Poemas de Álvaro de Campos

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Fernando Pessoa

A Casa Branca Nau Preta

Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se…

Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro…
Não existe manhã para o meu torpor nesta hora…
Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim…
Há uma interrupção lateral na minha consciência…

Continuam encostadas as portas da janela desta tarde
Apesar de as janelas estarem abertas de par em par…
Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo,

E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma…

Quem dera que houvesse
Um terceiro estado pra alma, se ela tiver só dois…
Um quarto estado pra alma, se são três os que ela tem…
A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar
Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir…

As naus seguiram,
Seguiram viagem não sei em que dia escondido,
E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos,
Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho…

Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,
Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência
de as estar vendo,
Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las,
Não poder eu fazer qualquer coisa gênero haver árvores
que deixasse de doer,
Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo
do lado de cá.
E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão…

Que sonhos? … Eu não sei se sonhei … Que naus partiram, para onde?

Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteira
Naus partem — naus não, barcos, mas as naus estão em mim,

E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,

Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida…

Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das
árvores?
Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer?

Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem ele,
Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto
E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir…

Não há, substância de pensamento na matéria de
alma com que penso …
Há só janelas abertas de par em par encostadas por causa do
calor que já não faz,
E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e eu.

Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a
colhe
A casa branca distante onde mora… Fecho o olhar…
E os meus olhos fitos na casa branca sem a ver
São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta.
E eu, parado, mole, adormecido,
Tenho o mar embalando-me e sofro…

Aos próprios palácios distantes a nau que penso não
leva.
As escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga.
Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa.
Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico
E o mar entra por os meus olhos o pórtico cessando.

Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia
Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá?

Úmida sombra nos sons do tanque noturna sem lua, as rãs rangem,

Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói.

Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos,
Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os atos,
Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa,
E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas…

A casa branca nau preta…
Felicidade na Austrália…

A Fernando Pessoa

Depois de ler o seu drama estático O Marinheiro em Orfeu I

Depois de doze minutos
Do seu drama O Marinheiro
Em que os mais ágeis e astutos
Se sentem com sono e brutos,
E de sentido nem cheiro,
Diz uma das veladoras
Com langorosa magia:

De eterno e belo há apenas o sonho.
Porque estamos nós falando ainda?

Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras…

(1-3-1917)

No lugar dos palácios desertos e em ruínas
À beira do mar,
Leiamos, sorrindo, o segredo das sinas
De quem sabe amar.
Qualquer que êle seja, o destino daqueles
Que o amor levou
Para a sombra, ou na luz se fêz a sombra dêles,
Qualquer fôsse o vôo.
Por certo êles foram mais reais e felizes.

(1-3-1917)

Não sei. Falta-me um sentido, um tacto
Para a vida, para o amor, para a glória…
Para que serve qualquer história,
Ou qualquer fato?
Estou só, só como ninguém ainda estêve,
Õco dentro de mim, sem depois nem antes.
Parece que passam sem ver-me os instantes,
Mas passam sem que o seu passo seja leve.
Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li.
Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.
Não ser nada, ser uma figura de romance,
Sem vida, sem morte material, uma idéia,
Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,
Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.

A Frescura

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!

Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros,
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que’eu saberia que não
vinha.

Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma
hora,

Deliberadamente à mesma hora…
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.

É tão engraçada esta parte assistente da vida!

Até não consigo acender o cigarro seguinte… Se é um
gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

Acaso

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,

Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos…
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;

E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,

Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser… A rapariga loira?
É a mesma afinal…
Tudo é o mesmo afinal …

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o
mesmo também afinal.

Acordar

Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília
e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o
campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,

E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer
de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,

Seja
A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas…
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de individualidade para quem repara…
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,

Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio

E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.

A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.

Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores…

Deita-me as mancheias,
Por cima da alma,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também…

Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Exceto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Dá-me rosas, rosas,
E llrios também…

Minha dor é velha
Como um frasco de essência cheio de pó.
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega.
Chego às janelas
Dos palác ios arruinados
E cismo de dentro para fora
Para me consolar do presente.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também…

Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa,
Sobrar-me-á sempre de que desejar,
Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que eu penso,
E muito embora o que eu te peça
Te pareça que não quer dizer nada,
Minha pobre criança tísica,
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também.

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço
planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;

Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não
digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…

Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de amanhã…
Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?

Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…

Antes, não…
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.

Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca
ser.
Só depois de amanhã…
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
Sim, talvez só depois de amanhã…

O porvir…
Sim, o porvir…

Afinal

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d’Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.

Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,

Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos

Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam

Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,

Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.

Sursum corda! ó Terra, jardim suspenso, berço
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!
Mãe verde e florida todos os anos recente,
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis
Num rito anterior a todas as significações,
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,
Grande voz acordando em cataratas e mares,
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,
Em cio de vegetação e florescência rompendo
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
A tua própria vontade transtornadora e eterna!
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
Que perturba as próprias estações e confunde
Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!
Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima
Volteia serpenteando, ficando como um anel
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,
Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito
Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,

A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo,

Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.

Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.
Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
No vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo

Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.

Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
De chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
A minha inteligência limitadora e gelada.

Sou uma grande máquina movida por grandes correias
De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,
O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,

E nunca parece chegar ao tambor donde parte …

Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,
Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,
Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço

Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.

Dentro de mim estão presos e atados ao chao
Todos os movimentos que compõem o universo,
A fúria minuciosa e dos átomos,
A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,

A chuva com pedras atiradas de catapultas
De enormes exércitos de anões escondidos no céu.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh’alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!

Ah, Onde Estou

Ah, onde estou onde passo, ou onde não estou nem passo,
A banalidade devorante das caras de toda a gente!
Ah, a angústia insuportável de gente!
O cansaço inconvertível de ver e ouvir!
(Murmúrio outrora de regatos próprios, de arvoredo meu.)

Queria vomitar o que vi, só da náusea de o ter visto,
Estômago da alma alvorotado de eu ser…

Ah, Perante

Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,

Perante esta única realidade terrível — a de haver uma
realidade,
Perante este horrível ser que é haver ser,
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
— Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto constroem, desfazem ou se constrói ou desfaz através
deles,
Se empequena!
Não, não se empequena… se transforma em outra coisa —

Numa só coisa tremenda e negra e impossível,
Urna coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino

—Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino,
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas,
De todas as vidas, abstratas ou concretas,
Eternas ou contingentes,
Verdadeiras ou falsas!
Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,
Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar por que é
um tudo,
Por que há qualquer coisa, por que há qualquer coisa, por que
há qualquer coisa!

Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,

E é com minhas idéias que tremo, com a minha consciência
de mim,
Com a substância essencial do meu ser abstrato
Que sufoco de incompreensível,
Que me esmago de ultratranscendente,
E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,
Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!

Cárcere do Ser, não há libertação de ti?

Cárcere de pensar, não há libertação de
ti?
Ah, não, nenhuma — nem morte, nem vida, nem Deus!
Nós, irmãos gêmeos do Destino em ambos existirmos,
Nós, irmãos gêmeos dos Deuses todos, de toda a espécie,

Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma sombra,
Sombra sejamos, ou sejamos luz, sempre a mesma noite.
Ah, se afronto confiado a vida, a incerteza da sorte,
Sorridente, impensando, a possibilidade quotidiana de todos os males,
Inconsciente o mistério de todas as coisas e de todos os gestos,
Por que não afrontarei sorridente, inconsciente, a Morte?
Ignoro-a? Mas que é que eu não ignoro?
A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo,
São mistérios menores que a Morte? Como se tudo é o mesmo
mistério?
E eu escrevo, estou escrevendo, por uma necessidade sem nada.
Ah, afronte eu como um bicho a morte que ele não sabe que existe!
Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,
Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,

Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,

Porque é preciso existir para se criar tudo,
E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível
haver ser,
E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses

Ah, Um Soneto

Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear…
No movimento (eu mesmo me desloco
nesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.
Há saudades nas pernas e nos braços
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaçs.
Mas – esta é boa! – era do coração
que eu falava… e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação?…

Ali Não Havia

Ali não havia eletricidade.
Por isso foi à luz de uma vela mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler —
A Bíblia, em português (coisa curiosa), feita para protestantes.

E reli a "Primeira Epístola aos Coríntios".
Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A "Primeira Epístola aos Coríntios" …
Relia-a à luz de uma vela subitamente antiqüíssima,
E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim…
Sou nada…
Sou uma ficção…
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
"Se eu não tivesse a caridade."
E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,
A grande mensagem com que a alma é livre…
"Se eu não tivesse a caridade…"
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade! …

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de
há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida. Sim, o que fui
de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho… )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! O que eu sou hoje é
como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos …
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com
mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo
do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! … O tempo
em que festejavam o dia dos meus anos!…

Ao Volante

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar
mas seguir?

Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,

Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.

Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem
conseqüência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida…

Maieável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira
da estrada
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que
modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é
que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar
que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha

No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,

E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva
em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os
deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado
que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,

E, num desejo terrível, súbido, violento, inconcebível,

Acelero…
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei
ao vê-lo sem vê-lo,

À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao votante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,

Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim…

Apostila

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar
mas seguir?

Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,

Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.

Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem
conseqüência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida…

Maieável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira
da estrada
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que
modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é
que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar
que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha

No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,

E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva
em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os
deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado
que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,

E, num desejo terrível, súbido, violento, inconcebível,

Acelero…
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei
ao vê-lo sem vê-lo,

À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao votante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,

Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim…

Barrow-on-Furness

I

Sou vil, sou reles, como toda a gente
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Quem diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.
É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.

Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo c leio.

Justificar-me? Sou quem todos são…
Modificar-me? Para meu igual?…
— Acaba lá com isso, ó coração!

II

Deuses, forças, almas de ciência ou fé,
Eh! Tanta explicação que nada explica!
Estou sentado no cais, numa barrica,
E não compreendo mais do que de pé.
Por que o havia de compreender?
Pois sim, mas também por que o não havia?
Águia do rio, correndo suja e fria,
Eu passo como tu, sem mais valer…

Ó universo, novelo emaranhado,
Que paciência de dedos de quem pensa
Em outras cousa te põe separado?

Deixa de ser novelo o que nos fica…
A que brincar? Ao amor?, à indif’rença?
Por mim, só me levanto da barrica.

III

Corre, raio de rio, e leva ao mar
A minha indiferença subjetiva!
Qual "leva ao mar"! Tua presença esquiva
Que tem comigo e com o meu pensar?
Lesma de sorte! Vivo a cavalgar
A sombra de um jumento. A vida viva
Vive a dar nomes ao que não se ativa,
Morre a pôr etiquetas ao grande ar…

Escancarado Furness, mais três dias
Te, aturarei, pobre engenheiro preso
A sucessibilíssimas vistorias…

Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo
(E tu irás do mesmo modo que ias),
Qualquer, na gare, de cigarro aceso…

IV

Conclusão a sucata! … Fiz o cálculo,
Saiu-me certo, fui elogiado…
Meu coração é um enorme estrado
Onde se expõe um pequeno animálculo
A microscópio de desilusões
Findei, prolixo nas minúcias fúteis…
Minhas conclusões Dráticas, inúteis…
Minhas conclusões teóricas, confusões…

Que teorias há para quem sente
o cérebro quebrar-se, como um dente
Dum pente de mendigo que emigrou?

Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou …

V

Há quanto tempo, Portugal, há quanto
Vivemos separados! Ah, mas a alma,
Esta alma incerta, nunca forte ou calma,
Não se distrai de ti, nem bem nem tanto.
Sonho, histérico oculto, um vão recanto…
O rio Furness, que é o que aqui banha,
Só ironicamente me acompanha,
Que estou parado e ele correndo tanto …

Tanto? Sim, tanto relativamente…
Arre, acabemos com as distinções,
As subtilezas, o interstício, o entre,
A metafísica das sensações

– Acabemos com isto e tudo mais …
Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!

Bicarbonato de Soda

Súbita, uma angústia…
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!

Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus prpósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço…
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.

Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e
na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir…
E–xis–tir …
Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens, Sem esperança, em liberdade,
sem nexo,
Acidente da inconseqüência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros! Dêem-me de beber, que
não tenho sede!

Cartas de amor

Todas as cartas de amor são ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras, ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente ridículas.)

Chega Através

Chega através do dia de névoa alguma coisa do esquecimento,

Vem brandamente com a tarde a oportunidade da perda.
Adormeço sem dormir, ao relento da vida.
É inútil dizer-me que as ações têm conseqüências.

É inútil eu saber que as ações usam conseqüências.

É inútil tudo, é inútil tudo, é inútil
tudo.

Através do dia de névoa não chega coisa nenhuma.
Tinha agora vontade
De ir esperar ao comboio da Europa o viajante anunciado,
De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo.
Não vem com a tarde oportunidade nenhuma.

Clearly Non-Campos

Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,
Que subitamente, como uma sufocação, me aflige
O coração que, de repente,
Entre o que vive, se esquece.
Não sei qual é o sentimento
Que me desvia do caminho,
Que me dá de repente
Um nojo daquilo que seguia,
Uma vontade de nunca chegar a casa,
Um desejo de indefinido.
Um desejo lúcido de indefinido.
Quatro vezes mudou a ‘stação falsa
No falso ano, no imutável curso
Do tempo conseqüente;
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde,
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
Nem o último, e acabam.

Começa a Haver

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida…
Calaram o piano no terceiro andar…
Não oiço já passos no segundo andar…
No rés-do-chão o rádio está em silêncio…

Vai tudo dormir…

Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! —
Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua…
Um automóvel — demasiado rápido! —
Os duplos passos em conversa falam-me…
O som de um portão que se fecha brusco dóí-me…

Vai tudo dormir…
Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma…
Qualquer coisa.

Começo a conhecer-me. Não existo

Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
ou metade desse intervalo, porque também há vida …
Sou isso, enfim …
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.

Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.

Conclusão a sucata !… Fiz o cálculo

Conclusão a sucata !… Fiz o cálculo,
Saiu-me certo, fui elogiado…
Meu coração é um enorme estrado
Onde se expõe um pequeno animálculo…

A microscópio de desilusões
Findei, prolixo nas minúcias fúteis…
Minhas conclusões práticas, inúteis…
Minhas conclusões teóricas, confusões…

Que teorias há para quem sente
O cérebro quebrar-se, como um dente
Dum pente de mendigo que emigrou ?

Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou…

Contudo

Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.

Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.
Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com
que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,

Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.

Acima de tudo o mundo externo!
Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim.

Cruz na Porta

Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,
Que subitamente, como uma sufocação, me aflige
O coração que, de repente,
Entre o que vive, se esquece.
Não sei qual é o sentimento
Que me desvia do caminho,
Que me dá de repente
Um nojo daquilo que seguia,
Uma vontade de nunca chegar a casa,
Um desejo de indefinido.
Um desejo lúcido de indefinido.
Quatro vezes mudou a ‘stação falsa
No falso ano, no imutável curso
Do tempo conseqüente;
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde,
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
Nem o último, e acabam.

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê
na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha

(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:

Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar…).

Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:

É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
As normas reais ou sentimentais da vida –
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,

Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se ha uma razão exterior a
ela?
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem,
e isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!

Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha olhos tristes por profissão

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo! E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo. Eu é que sei. Coitado dele!

Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

Datilografia

Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),

Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.

Outrora. Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.
Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra …

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Ergue a voz o tique-taque estalado das máquinas de escrever

Dela Musique

Ah, pouco a pouco, entre as árvores antigas,
A figura dela emerge e eu deixo de pensar…
Pouco a pouco, da angústia de mim vou eu mesmo emergindo…

As duas figuras encontram-se na clareira ao pé do lago….

… As duas figuras sonhadas,
Porque isto foi só um raio de luar e uma tristeza minha,
E uma suposição de outra coisa,
E o resultado de existir…

Verdadeiramente, ter-se-iam encontrado as duas figuras
Na clareira ao pé do lago?
( … Mas se não existem?…)
… Na clareira ao pé do lago?…

Demogorgon

Na rua cheia de sol vago há casas paradas e gente que anda.
Uma tristeza cheia de pavor esfria-me.
Pressinto um acontecimento do lado de lá das frontarias e dos movimentos.

Não, não, isso não!
Tudo menos saber o que é o Mistério!
Superfície do Universo, ó Pálpebras Descidas,
Não vos ergais nunca!
O olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se!

Deixai-me viver sem saber nada, e morrer sem ir saber nada!
A razão de haver ser, a razão de haver seres, de haver tudo,

Deve trazer uma loucura maior que os espaços
Entre as almas e entre as estrelas. Não, não, a verdade não!

Deixai-me estas casas e esta gente;
Assim mesmo, sem mais nada, estas casas e esta gente…
Que bafo horrível e frio me toca em olhos fechados?
Não os quero abrir de viver! ó Verdade, esquece-te de mim!

Depus a Máscara

Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada…
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha.

Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados

Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados
O esplendor do sentido nenhum da vida…
Toquem num arraial a marcha fúnebre minha!
Quero cessar sem conseqüências…
Quero ir para a morte como para uma festa ao crepúsculo.

Dobrada à morda do Porto

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo …

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje). Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio

Dois Excertos de Odes

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo …

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje). Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio

Domingo Irei

Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,
Contente da minha anonimidade.
Domingo serei feliz — eles, eles…
Domingo…
Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo…
Nenhum domingo. —
Nunca domingo. —

Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
Assim passa a vida,
Sutil para quem sente,
Mais ou menos para quem pensa:
Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,
Não no nosso domingo,
Não no meu domingo,
Não no domingo…
Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!

Encostei-me

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,

E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.
Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na idéia tão confortável de hoje ainda não ser
amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.

Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora

Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y’s de sentimento.

Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos —

Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência
para o
compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.

Escrito Num Livro Abandonado em Viagem

Venho dos lados de Beja.
Vou para o meio de Lisboa.
Não trago nada e não acharei nada.
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro.
Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:
Fui, como ervas, e não me arrancaram.

Esta Velha

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.

Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que…,

Isto. Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,

Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim…

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco.

Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

Estou Cansado

Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo…
E a luxúria única de não ter já esperanças?

Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,

Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa

Estou

Estou tonto,
Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar,
Ou de ambas as coisas.
O que sei é que estou tonto
E não sei bem se me devo levantar da cadeira
Ou como me levantar dela.
Fiquemos nisto: estou tonto.

Afinal
Que vida fiz eu da vida?
Nada.
Tudo interstícios,
Tudo aproximações,
Tudo função do irregular e do absurdo,
Tudo nada.
É por isso que estou tonto …

Agora
Todas as manhãs me levanto
Tonto … Sim, verdadeiramente tonto…
Sem saber em mim e meu nome,
Sem saber onde estou,
Sem saber o que fui,
Sem saber nada.

Mas se isto é assim, é assim.
Deixo-me estar na cadeira,
Estou tonto.
Bem, estou tonto.
Fico sentado
E tonto,
Sim, tonto,
Tonto…
Tonto

Eu

Eu, eu mesmo…
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar. —
Eu…
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças…
Que crianças não sei…
Eu…
Imperfeito? Incógnito? Divino?
Não sei…
Eu…
Tive um passado? Sem dúvida…
Tenho um presente? Sem dúvida…
Terei um futuro? Sem dúvida…
A vida que pare de aqui a pouco…
Mas eu, eu…
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu…

Faróis

Faróis distantes,
De luz subitamente tão acesa,
De noite e ausência tão rapidamente volvida,
Na noite, no convés, que conseqüências aflitas!
Mágoa última dos despedidos,
Ficção de pensar …
Faróis distantes…
Incerteza da vida…
Voltou crescendo a luz acesa avançadamente,
No acaso do olhar perdido… Faróis distantes…
A vida de nada serve…
Pensar na vida de nada serve…
Pensar de pensar na vida de nada serve… Vamos para longe e a luz que vem
grande vem menos grande.
Faróis distantes …

Gazetilha

Dos LLOYD GEORGES da Babilônia
Não reza a história nada.
Dos Briands da Assíria ou do Egito,
Dos Trotskys de qualquer colônia
Grega ou romana já passada,
O nome é morto, inda que escrito.
Só o parvo dum poeta, ou um louco
Que fazia filosofia,
Ou um geômetra maduro,
Sobrevive a esse tanto pouco
Que está lá para trás no escuro
E nem a história já historia.

Ó grandes homens do Momento!
Ó grandes glórias a ferver
De quem a obscuridade foge!
Aproveitem sem pensamento!
Tratem da fama e do comer,
Que amanhã é dos loucos de hoje!

Gostava

Gostava de gostar de gostar.
Um momento… Dá-me de ali um cigarro,
Do maço em cima da mesa de cabeceira.
Continua… Dizias
Que no desenvolvimento da metafisica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu.
Concordo em absoluto.
Estive realmente a ouvir.
Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).
Que coisa curiosa estas associações de idéias!
Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.
Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel…

Grandes

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)

Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio
que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. Mas tenho que arrumar
mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala. Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.

Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas
empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já
me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.
Fim.

Há mais

Há mais de meia hora
Que estou sentado à secretária
Com o único intuito
De olhar para ela.
(Estes versos estão fora do meu ritmo.
Eu também estou fora do meu ritmo.)

Tinteiro grande à frente.
Canetas com aparos novos à frente.
Mais para cá papel muito limpo.
Ao lado esquerdo um volume da "Enciclopédia Britânica".

Ao lado direito —
Ah, ao lado direito
A faca de papel com que ontem
Não tive paciência para abrir completamente
O livro que me interessava e não lerei.
Quem pudesse sintonizar tudo isto!

Insônia

Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos…
Tantos versos…
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê… Não durmo. Não
durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto… Vem…
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta…

Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de
lado.

Vem, madrugada, chega! Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,

Não tenho energia para nada, para mais nada…
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente. Mas não durmo

Lá chegam todos, lá chegam todos…

Qualquer dia, salvo venda, chego eu também…
Se nascem, afinal, todos para isso…
Não tenho remédio senão morrer antes,
Não tenho remédio senão escalar o Grande Muro…

Se fico cá, prendem-me para ser social…

Lá chegam todos, porque nasceram para Isso,
E só se chega ao Isso para que se nasceu…

Lá chegam todos…
Marinetti, acadêmico… As Musas vingaram-se com focos elétricos,
meu velho,
Puseram-te por fim na ribalta da cave velha,
E a tua dinâmica, sempre um bocado italiana, f-f-f-f-f-f-f-f…

Lisboa

Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores …
À força de diferente, isto é monótono.
Como à força de sentir, fico só a pensar.
Se, de noite, deitado mas desperto,
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos,
Mas não vejo mais,

Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores. Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.

A força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.

Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.

Lisbon revisited – (1926)

Nada me prende a nada.
Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja –
Definidamente pelo indefinido…
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.

Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.

Não há na travessa achada o número da porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta – até essa vida…

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à
praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia
sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma…
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),

Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida…
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui… Eu?

Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver… Outra vez te revejo,
Sombra que passa através das sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir… Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim –
Um bocado de ti e de mim!…

Lisbon Revisited – (l923)

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas!

Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas

Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —

Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.

Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?

Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos? Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço.

Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —

Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Magnificat

Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia !

Marinetti Acadêmico

Véspera de viagem, campainha…
Não me sobreavisem estridentemente!
Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro
Do comboio definitivo,
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago,
Antes de pôr no estribo um pé
Que nunca aprendeu a não ter emoção sempre que teve que
partir.
Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela?
Que importa?
Todo o Universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver
com o tamanho da cela. Sabe-me a náusea próxima o cigarro.

O comboio já partiu da outra estação…
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim,

Minha família abstrata e impossível…

Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida —
"E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui?"

Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos …

Vou para o futuro como para um exame difícil.
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?

Já me vejo na estação até aqui simples metáfora.

Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.
Vê-se — dizem — que tenho vivido no estrangeiro.

Os meus modos são de homem educado, evidentemente.
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vicio vil.
E a mão com que pego na mala treme-me e a ela. Partir!
Nunca voltarei,
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma
filosofia.

Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!…

Mas Eu

Mas eu, em cuja alma se refletem
As forças todas do universo,
Em cuja reflexão emotiva e sacudida
Minuto a minuto, emoção a emoção,
Coisas antagônicas e absurdas se sucedem —
Eu o foco inútil de todas as realidades,
Eu o fantasma nascido de todas as sensações,
Eu o abstrato, eu o projetado no écran,
Eu a mulher legítima e triste do Conjunto
Eu sofro ser eu através disto tudo como ter sede sem ser de água

Mestre

Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranqüilos, plácidos,
Lendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza …

À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranqüilos,tendo
Nem o remorso
De ter vivido.

Na Noite Terrivel

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,

Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!

Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,

Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;

O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso – e foi afinal o melhor de mim – é que nem os Deuses fazem viver

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —

Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora
vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida…
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me
dói.

O que falhei deveras não tem sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.

Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para
todos os universos, Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca

Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é
invisível p’ra mim.

Na Véspera

Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!
Grande tranqüilidade a que nem sabe encolher ombros
Por isto tudo, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
Há quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego…
Grande tranqüilidade…
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!

Que prazer olhar para as malas fítando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a véspera de não partir nunca!

Não Estou

Não estou pensando em nada
E essa coisa central, que é coisa nenhuma,
É-me agradável como o ar da noite,
Fresco em contraste com o verão quente do dia,
Não estou pensando em nada, e que bom!

Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida…
Não estou pensando em nada.
E como se me tivesse encostado mal.
Uma dor nas costas, ou num lado das costas,
Há um amargo de boca na minha alma:
É que, no fim de contas,
Não estou pensando em nada,
Mas realmente em nada,
Em nada…

Não, Não é cansaço

Não, não é cansaço…
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo…
Não, cansaço não é…
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como…
Sim, ou por sofrer como…
Isso mesmo, como… Como quê?…
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.
(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!…

Não: devagar

Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.
Devagar…
Sim, devagar…
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar…
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima…

Talvez isso tudo…
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar…
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo…
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?

Nas Praças

Nas praças vindouras — talvez as mesmas que as nossas —

Que elixires serão apregoados?
Com rótulos diferentes, os mesmos do Egito dos Faraós;
Com outros processos de os fazer comprar, os que já são nossos.

E as metafisicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte,
As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado,
As idéias casuais de tanto casual, as intuições de tanto
ninguém —
Um dia talvez, em fluido abstrato, e substância implausível,

Formem um Deus, e ocupem o mundo.
Mas a mim, hoje, a mim
Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas,
Nos destinos que não desvendo,
Na minha própria metafisica, que tenho porque penso e sinto

Não há sossego,
E os grandes montes ao sol têm-no tão nitidamente! Têm-no?

Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do espírito.
Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem.

O cansaço de pensar, indo até ao fundo de existir,
Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo.

O que é feito dos propósitos perdidos, e dos sonhos impossíveis?

E por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão?

Nos dias de chuva lenta, contínua, monótona, uma,
Custa-me levantar-me da cadeira onde não dei por me ter sentado,
E o universo é absolutamente oco em torno de mim.

O tédio que chega a constituir nossos ossos encharcou-me o ser,
E a memória de qualquer coisa de que me não lembro esfria-me
a alma.
Sem dúvida que as ilhas dos mares do sul têm possibilidades para
o sonho,
E que os areais dos desertos todos compensam um pouco a imaginação;

Mas no meu coração sem mares nem desertos nem ilhas sinto eu,

Na minha alma vazia estou,
E narro-me prolixamente sem sentido, como se um parvo estivesse com febre.

Fúria fria do destino,
Interseção de tudo,
Confusão das coisas com as suas causas e os seus efeitos,
Conseqüência de ter corpo e alma,
E o som da chuva chega até eu ser, e é escuro.

O Binômio de Newton

O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de
Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó — óóóóóóóóó
— óóóóóóóóóóóóóóó

(O vento lá fora.)

O Descalabro

O descalabro a ócio e estrelas…
Nada mais…
Farto…
Arre…
Todo o mistério do mundo entrou para a minha vida econômica.

Basta!…
O que eu queria ser, e nunca serei, estraga-me as ruas.
Mas então isto não acaba?
É destino?
Sim, é o meu destino
Distribuido pelos meus conseguimentos no lixo
E os meus propósitos à beira da estrada —
Os meus conseguimentos rasgados por crianças,
Os meus propósitos mijados por mendigos,
E toda a minha alma uma toalha suja que escorregou para o chão.

O horror do som do relógio à noite na sala de jantar dê
uma casa de
província —
Toda a monotonia e a fatalidade do tempo…
O horror súbito do enterro que passa
E tira a máscara a todas as esperanças.
Ali…
Ali vai a conclusão.
Ali, fechado e selado,
Ali, debaixo do chumbo lacrado e com cal na cara
Vai, que pena como nós,
Vai o que sentiu como nós,
Vai o nós!
Ali, sob um pano cru acro é horroroso como uma abóbada de cárcere

Ali, ali, ali… E eu?

O Esplendor

E o esplendor dos mapas,
caminho abstrato para a imaginação concreta,
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.
O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias)
dos velhos livros. (Tinta remota e desbotada aqui presente para além
da morte)
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações,

O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.
Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,
Tudo o que diz o que não diz,
E a alma sonha, diferente e distraída.
Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!

O Florir

O florir do encontro casual
Dos que hão sempre de ficar estranhos…
O único olhar sem interesse recebido no acaso
Da estrangeira rápida …
O olhar de interesse da criança trazida pela mão
Da mãe distraída…
As palavras de episódio trocadas
Com o viajante episódico
Na episódica viagem …
Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados…
Caminho sem fim…

O Frio Especial

O frio especial das manhãs de viagem,
A angústia da partida, carnal no arrepanhar
Que vai do coração à pele,
Que chora virtualmente embora alegre.

O Mesmo

O mesmo Teucro duce et auspice Teucro
É sempre cras — amanhã — que nos faremos ao mar.

Sossega, coração inútil, sossega!
Sossega, porque nada há que esperar,
E por isso nada que desesperar também…
Sossega… Por cima do muro da quinta
Sobe longínquo o olival alheio.
Assim na infância vi outro que não era este:
Não sei se foram os mesmos olhos da mesma alma que o viram.
Adiamos tudo, até que a morte chegue.
Adiamos tudo e o entendimento de tudo,
Com um cansaço antecipado de tudo,
Com uma saudade prognóstica e vazia

Psiquetipia (ou Psicotipia)

Símbolos. Tudo símbolos…
Se calhar, tudo é símbolos…
Serás tu um símbolo também?
Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas
Postas, com boas maneiras inglêsas, sôbre a toalha da mesa.
Pessoas independentes de ti…
Olho-as: também serão símbolos?
Então todo o mundo é símbolo e magia?
Se calhar é…
E porque não há de ser?

Símbolos…
Estou cansado de pensar…
Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham.
Sorris, sabendo bem em que eu estava pensando…
Meu Deus! E não sabes…
Eu pensava nos símbolos…
Respondo fielmente à tua conversa por cima da mesa…

"It was very strange, wasn’t it?"
"Awfully strange. And how did it end?"
"Well, it didn’t end. It never does, you know."
Sim, you know… Eu sei…
Sim, eu sei…
É o mal dos símbolos, you know.

Yes, I know.
Conversa perfeitamente natural… Mas os símbolos?
Não tiro os olhos de tuas mãos… Quem são elas?
Meu Deus! Os símbolos… Os símbolos…

Soneto já antigo

Olha Daisy: quando eu morrer tu hás de
dizer aos meus amigos aí de Londres,
embora não sintas, que tu escondes
a grande dor da minha morte. Irás de
Londres p’ra Iorque, onde nasceste (dizes…
que eu nada que tu digas acredito),
contar àquele pobre rapazito
que me deu tantas horas tão felizes,
Embora não o saibas, que morri…
mesmo êle, a quem eu tanto julguei amar,
nada se importará… Depois vai dar
a notícia a essa estranha Cecily
que acreditava que eu seria grande…
Raios partam a vida e quem lá ande!

The Times

Sentou-se bêbado à mesa e escreveu um fundo
Do Times, claro, inclassificável, lido,
Supondo (coitado!) que ia ter influência no mundo…

Santo Deus!… E talvez a tenha tido!

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