Correspondências – Fernando Pessoa

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À Adolfo Casais Monteiro

Carta a Adolfo Casais Monteiro (em 13 de Janeiro de 1935)

"…E contudo – penso-o com tristeza – pus no Caeiro todo o meu poder
de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda
a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria,
pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não
dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que
todos estes têm que ser, na prática da publicação
preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!
Creio que respondi à sua pergunta.

Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos
não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão
os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!

Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus
heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos
é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei
se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histeroneurasténico.
Tendo para esta Segunda hipótese, porque há em mim fenómenos
de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo
dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos
está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização
e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para
mim e para outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam
na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão
para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher
os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas
– cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico
de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens
a histeria assume principalmente aspectos mentais: assim tudo acaba em silêncio
e poesia.

Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronismo.
Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos.
Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me
não lembro – os que jazem perdidos no passado remota da minha infância
quase esquecida.

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à
ideia escrever uns poemas de índole pagâ. Esbocei umas coisas
em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num
estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-s-me, contudo,
numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo
(tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao
Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie
complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer
espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui.
Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me
de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé,
como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa
espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir.
Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com
o título Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento
de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome Alberto Caeiro.

Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a
sensação imediata que tive. E tanto assim que, escrito que foram
esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi,
a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua,
de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente. Foi o regresso de Fernando
Pessoa – Alberto Caeiro a Fernando Pessoa – ele só. Ou, melhor, foi
a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência
como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente
– uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente,
descobri-lhe o nome, e ajustei-me a si mesmo, porque nessa altura já
o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo
Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à
máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu
a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem
com o nome que tem.

Criei, então uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes
de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro
de mim, as discussões e as divergências de critérios,
e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve.
Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda
se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética
entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são
diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última
hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas.
Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema "antigo"
do Álvaro de Campos – um poema de como o Álvaro de Campos seria
antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência.
E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências
latentes do Álvaro de Campos, conforme haveriam de ser depois de reveladas,
mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro.
Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo
poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim,
creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão…

Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há
porém qualquer ponto em que precise de um esclarecimento mais lúcido
– estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito
lúcido -, diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um
complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas
para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos,
tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem
está lidando, meu caro Casais Monteiro!

Mais uns apontamentos nesta matéria… Eu vejo diante da mim, no espaço
incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro
de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu
em 1887 não me lembro do dia e mês (mas tenho-os algures), no
Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto
Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase
toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação
quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro
de 1890 (às 1,30 horas da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é
verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo).
Este, como sabe é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está
aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora
realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão
frágil quanto era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco,
mais baixo, mais forte, mais seco. Álvaro de Campos é alto (1,75m
de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara
rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno
mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português,
cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo.

Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase
nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe
cedo e pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos
rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado
num colégio de jesuítas, é, como disse, médico:
vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico.
É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista
por educação própria. Álvaro de Campos teve uma
educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia
estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias
fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim
um tio beirão que era padre.

(…) Como escrevo em nome desses três?… Caeiro por pura e inesperada
inspiracão, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo
Reis, depois de uma deliberacão abstracta que subitamente se concretiza
numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não
sei o quê. O meu semi-heterónimo Bernardo Soares que aliás
em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que
estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades
de raciocínio e de inibicão; aquela prosa é um constante
devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade
a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilacão
dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o
que o raciocínio dá de "ténue" à minha,
é iqual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que
Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos
como dizer "eu próprio" em vez de "eu mesmo", etc.,
Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. (…)

À Álvaro Pinto 01/05/1912

Lisboa, 1º de Maio de 1912

Sr. Álvaro Pinto,

Remeto a V… mais três páginas do meu segundo artigo. As duas
que faltam – enviarei amanhã. No escritório onde passo à
máquina os artigos, não me deixaram hoje tempo para completar
a transcrição. – Como previ, o artigo levará umas 10
páginas de escrita à máquina. Faltam, portanto, umas
duas. Vão amanhã, sem falta. – Como o meu cálculo inicial
fora para poder receber as provas, como antes, pelo dia 7, creio que, mesmo
tripartido na remessa, há amplo tempo para o artigo ser composto, e
mesmo ficar já revisto, por aquele dia, do actual mês. De V…

respeitosamente

Fernando Pessôa

À Álvaro Pinto, de 02/05/1912

Lisboa, 2 de Maio de 1912

Sr. Álvaro Pinto,

Remeto as 3 páginas finais do meu artigo. Foi impossível resumir
em 2 o resto do artigo sem tornar obscura a parte mais importante do raciocínio.

Pedindo a V… me releve a demora e a acidentação que tem havido
na remessa do artigo,

sou, de V… Respeitosamente.

Fernando Pessôa

À Álvaro Pinto, de 25/04/1912

Lisboa, 25 de Abril de 1912

Sr. Álvaro Pinto

Não respondi, como cumpria que fizesse, ao postal de V… de 19,
porquanto esperava poder entregar a Veiga Simões, que parte amanhã
para o Porto, o segundo artigo sobre o aspecto sociológico da actual
corrente literária; na entrega do artigo iria, ainda que inconvencionalmente,
a demorada resposta. Como, porém, V… compreende, a elaboração
raciocinativa de um assunto originalmente concebido é difícil
quando considerações de espaço tipográfico entram
– isto é, têm de ser levadas em conta – na elaboração
do raciocínio.

Por isto, só poderei prometer mandar antes do fim do mês o artigo
de que se trata; mas, dentro destes 5 dias, com certeza que o mandarei.

Como foi no dia 7 de Abril que recebi as provas do meu primeiro artigo, e
elas, revistas, chegaram a tempo de não demorar a saída de A
Águia, creio ( a não ser que o número 5 saia antes do
habitual dia 15 ) que, dado 7 dias de margem para a composição
tipográfica do artigo, dou amplo tempo ao compositor.

Não recebendo de V… aviso em contrário, remeterei o artigo
como indiquei. De V…

respeitosamente

Fernando Pessôa

Notas explicativas carta nº 7

Álvaro Pinto era dirigente da Renascença Portuguesa e secretário
de redação da revista A Águia. Pessoa refere-se ao artigo
" Reincidindo… ", publicado na revista portuense em maio de 1912
( nº 5, II série) e que vinha na continuação do
seu artigo de estréia " A nova Poesia Portuguesa sociologicamente
considerada " inserto no número anterior. As cartas seguintes
– 30 de abril, 1º de maio e 2 de maio – dão conta do envio, a
" conta-gotas ", do texto integral. Estas cartas seguem reunidas
nesta apresentação. O citado portador da encomenda de Pessoa
é o diplomata e escritor Veiga Simões (1888-1954 ), autor, entre
muitos outros trabalhos, sobretudo no domínio histórico, de
A Nova Geração (Estudos sobre as Tendências Actuais da
Literatura Portuguesa ), 1911. Fernando Pessoa – Correspondência 1905-1922
Editora Companhia Das Letras.

À Álvaro Pinto, de 30/04/1912

Lisboa, 30 de Abril de 1912

Sr. Álvaro Pinto,

Tendo prometido enviar, até ao fim do mês, o meu segundo artigo,
remeto, inclusas, 5 páginas dele, escritas à máquina.
Como não tivesse tempo de passar a limpo, hoje, o resto do artigo,
julguei preferível mandar o que já estava – para, sendo preciso,
se ir já compondo – e enviar o resto amanhã, a adiar, até
então, a remessa integral.

O artigo fica mais extenso do que eu esperava. Deve levar mais outras 5 páginas
de escrita de máquina, como as que remeto. Talvez, por isso – não
havendo razões em contrário – fosse preferível compor
o artigo em corpo 8, para evitar confusões ulteriores. Estou, é
claro, supondo que para V… o artigo tem interesse que, por mim, ainda que
autor, julgo que deve ter. Pela parte que vai hoje, já se pode antever
a conclusão do artigo. Por o julgar útil e esmiuçadamente
confirmador do primeiro artigo, é que não me esforcei por o
resumir excessivamente.

De V…

respeitosamente

Fernando Pessôa

À Armando Teixeira Rebelo, de 24/08/1907

Hotel Brito, Portalegre.
August 24th 1907.

Venerable portion of earthly existence!

In a few moments of concatenated mental activity, not unassisted by the carnal
fumes of the alcoholic beverage – no more and no less than wine – not exclusive
to this locality, my soul felt, like a mental sigh, the necessity of giving
expression to its present state and tendencies to a friendly brain such as
yours.

Lonely and silent in my transitory place of existence in the hotel mentioned
in the heading of this explosive epistle of an over-burdened soul, feeling
the world around me morally cold and materially warm – below zero towards
my soul and not far from 40 in relation to my body – in these distressing
and inspiring circumstances the though has come upon me that perhaps the indicting
of this epistolary composition may be subjectively conductive to an alleviation
of my earthly lot at this moment, may be the " balm in Gilead",
dream of Poe, to my unsistered spirit.

Hence this letter.

Portalegre is a place where all a stranger can do is get tired of doing nothing.
Its component qualities seem to me ( upon deep and cautions analysis) to contain,
in uncertain relative quantities, heat, cold, semi-Spanishdom and nothingness.
The wine is good ( though not from here, I think), but it is decidely alcoholic,
especially when the water-pitcher is at the other end of the table and you
( that is I) forget to ask for it. The style of this letter may be "terminal"
proof thereof. I shall register it that so brilliant and offspring of my mind
may not be lost in the post.

The taking-to-pieces and packing of the printing office is taking a damned
long time – poetically speaking of course.

_ Nevertheless, the men have worked quickly enough and I have looked on (
and off) with the greatest energy.

I sincerely believe that, if I were to remain here a month, I would have
to go to Lisbon, afterwards to Bombarda Hotel. You can hardly imagine the
hyperboredom, the ultra-get-tired-of-everythingness, the absolute what-the-blooming
hell-is-a-chap-to-do- hereability that reigns in my spirit! I found a book
to read, but was unable to muster energy to read it. I am anxious to get back
to Lisbon; yet I think I will have to stay here yet three days more.

Alentejo seen from the train

Nothing with nothing around it
And a few trees in between
None of which very clearly green,
Where no river of flower pays a visit.
If there be a hell, I’ve found it,
For if it ain’ here, where the Devil is it?

Fare thee well.

F. Nogueira Pessôa

P.S. Don’t write to Portalegre, I may not be here. Wait till
I get to Lisbon! We will converse there.

Tradução

A Armando Teixeira Rebelo

Hotel Brito, Portalegre.
24 de Agosto de 1907

Venerável porção de existência terrena!

Nuns poucos momentos de concatenada actividade mental, não desassistida
dos fumos carnais da bebida alcoólica – nada mais nada menos do que
vinho – não exclusivo a esta localidade, a minha alma sentiu, como
um suspiro mental, a necessidade de dar expressão do seu presente estado
e tendências a um cérebro amigável como o teu.

Solitário e silente no meu transitório lugar de existência
no hotel mencionado no cabeçalho desta explosiva epístola de
uma sobrecarregada alma, sentindo em redor de mim um mundo moralmente frio
e materialmente quente – abaixo de zero quanto à minha alma e não
longe dos 40 quanto ao meu corpo- nestas circunstâncias angustiosas
e inspiradoras veio até mim a idéia de que talvez o processo
desta composição epistolar possa ser subjectivamente conducente
a um alívio do meu fardo terreno neste momento, possa ser o "
bálsamo em Gilead", sonhado por Poe, para o meu espírito
desgarrado.

Daí esta carta.

Portalegre é um lugar em que tudo quanto um forasteiro pode fazer
é cansar-se de não fazer nada. As suas qualidades componentes
parecem-me conter (depois de uma profunda e cuidada análise), em quantidades
relativas e incertas, calor, frio, semi-espanholismo e nada. O vinho é
bom (embora não daqui, creio), mas é decididamente alcoólico,
especialmente quando a jarra de água está na outra extremidade
da mesa e tu te esqueces (quer dizer, eu me esqueço) de o pedir. O
estilo desta carta é disso uma prova decisiva. Farei dela registro,
para que uma tão brilhante produção do meu espírito
não se perca no correio.

A desmontagem e embalagem da tipografia está a levar um tempo danado
– poeticamente falando, é claro – Apesar disso, os homens têm
trabalhado bastante depressa e eu tenho-os olhado e observado com a maior
das energias.

Acredito sinceramente que, se tivesse que ficar um mês, teria de ir
para Lisboa e depois para o Hotel Bombarda. Mal podes imaginar o hiper-aborrecimento,
o ultra-estafanço-de-tudo, a absoluta sensação de o-que-há-de-fazer-um-tipo
num sítio destes, que reinam no meu espírito! Encontrei um livro
para ler. Estou ansioso por voltar para Lisboa; penso contudo que ainda terei
de ficar aqui mais uns três dias.

O Alentejo visto do comboio

Nada com nada em sua volta
E algumas árvores no meio,
Nenhuma das quais claramente verde,
Onde não há vista de rio ou de flor.
Se há um inferno, eu encontrei-o,
Pois se não está aqui, onde Diabo estará?

Passa bem, ó tu

F. Nogueira Pessôa

P.S. Não me escrevas para Portalegre. Poderei já
aqui não estar. Espera o meu regresso a Lisboa. Aí falaremos
então.

Notas explicativas carta nº 5

A carta é dirigida a Armando Teixeira Rebelo, um dos primeiros amigos
que Pessoa teve em Lisboa. Seu condiscípulo no Curso Superior de Letras
e, mais tarde, seu compadre ( Pessoa foi padrinho da filha de Teixeira Rebelo,
Signa, com quem manteve também relações até o
fim da vida), o destinatário acompanhou-o sempre na sua amizade. O
fato de ter tido também uma formação anglo-saxônica
( fora educado em Pretória) muito deve ter contribuído para
a aproximação entre os dois. Conforme testemunha D. Signa Osório
Teixeira Rebelo, o pai, a mãe (Beatriz Osório, que fora igualmente
condiscípula dos dois amigos no Curso Superior de Letras) e Fernando
Pessoa conversavam os três sempre em inglês.

A ida a Portalegre e as diligências aí feitas por Pessoa prendem-se
com a compra de máquinas para a Tipografia Íbis, que o poeta
resolvera instalar em Lisboa e na qual investiu o dinheiro da herança
da sua avó Dionísia.

Transcrevemos a tradução que acompanha a publicação
do original inglês por João Gaspar Simões. Fernando Pessoa
– Correspondência 1905-1922 – Editora Companhia das Letras

À Augustine Ormond, de 27/11/1909

November 27th 1909.

My dear Ormond,

Having fortunately attained the conclusion of your petulant composition,
the main intention of wich is to disprove that which has been proved disproved,
I have thence drawn the felicitous inference that the sooner a termination
is put to this asinine discussion, the better it will be for the stability
of our intellects. Most controversies are agreeable and even refreshing to
the concerned minds, the exertion of striving for the superiority calling
forth all the unexercised powers of the brain, but when they fall into inanity
or rise to the most crass obscurity, they are more apt to nebulate the mind
and procure ridicule on the reasoning powers of the various antagonists. In
our inapposite strife after a supreme style, to which the subject-matter has
been entirely sacrified, we have at last reached a point when all sight is
lost of our original object, as well as of the motives wich prompted us to
enter the lists of argument in this idiotic garb. In other words, our adverse
reasons and beliefs, formulated in the most abstruse and unpleasant language,
glare but do not burn, astonish but do not convince. Henceforth, my dear Ormond,
be it our laudable aim to exercise our brains in the manner you have suggested,
rather than dry them by the passing of unauthorized remarks and sarcasms upon
each other’s interests and abilities.

Falling in with your valuable suggestion, I yesterday bettok myself to the
verandah of the London Chambers, and thence sprinkled my gaze on the surrounding
beauties. Being of a decided aesthetic temperament, I was rather hurt by the
unbecoming symmetry of the circum ambient structures – a symmetry so contrary
to the ordinary rules of Nature that I felt myself compelled to turn elsewhere
for a satisfactory object on which to settle my wandering glance. There was
none. The only objects made by nature that my eye could encounter were a black
sky, 2 blacker kaffirs and a drop of rain blinded me for a good five minutes.
After I had rejoined my normal sight, wich I did not succeed in doing without
considerable trouble, since my first apparent treatment for a sore eye was
to bump my head on the iron pillars that support the verandah ( D [evi] I
take the architect who put it here), I brought my mind slowly back to the
fact that I was there for some purpose and no less to the more distressing
realization that I was drenched to the skin. I beg, therefore, that you would
again not require me such a difficult undertaking, for, believe me, a sore
eye, a swelled head and a darned cold are not the exact rewards I expected
from Nature for my kindest attentions.

In your ensuing epistle, I would solicit your opinions on the above subject,
in the carrying out of which I have unfortunately experienced the most ungratifying
checks.

I remain, my dear Ormond, Yours truly ( but very sore )

F. Pessôa

Tradução

A Augustine

Ormond 27 de Novembro de 1909.

Meu querido Ormond,

Tendo felizmente chegado ao fim da tua petulante composição,
cuja principal intenção é não provar aquilo que
tem sido provado como não provado, tirei daí a apta conclusão
de que quanto mais depressa um ponto final for posto nesta discussão
asinina, melhor será para a estabilidade dos nossos intelectos. Muitas
controvérsias são agradáveis e até refrescantes
para as mentes perturbadas, já que o exercício da luta pela
superioridade estimula todos os poderes não exercitados do cérebro,
mas quando caem na parvoíce e levam à mais grosseira obscuridade,
são mais próprias para enevoar a mente e provocar o ridículo
nos poderes racionais dos vários antagonistas. Na nossa despropositada
contenda segundo um estilo superior, ao qual o tema tem sido inteiramente
sacrificado, conseguimos pelo menos perder de vista o nosso objecto original,
bem como os motivos que nos levaram a introduzir as listas de argumentos neste
traje idiota. Por outras palavras, as nossas razões e opiniões
contrárias, formuladas na mais abstrusa e desagradável linguagem,
brilham mas não queimam, espantam mas não convencem.

Que, daqui para a frente, meu querido Ormond, o nosso louvável objectivo
seja exercitar os nossos cérebros da maneira que sugeriste, em vez
de os secar com o uso de desautorizadas observações e sarcasmos
sobre os interesses e capacidades um do outro.

Aceitando a tua preciosa sugestão, dirigi-me ontem à varanda
da câmara de Londres e dei então uma vista de olhos pelas belezas
circundantes. Sendo de um temperamento estético decidido, fiquei logo
chocado com a deficiente simetria das estruturas à volta – uma simetria
tão contrária às regras usuais da Natureza que me senti
levado a procurar algures um objecto satisfatório no qual pudesse fixar
o meu olhar vagabundo. Não havia nenhum. Os únicos feitos pela
natureza que os meus olhos puderam encontrar foram um céu negro, 2
kafires ainda mais negros e umas gotas de chuva que me cegaram durante uns
bons cinco minutos. Depois de recuperar a minha visão normal, o que
só consegui com um esforço considerável, já que
o meu primeiro aparente tratamento para um olho magoado foi bater com a cabeça
num dos pilares de ferro que suportavam a varanda (Diabos levem o arquiteto
que o lá pôs), consegui lentamente lembrar-me de que estava ali
com um propósito qualquer e não para verificar penosamente que
estava encharcado até aos ossos. Peço-te, por isso, que não
voltes a pedir-me tão difícil empresa, pois, acredita, um olho
magoado, uma cabeça inchada e uma estúpida constipação
não são exactamente as recompensas que eu esperava da Natureza
para as minhas amáveis atenções. Na tua próxima
carta, solicito as tuas opiniões acerca do assunto acima, no cumprimento
do qual experimentei infelizmente os mais desagradáveis reveses.

Sou, meu querido Ormond

Sinceramente teu (mais muito magoado)

F. Pessôa

Notas explicativas carta nº 6

O destinatário, Augustine Ormond, fora antigo condiscípulo
de Pessoa em Durban. Ao seu testemunho muito se deve do (escasso) conhecimento
da infância e adolescência do poeta na África do Sul. Os
dois ter-se-ão correspondido durante cerca de vinte anos, até
a Grande Guerra, e, segundo depoimento da filha de Ormond, a perda do contato
deveu-se certamente à ida do pai para a Austrália (Jennings,
op. cit.) No rascunho da carta, o autor considerou a hipótese de alterar
a palavra "adverse" (linha 15 ) para conflicting (conflituosas)
e "sarcasms" (linha 20 ) para "ironies" (ironias).

A Editora Inglesa

Lisbon, 2nd June, 1906
Rua São Bento, 98 2º andar

Sir,

Having often remarked in the spare pages of the cheap editions you publish,
a brief statement of the object of your association, and holding that object
to be meritorious, I should very much desire, if possible, to become a member.
But, as I Know the conditions of membership only from the earlier of your
publications, such as Laing’s exposition of modern science and thought, and
having moreover not been in connection with England in regard to current literature
for almost a year, during which, for all I know, you may have made changes
in your organization. I beg to apply herein for as full particulars as you
can give me.

Your faithfully
C. R. Anon

Awaiting your decision

Tradução

Exm.º Senhor,

Tendo várias vezes notado, nas páginas livres das edições
baratas que publica, uma breve exposição acerca do objecto da
vossa associação, e considerando esse objecto meritório,
gostaria muito, se possível, de me tornar sócio. Mas como sei
as condições para me tornar sócio apenas pelas primeiras
das suas publicações, como a obra de Laing sobre a ciência
e pensamento modernos, e não estando, além disso, em contacto
com a Inglaterra, no que diz respeito à literatura corrente, há
quase um ano, durante o qual, tanto quanto sei, devem ter sido feitas algumas
alterações na vossa organização, venho solicitar-lhe
as informações mais detalhadas que puder dar-me.

Com a maior consideração
C. R. Anon
Aguardando sua decisão

Notas explicativas carta nº 3

A referência à falta de contato com a literatura inglesa "
há quase um ano" tem a ver com o fato de Pessoa ter regressado
a Portugal para estudar no Curso Superior de Letras, deixando o resto da família
na África do Sul. A assinatura usada, a do seu primeiro duplo inglês,
mostra ainda uma íntima ligação com o mundo anglo-saxônico.
De resto, as produções de Charles Robert Anon denunciam, como
se afirma na nota à sua primeira carta ( nº 1), uma forte e umbilical
ligação entre esta personalidade literária e o seu jovem
criador: o mesmo sentido de humor, a mesma tendência para intervir socialmente
em prol de causas justas, o mesmo gosto pela poesia e pela filosofia. Fernando
Pessoa – Correspondência 1905-1922 Editora Companhia das Letras Carta
n° 3

À Entreprise Luvisy, de 19/06/1906

Lisbonne, le 9 juin,1906. Entreprise Générale

Luvisy,
S. et O.
France.
Messieurs,

Ayant vu votre annonce au jornal de Lisbonne " O Diário de Notícias",
j’ai l’honneur de demander des renseignements sur la position que vous offrez.

Je serais très content de dédier mon loisir, qui d’ailleurs
n’est pas petit, à votre enterprise; mais je ne puis rien dire ni rien
promettre là-dessus, avant de savoir nettement l’object de votre campagne
et les conditions s’il y en a.

J’espère, néanmoins, une réponse favorable. Aussi ne
faut-il prendre ces expressions pour des doutes sur quelque chose de votre
part, mais bien autrement sur ma capabilité de remplir la position
offerte par vous.

Veuillez agréer, Messieurs,

l’ assurance de sincères
F. Pessôa

Tradução

Exmos. Senhores,

Tendo visto o vosso anúncio no jornal de Lisboa " O Diário
de Notícias", tenho a honra de pedir informações
sobre a posição que oferecem.

Ficaria muito satisfeito de dedicar o meu tempo livre, que, aliás,
não é pouco, à vossa empresa; mas não posso dizer
nem prometer nada, antes de saber claramente o objecto da vossa campanha e
as condições, se as houver.

Espero, no entanto, uma resposta favorável. Neste caso, não
será preciso tomar estas expressões como dúvidas sobre
algo da vossa parte, mas sim sobre a minha capacidade para preencher a posição
por vós oferecida.

Queiram aceitar,

Exmos. Senhores,

os meus mais sinceros
F. Pessôa

Notas explicativas carta nº 4

Não foi encontrado o anúncio do Diário de Notícias
a que alude a carta. A menos que se trate de uma ficção, é
possível que se reporte a um anúncio de uma Agência intermediária,
que, depois de contratada, forneceria o nome e a morada do principal anunciante.

À Fernando Pessoa, 02/01/1985 – Jorge Luis Borges

02-01-1985

"Nada te costo renunciar a las escuelas y a las dogmas, las vanidosas
figuras de rotorica y la tarea insistente de representar un país, una
clase o una epoca.

Seguro nunca pensaste en tu lugar en la historia de la literatura. tengo
la seguridad que los homenages sonoros te espantan, que te espantan tanto
que va directo a tu corazon.

Eres hoy el poeta de Portugal, alguien pronunciara inevitablemente el nombre
de Camoes.
Escribiste para ti, no para la gloria…Dejame ser tu amigo !!!!"

Jorge Luis Borges

À João Gaspar Simões (Livro do Desassossego), de 28/07/1932

(em 28 de Julho de 1932)

(…)

Estou comecando – lentamente, porque não é coisa que possa
fazer-se com rapidez – a classificar e rever os meus papéis; isto com
o fim de publicar, para fins do ano em que estamos, um ou dois livros. Serão
provavelmente ambos em verso, pois não conto poder preparar qualquer
outro tão depressa, entendendo-se preparar de modo a ficar como eu
quero.

Primitivamente, era minha intencão comecar as minhas publicações
por três livros, na ordem seguinte: (1) Portugal, que é um livro
pequeno de poemas (tem 41 ao todo), de que o Mar Português (Contemporânea
4) é a segunda parte; (2) Livro do Desassosego (Bernardo Soares, mas
subsidiariamente, pois que o B. S. não é um heterónimo,
mas uma personalidade literária); (3) Poemas Completos de Alberto Caeiro
(com o prefácio de Ricardo Reis, e, em posfácio, as Notas para
a Recordacão do Álvaro de Campos). Mais tarde, no outro ano,
seguiria, só ou com qualquer livro, Cancioneiro (ou outro título
igualmente inexpressivo), onde reuniria (em Livros I a III ou I a V) vários
dos muitos poemas soltos que tenho, e que são por natureza inclassificáveis
salvo de essa maneira inexpressiva.

Sucede, porém, que o Livro do Desassossego tem muita coisa que equilibrar
e rever, não podendo eu calcular, decentemente, que me leve menos de
um ano a fazê-lo. E, quanto ao Caeiro, estou indeciso. (…)

À memória de Fernando Pessoa, 07/1936

Carta à memória de Fernando Pessoa, Julho de 1936

(extractos):

Meu querido Fernando: Imagina você a falta que nos faz? Ainda há
poucos dias, numa rua onde parámos a falar de si, o Almada me disse:
O Fernando faz muita, muita falta! Na mágoa deste desabafo, pareceu-me
reconhecer a mesma inconfessada sensação que a sua ausência,
algumas vezes, me dá: a de ter feito uma partida que os seus amigos
não mereciam. Quase apetece acusá-lo, gritar à sua memória:
Você não tinha o direito de nos deixar tão cedo! Mas o
seu mestre Caeiro é quem tinha razão: Passa a árvore
e fica dispersa pela Natureza.

Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar
e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e fico, como o Universo.

Na verdade, a fixação da nossa presença física,
seja em que forma for, é o que tem menos importância; e vem daí,
por certo, o enorme esforço que tenho de fazer para recordar a sua.
Não sei que névoa me afasta da próxima realidade dela.
É uma imagem embaciada, talvez pela comovida lembrança da sua
delicadíssima discrição. O Fernando passou por aqui em
bicos de pés, coerente com o conselho dado às companheiras por
uma das veladoras do seu "Marinheiro": – Não rocemos pela
vida nem a orla das nossas vestes.

Em nada do que você usava se reflectia a fútil premeditação
de exibicionismo. No entanto, toda a sua vulgaríssima indumentária,
desde o chapéu aos sapatos, era, não sei porquê, espantosamente
diversa da de toda a gente. Sei lá que tinha? Uma expressão
inconfundível, um jeito especialíssimo, dado por si, sem querer.

Os seus gestos nervosos, mas plásticos e cheios de correcção,
acompanhavam sempre o ritmo do monólogo, como a quererem rimar com
todas as palavras. De quando em quando, pequenos risos (risinhos, é
que diz bem), de criança triste a quem fazem cócegas, vinham
festejar, alegremente, as descobertas do espírito – suas ou alheias,
porque o Fernando não sabia reprimir o prazer que lhe causava a graça
ou a simples alegria dos seus amigos.

A sua ironia, também de qualidade sui generis, era aguda, intencional,
oportuna, mas sempre delicada e transparente, sem crueldades felinas. Nunca
ouvi ninguém queixar-se de ter sido atingido por ela, nem assisti a
que fizesse, na susceptibilidade de quem quer que fosse, a mais leve arranhadura.
Era como aqueles gatos de boa raça que metem as unhas para dentro,
quando brincam…

No acaso dos diálogos – aos quais nunca impunha, ditatorialmente,
a direcção do seu espírito -, esperava que coubesse aos
outros a sua vez de falarem para os escutar com atenção. Porém,
no seu olhar, lia-se qualquer coisa parecido com o receio de que o supusessem
perscrutador.

O seu discreto temperamento ajudava-nos pouco o desejo de lhe fazermos qualquer
pergunta mais familiar, mais íntima. Como inquirir-lhe da saúde,
sem ter medo de magoá-lo em qualquer parte da alma? Era difícil,
sabe? Quanto mais perguntar-lhe: Que faz esta noite? Aparece amanhã?
Chegava a ter a impressão de devassar-lhe a intimidade, quando o encontrava,
às vezes, na rua…

Quando ia só, ou como se o fosse, apesar de não ser o que se
chama, em linguagem doméstica, um abstracto ou distraído (pois
a sua atenção, por mais repartida que estivesse, era sempre
suficiente para apreender o que se passava à sua volta), costumava
aflorar aos seus lábios estreitos o sorriso de quem lê uma carta
confidencial, amiga e interessante.
Nada em si afastava quem o procurasse; antes pelo contrário – a não
ser, a alguns dos mais orgulhosos ou tímidos dos seus amigos, a certeza
de que você era incapaz, sem fortes razões justificadas, de procurar
fosse quem fosse.

O seu sentimento de intimidade não era fruto de egoísmo nem
de vulgar misantropia: era-o, sim, do profundo respeito que o Fernando tinha
por si próprio e pelo que nos outros estimava que também fosse
respeitável. Daí, a impossibilidade de abrir à curiosidade
dos seus mais assíduos companheiros uma fresta por onde pudessem espreitar
a sua vida sentimental:

«Não há quem saiba se eu gosto de ti ou não porque
eu não fiz de ninguém confidente sobre o assunto.» Esta
frase, cujas palavras sublinhadas o foram por si, é de uma das primeiras
cartas que o Fernando dirigiu àquela a quem escreveu nove anos mais
tarde: «… Se casar, não casarei senão consigo. Resta
saber se o casamento, o lar (ou o que quer que lhe queiram chamar) são
coisas que se coadunem com a minha vida de pensamento.»
As suas cartas de amor! Porque você amou, Fernando, deixe-me dizê-lo
a toda a gente. Amou e – o que é extraordinário – como se não
fosse poeta. Na evidente espontaneidade dessas cartas, que o Destino quis
pôr nas minhas mãos, não se encontra um vestígio
de premeditação formal, de voluntária intelectualidade.

Que admirável exemplo de humana integração no organismo
da Vida! Lê-se qualquer delas – escolhida, ao acaso, entre as dezenas
que a totalidade constitui – e logo nos ocorre esta pergunta, forrada de espanto:
Como teria sido possível ao mais poeta dos homens e ao mais intelectual
dos poetas portugueses (e, aqui, a palavra portugueses tem uma importância
muito especial) libertar a tal ponto o coração da literatura?!
(…)

Boa noite, Fernando. Não preciso dizer-lhe que sinto, nem por que
sinto saudades suas. Mas não lhe peço que volte. Que temos aqui,
que possa interessá-lo ou, o que é mais triste, merecê-lo?
Não temos nada, bem sabe, de que você não conheça
já melhor do que nós, o vazio sem fundo, a mentira sem remédio,
a trágica inutilidade…

O Amigo, de Carlos Queiróz

Ao Diário de Notícias, de 04/06/1915

A.C. Lisboa, 4 de Junho de 1915

Exmo. Senhor Director do "Diário de Notícias",

E/V.

Regressado ontem a Lisboa, só então tive ocasião de
ler uma crítica, há poucos dias publicada no jornal que V.Exa
proficientemente dirige, ao extraordinário livro do sr. Mário
de Sá-Carneiro, meu ilustre camarada do "Orpheu".

Não é à crítica que me quero referir, porque
ninguém pode esperar ser compreendido antes que os outros aprendam
a língua em que fala. Repontar com isso seria, além de absurdo,
indício de um grave desconhecimento da história literária,
onde os génios inovadores foram sempre, quando não tratados
como doidos (como Verlaine e Mallarmé), tratados como parvos (como
Wordsworth, Keats e Rossetti) ou como, além de parvos, inimigos da
pátria, da religião e da moralidade, como aconteceu a Antero
de Quental, sobretudo nos significativos panfletos de José Feliciano
de Castilho, que, aliás, não era nenhum idiota.

Não é a isto que me quero referir. O que quero acentuar, acentuar
bem, acentuar muito bem, é que é preciso que cesse a trapalhada,
que a ignorância dos nossos críticos está fazendo, com
a palavra futurismo. Falar em futurismo, quer a propósito do 1º
nº de "Orpheu", quer a propósito do livro do sr. Sá-Carneiro,
é a cousa mais disparatada que se pode imaginar. Nenhum futurista tragaria
o "Orpheu". O "Orpheu" seria, para um futurista, uma lamentável
demonstração de espírito obscurantista e reaccionário.

A atitude principal do futurismo é a Objectividade Absoluta, a eliminação,
da arte, de tudo quanto é alma, quanto é sentimento, emoção,
lirismo, subjectividade em suma. O futurismo é dinâmico e analítico
por excelência. Ora se há cousa que [seja] típica do Interseccionismo
(tal é o nome do movimento português) é a subjectividade
excessiva, a síntese levada ao máximo, o exagero da atitude
estática. "Drama estático", mesmo, se intitula uma
peça, inserta no 1º número do "Orpheu", do Sr.
Fernando Pessoa. E o tédio, o sonho, a abstracção são
as atitudes usuais dos poetas meus colegas naquela brilhante revista.

A César o que é de César. Aos Interseccionistas, chame-se
interseccionistas. Ou chame-se-lhes paúlicos, se se quiser. Esse termo,
ao menos, caracteriza-os, distinguindo-os de outra qualquer escola. Englobar
os colaboradores do "Orpheu" no futurismo é nem sequer saber
dizer disparates, o que é lamentabilíssimo.

No 2º número do "Orpheu" virá colaboração
realmente futurista, é certo. Então se poderá ver a diferença,
se bem que seja, não literária, mas pictural essa colaboração.
São quatro quadros que emanam da alta sensibilidade moderna do meu
amigo Santa Rita Pintor.
Até aqui tenho falado em geral, mais pelos meus colegas do que por
mim. O meu caso é diferente. Permita-me V.Exa que me refira a ele.

A minha Ode Triunfal, no 1º número do "Orpheu", é
a única cousa que se aproxima do futurismo. Mas aproxima-se pelo assunto
que me inspirou, não pela realização – e em arte a forma
de realizar é que caracteriza e distingue as correntes e as escolas.

Eu, de resto, nem sou interseccionista (ou paúlico) nem futurista.
Sou eu, apenas eu, preocupado apenas comigo e com as minhas sensações.

Espero da lealdade jornalística de V.Exa a inserção
desta carta em lugar onde pelo menos os jornalistas a leiam. Na impossibilidade
de fazer os nossos críticos compreender, tentemos ao menos levá-los
a fingir que compreendem.

De V. Exa
Cdo. Venr. e Obgdo.
ÁLVARO DE CAMPOS
engenheiro e poeta sensacionista

Ao Museu-Biblioteca Castro de Guimarães em Cascais, de 16/09/1932

Trecho da Carta requerendo o lugar de conservador-bibliotecário

Museu-Biblioteca Castro de Guimarães em Cascais

Exma. Comissão Administrativa do Museu-Biblioteca Conde de Castro
Guimarães

Fernando Nogueira Pessoa, solteiro, maior, escritor, residente em Lisboa,
na Rua Coelho da Rocha, número dezasseis, primeiro andar, e provisòriamente
em Cascais, na Rua Oriental do Passeio, porta dois, vem concorrer perante
V.Exa ao lugar de conservador do Museu-Biblioteca Conde de Castro Guimarães,
com os fundamentos seguintes, expostos no termo do artigo 6º e seus §§,
do Regulamento do Museu-Biblioteca, conforme estão transcritos no anúncio
inserto em O Século, de Lisboa, do dia 1 do mês corrente.

O requerente tem 44 anos de idade, é natural de Lisboa, freguesia
dos Mártires, e filho legítimo de Joaquim Seabra Pessoa e de
D. Maria Madalena Nogueira Pessoa, ambos já falecidos. Não junta
certidão de idade, nem, aliás, certidão de registo criminal,
por o citado artigo 6º e seus §§ não exigirem, nem explicita
nem implìcitamente, outros documentos que não sejam os rigorosamente
precisos para apreciar a afirmação das habilitações
neles indicadas, como motivos de preferência.

São as seguintes as habilitações do requerente, expostas
nos termos do citado artigo e seus §§, pela ordem dos mesmos §§,
e com o apoio documental que irá sendo indicado no decurso da presente
exposição:

§ 1 – O requerente tem o Curso ou Exame Intermédio da Universidade
(inglesa) do Cabo da Boa Esperança, como prova com a respectiva carta.
À parte isto, foi concedido ao requerente, na mesma Universidade, o
Prémio Rainha Vitória, de estilo inglês, como prova com
a carta oficial assinada pelo secretário arquivista da Universidade,
em que se comunica ao requerente a concessão do prémio. Juntam-se
os 2 citados documentos. § 3 – O requerente tem uma já extensa
colaboração dispersa por várias revistas portuguesas,
de onde se lhe advém o ser hoje conhecido no País, sobretudo
entre as novas gerações, a um ponto quase injustificável
para quem se tem abstido de reunir em livros essa colaboração.
Importa talvez citar as revistas em que essa colaboração foi
ou mais assídua ou mais marcante. A Águia (nos anos 1912 a 1914),
Orpheu, Centauro, Contemporânea, Presença, Athena e Descobrimento.
Foi o requerente um dos directores do Orpheu, e dirigiu, conjuntamente com
o pintor Ruy Vaz, a revista de arte Athena. – À abstenção
do requerente de publicar livros fazem excepção os quatro folhetos
em verso inglês que, destinados à Biblioteca do Museu- Biblioteca,
acompanham o presente requerimento.

Quanto o serem ou não estes escritos "de reconhecido mérito",
melhor o poderão V.Exas averiguar com perguntas casuais nos meios literários
e artísticos portugueses do que o poderá demonstar, de modo
realmente probante, qualquer documentação. O requerente chama,
porém, a atenção de V.Exas para os dois estudos que lhe
foram dedicados pelo jovem – e não fica mal dizer notável –
crítico coimbrão João Gaspar Simões, a págs,
171 a 191 do livro Temas (Edições Presença, Coimbra,
1929) e a págs, 164 a 193 do livro O Mistério da Poesia (Coimbra,
Imprensa da Universidade, 1931), assim como para o que do requerente diz Pierre
Hourcade no artigo Panorama du Modernisme Littéraire ao Portugal inserto
no número de Janeiro-Maio (nº1.2) do Bulletin des Études
Portugaises, publicados pela Imprensa da Universidade de Coimbra e pelo Institut
Français au Portugal. Quanto a opiniões, presumivelmente autorizadas,
sobre os versos ingleses do requerente juntam-se as críticas que aos
dois primeiros folhetos (os dois segundos não foram enviados a jornais)
foram feitas pelo Suplemento Literário do Times e pelo Glasgow Herald,
apresentado assim, em certo modo, opiniões representativas da crítica
inglesa e escocesa.

§ 4 – Os documentos citados em referência ao § 1 e a este
juntos demonstram mais do que o necessário quanto ao conhecimento que
o requerente tem da língua inglesa. Quanto ao seu conhecimento da língua
francesa, crê o requerente que na ausência de prova documental
realmente válida (como a que tem para o inglês), o melhor que
pode fazer é juntar uma folha de impressão da Contemporânea,
número 7, onde, a págs. 20 e 21, vêm três canções
(Trois Chansons Mortes) que escreveu em francês. – No texto do artigo
6º pròpriamente dito, do Regulamento, diz-se que é necessário
que o conservador-bibliotecário seja pessoa de "reconhecida competência
e idoneidade". Salvo o que de competência e idoneidade está
implícito nas habilitações indicadas como motivos de
preferência nos §§ di artigo e portanto se prova documentalmente
pelos documentos referentes às indicações de cada §,
a competência e a idoneidade não são susceptíveis
de prova documental. Incluem, até, elementos, como o aspecto físico
e a educação, que são indocumentáveis por natureza.

Cascais, 16 de Setembro de 1932

Fernando Nogueira Pessoa.

(in VIDA E OBRA DE FERNANDO PESSOA, João Gaspar Simões, Libraria
Bertrand, Lisboa, 3ª edição, 1973)

Ao Natal MercuryDurban, 7th. July, 1905 “The Man in the Moon”

"Natal Mercury" Office,

Durban. Sir,

I have been somewhat astonished, in the perusal of the "Natal Mercury",
and especially of your column, to perceive how meanly, and in what slavish
way, sarcasm and irony are heaped on the Russians, on their army, and on their
Emperor. I know too well that it is the nature of men; where are not culture
and dignity, to laugh at misery and at disaster, so that these be to the harm
of others, and implicate themselves in no way. Even where some consideration
exists for the soul-clear bounds of tragedy and of comedy, and nothing but
that consideration – no feeling and no thought besides – laughter is repressed
at those things wich outlie the bounds of the ridiculous.

Every reserve and disaster of the Russian army or navy is in such a way made
the subject of a jest among us, that we seem to have nothing more amusing.
Some of the Russian admirals, even after their death or their capture, have
caused us outbursts of sniggering. The Czar himself, when dismayed by revolution
and by war, and when in distress and in grief over his armies, appears to
be taken by the British people as an animate joke of great value.

To us, Englishmen, of all men the most egotistic, the thought has never occurred
that misery and grief ennoble, despicable and self-caused thought they be.
A drunken woman reeling through the streets is a pitiable sight. The same
woman falling awkwardly in her drunkenness is, mayhap, an amusing spectacle.
But this very same woman, drunken and awkward though she be, when weeping
the death of her child is no contemptible nor ridiculous creature, but a tragic
figure as great as your Hamlets and your King Lears.
If I may be permitted to make one more consideration, I should like to point
out that pure shame should restrain us from laughter at the Russian woes,
and from the making of jokes upon them. It is quite clear, I believe, that
our hearty amusement may be constructed, not even by one malicious, into a
joy from the relief we now have from fears of an Indian disturbance. Russia
does not now threaten our Easter possession; and it is therefore that we laugh?
Surely this thought is too obvious; it must have occurred to us ere we laughed
– the greater shame that we laugh notwithstanding.

As an answer, however meager, to these ridiculings, I send you three sonnets,
for wich I ask such publicity as has been extended to writers on the other
side.

On the whole, I am extremely sorry to have such proofs of human ignobleness
and unfeeling. We should not, where we in truth manly, laugh at the woes of
others; but we cannot, as it seems, force manliness on ourselves. Yet if misery
and grief delight us, and the woes of our enemies amuse, let us be so far
noble as to say no thing, and look within us our joy – let us not, however
it may be, burst into laughter, least of all into the unsteady sniggering
of those whose fears are dispelled, than wich there is nothing more base.

Your faithfully,

Charles Robert Anon.

Tradução

Exmo. Senhor,

Fiquei algo surpreendido, ao folhear o "Natal Marcury", e em especial
a sua coluna, por ver quão mesquinha e servilmente o sarcasmo e a ironia
são usados contra os russos, o seu exército e o seu Imperador.
Sei muito bem que é da natureza do homem, quando faltam a cultura e
a dignidade, rir-se da infelicidade e da desgraça, enquanto tocarem
os outros mas de forma alguma o próprio. Mesmo onde alguma consideração
existe para com os claros limites da tragédia e da comédia,
e apenas essa consideração – sem outro sentimento ou pensamento
– o riso reprime-se face àquelas coisas que ultrapassam os limites
do ridículo.

Cada revés e cada derrota do exército ou armada russa foram
de tal modo objecto de chacota entre nós que parece que não
achamos nada mais divertido. Alguns almirantes russos, mesmo depois da sua
morte ou captura, fizeram-nos explodir em apupos. O próprio czar, quando
desencorajado pela revolução e pela guerra, e quando em grande
sofrimento e dor por causa dos seus exércitos, parece ser tomado pelo
povo britânico como brinquedo animado de grande valor.

A nós, ingleses, os mais egotistas de todos os homens, nunca ocorreu
a idéia de que a infelicidade e a dor enobrecem, por mais desprezíveis
e auto-infligidas que sejam. Uma mulher embriagada cambaleando pelas ruas
é um espetáculo que causa pena. A mesma mulher, se cair desajeitadamente
no seu estado de embriaguez, talvez seja um espetáculo divertido. Mas
esta mesma mulher, por mais desajeitada e embriagada que esteja, quando chora
a morte de um filho, não é uma criatura desprezível e
ridícula, mas sim uma figura trágica, tão grande como
os vossos Hamlets e os vossos King Lears.

Se me é permitido fazer mais uma consideração, gostaria
de sublinhar que a pura vergonha deveria impedir-nos de rir das desgraças
russas e de fazer piadas com elas. É bastante claro, creio, que um
saudável divertimento deve ser alicerçado, ainda que não
por malícia, numa alegria que venha do alívio, que sentimos
agora, do medo de um distúrbio por parte dos indianos. A Rússia
não ameaça, hoje, a nossa possessão oriental, e será
por isso que rimos? Esta idéia é, certamente, demasiado óbvia;
devia ter-nos ocorrido antes de rirmos – apesar da grande vergonha de rirmos.

Em resposta, embora breve, a estas ridicularias, envio-lhe três sonetos
para os quais peço a mesma publicidade que foi dada aos escritores
do outro lado.

No geral, lamento profundamente testemunhar tais provas de ignomínia
e insensibilidade humanas. Não deveríamos, se fôssemos
decentes, rir das desgraças dos outros; mas não conseguimos,
ao que parece, impor a nós próprios decência. Contudo,
se a infelicidade e a dor nos deliciam, e as desgraças dos nossos inimigos
nos divertem, sejamos suficientemente nobres para não dizer nada e
guardar para nós próprios a satisfação – de qualquer
forma, não desatemos a rir e, muito menos, a apupar nervosamente aqueles
cujos medos estão dissipados, pois não há nada mais baixo
do que isso.

Muito Atentamente

Charles Robert Anon

Notas explicativas carta nº 1

Charles Robert Anon, Que assina esta carta, é uma personalidade literária
criada por Fernando Pessoa, ainda na África do Sul. Os seus escritos,
poéticos, diarísticos e filosóficos, situam-se entre
1904 e 1906. É, no entanto, e compreende-se que assim seja, um "ser"
ainda muito umbilicalmente ligado ao seu jovem criador, traduzindo muito das
suas preocupações de adolescente. O nome escolhido, abreviatura
de "anonimous", remete-nos, também, para um estatuto de não-maioridade
dentro do universo pessoano. Seria em breve substituído pela figura
de Alexandre Search. Pessoa-Anon refere-se à guerra russo-japonesa
que eclodiu em fevereiro de 1904, com um ataque surpresa do Japão à
esquadra russa, em Porto Arthur. O tratado de paz viria a ser assinado em
5 de setembro de 1905. Fernando Pessoa – Correspondência 1905-1922 Editora
Companhia Das Letras.

Ao Punch, de 21/02/1906

Ao Punch
Rua São Bento, 98 , 2º, Lisbon, Portugal 21st. February, 1906

The Editor "Punch",

Bonverie Street,

London. Sir, I submit the poem enclosed to your appreciation. In it I have
tried merely to attain the ridiculous by the union of the serious and of the
grotesque. I have attempted, moreover, to link the ridiculousness of expression
thus produced to a lofty, elegiac verse-movement. You will judge how far I
have succeeded.

I am aware that my manuscript should have been typewritten, but my means
do not allow it. I am further conscious that I have no literary experience
( none can be expected from a boy of sixteen); and that, for this reason,
in the writing of my manuscript I may have injuried Convention rudely : all
this with a pseudonym; but when a foreigner writes anything – especially a
poem – is it better not to father is directly.

If my poem refused, I am afraid you must put in the waste-paper basket, inasmuch
as English stamps are here unobtainable. In hope of success, however, I enclose
what I can – an addressed envelope.

Awaiting your decision,

I am, Sir,
Yours faithfully,
F. A. N. Pessôa.

Tradução

Ao Editor Punch

Exm.º Senhor,

Submeto o poema incluso à sua apreciação. Nele tentei
atingir o ridículo pela união do sério e do grotesco.
Esforcei-me, além disso, por ligar o ridículo da expressão
assim produzida ao sublime movimento do verso elegíaco. O senhor julgará
até que ponto o que consegui.

Estou consciente de que o meu manuscrito deveria ter sido escrito à
máquina, mas os meios de que disponho não o permitem. Sei também
que não tenho experiência literária( nada mais se pode
esperar de um rapaz de dezesseis anos); e, por essa mesma razão, ao
escrever o meu manuscrito devo ter transgredido grosseiramente as convenções:
tudo isto espero que me seja desculpado.

Assinei o meu manuscrito com um pseudônimo; mas quando um estrangeiro
escreve qualquer coisa – especialmente um poema – é melhor não
lhe atribuir directamente uma autoria.

Se o meu poema for recusado, receio bem que o Senhor tenha de o deitar no
cesto dos papéis, porquanto os selos ingleses são aqui impossíveis
de obter. Na esperança de sucesso, contudo, envio-lhe juntamente aquilo
que posso – um envelope com o meu endereço.

Aguardando a sua decisão,

Sou,
Exmo Senhor,
Muito atento e venerador
F. N. Pessôa.

Notas explicativas carta nº 2

H. D. Jennings refere uma carta de Fernando Pessoa ao diretor
do Punch, incluindo o poema humorístico " An elegy on the marriage
of my dear friend Mr. Jinks", datado de 16 de abril de 1905 (op. cit.
, p.94) Repare-se na inexatidão da idade com que Pessoa se apresenta:
dezesseis anos, quando, na realidade tinha, nesta altura, quase dezoito. Fernando
Pessoa – Correspondência 1905-1922 Editora Companhia das Letras. carta
nº 2

Carta a Adolfo Casais Monteiro

Caixa Postal 147

Lisboa, 13 de Janeiro de 1935

Meu prezado Camarada:

Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente.
Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever
neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não
posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.

Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões»
em qualquer cousa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos
poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade,
nem toma qualquer crítica., que se lhe faça, como um acto de
lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais,
é nula em mim a tendência para a mania da perseguição.
À parte isso, conheço já suficientemente a sua independência
mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo.
Nunca me propus ser Mestre ou Chefe-Mestre, porque não sei ensinar,
nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrelar ovos. Não
se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha que dizer a
meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.

Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que
de mim mesmo fiz com um livro da natureza de «Mensagem». Sou,
de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou,
à parte isso, e até em contradição com isso, muitas
outras cousas. E essas cousas pela mesma natureza do livro, a «Mensagem»
não as inclui.

Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão
de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter
organizado e pronto. Como estava pronto incitaram-me a que o publicasse: acedi.
Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível
do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior.
O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não
poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega
dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado
até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já
havia exemplares prontos da «Mensagem», fiz entrega dos que o
Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições
(nacionalismo) de concorrer. Concorri.

Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação
de obras minhas, nunca um livro do género de «Mensagem»
figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por
um livro de versos grande – um livro de umas 350 páginas –,
englobando as várias sub-personalidades de Fernando Pessoa ele mesmo,
ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não
consegui completar.

Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim
mesmo fiz, com a publicação de «Mensagem». Mas concordo
com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente
porque essa faceta – em certo modo secundária – da minha
personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas
minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português,
parte deste mesmo livro) – precisamente por isso convinha que ela aparecesse,
e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse
(sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos
críticos (no sentido original da palavra) da remodelação
do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa,
fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.

(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém,
escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite,
e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura
haja nelas. Suponha – e fará bem em supor, porque é verdade
– que estou simplesmente falando consigo.)

Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) plano
futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos
meus heterónimos, e (3) ocultismo.

Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação
da «Mensagem», que é uma manifestação unilateral,
tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão
inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista; essa deve estar pronta em
breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se
assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver
se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades
europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel imanente.)
Depois – e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se
reporta a poesia – tenciono, durante o verão, reunir o tal grande
volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo
publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais
Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse,
então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que «Mensagem»
já manifestou.

Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada
do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei
fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado
o Prémio Nobel. E contudo – penso-o com tristeza – pus
no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática,
pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música
que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção
que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais
Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação,
preteridos pelo Fernando Pessoa., impuro e simples!

Creio que respondi à sua primeira pergunta.

Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos
não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão
os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!

Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus
heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos
é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei
se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico.
Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos
de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo
dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos
está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização
e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente
para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não
se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros;
fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu
fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem
em ataques e cousas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos
(o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança.
Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos
mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…

Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo.
Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos.
Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me
não lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da minha
infância quase esquecida.

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo
fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram.
(Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou
eu que não existo. Nestas cousas, como em todas, não devemos
ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que
chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter
e história, várias figuras irreais que eram para mim tão
visíveis e minhas como as cousas daquilo a que chamamos, porventura
abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro
de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música
com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo,
ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente – um certo Chevalier
de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja
figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha
afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez,
de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha
estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival
do Chevalier de Pas… Cousas que acontecem a todas as crianças? Sem
dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda,
pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para
me fazer saber que não foram realidades.

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este
mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias
fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um
dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem
eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente,
como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava,
e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente
eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos
e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos
de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto,
vejo… E tenho saudades deles.

(Em eu começando a falar – e escrever à máquina
é para mim falar –, custa-me a encontrar o travão. Basta
de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos
meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V.
quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história
da mãe que os deu à luz.)

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à
ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas
em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num
estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo,
numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo.
(Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao
Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie
complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer
espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui.
Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914
– acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei
a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta
e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não
conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter
outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se
seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o
nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o
meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim
que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei
noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem
a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente…
Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só.
Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência
como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva
e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso
paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo,
porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação
oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo.
Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção
nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode
com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes
de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro
de mim, as discussões e as divergências de critérios,
e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve.
Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda
se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética
entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são
diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última
hora, arranjar qualquer cousa para completar o número de páginas.
Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo»
do Álvaro de Campos – um poema de como o Álvaro de Campos
seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência.
E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências
latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas,
mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro.
Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo
poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim,
creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão…

Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há
porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido
– estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou
muito lúcido –, diga, que de bom grado lho darei. E, é
verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos
passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro
de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba
com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!

Mais uns apontamentos nesta matéria… Eu vejo diante de mim, no espaço
incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro
de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu
em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no
Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto
Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase
toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação
quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro
de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade,
pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como
sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui
em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora
realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão
frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais
baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 in
de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara
rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago
moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português,
cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo.
Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase
nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe
cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos
rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado
num colégio de jesuítas, é, como disse, médico;
vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico.
É, um latinista por educação alheia, e um semi-helenista
por educação própria. Álvaro de Campos teve uma
educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia
estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias
fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim
um tio beirão que era padre.

Como escrevo em nome desses três?… Caeiro, por pura e inesperada
inspiração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever.
Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente
se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para
escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo
Soares, que aliás em muitas cousas se parece com Álvaro de Campos,
aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco
suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição;
aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo
porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente
da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio
e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue
à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual;
ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas
com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu
mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero
exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis –
ainda inédita – ou de Campos. A simulação é
mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso.)

Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte
o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o
pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito,
porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever
imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.
(1)

Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo. Pergunta-me se
creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara;
compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na
existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos,
em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se
até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo.
Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros
universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente
ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do
Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria
anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas
implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande
Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema
de se Ele é Criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas
de seres, não creio na comunicação directa com Deus,
mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando
com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto:
o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo,
intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também),
caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico,
que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o
que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito
de todos, porque envolve uma transmutação da própria
personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os
outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação»
ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde
à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática
nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique,
de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro
Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente – o
que é facto – que me foi permitido folhear os Rituais dos três
primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de
1888.(2) Se não estivesse em dormência, eu não citaria
o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos
de Rituais que estão em trabalho.(3)

Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências,
às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não
hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder.
O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já,
é não responder tão depressa.

Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.

Fernando Pessoa

P. S. (!!!)

14-1-1935

Além da cópia que normalmente tiro para mim, quando escrevo
à máquina, de qualquer carta que envolve explicações
da ordem das que esta contém, tirei uma cópia suplementar, tanto
para o caso de esta carta se extraviar, como para o de, possivelmente, ser-lhe
precisa para qualquer outro fim. Essa cópia está sempre às
suas ordens.

Outra cousa. Pode ser que, para qualquer estudo seu, ou outro fim análogo,
o Casais Monteiro precise, no futuro, de citar qualquer passo desta carta.
Fica desde já autorizado a fazê-lo, mas com uma reserva, e peço-lhe
licença para lha acentuar. O parágrafo sobre ocultismo, na página
7 da minha carta, não pode ser reproduzido em letra impressa. Desejando
responder o mais claramente possível à sua pergunta, saí
propositadamente um pouco fora dos limites que são naturais nesta matéria.

Trata-se de uma carta particular, e por isso não hesitei em fazê-lo.
Nada obsta a que leia esse parágrafo a quem quiser, desde que essa
outra pessoa obedeça também ao critério de não
reproduzir em letra impressa o que nesse parágrafo vai escrito. Creio
que posso contar consigo para tal fim negativo.

Continuo em dívida para consigo da carta ultradevida sobre os seus
últimos livros. Mantenho o que creio que lhe disse na minha carta anterior:
quando agora (creio que será só em Fevereiro) passar alguns
dias no Estoril, porei essa correspondência em ordem, pois estou em
dívida, nessa matéria, não só para consigo, mas
também com várias outras pessoas.

Ocorre-me perguntar de novo uma cousa que já lhe perguntei e a que
me não respondeu: recebeu os meus folhetos de versos em inglês,
que há tempos lhe enviei?

(Para meu governo», como se diz em linguagem comercial, pedia-lhe que
me indicasse o mais depressa possível que recebeu esta carta. Obrigado.

Fernando Pessoa

NOTAS

(1) – Esta carta, tal como foi inserida por Adolfo Casais Monteiro
na revista Presença, n.º 9, Junho de 1937, e mais tarde por Jorge
de Sena nas Páginas de Doutrina Estética, obr. cit., terminava
aqui, em obediência ao Post Scriptum de Fernando Pessoa, que pedia a
não publicação do trecho subsequente devido aos motivos
que apontava e que se reproduzem. Contudo, com autorização de
Casais Monteiro, João Gaspar Simões incluiu o referido trecho
ocultista na sua Vida e Obra de Fernando Pessoa, obr. cit., pp. 546 e 547
(2.ª ed.). Transcreve-se o referido trecho na íntegra, bem como
o P. S., que só figurava em Apêndice da antologia de Sena.

(2) – A epígrafe de Eras e Psique é como se sabe a seguinte:
«… E assim vedes, meu irmão, que as verdades que vos foram
dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de
Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade».

(3) – Termina aqui o texto em questão, só conhecido depois
do livro de J. Gaspar Simões.

Carta a Armando Cortês Rodrigues

Lisboa, 19 de Janeiro de 1915

Meu querido Amigo:

Há tempos que lhe ando prometendo uma extensa carta. Não sei
mesmo se, especificando, lhe não falei numa carta de género
psicológico, a meu próprio respeito. Em todo o caso, é
disso que se trata.

Eu ando há muito – desde que lhe prometi esta carta –
com vontade de lhe falar intimamente e fraternalmente do meu «caso»,
da natureza da crise psíquica que há tempos venho atravessando.
Apesar da minha reserva, eu sinto a necessidade de falar nisto a alguém,
e não pode ser a outro senão a você – isto porque
só você, de entre todos quantos eu conheço, possui de
mim uma noção precisamente no nível da minha realidade
espiritual. Dá-se esta sua capacidade para me compreender porque você
é, como eu, fundamentalmente um espírito religioso; e, dos que
de perto literariamente me cercam, você sabe bem que (por superiores
que sejam como artistas) como almas, propriamente, não contam, não
tendo nenhum deles a consciência (que em mim é quotidiana) da
terrível importância da Vida, essa consciência que nos
impossibilita de fazer arte meramente pela arte, e sem a consciência
de um dever a cumprir para com nós próprios e para com a humanidade.

Nesta explicação aparentemente preliminar vai já exposta
uma grande parte do problema. Não sei como lho hei-de expor ordenadamente,
de modo perfeitamente lúcido. Mas, como isto é uma carta, eu
irei expondo conforme possa; e você ordenará, em seu espírito,
depois, os dispersos e alterados elementos.

A minha crise é do género das grandes crises psíquicas,
que são sempre crises de incompatibilidade, quando não com os
outros, por certo com nós próprios. A minha, agora, não
é de incompatibilidade comigo próprio; a minha, gradualmente
adquirida, autodisciplina, tem conseguido unificar dentro de mim quantos divergentes
elementos do meu carácter eram susceptíveis de harmonização.
Ainda tenho muito a empreender dentro do meu espírito; disto ainda
muito de uma unificação como eu a quero. Mas, como disse, não
é dessa banda que sopra o vento do meu desconsolo actual.

A crise de incompatibilidade com os outros – não, entenda-se desde
já, uma incompatibilidade violenta, como a que resultasse de divergências
declaradas, nítidas, de ambas as partes. Trata-se de outra cousa. A
incompatibilidade é sentida por mim, dentro de mim, e é comigo
que está o peso todo da minha divergência de aqueles que me cercam.
O facto de eu estar agora vivendo só, por não ter aqui família
próxima (minha tia, em cuja casa eu estava, está na Suíça,
onde foi ficar com a filha, que casou há pouco com um rapaz estudante,
pensionista do Estado) vem agravar este estado de espírito, por me
deixar a nu com a minha alma, sem afeições e interesses familiares
próximos a desviar de mim a minha atenção.

Temos pois que vivo há meses numa contínua sensação
de incompatibilidade profunda com as criaturas que me cercam – mesmo com as
próximas, amigos, literários é claro, porque os outros
não são indivíduos com quem eu tenha que poder ter intimidade
espiritual e por isso como, em matéria de relações sociais,
me dou bem com toda a gente, dou-me bem com eles.

Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude, para com a vida que
bata certo com a minha íntima sensibilidade, com as minhas aspirações
e ambições, com tudo quanto constitui o fundamental e o essencial
do meu íntimo ser espiritual. Encontro, sim, quem esteja de acordo
com actividades literárias que são apenas dos arredores da minha
sinceridade. E isso não me basta. De modo que, à minha sensibilidade
cada vez mais profunda, e à minha consciência cada vez maior
da terrível e religiosa missão que todo o homem de génio
recebe de Deus com o seu génio, tudo quanto é futilidade literária,
mera arte, vai gradualmente soando cada vez mais a oco e a repugnante. Pouco
a pouco, mas seguramente, no divino cumprimento íntimo de uma evolução
cujos fins me são ocultos, tenho vindo erguendo os meus propósitos
e as minhas ambições cada vez mais à altura daquelas
qualidades que recebi. Ter uma acção sobre a humanidade, contribuir
com todo o poder do meu esforço para a civilização vêm-se-me
tornando os graves e pesados fins da minha vida. E, assim, fazer arte parece-me
cada vez mais importante cousa, mais terrível missão – dever
a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim criador
de civilização de toda a obra artística. E por isso o
meu próprio conceito puramente estético da arte subiu e dificultou-se;
exijo agora de mim muita mais perfeição e elaboração
cuidada. Fazer arte rapidamente, ainda que bem, parece-me pouco. Devo à
missão que me sinto uma perfeição absoluta no realizado,
uma seriedade integral no escrito.

Passou de mim a ambição grosseira de brilhar por brilhar, e
essa outra, grosseiríssima, e de um plebeísmo artístico
insuportável, de querer épater. Não me agarro já
à ideia do lançamento do Interseccionismo com ardor ou entusiasmo
algum. É um ponto que neste momento analiso e reanaliso a sós
comigo. Mas, se decidir lançar essa quase blague, será já,
não a quase blague que seria, mas outra cousa. Não publicarei
o Manifesto «escandaloso». O outro – aquele dos gráficos
– talvez. A blague só um momento, passageiramente, a um mórbido
período transitório, de grosseria (felizmente incaracterística),
me pode agradar ou atrair. Será talvez útil – penso –
lançar essa corrente como corrente, mas não com fins meramente
artísticos, mas, pensando esse acto a fundo, como uma série
de ideias que urge atirar para a publicidade para que possam agir sobre o
psiquismo nacional, que precisa trabalhado e percorrido em todas as direcções
por novas correntes de ideias e emoções que nos arranquem à
nossa estagnação. Porque a ideia patriótica, sempre mais
ou menos presente nos meus propósitos, avulta agora em mim; e não
penso em fazer arte que não medite fazê-lo para erguer alto o
nome português através do que eu consiga realizar. É uma
consequência de encarar a sério a arte e a vida. Outra atitude
não pode ter para com a sua própria noção do dever
quem olha religiosamente para o espectáculo triste e misterioso do
Mundo.

Tenho-lhe explicado tudo isto muito mal. Quase que me tenta a ideia de rasgar
esta carta onde, até, pouca justiça fiz a mim próprio.
Mas você deve compreender o que eu sinto, e, creio, regozijar comigo,
através da sua amizade, por esta minha evolução ascendente
dentro de mim.

Regresso a mim. Alguns anos andei viajando a colher maneiras de sentir. Agora,
tendo visto tudo e sentido tudo, tenho o dever de me fechar em casa no meu
espírito e trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso
da civilização e o alargamento da consciência da humanidade.
Oxalá me [não] desvie disto o meu perigoso feitio demasiado
multilateral, adaptável a tudo, sempre alheio a si próprio e
sem nexo dentro de si.

Mantenho, é claro, o meu propósito de lançar pseudonimamente
a obra Caeiro-Reis-Campos. Isso é toda uma literatura que eu criei
e vivi, que é sincera, porque é sentida, e que constitui uma
corrente com influência possível, benéfica incontestavelmente,
nas almas dos outros. O que eu chamo literatura insincera não é
aquela análoga à do Alberto Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro
de Campos (o seu homem, este último, o da poesia sobre a tarde e a
noite). Isso é sentido na pessoa de outro; é escrito dramaticamente,
mas é sincero (no mais grave sentido da palavra) como é sincero
o que diz o Rei Lear, que não é Shakespeare, mas uma criação
dele. Chamo insinceras às cousas feitas para fazer pasmar, e às
cousas, também – repare nisto, que é importante – que não
contêm uma fundamental ideia metafísica, isto é, por onde
não passa, ainda que como um vento, uma noção da gravidade
e do mistério da Vida. Por isso é sério tudo o que escrevi
sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer destes
pus um profundo conceito da vida, diverso em todos três, mas em todos
gravemente atento à importância misteriosa de existir. E por
isso não são sérios os Paúis, nem o seria o Manifesto
interseccionista de que uma vez lhe li trechos desconexos. Em qualquer destas
composições a minha atitude para com o público é
a de um palhaço. Hoje sinto-me afastado de achar graça a esse
género de atitude.

Que pouco lúcido e explícito tudo isto! Mas eu tenho que lhe
escrever tudo rapidamente; é hoje o dia 19 e eu não quero deixar
de conversar com o seu espírito sobre estas cousas. Como já
disse, você é o único dos meus amigos que tem, a par daquela
apreciação das minhas qualidades que lhe permitirá não
julgar esta carta um documento de megalómano, a profunda religiosidade,
e a convicção do doloroso enigma da Vida, para simpatizar comigo
em tudo isto.

Escuso agora de lhe explicar o quanto esta atitude – que eu, aliás,
não revelo, por várias razões, desde a de ser ela uma
cousa íntima até à de ser incompreensível às
sensibilidades dos que me cercam – me incompatibiliza surdamente com os que
estão em meu redor. Não é uma incompatibilidade violenta,
disse; mas é uma impaciência para com todos quantos fazem arte
para vários fins inferiores, como quem brinca, ou como quem se diverte,
ou como quem arranja uma sala com gosto – género de arte este
que dá bem o que eu quero exprimir, porque não tem Além
nem outro propósito que o, por assim dizer, decorativamente artístico.
E daí a minha «crise» toda. Não é crise para
eu me lamentar. É a de se encontrar só quem se adiantou de mais
aos companheiros de viagem – desta viagem que os outros fazem para se
distrair e acho tão grave, tão cheia de termos de pensar no
seu fim, de reflectir no que diremos ao Desconhecido para cuja casa a nossa
inconsciência guia os nossos passos… Viagem essa, meu querido Amigo,
que é entre almas e estrelas, pela Floresta dos Pavores… e Deus,
fim da estrada infinita, à espera no silêncio da Sua grandeza…

Bem ou mal – mal, por certo – expus-lhe tudo. Sinto-me contente por
lhe ter falado assim, e porque sei que o seu espírito acolhe com simpatia
e amizade estas minhas tristezas de altura. Tudo isto, escuso dizer-lhe, é
segredo… De resto, a quem o poderia você contar? …

Termino, a tempo felizmente. Mande-me quando puder, cuidadosamente copiados
dos originais, os inéditos de Antero de que me fala. Pode ser que,
tendo-os aqui, seja conveniente publicá-los nalguma parte. Haverá
autorização para isso ? É bom saber-se.

Mando-lhe alguns versos meus… Leia-os e guarde-os para si… A seu Pai,
se quiser, pode lê-los, mas não espalhe, porque são inéditos.
Amo especialmente a última poesia, a da Ceifeira, onde consegui dar
a nota paúlica em linguagem simples. Amo-me por ter escrito

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso!…

e, enfim, essa poesia toda.

Tenho escrito mais, mas mando o que está completo e é mais
fácil copiar. É pena que vá tudo em letra de máquina,
que torna a poesia pouco poética, mas assim é mais rápido
e nítido.

Escreva-me sempre, meu caro Côrtes-Rodrigues. Dê cumprimentos
meus a seu Pai e receba um grande e fraterno abraço do seu

Fernando Pessoa

P.S. – Vi há dias uma esplêndida composição
– «um túmulo de Wagner» – do Norberto Correia.
Bela deveras. Você gostaria imenso de a conhecer.

F. P.

P.S.2 – Não tenho tempo para reler esta carta. Naturalmente
faltam palavras aqui e acolá, dada a rapidez com que eu escrevi. E
a letra em altura nenhuma será muito legível. Você desculpe

F. P.

Carta a Júlio Saul Dias

Caixa Postal 147.

Lisboa, 10 de Fevereiro de 1933.

Meu presado Camarada:

É quasi, senão de todo, indesculpavel a demora que tenho dado
ao agradecimento dos dois livros de desenhos seus, que ha tempos me enviou.
Venho agradecer-lh’os agora, com o meu pedido de desculpa por tanto
tardar.

Desejaria dizer qualquer coisa sobre os seus desenhos. Succede, porém,
que nada sei, technicamente, criticamente, de qualquer arte que não
seja a literatura, e ainda d’esta muitas vezes me pergunto se saberei
alguma coisa… Não poderei, pois, dar qualquer opinião critica
sobre os seus desenhos. O que posso dizer – e sinceramente lh’o digo
– é que me agradaram muito. Mas isto é uma impressão,
não uma crítica.

Muito tambem me agradou o ajustamento entre o texto e os desenhos no livro
que tem texto, isto àparte o que os versos me agradaram em elles mesmos.
São, presumo, do José Regio; se não são, ha alguem
que o segue espiritualmente tam de perto que lhe toca nos calcanhares.

Acceite, com a reiteração dos meus agradecimentos e pedidos
de desculpa, a expresso do apreço e da camaradagem do

Fernando Pessoa

Carta à Mário de Sá-Carneiro

(em 14 de Março de 1916)

Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental – uma ânsia aflita
de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só
isto – que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo
da frase falará por mim.

Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um
presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de
lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá;
e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há
barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há
desembarque onde se esqueca. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas
a minha mágoa é mais antiga.

Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência
do meu corpo, que sou a crianca triste em quem a vida bateu. Puseram-me a
um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido
que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Marco, às
nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.

No jardim que entrevejo pelas janela caladas do meu sequestro, atiraram com
todos os baloucos para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados
muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginacão,
ter baloucos para esquecer a hora.

Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste
momento. Como à veladora do "Marinheiro" ardem-me os olhos,
de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios.
Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura
a descoser-se.

Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que
esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histérico que
aí vão saíram espontâneas do que me sinto. Mas
você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável
é de uma realidade de cabide ou de chávena – chia de aqui e
de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.

Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é
inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão
uma grande vontade de chorar.

Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio amanha, relendo-a,
me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e
esgares dela no "Livro do Desassossego". Mas isso nada roubará
à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade
com que a sinto.

As últimas notícias são estas. Há também
o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer.
Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.

Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono
ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não
muito diferentes destes.

De que cor será sentir?

Milhares de abracos do seu, sempre muito seu,

Fernando Pessoa

P.S. – Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente,
a copiarei amanha, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente
escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais,
com toda a sua histero-neurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções
e esquinas na consciência de si-próprio que dele são tao
características…

Você acha-me razão, não é verdade?

Carta a Miguel Torga

Lisboa, 6 de Junho de 1930.

Meu presado Camarada:

Muito agradeço o exemplar do seu livro "Rampa". Recebi-o
já há alguns dias. Só hoje posso escrever para lho agradecer.
Li-o, porém, logo que o recebi.

Li-o e gostei dele. A sua sensibilidade é de tipo igual à do
José Régio – é confundida, em si mesma, com a inteligência.
O que em si é ainda por aperfeiçoar é o modo de fazer
uso dessa sensibilidade. Há que separar mais os dois elementos, que
naturalmente a compõem; ou que confundi-los ainda mais. Uma análise
instintiva que coloque a sensibilidade desintelectualizada perante a inteligência
dessensibilizada, em contraste, diálogo e reparo; ou uma síntese
em que desapareçam os traços de haver dois.

Não creio impossível que qualquer, ou ambos, destes processos
sejam por si atingidos num futuro próximo da sua consciência
de si mesmo.

Intelectualmente – e portanto artisticamente – falando (a arte
não é mais que uma manifestação distraída
da inteligência), a sensibilidade é o inimigo. Não o inimigo
que se nos opõe, como na guerra, mas o inimigo a quem nos opomos, como
no amor. Há que vencer, pois, não por esmagamento, mas por sedução
ou domínio. Chamar a sensibilidade para dentro da casa da inteligência;
ou fazer a inteligência montar casa externa à sensibilidade.
Imagens? Como o universo… Mas, em suma, gostei do seu livro, e por ele o
felicito.

Com a melhor camaradagem e apreço

Fernando Pessoa

Carta ao amigo Mário Beirão

Em 01 de Fevereiro de 1913

"Estou actualmente atravessando uma daquelas crises a que, quando se
dão na agricultura, se costuma chamar "crise de abundância".

Tenho a alma num estado de rapidez ideativa tão intenso que preciso
fazer da minha atenção um caderno de apontamentos, e, ainda
assim, tantas são as folhas que tenho a encher que algumas se perdem,
por elas serem tantas, e outras se não podem ler depois, por com mais
que muita pressa escritas. As ideias que perco causam-me uma tortura imensa,
sobrevivem-se nessa tortura escuramente outras. V. dificilmente imaginará
que a Rua do Arsenal, em matéria de movimento, tem sido a minha pobre
cabeça. Versos ingleses, portugueses, raciocínios, temas, projectos,
fragmentos de coisas que não sei o que são, cartas que não
sei como começam ou acabam, relâmpagos de críticas, murmúrios
de metafísicas… toda uma literatura, meu caro Mário, que vai
da bruma – para a bruma – pela bruma…

Destaco de coisas psíquicas de que tenho sido o lugar o seguinte fenômeno
que julgo curioso. V. sabe, creio, que de várias fobias que tive guardo
unicamente a assaz infantil mas terrivelmente torturadora fobia das trovoadas.
O outro dia o céu ameaçava chuva e eu ia a caminho de casa e
por tarde não havia carros. Afinal não houve trovoada, mas esteve
iminente e começou a chover – aqueles pingos graves, quentes e espaçados
– ia eu ainda a meio caminho entre a Baixa e minha casa. Atirei-me para casa
com o andar mais próximo do correr que pude achar, com a tortura mental
que V. calcula, perturbadíssimo, confrangido eu todo. E neste estado
de espírito encontro-me a compor um soneto* – acabei-o uns passos antes
de chegar ao portão de minha casa -, a compor um soneto de uma tristeza
suave, calma, que parece escrito por um crepúsculo de céu limpo.
E o soneto é não só calmo, mas também mais ligado
e conexo que algumas coisas que eu tenho escrito. O fenômeno curioso
do desdobramento é a coisa que habitualmente tenho, mas nunca o tinha
sentido neste grau de intensidade… "

* O soneto referido intitula-se "Abdicação".
Carta retirada do livro "Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação",
Ed. Ática.

De amor, de 01/03/1920

01/03/1920.

Meu querido Be«be»sinho,

Hoje, com a quasi certeza que o Osorio não te poderá encontrar,
pois, além de ter que esperar aqui pelo Valladas, tem naturalmente
que ir levar assucar a casa de meu primo, quasi que de nada me serve escrever-te.
Vão, em todo o caso, estas linhas, para o caso de sempre ser possivel
fazer te chegar a carta ás mãos.

Ainda bem que a interrupção de ainda agora foi mesmo no fim
da nossa conversa, quando iamos despedir-nos. Era justamente para evitar interrupções
d’essas que eu escolhi o caminho por onde hoje iamos. Amanhã esperarei
à mesma hora, sim Bébé? Não me conformo com a
idéa de escrever; queria fallar-te, ter-te sempre ao pé de mim,
não ser necessário mandar-te cartas. As cartas são signais
de separação – signais, pelo menos, pela necessidade de as escrevermos,
de que estamos affastados.

Não te admires de certo laconismo nas minhas cartas. As cartas são
para as pessoas a quém não interessa mais fallar: para essas
escrevo de boa vontade. A minha mãe, por exemplo, nunca escrevi de
boa vontade, exactemente porque gosto muito d’ella.

Quero que sintas isto, que saibas que eu sinto e penso assim a este respeito,
para não me achares secco, frio, indifferente. Eu não o sou,
meu Bébé-menininho, minha almofadinha côr-de-rosa para
pregar beijos (que grande disparate!)

Mando um meiguinho chinez.
E adeus até amanhã, meu anjo.

Um quarteirão de milhares de beijos do teu, sempre teu

Fernando

De amor, de 15/08/1920

Domingo, 15/08/1920

Vibora:

Recebi a tua carta má, e, na verdade, não percebo como foi
que nos não encontrámos nem hontem nem antes de hontem. Differença
de relogios? Não creio, porque não notei, quer num dia quer
noutro, ao chegar á Baixa, que o meu relogio estivesse tão errado.

Escrevo-te só estas linhas para te dizer que estarei amanhã
ao meio-dia em ponto no fim da Av. das Cortes. Vães ao escriptorio
da R. da Victoria á 1. Isto deve dar-te tempo. O peor é se vães
acompanhada. Em todo o caso esperar-te-hei até ás 12 1/4.

Oxalá estejas melhor; mas isso não é desgosto, é
viboridade, ou seja maldade.

Sempre e muito teu

Fernando

Estou escrevendo do Café Arcada ao meio dia e 3 quartos. Porisso escrevo
pouco (contra o meu costume) para ver se passo na tua rua não muito
longe da uma hora.

De amor, de 19/02/1920

19/02/1920

Ophelinha:

Para me mostrar o seu desprezo, ou pelo menos, a sua indifferença
real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão
comprido, nem da serie de "razões" tão pouco sinceras
como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-m’o. Assim, entendo da mesma
maneira, mas dõe-me mais.

Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito,
como lhe posso eu levar isso a mal? A Ophelinha pode preferir quem quizer:
não tem obrigação – creio eu – de amar-me, nem, realmente
necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.

Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos
de advogado. O amor não estuda tanto as cousas, nem trata os outros
como réus que é preciso "entalar".
Porque não é franca para commigo? Que empenho tem em fazer soffrer
quem não lhe fez mal – nem a si, nem a ninguém -, a quem tem
por peso e dor bastante a propria vida isolada e triste, e não precisa
de que lh’a venham accrescentar creando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe
affeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse,
mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.

Reconheço que tudo isto é comico, e que a parte mais comica
d’isto tudo sou eu.
Eu-proprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse
tempo para pensar em outra cousa que não fosse no soffrimento que tem
prazer em causar-me sem que eu, a não ser por amál-a, o tenha
merecido, e creio bem qeu amál-a não é razão bastante
para o merecer. Enfim…

Ahi fica o "documento escripto" que me pede. Reconhece a minha
assignatura o tabellião Eugenio Silva.

Fernando

De amor, de 23/03/1920

23/03/1920

O Osorio leva o chinez dentro de uma caixa de phosphoros.

Meu Be«be»zinho lindo:

Não imaginas a graça que te achei hoje á janella da
casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mostraste prazer
em me ver (Alvaro de Campos).

Tenho estado muito triste, e além d’isso muito cansado – triste não
só por te não poder ver, como tambem pelas complicações
que outras pessoas teem interposto no nosso caminho. Chego a crer que a influência
constante, insistente, habil d’essas pessoas; não ralhando contigo,
não se oppondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o
teu espirito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me
já differente; já não és a mesma que eras no escriptorio.
Não digo que tu propria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo
menos, julguei dar por isso. Oxalá me tenha enganado…

Olha, filhinha: não vejo nada claro no futuro. Quero dizer: não
vejo o que vãe haver, ou o que vãe ser de nós, dado,
de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influencias de familia,
e de em tudo seres de uma opinião contraria á minha. No escriptorio
eras mais docil, mais meiga, mais amoravel.

Enfim… Amanhã passo á mesma hora no Largo de Camões.
Poderás tu apparecer á janella?

Sempre e muito teu

Fernando

De amor, de 23/11/1920

Domingo, 29/11/1920

Ophelinha:

Agradeço a sua carta. Ella trouxe-me pena e allivio ao mesmo tempo.
Pena, porque estas cousas fazem sempre pena; allivio, porque, na verdade,
a unica solução é essa – o não prolongarmos mais
uma situação que não tem já a justificação
do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima
profunda, uma amisade inalteravel. Não me nega a Ophelinha outro tanto,
não é verdade?

Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá
culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se attribuissem.

O Tempo, que envelhece as faces e os cabellos, envelhece tambem, mas mais
depressa ainda, as affeições violentas. A maioria da gente,
porque é estupida, consegue não dar por isso, e julga que ainda
ama porque contrahiu o habito de se sentir a amar. Se assim não fosse,
não havia gente feliz no mundo. As creaturas superiores, porém,
são privadas da possibilidade d’essa illusão, porque nem podem
crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por
elle a estima, ou a gratidão, que elle deixou.
Estas cousas fazem soffrer, mas o soffrimento passa. Se a vida, que é
tudo, passa por fim, como não hão de passar o amor e a dor,
e todas as mais cousas, que não são mais que partes da vida?

Na sua carta é injusta para commigo, mas comprehendo e desculpo; decerto
a escreveu com irritação, talvez mesmo com magua, mas a maioria
da gente – homens ou mulheres – escreveria, no seu caso, num tom ainda mais
acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio optimo,
e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade.

Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que
não será sua a culpa.
Quanto a mim…

O amor passou. Mas conservo-lhe uma affeição inalteravel, e
não esquecerei nunca – nunca, creia – nem a sua figurinha engraçada
e os seus modos de pequeneina, nem a sua ternura, a sua dedicação,
a sua indole amoravel. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que
lhe attribúo, fossem uma illusão minha; mas nem creio que fossem,
nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lh’as attribuisse.

Não sei o que quer que lhe devolva – cartas ou que mais. Eu preferia
não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memoria viva
de uma passado morto, como todos os passados; como alguma cousa de commovedor
numa vida, como a minha, em que o progresso nos annos é par do progresso
na infelicidade e na desillusão.

Peço que não faça como a gente vulgar, que é
sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha
de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante
o outro, como dois conhecidos desde a infancia, que se amaram um pouco quando
meninos, e, embora na vida adulta sigam outras affeições e outros
caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memoria profunda do seu
amor antigo e inutil
Que isto de "outras affeições" e de "outros caminhos"
é consigo, Ophelinha, e não commigo. O meu destino pertence
a outra Lei, de cuja existencia a Ophelinha nem sabe, e está subordinado
cada vez mais á obediência a Mestres que não permittem
nem perdoam.
Não é necessario que comprehenda isto. Basta que me conserve
com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei
na minha.

Fernando

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