sugeridos pelos Visitadores-Gerais, desde 1782, grafados por
André Baleato, em 1796, subscritos pelo Virrey Gil y Lemos, sancionados
pela metrópole, persistiam, em 1802, inalteráveis, no tocante
àquela zona. Os terrenos, ainda não de todo descobertos, de
Apollobamba, continuaram fora do influxo peruano, sob o domínio iminente
da Audiência de Charcas.
E quando ainda restassem dúvidas a este respeito, destruí-las-ia
aquele mesmo Francisco Requena, que tanto atrapalhou a geografia hispano-americana
e deu, de graça, ao Peru, o título primordial de suas mais ousadas
pretensões.
0 lance é inopinado: ao mais solerte advogado da República vizinha,
certo, ainda não se lhe antolhou a conjectura de que o máximo
dador de seus territórios setentrionais – o homem a quem o Peru deve
uma estátua na foz do Pachitéa! – pudesse erigir-se em juiz,
o mais insuspeito dos juízes, neste caso, no proibir-lhe a marcha para
o oriente, precisamente, na zona que hoje se debate.
Revelemos a inesperada atitude. Requena, em 1799, vingara a posição
superior de membro do Conselho das Índias, onde o seu parecer preponderava
sempre no tocante às coisas da América; e nas “salas”
daquela assembléia soberana apresentou o informe, que foi o molde da
Cédula de 1802.
Ora, sobretudo no trecho do longo arrazoado, em que discute o estabelecimento
da prelazia das missões, naquelas terras, o ministro, com a enorme
autoridade advinda do seu título de engenheiro, sobre todos sabedor
dos países que percorrera e explorara, estabeleceu que a diocese (e
portanto as terras a anexarem-se ao Peru, que as Ordenanças marcavam
“pelas áreas dos bispados”) não deveria e
não poderia ultrapassar o Ucayali, para o levante.
Criticando vários projetos, formulados no sentido de fixar-se a zona
de influência da nova jurisdição eclesiástica,
declarou que aos seus autores, se lhes sobravam zelos, “les faltaba
inteligencia de los Paises”.
E ao considerar as terras hoje litigiosas,
que o Peru intenta abranger, como se fosse possível estirar também
por aqueles lados a maravilhosa Cédula, disse:
“El que representa unir bajo de una mitra las misiones de Apollobamba
con las de Maynas, y todas que entre estas dos hay intermedias, situadas
por las montanas no supo desde luego,
por falta de geografia; la
imnensa extensión que daba a este Obispado; y
que el Prelado era
imposible las pudiese visitar”.(15)
Este parecer, que pela primeira vez se revive, é notavelmente expressivo,
sobretudo quando se considera que o princípio básico da constituição
territorial, explícito nas Ordenanças de Intendentes, “consistia
no firmar as áreas das novas seções administrativas pelas
dos bispados respectivos”, axioma da administração colonial
espanhola, que nenhum escritor peruano será capaz de contestar.
Assim, pela sentença do próprio autor intelectual da Cédula
de 15 de julho de 1802, ficaram inteiramente fora da zona agregada ao Peru,
com o Governo do Maynas, as terras extensíssimas que, a partir da margem
direita do Ucayali, abrangem as cabeceiras do Juruá, do Purus e todo
o Acre meridional, até ao Madeira.
Sobre elas pairava, de fato, a extremar o rumo de um itinerário histórico
admirável, o domínio iminente e eminente da Bolívia.

Capítulo VII

Francisco Requena foi, sem o querer, cruel, na concisão golpeante
dos trechos anteriormente extratados, que por si sós renteiam, senão
desarraigam, todas as pretensões peruanas a leste do Ucayali, onde
terminavam as Missões de Maynas anexadas ao Peru pela Cédula
Real de 15 de julho de 1802.
Repitamo-los ainda uma vez. Decoremo-los, destacando-os:

1o) Aos que pretendiam estender o bispado aquém daquele rio, “les
faltó inteligencia de los países que querian comprender en la
nueva diócesis”.

2o) Os que planejavam unir, sob uma só jurisdição, as
terras de Maynas e as de Apollobamba, não sabiam, “por falta
de geografia, la inmensa extensión que daban a aquel obispado”.

3o) Se porventura se efetuasse tão absurdo projeto, ao prelado ser-lhe-ia
“imposible que las pudiesse todas visitar”.
Ora, recordando que as ordenanças, então em vigor, consoante
acordam todos os historiadores, estabeleciam a constituição
territorial sob a norma exclusiva de “fixar as áreas dos novos
distritos administrativos pelas demarcações eclesiásticas
correspondentes”, conclui-se que o território de Maynas, adquirido
pelo Peru, era o de seu bispado, rigorosamente definido, no avançamento
máximo para o oriente, pelas linhas naturais do Ucayalí e do
Javari, conforme as desenhou e esclareceu o próprio inspirador da carta
régia precitada.
Poderíamos terminar aqui. As frases do máximo benfeitor da República
peruana e as nossas afirmativas mais rigorosas, conchavam-se.
Mas insistamos ainda. Aquela carta régia – mirífico documento
que já entregou de fato à venturosa República do Pacífico
dous terços do Equador – tem a resistência das fantasmagorias
garantidas pela própria intangibilidade. Assim, poderíamos mostrar
que desde o nascedouro a condenou uma das figuras mais austeras da cultura
peruana, o lúcido D. Ypolito Unanue, antigo Presidente do Conselho,
e autor de um mapa de seu país, que traçou um 1804, sem absolutamente
cogitar dos limites que ela indica. Depois se lhe contraporia a autoridade
formidável de Alexandre Humboldt, com a sua “Carta Geral da Columbia”,
de 1824, onde as linhas da singularissima Cédula não se retratam.
Em seguida – o que é mais surpreendente “el mapa físico
y político del Alto y Bajo Perú”,
oficial, publicado
pelo Governo da República de 1826, ermo totalmente de quaisquer traços
reveladores da zona que ela marca. Subsecutivamente, a sepultou um Tratado,
um pacto soleníssimo, o de 1829, entre o Peru e a Nova Granada… E
ela renasce, e ressuscita, e desenlapa-se, incoercível, intangível,
impalpável, a espantar, intermitentemente, a política sul-americana,
com as suas estranhas visagens de recalcitrante espectro colonial.
Traçaram-se-lhe, ou escreveram-se-lhe, por cima, outros desenhos de
cartas, outros dizeres de ulteriores convenções; porém
raspam-se estas frases e estes desenhos, e revivem-se-lhe, indeléveis
como estigmas, os dizeres no emperrado castelhano de há cem anos. Lembra
um desses velhos palimpsestos medievais, cujos primitivos caracteres, cobertos
por outros, ulteriores, dos escribas, hoje se desvendam na raspadura das letras
mais recentes.
Felizmente para a atual litispendência bem é que ela reviva.
Não repudiaremos, neste passo, a diplomacia do Império que a
reconheceu, favorecendo ao Peru. Queremo-la, íntegra, sem
que se lhe desloque uma vírgula, sem que se lhe mude uma letra, a remascar
e a remoer todas as afirmativas, na torturante gagueira de suas redundâncias
infindáveis.
Esta carta régia, agitada, imprudentemente, como a prova capital dos
direitos do Peru, contraproduz. É desastrosa para a República,
que se proclama herdeira de um regímen condenado e extinto. É
a prova preexcelente dos direitos da Bolívia.
O que ela nos diz, nos seus termos acabrunhadoramente repetidos, e nos diz
o ministro, que a sugeriu e engenhou, em frases inequívocas, é
que a região jacente a leste do Ucayali não devia repartir-se,
não podia repartir-se, e não se repartiu, entre as jurisdições
de Cuzco e de Puno e a de Maynas. As primeiras imobilizaram-se à margem
esquerda do Inambari, até onde as estendeu a carta régia de
1796; a segunda permaneceu nitidamente lindada pelo Ucayali, onde a fixou
a de 1802. O quadro demarcador do Vice-reinado peruano, em 1810, cerrava-se
numa inteiriça e inextensível moldura. Pelo levante acabava
nas extremas dos partidos, demarcados até às frações
de léguas, desde o de Azangaro, ao sul, ao de Carabaya, ao norte, onde
se alonga o thalweg de Inambari.
E no largo trato que vai deste último às divisas naturais do
Ucayali e Javari, correm sucessivamente, as linhas setentrionais do partido
de Paucartambo, pelo leito de Marcapata até à confluência
Tono-Pinipini, e as de Urubamba que seguem pelo rio do mesmo nome até
a foz do Tambo, onde começa o Ucayali.
Não há fugir-se a este traçado traduzindo, graficamente,
os mais sérios documentos da demarcação territorial,
que prevaleceu até 1810. Não se conhecem outros. As Ordenanças
de Intendentes de 1782 e 1803, as cartas régias de 1796 e 1802, são
os únicos, e os mais sérios, e os mais firmes e os mais compreensíveis
elementos em que se esteiam as pretensões peruanas.
Mas não lhes abrem as portas da Amazônia.

*

Fora disto resta o duvidoso e o aflitivamente torturante das célebres
provas cartográficas. Temo-las por adiáforas; no geral, suspeitas;
as mais das vezes, incompletas; quase sempre, traiçoeiras; sempre disparatadas.

O cartógrafo profissional, afeito a percorrer a maravilha milhares
de milhas, e miriâmetros, montando comodamente um lápis bem aparado
e destro, velocíssimo e ágil no transpor oceanos e no romper,
em décimos de segundos, continentes inteiros, perde, exausto ao fim
dessas imaginosas viagens, em que não moveu um passo, as próprias
noções universais da forma e das distâncias.
Há deploráveis desvios de justeza e boa medida em todos estes
Atlas homúnculos, que em toda a parte aparecem, carregando cada um
o seu pequeno mundo muito bem feito e quase sempre errado.
Falta-lhes, em geral, a intimidade da Terra. Nunca sentiram em torno, entre
as vicissitudes das explorações longínquas, o império
formidável do desconhecido, a ressaltar nas perspectivas assombradoras
das paragens ermadas e nunca percorridas. E, sobretudo – por lhes inspirar
mais respeitoso carinho a face do planeta, que irreverentemente garatujam
– não avaliam que, não raro, a zona mais restrita, por onde
lhes passa o lápis forro e endiabrado, é o deserto interminável,
que o explorador sucumbido, não lhe bastando o norte vacilante da bússola,
só pôde dominar amarrando-se, cada noite, com os raios refletidos
do sextante, às âncoras das estrelas.
Daí, em grande parte, o arrojo com que pompeiam os seus riscos rebeldes
e heresias gráficas. Na grande maioria, estes hábeis caricaturistas
de rios e de montanhas só se tornam inócuos quando se atêm
à cópia, ou ao decalque mecânico das linhas e dos erros
de seus antecessores. Se a fantasia se lhes desaperta, a revolver terras e
mares, assiste-se à inversão do Gênese. Restaura-se a
imagem perturbadora do caos.
E preciso escolhê-los cautelosamente, quando se não pode evitá-los.

Com estes resguardos, nos longos raciocínios anteriores, reportamo-nos
apenas aos geógrafos que perlustraram aquelas regiões. Os demais,
deixamo-los. Entre os antigos, citando à ventura, Sanson d’Abbeville
(1659) e as suas cordilheiras tiradas a cordel; Guillaume De L’Isle (1701),

et quelques autres messieurs de L’Academie, com as províncias
do rio da Prata a entrarem por Goiás adentro, ou o seu rio Purus que
não acaba mais; um certo I. B. Nolin (1704), e o seu Paraguai a terminar,
curiosamente, no porto de Santos; o mágico Homaniam Aeredes, que atirou
o Paraíba sobre o Tocantins, fazendo que este abandonasse o leito,
mudando-se para a calha estreitíssima do Guamá; o tateante Conrado
Mamnert (1803), que nos seria favorável, porque pintou as missões
de Moxos, estranhas ao Peru, e abrangendo os pampas do Sacramento; e dezenas
de outros, até ao crédulo D’Anville, com os seus fantásticos
plateros – certo constituiriam esplêndidos recursos para espraiar-se
urna erudição inútil. Preferimos, a bem da gravidade
do assunto, o digno André Baleato, malgrado os seus deslizes; os irmãos
Ulloas; o singelo Alós; o magnífico Requena. Entre os modernos,
é de todo em todo opinável a valia que possam ter os dois ditosos
La Pies (Mr. La Pie, geographe du Roy, et Mr. La Pie Fils, geographe du
Dauphin),
que em 1829, do mesmo modo que estenderam o Peru até
o Madeira, estenderam São Paulo até quase ao Uruguai e esticaram
o Uruguai até ao Iguaçu; e o interessante A. Brué, que
ainda em 1843 não ouvira esta terrível palavra – Bolívia
– e punha um ansioso ponto de interrogação diante do rio Madeira,
e copiava André Baleato, lançando o Beni no Ucayali. Não
os citamos; como não citamos Arrowsmith (1839), o qual, entretanto,
desenhou a linha de Santo Ildefonso feita limítrofe, exclusiva, entre
o Brasil e a Bolívia; nem Kiepert (1849), que lhe reproduziu a mesma
demarcação mais racional; nem um sem-número de outros,
favoráveis ou desfavoráveis, que se nos deparariam com o só
esforço material da pesquisa; entre os quais teríamos de alinhar
o Sr. Estanislao Zeballos, atual Ministro das Relações Exteriores
da República Argentina,
que ao traçar, em 1894, em Washington,
um mapa dos territórios adquiridos pelo Brasil, incluiu, de um modo
claro, iniludível, em nítidos traços contínuos,
toda a atual zona litigiosa no território boliviano…(1)

Uns e outros, a despeito do renome que tiveram, e tenham, e mereçam,
não valem o mais modesto geógrafo que haja percorrido aqueles
lugares.
Por exemplo, Gibbon. Enfileirem-se de um lado todos os Ebdens, Delarochettes,
Dufours, Arrowsmiths, Shliebens, Greanleaves, Lapies, Brués – e suplantá-los-á,
no definir a geografia boliviana, aquele abnegado Tenente Lardner Gibbon,
que fez o que nenhum deles fez: percorreu o país, e, com pleno conhecimento
de causa, estudando as terras, conversando as gentes, traçou o mapa
da Bolívia e as raias de sua demarcação política,
em 1853.
Entretanto, não relutamos em garantir que nenhum advogado peruano será
capaz de citar o digno oficial da U. S. Navy, que foi o único geógrafo
a contornar em parte a atual zona litigiosa, logo depois do Tratado de 1851,
construindo um mapa, único entre todos os da Bolívia,
que se modelou sob as observações próprias, sem ser copiado
de outros.
Gibbon entrou na Bolívia em 1852, por La Paz; seguiu para o sul, a
alcançar Oruro; infletiu para leste até Cochabamba; ganhou a
ourela do Paracta; desceu o Chiparé; prosseguiu pelo Mamoré
abaixo até a confluência do Itenez; subiu ao arrepio deste, a
buscar o forte do Príncipe da Beira; voltou; e volveu ao som do Madeira
até ao Amazonas. A sua carta resultou das observações
realizadas neste itinerário dilatadissimo; e estas foram tão
cuidadosas que lhe permitiram, além da planta, traçar vários
perfis do imenso território, graças aos elementos hipsométricos
reunidos. (2)
um documento precioso, onde não se reflete apenas a responsabilidade
do geógrafo, mas também a do militar, a quem se deferira o encargo
de estudar um país novo, e apresentar, oficialmente, um relatório
ao Governo de Washington. É natural afirmar-se que Lardner Gibbon não
se limitou aos máximos cuidados nas operações astronômicas
e topográficas, senão também que teve as maiores cautelas
no estabelecer os limites políticos da Bolívia, com a mais inteira
segurança.
Ora, a sua demarcação, apresentada em caráter oficial
ao Governo norte-americano – por onde, naturalmente, este se guiaria em todas
as suas relações com aquela República – reproduz, admiravelmente,
as linhas gerais, limítrofes, que apontamos e são hoje requeridas
pela Bolívia. A boundary line, desenhada entre ela, o Peru
e Brasil, é clara: a partir da margem norte oriental do lago Titicaca,
nas cercanias de Guiacho, vai, por um meridiano, procurar o thalweg do
Inambari; segue-o; entra no Marcapata, prosseguindo. Por outro lado, no levante,
depois de acompanhar o Itenez, o Mamoré e o Madeira, estaca na foz
do Beni, e desta última estira-se, retilínea, para o poente,
segundo um paralelo, a interferir o Purus na latitude aproximada de 100 30′.

Notam-se, desde logo, lacunas inevitáveis neste deslindamento geral.
Mas o seu significado inegável, fundamental no presente litígio,
é este: no conceito do geógrafo, que tudo nos denuncia timbroso
em não apresentar ao Governo de seu país informações
falsas, ou vacilantes, a linha leste-oeste, do Madeira para o ocidente, em
toda a Amazônia do sul, separava, exclusivamente, as terras brasileiras
das Bolivianas.
A carta de Gibbon pode falsear em pormenores, bastando notar-se que desenha
o Madre de Dios feito um prolongamento do Purus; mas, evidentemente, não
se compreende que assistindo ele durante tanto tempo naquelas terras, e tendo
como companheiro de excursão o distinto peruano Padre Bovo de Revello,
por seu turno um explorador infatigável, se abalançasse a traçar
aquela linha limítrofe, preeminente entre as demais de sua carta, sem
exato e maduro conhecimento do assunto. Além disso, como já
o vimos, reproduziu-lhe este conceito, mais tarde, em 1863, D. M. Paz Soldan,
pró-homem da geografia peruana. E ambos ativeram-se ao confirmar as
declarações uniformes, numerosíssimas, de todos os nossos
geógrafos e cronistas, quer dos tempos da colônia, quer dos primeiros
dias da Independência, para os quais, sem destoar de um nome, a capitania
ou província de Mato Grosso, estendendo-se para o norte até
pouco além da cachoeira de Santo Antônio, confinava no ocidente,
de uma maneira exclusiva, com os Governos de Chiquitos e de Moxos.
Ora, entre todos aqueles nossos geógrafos, que ali viveram percorrendo
todas as paragens, dois únicos são bastantes a demonstrar-se
que a opinião brasileira atual, consistindo em considerar boliviano
todo o território à margem esquerda do Madeira até as
raias setentrionais de Mato Grosso, é antiquíssima, e não
desponta agora, mal arranjada, para justificar os Tratados de 1867 e o de
Petrópolis, de 1903.
Reportemo-nos apenas aos oficiais de engenheiros Ricardo Franco de Almeida
Serra e Luís d’Alincourt.
O primeiro a um tempo astrônomo experimentado e militar a que nenhum
batia parelhas na retitude e no heroísmo, assistiu em Mato Grosso durante
mais de dois decênios, desde 1781. Conhecia a terra. Defendera-a contra
os espanhóis, através de atos memoráveis, que culminaram
naquela extraordinária defesa do forte de Coimbra, onde com 40 homens
repeliu os 800 de Lázaro de Rivera (1801).
Percorrera-a em vários rumos. E definiu as suas paragens ocidentais,
naquela época, a confinarem com os domínios castelhanos, “pelos
Governos do Paraguai, Chiquitos e Moxos”.(3) Isto é, para Ricardo
Franco, antigo comissário das demarcações, a província
de Moxos, confrontante, estendia-se para o norte até onde se estendia,
neste rumo, o Mato Grosso.
O sargento-mor de engenheiros, Luís d’Alincourt, também ali
viveu largo tempo, desde 1824, em comissão do Ministério da
Guerra. São notáveis os seus estudos estatísticos e geográficos
naquela província. Ora, em vários tópicos de seus trabalhos,
quando lhe vem a ponto referir-se às suas divisas ocidentais, mostra-no-las
a ladearem, invariavelmente, as províncias de Chiquitos e Moxos, pertencentes
à República da Bolívia. Esclarece-as, por vezes, pormenorizadamente:

“Quase todo o corpo do rio Mamoré existe nos domínio da
Bolívia e somente as ‘últimas 34 léguas, desde que se
lhe une o Guaporé até à sua foz no Madeira (refere-se
a confluência do Beni), é que são por nós navegadas,
separando em toda aquela extensão a nossa província
de Mato Grosso da de Moxos.”

Ou então afirmativas mais amplas, a abrangerem quase toda atual zona
litigiosa:
“O rio Purus, que todo ele corre por domínios da Bolívia.”(4)

Poderíamos prosseguir. Nesta intimidade com os nossos velhos patrícios,
certo não nos faltariam elementos, quando tio fartos e em barda os
encontramos nos anais e arquivos estrangeiros. Mas os casos apontados, adrede
escolhidos em dois períodos imediatamente anteriores e subseqüentes
à quadra da Independência, são bastantes à demonstração
de que o nosso parecer atual se enraíza, profundamente, na nossa própria
história.

*

Voltando ao mapa de Gibbon, não maravilham as lacunas que nele existem,
relativas à ignota região abarcante das cabeceiras do Juruá
e do Purus, até ao Acre meridional. Aqueles lugares, convizinhos das
raias peruanas, predestinavam-se aos últimos roteiros dos descobrimentos
geográficos na América do Sul.
Entretanto, à volta e longe, desencadeavam-se largos movimentos povoadores,
dominando as zonas desconhecidas. No extremo oriente os bolivianos desvendaram
as terras do baixo Beni, onde, desde 1842, se erigira o Departamento do mesmo
nome; e D. Augustin Palacios, um de seus prefeitos, completara, em 1846, os
esforços dos portugueses e brasileiros na hidrografia completa do Madeira.

Outros grandes tributários, o Purus e o Javari, desde os tempos coloniais
haviam sido percorridos em trechos dilatados.
Revelam-no as mais decisivas provas.
Consulte-se a carta geográfica do Dr. Antônio Pires da Silva
Pontes, astrônomo das reais demarcações, de 1784. Ver-se-á
o traçado do Purus até perto de 6o de lat. S., com rigorismo
tal que, sem grandes discrepâncias, pode ajustar-se aos levantamentos
modernos; o que denuncia longos e pacientes esforços.(5)
Contemplando-se a planta que construíram, em 1787, os Capitães
engenheiros José Joaquim Vitório da Costa e Pedro Alexandrino
Pinto de Sousa, nota-se que o Javari se desenha até 5o 40′ lat. Sul,
ou até quase às suas cabeceiras, por maneira a justapor-se em
quase todos os pontos às cartas modernas, feitas de 1863 a 1901.
Estes exemplos satisfazem. Prolongá-los seria fazer a longa e belíssima
história, ainda inédita, da geografia brasileira na Amazônia.

Apresentamo-los para o só destaque deste conceito: enquanto as pesquisas
geográficas irradiavam por toda a banda, na bacia do grande rio, paralisavam-se
de todo nos lugares mais próximos do Ucayali e ao norte do Madre Dios.

Em 1864, um anos após publicar-se o livro de Paz Soldan, ainda reinavam,
no tocante às nascentes do Juruá e do Purus, as idéias
dúbias palidamente esboçadas em 1818 pelos missionários
do Colégio de Santa Rosa de Ocopa, na planta das missões do
Ucayali, publicada em 1833.(6)
Ali, o Purus, sob o nome de Cuja, mal se adivinha incorretamente, no levante.
Os próprios missionários nunca o viram. Conforme o confessaram,

e escreveram naquela carta, debuxaram-no según varias relaciones
de los indios.
E ele assim ficou até à viagem notável
de William Chandless, que prolongou os trabalhos do engenheiro João
Martins da Silva Coutinho e do abnegado Manoel Urbano, completados em 1905
por uma comissão mista brasileiro-peruana.
O mesmo quanto ao Madre de Dios. Malgrado as tentativas do pertinaz Padre
Bovo de Revello, ele não perdera, ainda em 1848, o traçado misterioso
do lendário Amaru-mayo dos Commentarios reales, de Garcilaso.
A famosa exploração de Faustino Maldonado (1852) que não
era um geógrafo, nem um comissionado do Peru, mas um prófugo
viajante, ansioso por salvar-se em terras estrangeiras, fora nula, apesar
da valia que hoje se lhe pretende emprestar. Antonio Raimondi, em 1879, no
seu livro clássico, garante-nos ter sido ela completamente estéril:
“No nos há dejado dado alguno…”
E aditava, mais longe, que, entre todos os rios daquelas paragens, “el
Madre de Dios, es todavía sin duda alguna aquel cuyo curso es menos
conocido”.
(7)
Por fim o Inambari, elemento essencial no presente litígio ainda em
1863, na poderosa opinião do maior geógrafo peruano, era:
une rivière tres considerable qui separe la province de Carabaye
du territoire des barbares… et un afluent du Maranón dans lequel
il va se jeter apres une percours assez êtendu.”
(8)

Aí se observa, a ladear o pasmoso erro geográfico, a insistência
naquela demarcação política certíssima:
Não multipliquemos os exemplos.
Ante os que se inserem, não maravilha resultasse imperfeito, naqueles
lados, o belo trabalho de Gibbon. Mas as sombras geográficas, que o

esforço do yankee mal poderia romper, isolado, não
escurecem o critério, que firmou, conscientemente, de serem, o Inambari
e o seu afluente Marcapata, os limites naturais e históricos da Bolívia
com o Peru; e a linha de Santo Ildefonso, a divisória exclusiva entre
a Bolívia e o Brasil.
Destas linhas, que poderíamos estender em muitas páginas, com
o só auxílio do insuspeito livro de Antonio Raimondi, decorre
outra conseqüência, robusta como um corolário ao fim de
um teorema: a posse peruana nas cabeceiras do Juruá e do Purus, nula,
de direito, antes de 1810, não se realizou, de fato, nos anos subsequentes
até aos Tratados de 1851 e 1867. Enquanto a Bolívia prolongava
a sua avançada histórica para o norte, e desbravava e povoava
as terras que se desatam para o ocidente a começar da margem direita
do Madeira, ao ponto de erigir-se, desde 1842, o Departamento do Beni a estirar-se
para o Madre de Dios, transpondo-o, até ao Acre meridional – no extremo
oeste, à parte a arremetida inútil de Maldonado, as explorações,
feitas quase exclusivamente pelos missionários, reduziam-se, no seu
máximo avançamento em busca dos territórios orientais,
à grande expedição, do Conde Francisco de Castelnau (1843-1847),
executada por ordem do Governo francês.(9)

*

Não se impõe longa explanação deste assunto,
que está fora do litígio, tão rigorosamente inscrito
na órbita fechada do uti possidetis de 1810.
Recordando-nos, porém, que há pouco tempo, no contravir a vários
conceitos do professor John Moore, da Columbia University, um internacionalista,
francamente devotado à causa peruana. Carlos Wiesse, professor da Faculdade
de São Marcos – aventurou, entre outras afirmativas cambaleantes, que
o médio e baixo Purus não estavam na posse efetiva do Brasil
em 1822, aproveitemos o lance para destruir-lhe a objeção fragílima.(10)

Com efeito, contrastando com a paralisia das entradas geográficas no
oriente peruano, naqueles tempos, a expansão brasileira no Amazonas
(que se desenvolvera, no século XVIII, linearmente, até Tabatinga)
definia-se, vigorosa, em movimentos laterais, que alargavam pelos maiores
tributários ao sul do grande rio.
Sobram-nos a este respeito documentos acordes todos no patentearem desde 1780,
os mais perseverantes esforços para o povoamento daquelas regiões.
E no que toca ao Purus, o simples folhear as Revistas do nosso Instituto Histórico
nos revelaria que ele estava em tanta maneira conhecido, explorado em parte
de seu curso, percorrido no trecho inferior pelos extratores de drogas, e
desafiando tanto o mais decidido ânimo de uma posse incondicional, e

animus domini, que determinou uma das mais curiosas extravagâncias
da derradeira fase do regímen colonial. De feito, o último governador
do Rio Negro, Manuel Joaquim do Paço, em 1818, trancou-o. Proibiu que
o sulcassem os pesquisadores de salsa e outras especiarias – “indo-se-lhe
os olhos cegos de sua ambição atrás dos preciosos frutos”,
conforme nos delata a palavra insuspeita de um cronista.(11)
Deste modo, muito ao revés do que aventurou o catedrático da
Faculdade de São Marcos, o Purus não estava na mesma condição
do médio e alto Mississipi, quando os disputavam os Estados Unidos
e Espanha. E o mesmo sucedia com o Juruá e o Javari.
Imobilizada a geografia peruana nas bordas do Ucayali, os descobrimentos dos
tributários austrais do Amazonas são uma glória privativa
de geografia brasileira.
Abandonaríamos inteiramente o nosso assunto, mostrando-a.
Sirva-nos de remate – e prova fulminante – extratar apenas mais um dos trechos
do livro daquele Antonio Raimondi, que se nacionalizou no Peru graças
a trabalhos memoráveis, e se erige em máximo inspirador das
linhas mais atrevidas das modernas pretensões peruanas.
Escrevia o historiador-geógrafo em 1879:
“Casi no cabe duda alguna, que deben existir comunicadones entre
el Ucayali y algún otro tributario del Amazonas situado mas al oriente;
pues se tiene noticias de varios casos que en el siglo pasado aparecieron
los brasileiros en el Ucayali, sin haber entrado por la boca de este rio”.
(12)
Assombrosa e rara antilogia: o Peru discute, reclama, exige; discute profusamente,
reclama insistentemente, exige, quase ameaçadoramente, um território
acerca do qual o seu grande geógrafo, o único de seus geógrafos
capaz de continuar a tradição luminosa de Paz Soldan, ainda
em 1879 só possuía notícias vagas, esmaecidas, a diluírem-se
em conjecturas, por intermédio… . dos brasileiros do século
XVIII!

Capítulo VIII

O TRATADO de limites de 23 de outubro de 1851, entre a República do
Peru e o Império do Brasil, foi, antes de tudo, uma troca de excepcionais
favores.
Ali se vendeu a pele do urso equatoriano…
O Império, admitindo a divisória pelo Javari, fortaleceu, com
o seu grande prestígio, as pretensões peruanas, que se estendiam
até aquele rio, tendo como só elemento de prova a controvertida
Cédula de 1802, a que se contrapunham, vitoriosamente: o atlas de Restrepo
(1827); a carta geral da Colômbia, de Humboldt (1825); e, saliente-se

este argumento extraordinário, o Mapa físico y político
do Peru, impresso em 1826 por ordem do Governo daquele país. Poderíamos
ir além: a que se contrapunha um Tratado, o de 1829, pactuado com a
Confederação Colombiana e estabelecendo que os limites das terras
austrais, do Equador, abrangiam as províncias de Jaens e de Maynas,
isto é, eram “los mismos que tenian antes de su independencia
los antigos Virreinatos de Nueva Granada y del Perú, según el
uti possidetis de 1810″.(1)
Como quer que seja, as vantagens conseguidas pelo Peru foram enormes. Reduzimo-las,
anteriormente, a números: apropriou-se de 503.430 quilômetros
quadrados, ou sejam dois terços do Equador, conforme os cálculos
de Teodoro Wolf.(2)
Em compensação a República submeteu-se ao Império
na retrógrada tentativa deste para rnonopolizar a navegação
amazônica, excluindo-a do comércio universal.
É uma história de ontem, que se não precisa rememorar,
tão vibrante ela aí está, ao alcance de todos, nas páginas
revoltadas de F. Maury e de Tavares Bastos.(3)
Registre-se este único incidente: enquanto os enviados extraordinários
e ministros plenipotenciários brasileiros, mandados à Bolívia,
ao Equador e à Colômbia, com o objetivo de firmarem, com estes
países, o direito preeminente do Brasil à navegação
de seus tributários amazônicos, não logravam sequer entabular
as negociações, o Peru, sem opor o mais breve embaraço
a este alastramento da política imperial – naquele caso realmente imperialista
– aceitava-o e sancionava-o, solenemente, com o Tratado de 1851. Desta arte
se aliou ao Império no propósito obscurantista, que F. Maury
denunciou à humanidade, em frases admiráveis blindadas de uma
lógica irresistível: isto é, na missão de frustrar
todas as tentativas das relações comerciais de outros mercados
com aquelas Repúblicas, feitas pelos tributários do grande rio
– e destinada a estancar aquela artéria maravilhosa, perpetuando, num
monopólio odioso, o marasmo que durante três séculos entibiara
o desenvolvimento econômico da Amazônia.
“O Peru deixou-se lograr e fez o Tratado exigido”,(4) conceituou
o esclarecido oficial de marinha.
E iludiu-se. Iludiu-se palmarmente.
Vemo-lo agora.
Mas não lhe malsinemos a perspicácia. Qualquer observador mais
bem apercebido de acurada malícia, ou sutil argúcia, subscreveria,
naquele tempo, aquela frase. Fora preciso gizar-se a mais absurda entre as
mais complexas maranhas internacionais, para conjecturar-se que no Tratado
de 1851, onde os limites brasílio-peruanos se traçam de maneira
tão límpida, houvesse, latentes, tantos gérmens de dúvidas
capazes de justificarem o presente litígio – por maneira a prever-se
a inversão da frase do yankee, ao fim de meio século:

“O Brasil deixou-se lograr, no Tratado que firmou…”
Realmente, as nossas relações eram muito conhecidas, ao celebrarem-se
os Convênios de 1851 e de 1867, com o Peru e com a Bolívia. De
um lado, para com o primeiro, em tanta maneira maleável aos caprichos
da política imperial, todas as simpatias; de outro, para com a segunda,
perenemente recalcitrante e rebelde e agressiva, todas as animadversões
e azedumes. Ainda em 1867 um dos luminares da nossa história diplomática,
Antônio Pereira Pinto, conceitava que “na Bolívia as tradições
adversas ao Brasil passavam em seu Governo de geração em geração”.(5)

Datavam de 1833 as cizânias entre ela e o Império, no tocante
às questões de limites; e nunca mais cessaram, engravescendo-se,
crescentemente, com outras: em 1837 a propósito das sesmarias outorgadas
em territórios brasileiros; em 1844, oriundas das tentativas Bolivianas,
visando franquear a navegação para o Amazonas; em 1845,
1846 e 1847, até 1850, relativas todas, em última
análise, ao domínio amplo do Madeira; em 1853-1858, irrompendo
dos decretos declarando livres ao comércio e navegação
estrangeiros todos os rios que regam o território boliviano, fluindo
para o Amazonas e para o Prata; e firmando, expressamente, com os Estados
Unidos, um convênio, onde se estatui que todos aqueles cursos d’água
eram caminhos livres, ‘<abertos pela natureza ao comércio de todas
as nações…”.

Durante esse tempo abortavam as conferências e propostas para se resolverem
os deslindes internacionais desde 1841, em que se frustrara a missão
especial do Conselheiro Ponte Ribeiro. E os malogros, assim como as demais
discórdias, de relance precitadas, provinham, sobretudo, ao parecer
de Pereira Pinto, “de não quererem as autoridades supremas da
República arredar-se das estipulações do Tratado de 1777,
estipulações caducas depois da guerra de 1801”.
Destaquemos bem a razão, que aí está entre aspas, sob
a responsabilidade do lúcido internacionalista. O Império, esteando-se
no argumento (aliás opinável e frágil, porque há
outros mais sérios, como já o vimos) da guerra de 1801, obstinadamente
repelia, ou negava, as divisas do Tratado de Santo Ildefonso, para guiar-se
nas demarcações modernas; e como a Bolívia
“era um dos Estados sul-americanos mais pertinazmente interessados na
vigência daquele Tratado”, ensina-nos o publicista nomeado, resultaram
destes critérios, diametralmente contrários, os empeços
dilatórios no se pactuarem os limites respectivos.
A consideração é capital, máxime se a defrontarmos
com as docilidades e lhanezas, que favoreceram o Convênio de 1851 com
o Peru.
Com efeito, deduz-se, lisamente, que o grande empecilho contraposto ao curso
da política imperial, naqueles deslindamentos – o pacto de Santo Ildefonso
e a sua famosa divisória e principalmente a sua famosa divisória
Madeira-Javari – se eliminou de todo no acordo brasileiro-peruano.
E a lógica singela e forte dos fatos. Aparece, irresistível,
ao cabo de antecedentes históricos, que se não iludem.
O Império não celebraria a Convenção de 1851,
com a República do Pacífico, se houvesse de respeitar a caduca
demarcação que desde 1841 tanto o desarmonizava com a Bolívia.

A evidência é luminosa.
E, se lhe restassem ensombros, delir-lhos-ia este fato sabidíssimo:
o fracasso de todas as negociações com a Bolívia subsecutivas

aos Convênios brasílio-peruanos, de 1851 e 1858, até
aos reiterados esforços de nosso Ministro Rego Monteiro, em 1863.
Entretanto, este transigira. Ao fim de 20 anos de notas contrariadas, o Império
cedera, em parte, à pertinácia boliviana. Em conferência
de 17 de julho daquele ano, o seu plenipotenciário propôs a base
que mais tarde, quase sem variantes, se refletiria nos deslindamentos de 1867:
a linha limítrofe, após seguir o Paraguai, o Guaporé
e o Madeira até à foz do Beni,
“seguiria dali para Oeste por uma paralela tirada da margem esquerda,
na latitude de 10′ 20′ ate’ encontrar o rio Javari; e se este tivesse as suas
nascentes ao norte daquela linha, seguiria por uma reta, tirada da mesma latitude,
a buscar a nascente principal do mesmo rio”.
Era, como se está vendo, não já o embrião do Tratado
de 1867, senão todo ele, Integro.
A Bolívia, porém, repulsou a proposta. Não cedeu um passo
nas antigas exigências. Insistiu na sua divisória intangível,
de Santo Ildefonso.
As negociações romperam-se.
Interpretem-se, agora, os fatos. Havia doze anos (1851-1863) que se celebrara
o pacto com o Peru, à luz de um princípio novo, removendo os
deslindes anacrônicos das metrópoles. A política imperial
via-os renascer, contrariando-a, nas suas negociações com a
Bolívia. Demasiara-se nos maiores esforços, durante dois decênios,
por eliminá-los. Não o conseguindo, transigiu, alterando-os
ligeiramente, e deslocando a leste-oeste para o ponto indicado pelos antigos
comissários portugueses. Apesar disto a Bolívia não aquiesceu.
Manteve, pertinazmente, o que julgava ser-lhe direito claro, exclusivo, inalienável.
As negociações fracassaram ruidosamente. Engravesceram as relações
dos dois países… E durante todo esse tempo o Peru mandava os seus
comissários, emparceirados aos nossos, a demarcarem as linhas do Javari,
consoante o acordo de 1851, ratificado em 1858. Não emitiu,
ou boquejou, o mais balbuciante juízo no debate fervoroso, que se lhe
travara às ilhargas. Não insinuou, no decurso de doze anos,
em que coexistiram os seus convênios tranqüilos e as negociações
perturbadíssimas da Bolívia, o mais remoto interesse, prendendo-o
aos territórios, onde se abria o campo da discórdia. Não
disse aos contendores que o seu parecer, embora consultivo, era indispensável.

Fez isto: naquele mesmo ano, quatro meses apenas depois de baquearem as nossas
tentativas com a Bolívia, porque a Bolívia impunha o traçado
completo da linha de Santo Ildefonso, por que a Bolívia recalcitrava,
exigindo todas as terras amazônicas ao sul daquele paralelo, porque
a Bolívia não cedera, obstinadamente, um só hectare da
zona hoje litigiosa – o Peru celebrou com a Bolívia o
Tratado de Paz e Amizade de 5 de novembro de 1863, onde não se cogita,
sob nenhum aspecto, dos deslindamentos gravíssimos, cada vez mais insolúveis
ao cabo das mais longas, das mais repetidas, das mais demoradas, das mais
infrutíferas conferências, em que surgiam, como elemento único
de desarmonia, precisamente os territórios constituintes do atual
litígio.
(6)
Como explicar-se esta atitude?
Resta um doloroso dilema: ou o Peru reconhecia, de modo tácito, que
se lhe alheavam de todo aquelas terras, sobre as quais não poderia
exercitar o mais apagado direito – ou aguardava que a Bolívia, devotando-se
ainda uma vez ao seu papel de cavaleira andante da raça espanhola,
e intrépida amazona da Amazônia, se esgotasse nos debates diplomáticos,
e sucumbisse, ao cabo, dessangrada em uma guerra desigual prestes a romper,
para alevantar um direito tardio, entre as ruínas.
Não há fugir às proposições contrastantes.
Estamos afeitos às deduções rispidamente matemáticas.
Para quebrar-se a ponta que lanceia, aí, a honra nacional de uma terra
timbrosa de suas tradições cavalheirescas, é forçoso
admitir-se a infrangibilidade da outra. Admitimo-la de bom grado: o Peru,
em 1863, data em que se infirmaram as nossas relações com a
Bolívia, data em que se firmaram as suas relações com
a Bolívia, reconhecia o direito exclusivo desta última à
posse das terras hoje controvertidas.
E o reconhecimento acentuou-se. Progrediu. Rotas as negociações,
o nosso Ministro pediu os passaportes e retirou-se da República incontentável.

Entre os dous países, as relações, turvando-se, assumiram
esse sombrio aspecto crepuscular, que não raro se rompe aos repentinos
brilhos das espadas. Além disto, o micróbio da guerra envenenava
o ambiente político, germinando nas sangueiras do Paraguai. A América
estremecia na sua maior campanha. Toda a nossa força molificava-se
ante a retratibilidade de Solano Lopes e a inconsistência dos “esteros”
empantanados…
A ocasião surgia a talho a que a política imperial resolvesse,
de um lance, dois problemas capitais, na conjuntura apavorante em que se via:
captar o bem-querer do Peru, cuja antiga cordialidade resfriara, trocando-se
por simpatias ao Paraguai, ao ponto de ocasionar a retirada, de Lima, do nosso
representante Francisco Varnhagen; e revidar, triunfantemente, à tradicional
adversária, que nos ameaçava pelos flancos de Mato Grosso. Para
isto um meio infalível: atrair o Peru à posse das maravilhosas
terras da Amazônia meridional.
Mas não se aventou sequer este alvitre.
O Império manteve-se, nobremente, no plano superior das nossas tradições.

Submeteu-se à retitude do nosso passado político. Não
repudiou os ensinamentos austeros dos nossos velhos cronistas e dos melhores
geógrafos, que estabeleciam, unânimes, o direito boliviano naquelas
terras.
Abandonou, galhardamente, o desvio que o favorecia; e firmou o Tratado de
Ayacucho, de 27 de março de 1867, decalcando-o, linha por linha, pelas
bases propostas em julho de
1863.
Decalcando-o, frase por frase, pelas bases propostas em 1863 – é indispensável
repetir, porque em várias páginas de lídimo castelhano
se tem garantido, bumoristicamente, que o firmamos urgidos, ou aguilhoados,
das dificuldades que nos assoberbavam sob o alfinetar das baionetas paraguaias.

O fato é que em 1867, a despeito das vicissitudes de uma guerra – gravíssimas,
embora o nosso Exército já se houvesse imortalizado em Tuiuti
– o Brasil manteve a base oferecida cinco anos antes, quando a sua hegemonia
militar no continente era incontestável, aparecendo entre o desmantelo
da ditadura suplantada de Rosas e os triunfos, a passo de carga, da campanha
do Uruguai.
Ora, pactuado aquele convênio, pelos plenipotenciários Filipe
Lopes Neto e Mariano Duñoz, os bolivianos, em massa, protestaram. A
consciência nacional rebelou-se contra o governo que deslocara a velha
linha histórica.
Explodiu em panfletos violentíssimos.
A ditadura de Melgarejo reagiu, discricionária. Lavraram-se proscrições.

E durante a crise tempestuosa o Peru quedou na mais imperturbável e
cômoda quietude.
Protestou, afinal, transcorridos nove meses. O protesto, subscrito pelo Ministro
das Relações Exteriores, J. A. Barrenechea, é de 20 de
dezembro de 1867. Nove meses justos, que a noção relativa do
tempo torna sobremodo longos na precipitação acelerada dos acontecimentos.

Mas protestou; e no protesto tranluz, notavelmente, a insubsistência
das pretensões peruvianas. Raras vezes se encontrará documento
político onde se contrabatam, às esbarradas, as maiores antilogias
e se abram, em cada período, tão numerosas frinchas à
mais fácil crítica demolidora. (7)
O Ministro, ao termo da penosa gestação, começa ponderando
que sempre
“havia creido que era conveniente para las Repúblicas aliadas
darse conocimiento de sus negociaciones diplomáticas”,
quando
havia 25 anos, desde 1841, que as negociações brasílio-bolivianas,
ruidosas, alarmantes, cindidas no intermitir de sucessivos fracassos, preocupavam
a opinião geral sul-americana.
E talvez não demonstrasse que os acordos anteriores, do Peru, houvessem
satisfeito à conveniência de uma consulta prévia à
Bolívia. Depois, doutrina professoralmente que o princípio do
uti possidetis, estabelecido no Tratado de 1867, embora se pudesse
invocar com justiça nas controvérsias territoriais das nações
hispano-americanas oriundas de uma metrópole comum, não poderia
aplicar-se, tratando-se de países dantes submetidos a metrópoles
diversas, entre as quais havia pactos internacionais regulando-lhes os domínios
– deslembrando-se que aquele mesmíssimo princípio expressamente
aceito pelo Peru fora o único em que se baseara o Convênio de
1851, ratificado em 1858. Apesar disto preleciona:
“Asi el uti possidetis no podia tener lugar entre Bolívia
y Brasil…”

Prossegue. Refere-se à semidistância do Madeira. Esclarece-lhe
a posição verdadeira. (8) Argúi, amargamente, a Bolívia
de permitir que ela se mudasse tanto para o sul, o que importava na perda
de dez mil léguas quadradas de terrenos, incorporados ao Brasil, onde
se deparam:
“ríos importantisimos, tales como el Purus, ei Yuruá
y Yutay, cuyo porvenir comercial puede ser inmenso”;

e, logo adiante, esquecido da semidistância, tão pecaminosamente
deslocada pela complacente Bolívia, que se não devera mudar
tanto para o sul (porque ela deveria interferir o Javari em 6o 52′, consoante
o juízo de Raimondi, restaurado, às cegas, nas atuais pretensões
peruanas), escreve que, conforme o Pacto de 1851, entre o Brasil e o Peru,

…. todo el curso del rio Javary es limite común entre los Estados
contratantes.

E um jogo estonteante de incongruências curiosíssimas.
Por fim, a serôdia impugnação não afirma, não
precisa, não acentua um juízo claro dos prejuízos peruanos.
Não diz o que reclama. O protesto é o murmúrio vacilante
e medroso de uma conjectura; é a expressão anódina de
um interesse aleatório: o governo boliviano cedeu ao Brasil territórios
“que pueden ser de la propriedad del Perú”.
Que pueden ser…
Aí está o corpo de delito direto da maior e mais insensata cinca
da política internacional sul-americana. (9)
Este documento, que não resiste à mais romba e desfalecida análise,
devia ser o que foi e o que é: contraditório, frágil,
bambeante, sem nenhuma pertinência jurídica, e a destruir-se
por si mesmo na decomposição espontânea da própria
instabilidade, advinda, a um tempo, do contraste e divergência dos seus
conceitos, que ora se anulam, entrechocando-se, ora, disparatando, des agregam-se
e pulverizam-se.
O período gestatório de nove meses, há pouco considerado
longo, achamo-lo, agora, apertadíssimo. Em nove meses apenas, o mais
prodigioso gênio não conceberia paralogismo, para iludir três
séculos, escrevendo quatro ou cinco páginas capazes de embrulharem
toda a história sul-americana.
Não vale a pena prosseguir. Deste lance em diante o assunto decai.
Baste-se dizer que, por paliar, ou rejuntar, superficialmente, estes estalos
na estrutura de seu protesto e das suas exigências, apela o Governo
peruano para o adiáforo, o vátio, o insubsistente, dos dizeres
de algumas instruções aos comissários demarcadores dos
limites, entre 1863 e 1874. Não nos afadiguemos na tarefa inútil
de apurá-las. Satisfaz-nos, a este propósito, uma consideração
única: quaisquer que elas fossem, aquelas instruções
debateram-se, balancearam- se, longos anos, por maneira a prevalecer, naturalmente,
o critério das deliberações finais.
Pois bem – o comissário brasileiro que, de harmonia com o peruano,
implantou o “marco definitivo” dos nossos deslindamentos com o Peru,
em 1874, nas cabeceiras do Javari, foi o venerando Barão de Tefé;
e ele, que com o maior brilho repelira as constantes propostas de seu colega,
M. Rouaud y Paz Soldan, para adotar-se a célebre linha média,
do Madeira ao Javari, mesmo escandalosamente deslocada para 9o 30′ de
latitude sul, conforme, reiteradamente, aquele lhe oferecera em documentos
oficiais inequívocos e límpidos – o Barão de Tefé,
a quem se pode cortejar desafogadamente, porque na sua quase existência
histórica é apenas um relíquia sagrada do nosso passado,
sem a mais breve influência nos negócios públicos – ao
implantar o marco definitivo do Javari manteve, integral, o parecer vitorioso
que impusera ao comissário peruano, consistindo nestes pontos essenciais:

1o – Que o Peru nenhum direito possuía à margem direita do Madeira;

2o – Que a República do Peru no Tratado solene celebrado com o Império
do Brasil, estabelecera como limite todo o curso do rio Javari;
por isto considerou nulo o art. 9o do Tratado de Santo Ildefonso, que
fixava o extremo sul da fronteira do Javari no ponto cortado pela linha leste-oeste.
tirada a meia distância do Madeira, que é o mesmo paralelo dos
7o 40′ dos comissários de 1781.
Nestas palavras ultimaram-se para sempre os nossos negócios territoriais
com o Peru.

*

O prolongamento natural destas linhas consistiria em desvendar o cenário
da recentíssima expansão daquela República, a estirar-se
pelas cabeceiras do Juruá e do Purus – obscuramente, temerosamente

e criminosamente – escondida no afogado das selvas oscuras das castillôas,
por onde vai alastrando-se a rede, aprisionadora de territórios,
entretecida pelas trilhas tortuosas e fugitivas dos caucheiros.
Mas estes, reclamam-no-los outras páginas.

*

Terminemos.
Estes artigos têm a valia da própria celeridade com que se escreveram.
São páginas em flagrante. Não houve, materialmente, tempo
para se ataviarem frases, expostas na cândida nudez de uma esplêndida
sinceridade.
Fomos apenas eco de maravilhosas vozes antigas. Partimos sós, tateantes
na penumbra de uma idade remota. Avançamos; e arregimentou-se-nos em
torno uma legião sagrada, mais e mais numerosa, onde rebrilham os melhores
nomes dos fastos de uma e outra metrópole. Chegamos ao fim, malgrado
a nossa desvalia, a comandar imortais.
Daí a absolvição desta vaidade: não nos dominaram
sugestões. Num grande ciúme de uma responsabilidade exclusiva,
não a repartimos. O que aí está – imaculada e íntegra
– é a autonomia plena do escritor.
Muitos talvez não compreendam que, numa época de cerrado utilitarismo,
alguém se demasie em tanto esforço numa advocacia romântica
e cavalheiresca, sem visar um lucro ou interesse indiretos. Tanto pior para
os que não o compreendam. Falham à primeira condição
prática, positiva e utilitária da vida, que é o aformoseá-la.

De tudo isto nos resultou um prêmio: nivelamo-nos aos princípios
liberais de nosso tempo. Basta-nos. Afeiçoamo-nos, há muito,
aos triunfos tranqüilos, no meio da multidão sem voz dos nossos
livros. Hoje, como ontem, obedecendo à finalidade de um ideal, repelimos,
do mesmo passo, o convício e o aplauso, o castigo e a recompensa, o
desquerer e a simpatia.
Não combatemos as pretensões peruanas. Denunciamos um erro.

Não defendemos os direitos da Bolívia.
Defendemos o Direito.

Notas adicionais indispensÁveis:

I

Os dizeres dos plenipotenciários portugueses e espanhóis, extractados
em várias páginas do capítulo III, pertencem a documentos
existentes no Arquivo de Simancas, Legajos 7 403 e
7 406.

II

A Real Cédula de 15 de setembro de 1772, tantas vezes citada, consta
do Archivo de Índias, Est. 120. Cap. 7. Leg. 27.

III

O Memorial de Bartolomeu Verdugo, e as informações de vários

ministros expostas no capítulo IV – existem no Archivo de Índias,
Leg. 27.

Apêndice – Protesta del Peru

Ministerio de Relaciones Exteriores del Perú – Lima, Diciembre 20
de 1867.
Señor Ministro: El infrascrito, Ministro de Relaciones Exteriores del
Perú, tiene el honor de dirigirse á S. E. el Señor Ministro
de igual clase de la República de Bolívia, con motivo del Tratado
que se ha celebrado en La Paz entre Bolívia y el Brasil el 27 de Marzo
del presente año, y a fin de salvar los detechos del Perú comprometidos
en este acto internacional.
Poco después de la llegada del Señor López Netto a Bolívia,
comenzó a hablarse de la negociación de un Tratado de Limites,
y solo últimamente se tuvo noticia de la celebración de un importante
pacto entre los dos países. Ele infrascrito que por diferentes motivos
debia hacerse intérprete del interés que tiene el Perú
en todo lo relativo a Bolívia, habió sobre el particular al
Señor Benavente; pero S. E. no tenia conocimiento alguno del contenido
de aquel Tratado; y el Gobierno del Perú ha aguardado a que ese notable
documento fuese publicado en los periodicos para imponerse de su contenido.

El infrascrito habia creido que era conveniente para las Repúblicas
aliadas, darse conocimiento de sus negociaciones diplomáticas más
importantes: y no sólo tenia, sinó que conserva aún el
propósito de no concluir ningún pacto de alguna gravidad sin
comunicar su pensamiento a las Repúblicas hermanas, que están
llamadas a formar entre si una entidad internacional. Por lo mismo habría
deseado encontrar en Bolivia el mismo pensamiento y fortificar la unión
por una reciprocidad de miras y de sentimientos que parece desprenderse de
la situación actual. En el presente caso, la confianza entre el Perú
y Bolívia tenia otros motivos de justificación, nacidos, por
un lado, del estado en que encuentra las relaciones de limites entre las dos
Repúblicas, no definido aún, y por otro, de no haliarse todavia
concluídas entre el Perú y el Brasil las negociaciones relativas
al mismo objeto. Por lo mismo la previa inteligencia entre las dos Repúblicas
no habria sido perjudicial, sinó talvez muy útil al buen resultado
de la negociación.
Nada se halla, sin embargo, más distante del Gobierno del Perú
que la idea de intervenir en lo menor de las cuestiones que son de la exclusiva
competencia del Gobierno boliviano. Asi él no entrará en el
examen del Tratado, en la parte que se refiere únicamente a Bolívia.
Sin embargo, cree de acuerdo con lo que en otra ocasión manifestó

el Gabinete de Sucre, que el principio del uti possidetis; pactado
en el primer acápite del artículo 2o, si bien
puede invocarse con justicia en las controversias territoriales de los Hispanoamericanos,
que dependían de una metrópoli común y que durante la coloniaje
no eran sino diversas secciones administrativas, no puede tener aplicación
al tratarse, como al presente, de diversas metrópolis, entre las cuales
habia pactos internacionales que regulaban los diferentes dominios, legitimando
y confirmando la posesión que fuese conforme a él y condenando
la que le fuese contradictoria u opuesta. Efectivamente, el principio de la
posesión actual no puede servir de regia sino cuando la propiedad no
ha sido reconocida. Así el uti possidetis no podia tener lugar
entre Bolívia y el Brasil por cuanto estos dos países tienen un
derecho escrito sobre la materia. Por razones de diverso género el uti
possidetis
entre el Perú y Bolívia, aunque puede ser invocado,
en ciertos casos, es insuficiente en otros; porque haciendo ambas Repúblicas
parte del mismo virreinato, no se puede definir con exactitud la posesión
actual respecto de territorios sobre los que no hay verdadera detención.

Talvez por no haberse tomado en consideración estas observaciones se
ha llegado a formular un Tratado contra el cual el Perú se ve en la necesidad
de protestar en cuanto ataca sus derechos territoriales. En el artículo
2o se estipula “que la línea divisoria del extremo Sur de Corixa
grande irá en líneas rectas al morro de Buena Vista y a los Cuatro
Hermanos; de estos también en línea recta hasta las nacientes
del rio Verde; bajará por este rio hasta su confluencia con el Guaporé
y por medio de éste y del Mamoré hasta el Beni, donde principia
el rio Madera”.
“De este rio para el Oeste seguirá la frontera por una paralela
tirada de su margen izquierda, en la latitud Sur, 10 grados 20 minutos, hasta
encontrar el rio Yavary”.
“Si el Yavary tuviese sus nacientes al Norte de aquella línea Este-Oeste,
seguir la frontera desde la misma latitud por una recta hasta encontrar el origen
principal de dicho Yavary”.
Examinado el mapa oficial de Bolívia de 1839, se ve que el rio Madera
no comienza en el Beni sino en la confluencia del Guaporé con el Mamoré.
Esto se halla conforme con los más acreditados mapas. Este error geográfico
puede producir resultados equivocados.

Lo más grave para el Perú es hacer seguir la frontera entre
Bolívia y Brasil por una paralela tirada de la margen izquierda del
Madera en la latitud Sur 10 grados 20 minutos hasta encontrar el rio Yavary
o en caso de no encontrar este hasta su origen.
Conforme el Tratado de San Ildefonso de 1777 la línea habria debido
tirarse de la semi-distancia del Madera calculada entre la confluencia del
Mamoré y del Guaporé y la desembocadura del primero en el Amazonas.
A si se deduce del artículo 11 de dicho pacto cuyo teor es el siguiente:

“Bajará la línea por las aguas, de estos dos rios Guaporé
y Mamoré, ya unidos con el nombre de Madera, hasta el paraje situado
en igual distancia del rio Marañón o Amazonas, y de la boca
del rio Mamoré; y desde aquel paraje continuará por una línea
Este-Oeste hasta encontrar coo la ribera oriental del rio Yavary, que entra
en el Marañtin por su ribera austral; y bajando por las aguas del mismo
Yavary hasta donde desemboca en el Marafión o Amazonas, seguirá
aguas abalo de este rio, que los espanoles sueien ilamar Oreilana y los indios
Guiena, hasta la boca más occidentai del Yapura, que desagua en “él
por la margem septentrionai”.
Esta estipuiación se halla de confornsidad con el artículo 8.’
del Tratado de Madrid de 13 de Enero de 1750, que dice asi:
“Bajará (la línea divisoria) por las aguas de estos dos
rios (el Guapuré y el Marioté) ya unidos hasta el paraje situado
en igual distancia del citado rio Marañún o Amazonas, y de la
boca del dicho Mamoré y desde aquei paraje continuará por una
línea Este-Oeste hasta encontrar la ribera oriental del rio Yavary
que entra en el Marañón por la ribera austral y bajando por
las aguas del Yavary hasta donde desemboca en el Marañón o Amazonas,
seguirá aguas abajo de este rio hasta la boca más occidental
del Yapura, que desagua en el por la margen septentrional”.
El resultado de no haberse tenído en cuenta estas estipulaciones y
de haberlas sustituído con el artículo 2o del Tratado en cuestión,
puede percibirse por todo el que examine ligeramente una carta de las localidades.
Lejos de ser lisonjero para el Perú y para Bolívia, importa
la absorción por el Brasil de cerca de diez mil leguas cuadradas, en
las coales se encuentran rios importantísimos, tales como el Purús,
el Yuruá, el Yutay, cuyo porvenir comercial puede immenso.
Si el Gobierno de Bolívia no ha temido las consecuencias del Tratado,
el del Perú se ve en la necesidad de hacer las reservas convenientes
en guarda de los derechos territoriales de la República.
Los limites entre Perú y Bolívia no están aún
definidos.
En el artículo 12 del Tratado de Paz y Amistad entre las dos Repúblicas,
se estipuló lo siguiente: “Ambas Partes Contratantes, en el propósito
de alejar todo motivo de mala inteligencia entre ellas, se comprometen a arreglar
definitivamente los limites de sus respectivos territorios, nombrando, dentro
del término que de común acuerdo se designe, después
del canje de las ratificaciones del presente Tratado, una Comisión
mixta que levante la carta topográfica de las fronteras y verifique
la demarcación, etc., etc.
Ninguna urgencia ha tenido el Perú para llevar adelante ese deslinde
pero el de Bolívia desde que ha creido conveniente hacer el suyo con
el Brasil respecto de territorios que por lo menos, debió considerar
como limítrofes del Perú, parece que debia ajustar con éste
la debida negociación. Este olvido ha causado la cesión que
el Gobierno de Bolívia ha hecho al Brasil de territorios que pueden
ser de la propiedad del Perú. Salvarlos es el objeto que se propone
el infrascrito en la presente nota.
Verdad es que el Gobierno del Perú aceptó también el

principio del uti possidetis y sustituyó a los Tratados celebrados
por la Metrópoli la posesión actual y conforme a ella, el Tratado
de 23 de Outubre de 1851 que la República se halla en el deber de respetar;
paro el Gobierno peruano había deseado que el de Bolívia se aprovechase
de la experiencia que el Perú ha adquirido a costa de algunos sacrificios.
Ya que esto no ha tenido lugar, por lo menos el Perú habria deseado que
el Tratado de 1851 fuese respetado con todas sus consecuencias.
Según ese pacto, ratificado posteriormente por la Convención de
1858, todo el curso del rio Yavary es limite común para los
Estados Contratantes; y aunque los Tratados no lo dicen, los Comisarios de limites
senores Carrasco y Acevedo pactaron que se llegasse hasta la latitud de nueve
grados treinta minutos Sur ó hasta el nacinsiento de dicho rio, siempre
que éste se encontrase en una latitud inferior. La linea paralela al
Ecuador, trazada en una de las referidas situaciones senaló la división
territorial entre el Perú y el Brasil por ese lado, quedando pertenciente
al Perú todo el terreno comprendido entre el Sur y la enunciada paralela,
que debe terminar en el rio Madera. Tan cierto es esto, que los Gobiernos del
Perú y del Brasil, al conferir sus instrucciones a los Comisarios respectivos,
tuvieron especial cuidado de consignar en ellas como punto cardinal esta verdad
y en todos las conferencias oficiales de los Comisarios, que existen protocolizadas,
asi como las instruciones dadas a la Comisión espaecial, que se encomendó
a los secretarios para la exploración del Yavary, se acordó prevenir
de una manera expresa lo que queda manifestado.

Resumiendo lo expuesto, resulta que, según el Tratado en cuestión:

1o La frontera debe seguir del Madera para el Oeste por una paralela tirada
de su margen izquierda en la latitud Sur diez grados veinte minutos hasta
encontrar el rio Yavary.
2o Si el Yavary tuviese sus márgenes al Norte de aquella línea
Este-Oeste, seguirá la frontera desde la misma latitude, por una recta,
hasta encontrar el origen principal de dicho Yavary.
En el primer caso, el Brasil para fijar por este lado sus limites con Bolívia,
invade nuestra propiedad, reconocida por el, en los citados pactos de 1851
y de 1858.
Si los Comisarios de Bolívia y del Brasil se vieran precisados a ilevar
adelante la segunda soiución, se tendria como consecuencia necesaria
un resultado imposible: que las nacientes del Yavary servirian de punto común
de partida para establecer fronteras respectivas entre el Perú, Bolívia
y el Brasil; y que la recta que de allí partiera hasta encontrar la
margen izquierda del Madera, vendria á ser, poco más ó
menos, linea divisoria, también común, para los tres países.

Si Bolívia (admitiendo esta hipótesis) es dueño del territorio
de que se ocupa el infrascrito á quien perteneciera la faja de terreno
comprendida entre la paralela pactada entre el Perú y el Brasil y la
que el imperio ha estipulado con Bolívia?
El Tratado no lo dice.
En el caso de que el Gabinete de Sucre hubiera querido escuchar al Perú
se habria evitado, por lo menos, la divergencia en la manera de apreciar estas
importantes cuestiones.
Ya que este no ha tenido lugar, el infrascrito cumple las órdenes de
S. E. el Presidente del Perú protestando contra el mencionado Tratado
de 27 de Marzo, en cuanto ataca por su artículo 2o los derechos territoriales
del Perú.
El infrascrito tiene el honor de reiterar á S. E. el señor Ministro
de Relaciones Exteriores de Bolívia, las seguridades de alta consideración
con que se suscribe de S. E. muy atento y muy obediente servidor.
(Firmado) J. A. Barrenechea.
Excmo. Señor Ministro de Relaciones Exteriores de la República
de Bolívia.
140 141

II
Contra-protesta de Bolívia

Ministerio de Relaciones Exteriores da Bolívia. – Sucre Febrero 6
de 1868.
Señor: He tenido el honor de recibir por el último correo, el
interesante despacho que V. E. se ha servido dirigirme con fecha 27 de Diciembre
último, en el cual, con motivo del Tratado que Bolívia ha cele
brado con el Brasil el 27 de marzo del año próximo pasado, y
á fin de salvar, según se expresa, los derechos del Perú,
comprometidos en este acto internacional, V. E. tiene á bien protestar
contra el mencionado Tratado, en cuanto ataca por su articulo 2o los derechos
territoriales del Perú.
Antes de recibir el citado despacho de V. E., ya tuve ocasión de

verlo publicado en El Comercio de esa Capital, y aguardaba sólo
recibir el ejemplar auténtico para contestar á V. E., como paso
á hacerlo.
Sensible es para el Gobierno de Bolívia que el ejercicio de un acto internacional
de su exclusiva competencia y que ninguna relación tenia con los altos
fines de la Alianza del Pacífico, a la cual adhirió con la mayor
expontaneidad, haya podido considerarse como objeto de un cargo, desde luego
inmotivado, contra sus propósitos, igualmente perseverantes que los del
Perú, para fortificar la unión por una reciprocidad de miras y
de sentimientos, de que tiene dadas algunas pruebas.
Menos podia considerarse en la obligación de buscar una inteligencia
previa con el Perú, por mas motivos de fraternidad y estrechez cordial
que lo unam con él, desde que se trataba de una negociación en
la cual sólo

Bolívia debia comprometerse, siendo también a ella exclusivamente,
a quien debia favorecer ó perjudicar aquel Tratado, sin que sea parte
á inclinaria en el sentido que expresa V. E., la circunstancia de ballarse
aún sin definirse y demarcarse sus limites con el Perú, puesto
que por el mismo art. 12 del Tratado de Paz y Amistad entre las dos Repúblicas,
cualquiera de las Altas Partes Contratantes podia y puede tomar la iniciativa
para arreglar definitivamente los limites de sus respectivos territorios,
como en él se halla estipulado. Extrañar que no se haya dado
al Perú noticia previa en un negocio privativo de Bolívia, parece
que era innecesario y que lo será siempre.
Entretanto, el Gobierno de Bolívia se hace un honor en reconocer la
altura con que el de esa República declara: que “nada se halla,
sin embargo, más distante del Gobierno del Perú que la idea
de intervenir, en lo menor, en las cuestiones que son de la exclusiva competencia
del Gobierno boliviano.” Este profesa igual principio y está resuelto
a observalo con lealtad invariable.
Pasando al fondo de la cuestión y prescindiendo de que en la relación
íntima que existe entre ambos países, más natural y obvio
era, acaso, pedir uma explícación prévia, (como lo hizo
Bolívia respecto al Tratado de 1o de Mayo de 1865, concluido entre
el Imperio del Brasil y dos Repúblicas del Plata) reservando la protesta
para después de conocer el esprito y tendencias de los Estados signatarios;
pasando, repito, al fondo de la cuestión, me bastaria declarar a V.
E. que, sin estimar fundada la protesta, el Gobierno de Bolívia, que
sabe respetar los derechos ajenos, no ha intentado menoscabar los del Perú
en el Tratado de 27 de Marzo, el cual no compromete ni en un palmo de terreno
los intereses peruanos, por más que V. E. se esfuerce en atribuir al
Brasil la absorción de cerca de 10 000 leguas cuadradas, que se permite
suponer cedidas por Bolívia en prejuicio del Perú.
Mas, como V. E. funda su protesta en varias apreciaciones, igualmente inexactas,
me veo en el deber de refutarlas, rectificando los hechos y manifestando la
verdad de las cosas.
Principiaré por bacer notar a V. E. que en el mapa oficial de Bolívia
de 1859, no es exacto que el rio Madera comience en la confluencia del Guaporé
con el Mamoré, aún cuando esta aserción se halle conforme
según dice V. E., con los más acreditados mapas. Lo que hay
de evidente es que, en el mapa oficial de Bolívia de 1859, reunidos
el rio Itenez ó Goaporé con el Mamoré, en la longitud
67o 55′ del meridiano de Paris y a la latitud Sur 11o 22′, continúan
su curso bajo el nombre exclusivo de Mamoré, el cual unido al rio Beni,
en la longitud 68o 40′ y a la latitud Sur 10o 20′ recibe la denominación
de Madera, con que signe su curso hasta incorporarse al Amazonas.
Para comprobar lo dicho, hasta la más lígera inspección
del mapa boliviano; inspección que desvanecerá los infundados
temores de ese error geográfico, que en realidad no existe, y que,
por lo mismo, nunca podrá tampoco producir resultados equivocados.

Debo también assegurar á V. E. que en la negociación
del Tratado de 27 de Marzo, el Gabinete de Sucre no olvidá que estaba
aún pendiente la definición de los limites entre Bolívia
y el Perú; hallábase, empero persuadido, como lo está
hoy mismo, de que esta cuestión en nada afecta a los arreglos que contiene
aquel Tratado.
Tuvo, además, en cuenta las estipulaciones de 1750 y de 1777, ajustadas
entre las Coronas de España y de Portugal, y para haberlas sustituído
con el art. 2o del Tratado en cuestión, non perdió de vista
que aquellas quedaron sin ejecucion y jamás establecieron una verdadera
posesión para el Gobierno espanol.
No quedaba, pues, otra base para fundar sólidamente los derechos

territoriales de Bolívia y del Brasil, que el principio del uti possidetis;
isto es, la posesión real y efective de Espalia y Portugal, aún
quando fuese detentación; no pudiendo tomarse por posesión verdadera
aquello que pretendiese tener qualquiera de las dos coronas sin una ocupación
positiva y actual.
Pero el Perú y el Brasil concluyeron en 23 de Outubre de 1851, como V.
E. mismo lo reconoce?
Su artículo 7o dice terminantemente. – “Para prevenir duda respecto
de la frontera aludida en las estipulaciones a la presente Convención,
convienen las Altas Partes Contratantes en que los limites de la República
del Perú con el Imperio del Brasil sean regulados en conformidad del
principio de uti possidetis; por consiguiente reconocen respectivamente
como frontera la población de Tabatinga; y de ahi para el Norte en linea
recta a encontrar el rio Yapurá, frente á la hoya del Apaporiz;
y de Tabatinga para el Sur el rio Yavary desde la confluencia
con el Amazonas”.
Aún hay mas y debe tenerse en cuenta que se estipulo tambien lo que sigue
-“Una Comisión mixta nombrada por ambos Gobiernos reconocerá,
conforme al principio del uti possidetis la frontera y propondrá
el canje de los territorios que juzgaren a proposito para fijar los limites
que sean mas naturales y convenientes a una y otra Nación”.

He ahi cómo el principio del uti possidetis ha sido la base
primordial y unica que ha regulado el Tratado entre Perú y el Brasil
en 1851.
Fuera de que esa misma frontera aún no se hallaba retamente definida
por entonces, como no lo está ahora mismo, puesto que se convino en
conferir a una Comisión mixta la faculdad de reconocerla y proponer
el canje de los territorios.
Porqué, pues, pretende el Gabinete de Lima, que el de Sucre habiera
rehusado adoptar el mismo principio que a el le servió para el ajuste
de limites con el Brasil?
Lo que fué razonoble y justo, ó cuando menos equitativo, para
la Cancilleria peruana, no debio serlo igualmente para la boliviana, en caso
identico y en perfecta igualdad de circunstancias?
Resurmendo V. E. lo expuesto en su citado despacho formúla las concluziones
siguientes:
1o “Si la frontera debe seguir del Madera para el Oeste por una paralela
tirada de su margen izquierda en la latitud Sur 10o 20′ hasta encontrar el
rio Yavary; el Brasil para fijar por ese lado sus limites con Bolívia,
invade la propiedad peruana reconocida por el en los citados pactos de 1851
y de 1858”.
2o “Si el Yavary tuviere sus margenes al Norte de aquelle línea
Este-Oeste, seguirá la frontera desde la misma latitud, por una recta
hasta encontrar el origem principal di dicho Yavary; en este caso, si los
Comisarios de Bolívia y del Brasil se vieran precisados a llevar adelante
esta segunda solución, se tendria como consecuencia necesaria un resultado
impossible – que las nacientes del Yavary serviran de punto común de
partido para estabelecer fronteras respectivas entre el Perú, Bolívia
y el Brasil; y que la recta que de alli partiera hasta encontrar la margen
izquerda del Madera, vendria a ser, poco mas ó menos, linea divisoria,
también común para los tres paises, y se Bolívia (admitiendo
esta hipótesis) es dueno del territorio, á que se refiere la
protesto, perguntase: – a quién perteneceria la faja de terreno comprendida
entre la paralela pactado entre el Perú y el Brasil y la que el Imperio
ha estipulado con Bolívia, puesto que el Tratado del 27 de Marzo no
lo dice?
Respecto a la primera y dejando al Gabinete del Janeiro la tarea de contestar,
en su caso, por lo tocante al Imperio, me limitaré solamente á
llamar la atención de V. E. sobre el mismo tenor literal del artículo
7o antes transcrito, según el cual los limites entre el Perú
y el Bolívia, al Sur de Tabatinga, están definidos por el rio
Yavary de maneira que los territorios adyacentes a su margen izquerda son
los últimos que par esa parte posee el Perú, correspondiendo
al Brasil los que se hallan situados a su margen derecha.
Y como en esta parte asiste tambien á Bolívia un derecho incuestionabie,

que nace del mismo principio del uti possidetis, que al Perú
le ha servido de punto de partida para sus arreglos territoriales con el Imperio,
nada parece mis natural que lo estipulado entre Bolívia y el Brasil,
que disponian de cosa propria, esto es, de territorios que posuian y donde la
soberania y jurisdición del Perú no podian alcanzar por impaderselo
el rio Yavaty, su limite reconocido en el Tratado de 23 de Octubre de 1951.
En este punto desaparece todo motivo de duda; y cualquer principio de cuestion
entre Bolívia y el Perú, queda regulado por el mismo Tratado Peruano-Brasileiro.

Con relación a la segunda, facil sera manifestar que no tendrá
lugar el resultado imposible que prevé V. E. y que en nuingun
caso quedará aislada una faja de terreno que supone existir entre las
paralelas pactadas respectivamente par Bolívia y el Brasil, y entre éste
y el Perú.
El segundo caso previsto en el artículo 2o del Tratado de 27 de Marzo
considera las nacientes del rio Yavary al Norte de aquella línea Este-Oeste;
y en tal concepto hállase convenido que la frontera entre Bolívia
y el Brasil, seguirá desde la mismo latitud por una recta hasta encontrar
el origen principal de dicho Yavary.
En esta estipulación, tan razonable como obvia para ambos paises, nada
hay que pudiera afetar ni remotamente los intereses peruanos, desde que su territorio
queda limitado por el mismo Yavary, a cuyas márgines convergen las líneas
Bolíviano-brasilera y peruano-brasilera.
El angulo de convergencia de dichas líneas viene a ser el ponto de partida
para que Bolívia y el Perú definan sus respectivos limites, compartiendo
en este caso el territorio triangular que resultare; siendo em pero, de notar-se
que el uti possidetis – entre la linea Bolíviano-brasilera y
la hoya del rio Beni, favoréce sin genero de duda a Bolívia.
Pero aún aplazando esta ultima cuestion para cuando Bolívia y
el Perú traten de ajustar sus limites, me persuado de haber podido demonstrar
claramente que el articulo 2o del Tratado de 27 de Março, no es agresivo
de los derechos territoriales del Perú, á que los negociadores
boliviano y brasilero supieron prestar el debido bomenage.
Muy lisongero seria para el Gobierno de Bolívia, si las explicaciones
ingenuas que dejo expuestas y los sencíllos fundamentos en que estriba
el artículo 2o de diebo Tratado, merecieran la aceptación del
Exm. Gobierno del Perú, de cuya alta ilustración y notoria probidad
la guarda tranquilo el de esta República.

Al dejar satisfecho el objeto de este despacho, tengo el nonor de renovar
al Exmo. señor Mínistro de Relaciones Exteriores del Perú,
las seguridades de alta y distinguida consideración, con que me suscribo
de S. E. el señor Barrenechea muy attento y obsecuente servidor.
(Firmado) Mariano Donato Munoz.
Al Exmo. señor Ministro de Relaciones Exteriores del Peru.

III
Demarcação Brasílio-boliviana no Madeira

Comisión de Limites entre el Imperio del Brasil y la República
de Bolívia.
Terminos de la inauguración del marco levantado en la margen izquierda
del rio Madera frente á la cachuela del mismo nombre.
A los diez y siete dias del mes de Noviembre del año de nacimiento
de Nuestro Señor Jesucristo de mil ochocientos setenta y siete, siendo
Emperador del Brasil el Señor Don Pedro II y Presidente de la Repubuca
de Bolívia en ejercicio de sus poderes públicos, Su Excelencia
el Señor General Don Hilarión Daza se encontraron en la margen
izquierda del rio Madera, arriba de la cachuela del mismo nombre, con el fin
de inaugurar el marco levantado en ese lugar por la Comisión Brasilera,
compuesta de los Senores: Mayor del Cuerpo de Ingenieros Bachiller Guillermo
Carlos Laisance E. Primero teniente da Armada Frederico Ferreira de Oliveira,
hallandose también presente en dicho acto el primer Cirujano del Ejercito,
Doctor José Severiano de Fonseca, sirviendo de Secretario el Teniente
primero Oliveira y desejando de comparecer los Señores Comisario Interino
Mayor del Cuerpo de Ingenieros Bachiller Francisco Janer Lopez de Araujo y
Capitán de Estado Mayor de primera classe Bachiller Javier de Oliveira
Pimentel, que formaban parte de la sección que habían explorado
las nacientes del rio Verde, y el Capitán de Estado Mayor de Artilleria
Antonio Joaqum de Costa Guimarães, por haberse retirado para la Corte
del Imperio con licencia por enfermedad.
Este marco hallase construído en la margen izquierda del rio Madera
y frente a la cachuela del mismo nombre, da cuaqueda abajo de la confluencia
del rio Mamoré con el Beni.
Desígnase da línea de limites que parte del puerto del rio Verde,
donde los miembros de esta sección deben colocar un marco, y seguir
por la sección del rio Guaporé por la margen hasta el rio Mamoré,
cuya posición geográfica es latitud 11o 54′ 12″, 83 Sur
y longitud 21o 53′ 6″, 45 Oeste del Imperial Observatorio de Rio de Janeiro
continuando de ahi por el curso del rio Mamoré hasta este punto. De
aqui continúa la linea geodesica que liga este marco con la naciente
y origen del rio Yavary, corriendo esa línea en rumbo verdadero de
69o 51, 13″, 58 Noroeste en la distancia 1.031k.m44 según los
calculos hechos con las coordinadas geograficas de esa nascente conforme a
las indicaciones de la Comisión mixta demarcadora de los hmites entre
el Imperio y la Republica del Perú, las cuales son: latitud 7o 1′ 17″
5, longitud 74o 8′ 27″ 07 Oeste de Greenwich, este marco está
construido de albañileria de piedra y tiene la forma de una pilastra
con las dimensiones siguientes: altura 1 metro 20 metro por 1 metro 20 por
0,80 centímetros; base 1 metro por 1 metro por X por 40 fuste 01,70
por X m, 70 por 1,50 metro al capitel 0m,78 por X por metro 12. Todos estos
antecedentes están orientados según los rumbos verdaderos N.
S. y E. O. no se tomó en cuenta que se tome en consideración
la instrucción para el Norte de: “Imperio do Brasil 1877”
ni aquella en el Sur “Republica de Bolívia 1877”.

Suposición geografica: latitud 10o 21′ 13″, 63 y longitud
22o 14′ 37″, 65 Oeste del Observatorio Imperial del Rio de Janeiro; la
declinación de la aguja 7o 45′ Noreste.
Del marco designado indicaremos los verdaderos rumbos; en el punto Sur de la
margen izquierda del Beni, 16o 53′ 53″ Sudoeste 4.439,5 metros hasta el
punto; formado por la margen derecha del Beni e izquierda del Mamoré
2o 25′ 25Sudoeste y la distancia de 3575 que queda en la margen
derecha del Madera 49o 13′ 35″ Sudeste a la distancia de 2.250 metros.

Y para que conste en todo tiempo expídese la presente acta por duplicado
en los idiomas portugués y espanol, ambos como fué determinado
en el Ministerio de Relaciones Exteriores con fecha 30 de Noviembre del año
de 1875, firmando los miembros presentes de la Comisión Brasilera. (Firmados).
Guillermo Carlos Laisance. – F. Ferreira de Oliveira.
Oficial de la guarnición – Teniente de Caballería de Ejército
Don Pedro Romero.
Por parte de Brasil.
Comisario de Limites – Señor Barón de Teffé.
Agrimensor – Don Carlos Guillermo Von Hoonholtz.
En vista de los poderes que a dichos señores Comisarios les han sido
conferidos, y después de haber hecho de antemano todas las observaciones
astronómicas consiguientes, y haber levantado el plano hidrográfico
del rio “Yavary” desde el punto en que terminó sus trabajos
la Comision Mixta nombrada el año de 1866.
Acordaron los dichos señores Comisarios que el marco de limites debia
colocarse en la margen derecha del rio “Yavary” a los seis grados
cincuenta y nueve minutos, veintinueve segundos y cinco décimos latitud
S. y a los setenta y cuatro grados seis minutos, veintiseis segundos y setenta
y siete centesimos Longitud Oeste de Greenwich.
Latitud 6o 59′, 29″, 5 S.
Longitud 74o 6′ 20″, 67 O de Greenwich.
Debiendo tenerse en cuenta que tan pronto como se levanten los planos del rio
“Yavary” operacion que se praticará por los dos Comisiones
reunidas en el Puerto de Tabatinga, segun el resultado que dichas cartas geográficas
arrojen, los Señores Comisarios determinaron el verdadero nacimento del
rio Yavary en una distancia que será la citada anteriormente más
al sudoeste del lugar en que se ha colocado el marco, teniendo en cuenta que
de Outro modo no puede resolverse esta cuestión y que los conocimientos
que la experiencia les ha enseñado respecto a este rio, será su
norma para que se arregle en justicia.
De este modo el limite de ambas naciones tomará, tomando el centro o
alveo del rio, desde su nacimiento hasta su confluencia con el rio Amazonas.

El marco que se ha colocado es de la madera llamada piquiá, en forma
de cruces como símbolo de redención para las desgraciadas de salvajes
que pueblan esas regiones, siendo su altura total de veinte pies.
Se halla colocado en tierra firme donde no alcanza el agua. En la cara del Oeste
tiene la seguiente inscripción;
Limite del Perú
Marzo 14 de 1874
En la cara del Este:
Limite del Brasil
Marzo 14 de 1874
En la cara del Norte:
Viene de la boca del rio
En la cara del Sur:
Latitud 6o 59′ 29″, 5
Longitud 74o 6′ 26″, 67 Oeste de Greenwich.
Esta respectiva acta ha sido firmada por los señores miembros de las
Comisiones ya citadas, con la solemnidad respectiva.
De este documento que consta en el citado libro se sacaron cuatro copias: dos
en idioma portugués y dos en castellano, las cuales legalizadas con las
competentes firmas, serán enviadas por los Jefes de ambas comisiones
a sus respectivos Gobiernos.
En fe de lo cual firmaron la presente en el dia y lugar de la ceremonia a las
cinco horas pasado meridiano – Guilherme Black – Baron de Teffé –
Froilan P. Morales – Frederico Rincón – Manuel C. de la Hasa – Pedro
Romero.

NOTA – Se consigna en la presente acta dos puntos que pertenecen directamente
al cuerpo de ella: el primeiro es la muerte acaecida en el rio “Yavary”
del Agrimensor de la Comisión brasilera, Don Carlos Guillermo von Hoonholtz
que firmó el acta original en el libro brasilero, no habiendolo hecho
en el peruano, por convenio mutuo de ambos comisarios; pues el libro original
quedó depositado a bordo del vapor “Napo”, para evitar de este
modo, en caso de un accidente, la perdida de esos dos documentos importantes.

La segunda cuestion se refiere a la verdadera Latitud y iongitud de la naciente
del rio, según Consta del acta (Latitud 6o 59′ 29″, 5 Sur y Longitud
74o 6′ 26″ 67 Oeste de Greenwichb). Aumentando tres millas al rumbo S.
O. del mundo nos da: Latitud siete grados un minuto diez y siete segundos, cinco
decimos Sur; y longitud setenta y Cuatro grados ocho minutos veinte y siete
segundos y siete centesimos Oeste de Greenwich.
Latitud – 7o 1′ 17″, 5 Sur.
Longitud – 74o 8′ 27″, 07 Greenwich
De este modo queda determinado el verdadero ponto del nacimiento del rio “Yavary”
en fe de lo cual firmarno la presente las personas de la Comisión que
arriba suscriben – Guillermo Black – Baron de Teffé – Froilan P.
Morales – Frederico Rincon – Manuel C. de la Hasa

IV
Demarcação definitiva no Javari Acta

De la fijación del marco definitivo en la margen derecha del rio “Yavary”
limite entre la República del Perú, y el Imperio del Brasil,
punto más meridional del enunciado rio que es hasta donde ha sido posible
llegar la Comisiónn Mixta de Limites; pues los obstáculos que
se encontraban impedían seguir mis arriba el curso del rio y provaban
al mismo tiempo que habia llegado a sus cabeceras con diferencia de algunas
millas que se supone sean ocho mais o menos.
A los catorce dias del mes de Marzo del año del nacimiento de Nuestro
Señor Jesuscristo, de mil ochocientos setenta y cuatro, quincuagésimo
tercero de la Independencia del Perú y quincuagésimo tercero
de la Independencia del Brasil; gobernando el Perú el Excmo. Sr. D.
Manuel Pardo y gobernando el Imperio del Brasil Su Magestad el Sr. D. Pedro
II Emperador Constitucional y Defensor Perpétuo.
Se reunieror los miembros de la Comisim Mixta nombrados por ambos gobiernos
para demarcar la frontera de las respectivas naciones arriba citadas, en el
nacimiento del rio Yavary y en el lugar que se colocó el marco.
Las comisiones de ambas naciones se componían de los siguientes señores:

Por parte del Perú.
Comisario de limites – Capitán de fragarta de la Armada Nacional don
Guillermo Black. – Secretario accidental, Capitán de corbeta graduado
D. Froilán P. Morales.
Ayudante – Teniente 2o de la Armada Nacional, D. Frederico Rincón.

Ayudante – Alféres de Fragata de la Armada Nacional, D. Manuel Cosme
de la Haza.

  Notas

I

(1) Recopilación de Leyes de Indías. L. IV, tit. 1º

(2) Archivo de Simancas. Legajo 7406, fol. 21.

(3) Tratado Preliminar de Límites, de 1º de outubro de
1777.
(4) RAIMONDI, Antonio – El Perú, t. 2º, p. 402.
(5) V. Diário da Viagem do Dr. F. de Lacerda e Almeida, São
Paulo, 1841.
Lacerda e Almeida determinou a latitude da foz do Madeira, no Amazonas, 3º
22′ 45″ e a da Guaporé, 11º 54′ 46″.
Deduz-se a coordenado da semidistância:
Mais tarde outros observadores pouco divergiram do grande geógrafo. “45’38º7″45’22º32″45’22º3″46’54º11=–

Costa Azevedo (Barão do Ladário) em 1863 determinou, na foz
do Madeira, a latitude de 3º 24′ 31″, discrepante apenas 1′ 45″;
e a comissão de limites com a Bolívia, de 1875, encontrou para
a da confluência Mamoré-Guaporé, l1º 54′ 12″
83, discordante pouco mais de meio minuto. Com estes novos elementos a semidistância
encontra-se a 7º 39′ 32” 7, divergindo da que se deduziu há
mais de una século, de menos de um minuto de arco.
O caso é verdadeiramente notável, embora se trate de uma determinação
de latitude.
E, considerando-se os aparelhos imperfeitos do tempo, deve-se convir em que
Lacerda e Almeida foi um observador admirável.
(6) “Nota Protesta” do Sr. J. A. Barrenechea, de 20 de dezembro
de 1867.

(7) PAZ SOLDAN, Mateo – Geographie du Perou, etc. Publiée aux
frais du gouvernement perouvien. Paris, 1863, p. 3.
(8) Loc. cit., p. 2.
(9) El Perú, t. 2º, pp. 405 e 406.
(10) Para isto, ao revés de confluência Mamoré-Guaporé,
considera a do Beni (10º 20′); deduzindo-se a da semidistância à
foz do Madeira:
“15’52º6″31’24º32″31’24º3’20º10=–
(11) Mapa de la región Hidrográfica del Amazonas Peruano, mandado
trazar por la Sociedad Geográfica de Lima.
(12) PAZ SOLDAN, Manuel Rouaud y – Observaciones Astronomicas y Físicas,
etc. Lima, 1869, p. 26.

II

Ofício de Don Lazaro de Rivera, ao Conselho das Índias, 15
de outubro de 1784.

III

(1) Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
T. XIII, p. 172.
(2) “Memórias Cronológicas da Capitania de Mato Grosso”,

in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
t. XIII.

IV

(1) Memorial de D. Juan Bartolomé Berdugo.
Note-se que, conforme as medidas da época, cada um grau valia dezessete
léguas e meia. Cento e cinqüenta léguas correspondiam,
portanto, a oito graus e meio. Ora, firmando-se a extrema setentrional do
Território de Chiquitos em 15º de latitude sul, o de Moxos, que
começa dali para o norte, estender-se-ia, na opinião insuspeita
de Berdugo, até 15o – 8o 30′, isto é, até 6o 30′ de latitude
sul – ou, mais claro, até além da semidistância do Madeira.

Não ligamos importância ao caso. Mas cumpria registrar-se a coincidência
curiosa que, dada a fonte onde se originou, vai muito mais do que as fantasias
cartográficas daquela época.

(2) Archivo de Índias. Informe del Marquez de Valdelírios,
etc. 24 de abril de 1776.
(3) Archivo de Índias. Dictamen del Fiscal Campomanes, 3 de
maio de 1777.
(4) Archivo de Índias. Carta de Pedro R. Campomanes a D. José
Galvés.

(5) Archivo Histórico de Madrid. Instrucciones de la Corte.
Legajo, 7 347
(6) Archivo General de la Nación. Comunicación al Gobernador
de Mojos Sobre Deslinde de Fronteras,
Buenos Aires.

V

(1) PORTO SEGURO, Visconde de. História Geral do Brasil. T.
II, p. 953.
Confirma a expressão do nosso grande historiador o oficio nomeando
D. Pedro de Cevallos “Virrey y Capitán General y Superior Presidente

de la Real Audiencia de la Plata”. Este era o nome legal da de
Charcas. Em 1680, a Recopilación dizia: En la ciudad de
La Plata, provincia de los Charcas, resida nuestra audiencia y chancellaria
real.
O dizer Vice-reinado de Buenos Aires, que prevaleceu, proveio, essencialmente,
como veremos, do nome da primeira província nomeada naquela carta régia.

(2) Archivo de Índias. Extractos de la Junta Suprema de Estado y
del Consejo de Indias.

(3) Archivo de Índias. Legajo: “Audiencia de Charcas.” 1777.

(4) Arcbivo de Índias. Est. 120, cai. 7, ieg. 27.

(5) Historia de San Martin. T. 1.
(6) VALDÉS Y PALACIOS, José Manuel. Viagem de Cuzco a Belém
do Grã-Pará,
1884.
(7) Archivo de Índias. Est. 110, cap. 3, leg. 21.
94

VI

(1) Quando as tropas libertadoras de Belgrano, batidas no Desaguadero (1813),

refluíram para a Argentina, a Bolívia ficou abandonada; mas
os criollos rebeldes persistiram en armas a espaldar del enemigo
triunfante;
e os realistas, donos dos campos de batalha, ficaram num circulo
infernal de guerrilhas, que sustiveram a crise revolucionária até
a vinda de Bolívar.
Las ejércitos del Rey habian derrotado a los patriotas en el alto
Perú (Bolívia) pero no habian conseguido domar el espírito
público…

A pesar de tantos y tan severos contrastes, no se pasó um sólo
dia sin que se pelease y se murise en aquelia región mediterranea…

… La insurrección en Bolívia cundia a la menor se….

São extratos ao acaso. Há centenas de outros idênticos.

(Historia de San Martin.)
(2) QUIJANO OTERO, José Maria. Memória Histórica sobre
Limites.

Bogotá, 1900.
(3) BALEATO, Andrés. Plano Geral del Reyno del Perú
en la América Meridional. /Hecho por orden del Exmo. Sr. Virrey D. Fr.
Gil y Lemos/,
1706.
(4) Memorial de los Virreyes que han gobernado el Perú.
T. IV, p. 2.
(5) Archivo de Índias. Est. 112, cap. 7, leg. 16.
O mesmo revela o mapa coevo (1871) de José Ramos Figueiroa, secretário
dos
Visitadores-Gerais.
(6) Archivo de Índias. Est. 112, cap. 7, leg. 16.

(7) ATÓS, Josquim. Demonstración Geográfica de las
Provincias que Abrazan Cada Intendencia de la Parte del Perú.

(8) Las Provincias del Callao. 1876.
(9) Geographie du Perou. Paris, 1863, p. 201.
(10) Carta, anteriormente citada, de D. Pedro Campomanes a D. José
Galvés.
(11) Recopilación de Leys. Tit. 1o, 1.2o . Ley XXII. Veja-se,
a este propósito, La Integridad Territorial del Ecuador, do Padre
Enrique Vacas Gallindo, pp. 176 e seguintes.
(12) Área total ocupada o pretendida por el Perú = 503 430
km2. Quiero decir mas de las terceras partes de la República de Ecuador
cuya tierra firme quedaria reducida a 204 000 km2.
(TEOI,0RO WOLF, Geografia
y Geologia del Ecuador,
1892.)
(13) Archivo de Índias. Est. 115, c. 6, l. 23.
(14) Mapa para acompañar a la descripción del nuevo Obispado
que se proyecta en Maynas. Construído por Dom Francisco Requena, Yngeniero
Ordinario Gobernador de Maynas y primer comisario de limites.
1779.
(15) Informe que hizo al Consejo D. Francisco Requena, sobre el arreglo
temporal de las Misiones de Maynas.
Arch. índias. Est. 115, c. 6,
l. 23.

VII

(1) ZEBALLOS, Estaníslao. Map Showing the Lands Granted by Spain
to Portugal.
Washington, 1894.
(2) Cf. o mapa que Lardner Gibbon, oficial da U. S. Navy, anexou ao seu Relatório,
1854.

(3) Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
T. IV, p. 156. Quanto à defesa do forte de Coimbra, que se fez gloriosamente,
malgrado a tremenda intimativa de Rivera: el canon y la espada decidieron
de la suerte de Coimbra!
veja-se a mesma Revista, T. XIII, p. 47.
(4) Resultados dos Trabalhos na Província de Mato Grosso, etc.
Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (1877-1878). Vol. III, fasc.
1o
(5) Carta Geográfica de Projeção Ortogonal Esférica
da Nova Lusitânia, Estado do Brasil, 1798.

(6) Misiones del Ucayali y Verdadero Curso de Êste Rio, en los Años
de
1811, 1815, 1816, 1817,1818, por los Padres Misioneros del Colegio
de Propaganda Fide de Santa Rosa de Ocopa, 1833.

(7) El Perú. T. 3o p. 297.
(8) Mateo Paz Soldan. Géograpbie du Perú, p. 261.
(9) O sábio viajante foi também acompanhado, na sua excursão
aos rios Santana, Tambo e Ucayali, pelo Capitao-de-Fragata D. Francisco Carrasco,
comissionado do Governo do Peru. Ora, entre os incidentes do penoso itinerário,
surgem a todo instante as mais amargas referências de Castelnau ao seu
singularíssimo auxiliar. D. Francisco Carrasco foi para o tenaz explorador
um empeço maior do que todos os pongos de Urubamba.
Castelnau denunciou-o nuamente.
Je fus alors convaincu qu’il n’avait jamais songé à executer
le voyage; et qu’il êtait l’instigateur des difficultés que venaient
nous arreter a chaque instant. (Expedition dans les partes centrales de l’Amerique
du Sud.
Tomo 4o, p. 296.)
(10) Comercio de Lima. Viernes, 20 Julio de 1906. Concepto del profesor
Moore en la questión de frontera peruano-brasilena.

Carlos Wiesse, Catedrático de la Facultad Mayor de San Marcos.

(11) SOUSA, André Fernandes de. Notícias Geográficas,
etc. Revista do I.H.G.B., tomo X.
(12) El Perú. T. III, p. 108.

VIII

(1) MICHELENA Y ROJAS, F. – Exploración Official, etc., 1867,
p. 575

(2) WOLF, T. – Geografía y Geologia del Ecuador, 1892, p.
12.
(3) BASTOS, Tavares. Cartas de um Solitário.
(4) F. Maury, Tenente da U. S. Navy. O Amazonas e as Costas Atlânticas,
etc. Rio de Janeiro, 1853, p. 35.
(5) PINTO, A. Pereira. Estudo Sobre Algumas Questões Internacionais,
São Paulo, 1867, p. 42.
(6) Realmente o Tratado peruvio-boliviano, de 5 de novembro de 1863, quanto
a limites, se reduziu a confirmar o statu quo firmado no de 3 de
novembro de 1847, onde ambos os Governos se comprometeram a nomear comissões
para levantarem as cartas topográficas das fronteiras, com a cláusula
de que la demarcación estipulada sólo tendrá
por objecto la restitución de los terrenos comprendidos entre las fronteras
actuales del Perú y Bolívia.
Estavam, certo, longe de cogitarem
na Amazônia, onde seriam ridículas as plantas topográficas
antes das linhas geográficas. Alem disso a mesma cláusula, confirmando
a limpidez daquelas fronteras actuales, adita que a restituição
não visa cederse territorio, sino para restabiecer sus antiguos
amojonamentos, a fim de evitar dudas…

Mojone, quer dizer marco divisório, o que certo não
havia, e sobretudo antigos, naquelas terras ignotas.
(ARANDA, Collección de Tratados del Perú. Tomo II,
pp. 309, 293, 287, etc.)
(7) Veja-se o Apêndice final.
(8) Em flagrante desacordo com o parecer atual da Sociedade Geográfica
de Lima!.
(9) “Nota-protesta” do Peru, de 20 de dezembro de 1867, por J.
A. Barrenechea.

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