O Cabeleira – Franklin Távora

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CapÍtulo I

CapÍtulo II

CapÍtulo III

CapÍtulo IV

CapÍtulo V

CapÍtulo VI

CapÍtulo VII

Capítulo VIII

CapÍtulo IX

CapÍtulo X

CapÍtulo XI

CapÍtulo XII

Franklin Távora

CapÍtulo I

A história de Pernambuco oferece-nos exemplos de heroísmo e
grandeza moral que podem figurar nos fastos dos maiores povos da antigüidade
sem desdourá-los. Não são estes os únicos exemplos
que despertam nossa atenção sempre que estudamos o passado desta
ilustre província, berço tradicional da liberdade brasileira.
Merecem-nos particular meditação, ao lado dos que aí
se mostram dignos da gratidão da pátria pelos nobres feitos
com que a magnificaram, alguns vultos infelizes, em quem hoje veneraríamos
talvez modelos de altas e varonis virtudes, se certas circunstâncias
de tempo e lugar, que decidem dos destinos das nações e até
da humanidade, não pudessem desnaturar os homens, tornando-os açoites
das gerações coevas e algozes de si mesmos. Entra neste número
o protagonista da presente narrativa, o qual se celebrizou na carreira do
crime, menos por maldade natural, do que pela crassa ignorância que
em seu tempo agrilhoava os bons instintos e deixava soltas as paixões
canibais. Autorizavam-nos a formar este juízo do Cabeleira a tradição
oral, os versos dos trovadores e algumas linhas da história que trouxeram
seu nome aos nossos dias envolto em uma grande lição.

A sua audácia e atrocidades deve seu renome este herói legendário
para o qual não achamos par nas crônicas provinciais. Durante
muitos anos, ouvindo suas mães ou suas aias cantarem as trovas comemorativas
da vida e morte desse como Cid, ou Robin Hood pernambucano, os meninos, tomados
de pavor, adormeceram mais depressa do que se lhes contassem as proezas do
lobisomem ou a história do negro do surrão muito em voga entre
o povo naqueles tempos.

Com a simplicidade irrepreensível que é o primeiro ornamento
das concepções do espírito popular, habilitam-nos esses
trovadores a ajuizarmos do famoso valentão pela seguinte letra:

Fecha a porta, gente, Cabeleira aí vem, Matando mulheres, Meninos
também.

O Cabeleira chamava-se José Gomes, e era filho de um mameluco por
nome Joaquim Gomes, sujeito de más entranhas, dado à prática
dos mais hediondos crimes.

De parceria com um pardo de nome Teodósio, que primou na astúcia
e nos inventos para se apossar do que lhe não pertencia, percorriam
José e Joaquim o vasto perímetro da província em todas
as direções, deixando a sua passagem assinalada pelo roubo,
pelo incêndio, pela carnificina.

Um dia assentaram dar um assalto à própria vila do Recife.

As populações do interior, em sua maioria destituídas
de bens da fortuna, e então muito mais espalhadas do que atualmente,
pouco tinham já com que cevar a voracidade dos três aventureiros
a quem desde muito pagavam um triplo imposto consistente em víveres,
dinheiro e sangue. O assalto foi resolvido em secreto conciliábulo
dentro das matas de Pau d’Alho onde mais uma vez se haviam reunido para concertos
idênticos.

Na mesma hora aperceberam-se para a temerária tentativa, e, com o
arrojo que lhes era natural, puseram-se a caminho contando de antemão
com o feliz sucesso em que tinham posto a mira.

A notícia da sua aproximação a maior parte dos moradores,
deixando os povoados, então muito fracos por não terem ainda
a densidão que só um século depois tornou alguns deles
respeitáveis, emigrou para os matos, único abrigo com que lhos
era permitido contar, embora se achassem a poucas léguas do Recife;
tais houve que, não tendo tempo ou recursos para fugir aos cruéis
visitantes, lhes deram hospedagem como meio de não incorrerem no seu
desagrado.

Ao declinar do dia seguinte eram eles na Estância. Sentaram-se no adro
da capela de taipa que fora aí levantada por Henrique Dias, para recordar
aos vindouros que nesse lugar tivera ele o seu posto militar pelas guerras
da restauração. Esse posto era dentre todos o que ficava mais
vizinho ao inimigo. Eloqüente testemunho de bravura do troço da
gente preta a quem a pátria reservou distinta menção
nas maiores páginas da história colonial. É muito cedo
para entrarmos na vila disse o Cabeleira. E não será até
melhor que o Teodósio vá primeiro que nós para assentar
ainda com dia no meio mais certo de realizar a empresa?

Tens razão, José Gomes, acrescentou Joaquim; o Teodósio,
que é macaco velho, deve ir adiante a sondar as coisas. Para bater
o pé ao inimigo e fazer frente a qualquer dunga, vocês sabem
muito bem que eu sou cabra decidido; agora, para espertezas não contem
comigo; isso é lá com o Teodósio que é mestre
em saberetes; e ninguém lhe vai ao bojo.

Os três malfeitores traziam consigo bacamartes, parnaíbas, facas
e pistolas.

Cabeleira podia ter vinte e dois anos. A natureza o havia dotado com vigorosas
formas. Sua fronte era estreita, os olhos pretos e lânguidos, o nariz
pouco desenvolvido, os lábios delgados como os de um menino. É
de notar que a fisionomia deste mancebo, velho na prática do crime,
tinha uma expressão de insinuante e jovial candidez.

Joaquim, que contava o duplo da idade de seu filho, era baixo, corpulento
e menos feito que o Teodósio, o qual, posto que mais entrado em anos,
sabia dar, quando queria, à cara romba e de cor fula, uma aparência
de bestial simplicidade em que só uma vista perspicaz, e acostumada
a ler no rosto as idéias e os sentimentos íntimos, poderia descobrir
a mais refinada hipocrisia.

Entendo que é bem lembrado o que dizes, Cabeleira acrescentou o cabra
levantando-se; corro sem demora armar o laço para apanhar o passarinho;
ainda que, a bem dizer, já cá tenho o meu plano que há
de cair tão certinho como São João a vinte e quatro.

E onde depois nos encontraremos? perguntou Joaquim, vendo que o Teodósio
se achava já de marcha para a vila.

Não será o mais custoso. Esperarei por vocês debaixo
da ingazeira da ponte.

Teodósio, não estando mais para conversa, conchegou o chapéu
de palha à cabeça para que o vento não lho arrebatasse,
e desapareceu em rápido marche-marche, por detrás dos matos
que naquele tempo enchiam ainda em sua maior parte a zona onde hoje se ostenta
com suas graciosas habitações entre risonhos verdores a Passagem
da Madalena.

Antes que o sol descesse ao horizonte e as trevas envolvessem de todo a natureza,
meteram-se o pai e o filho pelo caminho onde um quarto de hora atrás
havia desaparecido o outro companheiro, alma do negócio e principal
responsável pelos perigos a que todos eles iam expor talvez a própria
vida.

A solidão estava sombria e triste.

Contavam-se então as casas por aquelas paragens. Em torno delas o
deserto começava a aumentar antes de pôs-se o sol. Uma lei cruel,
a lei da necessidade, obrigava os moradores a trancar-se cedo por bem da própria
conservação.

Os roubos e assassinatos reproduziam-se com incrível freqüência
nos caminhos e até nas beiradas dos sítios.

Sólidas habitações não tinham em muitos casos
assegurado às famílias inelutável obstáculo ao
assalto dos malfeitores. Triste época em que o despotismo tudo podia
contra os cidadãos pacíficos e bons, nada contra a parte cancerosa
da sociedade!

A vila estava em festa. Foi no primeiro domingo de dezembro de 1773. Era
governador Manuel da Cunha de Meneses, depois conde de Lumiar, jovem fidalgo
a quem a igreja pernambucana deve distintos benefícios.

Com a data do 1.° daquele mês tinha ele feito publicar um bando
pelo qual ordenara aos moradores que pusessem luminárias em demonstração
da alegria que causara à nação portuguesa a abolição
dos jesuítas em todo o orbe cristão, pelo santo padre Clemente
XIV.

No lugar onde hoje existe a formosa ponte Sete de Setembro que liga o bairro
do Recife ao de Santo Antônio, via-se nessa época uma ponte de
madeira, a qual fora mandada construir em 1737 sobre os sólidos pilares
de pedra e cal da primitiva ponte, obra de Maurício de Nassau, por
Henrique Luís Vieira Freire de Andrade, um dos governadores que mais
honrada e benemérita memória deixaram de si em Pernambuco.

Era uma rica construção, nada menos do que uma rua suspensa
sobre as águas do rio Capibaribe, que passa aí reunido ao Beberibe,
depois de um curso de oitenta léguas por entre matas, por sobre pedras
e ao pé de pitorescas vilas, povoações e arrabaldes.
De um e outro lado, exceto na parte central, que fora guarnecida de bancos
para recreio do público, viam-se pequenos armazéns de taipa
de sebe em que se vendiam miudezas e ferragens, que logo depois de prontos
acharam alugadores, começaram a render a quantia de oitocentos mil-réis
anuais, a qual no começo do século corrente se havia elevado
à de quatro contos de réis. Com a fundação das
casinhas sobreditas teve por fim o governador de criar uma fonte de rendas
destinada à conservação das pontes da província,
quase todas nesse tempo em deplorável ruína. Destas obras com
que dotou Pernambuco o gênio desse ilustre governador, não resta
hoje o menor vestígio. Tudo desapareceu, tudo, até as arcadas
holandesas que ainda alcancei. O monumento das idades é mais depressa
destruído pelos homens do que pelo tempo, esse consumidor que, como
ser voraz, não deixa de respeitar a obra da virtude.

A boca da noite os dois aventureiros chegaram à parte do bairro da
Boa Vista que é de nós conhecida por Ponte Velha. Raras casas
mostravam-se então aí.

A pouca distancia para o sul do lugar onde existira a antiga ponte, nesse
tempo já substituída pela da Boa Vista mandada construir por
Henrique Luís a quem já nos referimos, levantava-se na margem
uma ingazeira idosa e ramalhuda. Abrindo sobre o rio a copa à semelhança
de chapéu-de-sol, formava esta árvore uma vasta camarinha que
servia de porto de abrigo aos canoeiros quando o vento era teso, e as marés
puxavam com velocidade. Debaixo desse teto protetor as águas corriam
sempre mansas e bonançosas, e, sem primeiro descer ao pé do
gigantesco vegetal, era difícil descobrir, pela densidão da
sua folhagem, qualquer objeto ou ente que à sombra desta se acolhesse,
ainda que estivesse o sol dardejando os seus luminosos raios. Fora este o
ponto de reunião indicado por Teodósio aos companheiros.

Dar com as primeiras casas iluminadas foi para os dois valentões motivo
de justo espanto e receio. Não sabendo do regozijo oficial, e tendo
bem presentes na consciência os crimes que haviam cometido, logo lhes
pareceu que seriam descobertos ao clarão das luzes, não se demorando
o clamor público, se assim acontecesse, a denunciá-los às
justiças de el-rei.

Pelo voto de Cabeleira tinha-se verificado no mesmo instante a volta ao deserto.
Mas Joaquim, cuja temeridade não conhecia limites, desprezando os conselhos
do filho sobre o qual exercitava a tirania do déspota primeiro que
a autoridade do pai, foi fazer alto ao pé da ingazeira sobredita, tendo
atravessado para chegar a este ponto as ruas mais públicas do nascente
bairro da Boa Vista.

Profundo silencio reinava no vasto areal que guarnecia o rio por aquele lado.
As águas mal se moviam. Desceram os dois à margem a ajuntar-se
ao Teodósio conforme o convencionado, mas a sua expectativa foi iludida;
não havia aí viva alma; unicamente se mostrou aos seus olhos
um corpo negro, oscilando debaixo da folhagem, ao brando ondear das águas:
era uma canoa que estava presa por uma corda ao tronco da ingazeira.

Depois de alguns momentos de espera não sem inquietação
para os recém-chegados, um ruído que veio interromper o silencio
reinante na margem obrigou-os a pôr-se em armas por precaução.
A corda rapidamente encurtando atraiu sem auxílio visível a
canoa à margem, e um corpulento canoeiro, nu da cintura para cima,
arrastando uma vara pela mão, saltou à frente dos malfeitores.

Sou eu, Cabeleira, sou eu.

Teodósio ! Meteste-te em boas.

Eu estava escondido dentro da canoa para fazer um susto a vocês.

A bom diabo te encomendaste hoje que o meu bacamarte mentiu fogo duas vezes
disse Cabeleira.

Não falemos mais nisso acudiu Teodósio; celebraremos depois
o caso. Para agora vamos ao que importa.

Que é que há ?

Não me estão vendo em figura de canoeiro ? Vamos a ela enquanto
é tempo.

Teodósio inclinou-se para passar aos dois um segredo que em pouco
tempo foi por ambos compreendido, e que entrou no mesmo instante a ser posto
em execução pelos três. O pai e o filho foram guardar
as suas armas de fogo na canoa, e o cabra saltou novamente dentro dela e fez-se
ao largo. Quem visse um instante depois o lenho resvalando na vasta superfície
do rio à claridade dos astros da noite, juraria que nessa sombra fugitiva,
nesse ponto que se perdeu por fim nos seios da escuridão, não
ia mais que um canoeiro, sabedor das manhas das águas e senhor dos
meios de as vencer. Ia entretanto aí uma maldade muito mais considerável
e perigosa, porque era hipócrita e estava disfarçada, do que
a malvadez de Joaquim sempre alerta, e a impavidez de José sempre franco
até na estratégia e na emboscada.

Estes dois últimos, tanto que o cabra se afastou da margem, atravessaram
a ponte da Boa Vista e, ladeando o canal que cercava Santo Antônio pelo
lado ocidental e ia encher ao sul as valas da fortaleza das Cinco Pontas,
e ao norte as do forte Ernesto, hoje inteiramente desaparecido, passaram em
frente do palácio do governador e por este forte, o qual ficava pouco
adiante do convento de S. Francisco, e entraram na ponte do Recife que apresentava
uma vista majestosa e deslumbrante. Colunas e arcos triunfais profusamente
iluminados tinham sido ali erguidos a iguais distâncias. Ao som das
músicas marciais, o povo percorria o aéreo passeio entre risos
e folgares.

Ainda bem não se haviam os malfeitores confundido com os passeantes,
quando se ouviu um grito arrancado pelo pânico terror de um matuto que
os conhecera.

O Cabeleira ! O Cabeleira ! Grandes desgraças vamos ter, minha gente
! clamou o mal avisado roceiro.

Estas palavras caíram como raios mortíferos no meio da multidão
que se entregava, incuidosa e confiante, ao regozijo oficial.

A confusão foi indescritível. As expansões da pública
alegria sucederam as demonstrações do geral terror. Homens,
mulheres, crianças atropelaram-se, correndo, fugindo, gritando, caindo
como impelidos por infernal ciclone. A fama do Cabeleira tinha, não
sem razão, criado na imaginação do povo um fantasma sanguinário
que naquele momento se animou no espírito de todos e a todos ameaçou
com inevitável extermínio.

Ouvindo aquelas palavras e sendo assim surpreendidos por uma ocorrência
com que não contavam, os dois malfeitores instintivamente bateram mãos
das parnaíbas primeiro para se defenderem, por lhes parecer que corria
a sua liberdade iminente perigo, que para investirem com massa ingente, a
qual aliás fugia como rebanho apavorado pela presença das onças.
Os seus gestos concorreram para aumentar o terror da multidão, a qual,
mal interpretando-os, imaginou que ia ter começo a carnificina.

Sim, é o Cabeleira, gente fraca. Ele não vem só, vem
seu pai também gritou José Gomes, cujo rosto começou
a anuviar-se.

Joaquim; feroz por natureza, sanguinário por longo hábito,
descarregou a parnaíba sobre a cabeça do primeiro que acertou
de passar por junto dele. A cutilada foi certeira, e o sangue da vítima,
espadanando contra a face do matador, deixou aí estampada uma máscara
vermelha através da qual só se viam brilhar os olhos felinos
daquele animal humano.

José Gomes, por irresistível força do instinto que muitas
vezes o traiu aos olhos do carniceiro pai, voltou-se de chofre e lhe disse:

Para que matar se eles fogem de nós

Corram, minha gente Cabeleira aí vem; Ele não vem só,
Vem seu pai também.

Matar sempre, Zé Gomes retorquiu o mameluco com as narinas dilatadas
pelo odor do sangue fresco e quente que do rosto lhe descia aos lábios
e destes penetrava na-boca cerval.Não temos aqui um só amigo.
Todos nos querem mal. É preciso fazer a obra bem feita.

Este homem era o gênio da destruição e do crime. Por
sua boca falavam as baixas paixões que à sombra da ignorância,
da impunidade e das florestas haviam crescido sem freio e lhe tinham apagado
os lampejos da consciência racional que todo homem traz do berço,
ainda aqueles que vêm a ser depois truculentos e consumados sicários.

Seu coração estava empedernido, seu senso moral obcecado.

Nenhum sentimento brando e terno, nenhum pensamento elevado exercitava a
sua salutar influência nas ações deste ente degenerado
e infeliz.

Estás com medo, Zé Gomes, deste poviléu ? Parece-me
ver-te fraquejar. Por minha bênção e maldição
te ordeno que me ajudes a fazer o bonito enquanto é tempo. Não
sejas mole, Zé Gomes; sê valentão como é teu pai
.

Tendo ouvido estas palavras, o Cabeleira, em cuja vontade exercitava Joaquim
irresistível poder, fez-se fúria descomunal e, atirando-se no
meio do concurso de gente, foi acutilando a quem encontrou com diabólico
desabrimento. Como dois raios exterminadores, descreviam pai e filho no seio
da massa revolta desordenadas e vertiginosas elipses.

A geral consternação teria cessado em poucos instantes se o
povo pudesse escapar pelas duas entradas da ponte. Achavam-se porém
estas já tomadas por piquetes de infantaria às pressas organizados
para embargarem a fuga aos matadores e reduzi-los à prisão.

A medida que estes piquetes se foram movendo das extremidades para o centro,
à população, obrigada a aproximar-se dos assassinos,
preferiu a este perigo atirar-se ao rio, e a baldeação não
se fez esperar.

Em poucos momentos os perturbadores da ordem acharam-se debaixo das vistas
da força pública. O lugar da cena estava quase inteiramente
desocupado. As colunas militares operaram um movimento único, indescritível.
Carregaram sem demora sobre os delinqüentes que, à vista da estreiteza
do passo e do cerco, só nas águas puderam, como as suas vítimas,
achar salvação.

Um soldado, impelido talvez primeiro pelo ímpeto da paixão
que pela consciência do dever, o qual em ocasiões iguais àquela
raramente fala mais alto que os instintos animais, atirou-se de arma em punho
após os assassinos com o fim de apreender um dos dois, ainda que custasse
a própria vida. Não logrou o seu intento este valente defensor
da sociedade e da lei. Quando sua mão tocava em um dos delinqüentes
de cima de uma canoa que nesse momento desatracara da ponte, desfecharam-lhe
com a vara tão forte golpe sobre a cabeça, que o, infeliz, perdendo
os sentidos, foi arrebatado pela corrente. Igual cena se presenciou em 1821,
figurando como vítima João Souto Maior que procurara salvar-se
no rio depois de haver ferido com um tiro de bacamarte na ponte da Boa Vista
o governador Luís do Rego Barreto.

Assim se passou na vila do Recife a noite do primeiro domingo de dezembro
de 1773, noite memorável, que principiou pela alegria e terminou pelo
terror público.

CapÍtulo II

Por entre as vítimas do terror que lutavam com as águas do
Capibaribe nas sombras da noite deslizou indiferente a canoa onde ia o Teodósio,
assassino do soldado que se atirara ao rio em busca dos delinqüente.

Teodósio, como os leitores hão de lembrar-se, viera só
mas não voltava agora desacompanhado. José, taciturno e quieto,
e Joaquim, rosnando como besta fera que indiscreto caçador irrita em
escuso bosque, testemunhavam ao pé do cabra, sentados na popa do fugitivo
lenho, com os bacamartes nas mãos, o espetáculo de aflição
e desespero; e, como se o fizessem de caso pensado para denotarem a pouca
conta em que tinham uma sociedade que eles dois unicamente acabavam de entregar
em alguns minutos à perturbação e à dor, pareciam
afrontar com olhares insultuosos não somente os homens mas também
aquele que ao fulgor das estrelas vê melhor do que os mortais à
luz do dia, e que das alturas, onde paira, distribui por todos a sua indefectível
justiça, tanto para premiar como para punir. Foi Deus o único
que conheceu os três aventureiros, rompendo as águas, o único
que em suas frontes manchadas do sangue e do opróbrio recente leu o
passado que os condenava e o futuro que por eles esperava para justiçá-los
com a excessiva severidade que havemos de ver.

Os náufragos só trataram de salvar-se e fugir; qual se agarrasse
aos mangues, então muito bastos e numerosos, que bordam o rio como
ilhas de verdura, qual demandasse, a fim de escapar da inclemência da
corrente, os bancos de areia formados pelo fluxo e refluxo das marés.
Ninguém cuidou mais do Cabeleira senão para se distanciar com
horror crescente da sua sombra cruel, do seu vulto fatal e ominoso.

Achavam-se na ponte o pai e o filho, não para serem socorridos, como
foram, pelo companheiro, mas para protegerem a sua fuga, caso fosse ele descoberto
antes de haver concluído o roubo que assentaram de praticar em um dos
armazéns. A denúncia do matuto transtornara esta combinação
pela forma que o leitor conhece, não impedindo porém que no
essencial viesse ela a verificar-se, porque, ouvindo o trovão do alarido
e fazendo conta que o conflito fora provocado pelos amigos como meio de concentrar
em um só ponto as gerais atenções a fim de deixá-lo
ao abrigo de qualquer surpresa, tratara Teodósio de aproveitar o tempo
com a prontidão e perícia que lhe eram habituais em semelhante
gênero de ocupação.

Na extremidade de uma vara fora acinte atado um ferro adunco para facilitar
o escalamento. Prendê-lo na varanda do armazém, subir pela longa
haste até a estiva, passar desta à janela, e saltar dentro fora
obra de um instante para o Teodósio. Em poucos minutos quinquilharias
preciosas, armas de fogo, perfumarias, miudezas de toda sorte desceram por
cordas em suas caixas ou pacotes para a canoa. As gavetas, primeiro que as
vidraças, foram violadas e revistadas, e o dinheiro que continham passara
a povoar o bolso do atrevido roubador.

São tradicionais os roubos que deste modo se praticaram na ponte do
Recife por aqueles tempos e durante muitos anos depois. Segundo contam os
antigos, eles reproduziram-se no começo deste século com tanta
freqüência, que os armazéns ao princípio com razão
cobiçados pelos comerciantes perderam de valor, e ficariam de todo
depreciados se a polícia, por uma rigorosa vigilância que lhe
faz honra, não houvesse impedido a continuação destes
atentados.

Quando não houve mais objeto de preço que baldear; Teodósio
desceu. Era tempo. Ainda bem não tinha terminado o seu aéreo
trajeto, quando dois corpos surgiram dentre ruidoso espumeiro produzido por
violenta queda e passaram-se à embarcação. Eram Joaquim
e José Gomes que se haviam atirado ao rio para escaparem à prisão,
como vimos.

A escuridão que reinava no Capibaribe, as auras da noite e uns restos
de enchente favoreciam a evasão dos navegantes. Mantendo-se a igual
distancia das duas margens, o improvisado canoeiro, ao passo que se subtraía
a qualquer inspeção do lado da terra, era arrebatado com os
hóspedes pelas águas do canal que são profundas e correm
ali com impetuosidade.

Em pouco tempo, contornando o palácio do governador, e deixando à
direita o forte Waerdenburch, construído em 16381 nas Salinas, hoje
Santo Amaro, pelos holandeses que lhe deram esta denominação
para honrarem o seu general Diederik can Waerdenburch, seguiu rumo ao sul,
rompendo, por entre ilhas de mangues, a escuridão e as águas.

Entre as casas de que por esse tempo se compunha a povoação
dos Afogados contava-se a de um colono por nome Timóteo, sujeito pontista,
como tal conhecido das vizinhanças, e por isso mesmo buscado sempre
que se tratava de realizar qualquer transação ilícita
ou simplesmente equívoca.

Era uma casa de taipa como quase todas as outras do lugar, e achando-se a
pouca distancia do forte tomado pelos holandeses sob o comando do coronel
Lourenço van Rembach aos portugueses em 1633 e denominado por estes
Forte da Piranga e por aqueles Príncipe Guilherme em honra do príncipe
de Orange. Ficava à direita da entrada da povoação, por
detrás das primeiras casas. Foi demolido em 181S, pelo intendente da
marinha Siqueira, que com o respectivo material aterrou a camboa que contornava
pelo lado do rio a primeira casa, na qual morava.

Timóteo estabelecera ali uma vendola ou bodega aonde ia ter o açúcar,
a galinha, a colher de prata, a peça de roupa ou qualquer objeto que
era furtado pelos negros dos engenhos da redondeza. No exercício desta
criminosa indústria comprava-lhes muitas vezes por dez réis
de mel coado objetos de valor que revendia depois pela hora da morte aos boiadeiros
e almocreves que acertavam de entrar na venda.

Timóteo tivera por companheira uma mameluca de nome Chica, mulher
bem apessoada, ainda moça, metida a valentona, finalmente uma dessas
mulheres que tomam satisfações a Deus e ao mundo por dá
cá aquela palha. Diziam as más línguas que nos primeiros
tempos de sua vida com o colono ela lhe fora por diferentes vezes ao pelo;
e que, compreendendo ele que não podia fazer cinco montes, e renunciando
à pretensão, que a princípio nutrira, trazer sopeada
a caseira, deixara esta também, por justa compensação
de repetir o caridoso ensino com que o edificara logo depois de sua lua-mel.

Uma manhã um rapazito descorado parou à porta da bodega, saltou
do cavalo abaixo e mandou medir contrametade de aguardente.

Olá, menino José. Muito cedo navega você hoje disse
Timóteo ao recém chegado.

Parti de Santo Antão na madrugada velha tornou-lhe o hóspede.

Enquanto o taverneiro aviava o matinal freguês, o cavalo que jejuava
desde a véspera pôs-se a devorar a grama do pátio, e,
sem consciência dos riscos em que se ia meter, foi cair muito naturalmente
dentro da pequena roça da mameluca e começou a destruí-la
mostrando tenção de dar conta dela.

Mas ainda bem o primeiro jerimum não se havia derretido entre os poderosos
molares do faminto animal, quando a dona da plantação desfechou
neste tamanho golpe com uma das estacas da cerca, que o pobrezito, dando às
popas pelo meio do pátio, foi atirando os sacos aqui, os caçuás
acolá, a cangalha além, e desembestou por fim, pela margem afora,
em violenta fuga.

Não satisfeita com semelhante desforra, Chica em um pulo ganhou a
venda, e investiu com o inofensivo matutinho.

Amarelo de Goiana! gritou-lhe ela ao pé do ouvido. Não sei
onde estou que não te ponho mole com este pau para te ensinar a amarrares
melhor a tua besta esganada de fome.

O rapaz, volvendo a vista ao volume humano que lhe acabava de falar e cujos
olhos pareciam querer saltar das órbitas, respondeu-lhe sem se alterar
nem mover:

Besta ! Besta é ela.

E, senhor de si qual se estivesse gracejando com um amigo, levou o copo aos
lábios com o maior sangue-frio que ainda se pôde mostrar na taverna,
onde as paixões se acendem com a prontidão do raio.

Irritada por esta represália que a seus olhos pareceu condensar todo
o desprezo do mundo, a mameluca não teve dúvida, não,
e levantou a acha para o rapazito.

Tinha este deposto o copo sobre o imundo balcão quando pressentiu
a arremetida; pôde por isso fugir em tempo com o corpo à violenta
pancada. A estaca bateu a meio no balcão’ e metade dela voou pelos
ares em estilhaços que foram quebrar as panelas de barro e as poentas
botijas com que se achavam adornadas as sujas prateleiras da pocilga.

Ouviu-se então um estalo, e logo o baque de um pesado corpo. José
havia desandado com tanta força uma bofetada na mameluca, que a fizera
cair redondamente no chão.

Quis Timóteo acudir à companheira na apertada conjuntura que
se lhe desenhou aos olhos com as negras cores de um desastre, ou vergonha
para o lar e bodega onde nunca sofrera afronta igual ou que com esta se parecesse.
Mas quando apercebia o animo para dar o arriscado passo, descobriu na mão
de José uma faca de Pasmado que o reteve a respeitosa distância.

Julgando-se Jos , à vista do agravo que recebera, com direito a público
e estrondoso despique, arrastou por uma perna a mameluca, ainda tonta, para
o terreiro, e aí, com uma raiz de gameleira com que os meninos tinham
brincado na véspera, começou a pôr em prática a
mais edificativa sova de que nos dão notícia as tradições
matutas.

A mameluca tentou por diferentes vezes livrar se das mãos do rapazito,
espernegando como possessa. As mãos de José porém pareciam,
pela dureza e pelo peso, manoplas fundidas de propósito para esmagar
um gigante. Demais, José havia posto um pé no pescoço
da Chica, e com ele comprimia lhe o gasnete, tirava lhe a respiração,
afogava a sem piedade.

A estrada estava deserta. Os moradores da povoação, de ordinário
madrugadores, por infelicidade da caseira de Timóteo dormiram demais
nesse dia do que tinham por costume. Além disso, as casas mais próximas
da venda ficavam ainda a distancia, sendo todas, como então eram, muito
espalhadas. Esta circunstância, tirando toda esperança de pronto
socorro, animou José a prolongar o exercício para o qual podia
dizer se estava preparado por diuturno hábito. Depois de alguns minutos,
sentiu Timóteo subirem lhe enfim às faces os restos do equívoco
brio e gritou, sempre de longe:

Você quer matar me a Chica, José ?

Deixe ensinar esta cabra, seu Timóteo. Ela nunca viu homem, e por
isso anda aqui feita galinho de terreiro, ou peru de roda, metendo medo a
todos estes papa siris dos Afogados.

Assim dizendo, José montava se literalmente na mameluca, e dava lhe
com os restos da raiz da gameleira já sem serventia. A faca, que minutos
antes reluzira em uma das mãos estava agora atravessada na boca do
matuto, em quem o ignóbil vendeiro parecia ver, não uma figura
humana, mas uma visão infernal que o ameaçava, a ele também,
não com igual pisa, mas com a morte, que para ele era mil vezes pior.

De repente José colheu o ímpeto, pôs se de pé,
e inquiriu de si para si:

E o meu cavalo ?

Correu incontinenti à margem e soltou um longo assobio que atroou
o solidão mal desperta; a margem estava erma, e só o silêncio
respondeu ao seu chamamento. Tornou ao pátio onde alguns vizinhos,
finalmente atraídos pelos gritos, ao princípio furiosos, depois
rouquenhos, e por último cansados e quase imperceptíveis da
moribunda mulher banhada em sangue, tratavam de restituí la à
casa.

E o que te vale, cabra do diabo! disse José, olhando para o volume
inanimado que mãos tardiamente piedosas arrastavam ao casebre. O que
te vale é ter eu que ir em busca do meu cavalo. Se não fosse
ele, nunca mais comias farinha.

Dias depois voltou José, montado no seu cavalo, trazendo uma espingarda
nova na mão, uma faca de arrasto pendente da cintura, os caçuás
cheios de peças de pano e outros objetos que se vendiam nas lojas da
vila.

Boa tarde, seu Timóteo disse ele, pondo se em terra de um pulo e
entrando sem cerimônia na tasca. Dá me not cias de Chica ?

Você ainda vem falar nisso ? redargüiu o vendeiro com semblante
hipócrita, mas na realidade sobressaltado.

Por que não? Queria acabar de dar lhe a lição que principiei
na quarta feira. Mas desta feita a coisa havia de ser de outra moda. Queria
ver se lhe entrava nas banhas da barriga este facão, como entra nesta
melancia.

Pois não sabe que a Chica morreu da sua tirania ?

Ah! fez esta bestidade? Pois então, para .celebrarmos o caso, bote
aguardente e bebamos.

Timóteo encheu sem demora o copo que apresentou a José.

Beba primeiro disse este.

Não, eu não bebo respondeu o taverneiro.

Não bebe ? Há de beber. E não se demore que tenho pressa.
Atrás de mim vem alguém em minha procura, e eu não estou
disposto a fazer mais carniça por hoje.

Que imprudência a sua, menino! Não bebo, não quero beber,
está acabado. Veja se me obriga.

A este rasgo de cobarde arrogância que seria digna do riso se não
despertasse compaixão, José retrucou, fitando os olhos do colono:

Seu Timóteo, você vai errado. Olhe que eu não posso
demorar me nem sou de graças. Beba a aguardente por quem é.

O taverneiro, sem replicar, pôs o copo na boca, e, depois de haver
sorvido alguns goles que lhe souberam a quássia ou jurubeba, restituiu
o ao rapazito, que o esvaziou quase de um trago.

Então, sem cuidar de pagar a despesa, José saltou sobre a cangalha,
pôs o cavalo a todo o galope e desapareceu no caminho como desaparece
um raio na atmosfera.

Com pouco uma escolta subiu a ponte e foi fazer alto na vendola de Timóteo.
Vinha na batida de José, que havia cometido um roubo considerável
na praça, tendo, para escapar se, assassinado um caixeiro e deixado
às portas da morte com um sem número de golpes, dois soldados
que diligenciaram prendê lo.

Pertencem estas ao número das primeiras proezas do Cabeleira. Não
contava ele então dezesseis anos completos. Perpetrava entretanto,
destes crimes, e com esta firmeza que daria renome aos mais hábeis
e audaciosos assassinos.

Não obstante o modo por que o tratara desta o vez o jovem Cabeleira,
nunca Timóteo ficara mal ou se arrufara sequer com ele. Quem não
descobre a razão de tal segredo ? O colono respeitava e temia o matuto.
Por detrás, dizia, àqueles de cuja fraqueza estava certo, que
o José era uma oncinha que se estava criando e que era preciso, enquanto
não passava de tempo, tirar do pasto; na presença do rapaz,
que já lhe tinha mostrado por duas vezes de quanto era capaz, só
tinha ele atenções e baixezas que bem denotavam os quilates
do seu espírito.

José cresceu, reformou, pôs se de todo homem. Perdeu a cor terrena
e pálida com o que vimos da primeira vez na taverna, e tornou se robusto
de corpo e bonito de feições. Cabelos compridos e anelados,
que lhe caíam nos ombros, substituíram a penugem que mal lhe
abrigava a cabeça nos primeiros anos.

Timóteo fora testemunha de todas estas transformações.
O rapaz tinha escolhido para seu ponto de operações contra a
vila a taverna dos Afogados. Esta taverna passara a ser um como entreposto
onde ele depositava o que roubava com o pai e, mais tarde, com o Teodósio
que viera associar lhes nos perigos e nos proveitos. O taverneiro achara se
assim em condições de acompanhar dia por dia as diferentes fases,
os variadíssimos sucessos de uma das existências mais admiráveis
que se conhecem na carreira do crime.

Por sua vez José vira o florescer e o declinar do taverneiro. Quando
o livrara da companhia da Chica achava se Tim teo nos seus quarenta e oito
anos. Agora orçava pelos cinqüenta e cinco. Tornara lhe o cabelo
branco; distendera lhe o abdome, caíram lhe um pouco as faces, sumiram
lhe os olhos debaixo das espessas sobrancelhas, que pareciam espinhos de cardeiro.
Sem que um entrasse nos segredos do outro, os dois diziam se amigos, e até
certo ponto apoiavam se reciprocamente, havendo muitos respeitos entre ambos,
perfeito acordo de intenções e inteira comunidade de interesses.

As barras vinham quebrando quando a canoa dirigida por Teodósio encostou
na beira do Capibaribe, junto à ponte dos Afogados. Dentro em pouco
a pingue messe da noite. colhida às custas de sustos, sangue e morte,
passou para os esconderijos da taverna. Beberam em comum os quatro; celebraram
todos a magistral façanha. Timóteo aplaudiu a coragem do pai
e do filho, e a finura e as mágicas do Teodósio.

De repente este levou a mão à testa e correu como desesperado
à margem. Os companheiros meteram mãos às armas e prepararam
se para o que desse e viesse.

Timóteo, chegando à porta e estendendo os olhos pelo aterro
dos Afogados afora, nada descobriu na extensa solidão que pudesse justificar
a inquietação do seu digno conviva.

Só o Teodósio, de pé sobre uma das mais altas ribanceiras,
olhava para um e outro lado do rio, e dava mostras de querer arrancar os cabelos
no auge do desespero. José dispôs se a arrostar com o que pudesse
acontecer e foi ter com o consternado amigo.

Que diabo tens tu, Teodósio?

O dinheiro, Cabeleira, o dinheiro!

E o pardo, com o semblante desfigurado por uma dor profunda, apontou o rio
que suavemente discorria por entre o deserto, mobilizando as águas
azuladas em que se refletia o belo céu pernambucano que disputa a primazia
ao céu de Itália.

O dinheiro que tirei das gavetas do armazém lá se foi no camarote
da canoa!disse o Teodósio, fulo de pesar que se não descreve.

E que fim levou ela? interrogou José.

Fugiu, desapareceu ! Lá se foi tudo pela água abaixo.

Não acabava quando, ei la que aponta movida por dois meninos que,
tendo ido encher os potes no rio, se haviam apoderado dela para brincarem
como costumavam sempre que davam com alguma canoa sem dono. Pobres crianças
!

Tanto que os viu, Teodósio empalideceu. Cabeleira porém correu
a encontrá los aceso em ira, gritando e ralhando como louco. Amedrontados
saltaram na margem os pobrezinhos e fugiram, ao passo que a canoa, ficando
solta, desaparecia novamente impelida pela enchente da maré.

Fazendo conta José que os meninos se haviam assenhoreado do dinheiro,
continuou a correr no encalço deles sem ter outra idéia que
apanhá los para arrancar lhes das mãos o que considerava propriedade
sua. Mas como sua cólera aumentou com a fugitiva resistência
dos pequenos, atirou ele sobre o primeiro que lhe ficou ao alcance o facão
com tanta certeza, que o pobrezinho, cravado pelas costas, caiu banhado em
seu próprio sangue. Não parou aí então a fereza
inaudita. José, achando limpas as mãos da vítima, lançou
se com encarniçada fúria atrás do camarada, o qual, tendo
já ganho grande distancia, e sentindo que era perseguido tenazmente,
se lembrou de trepar no primeiro coqueiro que descobriu com os olhos pávidos,
crendo escapar por este modo ao terrível assassino. Reconheceu, porém,
que se havia enganado, quando deu com as vistas em José que do chão
diligenciava feri lo com o facão.

Acuda, mamãe, que o homem me quer matar gritou o menino das alturas
aonde havia subido.

Ah, tu pões a boca no mundo, caiporinha ? observou José. Pois
vou tirar te a fala em um instante.

Um tiro cobarde, cruel, assassino, atroou os ares. Sangue copioso e quente
gotejou como granizo sobre a areia e no mesmo instante o corpo do inocentinho,
crivado de bala e chumbo, caindo aos pés de Cabeleira, veio dar lhe
novo testemunho de sua perícia na arte de atirar contra seu semelhante.

Quem estivesse com os olhos em Teodósio no momento em que Cabeleira
correra atrás dos meninos, tê ia visto atirar dentro em uma moita
de muçambés e manjeriobas, que ficava perto da ribanceira, um
pesado pacote que tirara do bolso. Neste pacote achava se o dinheiro roubado
ao lojista pelo astucioso ladrão que agora o furtava novamente aos
próprios companheiros de rapinas, depois de haver concorrido, por sua
trapaça, para a morte das inocentes criaturas.

Quando se soube que Cabeleira estava na terra e tinha sido o autor do latrocínio,
a povoação horrorizada tratou unicamente de escapar a sua ferocidade.

Grande parte dos moradores fugiu para os matos e praias circunvizinhas. Outros,
dos mais corajosos, fortificaram se nas próprias habitações,
contando que seriam assaltados pelos matadores.

Felizmente estes demoraram se no lugar unicamente o tempo que lhes foi preciso
para porém em boa espécie os objetos roubados segundo usavam
depois de suas depredações.

CapÍtulo III

Como nunca um mal vem desacompanhado, segundo mui bem diziam nossos maiores
com aquela autoridade que, entre outros graves ofícios, não
se lhes pode recusar na ciência da vida, ao grande contágio das
bexigas, que todo o ano de 1775 e uma parte do seguinte levou assolando a
província de Pernambuco, sucedeu uma seca abrasadora, mal não
menos penoso senão mais funesto que o primeiro em seus resultados.

Se por ocasião do referido contágio subiu o número das
vítimas a tanto, que os cemitérios e as igrejas já não
tinham espaço para lhes oferecer sepulturas, que diremos nós
para darmos a conhecer, não unicamente os efeitos da peste, comum a
todos os climas e a todas as regiões, mas juntamente com estes efeitos
os da seca, flagelo especial de algumas de nossas províncias do Norte
?

Excetuada a febre amarela por ocasião de sua primeira invasão,
a qual se verificou em Pernambuco em 168G, não consta que alguma outra
calamidade de poste haja sido mais fatal àqueles povos do que a sobredita
calamidade. Do mesmo modo a seca, chamada em Ceará "seca grande",
que arrasou Pernambuco desde 1791 até 1793, com ser mais intensa e
duradoura do que a de 1776, ficou?lhe aquém nos estragos produzidos
nesta última província onde esta seca foi precedida do terrível
contágio que levou milhares de almas como já dissemos. Dois
flagelos, um imediatamente depois do outro, para não dizermos dois
flagelos reunidos, dos quais o primeiro disputava ao segundo a primazia no
abater e o destruir, traziam pois a província em contínuo pranto
e luto, pranto nunca chorado e luto nunca visto em tamanho extensão,
ao tempo em que se passaram os acontecimentos que diremos neste capítulo.

Governava então Pernambuco José César de Meneses que
não se demorou a expedir para diferentes pontos recursos médicos
e alimentícios, a fim de combater a epidemia, e acudir à pobreza
no seio da qual, ao mesmo tempo que a fome, conseqüência natural
da seca, ia ela buscar, como sempre sucede, o maior número de suas
vítimas.

Não se fez esperar com seu quinhão de auxílio o poder
espiritual, então amigo desinteressado e leal do poder civil, não
só em Pernambuco, mas também em todas as capitanias do Brasil.
E por que não havia de suceder assim, se sob as abóbadas do
Vaticano ainda volteava, representado na pureza e sabedoria de sua doutrina,
o grandioso espírito de Ganganelli; se aos jesuítas, expatriados,
repelidos do seio de todos os Estados civilizados, faltava a organização
que havia antes imposto ao mundo esta companhia como a mais poderosa das até
a esse tempo conhecidas, e que veio depois restituir?lhes, não a totalidade,
mas uma grande parte do perdido predomínio; se no palácio da
Soledade se sentava d. Tomás da Encarnação Costa e Lima
que tornou distinto o decênio de seu ministério por sua circunspeção,
por sua brandura, por suas virtudes, as quais nos corações dos
diocesanos lhe erigiram altares mais naturais e mais sólidos que os
dos próprios templos ?

Um bispo, que compreende sua missão, é uma das maiores fortunas
dos povos que pastoreio; porque um tal bispo, para proceder assim, tem necessidade
de saber e de exercitar a caridade; porque um tal bispo não admite
em seu coração a mais mínima sombra de ódio, e
só possibilita a entrada nele à humildade, à modéstia,
aos mais delicados afetos paternais; porque de todos estes predicados só
se podem originar grandes e edificantes benefícios para os crentes,
e particularmente para os pobres.

D. Tomás dirigiu?se a este ideal, único em que devem ter os
olhos aqueles que se acobertam com as vestiduras episcopais antes para representarem,
como lhes cumpre, o ofício da piedade e do amor celestial, que a magistratura
das mundanas ambições. Ah, esta magistratura é muito
mais difícil de contrastar e muito mais cruel quando mói em
nome de Deus as consciências, do que quando, galoada ao sabor de ficções
caducas, encorrenta a liberdade em nome da ordem e da razão pública,
as quais são um dia as primeiras que proclamam estarem inocentes. Deus
porém, com ser tão poderoso e grande, não pode falar,
e é por isso que muitas e reprovadas paixões se dizem ecos de
sua voz.

Acredito que d. Tomás foi bom, piedoso e justo por efeito de sua própria
natureza; há porém quem diga que deve ele seu adiantamento no
caminho da perfeição católica, de que nos deixou formosíssima
estampa, ao estudo dos exemplos que lhe legaram seus predecessores e ao empenho
com que buscou imitá?los.

O que fica fora de toda dúvida é que d. Tomás achou
a cadeira episcopal de Olinda verdadeiramente ilustrada por conspícuas
e beneméritas virtudes que não foram até hoje igualadas.
Assim, d. Francisco de Lima morreu tão pobre que unicamente se lhe
encontraram de seu quarenta réis em dinheiro. Ele havia despendido
todas as rendas da mitra na sustentação das trinta missões
de índios que reunira e visitara no seio de inóspitos sertões,
sendo?lhe preciso, para cumprimento deste apostólico dever, transpor
mais de duzentas léguas na avançada idade de setenta anos. D.
José Fialho não deixou nunca de exercitar as funções
pastorais com honra sua e proveito público. Por ocasião de uma
epidemia que grassou na província, este respeitável antístite
freqüentou o púlpito, visitou os enfermos, acudiu aos necessitados,
e deu ordem nas boticas para que, por conta dele, se aviassem remédios
para os doentes que os médicos e cirurgiões declarassem serem
pobres. Exercitou a caridade com tanto fervor que sua família veio
a experimentar em casa falta do necessário. D. Luís de Santa
Teresa deu começo ao palácio da Soledade, e concorreu para a
fundação dos recolhimentos de Olinda, Iguaraçu, Afogados
e Paraíba, gastando nas respectivas obras o produto de suas rendas:
missionou desde Porto Calvo até ao Rio Grande do Norte. Finalmente
d. Francisco Xavier Aranha concluiu o sobredito palácio, realizou diferentes
melhoramentos na igreja da Sé e em várias outras igrejas, visitou
grande parte da diocese, e foi muito zeloso nos deveres de seu sagrado ministério.
Depois de d. Tomás dignificaram ainda aquela cadeira d. Diogo de Jesus
Jardim, o esmoler, d. Azevedo Coutinho, o sábio, d. Marques Perdigão,
o piedoso, o pacificador dos cabanos.

Estamos pois em 1776. E no momento em que o fogo da peste mais abrasara a
província.

D. Tomás mandou distribuir esmolas pelos pobres de Olinda e do Recife
e despachou, como havia feito o governador, socorros em dinheiro e víveres
às povoações mais afligidas do mal. Para completo desempenho
de seu dever pastoral, ordenou que se fizessem preces em todas as matrizes
e em todos os conventos, e convidou o povo a procissões de penitência.
As procissões eram então atos majestosos e dignos. Uma delas
produziu tão viva e salutar impressão no espírito do
povo daquele tempo, que o historiador se julgou na obrigação
de transmitir sua memória à posteridade.

Eram sete horas da noite quando esta procissão, que saiu da igreja
de S. Pedro, se encaminhou à da Madre de Deus, designada para um rigoroso
miserere. O bispo acompanhou?a em pessoa, descalço, e confundido com
o povo. Todos, vestidos de branco, disciplinavam?se com sincera contrição.

Tendo chegado à igreja, d. Tomás subiu ao púlpito, donde
sua palavra começou a cair com a singela eloqüência que
a verdadeira piedade suscita e a que o amor paternal autoriza. O devoto bispo
havia?se inspirado naquela passagem que um dos primeiros luminares das letras
portuguesas, frei Luís de Sousa, nos deixou em sua imortal História
de S. Domingos, e que se refere ao sermão pregado com idêntico
fim pelo visitador frei João Furtado, em Évora.

Antes que o povo começasse a dispersar?se, três penitentes,
envoltos nos competentes lençóis e armados com as respectivas
disciplinas, tomram pela rua Direita abaixo trocando à puridade entre
si palavras que davam a entender acharem?se eles penetrados antes de contentamento
que de contrição, sentimento que a ocasião autorizava
com mais justiça a supor em sujeitos tais. Eram Joaquim, José
e Teodósio como o leitor já deve ter compreendido.

Quando d. Tomás se recolheu a seu palácio achou?se roubado.
José, Joaquim e Teodósio, que no momento em que ele saíra
a cumprir o piedoso mister, se haviam introduzido à sorrelfa, com a
facilidade que proporciona o disfarce, em uma das muitas salas ou em um dos
muitos corredores desse edifício, tinham tirado, na ausência
do venerando proprietário, não os castiçais de prata
como fizera João Valjean em casa do bispo Miriel, mas diferentes quantias
que d. Tomás destinara para novos auxílios à pobreza
do alto sertão mais afligida da fome do que nenhuma outra da diocese.
Estas quantias achavam?se repartidas e já devidamente acondicionadas
em pacotes distintos, que só esperavam oportunidade para seguirem seu
destino.

O digno prelado leu a triste verdade na confusão em que, ao entrar
em seu gabinete, achou os ofícios e instruções que, com
as esmolas da sua profunda piedade agora desaparecidas, dirigia aos párocos
dessas longínquas e desvalidas freguesias.

No dia seguinte, muito cedinho, um cavaleiro esbarrou na vendola de Timóteo
e, saltando em terra e batendo com alguma precipitação na porta,
perguntou para dentro:

Ainda está dormindo, seu Timóteo ?

Quem é você? interrogou o vendeiro em resposta à pergunta
que deixamos repetida.

Abra a porta sem demora, que tenho que lhe dizer.

O recém?chegado era um crioulo alto, magro, de boa cara e de jeitos
e meneios que revelavam extrema benevolência.

Olhe, seu Timóteo; ouça?me cá. Eu sei que em sua casa
está o Cabeleira com o pai e o Teodósio; e por isso corri a
avisá?los. Uma tropa vem já do Recife para prendê?los.
Diga a eles que se metam na capoeira enquanto é tempo.

E como soube você disso ?

Sabendo. No começo do Aterro passei eu por ela. O governador ficou
muito escandalizado com o que eles fizeram ontem à noite no palácio
do bispo, e diz que há de pô?los na corda mais dias menos dias.
Tudo isso me contaram na venda de seu José do pátio da Ribeira.

Homem, não posso deixar de lhe agradecer seu aviso.

Não tem que me agradecer. Eu quis fazer este serviço ao próprio
Zé Gomes; com o pai pouco me importa, que, aqui entre nós, é
muito descortês e desaforado. Mas, tendo meu irmão Liberato visto
Zé Gomes; menino, e querendo?lhe por isso algum bem, achei que era
minha obrigação fazer o que em meu caso faria meu irmão
para livrar do risco o antigo conhecido. Diga?lhe isto mesmo. E até
a primeira vista, que tenho que ir encher ainda de aguardente estas ancoretas
no engenho da Madalena; além disso a soldadesca já deve vir
bem perto no faro das cascavéis que estão no ninho.

Quando Timóteo volveu a dar parte do que lhe dissera o negro, não
encontrou os três malfeitores (os quais na realidade tinham passado
a noite na taverna), senão o Teodósio que, sabendo de tudo melhor
do que os outros dois, os quais haviam unicamente ouvido através das
portas algumas das palavras do negro, correu sem demora a meter?se em uma
espécie de esconderijo que arranjara em Tigipió e cuja existência
era só dele conhecida.

Na época em que se passou esta história, fazia o Capibaribe,
adiante do Forte da Piranga, um cotovelo, que foi depois aterrado, e é
hoje quintal de uma casa. O ângulo internava?se na direção
do sul por entre uns lajedos alcantilados que se sumiam dentro de um capão
de mato.

Era uma situação selvagem e encantadora, pela fartura da amenidade
e das sombras com que a dotara a natureza, a qual desde os Afogados até
o Peres apresenta uma face monótona e tristeuma imensa planície,
coberta de capim?luca.

Por entre as lajes via?se uma vereda de gado que ia ter no engenho da Madalena
ou do Mendonça, segundo o chamaram antes. Esse atalho encurtada quase
um quarto de légua do caminho para quem tinha de ir da margem direita
ao dito engenho.

O crioulo, por nome Gabriel, foi marginando o rio até ao ponto em
que este fazia sua internação no continente. Nesse ponto o terreno
acidentava?se um pouco, e elevava?se até as lajes negras pelo meio
das quais o gado tinha aberto sua passagem, melhor e mais naturalmente do
que o faria o homem.

No momento em que o negro ia entrar na capoeira que cobria o sítio,
alguns ramos se afastaram violentamente de um dos lados, e dois sujeitos literalmente
armados surgiram diante de seu olhos.

Vendo?se assim assaltado por Joaquim e pelo filho deste o crioulo pôde
unicamente dizer estas palavras:

Acabo de Ihes fazer um bem, e é deste modo que vosmecês me
dão o pago ?

Desce do cavalo, negro. Este cavalo foi teu até este momento; dagora
em diante ele nos pertence, e é preciso que no?lo entregues quanto
antes.

Meu cavalo ! exclamou o crioulo com entranhada dor. Meu cavalo é
meu único haver, meus senhores. Se vosmecês mo tomarem, com que
darei eu de comer a minha mulher e a meus filhos, que não têm
outro arrimo senão eu ?

Que morram de fome como estão morrendo da seca os outros por aí
além. Demais, não te custará ganhar com que comprares
outro cavalo para continuares em teu ofício. Deste é que deves
perder o feitio. Precisamos dele já para fugirmos com tempo à
tropa que aí vem.

Perdão, meus brancos disse Gabriel com a voz mais doce e terna que
pôde. Eu peço a vosmecês que me deixem ir embora. Em que
os ofendi ? Não os tenho respeitado sempre ? Vosmecês não
me conhecem ? Sou um pobre preto que nunca fez mal a ninguém, e que
segue seu caminho caladinho sem se importar com a vida dos outros filhos de
Deus.

Os dois matadores não estavam, ao menos naquele momento, para estas
banalidades, e, cônscios de que urgia remover o óbice, saltaram
sobre o crioulo e, apeando?o com violência, tomaram?lhe o animal, o
qual se deixou passivamente conduzir pelo cabresto a um fechado da capoeira
onde Joaquim julgou prudente recolhê?lo sem demora.

Gabriel, que de pé e imóvel viu, com lágrimas nos olhos,
desaparecer o seu único bem, reflexionou com pesar:

Então, vosmecês vão montados para sua casa, e eu é
que hei de ir para a minha de pé, sem o meu cavalo, hein ?

Ainda estás aí falando, negro ? Quererás tomar?nos
satisfações ? replicou o Cabeleira voltando?se de chofre e fixando
sobre o Gabriel a vista que chamejava como a de um chacal.

Sim, eu sou negro, é verdade; mas os brancos tomam?me o que é
meu, e deixam?me sem caminho nem carreira, com uma mão adiante e outra
atrás.

A estas vozes o Cabeleira não pôde mais conter?se, e de um só
pulo fez?se sobre o seu interlocutor. Este, porém, já não
se achava no mesmo lugar, mas sobre uma das lajes que davam para o rio, tendo
em uma das mãos uma faca nua, que refulgia aos raios do sol.

Se quer brincar na ponta da faca, meu branco, a coisa é outra, e
vosmecê encontra homem disse de cima.

Ainda bem não tinha preferido estas expressões, quando a seus
olhos brilhava também a faca de seu feroz contendor.

Travou?se então entre eles um combate de gigantes que durou alguns
minutos. A esse combate surdo, medonho, dava lúgubre realce o deserto
com sua profunda solidão.

Os dois contendores eram habilíssimos em jogar a faca. Nunca se encontraram
competidores mais dignos um do outro.

As lâminas inimigas cruzavam?se a modo de impelidas por eletricidades
iguais. O jogo da faca era já nesse tempo uma especialidade característica
dos matutos do Norte, máxime dos matutos de Pernambuco.

Na violenta porfia tinham os jogadores percorrido toda a face da laje que,
começando no estreito angulo, ia morrer no Capibaribe por um declive
quase abrupto. Haviam?se avizinhado tanto do rio, que o ruído das águas
já não deixava ouvir o incessante bater dos ferros assassinos.
Estes ferros eram como duas serpentes que mutuamente se mordem sem se poderem
devorar.

De repente surgiu Joaquim em cima da pedra a um lado de Gabriel, o qual ficou
assim entre dois inimigos capitais.

Ainda está vivo este negro, Zé Gomes ? perguntou o mameluco
ao filho.

É agora a sua derradeira respondeu este.

Com dois é impossível a um só se divertir tornou o
negro, em cuja testa .à alvura do suor contrastava com o negror da
pele luzidia.

José Gomes estava excitado ao último ponto e rolavam?lhe também
pelo rosto bagas de suor alvinitente. Querendo por isso e por outras razões
abreviar o duelo, cuja duração realmente excedia a sua previsão,
apertou com o crioulo com toda a violência de que era capaz e que, como
sempre, levou de vencida todas as resistências adversas. Gabriel, ou
porque conhecesse que na realidade estava exposto a eminente perigo, ou por
que julgasse ser chegado o momento de pôr por obra a sua traça,
deixou?se escorregar quando menos esperava o inimigo, pela face oposta da
laje, e foi cair dentro das águas que passavam ali rápidas e
espumosas.

Cabeleira correu, fora de si, após o fugitivo a fim de ver se o apanhava
para mitigar no sangue dele a sede que o combate lhe acendera; mas antes que
houvesse transposto o espaço que os separava, a detonação
de um tiro lhe anunciou que o temerário que lhe resistia acabava de
pagar com a vida esta ousadia.

Um momento depois o cadáver de Gabriel, entalado entre duas pedras
que sobressaíam às águas no meio do canal, tingia?se
com o seu sangue, e Joaquim o mostrava com o cano do bacamarte, ainda fumegante,
ao filho, que nunca pode, como seu pai, matar curimãs a tiro nas águas
turvas das enchentes.

CapÍtulo IV

Segundo as tradições mais correntes e autorizadas o Cabeleira
trouxe do seio materno um natural brando e um coração benévolo.
A depravação, que tão funesta lhe foi depois, operou?se
dia por dia, durante os primeiros anos, sob a ação ora lenta
ora violenta do poder paterno, o qual em lugar de desenvolver e fortalecer
os seus belos pendores, desencaminhou o menino como veremos, e o reduziu a
uma máquina de cometer crimes.

Como é possível porém que se houvesse abastardado por
tal forma a obra que saiu sem defeito das mãos da natureza ? Como se
compreende que uma organização sã se tivesse corrompido
ao ponto de exceder, no desprezo da espécie humana, a fera cerval que
se alimenta de sangue e carnes fumegantes, não por uma aberração,
mas por uma lei da sua mesma animalidade ?

É que a mais forte das constituições, ou índoles,
está sujeita a alterar?se sempre que as forças estranhas, que
atuam sobre a existência, vêm a achar?se em luta com suas inclinações.
Por mais enérgicas que tais inclinações sejam, não
poderão resistir a estas três ordens de móveis das ações
humanas o temor, o conselho e o exemplo , que formam a base da educação,
segunda natureza, porventura mais poderosa do que a primeira.

No caminho da vida veio encontrar o Cabeleira a seu lado Joana, exemplo vivo
e edificante pela ternura, pela bondade, pelo espírito de religião
que a caracterizava. Em contraposição porém a este salutar
elemento de edificação, do outro lado da criança achava?se
Joaquim, não só naturalmente mau, mas também obcecado
desde a mais tenra idade na prática das torpezas e dos crimes.

Boa mãe era Joana, mas era fraca. Que podia a sua doçura contrastado
pela ameaça, pelo rigor, pela brutal crueldade daquele que estava destinado
a ser o primeiro algoz do próprio ente a quem dera a existência
?

A mulher é tanto mais forte, e a sua influência direta e decisiva
na formação dos costumes, quanto mais puro é somente
uma providência sobretudo, ambiente do meio social onde ela respira,
e esclarecidos são os entes com quem coexiste. Colocada em um tal centro,
a mulher não é somente uma providencia sobretudo, uma divindade.
As suas forças elevam?se à altura das potências de primeira
ordem, e ordinariamente são potências triunfantes, onde quer
que seja o mundo moral, não um caos, mas uma criação
grandiosa e harmônica, em conformidade às leis da estética
cristã e às altas conquistas da civilização que
possuímos. As suas qualidades delicadas, fontes de grandezas ímpares,
tornam?se porém nulas ou são vencidas sempre que entram em luta
com a ignorância, com o vício, com o crime.

Infelizmente para o Cabeleira, grande animo que poderia ter vindo a ser uma
das glórias da pátria se a sua bravura e a sua firmeza houvessem
servido antes a causas nobres que a reprovados interesses e cruéis
necessidades, sua mãe dócil, posto que ignorante, de bonitas
ações, posto que nascida de gente humilde, não só
não pode exercitar no infeliz lar a ação benéfica
que à esposa e mãe reservou a natureza, mas até foi,
como seu filho, uma vítima, não menos do que ele digna de compaixão,
um joguete dos caprichos e instintos brutais daquele a quem ela havia ligado
o seu destino, não para que fosse o seu tirano mas para que a ajudasse
a carregar a cruz da pobreza.

Pela sua organização, pelos seus predicados naturais, o Cabeleira
não estava destinado a ser o que foi, nós o repetimos. Os maus
conselhos e os péssimos exemplos que lhe foram dados pelo desnaturado
pai converteram seu coração, acessível em começo
ao bem e ao amor, em um músculo bastardo que só pulsava por
fim a paixões condenadas. Desgraçadamente estas paixões
que nele escandalizaram a sociedade coeva não desceram com seu corpo
à sepultura. Elas estão aí exercitando em nossos dias
o seu terrível império à sombra da ignorância que
ainda nos assoberba, e que em todas as terras e em todas as idades tem sido
considerada com razão a origem das principais desgraças que
afligem e destroem as famílias e os Estados.

Joana, a mãe boa e fraca, viveu em luta incessante com Joaquim, o
pai sem alma nem coração. José foi sempre o motivo, a
causa desse combate sem tréguas, José, o filho sem sorte que
estava fadado a legar à posteridade um eloqüente exemplo para
provar que sem educação e sem moralidade é impossível
a família; e que a sociedade tem o dever, primeiro que o direito, de
obrigar o pai a proporcionar à prole, ou de proporcioná?lo ela
quando ele o não possa, o ensino que forma os costumes domésticos
nos quais os costumes públicos se firmam e pelos quais se modelam.

Aos sete anos de idade o pequeno já sabia matar passarinhos com seu
bodoque, presente que lhe fizera o pai com expressa recomendação
de amestrar?se em seu uso para que viesse a ser mais tarde um escopeteiro
consumado.

Ó José, ouve bem o que te vou dizer. Quando o sanhaçu
ou bem?te?vi não cair morto da bala do bodoque, mas só com uma
perna ou uma asa quebrada, não lhe apertes o pescoço para que
não esteja penando. Faze um espetinho de cabuatã, e crava?o
na titela do passarinho. Tu não sabes que os passarinhos são
diabinhos que nos perseguem, furando as laranjas e destruindo as bananas do
quintal ?

Tenho pena, papai, e não farei isso aos pobrezinhos respondeu o menino.

Tens pena, tu, José ? Pois sabe que é preciso que percas esta
pena e que te vás acostumando a ser homem. Se hoje cravas o espeto
na titela do bem?te?vi, amanhã terás necessidade de cravar a
faca no peito de um homem; e se no momento da execução tiveres
a mesma pena, ai de ti ! que a mão te fraqueará, e o homem te
matará.

Uma manhã José entrou saltando de contente, e trazendo um preá
que o fojo tinha apanhado.

Ó papai, como é que hei de matar este preá ?

Joana chamou o menino para junto de si, tomou?lhe a presa que ele trazia,
e pôs?se a mirá?la com ternura.

Olha, meu filho, olha bem para ele. Não achas vivos e bonitos os
olhos do preazinho ? Que lindo pescoço ! Que mãos bem?feitas
! Que dizes, José ?

É, mamãe. Acho tudo bonitinho.

E se o achas bonitinho, para que o queres matar, meu filho ?

Para aprender a matar gente quando eu for grande.

Matar gente! José, José ! Quem te ensinou esta barbaridade
? Virgem da Conceição !

Foi papai, mamãe.

Não, eu não consentirei, nem o céu permitirá
que levantes em tempo algum a tua mão para ofender a alguém.
Que desgraça, Mãe Santíssima! Como é que Joaquim
ensina semelhantes coisas ao filho ?

De?me o meu preá, mamãe. Quero espetá?lo vivo como
fiz ontem com o papa?capim.

Ainda me vens falar nisso ? exclamou Joana consternada.

E levada de uma inspiração ou de um repente irresistível,
chegou à porta que dava para o pequeno cercado onde o capinzal crescia,
e aí soltou o inocente prisioneiro.

José chorou, gritou, esperneou, rolou pelo chão com raiva.
Irritada por este procedimento, para o qual ela foi buscar explicação
antes na inconveniente direção que a José ia dando Joaquim
que no impulso de reprovadas paixões de que julgava isento o filho
naturalmente dócil e terno, puxou?lhe de leve pelas orelhas, dizendo?lhe
que se outra vez judiasse com os passarinhos lhe daria uma surra que ele havia
de agradecer.

Quando Joaquim voltou à casa, o menino correu a relatar?lhe o que
tinha acontecido. O mau marido, o péssimo pai ralhou com Joana em quem
por um triz não bateu; e para completar a lição e o exemplo
pernicioso, prometeu a José que o primeiro preá que c fojo pegasse
havia de ser sujeito a um gênero de morte que ele ainda não conhecia.

O menino mal pode dormir aquela noite. Nunca desejou tanto que a armadilha
lhe desse caça. A curiosidade de conhecer a nova forma de matar os
animais, prometida ao primeiro que tivesse a sorte de se deixar apanhar, o
teve por muito tempo na maior excitação e vigília.

Pela manhã correu José ao fojo, onde encontrou, em lugar de
preá, um coelho.

Era uma lindeza o animal. Gordo, coberto de macio pelo em que se divisavam
ligeiras malhas tão alvas como o algodão que pendia dos capulhos
estalados acima de sua masmorra, o filho do campo despertava, pela beleza
das formas, e pela harmonia dos contornos, todos os sentimentos benévolos
de que é capaz o humano coração. Os olhos reluziam como
dois coquinhos polidos. O coração batia?lhe precípite
qual se quisesse sair?lhe pela boca. E essa criatura tão cândida
e inofensiva ia morrer! Oh, meu Deus, por que extravagante e bárbara
interpretação das leis naturais há de o homem julgar?se
com direito à vida de semelhantes entes que mais merecem a sua proteção
do que desafiam a sua cobardia ?

Quando José, irresistivelmente cativo da formosura da inocente criaturinha,
estava ainda admirando os seus encantos, um movimento violento arrancou?lhe
das mãos.

Meu coelho ! gritou o menino sentido de lhe terem arrebatado a graciosa
presa.

Ah, supunhas que havias de por?me terra nos olhos, José ? Não,
este lindo animal não morrerá.

Sim, sim, mamãe; eu não o levarei a papai para o matar como
ele disse; não quero que o meu coelho morra. Ele é tão
bonitinho, que faz gosto. Quero criá?lo para mim, para mim só,
já ouviu, mamãe ? Meu coelhinho tão bonitinho!

José estava fortemente comovido, e Joana, fixando nele olhos perscrutadores,
leu em seu rosto a pureza e a sinceridade da sua comoção, indício
irrecusável, senão prova convincente, da excelência das
inclinações do filho. Todas as hesitações que
traziam seu espírito em contínua inquietação dissiparam?se
diante do enternecimento do menino de cuja brandura e natural bondade já
não lhe foi lícito duvidar.

Dê-me o meu bichinho, mamãe Ó pediu José quase
chorando.

Ele é teu, José, e ninguém, ainda que seja teu pai,
te privará dele. Mas, antes que o tenhas contigo, quero saber por curiosidade
o que vais fazer do coelhinho.

Ora ! Vou levá?lo para casa. Levo logo daqui capim bem verde para
ele comer, e faço lá uma caminha no canto do meu quarto para
ele dormir junto de mim.

E se teu pai o quiser matar ?

Pedirei a papai que o não mate, não. Olhe, mamãe: o
melhor é eu ir esconder o coelhinho no mato sempre que meu pai estiver
para chegar. Deus me livre de ver meu coelho morrer.

Deus te livre, atrevido ! Ó gritou ao pé da mulher e do filho
o mau marido, o pai desnaturado, carrasco da família antes de sê?lo
da sociedade e de si próprio.

E arrebatando com rudeza bruta das mãos de Joana o pobre animal, fez
gesto de lhe quebrar a cabeça contra uma pedra que lhe ficava fronteira.

Que queres fazer, Joaquim ? Ó interrogou Joana, não obstante
achar?se aterrada pela presença do marido.

Ainda mo perguntas, mãe cobarde que só sabes dar a teu filho
lições de mofineza ? Eu não quero meu filho para chorão.

Mas eu também não o quero para assassino.

Hei de ensiná?lo a ser valente. Há de aprender comigo jogar
a faca, a não desmaiar diante de sangue como desmaias tu, mulher sem
espírito que não tens animo para matar um bacorinho. Não
sabes que o assassino é respeitado e temido ? Queres que não
haja quem faça caso de teu filho ?

Mas eu não quero que meu coelhinho morra, papai.

Que estás tu a dizer, mal?ensinado ?

O menino quis chorar, com o que se mostrou escandalizado por extremo o tirano
da família, que, para o fazer chorar com gosto, segundo disse, lhe
deu três ou quatro cipoadas fortes, depois das quais José mal
se pôde ter em pé. Joana, não podendo ver o filho apanhar
sem razão, partiu para Joaquim, a fim de lhe tirar das mãos
o pequeno, mas Joaquim repeliu?a com tanta força, que a fez cair por
terra; e voltando?se imediatamente para José, perguntou?lhe com gesto
e voz de aterrar:

Então, mata?se ou não se mata o coelho, José ?

Mata?se, papai respondeu o pequeno com as faces banhadas de lágrimas
ainda.

Não quero que chores. Quem é homem não chora; quem
é homem faz chorar.

E dando o andar para a casa, com o filho pela mão:

Vais ver agora de que modo morre o coelho disse com expressão que
se não pode descrever.

Meus Deus, meu Deus ! Que desgraça esta, que desgraça a minha!
exclamou Joana quando os viu desaparecer na volta do caminho.

Os corações maternais tem inspirações angélicas
e grandes. Joana, que não se havia levantado ainda, pôs?se de
joelhos no meio da natureza verde e esplêndida que a tinha recebido
em sua queda, e, elevando os olhos úmidos e tristes ao céu profundo
e belo que se estendia a perder de vista acima de sua cabeça, enviou
a Deus esta súplica cheia de amor e filosofia:

Senhor, Senhor, protegei meu filho. Inspirai?lhe sentimentos brandos por
quem sois, meu Deus. Que ele seja bom, e que vos conheça e tema.

Não pode ir adiante a desventurada mãe cuja voz fora embargada
por lágrimas violentas que lhe saltaram dos olhos contra o seu querer.
Mas de repente, como se tornasse em si de um sonho penoso e achasse de novo
todas as suas idéias um instante obliteradas pela intensa dor, Joana
fez em pedaços a tábua, e entupiu com pedras e maravalhas o
buraco que com aquela armava ciladas aos inofensivos filhos do deserto. Tendo
destruído a armadilha, tomou o caminho de casa na qual se lhe deparou
um espetáculo em que ela nunca imaginara e que por um triz não
abateu de todo o seu cansado espírito. Uma forca havia sido levantada
com ramos verdes no terreiro em sua ausência, e dela pendia por uma
embira o coelho, minutos atrás cheio de vida, agora morto, o pescoço
distendido, os belos olhos empanados. José não só não
chorava mas até se mostrava indiferente ao espetáculo repugnante,
como se já não fosse o mesmo que poucos instantes antes havia
manifestado os mais generosos sentimentos a favor da vítima. O reverso
deste recente passado representava?se agora aos olhos de Joana: o pequeno
prorrompia em aplausos a cada balanço que dava o corpo inanimado do
animal que Joaquim, por entre chutas grosseiras e de mau gosto, impelia de
quando em quando com a mão ensangüentada e torpe.

Joana não pôde conter, diante da cena final daquela tragédia
infame, a sua justa e bela indignação.

Homem cruel, onde aprendestes esta lição indigna que acabas
de ensinar a teu filho ?

A esta angélica exprobração Joaquim respondeu com uma
gargalhada de desprezo que retumbou por toda a vizinhança.

Quem matou o coelho, José ? perguntou Joana ao menino, para o qual
tinha a autoridade que não podia exercitar sobre o principal responsável
do estranho delito.

Fui eu, mamãe. Papai mandou que eu matasse, e por isso matei o coelho.

Joana volveu novamente os olhos entristecidos a Joaquim, o qual não
se demorou a retorquir com a imprudência que o caracterizava:

Fui eu mesmo que o mandei. Que tens com isso ? Quererás tomar?me
contas, Joana ?

Eu não, Deus sim; Deus há de tomar?tas um dia, homem sem coração.

Deus ! Quem é Deus, toleirona ? Quem já o viu? Quem já
ouviu a sua voz ? Estás caducando, mulher.

Sem ter para o seu tirano outra resposta que o silencio, Joana resignou?se
a dar?lha, e foi cair sobre um tamborete, com o rosto inundado novamente de
lágrimas.

Tempos depois entrou José em casa gritando e chorando. Foi o caso,
que, tendo ele querido tomar de um menino do vizinho uma xícara de
arroz doce, o menino, que tinha mais idade, mais corpo e mais forca do que
ele, não só não se deixou esbulhar de sua propriedade,
mas até bateu em José com vontade, sem contudo se sair ileso,
porque José lhe pôs a cara em sangue com as unhas, e lhe arrancou
da coxa um pedaço de carne com os dentes.

Sabendo do acontecido, Joaquim fez de uma folha de facão velho um
punhalzinho e, chamando o filho, entregou?lhe a nova arma, mediante este discurso:

Sabes para que fim te dou este ferro José ? É para não
sofreres desaforo de ninguém, seja menino ou menina, homem ou mulher,
velho ou moço, branco ou preto o que te ofender. Se alguma vez entrares
em casa, como entraste hoje, apanhado, chorando, ouve bem o que te estou dizendo,
dou?te uma surra de tirar pele e cabelo, e corto?te uma orelha para ficares
assinalado. Toma o ferro.

José tinha então seus nove para dez anos, e ouviu a advertência
do pai com toda atenção, prometendo cumprir fielmente as suas
órdens.

Joana, que tudo presenciara, e de certo tempo atrás adotara o alvitre
de não contrariar abertamente o marido para o não incitar a
maiores excessos, aguardou a sua ausência, e quando foi tempo pregou
a José as lições de moral que seguem:

Meu filho, Deus, nosso pai, que está no céu, não pode
receber bem os feios atos a que teu pai, que está na terra, te aconselhou
há pouco. Para os mais velhos não tenhas nunca expressões
descorteses e muito menos ações ofensivas; ainda que seja um
negro, deves ter, embora não sejas de sua qualidade, respeito pela
idade dele. Seja a tua única vingança, quando alguém
te ofender, pacifica retirada; não há vingança maior,
nem mais digna: procedendo deste modo, terás, meu filho, agradado a
Deus e dado aos homens mais bonito exemplo do que se houveres preferido, em
resposta, palavras injuriosas ou insultosas contra o teu ofensor. As armas
só servem para excitar à prática de crimes; os homens
bons não trazem consigo armas. Dá?me o punhal, de que teu pai
te fez presente e recebe em troca este rosário que te dou para tua
consolação nas tribulações. Reza por estas contas,
e encomenda?te todas as manhãs e todas as noites a Deus. Assim praticando,
virá a ser estimado de todos e darás prazer a tua mãe
que morreria de dor e vergonha se te visse apartado do caminho do bem.

De que serviram porém estes bons conselhos, se Joaquim, vendo mais
tarde o rosário no pescoço do filho, fez em pedaços a
enfiadura, espalhou as contas pelo chão, e chamou a mulher feiticeira
?

Não ficou aí a manifestação do seu desagrado.
Voltando?se para Joana:

Se continuares a fazer asneiras como esta disse ele , acabas queimada, bruxa;
e eu não respondo pelo que venha a praticar para impedir que continues
a contrariar as minhas determinações. Quem avisa amigo é.

O pároco, a cujo conhecimento chegou, por portas travessas, o escândalo,
mandou chamar Joaquim à sua presença, e lhe disse que se ele
repetisse a cena do rosário, ou obrasse ato idêntico, seria ele
Joaquim quem deveria de morrer queimado por crime de heresia.

Joaquim tornou à casa tão furioso, que puxou pela faca para
matar Joana, a quem atribuiu o mexerico; esta, porém. não correu
nem pediu que a socorressem; limitou?se a chorar em silêncio a sua desgraça
e a apelar para Deus a quem não cessava de encomendar o filho em suas
orações.

Depois de haver esgotado o vocabulário dos epítetos infamantes
contra sua mulher, e dos convícios imundos contra o vigário,
determinou Joaquim de deixar a casa para se ir meter com José no oco
do mundo, palavras suas.

Que noite passou Joana !

Não houve rogativa, não houve lágrimas que abrandassem
o coração do mameluco. Desgraçada mãe, que pediste
e choraste em vão, em vão como sempre !

Vai só, Joaquim, já que me queres deixar; deixa porém
comigo meu filho; peço?te esta graça por tudo quanto há
sagrado na terra e no céu disse ao marido a infeliz mulher com angelical
doçura, momentos antes da partida fatal.

Nessa não cai ! eu replicou Joaquim. Se José ficasse em tua
companhia, quando eu voltasse um dia por aqui, achava?o servindo ao vigário,
ou, pelo menos, feito sacristão.

José entretanto, como querendo escusar?se às saudades da despedida,
encaminhou?se para o quintal donde se pôs a olhar para os araçazeiros
e goiabeiras em que ele foi encontrar novo motivo de pesar com que não
contava. Eis que uma menina de longos cabelos castanhos, que estava brincando
em um dos quintais contíguos, foi tirá?lo da sua contemplação.

Que está você fazendo, José ?

Ora ! Não sabes que vou sair de casa, Luisinha ?

Não sabia, não.

Pois vou, e não sei quando voltarei. Estou triste. Tenho pena de
deixar mamãe.

E de mim não tem também pena ? perguntou ela com suave ingenuidade.

Tenho também, sim; eu estava lembrando?me de você agora mesmo.
Olhe, Luisinha: se eu algum dia voltar você me quer para seu marido
?

Eu lhe quero muito bem, José. Mas não gosto quando você
judia com os passarinhos e dá pancadas nos meninos.

Pois eu lhe digo uma coisa: se algum dia eu chegar aqui de volta, tenha
logo por certo que não faço mais mal a ninguém. Se pareço
mau, Luisinha, não é por mim.

Deste inocente colóquio os veio tirar a voz de Joaquim que chamava
por José para partirem. Pouco depois o pai e o filho deram as costas
à povoação. Joana ficou de cama.

Data desse dia a vida que levaram até o momento de caírem no
poder da justiça. Não foi ela nada menos do que uma longa série
de atentados que dificilmente se acreditam. O número destes atentados
e as circunstâncias que os revestiram, não há quem os
saiba com individuação e clareza. Muitos deles foram de todo
esquecidos, na longa travessa de mais de um século que se conta de
sua perpetração; e dos que assim se não perderam chegou
aos nossos dias uma notícia vaga, incompleta e por vezes tão
escura, ou tão confusa, que temos lutado com grandes dificuldades para,
por ela, recompor esta história.

É que as tradições do crime são menos duradouras
que as da virtude.

Há nisto uma lei salutar da Providência.

CapÍtulo V

Luisinha era uma menina branca, órfã, de índole benigna
e de muito bonitos modos. Compadecida da pouca sorte da pequena, uma viúva
recolheu?a em sua casa à conta de filha, e começou logo a ter
para ela maternal solicitude. Luisinha era digna deste amparo, não
só pelos predicados sobreditos, senão também pelos seus
encantos naturais que a todos cativavam com justa razão.

Florinda, a viúva, deu à menina a educação que
então se usava e que, com poucas modificações, e alguns
acrescentamentos, ainda hoje se usa no campo. Assim, não se demorou
muito que Luisinha soube fiar, coser costurar chãs, fazer bicos e rendas,
respeitar os mais velhos e encomendar?se a Deus. Como era dotada de excelente
coração, dentro em pouco era estimada por todos do lugar, e
até pelos comboieiros e boiadeiros que se arranchavam no povoado para
deixar passar a força do sol do meio?dia, ou aí pernoitarem
quando não podiam, ainda com ar de dia, romper a mata onde se açoitavam
negros fugidos e malfeitores.

A mata tinha mais de légua de comprido, e ninguém lhe sabia
os esconderijos.

Quando se divulgou que Joaquim havia deixado a mulher, todos, a uma voz,
logo prognosticaram que ele ia estabelecer dentro da mata virgem o seu novo
domicilio. A vista da sua má índole de todos conhecida, houve
quem assegurasse que ele estava de mãos dadas com os facinorosos de
Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande do Norte, que ali se homiziavam.
Muitos destes eram conhecidos por seus nomes e pessoas, e uma vez por outra
faziam sortidas sobre os povoados, saqueavam as vendas, perpetravam mil desatinos,
e escapavam sempre à ação da justiça, ineficaz
naquele tempo, como ainda o é hoje a nossa polícia nos povoados
longínquos, para não dizermos nas próprias capitais segundo
sabemos.

A voz do povo não era senão o eco da verdade.

Não se meteu muito tempo que crimes de nova espécie, revestidos
de circunstâncias que revelaram a maior perversidade de parte dos delinqüente,
vieram a atestar que os negros arraiais estabelecidos no centro da espessura
haviam feito novas aquisições que primavam, nas ciladas, no
manejo das armas, na firmeza das execuções.

A princípio não se soube a quem atribuir o sangue novo levado
às veias dos grupos dos criminosos aí asilados, os quais bem
que numerosos, nunca manifestaram a audácia, a ferocidade inaudita
que surpreendiam e aterravam agora as populações. Para maior
confusão destas, tinha sido visto mais de uma vez o Joaquim, ora de
companhia com o filho, ora cada um sozinho, montado no seu cavalo, vendendo
legumes, macaxeras, farinha, açúcar pelas povoações,
e fazendo compras no Recife; o que deixava, pelo menos, supor que eles se
davam ao trabalho da lavoura, e passavam a vida honestamente à custa
do suor de seu rosto. Mas em menos de dois anos não se pôde mais
pôr em dúvida que fossem consenhores dos vastos e virgens domínios,
onde figuravam talvez como os primeiros e mais respeitados de todos os outros
conquistadores, seus iguais.

Algumas vítimas que tinham conseguido, por felicidade ou acaso, escapar
com vida das garras dos feros algozes, deixando?lhes unicamente dinheiro,
fazendas ou gêneros, declaravam que o mais audaz e o mais terrível
dentre eles era um jovem de cabelos tão crescidos que lhe batiam nos
ombros, assemelhando?se aos de uma dama. Outros diziam que tinham visto por
muitas vezes o Joaquim na mata dos salteadores, e que na pessoa do jovem dos
cabelos compridos ou do Cabeleira, segundo começaram logo de chamá?lo,
haviam reconhecido seu filho José Gomes.

Notou?se também uma espécie de moderação, ou
de suspensão de hostilidades, ou ao menos de cessação
de crueldade nestas, de parte dos salteadores em certas quadras do ano, durante
as quais não figuravam nos acometimentos nem o Cabeleira nem seu pai.
Daí se inferiu, com todo o fundamento, que os dois matadores não
limitavam as suas correrias àquelas redondezas, mas, que pelo contrário,
deixando os seus esconderijos, visitavam novos termos, percorriam outros lugares,
como os selvagens mudam de região quando, na que preferiram para a
sua transitória residência, não encontram mais com que
alimentar a sua indolência e bárbara voracidade.

Esta conjuntura foi dentro de pouco tempo confirmada pelos clamores que se
levantaram nas freguesias e termos vizinhos, e nos lugares remotos aonde o
Cabeleira e seu pai foram levar o assombro e o terror de que já tinham
enchido a província natal. As pacíficas ribeiras do rio Paraíba
e do rio Grande do Norte, os engenhos, povoações e vilas das
duas províncias, que trazem os nomes destes dois grandes rios, começaram
a pagar, como as ribeiras do Capibaribe, e as propriedades rurais e os pontos
populosos de Pernambuco, o terrível imposto a que por mais de uma vez
nos temos referido no correr desta narrativa. Os bandos dos salteadores escolheram
para centros das suas operações as matas próximas dos
rios, as catingas pegadas aos caminhos donde podiam facilmente espreitar e
acometer a seu salvo os inofensivos viajantes que, com o fruto do trabalho
honesto e da indústria esforçada, deixaram muitas vezes nessas
medonhas solidões o seu sangue, a sua própria vida.

Cresceram a par a idade de Luisinha e o nome odioso do Cabeleira, nome que,
principiando como um boato ou uma dúvida, se foi de dia em dia condensando
e se constituiu afinal uma fama que ecoou, com os uivos das feras carniceiras
do sul ao norte, do sertão ao litoral, engrossando sempre com as novas
façanhas, como um fraco regato acrescenta o volume das águas
e se faz rio caudal com os subsídios que cada dia recebe em sua longa
e demorada passagem pelo deserto.

Do fundo da obscuridade, que envolvia a sua existência, a menina acompanhou
com os olhos inundados de lágrimas as fases sucessivas que atravessou
esse nome destinado a ter uma página enlutada na história da
pátria. E que bem dentro no seu coração estava a imagem
do companheiro de infância a quem ela nunca pôde esquecer, ainda
quando esta imagem lhe aparecia, como tantas vezes aconteceu, envolta em uma
nuvem de sangue, e acompanhada de uníssonas maldições.

A notícia de um novo atentado cometido pelo moço que por uma
lei natural da imaginação sempre se lhe representava com as
feições do menino de outrora, Luisinha sentia no coração
uma dor semelhante à que produz a dentada de uma serpente.

No terço, que se rezava de noite em casa de Florinda; na missão
que o coadjutor celebrava de madrugada: em qualquer ocasião própria
para elevar o pensamento às regiões onde flui a eterna fonte
das consolações em cujas águas se retemperam das dores
da vida os espíritos resignados e crentes, a pobre moça tinha
sempre uma oração para que Deus abrandasse a natureza de José
e o tornasse, pela contrição e pela emenda, digno do perdão
da sociedade. Ela não podia crer que, tendo sido esta tantas vezes
indulgente para outros criminosos, fosse inexorável para o mancebo
que por algum tempo andara apartado do caminho do dever. Pobre, ingênua
e crédula criança !

Mal sabia que, para grande lição da sociedade do futuro, estava
escrito que o cometa que assim abrasava a terra percorreria a vastíssima
órbita que a Providência lhe traçara, e se afundaria nos
espaços, não entre refulgentes auroras, mas dentro de profundas
e medonhas escuridões.

Uma tarde Luisinha foi buscar água no rio Tapacurá, que banha
a cidade da Vitória, então povoação de Santo Antão,
à qual pertencia Glória de Goitá donde era natural o
Cabeleira. Santo Antão distingue?se na história pernambucana
pela circunstância de lhe estar próximo o Monte das Tabocas no
qual se verificou em 3 de agosto de 1645 a batalha que iniciou a insurreição
portuguesa contra o domínio holandês, e exercitou direta e decisiva
influência no futuro político, comercial, industrial e religioso
do Brasil. Esta memorável batalha, depois de seis longas horas de fogo,
declarou?se em favor dos nossos primeiros dominadores. Em comemoração
deste acontecimento, uma lei provincial de B de maio de 1843 erigiu a antiga
povoação em cidade a que chamou da Vitoria como acima se vê.

O Tapacurá, que de inverno tem enchentes formidáveis, estava
então cortado pelo rigor da seca de que tratamos no capítulo
anterior. No seu largo leito viam?se unicamente, a espaços como de
ordinário, pequenos poços onde os habitantes mal achavam água
para o consumo diário.

Luisinha, não querendo levar para a casa água chafurdada, passou
pelos primeiros poços, já muito remexidos, e foi encher a sua
vasilha em um que distava pouco menos de quarto de légua da povoação.

O poço ficava à beira de um capão de mato. De um lado
o terreno elevava?se gradualmente, e acidentava?se mais adiante, formando
ziguezagues quase inacessíveis e esconderijos escuros, a que a espessura
das árvores dava um aspecto medonho. Do lado oposto a margem plana,
igual e descampada, formava com a banda fronteira um admirável contraste.

Quando Luisinha, da areia do rio onde se sentara a descansar, se dispunha
a levantar?se para tornar à casa, deu com os olhos em um homem que
da borda do mato a observava em silêncio com tal interesse que parecia
querer atraí?la a si com a vista.

Sem demora correu ela ao pote, mas já foi tarde. Formando um pulo
do outro lado do rio onde estava, o desconhecido veio cair no mesmo instante
entre ela e a vasilha, sem perder, no rápido vôo, uma só
das armas com que se achava apercebido.

Em vão, meu bem, pretendes fugir?me. Antes que o diabo esfregasse
um olho, eis?me aqui ao pé de ti, disposto a não te deixar ir
embora senão por minha livre vontade.

O sítio era inteiramente deserto, e as trevas da noite não
tardavam a envolver de todo a natureza.

Luisinha, lançando os olhos pela margem afora, não viu viva
alma. Teve então tamanho medo, que involuntariamente caiu sentada aos
pés do terrível desconhecido. Lembrou?se de gritar por socorro,
mas logo viu que seria inútil esta tentativa, visto que as suas vozes
se perderiam no vasto ermo onde unicamente ecoava o coaxar dos sapos e das
rãs, o silvo das cobras, o canto agoureiro dos bacuraus.

Meu Deus ! exclamou ela. Não haverá um cristão que
me valha nesta aflição ?

Ninguém, ninguém te valerá, bonita rapariga respondeu
o desconhecido, levantando?a por um braço e como querendo arrastá?la
na direção da língua de terreno por onde se podia ir,
a pé enxuto, à margem fronteira.

Mas, meu senhor tornou Luisinha achando em si mesma coragem de que nunca
se julgara capaz , por tudo quanto é sagrado lhe peço que me
deixe ir embora. É quase de noite, e, se me demorar mais tempo aqui,
arrisco?me a encontrar algum malfeitor que me ofenda no caminho.

Queres maior malfeitor do que eu ?

Vosmecê não é um malfeitor. Vosmecê veio caçar
por estas bandas, e, como me encontrou neste ermo, está?me metendo
medo para divertir?se à minha custa. E creio até que havia de
defender?me se alguém quisesse fazer?me mal.

Certamente. Nenhum gavião seria capaz de tirar?me das unhas a minha
formosa juruti. Ora, vem comigo; não tenhas medo. Atravessamos por
este limpo, ganhamos a capoeira, subimos pela aba da serra e…

Deus me livre ! exclamou Luisinha assaltada por novos terrores.

Olhe: se você não quiser vir por bem, vem por mal disse o desconhecido.

Por mal ? E onde está Deus ? interrogou Luisinha, elevando todo o
seu espírito aos pés daquele que está em toda parte para
acudir aos atribulados que o invocam com sincera confiança. Nem por
mal nem por bem. Eu não vou com vosmecê ainda que me custe a
própria vida. Eu sei que Deus me está ouvindo de dentro deste
mato, de cima deste céu. Ele há de lembrar?se de mim.

Diante da firmeza na realidade admirável, com que a frágil
moça respondeu à sua ameaça, o malfeitor sobresteve involuntariamente.
Tornando logo em si, porém, continuou com certo disfarce de mau anúncio:

Ora, menina, deixe?se de asneiras e vamos para diante enquanto o caso não
fica mais sério. Se você é bonita, eu também não
sou feio; assim, podemos ter filhos galantes como os têm os passarinhos
no seio da solidão.

Meu Deus, meu Deus, compadecei?vos de mim enquanto é tempo ! exclamou
ela quase vencida de terror.

Então, à luz crepuscular que enchia a planície como
uma neblina, lobrigou Luisinha um vulto que se dirigia para o lugar onde ela
se achava com o malfeitor. Não foi preciso mais para que recrudescesse
o seu valor que a ia desamparando.

Cuidas que não vejo quem ali vem ? perguntou o desconhecido, apontando
o volto que, como vinha pelo rasto da moça, com pouco mais estaria
com eles. Eu podia agora mesmo meter?me contigo pelo mato adentro. Se tentasses
gritar, tapava?te a boca, e ninguém saberia o teu fim. Mas quero ficar,
para em vez de uma, levar em minha companhia duas mulheres para o mato, onde
há grande necessidade desta fazenda.

Estou aqui, minha mãe, estou aqui gritou Luísa quase ébria
de prazer pela sua salvação, que teve por indubitável
desde que na mulher recém?aparecida reconheceu Florinda.

O malfeitor, porém, seguro de seu poder, nem se moveu, nem se alterou
sequer; e para dar testemunho irrecusável de que não fazia caso
do inesperado adjutório, chasqueou de Florinda, por se apresentar armada
com um cacete e um facão.

Querendo Luisinha correr ao encontro da viúva que, tendo ouvido as
palavras da rapariga, fora em seu socorro com gestos e meneios de louca, o
desconhecido, cujos olhos cobriram de repente com uma expressão indescritível
a pobre vítima, não lhe consentiu arredar o pé de junto
de si.

Não irás disse rudemente, assentando a mão sobre o
braço da moça com tanta força e violência, que
a ela se afigurou que ele lhe tinha dado um golpe com o coice da arma.

Florinda passava por ser a mulher mais forte de toda aquela ribeira.

Ela derrubava grossas árvores a machado, abria roçados por
empreitada, cortava na mata virgem lenha que vendia na povoação,
e até tarrafeava nas lagoas como um hábil pescador. Não
se distinguia só nos serviços do campo, mas também em
fazer excelentes tapiocas e ótimo arroz?doce, que eram as delícias
dos matutos e sertanejos nas feiras.

Era curiboca, reforçada, não feia e de boa estatura. Acreditava
na existência do diabo, no inferno e nas penas eternas como ainda hoje
acredita a gente do campo e uma grande parte dos habitantes das cidades; mas
em compensação tinha uma fé viva e fervorosa em Deus,
e era de costumes irrepreensíveis, fé e costumes que desgraçadamente
faltam a muitos dos que têm hoje aquela primeira crença.

Tendo ficado viúva, sem filhos, na flor dos anos, não se quis
casar segunda vez, e nunca ninguém achou motivo de por em dúvida
a sua honestidade. A Luisinha, a quem pouco depois de ter casado, tomou sob
sua proteção, como já referimos, consagrava ela todos
os seus afetos, e nela fazia consistir o seu orgulho, o seu prazer e a sua
felicidade.

Não sendo de meias medidas quando se julgava ofendida, Florinda botou?se
com todo o ímpeto, que trazia, ao desconhecido, o qual, sem soltar
Luisinha, que se torcia ao aperto da mão de ferro que a segurava, rebateu
o golpe do facão de Florinda com o cano do bacamarte. Com o choque
o facão partiu?se, e a folha inteira foi cair dentro do poço,
ficando na mão da curiboca o cabo imprestável da infame arma.

Florinda era prudente. Tanto que se viu desarmada, sobresteve, dominou a
sua justa indignação, e, com voz masculina que lhe dera a natureza,
assim falou ao malfeitor:

Que quer vosmecê fazer com minha filha ?

Quero levá?la comigo para meu divertimento. Se tens força
para impedires o meu intento, é agora a ocasião.

Ouvindo estas acerbas expressões, Florinda, que com a vista medira
de cima a baixo o seu adversário, meteu?lhe o cacete com todo o animo
que lhe dava sua vida sem mancha, e a justa defesa da filha, seu único
tesouro, de todos acatado e querido. No mesmo instante o ar sibilou, e ouviu?se
o som de uma pancada contra um corpo sonoro. Um grito, antes urro medonho,
ecoou pela vasta solidão, e uma massa, que se parecia, na forma e no
peso, com um tronco de angico anoso, tombou sobre a areia. O desconhecido
acabava de obrar uma ação vil. Com a coronha do bacamarte tirara
os sentidos àquela digna mulher, que o encarara sem medo.

Vendo sua mãe cair desfalecida, Luisinha quis correr em seu amparo,
mas não lho permitiu a mão do malfeitor que a puxou para trás
com força hercúlea.

Ah ! não conheceste o Cabeleira, cascavel ? acrescentou ele com os
olhos fitos em Florinda. Vêm meter?se na boca da onça, e depois
dizem que a onça é cruel.

Aos ouvidos de Luisinha aquele nome passou como uma chama elétrica,
que lhe deu forças para volver à vida.

Cabeleira ! repetiu ela.

Só então viu os longos cabelos que caíam em ondas por
debaixo das abas do chapéu de palha sobre os ombros do assassino.

De que te admiras ? Não sabes que o Cabeleira está em toda
parte onde não o esperam ? Vem comigo.

E sem mais contemplação, o matador arrastou a menina contra
a vontade, a resistência, os sobre?humanos esforços que esta
lhe opunha, por junto do corpo de Florinda, e seguiu em busca da margem fronteira,
onde a noite era já fechada, e o aspecto do sítio pavoroso.

Agora te conheço, José malvado disse a moça. Mata?me
também, já me mataste minha mãe que nunca te ofendeu.

Ah, conheceste afinal o Cabeleira ?

Tanto me conheceste tu, desgraçado!

Que queres dizer com estas palavras ? perguntou o bandido.

Olha?me bem. Até de Luísa te esqueceste ! Assassino, eu te
perdôo a morte: mata?me.

Tinham chegado à beira do capão de mato. O Cabeleira estacou.
O que acabava de ouvir tê?lo?ia prostrado mais depressa do que um golpe
igual ao que descarregara, havia pouco, sobre uma das fontes de Florinda,
se no mesmo instante não lhe houvesse chegado aos ouvidos um assobio
agudo, sinal de extrema aflição no couto próximo.

Ah ! era você ? Perdoe?me, Luisinha. Eu não a esqueci. Perdoe?me.
Eu não sabia que era você disse então, com brandura, soltando
a moça sem mais demora.

Só Deus te poderá perdoar, assassino de minha mãe,
respondeu, abafada em lágrimas e soluços, aquela que se considerava
órfã e desvalida pela segunda vez.

Perdoe?me, Luisinha. Nem eu a posso levar comigo, nem posso demorar?me por
mais tempo. O meu rancho está em perigo, e os camaradas chamam?me em
socorro deles. Mas espere por mim um pouco debaixo deste juazeiro, que eu
quero que você me ouça. Eu volto já.

E, sem perder mais um momento, desapareceu dos olhos de Luísa como
uma vã sombra.

CapÍtulo VI

Não se pode escrever o abalo que experimentou Cabeleira ao reconhecer
Luísa, menina até aquele momento em sua imaginação,
moça de então por diante aos seus olhos deslumbrados do esplendor
daquela beleza correta, natural, irritada e crente.

Pela primeira vez depois de tantos anos, o músculo endurecido que
ele trazia no peito dobrou se a uma impressão profunda, a uma força
irresistível e fatal, como a cera se dobra ao calor do lume.

A medida que se internava na espessura ia caindo em si, e mais difícil
de transpor se lhe ia tornando a via dolorosa por onde nesse momento arrastava
os pôs menos pesados que sua cabeça cheia de encontrados pensamentos.

Pouco a pouco o passado se lhe foi desenhando na tela, ao princípio
escura, depois diáfana e resplandecente da imaginação
vivamente excitada pela violenta comoção. Por último
todas as cenas infantis, tão afastadas, que poderiam considerar se
sen o de todo desvanecidas, ao menos vagas, confusas e de impossível
resurreição, reapareceram aos seus olhos com o vigor de outrora
senão mais vivas e animadas que dantes.

Luísa, representou lhe sorrindo e brincando nas campinas, por junto
dos açudes, à sombra dos juazeiros. Era a mesma menina meiga
e amável, com quem ele folgara à beira dos poços e valados,
e para quem tantas vezes apanhara camarões nas enxurradas.

O bandido lembrou se de que uma quadra tinha havido em sua vida, na qual
ele só cuidava em armar arapucas por entre os beirões do roçado
para pegar juritis, em abrir fojos debaixo das moitas, ou armar quixós
e mundéus na capoeira com o fim de apanhar preás para a menina.

A conhecida cena do coelho pendurado da forca de ramos, obra de Joaquim,
se lhe estampou novamente, por natural associação de idéias,
na tela do pensamento, e veio acrescentar lhe o vexame que lhe oprimia o coração.

Viu depois Luísa encostada na cerca do quintal, ao pé de uma
goiabeira, os cabelos soltos, os pezinhos descalços.

Esta última visão recordava lhe a cena da despedida que o leitor
conhece. José estava tão vivamente excitado, que lhe pareceu
ouvir as vozes, as queixas, as rogativas, os prantos de Joana, e as recusas,
os remoques, as asperezas, o desprezo que para ela tivera Joaquim na manhã
fatal, em que o pequeno fora arrancado dos braços de sua mãe
quase alucinada pela dor da separação. Pareceu lhe ouvir as
palavras de Luísa: "Quero lhe muito bem, mas não gosto
quando você judia com os passarinhos, e tenho medo de sua faca".
Pareceu lhe escutar distintamente o som das suas próprias expressões:
"Quando eu chegar de volta, não maltratarei mais os animais".

E a menina a quem tanto amara, a quem nunca esquecera, e cuja imagem indecisa
e vaporosa os olhos do seu pensamento tinham por mais de uma vez surpreendido
junto de si testemunhando a perpetração de algum crime, essa
menina crescera, pusera se moça, chegara à idade em que todos
tem no critério natural um corpo de leis e na consciência um
juiz para julgar as suas e as alheias ações.

Que juízo ficaria fazendo de mim Luisinha ? perguntou de si para
si o Cabeleira, insensivelmente arrastado por esta ordem de idéias.
Ah ! que pode ela pensar de mim senão que sou um assassino ?

Luísa tinha o, de feito, nomeado por esta palavra, havia poucos instantes,
entre as lágrimas que lhe arrancara o desespero. Era pois certo, e
o bandido bem o compreendia, que o abismo que já na meninice de ambos
os separava, longe de se ter arrasado, se tornara mais fundo com o correr
dos anos. Agora ele não judiava só com os animais como em outro
tempo; ele saqueava povoações e matava gente; e desta verdade
era irrecusável prova o que acabara de praticar com Florinda.

Se até aquele momento Luisinha lhe votara afeição ou
se condoera de sua pouca sorte, era natural supor que estes sentimentos se
tivessem modificado, se não de todo extinguido, depois do último
acontecimento. A afeição deveria ter sucedido o desprezo, à
pena o ódio.

Não eram outras as idéias que tumultuavam na cabeça
de Cabeleira. Estas idéias produziram no seu animo tão profunda
impressão que ele sentiu lágrimas nos olhos, ele, o grande assassino
que sempre se mostrara insensível ao longo pranto que por toda parte
fazia correr.

Sem se poder governar, achou se de repente voltado para o rio. Seus pés,
primeiro que sua vontade, o queriam guiar de novo ao lugar onde tinha achado
os motivos para tamanha transformação. Eis que novo assobio,
precedido da detonação de alguns tiros, rompeu os ares e veio
diverti lo destas preocupações. O esconderijo, não havia
de duvidar, precisava de seu socorro. Então uma nuvem de sangue envolveu
a vista do infeliz mancebo. O passado caiu lhe novamente em pedaços
aos pés. O espírito de vingança fustigou o com veemência
no coração, teatro de encontradas e profundas paixões.
Cabeleira volveu a ser outra vez fera, e rápido deslizou se como uma
cobra por entre as árvores e por debaixo da folhagem.

Com a mata que dava asilo aos malfeitores confinavam as terras onde Liberato,
irmão de Gabriel, tinha uma engenhoca.

A princípio Liberato viveu muito satisfeito em suas terras. Tendo
se, porém, anos depois formado o couto ali junto, foi se ele desgostando
a ponto que só por não ter outro remédio continuou a
morar nelas.

As terras eram muito férteis, e a sua situação não
podia ser melhor do que era; mas, pela péssima vizinhança, estavam,
como nenhumas, expostas em todos os sentidos a serem usufruídas, como
eram constantemente, pelos malfeitores, o que as havia inteiramente depreciado.

Na realidade quem menos se gozava das suas plantações era Liberato,
dono delas. A macaxera mais enxuta, a melancia mais madura, o melhor milho
verde, o feijão de melhor qualidade eram para a boca ou antes, ao dizer
popular, para o papo dos pesados vizinhos. A galinha gorda anoitecia no poleiro
mas não amanhecia no terreiro, não porque a raposa a tivesse
pegado, mas porque os raposos a tinham tirado para a sua panela, que estava
quase sempre fervendo dentro da mata virgem.

A vaca leiteira, o quartau carnudo desaparecia do pasto quando menos pensava
o crioulo, que os ia recomprar em segunda mão, se, como quase sempre
acontecia, os animais furtados eram da sua particular estimação;
não escapavam da rapacidade dos malfeitores as próprias bestas
do serviço da engenhoca. Dentro dos canaviais apareciam vastas camarinhas,
obra de ladrões; as canas passavam para a mata aos feixes. Enfim era
uma calamidade aquela gente, era uma desgraça para o Liberato, mais
do que para nenhum outro, aquela vizinhança.

Liberato propôs a venda das terras a mais de um morador do lugar, mas
todos se escusaram a comprá las. De que valiam elas em realidade, com
serem tão boas, estando sujeitas, como estavam, àquela onímoda
servidão ? Não tendo para onde ir, nem outro algum recurso,
resignou se Liberato à sua sorte, e botou para Deus, juiz supremo,
que dá provimento a todos os recursos interpostos com justo fundamento.
Era de índole pacífica, tinha mulher e filhos, não queria
rixas com ninguém, e muito menos as queria com matadores de profissão.

Quando lhe aconselhavam em família, a mulher, ou os filhos, para que
reagisse contra os ladrões, ele respondia sempre com estas palavras,
ou com outras equivalentes:

Deus me livre. Se os brancos e o rei não podem com eles, eu, que
sou negro, é que hei de poder ? Vamos passando assim mesmo conforme
Deus nos ajudar. Pode se dizer que vivo trabalhando para eles. Paciência!
Um dia isto há de ter fim, ou com a vida, ou com a morte. Será
quando Deus quiser.

Liberato não procedia deste modo por fraqueza, mas por boníssimo
discernimento. Ele era até valente por origem. Vinha a ser neto ou
bisneto de Henrique Dias, com cuja fama se gloriava. Do ilustre guerreiro
lhe vinham por sucessão as terras que possuía nas proximidades
do Monte das Tabocas, onde o negro herói conquistara brilho inescurecível
para seu nome que ficou sendo uma das primeiras glórias da pátria.
Mas bem estava vendo que não podia avantajar se a quadrilhas de ladrões
e assassinos afeitos à prática de toda sorte de depredações.

Havia já muitos anos que ele vivia sem ter neste assunto outras idéias.
Pouco a pouco se habituara a repartir o seu pelos ladrões. Esta partilha
ele a considerava tão forçada, tão fatal, que, sempre
que abria um novo roçado, ou encoivarava terras para algum novo partido
de canas, dizia, entre gracejo e resignação:

E preciso fazer mais acrescentando para que os meus vizinhos levem tudo,
e eu não venha a ficar sem ter com que remir as minhas necessidades.

Estava Liberato um dia consertando uns covos para os meter em um poço
onde os camarões saltavam em cardumes, quando, banhada em pranto, carpindo
a sua desgraça lhe entrou pela porta a mulher de Gabriel.

Mataram meu marido, Liberato. Estou viúva, e você já
não tem seu irmão.

Quem lhe contou isso, Aninha ? perguntou o negro quase esmagado da dor que
lhe trouxe a repentina e fúnebre nova. Não é possível.
Há de ser mentira. Quem havia de matar Gabriel, que nunca se importou
com os outros ?

Desgraçadamente não é mentira, não. Eu soube
de tudo. Foi o Cabeleira quem o matou. E o malvado aí vem com o pai,
roubando e esfaqueando a quem encontram. Previna se, Liberato, que eles já
devem estar na mata. Ai de mim ! Que desgraça, meu Deus ! Que será
de mim sem Gabriel que era tão bom marido ?!

E onde estou eu, Aninha ? Não chore. Eu ainda não creio neste
conto. Mas se suceder a desgraça que você diz, nem por isso deverá
desesperar, que os homens ainda não se acabaram na terra.

Seguiu se um longo pranto na casa do crioulo. Ao carpir de Aninha vieram
juntar se as lamentações de Rosalina, mulher de Liberato e irmão
da viúva.

Liberato passou três noites sem pregar os olhos, pensando consigo só.
A dor acerba a que ele, sem dar amostras, talvez por prudência, mal
tinha podido resistir com sobre humano esforço, veio despertar os longos
ressentimentos e antigos desgostos que jaziam como arrefecidos no fundo do
seu coração. Aqueles que cotidianamente o despojavam dos produtos
do seu trabalho e da economia tinham lhe roubado uma vida preciosa. Quem lhe
podia assegurar que eles não viessem mais tarde a tomar lhe a mulher,
a tirar lhe a filha, a arrancar lhe a própria vida se ele se opusesse
à sua vontade criminosa ?

Liberato refletiu maduramente sobre este grande assunto, e a cabo de três
dias tomou a resolução que lhe pareceu melhor. Não se
contava na distancia de três, ou quatro, ou dez, vinte léguas
da povoação um só proprietário, lavrador, foreiro,
almocreve ou morador que não tivesse queixas dos malfeitores, especialmente
do Cabeleira que a todos excedia na petulância e fereza. Aqueles a quem
faltavam motivos de ofensa pessoal tinham razão de sobra para quererem
a dissolução do couto nas ofensas feitas pelos facinorosos aos
parentes e amigos. Só uma população cansada de lutas
sanguinolentas, e um governo que cuidava menos de proteger eficazmente a propriedade
e a vida na colônia do que de adquirir grossas rendas para a metrópole,
e riquezas para si próprio, poderiam sofrer bandos de sicários
que, assim fortificados ao pé das famílias, roubavam impunemente
bens, honra e vida.

Liberato entendeu se com três ou quatro dos vizinhos mais próximos,
e depois de lhes haver dado parte do golpe de que fora vítima na pessoa
de seu irmão, propôs lhe coligarem todas suas forças para
tentarem a expulsão dos malfeitores. Não obstante haver por
essa ocasião recordado os danos irreparáveis que a cada um desses
vizinhos tinham eles ocasionado, não houve um só que estivesse
pela proposta do negro, tal era o terror de que todos se achavam penetrados.

Nenhum queria arriscar se a pagar com a vida semelhante ousadia aconselhada
aliás pelo instinto da própria conservação.

Liberato voltou a casa triste e desanimado, mas não dissuadido de
tentar o assalto, único meio que se lhe oferecia de vingar se dos assassinos
de Gabriel, e libertar se do violento imposto que sobre sua fraca fortuna,
já muito depauperada, os malvados faziam pesar sem tréguas nem
piedade.

Concertou seu plano consigo mesmo debaixo de rigoroso sigilo. Na tarde seguinte,
com o pretexto de tirar uma abelha e encovar tatus, encaminhou se para a mata,
acompanhado de seus dois filhos Ricardo e Sebastião, e de seu genro
Vicente, todos apercebidos com espingardas, facões e chuços.

Conhecia algumas das veredas que levavam ao covil. Acostumados a verem nele
uma vítima paciente de que mais tinham que tirar do que temer, não
cuidaram os malfeitores em ocultar lhe essas veredas. Liberato e os seus embocaram
por uma delas sem hesitações nem temores, perfeitamente senhores
de si e conhecedores do terreno onde pisavam.

Antes de chegarem ao rancho foram pressentidos. A vereda, antes picada aberta
a machado, era estreita, e passava por um embastido de árvores colossais,
que formavam natural estacada, impossível de romper.

Liberato sabia o perigo a que se expunha com este passo. Estava, porém,
disposto a dar aos malvados uma lição de mestre, ainda que lhe
custasse a própria vida, desmoralizando, quando outro sucesso não
pudesse obter, o fatal valhacouto.

Ainda bem não tinham chegado ao ponto em que a picada se bifurcava,
quando ouviram um assobio que repercutiu com estranho som na profunda selva.

Ah ! disse Liberato aos seus perdemos a diligência. Estão prevenidos
e esperam por nós.

Ele não se enganava. Um dos moradores a quem convidara para o assalto,
pondo se em secreta inteligência com um dos criminosos, delatara por
medo a intenção de Liberato. Dupla cobardia, tanto mais digna
de ser execrada quanto foi parte para que viessem a dar se lamentáveis
cenas!

Posto que logo conhecesse que não havia salvação possível
para nenhum deles, Liberato, não querendo dar o braço a torcer,
prosseguiu com firmeza em sua marcha como se nada houvesse.

Pouco adiante, a vereda estava completamente tomada por grossos troncos ligados
às árvores paralelas por fortíssimos cipós.

Estamos encurralados disse ele com serenidade. Melhor um pouco; havemos
de bater nos a faca e a chuço.

Voltemos, já que não podemos aqui avançar. Cada qual
trate de matar para não morrer.

Não podemos abrir caminho através destes paus ? perguntou
Sebastião.

De que modo ? E impossível respondeu Liberato.

Só se nós trepássemos, e fôssemos saltando de
galho em galho até deixarmos atrás de nós a estacada
lembrou Ricardo.

Eles nos deixariam fazer isto ? observou Vicente.

Mal tinham acabado estas palavras quando uma descarga da trincheira, deitando
por terra o genro de Liberato, veio anunciar lhes que para eles tudo estava
acabado.

Afastarem se da trincheira para ficarem ao abrigo de seus traiçoeiros
tiros foi a primeira coisa em que todos entenderam.

Cobardes ! exclamou Liberato com raiva concentrada. Têm gente como
farinha, e encurralam quatro homens que eles não se animam a bater
em campo aberto. Onde está a valentia destes ladrões que são
satisfeitos com o que me furtam, mataram meu irmão para lhe roubarem
seu único bem ?

Depois de se haverem alongado alguns passos mais da trincheira onde reinou
logo profundo silêncio, perceberam que os inimigos vinham a seu encontro
para lhes embargar a saída. Achavam se deste modo os assaltantes entre
a espada e a parede.

Era medonha a escuridão dentro da mata.

Facas em punho, e avancemos gritou, não obstante, Liberato aos filhos,
certíssimo de que poucos instantes de vida restavam a todos eles.

Para dar o exemplo precipitou se, como um raio, contra a mó de malfeitores
que dificilmente lobrigou a pouca distancia diante de si. Sebastião
e Ricardo praticaram o mesmo, e dentro em pouco as armas inimigas cruzaram
se com fúria tal de parte a parte, que delas saltavam chispas, e o
som dos seus embates ia perder se ao longe no seio da vasta selva.

Depois de alguns minutos que decorreram em incessante lutar, terceiro assobio
sibilou por entre a folhagem. A este sinal caiu de cima de uma das árvores
mais próximas a luz sinistra de dois fachos cujo clarão encheu
o estreito passo.

Metia horror o teatro da luta. Dos assaltantes só restava o Liberato
que se batia, como um bravo que era, com o próprio Cabeleira; dos salteadores
muitos faziam companhia com seus cadáveres aos de Ricardo, de Sebastião
e de Vicente.

Eu logo vi que tinha pela frente o ingrato Cabeleira disse Liberato, que
só a seu grande animo devia estar ainda de pé. Já que
mataste meu irmão, miserável, podes também tirar me a
vida agora; mas fica sabendo que não lograrias o teu intento se não
fosse o adjutório de teus cobardes companheiros.

A palavra ingrato José sentiu surgir lhe espontâneo remorso
na consciência, e instintivamente recolheu o ímpeto com que ia
dar em Liberato o golpe de honra.

Não fui eu que matei Gabriel disse sem se sentir, sem o querer o
malfeitor.

Fui eu, fui eu trovejou Joaquim com fúria aterradora. E que tem isso
? Pois ainda estás dando satisfações a este negro, Zé
Gomes ?

Ouviu se ent o o estalo de galhos e cipós que se romperam com violência
inesperada para deixarem passar um corpo ágil, que foi cair de um salto
à frente de Liberato. Esse corpo, ou antes essa onça petulante,
irritada e cruel, não era senão o pai de Cabeleira.

Rende te, negro gritou Joaquim ao infeliz, descarregando lhe sobre a cabeça,
já em diferentes partes mutilada o facão que trazia na mão
esquerda, enquanto com a faca presa na direita, aparava o golpe que vibrava
como último arranco a sua vítima.

Liberato, de feito, não pôde mais resistir. Tinha o corpo crivado
de facadas. Cambaleou e caiu.

Joaquim, atirando se ao desgraçado, embebeu lhe no peito, sem hesitar,
antes com a firmeza de cínico sicário, a folha de sua faca,
que lhe atravessou o coração.

Por este guarida fico eu disse. Não há de vir mais perturbar
o nosso sossego.

Os cadáveres dos assaltantes foram examinados entre risos, insultos
e galhofas ímpias, à luz dos fachos sinistros. Completou se
por este modo a tragédia.

CapÍtulo VII

A vitória, não obstante o lugar e o número que deram
superioridade aos fortificados, custou lhes consideráveis danos. Com
outra investida da mesma força que a primeira, ou ainda menor, o couto
arriscava se a ser dissolvido. Os malfeitores não eram muito numerosos
e qualquer perda, por pequena que fosse, os expunha a desastres certos e quiçá
fatais. Além disso, achavam se divididos por diferentes pontos donde
protegiam as correrias empreendidas pelos mais destemidos. A organização
protetiva era tal, que o mameluco e o filho, dentre todos os mais temerários
e valorosos, percorriam, não já somente a província donde
eram naturais, mas Paraíba e Rio Grande do Norte em todas as direções
sem maior perigo, porque quando as justiças os perseguiam, eles achavam
sempre perto de si um refúgio amigo onde se acolhiam, e se aí
eram buscados, como muitas vezes aconteceu, resistiam, ajudados por seus iguais,
com tanta energia e denodo que sempre a vitória ficava de seu lado.

Desta vez porém não lhes fora muito favorável o lance.

O Cabeleira, cuja bravura estava acima de todo o encarecimento, e seu pai,
que a nenhum cedia o lugar na crueldade, tinham ficado cobertos de golpes,
alguns deles mortais. Maracajá, cabra de más entranhas e por
isso de créditos colossais entre eles, ficara com uma mão horrivelmente
destruída, e o ombro esquerdo mutilado. Ventania, outro matador de
fama, apresentava no rosto e peito feridas extensas e profundas. Jurema, Jacarandá,
Gavião e dois negros fugidos tinham morrido nas pontas das facas dos
assaltantes.

A vista de tudo isso, tanto que considerou restabelecida a ordem na lôbrega
estância, Joaquim reuniu o restante das suas forças, e lhes falou
nestes termos:

A luta foi feia, camaradas, e devemos dar um exemplo de estrondo para que
ela não venha a repetir se tão cedo. É: certo que dos
cabras que se atreveram a vir bater nos, n o voltou um só que fosse
contar a sua derrota, mas o abalo que padecemos foi grande, e, se a justiça
vier por aí nestes dias, correremos grande perigo, só não
se nos ausentarmos. Entendo que devemos obrar um feito que a todos dê
que falar, que aterre a população e o capitão mor, que
faça crer que nunca estivemos tão fortes nem mais dispostos
a sustentar o nosso posto.

Estou pronto para ir pôr fogo agora mesmo na povoação
disse Manuel Corisco, calceta evadido da cadeia do Recife por ocasião
do segundo arrombamento praticado nos últimos tempos da administração
do governador Henrique Luís.

Este sentenciado tinha tomado parte, aos dezesseis anos, no levante dos soldados
que se verificou quando governava Pernambuco d. Manuel Rolim de Moura. Do
dito levante existe ainda a viva lembrança na província, pelo
grande saque a que procederam, não só na vila do Recife, mas
também na rica e populosa cidade de Olinda, a pérola de Coelho.
Os sessenta e seis anos, que contava, ainda lhe permitiam forças e
animo para atentar contra os bens e a vida com tanto maior firmeza quanto
era fragueiro no crime por uma prática de longos anos.

Em vez do incêndio, o saque acudiu Miguel Mulatinho.

Para tanto não temos forças, mas se o querem, encontram me
pronto, como sempreobservou Manuel Corisco. A minha opinião é
que apanhemos os cavalos e gados que ainda existem por estas beiradas. Eles
devem render na feira dinheiro fresco para irmos resistindo à seca.
Feito isto, levantemos o acampamento por algum tempo tornou Miguel.

Que é que resta por aqui ? perguntou Corisco. Na fazenda de Liberato
poucas reses se contam. Antes de morrer, o ladrão do negro já
estava limpo; só tinha em casa os cachorros, os gatos, a mulher e a
filha.

Boa idéia, boa idéia gritou o Joaquim, cujos olhos nadavam
em ferocidade. Terão vocês coragem para darem conta da empresa
?

Diga lá, Joaquim. Você não está com patativas
choronas, você está com carcarás que têm boa vista,
boas asas e melhores unhas acudiu Miguel Mulatinho, librando se nos pés
para imitar o pássaro que quer voar.

Vamos lá ver o que propõe você acrescentou Manuel Corisco.

Proponho o roubo das melhores raparigas da povoação. Isto,
sim, há de dar a todos a medida da nossa audácia, e por todos
será considerado uma prova de que estamos fortes como nunca estivemos.

Sim senhor, muito bem lembrado disse o Mulatinho , melhor não podia
ser, mas a coisa é séria, Joaquim.

Ora ! Tens medo ?

Medo ! O medo comi eu com as papas que minha mãe me deu quando era
pequenino retrucou o malfeitor como por demais.

Dito e feito, Joaquim. Quando será isso ? Hoje ? Amanhã ?
perguntou José Trovão, negro hediondo, cuja cara apresentava
profundas cicatrizes e cujos olhos, vermelhos como tomates, padeciam de estrabismo
divergente.

Hoje não. Amanhã, ou depois, conforme entender melhor Zé
Gomes respondeu Joaquim.

E logo acrescentou:

Mas onde se meteu Zé Gomes que não o vejo aqui ?

O lugar onde se achavam reunidos os bandidos era um dos pontos mais centrais
da mata.

Tinham eles assentado o seu arraial ao pé de um olho d’água
que não secava, ainda no rigor do verão. Este arraial compunha
se de meia dúzia de ranchos abertos por todos os lados e unicamente
cobertos de palhas de pindoba. Dos caibros pendiam surrões, véstias
e chapéus de couro. Algumas redes estavam armadas dentro das palhoças.
A noite alumiavam se ordinariamente com fogueiras; tinham porém sempre
em quantidade fachos de que se serviam nas suas idas e voltas por dentro da
mata, quando fazia escuro. Tudo anunciava que o ponto era sempre provisório,
e podia ser deixado de um momento para outro sem prejuízo nem saudades.

O Cabeleira estava longe deles naquele instante.

Apenas viu passada a borrasca, reapareceu lhe a imagem de Luísa em
quem ele via dois tipos cada qual mais sedutor em um a menina de oito anos
com o rosto banhado da expressão de meninice, que é agradável
até aos olhos dos que têm o coração mais endurecido
do mundo; no outro a moça ingênua, corajosa, banhada em pranto,
de rojo a seus pés, pedindo lhe misericórdia, insultando o,
amaldiçoando o, bela, tanto mais bela quanto mais aumentavam sua dor
e sua indignação, ambas tão profundas como era o afeto
que ela votava ao bandido.

Este não tinha tido até aquele momento predileção
amorosa para alguma outra mulher.

Sua vida nômada, arriscada, cheia de sobressaltos, ensopada de sangue
só lhe tinha permitido querer bem à imagem da menina que ainda
na véspera se debuxava em seu espírito com um vago e pálido
reflexo do passado. Inesperadamente, porém, este reflexo se ilumina
com todos os brilhos do mais primoroso íris. A reminiscência
desmaiada, quase desaparecida, tomou corpo, forma, cor, contornos suaves,
olhos matadores, cabelos escuros, voz harmoniosa, enérgico sentimento,
e com soluços o comove, e com exprobrações o faz conhecer
e sentir a dor, nunca talvez experimentada, de um remorso cruel. Seu coração,
que se havia convertido em foco de paixões sanguinárias, era
agora ninho de doce e indefinível sentimento.

O bandido estava experimentando, não a lascívia bruta que proporciona
rápidos prazeres, dele conhecidos como a aguardente que bebia nos dias
quentes e nas noites frias, mas uma fatalidade benévola, branda e terna
que o impelia para a moça, primeiro pelo espírito, e só
depois pela beleza da forma que o atraía; e essa fatalidade era tão
poderosa que ele não achava forças em si para lhe resistir apesar
do seu querer.

Chegando à beira do rio para onde se dirigira correndo em busca da
visão que aí deixara, achou em seu lugar a solidão infinita,
a solidão só.

Era em maio. Frouxo estava o luar. Elevava se das margens, com os ruídos
do deserto, fresca e grata emanação que teve para o seu peito
abrasado o efeito do bálsamo fragrante.

Pareceu lhe que debaixo da folhagem do juazeiro onde, segundo o seu pedido,
esperava encontrar a moça, um corpo indeciso e vago se agitava brandamente.

Luisinha ? Luisinha? chamou ele.

Ilusão ! Estava ali o vácuo mais cruel do que um raio que o
houvesse fulminado. A sombra da árvore movida pela brisa noturna representava
a forma graciosa que o bandido acreditou ser Luísa

Foi se embora ! disse o Cabeleira esmagado.

Então com olhar de gavião abrangeu a vasta planície
que se estendia diante de si. Ninguém ! Nem sequer um vulto que por
um instante ao menos lhe desse o prazer de uma nova esperança, falaz
embora como a que se despedaçara a seus pés naquele momento.
Só o deserto lhe apareceu, menos vago, mais real com taciturna imensidade,
só o deserto lhe respondeu com a mudez do descampado, das selvas profundas,
e das águas mortas.

Assim desmascarada em plena natureza, a realidade o fez voltar a si. Sentiu
as dores dos golpes recebidos, pouco havia, dentro da mata. Lembrou se de
banhar as feridas como costumava depois de idênticos desastres. Mas
a água fresca que tantas vezes lhe havia servido de bálsamo
refrigerante, produziu lhe agora diferente efeito. A vista do bandido foi
pouco a pouco escurecendo, a cabeça pesou lhe mais do que o corpo,
e ele caiu sem sentidos à beira do poço.

Deste modo passou horas. Quando tornou em si de seu delíquio, a aurora
vinha rompendo as nuvens do horizonte, com sua luz extensa e vasta que se
confunde no infinito. A viração matutina transmítiu lhe
aos ouvidos uns sons cadenciados que vinham de longe. Era o eco das loas cantadas
pelas meninas e raparigas da povoação que vinham encher os potes
nos poços como de costume.

Levantou se ainda aturdido. Seus olhares foram logo cair sobre o lugar onde
na tarde anterior ele havia deitado Florinda em terra com o coice do bacamarte.
Não se achava, porém, ali o cadáver da curiboca. O bandido
deu então o andar para a estância, com o pensamento concentrado
em Luísa que, tendo se visto livre de suas mãos, correra em
socorro de Florinda.

Minha mãe ? minha mãe ? chamara ela, abraçando o corpo
da vítima, e chorando como criança.

No seu prantear e no seu carpir, Luísa tivera todavia espírito
para lembrar se das últimas palavras do Cabeleira. "Com pouco
ele estará aqui outra vez", pensou ela. "Deus me livre de
que ele venha ainda encontrar me neste ermo. Que seria de mim se tal acontecesse
? Mas posso eu deixar aqui o corpo de minha mãe só e desamparado
?! Não, não; não o deixarei ainda que me matem. Ficarei
até que amanheça. Há de aparecer alguém que me
ajude a levá lo para casa".

E aflita, consternada, Luísa olhara ao longo da margem a ver se descobria
quem a socorresse. Por mais de uma vez uns vultos escuros moveram se sobre
a areia, à beira dos poços. Ele sentira então voltar
lhe o animo, falara, perguntara quem estava ali, pedira que a fossem amparar
em tamanha aflição, mas ninguém a ouvira, ninguém
acudira ao seu chamamento. Tudo fora ilusão. Esses vultos foram as
sombras das árvores movidas pelo vento, as quais enganaram depois o
bandido como vimos.

A noite, porém, corria com rapidez. A lua que descia a ocultar se
por detrás da floresta, dentro em breve deixaria em trevas toda a natureza.
O silêncio tornava se mais profundo, tornava se absoluto. O sítio,
de si ermo, estava agora lúgubre por se haver convertido em mansão
de morte e luto.

Luísa lembrara se de ir chamar alguém, visto que ninguém
lhe aparecia para a tirar daquele aflitivo transe. Mas a casa que ficava mais
próxima era de Liberato, a qual distava, entretanto, pouco menos de
meio quarto de légua do lugar. Além disso, ela não queria
deixar o corpo de Florinda desacompanhado ainda que fosse por momentos quanto
mais por horas.

De uma vez correra ao longo da margem a ver se o céu lhe tinha enviado
algum protetor. Mas logo voltara, lembrando se de que o cadáver podia,
de um instante para o outro ser ofendido por algum animal.

Não, não, minha mãe ! exclamou ela. Não te deixarei,
haja o que houver.

Então ela vira que o cadáver erguera os braços para
conchegá la, ao que parecia, ao seu seio. A moça fizera conta
que estava sonhando e delirando, e que o movimento de Florinda fora como uma
ilusão dos olhos dela.

Abraça me, minha mãe, abraça me. Leva me contigo que
eu, sem ti, sou o ente mais desgraçado do mundo.

Mas, sentindo a pressão física e irrecusável dos braços
que tinha por mortos, recuou para a pálida claridade do escasso luar,
certificar se da verdade.

Não fujas, Luísa. Vem. Não estou morta. Ajuda me, que
me levantarei.

Não podia ser mentira dos seus ouvidos. Era a voz de Florinda, aquela
voz branda e benévola que ela estava acostumada a escutar desde a infância
como o eco de materna] providência.

Minha mãe ! Vive ainda, minha querida mãezinha? perguntara
Luísa, chorando e sorrindo alternativamente, beijando, como louca,
sem ordem nem moderação, aquele cadáver que se tornara
vivente, aquela vida que ressuscitara no seio da natureza onde lhe parecera
que se havia afundado para nunca mais voltar como se afundam as borboletas
que as tempestades arrojam aos charcos e marnéis.

Vê se podes levantar me, Luisinha.

Sim, saiamos já daqui antes que tornem os malfeitores. Eles não
tardam por aí, creio eu. Vamos já, minha mãe. Está
me parecendo que dali, daquele mato traiçoeiro, um homem nos acomete,
ou um tiro nos vem ferir.

Cambaleante e trôpega, Florinda dera o andar arrimando se no ombro
da filha.

Que tens, Luizinha, que olhas horrorizada para aquela banda ? Fez te algum
dano o assassino ?

Não, nada me fez. Mas eu tenho medo destes lugares. Nunca mais virei
buscar água aqui.

Conta me tudo, Luisinha. Como te livraste do malfeitor? Quem era ele? Não
o conheceste? Seria o Cabeleira ?

Não sei, minha mãe. Estava já tão escuro quando
ele apareceu… Sei porém, que ele se compadeceu de mim.

Estás dizendo a verdade, Luisinha ?

Sim, minha mãe, ele não me ofendeu. Dando mostras de estar
arrependido, fugiu logo depois, e não voltou mais.

Malvado ! ? disse Florinda. Que pancada me deu ele! Pôe a mão
em minha fonte. Vê como fiquei. Virgem Santíssima ! Não
sei como não me saltaram os miolos. Mas… ampara me bem, que
uma nova perturbação me vem tirar os sentidos. Ampara me, senão
caio. Não posso andar mais.

Temos de feito andado muito, minha mãe, e deve estar cansada.

Luísa, novamente aflita, volvendo os olhos em torno de si, viu, a
poucas braças, uma sombra imóvel que brilhou aos seus olhos
como um astro de proteção e conforto.

Estavam salvas. Era a casa de Liberato.

Capítulo VIII

A casa de Liberato estava situada dentro do cercado que, beirando o rio em
linha reta, de norte a sul, ia morrer na mata virgem, limite natural das terras
pertencentes à engenhoca. Era fraca de construção, mas
podia considerar se uma verdadeira casa de campo por sua bonita aparência,
pela vista que tinha para todos os lados, pelo alpendre circular e pelo meio
peitoril de madeira que não contribuía pouco para a sua rústica
elegância.

A pequena distancia tinham sido edificadas três casas menores e menos
vistosas do que a primeira. Em uma destas morava o genro, nas outras duas
os filhos do crioulo. Nos fundos do cercado via se outra casinha que na forma
arremedava a casa grande. Pertencia a Gabriel que, à sombra do irmão,
aí vivia com sua mulher e filhos, na paz do Senhor.

Sem ter escravos nem dispor de grandes meios pecuniários, com o auxílio
de Gabriel, Sebastião, Ricardo e Vicente, plantava canas, fazia roçados
e vazantes, e, no tempo próprio, fabricava açúcar e rapaduras,
desfilava aguardente, e desmanchava mandioca que lhe dava farinha para todo
o ano.

Viviam em perfeito acordo aquele pai, aquele irmão, aqueles filhos,
aquele genro, cada um com sua mulher e seus filhos, e todos dando os mais
bonitos exemplos, que se conhecem, de união, auxílio mútuo,
recíproco respeito e comum felicidade.

Na engenhoca ficaram todos ignorando o verdadeiro motivo da jornada à
mata. Liberato, para maior segurança dos seus desígnios, havia
recomendado aos companheiros o mais rigoroso segredo. E como tinham eles por
costume caçar pacas e tatus uma vez por outra,.quando fazia luar e
o tempo estava enxuto, não houve quem duvidasse da palavra dos caçadores.
Quando, porém, se soube do acontecido por boca de Luísa, e pelo
vestígio da atrocidade que Florinda trazia na face, a qual bem estava
dizendo donde havia procedido, a inquietação e o susto vieram
tomar o lugar ao sono e ao repouso a que se achavam entregues os habitantes
da engenhoca.

Raiou finalmente o dia longamente suspirado pelos que da meia noite até
o amanhecer não haviam tido olhos para dormir, mas para chorar.

O sol espargiu a luz suave sobre o sertão, e com ela despertou a natureza.
Inspirando as aves, colorindo os campos, e permitindo ver no espelho sereno
das águas do Tapacurá o belo céu que nele se refletia
com os seus esplêndidos matizes, essa luz vivificadora restituiu ao
deserto o movimento e a vida que as trevas tinham ocultado debaixo de seu
espesso véu.

Com a tornada do dia, ressurgiu em todos a confiança, só não
em Luísa, que via próximo o termo da vida de sua mãe
privada novamente do uso da fala por lhe haver voltado a congestão.

Chegou a hora do almoço, a do jantar, e finalmente escureceu de novo
sem que os caçadores houvesse volvido a seus lares. Então a
consternação tornou se geral e verdadeiramente cruel.

As famílias reuniram se todas na casa grande para se protegerem em
caso de perigo que logo tiveram por iminente.

Três dias se passaram nessa aflição que se não
pode descrever mas que facilmente se imagina.

Rosalina pensou de uma vez em ir pedir socorro no povoado, mas a quem ? O
capitão mor achava se no Recife, e o povoado, que um século
antes constava de uma capela dedicada a Santo Antão, e de meia dúzia
de casas, pouco mais era do que isto na época em que se passou esta
história; precisava também de proteção.

De sua agonia a veio tirar um caboclo velho, que morava no caminho do povoado,
em terras da engenhoca, e que era o estafeta do lugar. Vivia só em
uma palhoça à beira da estrada. Chamava se Matias mas era mais
conhecido pela alcunha de Veado, a qual se originara de ser ele muito ágil
e andador.

Matias, achando se sem fumo para o cachimbo, dirigiu se à casa grande
no pressuposto de encontrar aí o Liberato que uma vez por outra lhe
dava do melhor que tinha alguns pedaços para seu gasto. Só então
soube do que havia, e logo se ofereceu para ir dar com o crioulo a quem devia
muitas obrigações e respeito. Havendo Rosalinda aceitado o oferecimento,
Matias voltou à choupana a buscar uma espingarda velha, e um minuto
depois estava no rasto dos caçadores.

Antes de transpor os limites da fazenda, viu ele para as bandas do Monte
das Tabocas um bando de urubus esvoaçando como costumam quando sentem
carniça. Seria alguma rês morta o objeto da inspeção
dessas aves? Talvez fosse. A seca estava fazendo no gado vítimas aos
centos.

O Veado porém, naturalmente suspeitoso, acreditou logo que estava
ali o cadáver de Liberato ou de alguns dos seus.

Para ir ter à grota sobre a qual se libravam os urubus, não
era preciso entrar a mata, mas unicamente contorná la pelo lado oposto
ao rio. O terreno apresentava desse lado um vasto tabuleiro, e depois ia gradualmente
alteando até à grota, que se interpunha entre o tabuleiro e
a mata, formando um fosso natural que protegia o couto. Só quem tivesse
grande coragem, e fosse perfeito conhecedor dos acidentes do solo, se animaria
a arriscar o pé no profundo despenhadeiro.

Matias em pouco tempo atravessou toda a planície e chegou à
borda do abismo. Cheiro de carnes putrefatas feriu lhe logo o olfato agudíssimo
que sentia, à distancia, o quati, o veado, a anta, e até a cobra.

De cima nada pôde ver, porque do fundo do vale e das encostas da montanha
se levantava uma vegetação secular cuja folhagem basta e enredada
parecia destinada a conservar perpetuamente oculta às vistas do homem
a escusa região. O cheiro da carne corruta porém foi um indício,
um raio de luz para o índio que, havendo tomado a peito descobrir a
verdade, estava no propósito de não hesitar, para o conseguir,
diante da perda da própria vida.

A seus pés mostrava se um sulco deixado no terreno pelas águas
que, descendo ao longo do estreito espinhaço, aqui se escoavam para
o tabuleiro, ali para,dentro do precipício. Por ele se encaminhou Matias,
arrimando se na espingarda, e com ela rompendo a custo os cipós que
formavam diante de sua passagem uma rede quase inexplicável.

Passou se uma hora. O sol chegou ao poente. Veio o lusco fusco, e com ele
aumentaram as tristezas, os medos e as agonias das mulheres recolhidas na
casa grande.

Rosalina, tendo posto todos os cães da banda de fora, e fechado todas
as portas da casa, abriu o seu tosco oratório, e convidou as outras
ao terço tradicional, agora mais do que nunca necessário para
fortalecer os espíritos abatidos.

Florinda estava expirando. Ao lado dela achava se Luísa, desfeita
em lágrimas, e Aninha que ajudava a enferma a morrer. A porta do aposento
inteiramente aberta deixava ver as outras mulheres de joelhos na sala, aos
pés do oratório, cantando as rezas que constituem o terço,
essa parte do culto externo que, depois de longamente usada em quase todo
o Norte, desapareceu das capitais, e já não tem no próprio
interior das províncias a prática geral a que em grande parte
se deve referir o adoçamento dos costumes dessas povoações
antes de haverem sido dotadas com as escolas e com os institutos de educação
que atualmente as disputam à ignorância com mais vigor e proveito.

De súbito o ladrar dos cães veio interromper o concerto das
vozes femininas que enchiam o âmbito da sala, e iam repercurtir no vasto
pátio. O ladrar aumentou, e com ele tornou se mais distinto, mais próximo,
ao princípio um estrupido de passos, depois um ruído de vozes
surdas do lado de fora da habitação.

Nesta a alegria e a aflição, a primeira quando se lhes afigurou
que os caçadores chegavam, a segunda quando, em lugar destes, pensavam
serem os malfeitores que as vinham assaltar, disputaram um instante em violenta
porfia os espíritos das pobres mulheres naturalmente expostas, pelas
suas circunstâncias especiais, a estas cruéis alternativas.

Depressa porém se dissiparam todas as dúvidas. Com fúria
indômita, os cães deram mostras de querer despedaçar os
visitantes. Semelhante indício foi uma prova evidente de que, não
de casa, mas estranhos eram estes.

De repente ouviu se uma voz que, ecoando no terreiro, veio ressoar dentro
de casa:

Aqui estou. Sou eu.

Era a voz de Matias.

Rosalina, ébria de violenta alegria, correu à porta para a
abrir, mas logo sobresteve a este novo falar do caboclo:

Não digo, não digo isto, ainda que me matem.

Dize que abre a porta, senão te varo com esta faca, Veado do demo
disse Joaquim a meia voz.

Não digo repetiu o caboclo.

E alteando a voz, trêmula e como abafada, gritou com toda a força
que pôde:

Não abram, não abram. Eu trouxe os malvados enganados até
aqui para poder avisá la, sinhá Rosalina. Liberato, Ricardo,
Sebastião e Vicente são com Deus. Fujam, se podem, que eu sei
que morro.

Ah ! miserável, que nos iludiste vociferou Joaquim.

E com a faca atravessou incontinenti o coração de Matias que,
sem soltar um ai, caiu envolto em um turbilhão de sangue.

Não é sem grande constrangimento, leitor, que a minha pena,
molhada em tinta, graças a Deus, e não em sangue, descreve cenas
de estranho canibalismo como as que nesta história se lêem. Aperta
me naturalmente o coração sempre que me vejo obrigado a relatá
las. Entre os motivos da minha repugnância e da minha tristeza sobressai
o seguinte: Eu vejo nestes horrores e desgraças a prova, infelizmente
irrecusável, de que o ente por excelência, a criatura fadada,
como nenhuma outra, para altíssimos fins, pode cair na abjeção
mais profunda, se o afastam dos seus sumos destinos circunstâncias de
tempo e lugar que, nada, ou muito pouco valendo por si mesmas, são
de grande peso para a perturbação do equilíbrio moral
do rei da criação, tal é a fragilidade da realeza, ou
antes das realezas humanas. Mas desgraçadamente estas cenas não
são geradas pela minha fantasia. São fatos acontecidos há
pouco mais de um século. Se só alguns deles foram recolhidos
pela história, quase todos pertencem à tradição
que nô los legou, antes como límpido espelho, que como tenebrosa
notícia do passado. Não estou imaginando, estou, sim, recordando;
e recordar é instruir, e quase sempre moralizar. Com estas razões
considero me justificado aos teus olhos, leitor benévolo.

Gritos, queixumes, imprecações e prantos que nenhuma pena humana
pode descrever seguiram se, de dentro da casa, às últimas palavras
do Veado.

Teresa, mulher de Vicente, abraçou se com Rosalina, menos madrasta
do que mãe, e começou a carpir com ela a desgraça comum,
dando mostras de ter enlouquecido. Não se demoraram a imitá
las nas demonstrações de dor e desespero Josefa, mulher de Ricardo,
e Candida, mulher de Sebastião.

Da sua angústia, para a qual será difícil encontrar
paralelo na história das desgraças humanas, vieram tirá
las uma fortíssima pancada contra a porta, e estas formais palavras
de Joaquim:

Se não abrem por bem, hão de abrir por mal.

Quando for tempo de tocar fogo na capuaba, é só dizer, Joaquim
acrescentou Manuel Corisco.

Querem queimar a casa, Rosalinda disse Candida Estamos perdidas, minha gente.
Meu Deus, meu Deus, socorrei nos.

Rosalina poderia ter vinte anos. Suas formas eram arredondadas, os cabelos
crespos e negros, os olhos admiravelmente fendidos, a boca impossível
de descrever se, porque exprimia graça, volúpia soberba e desdém
ao mesmo tempo. Era o tipo da mulata ardente, caprichosa, cheia de vivacidade
e energia, tipo que está destinado a desaparecer dentre nós
com o correr dos anos, mas que há de ser sempre objeto de tradições
muito especiais no seio da sociedade brasileira, pelo muito que tem figurado
no campo, na cidade e no lar.

Sim, querem tocar fogo na casa para nos obrigarem a sair. Mas não
sairemos disse Rosalina com firmeza.

E acrescentou sem demora:

Sair para onde ? Os nossos maridos desapareceram para sempre dentre os nossos
braços. Não temos mais quem olhe por nós neste mundo
de amarguras e misérias. Somos cinco desgraçadas a quem a vida
já não pode oferecer prazer nem sossego, mas só desgostos
e lágrimas. Não, Candida, não sairemos daqui.

Mas que faremos, Rosalina ?

Que faremos ! Pois você ainda pergunta ?

Sim, porque os malvados estão aí, e é tempo de tomarmos
a nossa resolução. Está tomada respondeu Rosalina. Morreremos,
e não nos entregaremos aos malvados.

Meu Deus ! meu Deus ! exclamou Teresa.

Não, não, Rosalina acrescentou Josefa. Vamos ver se nos salvamos.

Se nos salvamos !… disse a mulata com ironia e desdém. Não
ouves os malfeitores bateram na porta ?

Mas então… balbuciou Teresa.

Morreremos todas, Teresa, morreremos todas, mas com honra, ao pé
deste oratório gritou Rosalina com tal energia e decisão que
nenhuma das outras se animou a proferir uma palavra sequer contra a sua sentença
de morte.

Para dar o exemplo, a mulata caiu de joelhos diante do santuário,
tendo no rosto a serenidade que faz belos o venerandos os mártires,
os verdadeiros mártires.

Teresa foi a primeira que imitou sua madrasta, e as outras não se
demoraram a acompanhar Teresa. Quem poderia resistir à heróica
decisão de Rosalina inspirada no sentimento da honra, e na oração
?

Abrem, ou não abrem ? perguntou nesse ínterim de fora Joaquim
impaciente.

A resposta que a esta pergunta deram as mulheres foi o continuarem o terço
alguns minutos antes interrompido, resposta que há de perdurar nas
tradições populares, como um traço característico
da firmeza e do valor das gentes do Norte naqueles tempos de grandeza de animo
que raro aparece hoje.

Ah ! estão rezando. Fogo, Manuel Corisco. fogo, Mulatinho, fogo,
Trovão !

De repente um clarão afogueado inundou o terreiro, e indicou que a
ordem do capitão do bando ia ser prontamente executada.

Depressa, depressa gritou Joaquim.

Enquanto o diabo esfrega um olho, o mocambo fica torrado, e as caiporinhas
são nossas respondeu José Trovão, chegando a chama do
seu facho a um montão de cangalhas, tripeças, gamelas e outros
objetos encontrados no alpendre, e que ele havia apinhado de propósito,
para servirem de combustíveis, ao pé das quatro janelas da casa.

Esta operação reproduziu se na porta fronteira, nas portas
e janelas laterais, no peitoril de madeira e nas toscas colunas que sustentavam
de espaço a espaço o telheiro do alpendre.

Quando o espírito racional ultrapassa os limites que o separam dos
instintos da fera; quando o homem deixa atrás de si, na sua marcha
descendente, o animal cerval que bebe o sangue por natural fatalidade a que
não pode resistir, não raro figura de protagonista de dramas
que, como este, enlutam a história e envergonham a humanidade.

A porta principal tinha sido respeitada. Diante dela estendeu se E,elo chão,
formando se em semicírculo, o bando dos salteadores, os quais ao espetáculo
das chamas que do peitoril passando às paredes e destas à coberta,
envolveram em poucos momentos a casa e formaram uma só chama, uma fogueira,
única, gigantesca e medonha, só tinham infames graçolas
e indecentes insultos para as vítimas. Sujos, maltrapilhos, nas mãos
as facas nuas e os bacamartes sinistros, semelhavam, ao clarão da fogueira
imensa, uma legião de demônios que só as crepitantes labaredas
separavam dos anjos.

Quando se resolverem a não morrer assadas na coivara, como lagartixas,
abram a porta e saiam sem susto que não havemos de brigar disse Joaquim.

O estalido da madeira, do barro, das telhas abafou em poucos momentos as
vozes das mulheres.

Que fazem, que não saem logo ? perguntou o Mulatinho depois de alguns
minutos de espera infrutífera.

Venham para fora, raparigas acrescentou o Trovão.

Ainda bem não tinha preferido estas palavras, quando a frente da casa
vinha abaixo, atirando torrões abrasados contra as feras que, afrontando
o pudor com expressões obscenas, assistiam, ébrios de ferocidade,
à medonha representação.

Parece me que as caiporinhas se escaparam disse Joaquim.

A esta voz todos os malfeitores correram à porta principal sobre cujos
portais descansavam uns restos de caibros incendiados.

Descarregando então os coices dos bacamartes sobre a porta, fizeram
na em pedaços, e invadiram o estreito espaço aonde as chamas
ainda não haviam chegado.

Ao mesmo tempo um grito, a que melhor se chamara o eco de uma angústia
longamente recalcada e de súbito desprendida, dominando o estrondear
do incêndio, veio ressoar no pátio.

Minha mãe, minha mãe não morrerá no fogo !

Então viu se uma cena horrivelmente bela. Luísa, saltando por
cima da caliça e dos enxaiméis abrasados, ganhava o pátio
com Florinda nas costas, semelhando uma visão ígnea, fantástica
e sobrenatural.

Os malvados, sem se podarem governar, voltaram um passo atrás, não
tanto pela estranha e fugitiva aparição, como principalmente
por verem no lugar ocupado, havia pouco, por aquelas contra cujo pudor a sua
brutal concupiscência se aguçava, pequenos troncos carbonizados
em torno da mesa sobre a qual ardia nesse momento última imagem.

Diabo ! bradaram com raiva concentrada os algozes, mais dignos de compaixão
do que as vítimas.

Todas mortas ! acrescentou o Mulatinho com uns longes de pesar que acusava
a malograda e lasciva esperança.

Só nos resta uma disse o Trovão, correndo em busca de Luísa,
que havia caído quase sem sentidos no terreiro junto ao cadáver
de Matias.

Cá está ela. São duas, são duas.

Esta é minha exclamou o Trovão, acercando se de Florinda para
assenhorear se dela.

Trovão do diabo ! exclamou o Mulatinho com indescritível expressão.
Não vês que é uma defunta.

Florinda estava na realidade morta.

Resta me a outra.

A outra ? Não vês que o Joaquim já a tem em seus braços
?

Há de ser minha, custe o que custar redarguiu o negro.

A outra é minha disse um terceiro a cuja voz estremeceram irresistivelmente
os dois bandidos.

Era o Cabeleira.

A casa de Liberato estava situada dentro do cercado que, beirando o rio em
linha reta, de norte a sul, ia morrer na mata virgem, limite natural das terras
pertencentes à engenhoca. Era fraca de construção, mas
podia considerar se uma verdadeira casa de campo por sua bonita aparência,
pela vista que tinha para todos os lados, pelo alpendre circular e pelo meio
peitoril de madeira que não contribuía pouco para a sua rústica
elegância.

A pequena distancia tinham sido edificadas três casas menores e menos
vistosas do que a primeira. Em uma destas morava o genro, nas outras duas
os filhos do crioulo. Nos fundos do cercado via se outra casinha que na forma
arremedava a casa grande. Pertencia a Gabriel que, à sombra do irmão,
aí vivia com sua mulher e filhos, na paz do Senhor.

Sem ter escravos nem dispor de grandes meios pecuniários, com o auxílio
de Gabriel, Sebastião, Ricardo e Vicente, plantava canas, fazia roçados
e vazantes, e, no tempo próprio, fabricava açúcar e rapaduras,
desfilava aguardente, e desmanchava mandioca que lhe dava farinha para todo
o ano.

Viviam em perfeito acordo aquele pai, aquele irmão, aqueles filhos,
aquele genro, cada um com sua mulher e seus filhos, e todos dando os mais
bonitos exemplos, que se conhecem, de união, auxílio mútuo,
recíproco respeito e comum felicidade.

Na engenhoca ficaram todos ignorando o verdadeiro motivo da jornada à
mata. Liberato, para maior segurança dos seus desígnios, havia
recomendado aos companheiros o mais rigoroso segredo. E como tinham eles por
costume caçar pacas e tatus uma vez por outra,.quando fazia luar e
o tempo estava enxuto, não houve quem duvidasse da palavra dos caçadores.
Quando, porém, se soube do acontecido por boca de Luísa, e pelo
vestígio da atrocidade que Florinda trazia na face, a qual bem estava
dizendo donde havia procedido, a inquietação e o susto vieram
tomar o lugar ao sono e ao repouso a que se achavam entregues os habitantes
da engenhoca.

Raiou finalmente o dia longamente suspirado pelos que da meia noite até
o amanhecer não haviam tido olhos para dormir, mas para chorar.

O sol espargiu a luz suave sobre o sertão, e com ela despertou a natureza.
Inspirando as aves, colorindo os campos, e permitindo ver no espelho sereno
das águas do Tapacurá o belo céu que nele se refletia
com os seus esplêndidos matizes, essa luz vivificadora restituiu ao
deserto o movimento e a vida que as trevas tinham ocultado debaixo de seu
espesso véu.

Com a tornada do dia, ressurgiu em todos a confiança, só não
em Luísa, que via próximo o termo da vida de sua mãe
privada novamente do uso da fala por lhe haver voltado a congestão.

Chegou a hora do almoço, a do jantar, e finalmente escureceu de novo
sem que os caçadores houvesse volvido a seus lares. Então a
consternação tornou se geral e verdadeiramente cruel.

As famílias reuniram se todas na casa grande para se protegerem em
caso de perigo que logo tiveram por iminente.

Três dias se passaram nessa aflição que se não
pode descrever mas que facilmente se imagina.

Rosalina pensou de uma vez em ir pedir socorro no povoado, mas a quem ? O
capitão mor achava se no Recife, e o povoado, que um século
antes constava de uma capela dedicada a Santo Antão, e de meia dúzia
de casas, pouco mais era do que isto na época em que se passou esta
história; preciepresentação.

Parece me que as caiporinhas se escaparam disse Joaquim.

A esta voz todos os malfeitores correram à porta principal sobre cujos
portais descansavam uns restos de caibros incendiados.

Descarregando então os coices dos bacamartes sobre a porta, fizeram
na em pedaços, e invadiram o estreito espaço aonde as chamas
ainda não haviam chegado.

Ao mesmo tempo um grito, a que melhor se chamara o eco de uma angústia
longamente recalcada e de súbito desprendida, dominando o estrondear
do incêndio, veio ressoar no pátio.

Minha mãe, minha mãe não morrerá no fogo !

Então viu se uma cena horrivelmente bela. Luísa, saltando por
cima da caliça e dos enxaiméis abrasados, ganhava o pátio
com Florinda nas costas, semelhando uma visão ígnea, fantástica
e sobrenatural.

Os malvados, sem se podarem governar, voltaram um passo atrás, não
tanto pela estranha e fugitiva aparição, como principalmente
por verem no lugar ocupado, havia pouco, por aquelas contra cujo pudor a sua
brutal concupiscência se aguçava, pequenos troncos carbonizados
em torno da mesa sobre a qual ardia nesse momento última imagem.

Diabo ! bradaram com raiva concentrada os algozes, mais dignos de compaixão
do que as vítimas.

Todas mortas ! acrescentou o Mulatinho com uns longes de pesar que acusava
a malograda e lasciva esperança.

Só nos resta uma disse o Trovão, correndo em busca de Luísa,
que havia caído quase sem sentidos no terreiro junto ao cadáver
de Matias.

Cá está ela. São duas, são duas.

Esta é minha exclamou o Trovão, acercando se de Florinda para
assenhorear se dela.

Trovão do diabo ! exclamou o Mulatinho com indescritível expressão.
Não vês que é uma defunta.

Florinda estava na realidade morta.

Resta me a outra.

A outra ? Não vês que o Joaquim já a tem em seus braços
?

Há de ser minha, custe o que custar redarguiu o negro.

A outra é minha disse um terceiro a cuja voz estremeceram irresistivelmente
os dois bandidos.

Era o Cabeleira.

CapÍtulo IX

Profunda revolução se havia operado durante uma noite no íntimo
do bandido.

Quando ele chegou ao couto, estava já resolvido o assalto à
família de Liberato, a qual por se achar mais próxima do que
qualquer outra, estava no caso de merecer as honras da prioridade na provação.

Cabeleira não deu mostras de que aprovava, ou reprovava semelhante
resolução.

Seu animo, ordinariamente prestes para toda sorte de temeridades e investidas,
mostrava se agora frio diante do assentado acometimento. Viração
suavíssima passara por cima do férvido charco das suas paixões,
e deixara, se não purificadas, decerto quietas as águas que
aí se enovelavam turvas e lodosas. Essas águas nunca jamais
viriam a ter a limpidez do regato que se desliza em manhã de verão,
por cima de prateadas areias; podiam, porém, perder o lodo e os vermes
que se geram e alimentam em pútridos pântanos; podiam tornar
se mansas, como as dos lagos, azuis como as dos golfos.

A princípio os companheiros do bandido atribuíram o seu silêncio,
a sua tristeza e a sua abstração aos ferimentos recebidos na
luta.

Mas mudaram de opinião tanto que o viram pegar da viola, seu instrumento
querido que, não só a ele, mas também a todos os do couto
proporcionava, nas mãos do inspirado tocador’ momentos de prazer e
consolação.

Era de tarde. Os bandidos tomaram por uma vereda que ia ter à borda
da grota aonde chegava levemente a aragem do tabuleiro, donde se descortinava
o vasto sertão opresso e abrasado.

Aos sons da viola puseram se uns a cantar, outros a dançar, como brincam
saltando as crianças nas campinas.

De repente Manuel Corisco fez sinal para que se calassem.

Estou vendo ali embaixo um homem que vem na direção da grata
disse ele aos camaradas.

Você não se engana, Manuel. Ele vem tomando chegada tão
gacheiro e amedrontado, que não pode ser amigo nosso.

Os salteadores tinham razão, porque o desconhecido era Matias.

Um deles quis imediatamente estendê lo por terra com um tiro do seu
bacamarte. Assentaram porém ocultar se a fim de verem primeiramente
o que pretendia.

Quando Matias desapareceu por um lado, segundo já dissemos, os malfeitores
sumiram se pelo lado oposto, pé ante pé, na embocadura do profundo
abismo.

Tinha o Cabeleira avançado já alguns passos após os
companheiros, quando uma idéia súbita, atuando sobre sua vontade
por modo irresistível, o fez sobressaltar se. Ele se lembrara de que
se os companheiros conseguissem apoderar se do desconhecido, não o
deixariam com vida. Mas o bandido sentia se naquele momento tão pouco
disposto a contribuir para a morte de um homem que não pode acabar
consigo que voltasse à beira da grota

Se eu quisesse, esse desconhecido não morreria disse de si para si.
Mas não. Se não vou ajudar os outros a lhe tirarem a vida, também
não o irei salvar.

O lodo tinha já desaparecido da superfície do charco imundo
que ele trazia no coração; restava, porém, ainda no fundo,
como se vê a vasa corruta e pestilencial.

Para que Matias declarasse o fim que o levava àquele ponto, preciso
foi primeiro que o ligassem com cipós a um tronco, e batessem nele
sem piedade. Suplício atroz e cobarde que o índio sofreu com
estóica resignação característica de sua raça.

Então dizes, ou não dizes a que vieste, Veado do inferno ?
perguntara Joaquim.

Vim em procura daqueles que ali estão para os urubus comerem respondera
o velho.

Até que enfim deste com a língua nos dentes.

Quiseste primeiramente provar o cipó de rego.

Mas não nos dirás quem foi que te mandou a isso ?

Quem me mandou ! Tive pena dequelas mulheres que choravam por seus maridos,
e larguei me a ver se os encontrava.

Tiveste pena das mulheres, hein ? Maganão! Havemos de lá ir
hoje de noite para também termos pena como tu tiveste.

Elas não serão tolas que apareçam a qualquer que lá
chegue retorquiu Matias com segunda tenção.

Mas a ti abriram elas a porta, velho mandigueiro.

Para mim hão de ter sempre franca a sua casa, porque sabem que eu
sou incapaz de as ofender.

Então, se lá formos, não nos deixarão entrar
? perguntou Joaquim.

Matias, depois de um momento de reflexão, respondeu:

Só se forem comigo.

Pois está dito. Iremos contigo disse o Mulatinho.

Mas tu irás amarrado, bem amarrado, jia de lagoa acrescentou José
Trovão.

Como quiserem, contanto que ão me matem no caminho.

Se nos facilitares a entrada, podes ter por certo que não haverá
quem se atreva a tocar te em um cabelo sequer. Bem sabes que não precisamos
do auxílio de pessoa alguma para tomarmos conta de uma casa onde só
há mulheres choronas observou Joaquim. Mas sempre é melhor entrar
sem fazer barulho para não dar que falar à vizinhança.

Era quase noite, e já a lua espargia a luz suave por sobre a solidão,
quando se acharam novamente na beira do despenhadeiro. Segundo um plano assentado
entre eles, quatro seguiram com Matias pelo lado por onde havia descido, enquanto
os outros, subindo pelo lado oposto, se dirigiram ao esconderijo a fim de
se proverem dos instrumentos necessários para o assalto. Os primeiros
esperariam pelos últimos na boca da mata para, reunidos, seguirem a
seu destino.

No momento em que os malfeitores tomaram a direção da engenhoca,
um cavaleiro, que entrara na mata por secretos atalhos, fora dar com o Cabeleira
em seu retiro. Era o Teodósio.

Arrumem as trouxas, e mudem de acampamento.

Foram estas as suas primeiras palavras.

Donde vens tu ? Que diabo tens, Teodósio ?

Vem aí soldados que nem terra.

Quem te contou semelhante coisa ?

Eu que sei. O governador está comendo fogo pelo que fizemos na noite
da procissão.

Ora !… Pois que venham. Hão de saber para quanto presto. Nunca
torci a cara a homem nenhum, e não morro de careta, como sagüi.

Eu também não tenho medo deles disse o cabra. Mas é
bom a gente estar prevenido para não cair no mundéu como bicho
do mato.

O Teodósio unicamente suspeitava o que dizia estar para acontecer.
Fino, matreiro, como era, facilmente previra que não ficaria sem punição
o crime que haviam eles cometido na vila.

Ora, Teodósio ! redargüiu José com mostras de fazer pouco
do que lhe dizia o camarada. Eu, por ser bicho do mato, é que não
hei de cair no mundéu. Olha tu: enquanto houver mata virgem por esse
mundão de meu Deus, podem eles mandar contra mim os soldados que quiserem,
que não me apanham, ainda que sejam tantos como formigas. Não
me hão de ver nem a fumaça.

Não digo menos disso respondeu Teodósio.

Eu sou cabra mesmo danado prosseguiu Cabeleira. Quem se engana comigo é
porque quer. Meto a unha no chão, e entro nooco do mundo para nunca
mais ninguém me por o olho em cima. As matas de Serinhaém, Água
Preta, Goitá, Goiana, Paraíba, Rio Grande aí estão
bem fresquinhas para esconderem em seu seio a onça pintada. É:
bom que não me assanhem. Se o governador duvidar do meu sério,
sou capaz de me largar daqui, pi,pi, até à vila, e lá
mesmo vou mostrar lhe com quantos paus se faz jangada.

Pois afia bem a tua faca, e escorva de novo o teu bacamarte, que o trovão
não tarda a roncar. Eu nunca deixei de trazer a faca e o bacamarte
prontinhos para o serviço. Quem quiser, venha ver.

Está bom. Até já disse o Teodósio, despedindo
se para sair.

Aonde vais ? perguntou lhe o Cabeleira.

Tenho cá uma idéia. Vou passar pela porta do capitão
mor.

O capitão mor está na vila ? disse José.

Não, senhor, está aí. Veio antes de mim, que não
me escapou. Vou passar me pela porta, e tirar conversa com algum soldado bisonho
que aí se ache de serviço a fim dever se pesco notícia
que nos oriente.

Não é mau o que queres fazer. Mas, olha bem, não caias
em alguma ratoeira.

Macaco velho não mete mão em cumbuca respondeu Teodósio,
preparando se para montar novamente.

Faço te companhia até o cercado da engenhoca do defunto Liberato
acudiu o Cabeleira.

E saltou sobre a garupa do cavalo que Teodósio pôs a passo pela
vereda secreta que ia dar na via pública.

Uê ! exclamou Teodósio, voltando se para o companheiro a fim
de melhor saber dele a verdade. Pois morreu o Liberato, tão amigo nosso,
que nunca nos faltou com jerimum, canas e criação ?

Ele era camarada, é verdade. Mas meteu lhe na cabeça que havia
de tirar nos o couro, e há três dias veio bulir conosco.

Que estás dizendo ?

Não só ele, mas também os filhos e o bom do genro.

Foi a sua derradeira deles, hein ?

É verdade. O Zé Rufino, que o negro fora convidar para o ajudar
na tragédia que tinha ideado contra nós, correu logo a dar nos
parte de tudo ainda em tempo. Quando os cabras apareceram, encontraram gente.
Fizemos o bonito em poucas horas. Estão todos dentro do grotão.

E que vais tu ver à engenhoca ?

Vou reunir me com os outros que lá estão fazendo uma das suas.
Mas onde arranjaste tu este quartau passeiro e passarinheiro que se vai derretendo
na estrada depois da grande caminhada que traz da vila ?

Falta aí engenho onde se vá buscar um animalzinho fora de
horas para a gente fazer sua viagem? Pois então vai logo pondo de olho
alguns outros para fazermos a nossa mudança se a tropa vier perseguiu
nos.

Amanhã pela manhã teremos um lote, e poderemos meter terra
em meio antes que o tropão bata por cá.

Tinham deixado a vereda e achando se já na estrada que, fazendo pouco
adiante um ângulo, seguia em linha mais ou menos reta até o povoado.

Ao passarem por baixo de uma pitombeira que no ângulo apontado agitava
no ar a sua copa gigantesca, súbito ruído espantou o cavalo
que por um triz não tirou o cabresto da mão do Teodósio.
Com o violento arranco, partiu se a cilha da cangalha, e os dois cavaleiros
vieram à terra.

Diabo ! exclamou o Teodósio contrariado e perturbado. Foi alguma
coruja que abalou da pitombeira.

Não se havia partido só a cilha, mas também a armação
da cangalha.

Sabes que mais, Teodósio ? Acho melhor que não vás
ao povoado.

Por que não ?

A cilha partida, a cangalha arrebentada, tudo me parece aviso para que não
faças a viagem disse o Cabeleira.

Estou já em outro acordo. Deixo te o cavalo e vou a pé. Este
cavalo é que me está encaiporando.

Enquanto o Teodósio seguia pela beira do rio, o Cabeleira, que havia
tomado a direção da engenhoca, dava a volta do caminho, e descobria
a casa envolta em chamas cujo clarão sinistro iluminava a estendida
solidão. Em breves instantes achava se entre os companheiros, e cortava,
como vimos" a porfia do Trovão e do Mulatinho sobre a posse de
Luísa.

Luisinha ! exclamou o bandido. Tu me pertences.

Que dizes, Zé Gomes ? interrogou Joaquim sem poder bem compreender
o que ouvirá ao filho, que lhe pareceu alucinado.

Digo o que é. Houve tempo em que juramos, eu e ela, pertencer nos
na mocidade. Chegou a ocasião.

Atreves te a falar me em juramento ! Não sabes o que estás
dizendo. Esta mulher é minha, e quem for homem que se meta a vir tomar
ma.

Ainda bem não havia proferido estas palavras quando o Cabeleira puxava
da faca dando mostras de querer ferir com ela o seu interlocutor.

Zé Gomes, olha bem o que dizes ! redargüiu Joaquim. Teu pai
?

Não tenho pai; só tenho mãe que me ensinou o caminho
do bem; pai nunca tive nem tenho. Não é meu pai aquele que só
me ensinou a roubar e a matar.

Zé Gomes, olha bem o que dizes! redargüiu Joaquim, medindo o
filho com olhar ameaçador e terrível.

Já lhe disse retorquiu o mancebo sobreexcitado pela oposição
do velho, ao qual se atirou com fúria brutal para lhe arrancar das
mãos os pulsos de Luísa. afogada em prantos e soluços.

Joaquim resistiu. Outros malfeitores reuniram se em torno daquelas duas hienas
que ameaçavam despedaçar se mutuamente. Mas não houve
um só dentre tantos que tentasse compor os discordes.

Cabeleira brandiu enfim a faca contra o velho.

Neste momento voz chorosa e soluçada ressoou na solidão. Foi
a voz de Luísa.

Cabeleira disse ela , terás animo para ferir teu pai ?!

O braço do bandido descaiu incontinente como se aquela voz lhe tivesse
cortado os músculos atléticos.

Meu pai! exclamou o desgraçado. Um pai não toma a mulher de
seu filho. Mas já que o queres, fica te com ela acrescentou voltando
se para Joaquim. Cabeleira vai desaparecer para sempre, e sem o seu auxílio
hão de cair nas mãos da justiça todos os que me cercam.
A tropa aí vem.

A tropa ! gritaram os malfeitores sobressaltados, olhando uns para os outros,
e todos para a solidão que, ao declinar do incêndio, retomava
seu aspecto equívoco e medonho.

Tendo assim falado, Cabeleira deu o andar na direção da estrada.
Seu espírito estava abatido, seu coração despedaçado
pelo golpe cruel que lhe havia vibrado a desgraça.

Então Luísa, vendo assim perdido o último raio de esperança,
que ainda a guiava no meio das trevas do seu infortúnio, exclamou:

Meu Deus, meu Deus, que será de mim ?

Joaquim entretanto tinha se atravessado diante do Cabeleira. Todo assassino
é cobarde.

Por que nos queres deixar ? perguntou ele ao filho. No momento em que mais
precisamos de ti, é que tu nos desamparas ? Não sejas mau, Zé
Gomes. Eu te perdôo a desobediência, e te restituo a mulher. Fujamos
todos.

Cabeleira atirou se a Luísa, e tomou a nos braços com frenesi
de alucinado.

Volvendo um instante depois os olhos ao redor, não viu um só
sequer dos companheiros. Penetrados de pânico terror, todos tinham corrido,
sem exceção de Joaquim, a ocultar se na mata.

Vamos, Luisinha disse o bandido à moça, com ternura. Ninguém
a ofenderá, ninguém.

E minha mãe ?! soluçou Luísa caindo, que a eternidade
se ia meter entre ela e Florinda, e que sobre a terra estava tudo acabado
para ela.

O bandido conchegou a ao peito e abafou lhe as últimas palavras com
um beijo.

CapÍtulo X

Que valeu a Luísa ter-se libertado das mãos de Joaquim, se
o Cabeleira a prendia em seus braços possantes e atléticos ?

Solte-me, solte-me disse a moça ao bandido.

Quer ficar aqui ? Não a deixarei só.

Não se importe comigo. Siga seu pai, que eu irei para minha casa.
Não preciso da companhia de ninguém.

Com esforços sobre humanos Luísa tentou libertar-se das suas
prisões. Foram inúteis esses esforços.

Se não me soltar, há de ver-me cair morta a seus pés.

Ela tinha podido apoderar-se do facão do malfeitor, e o voltava contra
si mesma.

O Cabeleira parou, e soltou-a.

Que pretende você fazer, Luisinha? Não tem pai, não
tem mãe, não tem quem por si olhe. Para onde quer ir ?

Quero matar-me aos pés de minha mãe.

Isso nunca.

Sem esforço nem luta ele a desarmou em um momento.

Depois perguntou, com a voz mais branda do mundo:

Matar-se por que, Luisinha ? Não se lembra que me prometeu ser minha
mulher quando um dia nos encontrássemos ?

Eu fiz esta promessa com uma condição, que você não
cumpriu.

Pois bem. Estou pronto a cumpri-la agora tornou ele com ternura.

Quer enganar-me, José ? Para que eu acreditasse em suas palavras
fora preciso não o ter visto levantar há pouco a faca para seu
pai.

É verdade; assim foi. Eu estava fora de mim respondeu com ar pesaroso
que indicava remorso, vergonha e arrependimento do feio ato que tinha praticado.
Mas que importa isso ? continuou ele. O tanto matar já me aborrece,
e eu quero mudar de vida.

Não creio, não posso crer no que você diz observou Luísa.

Nem se eu jurar ?

Eu sei !…

Que razão tem para duvidar tanto de mim, Luisinha ? Estou vendo que
você nunca me quis bem.

Eu é que posso dizer isso de você.

Se eu não lhe quisesse bem, não a tinha deixado livre como
está. Se eu só a quisesse lograr como fazem com as outras, quem
me poderia impedir de realizar a minha vontade ? Ninguém.

Podia, e pode ainda matar-me, mas fazer isso, nunca, nunca. Só depois
de me haver tirado a vida.

Como se engana ! Assim o quisesse eu; mas não quero. Eu sei que você
me quer bem, e por isso não me vexo nem apresso.

Com os braços trêmulos o Cabeleira apertou Luísa novamente
contra o peito onde lhe ardia o coração em chamas de entranhado
amor.

Deixe-me, José. Aquela que você ofendeu, aquela que você
arrancou dentre os meus braços, dali o está vendo e amaldiçoando.

Perdoe-me, não me odeie, Luisinha, por sua bondade, e pelo muito
que nos queremos nos primeiros anos. Se eu a privei de sua mãe, estou
pronto a protegê-la de agora por diante. Pelo corpo de sua mãe,
juro que farei isso, Luisinha.

Jurará também que não há de tirar mais a vida
de ninguém, ainda que seja de um passarinho ?

O bandido refletiu um momento.

E se me quiserem matar ? perguntou depois.

Fugirá respondeu Luísa.

E se não puder fugir?

Eu quero que você jure, Cabeleira, que em caso nenhum derramará
mais sangue sobre a terra, ouviu ? Se não for assim, tudo estará
acabado entre nós.

Pois bem, Luisinha. Eu juro. O malvado será de hoje em diante homem
de bem.

Luísa fitou-o como um anjo deve fitar um demônio que promete
ser anjo. O Cabeleira, porém, não lhe deu tempo para grande
contemplação, porque de chofre a tomou pela terceira vez nos
braços febris, e desapareceu com ela no meio da escuridão.

Saltar ao cavalo, vencer o vasto pátio, galgar a cerca, e, em vez
de ir em demanda da mata, voltar ao rio e descer pela margem esquerda na direção
do norte, foi obra de um instante para o destemido sicário. Luísa
deixou-se conduzir em silêncio ao meio do fatal desconhecido.

Ainda bem não tinham vencido uma milha na veloz corrida, quando o
Cabeleira descobria uma cinta escura que se desenhava e movia, como nuvem
de tormenta, no confuso horizonte. Seu primeiro cuidado, ao ver aquela visão
aterradora, foi afastar-se da margem, e meter-se em um alagadiço que
ficava a alguma distancia do rio. Com a grande seca o brejo estava em pó,
e a poderosa vegetação aquática reduzida a raras touças
que mal encobriam uma pessoa sentada.

Esperemos aqui, Luisinha, que passe a tropa que vai para o povoado.

Luísa conheceu que estavam em perigo, e não fez a menor oposição.
Atravessando o cavalo diante de si, acomodaram-se ambos de pé, do melhor
modo que puderam, Luísa a rezar como costumava nos momentos arriscados,
Cabeleira observando em profundo silêncio, através da escuridão
da noite, a mata que aparecia, como gigantesca e estendida mole, do lado oposto
da planície deserta e medonha.

O mancebo não se enganara. Era de feito uma tropa que vinha em busca
dos salteadores.

Os pelotões encaminharam-se para as embocaduras das veredas. Não
havia mais que duvidar. O segredo da encoberta estava no poder da justiça.

Estão perdidos disse o Cabeleira comovido. Se foram tomadas as saídas
que ficam do lado do poente, nenhum se salvará.

Como impelido por força irresistível, o Cabeleira deu o andar
para o mato.

Que vai você fazer? perguntou-lhe a moça com inquietação,
atravessando-se na frente dele.

Não se assuste, Luisinha. Vou defendê-los.

Diga antes que vai morrer.

Não, o que eu vou fazer é matar gente sem piedade acudiu o
bandido.

Matar gente ! repetiu Luísa. Que valeu então o juramento que
fez há pouco ?

Ah ! disse ele, caindo em si. É verdade, Luisinha. Mas que quer que
eu faça ? Pois não hei de ir ajudar os meus a saírem
da tribulação em que se acham ?

Eles são muitos e valentes respondeu Luísa; podem bem dispensar
o seu adjutório. Demais, você não pertence mais a eles,
mas a mim, a mim só; ouviu, José ?

Sim, eu sou seu, Luisinha; eu pertenço a você pelo coração,
pelo amor.

Ouvindo estas palavras, ela inclinou ao chão seus olhos mais belos
que as estrelas que brilhavam no céu.

Mas, você fez bem em lembrar o juramento que há pouco fiz prosseguiu
o Cabeleira. Eu não podia ver meus companheiros em perigo sem correr
para junto deles a defendê-los. Se não fosse você, Luisinha,
eu já não estava aqui. Mas agora me lembro: saiamos sem demora,
que talvez seja ainda tempo de os salvar por outro meio.

Em menos de um instante acharam-se montados no cavalo que o bandido pos a
galope em direitura ao rio.

Para onde vamos nós ? perguntou Luísa, agarrando-se, sobressaltada,
ao destemido matador.

Aonde me leva você, José ?

Não fale, Luisinha, não fale, que pelas suas palavras podem
vir sobre nós.

Nesse momento a detonação de alguns tiros e as vozes de um
clarim, pregoeiro de não sei que operação militar, indicaram
que a força tinha dado com os bandidos, e que qualquer aviso para que
fugissem seria inútil.

É tarde disse o Cabeleira. Já não é possível
a salvação. Mas hão de Ter-me ao pé de si na sua
derradeira exclamou, saltando do cavalo abaixo e dando mostras de querer correr
ao lugar do perigo.

Cabeleira ! exclamou Luísa penetrada de terror. Você terá
animo de desamparar-me neste deserto ? Não, não há de
fazer isso comigo. Veja que eu sou hoje só no mundo.

O bandido parou incontinenti. Estas palavras foram grilhões que o
prenderam aos pos da adolescente.

Tem razão, Luisinha.

Fujamos sem perda de tempo acrescentou ela.

Nesse momento uma das escoltas saía da mata.

Grande vitória tinha sido ganha pelas armas reais contra os destruidores
da propriedade, honra e vida de inofensivas povoações.

Inúmeras partidas militares já tinham sido expedidas contra
os malfeitores sem resultado.

Pouco depois do canibalismo perpetrado no primeiro domingo de dezembro de
1773 na ponte do Recife, o governador Manuel da Cunha de Meneses fizera seguir
contra eles uma força considerável.

Esta força chegou a Afogados alguns minutos depois da retirada dos
autores da desordem; e daí não passou, por não ter sido
possível, apesar das mais minuciosas indagações, saber
o rumo que haviam tomado os criminosos.

O Timóteo, cuja taverna foi varejada, declarou unicamente que eles
tinham de feito estanciado aí, mas que se haviam retirado sem lhe dizerem
para onde. Não houve promessas nem ameaças bastantes a obter
dele declaração mais formal e menos lacônica do que esta.

Tempos depois novas partidas foram mandadas a ver se se conseguia o fim desejado.

Tanto a que seguiu ao norte, como a que seguiu ao sul, bateram matos, atravessaram
rios cheios, empregaram enfim os maiores esforços inutilmente. Em mais
de um lugar, ou de um pouso encontraram vestígios da recente passagem
dos bandidos, ou da sua ação destruidora e fatal, mas nunca
lhes foi possível dar com os três personagem, tipos legendários
que todos conheciam pelos seus tristes feitos, que todos tinham visto, a quem
quase todos tinham pago pesado tributo, mas que iludiam a vigilância
e zombavam dos esforços de todos, sem exceção do poder
público. Nuvem miraculosa envolvia-os, ocultava-os, aos olhos da justiça
e da lei, que tem em toda parte vistas penetrantes e perscrutadoras a que
ninguém se encobre por muito tempo. Nos seus tenebrosos antros saboreavam
o corrosivo prazer que proporciona o roubo e a impunidade. Esta animava-os
à prática de novos crimes, e expunha ao público descrédito
à administração menos digna de temer-se, ao parecer deles,
do que o particular que muitas vezes resistia, defendendo a sua propriedade,
e na defesa e resistência os feria, embora tivesse de cair aos golpes
descarregados por eles com tal firmeza, que nunca deixou de ser fatal.

Cunha de Meneses, convicto da ineficácia dos seus esforços
contra os quais se levantava, além da audácia e cinismo dos
malfeitores, um tríplice embaraço que mais do que estes contrastava
aqueles esforços a falta de população, de tropas e de
estradas , embaraço que era favorecido indiretamente pela indiferença
dos mais fortes, e diretamente pelo temor da maior parte dos moradores, renunciou
ao empenho, que por muito tempo alimentou de reivindicar os foros da administração
assim afrontados diária e ostensivamente pelos sobreditos malfeitores.

Com esta mudança de resolução coincidiu a sua promoção
ao lugar de governador da Bahia. Em 31 de agosto de 1774 entregava ele a José
César de Meneses, a quem já nos referimos, as rédeas
do governo de Pemambuco, então, como ainda hoje, difíceis de
sopesar.

José César teve de voltar a sua atenção para
a guerra com a Espanha; e quatro meses depois de haver tomado conta do governo,
fez partir para a Colônia do Sacramento, então novamente no poder
dos espanhóis, bem como os fortes brasileiros de S. Miguel, Santa Teresa
e S. Pedro do Rio Grande do Sul, um regimento de infantaria.

Em 1776 tinham seguido do Recife para aquela colônia cerca de 1100
pernambucanos.

A guerra seguiu-se a peste, e à peste a fome como vimos.

Quando se achava assim a braços com este tríplice flagelo,
teve ciência de que diferentes ambulâncias que, em parte às
custas do régio erário, e em parte às custas dos negociantes
mais ricos da vila haviam sido expedidas por ordem sua para os pontos onde
o mal se manifestava com maior intensidade, tinham caído nas mãos
dos salteadores.

O governador mal pôde dominar a sua cólera, e na prática
íntima com os que tinham muito lugar diante dele, declarou que daquele
momento em diante o principal empenho do governo ficava sendo dar cabo dos
criminosos que devastavam a província.

Desgraçadamente faleciam-lhe gente e dinheiro para pôr por obra
este louvável empenho. A terrível epidemia tinha desolado povoações
inteiras.

A fome continuava a gerar os males que em toda parte são seus companheiros
naturais e inevitáveis.

A seca desvastava ainda o interior da província como chama que irrompe
do seio da terra, e tudo abrasa e destrói.

Mas José C&eeacute;sar era ativo, enérgico, esforçado
e de grandes espíritos. Confiava no poder da autoridade, e tinha por
certo que havia de restaurar a tranqüilidade e a segurança privadas,
e restabelecer o domínio das leis.

Enfim, depois de haver pensado com madureza sobre o grave assunto, deu ordem
a seu secretário para que impedisse em seu nome aos capitães
mores de Iguaraçu, Itamaracá, Várzea, S. Lourenço,
Santo Antão, Tracunhaém, Nossa Senhora da Luz, Jaboatão,
Muriboca, Cabo, Ipojuca e Serinhaém a circular seguinte:

"Ordena o Sr. Governador e capitão general que, para um negócio
que entende altamente com a paz pública, se ache vm. no dia oito do
corrente mês, pelas nove horas da manhã, neste palácio,
onde se há de celebrar junta a fim de tratar-se do mesmo negócio.

Vm. fará igual aviso aos coronéis das ordenanças que
houver em seu distrito".

No dia designado acharam-se presentes onze capitães mores e outros
tantos coronéis.

Depois do almoço, durante o qual lhes disse, explicou e particularizou
todo o seu pensamento, convidou-os o governador a chegarem até aos
paços do senado da câmara de Olinda.

Uma galeota, que estava às ordens em uma das rampas do palácio,
os recebeu e os conduziu à capital ilustre.

A sessão da junta foi secreta.

Todos presumiram que a fome e a peste eram os motivos principais da reunião,
mas dificilmente conciliaram esses motivos, que estavam no público
domínio, com o sigilo que se guardou durante a sessão, e continuou
a ser mantido depois do seu encerramento.

Seguiram-se, como é fácil imaginar, diferentes versões
e fizeram-se longos e variados comentários.

Falou-se de guerra no exterior, de geral recrutamento, e de novos impostos.

Veio logo a pelo lembrar igual ajuntamento que se verificou em 1727, sob
o governo de Duarte Sodré Pereira, e o imposto decretado nessa ocasião
pelo dito ajuntamento, imposto calculado em 1 milhão e 50 mil cruzados,
que se tornou efetivo em vinte anos, e foi destinado a ocorrer aos gastos
com o casamento dos príncipes de Portugal.

Cuidou-se em opor à forçada contribuição, caso
viesse a verificar-se, a resistência que naquele tempo apresentaram
os povos da ribeira de S. Francisco.Mas passaram-se dias e semanas sem que
ato algum público, oficial, ou simples revelação particular
viesse confirmar as suspeitas. A deliberação continuou trancada
debaixo dos selos do mais rigoroso segredo.

Uma manhã um batalhão de infantaria, devidamente municiado,
moveu-se, e pôs-se em ordem de marcha na direção do sul.

Este batalhão fez alto em Afogados.

Temos guerra gritaram os meticulosos pelos ângulos da vila.

Alguns parasitas, plantas conhecidas e existentes em todas as regiões,
mas muito mais abundantes nas regiões oficiais, ou governativas, correram
ao palácio a verem se podiam, pelos meios que sabe a astúcia
pérfida e servil, inferir das palavras de José César,
ditas na intimidade, o destino a que se dirigia a coluna militar, inesperadamente
posta em armas e a caminho. O semblante do governador, porém, semelhava
uma superfície plana; não apresentava uma só roga que
pudesse trair oculto desgosto, ou indicar grave apreensão. Se da fronte
passavam a estudar as palavras de José César, não descobriam
no sentido destas menos discrição e reserva do que tinham encontrado
na expressão daquela. Os lábios do governador guardavam com
a severidade da disciplina militar e das práticas do governo naqueles
tempos silêncio absoluto a respeito do acontecimento que preocupava
os grandes e o popular.

A curiosidade pública mostrou-se dentro em pouco ainda mais excitada
com certas notícias trazidas do interior pelos boiadeiros, almocreves
e estafetas. Em todos os distritos, por ordem dos respectivos capitães
mores, de acordo com os coronéis de ordenanças, se tinham levantado
milícias locais que evidentemente se aprestavam para um fim de grande
importancia, a julgar pelas aparências.

Das sedes de alguns desses distritos já os destacamentos haviam marchado
para certos e determinados pontos que os informantes não sabiam dizer.

Enfim, tendo reunido todos estes elementos de duvidar e de decidir, e os
tendo pesado na balança da crítica, arte ou ciência comum
a todas as sociedades ainda as que se acham no estado mais rudimentar, julgou-se
o publico autorizado a afirmar que se tratava de efetuar uma diligência
de alta monta, para a qual tinham de concorrer simultaneamente as diferentes
forças locais, de combinação com algum destacamento da
capital.

CapÍtulo XI

Antes de se haver movido da capital o destacamento que foi estacionar em
Afogados, grande confusão dominara nos espíritos dos habitantes
desta localidade.

Foi o caso que pelas oito horas da noite, pouco mais ou menos, dois vultos
se tinham ido colocar defronte da taberna do Timóteo.

A alguns fregueses e freqüentadores do taberneiro causou reparo o misterioso
par que ninguém se animou a ir reconhecer, não obstante a todos
parecer ele equívoco e digno de recear-se.

Não se podia confiar no tempo, principalmente nos lugares afastados
da vila.

Roubos e assassinatos repetiam-se a cada canto. Na própria capital
os habitantes não tinham por seguras nem sua propriedade nem sua vida.
Por isso, qualquer sujeito duvidoso suscitava, com razão, desconfianças
e medos nos homens pacíficos que por interesse próprio se apartavam
sem demora dos pontos onde tais sujeitos apareciam ou podiam aparecer.

Quem menos se inquietou com os desconhecidos foi o Timóteo que, acostumado
a tratar, de instante a instante por assim dizermos, com essa espécie
de gente, se considerava fora de todo risco ainda quando este se desenhasse,
como em certas ocasiões, com as mais vivas e medonhas cores. A seu
parecer, de indivíduos tais só tinha ele que esperar favor e
proteção, visto que, sendo sua taberna ponto obrigado das relações
da capital com o centro, quer fosse de dia quer de noite, assim de inverno
como de verão, tinham eles, como ele próprio, grande interesse,
se não maior do que ele tinha, em conservar, defender, amparar esse
poderoso ponto de apoio para os seus dolos, violências e infames ciladas
de que era vítima o matuto simplório, o sertanejo de boa fé,
o mascate, enfim quem quer que passava por aquela infernal estância.

Apontavam-se no lugar outras tabernas, das quais algumas tinham à
sua frente patrões mais hábeis do que o Timóteo; a do
velho, porém, mestre no mister como nenhum outro, tinha fama extensa,
quase geral na província. Era uma taberna tradicional por ter servido
muitas vezes de teatro a cenas de sangue e morte.

Pelas festas de arraial, o jogo, a crápula aí se praticavam
com prejuízo considerável da ordem pública, da fortuna
particular, do sossego e honra das famílias.

Estas circunstâncias, este passado davam-lhe certo prestígio
que atraía para o imundo balcão, ou para a lôbrega camarinha
da tasca o vicioso por hábito, o filho da viúva, a rapariga
infeliz, os quais iam encontrar debaixo das quatro telhas do casebre largo
campo onde dar expansão a suas paixões reprovadas.

Quando algum freqüentador, exaltado pela cachaça, ameaçava
esfaquear o vendeiro por alguma das suas, respondia ele, abrindo a camisa,
e mostrando o largo peito coberto de espessos e avermelhados pelos:

Pode fazer do peito do velho Timóteo bainha da sua faca. Já
bebeu a minha aguardente, não será para admirar que queira agora
dar meu sangue a seu cachorro magro. Mas de uma coisa tenha você certeza;
ainda que me mate, ainda que me esfole, não passa o gadanho no meu
zimbo. Poderá comer mais sardinhas, chupar do meu vinho, mas de dinheiro
nem ceitil há de cair na sua unha.

Timóteo dizia a verdade. Ele tinha todo o seu haver amoedado em lugar
só dele conhecido.

Ficara só no mundo depois da morte da Chica, e entesourava sem destino
o que ilicitamente adquiria. Seus únicos companheiros de casa eram
um cão e dois gatos. Estes últimos comiam com ele à mesa,
quase no mesmo prato, e, para bem dizermos, dormiam na mesma cama.

Por isso, quando viu os misteriosos vultos parados defronte da taberna; quando
os viu mais tarde dirigir-se para esta no momento em que ele ia fechar as
portas por se haver de uma vez retirado a freguesia do dia, disse Timóteo
com a maior fleuma:

Podem entrar sem susto, que o Timóteo é amigo.

Os desconhecidos ganharam de um pulo a tasca, e trataram de fechar as portas.

Fazem bem disse-lhes o vendeiro, sem se dar por achado. O tempo não
está para graças. Mas se vosmecês estão aqui de
emboscada a algum tonante, será bom deixarem aberta esta janelinha
da porta.

Não estamos de emboscada a ninguém, porque quem queríamos
já está seguro disse um deles, trancando com a taramela a janelinha
indicada.

Ah ! Já sei. Querem cear comigo. Não ponho dúvida.

Os desconhecidos entreolharam-se como se se consultassem.

Não façam cerimônia, camaradas. Naquela mesinha, que
ali vêem, muito fidalgo tem feito a sua refeição. Tirem
os capotes, se querem estar à vontade; e esperem um momento que não
há demora.

Sem esperar resposta, o velho tomou o interior do casebre, e voltou logo,
trazendo pães, postas de peixe frito, e uma cuia com farinha.

Então ? Que fazem ? Vão sentando-se, e toca a comer.

Não esperem por mim, que sou de casa e não tenho etiquetas.

E entrou novamente, manifestando, pela prontidão com que tratava de
pôr a ceia, a melhor vontade de ser agradável aos entranhos hóspedes.

Não eram estes no todo simpáticos, mas também não
eram mal encarados

O que representava ser mais moço era seco de corpo, tinha boa estatura,
cor fula, olhos cintilantes e redondos, cabelo chegado ao casco. O nariz um
pouco rombo estava em desarmonia com as outras partes da cara onde se lia
uma expressão de audácia, que respondia bem à agilidade
do corpo.

O outro era feio de feições, baixote e roliço. A cor,
o ângulo facial, o cabelo carapinha estavam claramente denunciando a
sua proveniência africana.

Por baixo dos capotes, já velhos, cingia-lhe os rins um cinto de couro
donde a cada um pendia uma espada de ponta direita. Eram as espadas as únicas
armas que traziam à vista. Sentaram-se à mesa sem tirar os chapéus
de palha com que estavam cobertos.

Vinho ou cachaça ? perguntou o velho, apontando, de volta, na porta,
com uma penca de bananas que lhe vinham caindo das mãos de maduras.

Vinho disse o mais moço.

Traga da cana para mim acrescentou o outro.

Muito bem respondeu Timóteo. Olhem: o pão é da padaria
do Zé Braga, o peixe é do viveiro do Muniz, a farinha é
de Muribeca, e as bananas são do meu quintal. A cachaça é
do engenho Mendonça, e o vinho é puro de Lisboa.

No fim da ceia, que as reiteradas libações prolongaram, e que
correu animada, por mais de um dito, um gracejo, uma sentença licenciosa,
o Timóteo dirigiu estas palavras aos hóspedes:

Não está má esta. Dei-lhes da minha ceia sem saber
quem são vosmecês. Agora, os seus semblantes, se não me
falta a memória, não me são de todo estranhos.

Assim deve ser disse o cabra. Mais de uma vez tenho comprado aqui o meu
vintém de aguardente.

Isto é outro cantar; já vejo que somos conhecidos velhos.

Tão conhecidos somos, seu Timóteo replicou o cabra , que tomo
a liberdade de o convidar para um passeio agora mesmo por esta estrada afora.

Nossa Senhora da Paz livre-me tal disse Timóteo empalidecendo. Sair
a esta hora, por este tempo, deixar a minha casa à revelia, Santo Deus!
Nem pensem nisto, meus bons amigos.

Não tem que recear, meu caro. Cada um de nós traz, como vê,
uma espada à cinta, e a sabe manejar.

Bem estou vendo disse Timóteo. Mas sempre lhes quero dizer: o crioulo
Gabriel sabia muito bem jogar a espada, e melhor a faca, mas o Cabeleira o
lambeu.

Ah ! o Cabeleira? disse o negro.

Sim, senhor; ele aparece por aqui às vezes; eu o tenho visto fazer
proezas de espantar.

Seu Timóteo disse o cabra, levantando-se , fez bem em falar no Cabeleira.
Eu quero perguntar ao senhor uma coisa…

Antes que terminasse a sua oração fez-lhe um sinal o negro,
e ele disfarçou por este modo:

Mas é já tarde, e nós não podemos demorar mais.
Vem ou não vem ?

Para onde, senhor ? perguntou o vendeiro, levantando-se aterrado por haver
finalmente compreendido que tinha diante dos olhos dois inimigos.

Saberá depois. O essencial é que nos acompanhe.

Não posso fazer tal coisa.

Timóteo recuou instintivamente quando ouviu as últimas palavras
do desconhecido. Este porém, em um instante o tinha segurado pelos
pulsos enquanto o negro lhe passava uma corda nos braços.

Como é que me fazem isto ? perguntou Timóteo Querem matar-me
?

Não, senhor disse o cabra. Você há de chegar vivo, bem
vivo a seu destino, ainda que o Cabeleira se meta a tirá-lo das nossas
unhas, o que eu duvido.

E a minha venda ?

A sua venda fica aí; nós não a levamos.

Mas… roubam-me tudo, tudo.

Não tem você roubado a tanta gente ?

Ora ! Feche bem as portas, e avie-se que é tempo. Se não quer
ir pelos pés, irá amarrado como um porco.

Timóteo aceitou, contra vontade, já se vê, e por não
ter outro remédio a situação que lhe afigurou irrevogável.

Vista o seu gibão, que você vai ser apresentado a gente nobre.

Ah ! disse o vendeiro,respirando, mas não sem grande espanto, que
mal disfarçou.

Pouco depois os três convivas seguiam, a marcha batida, pela estrada
de Santo Antão. Tendo deixado a taberna, cujas chaves o Timóteo
levava consigo por permissão dos desconhecidos, haviam estes pouco
adiante entrado com ele no mato para tomarem dois cavalos que ali tinham deixado
ocultos. Em um deles montou o negro, e no outro montaram o cabra e o vendeiro,
este passado de medo, que o acaso não era para menos, aquele guardando-o
na garupa, e tendo uma faca nua na mão. Tomaram novamente a estrada,
e logo desapareceram como sombras fantásticas, no fundo da escuridão.

Conforme a deliberação tomada no senado da câmara pelo
governador, capitães mores e coronéis de ordenanças,
a busca dos malfeitores tinha de ser dada ao mesmo tempo nas matas dos respectivos
distritos.

Estes bandidos dissera o governador fazem-nos maior dano do que a fome,
a peste e a guerra. Matam a sangue frio, para roubarem a fazenda àquele
que pacificamente a ganhou com o suor do seu rosto. Penetram nas casas, nas
lojas, nos engenhos, nos próprios templos, e, tirando daí o
fruto da economia e o trabalho honesto e esforçado da propriedade alheia,
vão consumi-lo nas suas orgias e delírio. A sua passagem o pobre
não fica privado somente das suas migalhas; fica também privado
da sua honra, da honra das suas filhas; se se não atrevem a fazer hoje
o mesmo aos ricos e nobres, amanhã o farão, animados por um
longo passado para o qual não posso volver os olhos senão com
tristeza, porque ele diz que aos meus predecessores faltou animo para esmagar
a hidra do crime, ou que foram eles indiferentes aos males privados e publicados
que resultaram da sua impunidade dela. Não quero que o meu nome passe
à história de envolta com essa impunidade; há de passar
com o lustre da autoridade que se faz respeitada por cumprir com zelo e coragem
os seus deveres, entre os quais se conta o de castigar os delinquentes. Fio
que os senhores capitães mores e coronéis hão de auxiliar
a administração, que, nestes intuitos, não atende senão
à glória de sua majestade, que Deus guarde, e a paz e felicidade
dos povos. A falta de tropas será suprida pela criação
de milícias provisórias, e locais para o fim único de
acabar com os coutos dos facinorosos; e a de dinheiro sê pelo erário
régio, que segundo me autorizou sua majestade por carta firmada por
sua real mão, adiantará por empréstimo a quantia necessária
para a mantença dessas tropas até que de todo se tenham aniquilado
os coutos. O erário será ressarcido das quantias que houver
adiantado, por meio de um imposto que se lançará para o dito
fim sobre os povos dos distritos rurais, ou dos que ficam distantes desta
vila duas léguas, atendendo-se a que a estes o benefício da
extinção dos coutos ocasiona particular proveito.

Nenhum dos convocados teve que opor ao pensamento e vontade do governador,
conhecido como uma autoridade arbitrária. Todos, ao contrário,
votaram por estas idéias, certos de que se atendia por tais meios a
uma necessidade pública da maior magnitude. "José César
governou arbitrariamente, é verdade, diz um historiador, mas as suas
arbitrariedades raras vezes deixaram de ter um fundo de justiça. Na
punição dos delinqüentes foi infastigável".

Chegado a seu distrito, cada capitão mor tratou de levantar a milícia
volante, a qual foi formada dos indivíduos solteiros, maiores de vinte
e menores de quarenta anos, com exclusão somente daqueles que por si
dessem outrem.

Não foram poucas as dificuldades que tiveram de vencer para que se
formassem os contingentes, destinados a pacificar o interior.

Não sabendo o verdadeiro fim que se propunha a autoridade com a fundação
desses contingentes, suspeitaram os povos uma grande leva para fora da terra
para combater o estrangeiro. Mas os capitães mores conseguiram desvanecer
as suspeitas por meio de afirmações sob palavra de honra. Naqueles
tempos a palavra do homem equivalia a jurídica obrigação
ou a solene tratado, e a honra era digna e eficazmente representada por um
cabelo da barba. Hoje, as próprias palavras dos reis tornam atrás,
as convenções diplomáticas não passam de ciladas
internacionais, a honra tem-se refugiado nos retiros com medo da publicidade,
que a expõe a geral pouco caso.

Temos subido muito nas ciências, indústrias e artes, sem exceção
da arte de governar; mas, em ponto de honra, em virtudes cívicas, em
moral doméstica, a nossa decadência, impossível de recusar,
atesta que temos levado a obra da reformação além dos
limites pertinentes, e prova a necessidade de transplantarmos das ruínas
do passado, onde vicejam esquecidas, algumas plantas modestas, cujas flores
purificam o ar com seus perfumes, e cujos frutos formam sangue novo e são.

O capitão mor de Santo Antão, querendo avantajar-se aos outros,
antecipou-se nos meios de por a mão nos malfeitores.

Sabia ele das assíduas relações do Cabeleira com o velho
taberneiro, a princípio por mera suspeita, e posteriormente por informações
que tomou de agregados e ordenanças seus, alguns dos quais, de passagem
para o Recife, entravam na taberna, bebiam nela o seu grogue, e algumas vezes
até ali pernoitaram. No dia fatal, em que o famigerado bandido tirava
a vida aos dois meninos, passara por Afogados o capitão mor momentos
depois do dobrado delito.

O comércio ilícito do taberneiro, a sua má fama, as
suas estreitas ligações com sujeitos mal vistos de todos, principalmente
com o Cabeleira, deram-lhe a convicção de que qualquer diligência,
que tivesse por fim a prisão dos delinqüentes não poderia
surtir efeito se não fosse precedida da prisão do taberneiro.
Duas praças de sua confiança foram por ele encarregadas de levarem
o velho a sua presença sem que se soubesse para onde nem como ele fora.
Alexandre, o negro, e Valentim, o cabra que vimos ceando com Timóteo
e que por sobremesa o prenderam foram as tais praças; e a vista do
modo como se houveram, cabalmente justificaram a confiança do capitão
mor.

Ia amanhecendo quando os três cavaleiros se apearam na porta deste.

As casas do povoado estavam ainda fechadas, e ninguém os viu entrar;
o capitão mor que levara a noite em claro, à espera dos seus
comissários, foi abrir-lhes a porta em pessoa.

Timóteo, posto em confissão, negou tudo ao princípio,
saindo-se, com várias evasivas, das redes que lhe lançava o
capitão-mor, perito em interrogar.

Quando porém a sua vida ameaçada; quando formalmente se lhe
declarou que a sua morte seria inevitável se não auxiliasse
com lealdade a ação da justiça na busca dos criminosos;
quando o Alexandre de espada desembainhada, e o Valentim de faca na mão,
receberam do capitão mor ordem para infligir-lhe a pena última
dentro da capoeira próxima; quando se viu arrastado por eles ao teatro
onde se lhe destinara o trágico fim que horroriza todo homem a morte
natural, o instinto da própria conservação retomou ao
cálculo e às manhas do vendeiro os seus direitos. Confuso e
abatido, Timóteo aceitou o odioso papel que lhe foi distribuído
naquela grave representação em que importantes interesses e
muitas vidas iam correr iminente risco.

Timóteo conhecia todos aqueles lugares onde tinha andado na sua mocidade
em dias de feira de gado.

A seca que estava desvastando a província tinha-lhe proporcionado
ocasiões de conhecê-los melhor. A escassa farinha, os poucos
legumes e outros comestíveis que apareciam nas feiras gerais eram logo
comprados por atravessadores que os iam revender com usura no Recife. Nos
primeiros tempos Timóteo resignou-se a ver passar os produtos no poder
dos atravessadores; mas faltando-lhe esses produtos, não só
para os expor na sua taverna, senão também para o próprio
uso, tomara o acordo de ir pessoalmente um sábado por outro a Santo
Antão prover-se do necessário para a semana. Quando o Cabeleira
estava na mata, Timóteo ia ter com ele e lhe comprava por quase nada
o que muitas vezes tinha custado a vida do pobre roceiro, que deixava mulher
viúva e uma infinidade de filhos na orfandade.

Destarte estava ele senhor dos caminhos e carreiras que iam ter à
encoberta onde entrava com familiaridade, e donde saía como amigo.

Ele sabia que o Cabeleira se achava na terra por haver estado de passagem
na sua taverna, conforme vimos. De tudo informado, o capitão-mor aguardou
ansioso a noite seguinte, para dar começo à batida da mata.
Com o fim de iludir porém a vigilância dos assassinos e escusar
as suas suspeitas, mandou notificar as praças do contingente para que
se achassem em um ponto das matas do seu engenho, ao qual cada um devia dirigir-se
desacompanhado a fim de não dar na vista de quem quer que fosse.

Tanto que anoiteceu, o capitão mor deu ordem para que Valentim, Alexandre
e dez matutos experimentados se trepassem em árvores próximas
das quais pudessem observar o rumo que os malfeitores tomassem depois do escurecer.
Estas sentinelas perdidas deviam dar aviso à tropa que estava no engenho,
para que ela, guiada por Timóteo, corresse a tomar as entradas, e pudesse
prender os malfeitores em sua volta ao couto. Foi o que sucedeu. Quando Valentim
viu os ladrões tomarem, à boca da noite, pelo caminho da engenhoca,
desceu-se da pitombeira onde se trepara, montou no cavalo que tinha preso
de prevenção dentro de uma moita, e correu ao engenho. A tropa
moveu-se incontinenti, sob o imediato comando do capitão mor.

Dividida a metade dela em tantos piquetes quantas eram as picadas secretas,
tomou todas estas, e achou-se em condições de interceptar a
passagem daqueles para o ponto central. A outra metade, colocada a um lado
da mata a distancia conveniente, pôde acudir aqueles pontos logo que
o Valentim que depois do aviso havia voltado ao seu posto, foi informá-los
da volta dos malfeitores. Assim, acharam-se estes, quando voltaram da engenhoca,
entre duas colunas inimigas, às quais forçado foi entregarem-se,
quase todos com a morte. Ao Joaquim se poupou a vida, a fim de se cumprir
a determinação do governador, não só a respeito
dele, mas também do Cabeleira e do Teodósio para fins de alta
justiça.

Quando o Cabeleira se afastou com Luísa da beira do rio para o alagadiço,
o Valentim estava dando o seu segundo aviso, e eles puderam, por isso, escapar
à sua inspeção.

Tinha ele, porém, ouvido antes, de cima da pitombeira, o diálogo
do Cabeleira com o Teodósio, e sido causa do ruído que espantara
o cavalo deste último. Tinha visto aquele encaminhar-se à engenhoca,
o que o fizera acreditar que entre os malfeitores, que tinham de tornar, e
efetivamente tornaram à mata, se achava o famigerado bandido, alma
do couto, terror dos povos. Não lhe parecendo, por isso, necessário
vigiar o terrível salteador, que ele considerava seguro com os outros
na armadilha que lhes havia armado, consagrou-se todo a evitar que lhe escapasse
o Teodósio. E como queria ter grande parte na glória que resultasse
da extinção dos célebres assassinos, voltou sobre seus
passos à estrada, e encaminhou-se ao povoado.

Valentim era bravo como uma onça, e tinha deste animal a agilidade
e a destreza no mais alto grau. Confiava, não só nestes dotes
naturais, mas também na sua espada de ponta direita que muitas vitórias
já lhe havia proporcionado. Ele jogava com insigne habilidade esta
arma.

Pouco adiante ouviu vozes. Apressou os passos, e encontrou-se face a face
com o Teodósio, que, nada sabendo do que havia, demandava o couto.

Com ímpeto de fera botou-se a ele, não para vencê-lo
mas para matá-lo.

O seu gracejo é pesado, camarada disse o Teodósio, recuando
ante a brutal investida.

Valentim não graceja. Rende-te, cabra Teodósio; ou então
reza o ato de contrição, que esta é a tua derradeira.

Se eu trouxesse a minha espada, não lhe enjeitada o bote. E se quer
saber para quanto presta o cabra Teodósio, embainhe o seu ferro, e
vamos decidir da sorte pela faca.

Não estou para tuas parolas, cabra safado. Se não te entregas
já nas mãos do Valentim, que nunca escolheu armas para provar
que é homem, tiro-te o couro antes do amanhecer.

Teodósio, vendo aquela decisão ante a qual poucos ânimos,
talvez unicamente o do Cabeleira, deixariam de curvar-se; e conquanto nos
recursos do seu gênio astucioso que nunca o havia desamparado ainda
nos maiores apertos, respondeu com voz melíflua:

Não me mate, meu amo; o Teodósio rende-se.

No momento em que assim falava, o Valentim descarregou-lhe tamanha pranchada
na cara, que ele caiu redondamente no chão.

Quando voltou a si, tinha nos pulsos enrodilhada uma corda de couro cru,
em cuja ponta segurava o cabra.

Levanta-te, que quero olhar para a tua cara disse-lhe Valentim fustigando
o prisioneiro com a ponta da espada. Onde está a tua fama, cabra Teodósio
?

Este não respondeu.

Súbita tristeza invadira-lhe o espírito ordinariamente expansivo
como o de uma criança.

Tinha ouvido tiros na mata, e conhecido que a situação era
mortal.

CapÍtulo XII

Ao amanhecer a região litoral da província desde Alagoas até
Paraíba estava separada do sertão por cordão sanitário
formado pelas milícias volantes dos diferentes distritos rurais.

Todas as matas compreendidas na zona que fica entre a costa e o sertão
foram batidas ao mesmo tempo.

Os piquetes que penetram nas de Serinhaém, Água Preta, Muribeca,
Merueira, S. Lourenço, Catucá, Iguaraçu, Goiana, Pau
d’Alho, Limoeiro, recolheram?se mais tarde às respectivas sedes, depois
de terem realizado importantes capturas.

Assassinos de profissão e de fama, que, protegidos pelas trevas da
noite e pelas sombras das selvas virgens, tinham horrorizado durante muitos
anos as povoações pacíficas, apareceram à luz
do dia, trazendo nos pulsos cordas e algemas que bem denotavam que a justiça
dos homens, reflexo ainda que pálido da justiça de Deus, cedo
ou tarde restaura os seus foros e faz?se respeitar como uma fatalidade reparadora.

O capitão?mor de Santo Antão, justamente vangloriado por ver
no seio de sua força o Joaquim e o Teodósio, cuja fama ofuscava
a de todos os criminosos, com exceção somente do Cabeleira,
seguiu imediatamente, à frente dela, para o Recife a apresentar?se
ao governador.

No caminho de Afogados reuniu?se ela com a força que, tendo aguardado
nesse lugar aquele dia, designado para a geral batida das matas, se movera
pela manhã em direitura às que lhe ficavam nos limites ocidentais.
As duas forças chegaram ao Recife formando uma só expedição
que foi recebida pelos habitantes com inequívocas demonstrações
de consideração e reconhecimento pelo relevante serviço
que haviam feito.

Tantos eram os crimes cometidos pelo Cabeleira, e estes crimes haviam sido
revestidos, na sua maior parte, de circunstâncias tão odiosas,
que, quando se divulgou que o afamado bandido tinha escapado às malhas
da rede da justiça, mostras de justo pesar vieram substituir?se nos
semblantes de todos à expressão do regozijo recente que havia
manifestado a população.

Com raras exceções, não se contava família, desde
o Recife até o alto sertão, a quem a pela, a faca ou o bacamarte
do terrível matador não houvesse roubado uma existencia querida.

Por isso, era ele o alvo em que todos haviam posto a mira, e perdê?lo
montava perder a diligência, ao parecer da maioria.

Alguns, não sem razão, mostravam?se receosos de que, quando
menos se esperasse, ele viesse forçar a cadeia do Recife onde tinham
sido postos a ferro os novos presos, e restituindo?lhes a liberdade de que
tão mau uso haviam feito, se pusesse com eles novamente em campo para
matar com maior ferocidade que dantes, roubar sem tréguas, incendiar
povoações, reduzir tudo a sangue, ossos e cinzas.

O governador entretanto mal podia conter a. sua satisfação
diante do resultado das providências que ele próprio havia indicado
para a extinção dos bandos dos criminosos que infestavam a província.
Ele conhecia melhor do que o povo e os figurões da vila e da capital,
as dificuldades, algumas delas invencíveis, que se atravessam naturalmente
diante de expedições semelhantes. Ele sabia que perseguir através
do deserto, para reduzi?los à prisão, homens que vivem como
as feras, e com elas, no seio de escusas brenhas, de regiões inóspitas
e desconhecidas, é empresa para grandes ânimos, raros em todos
os tempos e em todas as terras, máxime naquelas terras em que, como
em todo o Brasil então, o importante serviço da polícia
está por ser organizado, à míngua de pessoal apto para
isso, de recursos pecuniários, de vias de comunicação
interior, de prisões e de outros muitos elementos indispensáveis
a este grande mister.

A cadeia, que por poucas alterações passou há poucos
anos a fim de servir, como serve, para casa do júri e do tribunal da
relação, tinha sido dada por pronta pelo coronel de engenheiros
Costa Monteiro, à câmara nos fins de 1732, e preenchia todas
as condições de segurança pela sua solidez. Não
obstante, ordenou o governador que a sua guarda fosse confiada a forças
duplas que tornassem impossível qualquer tentativa de invasão
ou de arrombamento. As vizinhanças ofereciam o aspecto de uma praça
de armas, principalmente dos lados do norte e leste onde a vigilância
nunca seria demasiada, por oferecer o rio destes lados fácil e natural
acesso ao edifício.

As pessoas de sua intimidade que lhe manifestavam descontentamento por não
ter sido preso o Cabeleira, respondia o governador:

Há de chegar a sua vez. Confio muito em Cristóvão de
Holanda Cavalcanti que ainda não deixou de corresponder aos intuitos
do governo sempre que se trata do proveito da colônia.

Cristóvão de Holanda Cavalcanti, que trazia, como se vê,
o nome que seu pai, sargento das ordenanças, ilustrara por ocasião
da memorável Guerra dos Mascates, era o capitão?mor de Itamaracá,
e achava?se a esse tempo em Goiana.

Goiana pertencia então à jurisdição de Itamaracá,
que deixara de ser em 1763 capitania independente, por havê?la comprado
d. João V a José de Góis, para incorporá?la na
capitania de Pernambuco, vendida à coroa em 1716 pelo conde de Vimioso,
d. Francisco de Portugal, único genro de Duarte de Albuquerque Coelho,
4.° donatário de Pernambuco.

Era uma modesta povoação em 1636, quando os esforços
de Antônio Filipe Camarão que a defendeu com o valor que o caracterizava,
não foram bastantes a tolher que ela caísse no poder dos holandeses,
povo cheio de grandeza, e digno da admiração e do reconhecimento
dos pernambucanos. Tendo?se mudado em 1685 para esta povoação
a câmara da capitania de Itamaracá, passou ela por este fato
à categoria de vila. Em 1742 deu?lhe d. João V um ouvidor que
foi substituído em 1808 por um juiz de fora. A sua crescente prosperidade
foi parte para que pela lei provincial de 5 de maio de 1840 fosse elevada
à cidade.

De presente é Goiana a cidade pernambucana de mais nota, depois do
Recife, a capital, e de Olinda que figurou, com brilho e bizarria inexcedíveis
nos tempos coloniais.

Está em condições, não só de competir
com as primeiras cidades interiores do norte e do sul do Império, e
de se avantajar às capitais de algumas províncias que, por motivos
de alta conveniência deixamos de apontar aqui, mas até de rivalizar
com algumas cidades européias de que não pouco se fala nas narrações
de viagens.

E se não, vejamos.

Tem um paço municipal muito decente na rua Direita, e uma matriz e
mais oito templos que podem pertencer sem desaire a uma capital. Tem uma praça
de comércio, a qual se estende desde a rua chamada Portas de Roma (denominação
do tempo dos jesuítas) até ao Beco do Pavão, para não
dizermos até à rua do Meio, ou à rua do Rio.

Tem um teatro onde já tive ocasião de ver representar?se o
"D. César de Bazar", os "Dois Renegados", a "Corda
Sensível" e o "Judas em Sábado de Aleluia".

Tem cafés e bilhares, brinca o Carnaval pelo inverno, toma sorvetes
pelo verão, dá alguns saraus pelo Natal; enfim, para estar inteiramente
na moda, trata de iluminar?se a gás, de fundar uma biblioteca popular,
e tem já fundada uma loja maçônica, denominada Fraternidade
e Progresso, a qual tem prosperado notavelmente depois das últimas
excomunhões que o público sabe.

É uma cidade onde se pode viver com poucos meios, porque os habitantes
são hospitaleiros, os senhores de engenho fazem pingues presentes,
os negociantes vendem fiado e não executam os devedores.

É plana, limpa, elegante e espalhada. Dela não poderia dizer
Ampère o que disse de Goteborg, cidade da Suécia que tanto o
encantou de tarde com suas casas altas e regulares, quando o desiludiu pela
manhã sendo vista da torre da catedral, por não ser mais do
que uma rua.

Goiana, não só tem muitas ruas, mas também muitos becos,
verdade seja que alguns deles sem saída. Merecem particular apontamento
as suas casas brancas que lhe dão certos ares de novidade, ou de noivado,
ares que infundem indefinível alegria no espírito do hóspede.
Se este é lido, entrando em Goiana, logo sabe que não entrou
por engano em Saint Jean de Luz, ilustre cidade onde se celebrou por procuração
o casamento de Luís XIV com Maria Teresa de Espanha, e que, ao dizer
de um escritor, apresenta uma fisionomia sanguinária e bárbara,
em conseqüência do extravagante uso de pintarem de vermelho antigo
os batentes, as portas, as gelosias das suas habitações.

Há um provérbio espanhol que diz:

Quien no ha visto Sevilla No ha visto maravilha.

Teófilo Gautier pensa que mais justo fora que este provérbio
se aplicasse a Toledo, ou a Granada, do que a Sevilha, onde nada encontrou
particularmente maravilhoso, exceto a catedral.

O poeta sergipano, doutor Pedro de Calasans, que cedo foi arrebatado pelo
infortúnio e pela fatalidade às musas do norte, dizia outrora,
parodiando o provérbio espanhol:

Quem não ama Olinda, Não a viu ainda.

Assim será, assim é. Olinda semelha náiade gentil que
adormeceu sobre arrelvado morro os pés banhados pelo Atlântico,
a cabeça à sombra das mangueiras odoríferas.

Goiana, porém, tem também provérbio seu, e o seu provérbio
é de tal significação, que, na singeleza em que se expressa,
e de que o povo tem o segredo, insinua irresistíveis feitiços
a favor dela.

Vê tu, meu amigo, como são expressivas estas reticências
duvidosas, ambíguas, deliciosamente traidoras: Goiana……………….
Que a todos engana.

Eu não conheço nenhum tão expressivo na ordem dos rifões
populares.

O vocábulo enganar não tem nos nossos dicionários o
sentido que a inteligência rica e lúcida do povo goianista lhe
refere; tem somente a acepção ingrata que todos lhe sabemos.

Mas logo ao primeiro exame se vê que semelhante acepção
está muito distante da que a imaginação deste grande
povo liga ao sobredito verbo, quando emprega para exaltar o seu torrão
natal.

A palavra enganar, que faz parte do rifão, significa seduzir, cativar,
prender, mas seduzir com mil agrados irre

sistíveis; cativar com benignidade tão doce e fagueira, que
é impossível deixar de ficar dela escravo; prender com tantas
demonstrações afetuosas, com tamanha benquerença, que
em vez de buscar fugir, cada vez se sente o prisioneiro mais dese joso de
estar nessa suavíssima prisão, de não se desligar jamais
dos seus deliciosos grilhões.

Cristóvão de Holanda dirigira em pessoa, como haviam feito
todos os outros capitães?mores, o seu contingente na batida das matas
do seu distrito.

Não tendo porém encontrado o Cabeleira, mas somente ladrões
de cavalos e negros fugidos, recolheu?se à vila em paz com’ a sua consciência,
é verdade, mas descontente de não ver coroados dos brilhantes
sucessos, que esperava, os seus esforços.

Não lhe custou pouco renunciar ao empenho de pôr nas cordas,
como dizia ele, o maior facinoroso que pisava em Pernambuco.

Era presunção geral que a ele caberia, mais dia menos dia,
a glória de prender o Cabeleira que dava mostras de consagrar particular
estimação às matas de Goitá, lugar em que nascera
e que, posto pertencia neste tempo a Santo Antão, ficava mais próximo
do engenho Petribu que era propriedade daquele capitão?mor; e pertencia
então a Goiana.

Mas o boato falso que correu a respeito da prisão do bandido pelo
capitão?mor de Santo Antão, desvaneceu toda a esperança
que Cristóvão de Holanda alimentava a semelhante respeito.

E que era feito do Cabeleira ?

Por onde andava ele quando seu nome corria por milhares de bocas um milhão
de vezes no dia; quando sua imagem enchia o pensamento de um povo que o considerava
um flagelo não menos fatal do que a peste e a fome que o reduziam à
dor extrema?

Dizia?se que o Cabeleira, vendo?se perseguido tão estendidamente,
tinha rompido, sem deixar traços da sua passagem como costumava, o
cordão sanitário, e se havia internado nos sertões de
Cimbres, ou de Pajeú, donde era impossível desentranhá?lo
por serem então, como são ainda hoje, quase de todo desconhecidos
esses medonhos sertões.

Dizia?se que, tomando para o norte, atravessara o Capibaribe e ganhara a
ribeira do Pilar do Taipu, na Paraíba, a qual muitas vezes percorrera,
tendo?a deixado coberta de cadáveres e ruínas.

Correram estes boatos e outros mais que com estes se pareciam.

O certo porém é que ninguém sabia do Cabeleira, ente
incompreensível que surgia de súbito da terra sem ser esperado,
e pela mesma forma desaparecia, como se se metesse por ela adentro, por partes
do demo, segundo alguns acreditavam, ou por ter em toda a parte parciais,
ou protetores, segundo pensavam outros que se diziam melhor informados do
que os primeiros.

CapÍtulo XIII

O Cabeleira entretanto atravessava matos, riachos e tabuleiros por novos
caminhos que, infatigável e ousado, ia abrindo, em direitura ao lugar
do seu nascimento.

Sentia-se atraído para esse lugar por uma saudade infinda, por uma
confiança enganosa e fatal.

Parecia-lhe que ninguém, nem a justiça dos homens nem a de
Deus, na qual desde os mais verdes anos o tinham ensinado a não acreditar,
teriam poder para arrancá-lo desses sombrios e protetores esconderijos,
dessas grutas insondáveis, perpetuamente abertas às onças
e a ele, perpetuamente fechadas ao restante dos animais e dos homens que não
se animavam a transpor-lhes o escuro limiar com receio de ficarem sepultados
para sempre em tão medonhos sarcófagos.

Tendo-se afastado do pé da mata onde haviam sido vencidos e capturados
em seus redutos os outros malfeitores, descreveu uma oblíqua de cerca
de uma légua no rumo do ocidente e desceu depois a uma distancia donde
pudesse ter debaixo das vistas o Tapacurá, que lhe servia de guia através
do sertão.

Estava em pleno deserto. Do lado direito protegiam-no estendidos tabocais
e profundas gargantas de serra inacessíveis, sem habitação,
sem viva alma; do outro lado do rio um espinhal basto, alguns serrotes escalvados,
catingas sem fim, brejos combustos do calor do sol completavam o largo amparo
que lhe abria em seu seio a natureza.

Com a seca abrasadora essa região, que nunca fora amena, ainda na
forca do verde, estava inóspita, árida, cruel.

Via-se a espaços um pé de xiquexique perdido nos alvos tabuleiros,
ou entre serros alcantilados, e junto do rio uma ingazeira com a folhagem
coberta de samambaia, um juazeiro solitário e sem fruto.

Seria meio dia.

Bem que o Cabeleira pelo longo hábito de jornadear por dentro dos
matos, e pelo cuidado que tinha de escusar importunos encontros, só
à sombra das árvores fazia a travessa do deserto; contudo entraram
ele e Luísa a experimentar o cansaço que o excessivo calor gera
máxime durante uma viagem de muitas horas.

Luísa mal se podia ter sobre o cavalo, que nem ao menos oferecia o
cômodo de uma regular montaria. A marcha do pobre animal tanto mais
penosa tornava para os fugitivos quanto as forças lhe iam faltando
em conseqüência do longo jejum, e da puxada viagem.

Desde muito tempo afeito a viver no deserto, tinha o Cabeleira adquirido
uma virtude sóbria, obra de longas privações, e fonte
de admirável heroísmo; não assim Luísa, pobre
menina, criada com grande afeto, e maternal solicitude.

Não tivera ela uma existência de gozos e grandezas, mas nunca
lhe faltaram os cômodos que assegura a vida regrada da família,
que, embora pobre, encontra no trabalho e na economia recursos folgados para
todas as necessidades até alguns confortos. A sombra de um jatobá
o Cabeleira parou, e, lançando o olhar por toda a natureza, que os
abraçava como a imensidade abraça um ponto:

Estamos fora de perigo disse para Luísa.

Esta chorava em silêncio. Em seu rosto abatido, mas sempre belo transparecia
a mágoa profunda que lhe minava o coração, onde se refletia
a viva lembrança das cenas da noite anterior.

De que chora, Luisinha ? perguntou-lhe o bandido com doçura.

Só com a mudez e as lágrimas lhe respondeu a moça, em
cujo espírito se haviam concentrado todas as sombras da tristeza, sombras
espessas em que o sol a pino não pode lançar um raio de luz
sequer.

Está cansada, não é, meu amor? perguntou o Cabeleira.
Estou para morrer. Sinto uma pena imensa no coração, e dores
insuportáveis na cabeça.

Não me queira mal, Luisinha, por eu ter sido a causa de todo este
destroço.

Não lhe quero mal; quero-lhe bem, muito bem, Cabeleira. Mas não
posso esquecer-me de minha mãe, nem poderei resistir à minha
desgraça, que eu considero muito maior do que a sua.

Descansemos um pouco à sombra deste jatobá. Terei tempo de
procurar algumas frutas para você comer.

Não tenho fome, só tenho sede.

Vamos então arranchar-nos debaixo daquela ingazeira, que fica a poucos
passos do rio.

Tendo-se apeado ao pé da árvore indicada, o Cabeleira peou
o cavalo em uma baixa que formava a margem, da qual não havia desaparecido
de todo a grama nascida com o último inverno; e sem demora desceu ao
poço contíguo para apanhar água em uma casca de sapucaia
que descobriu por acaso entre umas folhas secas.

Notou que quanto mais se estendia a depressão do terreno para o lado
do rio, mais aumentava a verdura que a revestia. Conheceu por fim que havia
dado em uma vazante.

Semelhante achado pareceu-lhe coisa extraordinária naquelas alturas
ínvias e desertas. Mas não se tinha enganado; a região
que se lhe oferecia à vista não era de todo desabitada; ali
brilhavam vestígios da mão do homem; ali havia o cunho de um
esforço de que ele nunca fora capaz, o cunho do trabalho.

Era pequena a plantação, mas tida, ao que parecia, em alta
conta por quem quer lhe consagrava os seus cuidados e vigilância.

Estava verde, limpa, matizada de frutos. Com os ramos do jerimunzeiro se
confundiam as folhas lanceoladas do batateiral. Ao lado da melancia lourejava
o melão, de que recendia suave cheiro; e dentre o entretecido de verdura
formado pelo conjunto dos ramos rasteiros em que se achavam presos estes deliciosos
presentes da terra, levantavam-se ao céu, de covas eqüidistantes,
os pés de milho com seus pendões inclinados e suas corpulentas
espigas, em torno das quais se esparziam os fulvos cabelos que costumavam
adornar estes abençoados frutos.

É indescritível o prazer que sentiu o bandido ao deparar com
aquele tesouro.

Tinha a seu alcance com que matar a fome, cujos efeitos começava a
sentir, tinha um presente que oferecer à sua companheira, extenuada
de fadiga.

Separar do pé com a faca, duas melancias, e quebrar algumas espigas
foram operações que o Cabeleira praticou em menos de um minuto.
O estalar do milho despertou um rapazito, que, achando-se ali para enxotar
as maracanãs que destroem os milharais, adormecera ao calor do meio
dia na extremidade da vazante debaixo de uma latada formada pelos ramos de
um pé de maracujá que, com a frescura do solo, se mostrava verdejante
e florido.

Ladrão ! Ladrão ! gritou o rapazito com valor e força
superiores aos que o seu corpo e estatura prometiam.

E armado com um pau, investiu contra o Cabeleira, que a inesperada aparição
deixara um instante perplexo com parte do furto em uma mão, e a faca
nua na outra.

O rapaz ganhou em poucos passos a distância que o separava do bandido,
e descarregou sobre a cabeça deste, sem dizer tir-te nem guar-te, o
pau que trazia alçado. O Cabeleira em represália atirou-lhe
um golpe com o intuito de cortá-lo de meio a meio, intuito que foi
burlado por Luísa que-lhe havia pegado do braço a tempo de evitar
a desgraça iminente.

Cabeleira ! Queria fazer uma morte ainda ? Meu Deus, abrandai-lhe o coração.

Luisinha, eu não sei bem o que queria fazer disse o moço caindo
em si. Mas este dorminhoco deu-me com o seu graveto como se eu fosse algum
pinto.

Quero-lhe muito bem, meu amor acrescentou a moça com a profunda ternura
que, quando verdadeiramente quer e sente o que quer, a mulher sabe ter no
olhar, no gesto, na voz. Mas quando o vejo como agora de arma em punho, ameaçando
com certeiros quais são os seus, a vida de alguém, sinto tão
grande dor, que você não pode compreender o meu padecimento.

Cabeleira inclinou os olhos ao chão, meteu a faca na bainha e deu
a andar com os frutos debaixo do braço.

Para que traz você estes frutos consigo ? perguntoulhe Luísa.
Eles não nos pertencem, e não podemos apossarnos, contra a vontade
de seu dono, daquilo que não é nosso.

Que vamos comer ? perguntou muito naturalmente o mancebo.

Comeremos o que nos der o mato. Deus está em toda parte, e não
se esquece dos que invocam a sua proteção.

Cabeleira submisso e humildemente depôs as frutas no chão sem
mais reparo. Quanto ao rapazito, guarda da vazante, havia desaparecido desde
que ouvira pronunciar o nome, que de sul a norte significava, para grandes
e pequenos, roubo e atrocidade.

Nova surpresa os esperava na margem, onde o bandido foi dar com dois indivíduos
que de pé o olhavam do alto de uma pedra, tendo um deles pelo cabresto
o árdego alazão, já livre da peia com que o atirara ao
campo o Cabeleira.

Defronte da árvore, a cuja sombra os fugitivos haviam descansado,
formava o terreno uma grande ribanceira.

Os desconhecidos estavam aí com a frente voltada para a vazante, o
lado direito para o continente, e o esquerdo para o rio, que nessa altura
era largo e profundo.

Parece que você veio enganado, camarada disse o Cabeleira, saltando
em um minuto aos pés daquele que tinha pela mão o cavalo. Este
animal não lhe pertence.

Este animal é meu no céu e na terra. Há dois dias o
furtaram do meu roçado no Angico Torto. Pus-me na batida do ladrão,
e finalmente vim dar com o meu cavalo. Ele é meu, tão certo
como estou aqui. Tem o meu ferro na anca direita, e você o pode ver,
se ainda não se quis dar a esse trabalho.

Pois o que eu lhe digo, camarada, é que fosse ele de quem fosse,
por mais homem que seja, ninguém será capaz de tirá-lo
do meu poder.

Isto agora é que havemos de ver disse o desconhecido, batendo mão
da faca que trazia no cós da ceroula e fazendo-se prestes para lutar
pela reivindicação da sua propriedade.

Monta no teu cavalo, Marcolino gritou o outro desconhecido ao companheiro;
monta no teu cavalo e vai-te embora, que eu só sou demais para lamber
este cabra.

Ainda bem não tinha acabado, quando cortava os ares um corpo semelhante
a tronco de árvore que o furacão arrebata às florestas
e arroja a distancias incomensuráveis. O fanfarrão fora jogado
com todos seus bélicos aprestos dentro do poço pelas mãos
possantes do famoso matador.

Cabeleira ! gritou Luísa, correndo ao lugar onde em menos de um instante
se passara a inesperada cena.

Marcolino, que a esse tempo se achava montado no alazão, tendo ouvido
este fatal apelido, deu de pernas ao cavalo e fugiu evidentemente aterrado
como se a seus pés houvesse visto cair um raio.

O Cabeleira, entretanto, tinha corrido ao pé da ingazeira onde havia
deixado o bacamarte quando se apeara. Mas não logrou levá-lo
ao rosto para dispará-lo como pretendia, contra o fugitivo, porque
Luísa, unindo-se com ele, e buscando arrancar-lhe a arma das mãos,
lhe disse com voz magoada, entre exprobração e pranto:

Por que não me tira a vida de uma só vez, Cabeleira ?

Diria que Luísa estava possuída de um espírito angélico.

De ontem para cá prosseguiu ela tem jurado milhares de vezes não
derramar mais sangue sobre a terra, e milhares de vezes tem quebrado seus
juramentos ! Sempre que falta à sua palavra, atravessa sem o suspeitar
o meu coração com sua faca. Não demore mais o meu penar,
mate-me de uma vez. Perdôo-lhe a morte, por Deus lhe juro, por Deus
que nos está ouvindo no meio desta solidão.

Luísa tinha-se insensivelmente ajoelhado aos pesdo bandido, e lhe
abraçava as pernas com mostras de irrepreensível afeto. Dos
olhos rolavam-lhe lágrimas como contas de rosário espedaçado.

Estático, e confuso, não achou José palavras para responder
à exprobração e rogativas que aquele coração
generoso ditava inspirado pela piedade de uma alma grande e terna.

Não me fale assim, Luisinha respondeu enfim o bandido, levantando-a
e abraçando-a.Quando eu a vejo chorar, sinto-me enfraquecer; quando
você me pede alguma coisa, sou incapaz de negar-lhe, ou de resistir
à sua vontade.

Mas de que serve o que me diz, se não se esquece da sua vida tão
triste e infeliz ? Cabeleira, por que não se há de tornar brando
e terno como Luísa ? Olhe. A morte está mais perto de mim do
que…

A morte ! exclamou o bandido.

Sim; dentro em pouco eu o deixarei, mas enquanto não nos separarmos,
poupe-me estas cenas que me transpassam o coração. Quando eu
desaparecer de seus olhos, não se considere só no mundo. No
lugar que meu corpo deixar vazio ao pé de si, há de ver sempre
a alma benévola da pobre Luísa; ela o acompanhará por
toda parte para inspirar-lhe os bons pensamentos e aconselhar-lhe a prática
das boas ações. Por que não me dá consolação
de reconhecer em você desde já um espírito arrependido
dos passados erros ?

Ah! Luisinha! Você me abranda com suas palavras, em sua presença
eu me considero uma criança.

É Deus que me ajuda a quebrar seus ímpetos, a moderar sua
cólera. Ele há de ouvir todos meus rogos, há de inspirar-lhe
horror ao sangue e aos instrumentos que o derramam.

Cabeleira, como se tivesse recebido nestas palavras aviso celeste, replicou:

Não levantarei mais minha mão contra ninguém, Luisinha.
Quer uma prova desta resolução ? Veja. É a maior que
lhe posso dar.

Tirou o fuzil e a pedra do bacamarte, os quais meteu na algibeira da véstia.

E por um desses sublimes impulsos que só visitam o ho mem uma vez
na vida, arremessou a arma dentro do rio. Este ato foi seguido de outro que
o completou e confirmou. Batendo com a faca sobre uma pedra que ficava na
ribanceira, fez saltar dentro da água metade da folha de aço
que tinha cortado o fio de muitas vidas preciosas, e feito correr muito sangue
inocente sobre a terra.

O bandido obrou estas duas ações com tanta fé e grandeza
d’alma, que Luísa correu a ele dominada de peregrina comoção,
e o apertou em seus braços.

Só o deserto foi testemunha desta grande cena, porque eles estavam,
como havia poucos, sós.

O menino que guardava a vazante havia desaparecido logo que ouvira pronunciar
o nome do Cabeleira.

Os dois desconhecidos, um salvo das águas, outro salvo do tiro iminente,
tinham corrido a refugiar-se no seio da espessura.

E agora, Luisinha, terá ainda alguma coisa que dizer de mim ? perguntou
José com ingenuidade infantil.

Os meus rogos foram ouvidos por aquele que dali nos vê e ouve como
pai misericordioso. O medo que eu tenho agora é que as tropas o peguem
e o roubem de meus braços ! Oh ! fujamos já deste lugar. Quem
sabe se aqueles homens não correram a denunciá-lo ! Misericórdia,
meu Deus ! Que fazemos ainda aqui ?

Puseram-se no mesmo instante a caminho na direção do ocidente.

Capítulo XIV

O sol chegou ao horizonte, e as sombras começaram a vasta solidão.

O Cabeleira parou ao pé de um serrote, e escutou.

Um ruído estranho vencia a distancia e vinha ecoar aos ouvidos dos
fugitivos.

Estamos perto disse ele. Não houves este barulho? São as águas
do Tapacurá que caem no Capibaribe. De madrugada atravessaremos este
rio, e se bem andarmos poderemos estar depois de amanhã a esta hora
em Goitá, terra do Cabeleira.

Ai ! disse a moça. Não posso mais.

Tinha as faces em brasa, e os olhos, injetados, acusavam a febre ardente
que a consumia desde a noite anterior.

Não esmoreças, meu bem disse o mancebo. Havemos de ser felizes.

Onde ? Neste mundo ? perguntou ela com incredulidade. Na terra não
há felicidade, Cabeleira; na terra só há dores e prantos,
saudades e remorsos.

Pois eu te mostrarei que se pode ser feliz no deserto, no fundo das brenhas.
Não matarei mais a ninguém, meu amor. Bem dentro da mata virgem,
em um lugar que só eu conheço, há um olho d’água,
que nunca deixou de correr. Junto deste olho d’água há uma chã,
no fim da chã um bosque, e por detrás do bosque uma montanha
imensa que rompe as nuvens. O olho d’água nos matará a sede
todo o ano, na chã levantarei uma casinha de palha para nós;
no meio do bosque abrirei um roçado que nos há de dar farinha,
macaxera, feijão e milho com abundância; e quando a seca for
muito forte, como esta, subiremos a serra, e aí passaremos dias melhores.

Se assim fosse… Se assim pudesse ser… balbuciou Luísa.

Por que não ?

Por que ? Porque a desgraça aí está para desmentir
o seu sonho, Cabeleira.

Olha, Luisinha. Os homens me deixarão logo que eu não os ofender
mais. Não sei ainda trabalhar, mais hei de saber. Tu me ensinarás,
e eu aprenderei.

O Cabeleira disse estas palavras com a ingenuidade e doçura de uma
criança. Luísa não se pôde conter; correu a ele,
e pela segunda vez o apertou em seus braços e cobriu com as suas lágrimas.
Ele abraçou-a e beijou-a com a efusão do primeiro amor, que,
depois de longamente adormecido, desperta de súbito com as energias
que cresceram durante o sono, e se fizeram forças invencíveis.

Ali adiante disse o Cabeleira apontando para um embastido de árvores
que aparecia ao pé de um serrote poderemos passar a noite, a nossa
primeira noite de noivado.

Luísa estremeceu, e supirou. Se não se tivesse arrimado ao
braço do bandido, teria caído.

Triste noivado, Cabeleira, triste noivado, que se cobre de prantos e luto.

Não te amofines assim. O Cabeleira não é mais o assassino,
Luisinha. O ladrão, o matador já não está aqui
ao pé de ti. Quem aqui está é um homem que quer ser um
homem de bem.

Deram o andar para o lugar indicado.

A este tempo o sol tinha desaparecido, e o horizonte estava já envolto
nas sombras precursoras da noite. Nem leve brisa movia as folhas dos matos
mudos e quedos.

Os perfis das árvores solitárias desenhavam-se, no fundo do
pavoroso ermo, como perfis de fantasmas.

Os fugitivos entraram no embastido, e depois de alguns passos deram em uma
clareira, espécie de asilo reservado pela natureza aos peregrinos que
vagam sem rumo e sem guia.

Uma fogueira foi logo improvisada para terem luz durante a noite e evitar
que se aproximassem as onças cujos uivos medonhos começaram
a repercutir nas quebradas e gargantas das serras.

Procurava o mancebo galhos secos para entreter o fogo quando, ao pé
de uma árvore que se levantava a um lado da clareira, deu com uma tosca
cruz de pau cravada na terra.

Era quase noite, e, no meio das sombras crepusculares, confundiu ele ao princípio
o emblema da redenção com um tronco de árvore cortada
por algum viajante transviado, ou despedaçada pela tormenta.

Quando reconheceu o sagrado emblema, o Cabeleira, suspenso pela surpresa,
sentiu-se abalado ao mesmo tempo por uma comoção desconhecida.
No lugar ocupado pela cruz tinha ele assassinado um ano antes um marchante
de gados para lhe roubar o dinheiro que trazia da feira em Santo Antão.

O bandido voltou o passo atrás horrorizado e correu em busca da moça,
gritando, como um menino:

Luisinha ! Luisinha !…

A moça aflita sem saber por que, lançou-se ao seu encontro
e o recebeu em seus braços.

Ninguém te há de tirar daqui disse ela, suspeitando que o
queriam prender. Não, não, tu me pertences. Deus ajudou-me a
parar-te no caminho do bem. Ninguém tem mais o direito de te perseguir.

Eu o vi lá outra vez, Luisinha. Ele olhou-me silencioso e triste.

Ele quem ? perguntou ela.

O marchante; o velho a quem assassinei para roubar. Lá está
ele com os cabelos brancos ensopados em sangue.

Meu Deus ! Meu Deus ! exclamou a moça. Cometeste ainda um assassinato,
Cabeleira ? Meu Deus, quanto sou infeliz !

Não, não foi agora; faz um ano; foi ali, junto do jatobá.
Olha; não vês aquela cruz de pau enterrada no chão ? Foi
aí que matei o sertanejo.

É impossível descrever a comoção de ambos. O
sítio, a hora, tudo concorria para dar à impressão uma
intensidade que ia ao fundo do coração, à medula dos
ossos.

Estou-me lembrando de tudo prosseguiu o bandido. Eu estava sentado, com
o clavinote atravessado nas pernas debaixo daquele pé de pau. Ouvi
as pisadas de um cavalo, e o estratar garranchos e cipós que se quebravam.
Meti-me um pouco mais para dentro, a fim de ver, sem ser visto, quem é
que vinha. Eu estava com fome, e não tinha dinheiro nenhum. "Se
fosse um homem que trouxesse dinheiro", pensei eu, "estava muito
bem !" Neste momento o cavaleiro passou por diante de mim. Trazia chapéu
novo, um gibão de pano fino azul, botas lustrosas e esporas de prata;
montava um cavalo ruço pombo, gordo e passeiro. Conheci logo que era
um marchante. Levei o bacamarte ao rosto, e quando o cavaleiro quebrou ali
à direita para tomar o vau do rio, fiz-lhe fogo na cabeça. Corri
com a minha faca na mão ao lugar onde ele havia caído. Estava
morto; a bala tinha-lhe entrado ao pé da orelha direita e saído
acima do olho esquerdo. Ambos os olhos estavam da banda de fora, o cabelo
e a barba nadavam em sangue. Tirei-lhe um maço de patacões que
trazia em um dos bolsos do gibão, o punhal aparelhado de prata, os
botões de ouro, o relógio e as esporas; e meti-me no mato virgem.

Luisinha mal pôde ouvir esta história que foi rapidamente contada,
com vivas e medonhas cores.

Misericórdia, Senhor ! exclamou ela.

Ele lá está, Luisinha, de pé, com o chicote na mão,
olhando para mim com os seus olhos mortos, à flor da cara.

A moça meditou um momento.

Vamos disse por fim, encaminhando-se para a sepultura; vem comigo.

Oh! não; aquela visão me aterra. Nunca tive tanto medo, eu
que vi imensos cadáveres banhados em sangue aos meus pés.

O medo passará em um instante, Cabeleira.

De que modo, Luisinha ?

Vamos. Vem rezar comigo em cima da cova ao pé da cruz.

A rezar ?

Assim que tiveres rezado um Padre Nosso e uma Ave-Maria em tenção
do morto, sua alma desaparecerá de tua vista. Vamos, Cabeleira.

O bandido deixou-se ir a modo de arrastado pela moça que parecia,
com seu vestido azul e seu lenço branco, passado em torno do pescoço,
o anjo da prece na solidão.

Ajoelharam-se ao pé da cruz, Cabeleira com a face quase oculta por
seus longos cabelos negros, Luísa com a cabeça erguida, e os
olhos postos na frouxa claridade do sol que se desvanecia na abóbada
celeste. Defronte deles a cruz ressequida, solitária e muda testemunhava
aquela cena com a solene indiferença dos símbolos sagrados que
é muito mais expressiva e eloqüente para os seus crentes do que
as vozes da mor parte dos sacerdotes da respectiva religião.

Reza, Cabeleira disse a moça ao matador assombrado.

Ai, Luisinha! Não sei rezar! disse ele com voz tão sentida
e magoada que indicou a pena profunda que lhe cortava o coração.

Ele estava na realidade comovido até as entranhas. Superexcitado pela
falta de alimentação, pelo cansaço da jornada, pelo calor
do dia, pelas recordações que o afligiam de envolta com o remorso
incipiente, via a cada canto a terrível visão reproduzida na
clareira, na selva, nos ares, finalmente em toda parte aonde volvesse os pávidos
olhos.

Eu te ensinarei redargüiu Luisinha. Dize comigo.

A moça principiou então em voz alta o Padre Nosso.

A voz do bandido, ao princípio titubeante e temerosa, foi-se pouco
e pouco animando, e elevando.

Quando houverem de passar à Ave Maria, o Cabeleira tinha já
os olhos pregados na cruz, e a fé, que começava a germinar em
seu espírito, elevava-o insensivelmente a regiões desconhecidas,
onde, sem que ele pudesse explicar como, lhe davam a respirar confortos que
só podiam ser celestiais.

Da Ave Maria passaram à Santa

Maria e desta à Salve Rainha.

Em cada uma das palavras destas orações achava o bandido uma
beleza nova e insinuante que lhe despertava delicioso sentir.

Seu espírito, que durante vinte anos só conhecera idéias
de sangue e morte; seus ouvidos, afeitos a escutarem palavras licenciosas,
insultos, arrogâncias, queixumes e maldições, recebiam
agora doces expressões que anunciavam uma consoladora existência
superior.

Do pavor, que trouxera aos pés da cruz, passara a uma fortaleza de
animo quase invencível.

Antes de se levantar volveu os olhos em torno de si e não viu mais
a visão que o amendrontara, havia pouco.

Oh! Luisinha, como é poderosa a oração ! disse ele.
Minha mãe, que tantas vezes pos as suas contas nas minhas mãos,
bem sabia que a oração tem mais força do que os homens
e vence todas as armas ! É por isso que me ensinava a rezar, a mim
que só aprendi a tirar a fazenda e a vida dos meus semelhantes.

Datou desse feliz momento o arrependimento do Cabeleira.

Depois de oferecidas estas orações, lavantaram-se os fugitivos,
e foram depor cada um seu beijo aos pés da cruz do ermo.

No bandido já não havia o assassino, havia um espírito
contrito, um coração cheio do temor de Deus. Uma mulher fraca,
tendo ao seu serviço unicamente a benevolência natural, a perseverança,
as lágrimas e um passado quase desvanecido, havia operado uma conversão
com a qual poderia legitimamente orgulhar-se um verdadeiro apóstolo
do cristianismo. Com sua luz suave enchia o deserto o astro das recordações
e da saudade. O céu estava azul e estrelado. As brisas da noite começavam
a mover as folhas do bosque, onde os silvos das cobras, os pios das aves erradias,
os uivos dos animais carniceiros formavam lúgubre e medonha orquestra.

Luisinha caiu em uma espécie de sonolência e pouco depois sentiu
perturbação mental, e veio-lhe delírio, durante o qual
deixou escapar palavras desconexas. A febre que a devorava tinha aumentado
com a excessiva fadiga, e com a intensidade das impressões do dia.
Cabeleira estendeu por cima dela a sua véstia de couro, e, profundamente
comovido, foi sentar-se ao pé da fogueira para não a deixar
extinguir-se, e para impedir que se aproximassem as onças que não
cessavam de ulular em derredor deles, ameaçando devorá-los.
A vida no deserto está exposta a perigos, que mal compreende o que
não nasceu no meio deles; só os compensa a liberdade que se
depara em qualquer dos gozos que aí se logram.

Pela madrugada adormeceu ao peso da fadiga e ao silêncio que foram
fazendo em torno de si as feras. Quando acordou era quase dia. Os passarinhos
cantavam com o entusiasmo que desperta em todos os corações
o raiar de um dia de verão no seio da natureza.

Seu primeiro cuidado foi saudar aquela a quem devia a ressurreição
de sua alma, outrora em trevas aflitivas, agora inundada do suave clarão
da piedade cristã.

Luisinha, acorda disse ele. A manhã está fresca. Os passarinhos
cantam. A viração tem os cheiros do deserto.

Aproximou-se de Luísa tomou-a nos braços, conchegou-a ao seio,
e depôs-lhe nos lábios um beijo de amor. Os lábios da
gentil menina estavam frios, seu corpo gelado. Luísa não pertencia
mais a esta vida.

Reconhecendo a cruel realidade, o bandido deu um grito de dor que atroou
a imensa solidão como urro de touro selvagem.

Morta ! Morta ! Luisinha !

O cadáver da moça escapou-lhe dos braços, mas logo o
bandido caiu de joelhos aos pés desse corpo inanimado, com o qual tinham
falecido todas as suas esperanças de felicidade.

Luisinha, responde me disse ele. De que morreste, meu amor ?

Levantou-se, deu alguns passos a esmo, e tornou ao leito de ramos que tinha
servido de leito de morte à virgem dos seus pensamentos.

Pegou-lhe das mãos, que beijou uma, duas, inúmeras vezes, examinou-as,
examinou o rosto da infeliz, e só encontrou aí os vestígios
do transito final. Tudo estava acabado para ela. Foi esta a verdade cruel
que ele viu traspassado de uma pena que se não descreve, e que só
ele sentiu nesta vida.

Sentou-se no chão, e suspendeu o cadáver para o atravessar
sobre os joelhos. Um galho da árvore, que com sua folhagem havia obrigado
a moça durante a noite, afastou-lhe o lencinho branco que lhe envolvia
o pescoço, e indiscretamente descobriu aos olhos do consternado amante
seus seios virgens.

Ao vê-los, soltou este nova exclamação de dor. A chama
que Luísa para salvar Florinda do incêndio, transpusera a noite
anterior, havia deixado uma só chaga no lugar onde a natureza tinha-a
dotado com um cofre de graças e perfeições peregrinas.

Queimada ! Oh ! Luisinha, que sofrimento não foi o teu ! Que dores
não suportaste em silêncio, desgraçada criança
! E como fico eu sem ti, meu amor ? Ai de mim, Luisinha ! Ai de mim !

O ânimo varonil, que sempre se mostrara inteiro e imoto, agora agitado
por comoções tão violentas, dobrou-se enfim e deu larga
prova de fragilidade humana. Dos olhos do bandido irrompeu uma torrente de
lágrimas. Soluços, como animal bravio, escaparam de seu peito
e ecoaram pela imensidade ainda em grande parte adormecida. Havia quinze anos
que esses olhos não choravam diante dos mais tristes e lastimosos espetáculos.

Que noivado o meu ! É o noivado do assassino ! Oh ! meu Deus !

De repente do lado do rio soou um clarim.

A dor sucedeu o susto, e depois o terror no animo do desgraçado mancebo.
Só, sem armas, arrependido de toda sua vida de crimes, que restava
ao Cabeleira naquele doloroso transe ?

O clarim soou mais perto, e com as vozes deste instrumento chegou aos ouvidos
do mancebo um retintim de espadas e facões que indicava, junto com
as sobreditas vozes, a existência de um corpo militar por aquelas bandas.
Andava de feito por ali um dos piquetes do regimento de Cristóvão
de Holanda, o qual, depois de ter batido algumas matas suspeitas, se recolhia
à vila, donde havia partido na noite imediata.

Cabeleira depôs o cadáver de Luísa sobre os ramos, e
afastou-se para dentro do mato não sem novo sobressalto, à vista
do risco em que se achava.

Depois de ter desaparecido, voltou novamente e suspendeu em seus braços
o corpo com o intuito de conduzi-lo consigo para dentro da espessura. Mas
quando ia a entrar aí com o triste resto do seu tesouro, um homem apareceu
na extremidade da clareira. Era o Marcolino que, havendo-se encontrado com
o piquete ao cair da tarde anterior relatara o que havia acontecido junto
da vazante, e se oferecera para o guiar no rumo do fugitivo.

Este, vendo que a sua vida estava em perigo, e que a perda de um momento
podia ser-lhe fatal, resignou-se a deixar o precioso despojo, e internou-se
de uma vez no mato.

Com pouco uma companhia de soldados penetrou no pouso onde Marcolino já
havia dado com o corpo de Luísa

Cheguem, cheguem depressa. Dormiu aqui o assassino. Ali está a fogueira
ardendo ainda, e aqui a sua própria companheira, que ele deixou morta.
Ah ! malvado !

Os milicianos rodearam o cadáver de Luísa sobre cujo rosto
não seria difícil descobrir ainda vestígios das lágrimas
do desgraçado mancebo.

Perversol Perverso! exclamaram alguns deles indignados do que viam, mas
não sabiam.

Não satisfeito de ter matado mulheres e meninos no fogo, veio tirar
aqui a vida a sangue frio àquela que o quis acompanhar.

Não percamos tempo observou Marcolino. Ele deve estar perto daqui.
Vamos, minha gente, vamos descobrir o assassino enquanto ele não nos
escapa.

É verdade. Alto frente. Toca a corneta. Tiririca.

Não toques, que se o Cabeleira nos ouvisse, ninguém mais lhe
punha o olho em cima, quanto mais a mão.

Se não fosse esta corneta, já tínhamos pegado o cabra
observou Marcolino.

Qual cabra nem meio cabra. Aquele que tem de pegar o Cabeleira está
ainda por nascer.

E entraram na espessura.

CapÍtulo XV

O Cabeleira desapareceu no mato como desaparece o peixe no seio da corrente
caudal.

Os milicianos, bem que homens igualmente rústicos, e conhecedores
das florestas, não tinham todavia o longo uso da espessura, uso que,
ainda neste particular, tornava superior a eles o valoroso malfeitor.

Espalharam-se em diferentes direções, a esmo, sem plano, e
por isso sem probabilidade de bom resultado.

O piquete não era numeroso, e vinha quase debandado quando encontrou
o Marcolino que denunciou o ponto onde havia deixado o fugitivo.

Poucos deram crédito às palavras do matuto, e só por
desencargo da consciência alguns se prestaram a dar a busca que ele
propôs, e que, a seu parecer, não podia deixar de surtir o desejado
efeito.

Gastaram quase o dia inteiro na diligência.

Por fim, dissuadidos de descobrirem o assassino, cada um tomou o caminho
mais curto para sua casa, dando alguns ao diabo o Marcolino por tê-los
feito andar para dentro e para fora do mato inutilmente, e acreditar em esperanças
que não se realizam.

E veio você fazer-nos perder mais um dia, compadre Marcolino disse
um dos milicianos, aborrecido e fatigado do infrutífero lidar. Nem
você chegou a ver o Cabeleira. Viu algum rangedor de cachos compridos,
e já pensou que era o mameluco.

Eu não digo uma coisa por outra. Vi-o com estes olhos que a terra
fria há de comer. Falei com ele como estou falando com você agora.
Lá o ele ter voado como passarinho, ou Ter-se metido pela terra adentro
como tatu ou jararaca, é caso à parte.

Você viu periquito e cuidou que era arara ou canindé replicou
o miliciano.

Compadre, você está fazendo pouco em mim. Ora, deixe-se disso,
que eu não sou de lérias, como você bem sabe. É
tão certo que vi o Cabeleira, que até lhe tomei o cavalo que
ele me havia furtado, o meu alazão.

Pois, então, pode montar no seu alazão e voltar à casa.
De lembranças à comadre Maria e lance a bênção
a meu afilhado Gazuza. Se encontrar outra vez o Cabeleira, de-lhe um abraço
por mim, um beliscão e uma boquinha.

Eu, se tivesse ainda o meu alazão, juro-lhe que havia de desencavar
o Cabeleira, ou com a vida ou com a morte.

E que fim levou o seu quartau ?

Espaduou de muito andar. Parece que desde a hora em que o maldito demo o
tirou do meu quintal não soube mais o que era comer nem beber, e andou
num cortado.

Se você quer servir-se do meu cavalo castanho, ele nos está
ali ouvindo. Desta vez estou falando sério.

Onde está ele ?

No sítio do Felisberto, aonde o mandei com um costal de mandióca.

Pois aceito, meu compadre, a sua proposta. Hei de mostrar-lhe que o que
digo, digo. Se eu não descobrir neste matão, ou por estas beiradas
de rio o Cabeleira, hei de saber notícias dele seja onde for. Também
de uma coisa tenha você certeza: quando ouvir sua mulher dizer: "Aí
vem o compadre Marcolino no cavalo castanho", fique logo sabendo que,
se eu não deixei o Cabeleira na embira, o deixei no buraco.

Os dois matutos achavam-se na margem esquerda do Capibaribe.

Na margem oposta levantava-se, entre umas laranjeiras e uns oitizeiros, uma
casa de bom parecer. Era a casa de Felisberto.

Eles atravessaram a vau o rio, e foram ter à graciosa habitação,
que no meio daquele deserto atestava a existência de uma civilização
rudimentar no lugar onde havia caído, sem tentativa de proveito para
a sociedade que o sucedera, o gentilismo guarani digno de melhor sorte.

Do alto onde fora construída a habitação via-se o rio
que corria na distancia de umas dezenas de braças, e desaparecia por
entre umas lajes brancas no rumo de leste; do lado do ocidente mostravam-se
as lavouras de Felisberto desde as proximidades da casa até onde a
vista alcançava.

Felisberto aplicava-se quase exclusivamente à cultura da roça.
No perímetro de vinte léguas em derredor era o lavrador que
desmanchava mais mandioca no fabrico da farinha, que era de tão boa
qualidade que competia no mercado do Recife com a farinha de Moribeca, já
então afamada. Havia anos em que ele mandava para o Recife cerca de
duzentos alqueires.

Um negro, uma negra, duas negrotas e três molecotes filhos dos dois
primeiros faziam prodígios de valor na cultura das terras. Amanheciam
no cabo da enxada e só se recolhiam quando faltava uma braça
para o sol se esconder no horizonte. Estes escravos viviam porém felizes
tanto quanto é possível viver feliz na escravidão. Não
lhes faltava que comer e que vestir. Dormiam bem, e nos domingos trabalhavam
nos seus roçados. Em algum dia grande faziam seu batuque, ao qual concorriam
os negros das vizinhanças.

Quando o Felisberto se casou com a filha de Lourenço Ribeiro, mestre
de açúcar do engenho Curcuranas, teve a feliz idéia de
ir estabelecer-se naquele sítio que comprara com algumas economias
que lhe legara um tio que vivera de arrematar dízimos de gado. Essas
economias deram-lhe também para comprar duas moradinhas de casas e
o negro André. Com a negra Maria, que a mulher lhe trouxera em dote,
casou Felisberto o seu negro, na esperança de que em poucos anos a
família escrava estaria aumentada, e por conseguinte aumentada também
a fortuna do casal. Essa esperança foi brilhantemente confirmada.

Felisberto não estava em casa à chegada dos dois matutos. Havia
ido à vila a negócio e ninguém sabia quando ele estaria
de volta.

Eles tiraram para a casa de farinha, que ficava a um lado da casa de morada,
e apresentava nesse momento um aspecto que não era o usual.

Estava-se fazendo farinha para ser a toda pressa mandada ao Recife, onde
a grande falta que havia deste gênero assegurava pingue lucro ao vendedor.

Frutos do trabalho honesto e esforçado, o qual é sempre favorecido
pela Providencia, não tinham sido de todo destruídos pela grande
seca os roçados do Felisberto. Ele já enumerava muitos prejuízos,
mas olhando em torno de si via ainda muito com que contar na tremenda crise
que reduzira o geral da população da província a extrema
penúria.

Era quase noite, e ainda chegavam animais com caçuás cheios
de mandiocas que eram despejados nas tulhas já formadas destas raízes.

Mulheres sentadas pelo chão ou em cepos, ao pé dessas tulhas,
tiravam as mandiocas uma a uma, e as iam raspando a quicé, e, atirando
depois dentro de cestos que eram conduzidos para junto das rodas a fim de
serem elas passadas pelos ralos que circulam estas.

A casa de farinha não era mais do que um vasto alpendre aberto por
todos os lados e coberto de palhas de pindoba.

No centro via-se o forno onde tinha de ser cozida a massa já apertada
pela prensa e livre da manipueira. Parte dela porém, tanto que saía
do pé das rodas, era lavada em gamelas e alguidares onde deixava o
resíduo ou goma para os beijus e tapiocas.

A prensa estava armada a um dos lados do alpendre; no outro viam-se as duas
rodas que não cessavam de girar. Quando cansavam os matutos ou escravos
que as moviam eram logo substituídos por gente fresca.

Os dois matutos ali bem conhecidos, foram saudados pelas pessoas que estavam
trabalhando, e, como é costume em tais ocasiões ainda hoje,
trataram eles de concorrer gratuitamente com o auxílio dos seus braços
descansados, o que a muitos não deixou de ser agradável.

Venha para cá, seu Marcolino. Pegue no veio da roda, e desmanche-me
esta mandioca que está custosa de acabar disse um.

E eu ponho de boa vontade em sua mão, Marciano, este rodo. Não
precisa mexer muito a massa: o forno não está muito quente e
não há risco de queimar-se a farinha disse outro.

Prepara os beijus Mariquinhas disse o Marciano a uma rapariguinha morena
e cacheada que, com as mangas arregaçadas, lavava em um alguidar uma
porção de massa.

Mariquinhas sorriu e continuou no seu trabalho que lhe absorvia toda a atenção.

Pouco depois chegaram dois cunhados de Felisberto, que tinham feito parte
do regimento volante da freguesia.

Então que fizeram ? perguntaram muitos a uma voz logo que os viram
entrar.

Nada. Vocês pensam que pegar o Cabeleira é o mesmo que raspar
mandioca, ou comer farinha mole ?

Não o viram nem com os olhos, seu Quinquim ?

Qual, senhor ! Cabeleira de minha vida !

Encontramos muita onça, e muita cascavel, mas do Cabeleira nem novas
nem mandado. Há quem diga que ele a esta hora já está
nos sertões dos Cairiris.

Qual Cairiris, senhor ! Amanhã hei de dar com esse dunga disse o
Marcolino.

O compadre Marcolino jura que o viu hoje junto das cachoeiras do rio acrescentou
o Marciano.

Mas não nos mostrou o cabra durante todo o dia respondeu Agostinho.

Está bem, senhores, não falemos mais nisso. Os senhores estão
desfazendo agora no meu dizer, talvez amanhã a coisa já seja
outra. Eu sou um pé-rapado, é certo, mas muito verdadeiro.

Ninguém duvida de sua palavra, Marcolino.

Um negro que estava metendo lenha no forno virou-se então para o matuto,
e, de improviso, lhe dirigiu este verso:

Vosmecê, seu Marcolino, Vai atrás do Cabeleira ? Se quiser pegar
o cabra, Monte na basta louceira.

Ainda bem não tinha terminado o seu repente, quando um caboclo que,
a um canto do alpendre estava lavando em um cocho uma porção
de mandioca, se saiu com esta resposta:

Monte na besta fouveira, Ou no cavalo cardão, Não há
de pegar o cabra No meio desse mundão.

Reinou então silêncio no alpendre para só se ouvirem
os dois repentistas. Estava travado um desses desafios que são tão
comuns nos sertões do Norte, e, muitas vezes, pela facilidade das rimas
e originalidade dos conceitos, chegaram a oferecer versos que podem figurar
entre os mais primorosos monumentos da literatura natal. O negro replicou:

Se você gosta do bicho Porque rouba, e mata gente, Veja que alguém
não lhe tire As orelhas pra presente.

O caboclo respondeu:

Mete, negro, a tua lenha No teu forno, caladinho; Mas não te metas
com o homem; Podes ficar sem focinho. O negro:

Eu que sou negro nas cores Mas não negro nas ações,
Se fosse atrás do malvado, Cortava-lhe os esporões.

O caboclo:

Para o negro que se mete Onde não lhe dão entrada Não
tem faca o Cabeleira, Tem uma peia ensebada.

O negro:

Eu respeito a meus senhores E senhoras que aqui estão; Mas porém
não levo em conta Quem não teve criação.

O caboclo:

Caboclo do pé da serra, Criado à beira do rio, Eu sempre tratei
com gente, Porque sustento o meu brio.

O desafio, tão bem encaminhado, foi interrompido pela chegada de um
cavaleiro. Era o Felisberto que voltava da vila.

A lida na casa de farinha continuou não obstante até alta noite,
entre risos e cantigas.

O luar inundava o vasto pátio do sítio, e ia pratear as margens
e águas do Capibaribe.

Viração intermitente agitava as folhas das macaibeiras e dendezeiros
que se levantavam pela extrema das terras de Felisberto.

Cortava os ares o suave murmúrio das águas casado com o canto
monótono dos curiangos, que pulavam pelos caminhos.

Pela madrugada, o Marcolino montou no cavalo castanho, atravessou o rio,
e meteu se no vasto deserto, ainda adormecido. Como quase todos os homens
rústicos, era caprichoso, e entendia que se não cumprisse a
sua palavra solenemente empenhada, ficaria sendo o ludíbrio de todos
os que o conheciam. Preferia, a este extremo, morrer de fome e sede no mato,
ou comido das onças, coisa em que, para dizermos, pouco cuidava. Todas
suas idéias estavam voltadas para um centro único: descobrir
o Cabeleira. Era este o seu ponto de honra.

Sabendo que o Cabeleira ordinariamente, quando se ausentava das matas de
Santo Antão, aparecia nas de Pau d’Alho, tomou a direção
desta povoação.

Pau d’Alho fazia então parte da freguesia de Iguaraçu, da qual
foi desmembrada em 1799 para ser elevada a freguesia por proposta do visitador
Joaquim Saldanha Marinho, nome que traz hoje com invejável brilho um
dos maiores espíritos que conta o Brasil moderno. Passou a vila por
alvará de 27 de julho de 1811, e a comarca pela lei provincial de 5
de maio de 1840.

Marcolino subiu pela margem do Capibaribe, e antes do meio dia entrou na
povoação que fica em terreno plano à beira deste rio.
Nada lhe constou a respeito do Cabeleira.

Demorou-se o tempo estritamente necessário ao descanso do cavalo,
e quando o sol quebrou pos-se novamente a caminho para Goitá, que fica
quatro léguas distante de Pau d’Alho, e nesse tempo era um lugarejo
de nenhuma importância, pertencente a Santo Antão.

Há loucuras transitórias que por tal modo revolucionam o espírito
do homem, que o tornam capaz assim de grandes baixezas, como de virtudes ímpares.
Feliz aquele que, sob a influencia de loucuras semelhantes, põe os
seus esforços e sacrifícios ao serviço da humanidade
ou de uma causa nobre.

Marcolino estava possuído de uma dessas loucuras.

Sem o pensar nem querer, tinha fatalmente arriscado a sua palavra, o seu
brio, a sua honra. Estava apaixonado pelo lance, e era inevitavelmente arrastado
a seu destino.

Deixando mulher e filhos, em duelo com a necessidade, vinha, como um cruzado,
um peregrino, um apóstolo do bem, ou um visionário em busca
de um ente que fazia tremer povoações inteiras, que preocupava
o governo, que aparecia como fantasma, e desaparecia como uma sombra.

Este ente tinha à sua disposição o mato para o receber,
os ecos para o avisarem da aproximação dos que o buscavam, os
rios para encherem depois de sua passagem, as grutas para o esconderem, a
natureza enfim para o disputar tenazmente aos homens, ao poder público,
às leis, à justiça, ao próprio Deus segundo parecia.

A tardinha Marcolino estava no lugarejo. Debalde perguntou, debalde indagou.
Não houve quem lhe desse novas do famoso bandido.

Aí pernoitou, mas não dormiu.

Muito cedo meteu-se nas matas.

A cabo de dois dias, consumidos sem resultado, entrou a cair em si. A razão
tinha-se libertado da alucinação que a prendera em suas redes
de aço. A sua doce luz reapareceram os caminhos que as trevas da paixão
tinham encoberto ao olhos da vítima do sonho fatal.

Marcolino caíra em si no meio do deserto, ouvindo o rugir das feras,
lutando com a fome.

Desanimado, envergonhado da sua fraqueza, resolveu voltar ao seio da família.

Então a imagem dos filhos e da mulher lhe apareceu na mente. Ele teve
saudades da casa e quis partir à mesma hora; mas conhecendo os perigos
a que se expunha se o fizesse, aguardou sôfrego a madrugada. Quando
os horizontes começaram a desmaiar, e o brilho das estrelas a embranquecer,
Marcolino pos-se a caminho.

Estava inteiramente outro.

A vergonha cobria-lhe o rosto, o medo dominava-lhe o espírito, na
consciência doía-lhe o remorso de haver, sem o menor interesse
pessoal, desamparado mulher e filhos nas garras da miséria.

O dono da casa onde ele havia pernoitado dois dias antes, ao qual devia,
além desta, outras muitas obrigações, dera-lhe uma carta
para ser entregue por ele ao senhor do Engenho Novo que de presente faz parte
da freguesia de Pau d’Alho, e pertencia naquele tempo a Goiana.

Quando Marcolino chegou a Pau d’Alho, o cavalo estava cansado da viagem,
e do mau passar durante ela. Para levar a carta a seu destino, teve o matuto
de caminhar a pé. Ele viu nisso uma nova tribulação com
que a sorte o punia da sua loucura.

Ao anoitecer, de um alto por onde passava o caminho antes de sair da mata
que cercava o engenho pelo lado do sul, viu ele um homem correr gacheiro e
cauteloso pelo aceiro afora, e entrar adiante no canavial.

Marcolino por um triz não caiu fulminado de espanto, sobressalto e
satisfação ao mesmo tempo.

Tinha reconhecido nesse homem o Cabeleira.

CapÍtulo XVI

A fome obrigara o bandido a deixar o mato, como obriga as aves a emigrarem,
e as feras cervais a deixarem seus covis.

Havia cinco dias que ele partira de Santo Antão, e três que
não comia senão os escassos frutos que lhe dava a macaibeira,
o ananaseiro bravio, o jatobá do deserto.

Uma tarde em que a fome e a fadiga o tinham prostrado, viu dentre umas touceiras
de taquara onde se recolhera para cobrar animo, um cavaleiro que, havendo
atravessado o rio, de força tinha de passar a poucos passos dele, em
um cotovelo formado pela picada.

O cavaleiro era um velho e parecia?se mais com uma múmia do que com
um ente vivo.

Tinha a pele grudada nos ossos, e seu corpo apresentava ângulos e retas
de dureza escultural.

O cavalo não tinha melhor parecer do que seu senhor. Era uma armação
óssea informe, pesada, cadavérica e triste.

Trazia o velho tão caída a cabeça para diante, que quase
chegava com o queixo recurvado ao cabeçote da cangalha. O cavalo, parecendo
ceder à mesma lei que o cavaleiro, por vezes varria com os beiços
coriáceos o pó do caminho. Essa lei era a lei da fome.

"Este velho", pensou o Cabeleira, "traz pelo menos farinha
nos caçuás. Vou tomar?lhe para mim, e se ele não quiser
entregar?me a sua carga, corto?lhe a garganta."

Empunhou o pedaço da faca, única arma que lhe restava do terrível
cangaço de outrora, e quando o velho confrontou com ele, saltou?lhe
ao cabresto do cavalo. Este parou de muito boa vontade, enquanto seu dono,
sem se mostrar aterrado nem sobressaltado, disse ao bandido:

Guarde?o Deus, meu senhor saudação que até bem pouco
tempo se ouvia no sertão.

Quando estava para fazer a terrível intimação, sentiu
o Cabeleira faltar?lhe força para suster o cabresto, tromeram?lhe as
pernas, vacilaram?lhe os pés. Seus olhos tinham dado com a imagem de
Luísa, de joelhos na beira do caminho com as mãos postas, os
olhos suplicantes, tristes e chorosos, voltados para ele. Pareceu?lhe até
ouvir as seguintes palavras:

Não o mates, Cabeleira.

Esta ilusão era efeito da sobreexcitação nervosa, produzida
em todo o seu organismo pela falta de alimentos, pela dor moral que lhe causara
o transito da moça, ou talvez pela profunda revolução
que antes de ter ela falecido havia obrado nos seus instintos, idéias,
e hábitos, o sentimento destinado a redimi?lo do erro, e do crime o
amor.

Foi tão profundo e violento o abalo que experimentou ao ver aquela
doce efígie (a qual ele julgava ter desaparecido para sempre de seus
olhos ), que irresistivelmente lhe escaparam dos lábios estas palavras:

Não o matarei, meu amor; não o matarei. Mas não foram
somente as palavras que lhe escaparam violentamente dos lábios; dos
olhos lhe saltaram também lágrimas espontâneas, que ele
não pôde reprimir.

E como para dar plena satisfação àquela doce imagem
que se atravessava diante dele no momento em que um crime estava a ser cometido
por sua mão, Cabeleira atirou dentro de uma grota que ficava do outro
lado da picada o resto da arma de que estivera pendente a vida do pobre velho.

Este, acordando novamente do profundo abatimento que pesava sobre todos os
seus membros, dirigiu outra vez a palavra ao bandido:

Camarada, estou pronto para servi?lo.

Há três dias que não boto na minha boca um punhado de
farinha disse José. Traz você aí alguma coisa que me queira
dar para comer ?

É seguramente meio?dia, meu senhor m disse o velho erguendo a custo
os olhos ao sol para se certificar da hora. Amanhã pela manhã
faz quatro dias que este corpo velho, que o senhor está vendo, não
sabe o que é comer. Dou a Deus por testemunha da minha verdade.

E que é que traz dentro destes caçuás ? perguntou?lhe
o Cabeleira.

Pode ver o que trago. Nada. Tinha uma filha solteira, outra viúva
e três netinhos. Veio a peste e levou?me as duas filhas em menos de
oito dias. Não tendo recurso nenhum para acudir às minhas necessidades,
saí a pedir. Fui à casa de meu compadre, que mora na Ladeira
Grande; o compadre tinha morrido das bexigas, e a mulher estava para entregar
a alma a Deus; o gadinho que possuía desaparecera com a seca; alguma
criação que ficara no terreiro tinha sido comida pelos magotes
de gente, que vêm aí em retirada, caindo aqui, morrendo acolá
de fome, só de fome. Achei no pátio da propriedade este cavalo
velho, que me vai arrastando até a casa. Sabe Deus se lá chegarei,
ou se não ficarei no caminho, sem ter visto meus pobres netos ainda
uma vez antes de morrer.

Está bom, meu velho; vá seguindo seu caminho. Você é
mais necessitado do que eu.

Não da graça de Deus, senhor disse o velho.

O Cabeleira entrou de novo no tabocal.

O abalo que a visão lhe causara, o espetáculo de miséria
que lhe descrevera o velho, miséria muito maior do que a sua, deram?lhe
forças para prosseguir na peregrinação.

No dia seguinte entrava ele nas matas de Goitá, seu mundo virgem,
em cujo seio, talvez pela razão de lhe consagrar entranhável
afeto, se considerava o mais seguro e feliz dos mortais.

Deitou?se e dormiu.

Quando acordou sentiu que consigo havia acordado, mais devoradora e cruel,
a fome que o tinha prostrado por terra na véspera.

Depois de ter levado quase todo o dia em vão à caça
de algum fruto silvestre, deu com a vista, no meio de uma aberta que fazia
a mata, sobre os estendidos canaviais do Engenho Novo. Da lomba, onde havia
parado, desceu rapidamente à orla da floresta.

Era quase noite.

Alongou os olhos pelas imensas quebradas onde a cana acamava, e só
viu um mundo de verdura que lhe acenava com doces presentes.

Ah! ele podia passar meses dentro desse mundo, sem que o vissem, e sem risco
de ser devorado por animais ferozes. Era uma região amiga a que se
lhe abria diante dos olhos.

A planta que estava destinada a ser mais tarde a base principal da fortuna
e riqueza de um vasto império; essa planta abençoada que dali
punha à sua disposição nutritivo e precioso suco oferecia?lhe
também proteção à sombra da sua basta folhagem.
Podia ele, pobre foragido, refazer as forças no seio dessa solidão
generosa que lhe daria a sorver licor suavíssimo, como o que mana de
um seio maternal.

Cabeleira, rápido como um jaguar, pos a cabeça de fora do mato,
olhou, observou, e, nada vendo, atravessou o aceiro e penetrou no canavial.

Achando?se já dentro, voltou?se e observou de novo. Não viu
viva alma. Do outro lado do aceiro estava a floresta virgem, donde ele havia
saído. As sombras do lusco?fusco cobriam as montanhas, as quebradas,
os vales, todo o retiro enfim. Em torno dele, e além das folhagens,
além das planuras até onde pode chegar com a vista e com as
ouças, só viu a solidão profunda, só ouviu o silêncio
absoluto da natureza.

Ia adiantada a noite quando ele terminou sua refeição.

A lua discorria suavemente, entre castelos de nuvens, na vasta campina celeste,
e a viração ciciava brandamente no canavial onde deixava as
fragrâncias que, como abelha da noite, trazia do pau?d’arco da mata
próxima em suas asas sutis.

Cabeleira pôs nos ombros as últimas das canas que quebrara e
tomou a aberta por onde havia entrado. Mas foi logo obrigado a voltar sobre
seus passos para não ser visto por dois negros do engenho que estavam
defronte da abertura da camarinha.

O canavial não tinha somente esta saída. Mas qualquer delas
para onde encaminhou seus passos se lhe mostrou tornada por escravos do engenho.

O Cabeleira achava?se tão longe de pensar que o guardavam, que acreditou,
para explicar o que seus olhos descobriram, que os negros faziam quinguingu
ao luar como de costume.

Deitou?se, e o sono que dormiu foi profundo e reparador. Se tivessem penetrado
no lugar onde ele adormecera tê?lo?iam prendido sem dificuldade, como
se fora uma criança.

Raiou enfim o dia com seu cortejo de luz e movimento.

O sol despertou o bandido com um raio que lhe enviou por entre a folhagem.
Não para sair, mas unicamente para observar, o Cabeleira aproximou?se,
sem fazer ruído, da primeira abertura que se lhe oferecera. O que então
viu deu?lhe idéia da triste realidade que ele estava longe de suspeitar,
mas que o abraçava como um círculo de ferro. Não estavam
guardadas as saídas por negros como durante a noite, mas por sentinelas
militares. Cedo seus olhos reconheceram que uma linha compacta de soldados
cercava todo o canavial, donde não poderia sair um rato contra a vontade
deles.

Oh ! como apareceu carregada aos olhos do infeliz mancebo aquela doce natureza,
onde acreditara que poderia estar ao abrigo da perseguição dos
homens, e da fatalidade da sorte !

"Estou perdido para sempre", pensou ele. "Cercado por todos
os lados, sem companheiros que me auxiliem na evasão, sem uma arma
com que possa abrir passagem entre os que me cercam, não poderei salvar?me."

Seu espírito caiu em profunda meditação.

O canavial estava literalmente sitiado. No mesmo instante em que soube, por
boca de Marcolino, que o Cabeleira tinha passado do mato ao canavial, o senhor
do Engenho Novo reunira a fábrica passante de trezentos negros e os
mandara pôr se de guarda ao bandido.

Sem perda de tempo expedira o próprio Marcolino com uma carta participando
o fato ao capitão?mor que se achava já então no seu engenho
Petribu, e pedindo?lhe prontas providências.

Uma companhia completa de milicianos achava?se ainda de ordens ao capitão?mor
que tinha em mente dar novo varejo nos matos, por ocasião de sua volta
a Goiana. Essa companhia partira incontinenti, tendo à sua frente Cristóvão
de Holanda, para o lugar onde se tinha de verificar a importante diligência.
Ordens terminantes foram expedidas durante a noite aos coronéis de
ordenanças que se achavam mais próximos, a fim de que antes
do amanhecer se achassem com fortes partidas no lugar indicado.

Um inimigo poderoso que houvesse batido às portas da freguesia não
teria motivado o movimento de tropas que se verificara nas doze horas daquela
noite com prontidão que faz honra à disciplina militar daqueles
tempos.

Pela manhã as paragens contíguas ao ponto assediado figuravam
um pequeno campo de batalha. Cerca de duzentas praças achavam?se ali
reunidas, por que o assédio fosse sustentado com todo o rigor militar.

Ao cair da tarde um oficial ofereceu?se para penetrar no canavial com doze
homens de sua escolha, assegurando que o bandido não viria a contar
vitória.

Cristóvão de Holanda, tendo ouvido os seus coronéis
sobre a proposta do destemido oficial, considerou?a inconveniente por dar
ocasião à luta pessoal, da qual poderia resultar a morte do
bandido.

Não havendo, para conseguir?se a rendição deste, outro
meio que o assédio, foi este resolvido por unanimidade.

O Cabeleira tentou mais de uma vez iludir a vigilância das guardas
durante a noite, mas em vão. Antes de escurecer essas guardas eram
reforçadas, e a vigilância dobrava na proporção
das facilidades que naturalmente a noite oferece para a evasão.

Passaram?se dois dias sem resultado. Ninguém, durante esse espaço
de tempo, havia visto o prisioneiro. Começou?se a desconfiar de sua
existência dentro do canavial.

Marcolino foi interrogado pela segunda vez, e declarou que tinha visto o
bandido entrar ali, só e sem armas.

Esta última declaração veio aumentar a desconfiança
geral. Não se pôde, com razão, explicar que o famoso assassino
se houvesse despojado, para penetrar ali, de suas armas no momento em que
mais se expunha à ação da justiça.

Marcolino, à vista destas considerações, às quais
nada teve que opor, começou a descrer de si mesmo e a acreditar que
seus olhos o tinham enganado. O desanimo, a tristeza, a vergonha, que já
o haviam deixado, volveram a abatê?lo novamente.

Cristóvão de Holanda excogitava já um meio de sair com
honra da situação em que se via, quando lhe lembrou mandar arrasar
o canavial.

Toda a fábrica foi chamada incontinenti ao lugar onde as foices afiadas
tinham de abater em poucas horas a ridente floresta que durante quase três
dias servira de pitoresca muralha ao Cabeleira.

Ele ouviu do centro da espessura onde estava, com o sangue?frio que é
natural aos homens afeitos aos perigos, o rumor, ao princípio afastado,
depois mais próximo, da queda dessas touceira abençoadas a que
devia o franco asilo que nunca encontrara entre os seus semelhantes.

O círculo foi?se estreitando gradualmente em torno do prisioneiro,
com a rapidez de um incêndio que ao mesmo tempo avança da circunferência
ao centro.

A proporção que as camadas iam caindo aos golpes dos possantes
segadores, eram logo retiradas a fim de que se tivesse sempre desobstruída
a passagem, e fácil fosse o acesso ao ponto objetivo.

As linhas militares, que mantinham o assédio, acompanhando o descrescimento
do espaço que desaparecia aos olhos dos circunstantes, tornavam?se
gradualmente compactas, fortes, impossíveis de romper.

A princípio acreditou?se, não obstante o que dissera o Marcolino,
que o Cabeleira não estava desacompanhado.

A cada momento esperava?se ouvir a detonação de uma descarga
de dentro contra a força que cercava o ponto. Quem não se considerou
exposto ao punhal, à bala, à morte julgando ter através
de frágeis plantas, um inimigo, se não uma companhia de inimigos
amestrados na prática de todos os crimes ?

Chegou enfim o momento dos negros descarregarem suas cortantes foices sobre
o último renque de touças aquele que separava do campo arrasado
a vasta camarinha em que se acoutara o bandido.

Desapareceu de todo o verde tufo aos olhos dos circunstantes; as duas superfícies
a exterior e a interior uniram?se como por encanto; o Cabeleira surgiu dentre
as folhas com que pouco antes brincava a brisa, agora confundidas com as palhas
secas, imagem, como aquelas, do seu perdido poder.

Serena e resignada tristeza cobria?lhe o rosto queimado pelo sol que naquele
momento lhe beijava a face onde haviam deixado indícios das suas garras
a dor moral e a fome. Caía?lhe sobre os ombros a basta onda de cabelos,
cacheados ao longe, e mais negros do que a barba escassa e nova que atestava
a sua pouca idade. Seu trajo era simples: véstia de couro surrado,
camisa e calça que deixavam ver, através dos rasgões,
o corpo de cor branca. O Cabeleira estava descalço, e tinha a cabeça
coberta por um chapéu de palha de pindoba.

Quando se achou de súbito em, presença da multidão,
levou instintamente a mão ao chapéu, e descobriu?se.

Os mais animosos que haviam corrido a pôr?lhe as mãos para segurá?lo,
tomando o gesto respeitoso que bem denotava o bom natural do bandido, por
uma ameaça, ou meneio de agressão, recuaram amedrontados.

Cristóvão de Holanda Cavalcanti, sustentando os foros de uma
estirpe que já se havia ilustrado em 1710, e que no Brasil independente
?estava destinada a figurar com o brilho que sabemos, aproximou?se do bandido
e com o ar e jeito grave que lhe davam a nobreza e a autoridade que revestia:

É você o Cabeleira ? perguntou ele ao mancebo.

Saberá V. Sª que sou eu José Gomes respondeu ele sem
hesitar nem subterfugir.

Uma centena de vozes confirmou esta resposta franca, completa, e própria
do seu grande ânimo.

José Gomes disse?lhe Cristóvão pondo a mão direita
no ombro do mancebo , você pelos enormes crimes que tem cometido, está
preso em nome da lei, e vai responder perante a junta de justiça.

Então, em conformidade da ordem dada por ele, um toque de corneta,
que atroou a solidão, anunciou que o criminoso tinha caído nas
mãos dos agentes da força pública.

Gonçalo Pais disse Cristóvão voltando?se para o seu
ajudante , mande soltar o matuto, que denunciou o criminoso. Se este não
fosse encontrado dentro do cerco, o denunciante pagaria com três tratos
de polé a humilhação a que me houvesse exposto perante
o governador. Como se verificou a sua declaração, será
recompensado pelo régio erário, e recomendado à munificência
del?rei nosso senhor.

Meia hora depois, Marcolino, montado em fogoso cavalo baio, desapareceu com
ar e jeito de quem alcançou grande vitória, no caminho de Santo
Antão, a levar a notícia de uma prisão que salvara a
sua honra, e com que ele se considerava coberto de glória.

CapÍtulo XVII

Grande concurso de povo tomava uma tarde uma das embocaduras da rua do Amparo
da ilustre vila de Goiana.

Depois de algum tempo chegaram de longe, do lado do Barro Vermelho, ao ponto
da reunião os sons de um clarim, que logo cessaram para deixarem ouvir
os rufos de um tambor.

A este sinal, sofregamente esperado, alvoroçou?se a multidão.
As mulheres compuseram seus lenços no pescoço, os lençóis
na cabeça, os cabeções de rendas, então muito
em uso. As mães conchegaram bem a si os filhos menores, que tinham
pela mão; os pais foram ocupar seu posto, que não mais desampararam,
ao pé das consortes e filhas, que se mostravam temerosas do que poderia
vir a acontecer, porque, em muitos dos circunstantes, à curiosidade
se substituiu logo o terror pânico, difícil de vencer, e sempre
contagioso e pegadiço.

A rua do Amparo contava então uma só casa de sobrado.

Via?se na varanda deste d. Leonor, mulher do capitão?mor. Seus belos
olhos estavam voltados para o extremo da rua onde era tudo confusão
e burburinho. Entre os anéis dos seus negros cabelos brilhavam ricas
flores de ouro e coral, semelhantes a malmequeres e pitangas. Um vestido de
seda azul, com ramos de rosas brancas que lhe subiam da fímbria à
cintura, deixava adivinhar as formas admiravelmente corretas da nobre senhora,
cuja gentileza impunha a todos preito com que se não daria mal uma
princesa. A seu lado, mostravam?se outras senhoras pertencentes às
primeiras famílias da vila.

De repente ouviu?se de novo o clarim, a quem coube a distinção
de anunciar a entrada da tropa com o grande prisioneiro.

A soldadesca rompeu por entre a multidão, e encaminhou?se à
casa do capitão?mor.

Este vinha à frente do batalhão, e montava sua cavalgadura
de estimação ricamente ajaezada. Ao lado do capitão?mor
mostravam?se alguns coronéis de ordenanças.

O prisioneiro aparecia no centro da tropa. Sua fisionomia estava triste;
mas não tinha a carregada expressão da perversidade, nem o vil
abatimento da covardia. Seu passo, posto que forcado, era firme, qual devera
ser o de um homem de poderosa organização, aos 24 para 25 anos
de idade.

Faltava porém a esse homem a prontidão nos movimentos físicos
a que por inúmeras vezes devera sua salvação. Uma corda
de couro cru prendia?lhe em diferentes anéis os braços, poucos
dias antes prestes a levar a destruição e a morte a afastadas
regiões.

Poucos foram os que não tiveram os olhos arrasados de lágrimas
quando viram escravo de uma cadeia ignóbil o infeliz moço, que,
ainda ontem, tinha a imensidão a seu dispor, e era livre como as feras
no deserto. A presença do infeliz despertara a piedade de quase todos
os espectadores.

Naquele tempo a cadeia de Goiana não tinha a solidez da que se vê
presentemente na rua Direita. Era uma casa de um só pavimento a que
faltavam quase todas as condições de segurança e higiene
que as penitenciárias modernas reúnem.

Viam?se em suas janelas não grades, mas varões de madeira.
Muitos criminosos conseguiram evadir?se quebrando alguns desses varões.
Nem é de admirar que tais fossem as condições da cadeia
pública daquela vila em 1776, se ainda hoje, com exceção
das capitais e de algumas cidades interiores de mais nota, se apontam localidades
importantes e até sedes de comarcas que não têm melhores
prisões que as do tempo colonial.

Não só pela manifesta incapacidade da prisão pública,
mas também por não confiar de ninguém a guarda de um
réu dos quilates do Cabeleira resolveu Cristóvão de Holanda
tê?lo em sua própria casa durante o tempo que fosse necessário
para os preparativos da jornada ao Recife.

As primeiras autoridades de Goiana reuniram?se à noite em casado capitão?mor,
que a tuba da fama começou a apregoar como o salvador da província.

Enquanto essas autoridades praticavam da questão do dia a prisão
do malfeitor, este, no pavimento inferior, de que uma parte lhe fora dada
por menagem, entregava?se a fundas cogitações.

Um soldado, que dele se compadecera, o tinha persuadido a ir passar alguns
momentos no quintal, a fim de se divertir de suas idéias tristes. O
Cabeleira sentara?se a um canto, à sombra de uma cajazeira.

Em qualquer parte para onde volveu os olhos só lhe apareceram guardas
que não perdiam um só dos seus movimentos. Ergueu os olhos acima
dos altos muros que o cercavam, e deu com a vista nas belas estrelas que tinham
sido suas companheiras no deserto. Aqueles astros saudosos, guias leais e
constantes do filho da liberdade, não alumiavam agora nesse filho senão
o escravo da justiça que qualquer criança poderia impunemente
insultar.

Lembrou?se de Luísa, cujo cadáver não lhe havia permitido
dar à sepultura o instinto da própria conservação;
o medo irresistível da morte o impelira para o seio da floresta antes
que ele houvesse cumprido este piedoso dever.

Ah ! Luisinha ! pensou ele. Se eu tinha de cair alguns dias depois no poder
da justiça, por que fugi então sem ter primeiro posto teu corpo
ao abrigo dos urubus, ou dos cães de caça ? Ah ! meu amor, perdoa
minha crueldade, perdoa minha ingratidão.

As lágrimas saltaram?lhe dos olhos em impetuosa torrente.

De que choras, Cabeleira ? perguntou?lhe o soldado que dele se mostrara
compassivo. Estás com medo da morte ?

Não, não tenho medo de morrer disse ele. Estou chorando de
me haver lembrado da única mulher, a quem, depois de minha mãe,
quis bem nesta vida.

Qual mulher? Será a que deixaste morta junto das cabeceiras do rio
?

Essa mesma. Você a viu ?

Sim, eu a vi. Mas que bem poderias querer a ela, se foste tu próprio,
Cabeleira, que a mataste ?

Não, eu não a matei; ela morreu, ela mesma, quando se considerava
feliz comigo, e quando eu via nela meu maior prazer, minha maior dita. Ah,
Luisinha, tu bem sabes que eu te queria muito bem, muito ! Que pena tenho
eu quando considero que te perdi para sempre, que te deixei no deserto, que
os carcarás furaram teus olhos, que os urubus despedaçaram tuas
carnes, e que os anus, pretos como meu coração, esvoaçaram
por cima de teus ossos !

Os soluços embargaram a voz do desgraçado.

Se é por isso, não chores, Cabeleira. O corpo de Luisinha
não ficou às aves nem aos animais do mato.

Não ficou ?

Eu o enterrei com minhas próprias mãos.

Você ?

Eu e mais outro companheiro.

O bandido correu ao soldado para o apertar em seus braços em sinal
de reconhecimento. Mas a corda que o prendia pelos lagartos tolheu que ele
lhe desse esta demonstração.

Não tem que me agradecer disse o miliciano. Eu vi Luisinha menina.
Você não me conhece, mas eu também o vi pequeno; e se
sua prisão estivesse em minhas mãos, nunca ela se teria feito.

O soldado afastou?se do Cabeleira para que este não lhe visse as lágrimas
que de quatro em quatro estavam banhando suas faces.

Não se afaste, camarada disse o prisioneiro. Tenho certeza de que
você não me quer mal, e por isso quero pedir?lhe um favor. Não
sei como poderei passar esta noite com a tristeza que tenho. Poderá
você arranjar?me uma viola ?

Pouco depois ignotos sons, que estão acima do maior elogio, levaram
melancolia e saudade ao coração de todo aquele de quem se fizeram
ouvir.

Fora já servida a última refeição, e os hóspedes
se haviam retirado a suas casas. Era tudo mudez na rua e vizinhanças.
Os sons melífluos que já haviam imposto silencio aos soldados
chegaram ao terrado da casa de Cristóvão como uma torrente de
celestiais melodias, que lembraram a harpa de Davi, ou a lira de Anfião.
Estas melodias comoveram o capitão?mor e sua jovem senhora, que iam
ficar dentro em algumas horas separados de novo.

Como são tristes os sons desta viola ! disse ele. São as últimas
despedidas de quem está a entrar no reino da verdade.

Mais me entristecem estas palavras suas, Cristóvão disse dona
Leonor. Se nós o pudéssemos salvar…

Que diz, Leonor? Ele é um grande assassino. Sua mão tem derramado
rios de sangue inocente. Os monstros não tem entranhas mais cruas do
que as dele.

Pobre moço! Para atestar que seu coração não
é tão mau, nem sequer lhe vale a expressão de bondade
que tem no rosto ! Escute, Cristóvão. Conversávamos aqui
há pouco eu e dona Catarina; Gonçalo Pais estava ao nosso lado.
Senão quando vieram trazer?nos delícias e despertar em nós
saudades comoventes os sons que o prisioneiro extrai com rara delicadeza de
seu inspirado instrumento. Dona Catarina manifestou então grandes desejos
de o conhecer.

E que fizeram ?

Descemos ao quintal acompanhadas de Gonçalo. Assim que nos viu, ele
levantou?se, e nos saudou respeitosamente. "Continue a tocar, Cabeleira",
disse?lhe eu. "Ah, senhora, mal posso pegar na viola. Além disso
eu não sei tocar coisa capaz, senhora minha. Mas estes sons grosseiros
podem melhorar se vossa senhoria, por sua bondade, mandar que me afrouxem
um pouco estes laços. A corda penetrou?me na raiz das carnes, e tira?me
toda a ação." Fiz sinal a Gonçalo para que satisfizesse
o pedido do prisioneiro, mas Gonçalo hesitou.

Fez bem disse o capitão?mor.

"Pode fazer sem susto o que minha senhora manda, sr. tenente. Cabeleira
não fugirá porque está cansado de viver", disse
o prisioneiro. Faltam?me expressões para lhe dizer, Cristóvão,
o que ouvimos então. Notas de órgão inspirado não
dizem os mistérios, as melancolias que se debulharam da viola do desgraçado.
Vendo?o tão moço, tão artista e tão infeliz,todos
nos sentimos comovidos da sua sorte; e ele, o prisioneiro, chorava e soluçava
como uma criança.

Basta, Leonor disse Cristóvão abalado com a narração
que acabava de ouvir.

Dona Leonor, surpreendendo este sentimento do marido, propôs?se tirar
dele o maior proveito para o infeliz. Atirou?se a Cristóvão
de Holanda, e o cobriu de afagos e carinhos.

Fez mil rogativas para que se amerceasse da sorte do Cabeleira. A seu entender,
alguns anos de prisão bastariam para que ele se corrigisse e emendasse.

Mas quem diz que não será esta a pena que se lhe vai impor
? perguntou o capitão?mor.

Não o disse já o senhor, Cristóvão? Sou eu que
lhe peço que de escapula ao infeliz.

Escapula, Leonor, escápula ! exclamou Cristavão. E minha honra,
e meu dever?

Eles não ficarão manchados com um ato de humanidade. Todos
dizem que a maus conselhos e funestas instigações deve o Cabeleira
o ter cometido tantos crimes. Pois bem; aquele que o aconselhou e instigou
à prática desses crimes, o verdadeiro criminoso, lá está
para responder pelo que fez, e mandou o filho fazer. Sua condenação
servirá de exemplo à sociedade e ao próprio filho dele;
mas a condenação deste será uma grande injustiça,
e o céu não permitirá jamais que para ela concorra Cristóvão
Cavalcanti que sempre trouxe limpo o brasão que lhe legaram seus avós.

O capitão?mor levantou?se com a palidez na face. A poderosa dialética
da consorte o havia feito sentir mais alterações na alma do
que seus próprios carinhos no coração. A verdade sobre
o Cabeleira era justamente aquela que sua mulher havia resumido em meia dúzia
de palavras vivas e violentas.

Depois de ter dado alguns passos pelo terrado Cristóvão caminhou
para dona Leonor, que o não tinha perdido de vista.

Tudo o que disse é verdade, Leonor; mas sou eu acaso juiz ? Não
sou mais do que o executor de uma ordem do governador. Acredito que prendi
um criminoso, para o qual, se a mim competisse julgá?lo, teria eu uma
condenação mais branda. Mas o direito de o mandar ir embora
não o tenho eu. Se usasse de semelhante faculdade, Cristóvão
de Holanda teria lançado sobre seu nome honrado uma mancha indelével.

Tendo dito estas palavras, Cristóvão de Holanda recolheu?se
imediatamente a seu gabinete em companhia de Gonçalo Pais.

tatuando a lua apareceu no céu triste e pálida como os anjos
dos sepulcros, a tropa recebeu ordem para partir no mesmo instante. O capitão?mor
precipitava a jornada que havia dilatado para o dia seguinte.

Pouco depois a tropa moveu?se. Dona Leonor, anjo de amor e de benevolência,
deixava cair nesse momento, em silencio, algumas lágrimas, límpidas
como sua alma.

A respeitável senhora tinha saudades do esposo que novamente se ausentava,
e pena do infeliz, que a morte atraía a si na forma de um patíbulo,
e em nome da lei.

CapÍtulo XVIII

Chegou enfim o momento da extrema provação.

Ainda não tinha decorrido um mês, quando se ouviram os duros
sons das crebras marteladas, que anunciavam à população
do Recife o próximo e fatal fim dos delinqüente. Levantava?se
a forca no largo das Cinco Pontas.

Pela segunda vez este instrumento de suplício sobressaltou os ânimos
e encheu de dor os corações na vila heróica.

Por grandes que sejam as ofensas que a sociedade tenha recebido de um dos
seus membros, a razão pública sente?se abatida diante da sua
punição por meio da morte natural.

A memória dos primeiros suplícios estava quase de todo apagado
do espírito do povo. Realizaram?se eles durante a administração
do governador Henrique Luís. Haviam decorrido da sua realização
38 anos, tempo mais que bastante para que se oblitere da tela do pensamento
a imagem de semelhantes representações.

Os pernambucanos lembravam?se porém ainda em 1776 do muito que custara
a esse governador sentenciar à morte alguns criminosos.

Uma provisão régia de data de 20 de outubro de 1735 tinha criado
em Pernambuco a junta de justiça criminal, a mesma que 1776 julgou
o Cabeleira, seu pai e os demais réus que sabemos.

Havia?se reunido em conformidade da citada provisão na casa da câmara
aquela junta, composta do governador, dos ouvidores de Pernambuco e Paraíba,
do juiz de fora de Olinda, e de um dos ouvidores que tinham servido na primeira
das sobreditas províncias. Apesar das razões mais de humanidade,
do que de Estado, expostas por Henrique Luís, a maioria condenara os
criminosos a serem justiçados no patíbulo. Henrique Luís,
o modelo dos governadores portugueses, passara pelo desgosto de lavrar a sentença
de morte que feriu primeiro a ele que aos condenados.

No julgamento do Cabeleira e dos demais presos a inviolabilidade da pessoa
humana fora melhor compreendida e respeitada pela junta, da qual só
um membro opinara pela pena capital.

Assim, no espaço de 38 anos o nível da consciência moral
subira em três dos membros dessa terrível comissão; mas
por desgraça baixara no mais importante deles. José César,
desprezando o voto dessa maioria, digna de figurar nos tribunais modernos,
sentenciara à pena última os infelizes com o apoio de um voto
contra três, excedendo assim as atribuições do governador
a quem a citada provisão conferia unicamente, no caso de empate entre
os quatro membros, o direito de desempatar. Por onde se vê que entre
estes dois governadores, ambos bem intencionados, embora as suas intenções
fossem contrárias entre si e em seus efeitos, não mediavam somente
58 anos, mas também a barreira que separa das trevas a luz, do poder
arbitrário, que destrói, o sentimento liberal, que edifica.

Henrique Luís, posto que mais afastado do que seu colega, representava
o direito novo de que o mesmo Portugal do século 18 trasladou em seu
código, que o honra, uma parcela no século 19 com aplauso de
todas as nações cultas. Esta parcela é a que afirma e
consagra a inviolabilidade da pessoa humana.

Se alguém houvesse dito então a José César que
sua pátria em menos de um século riscaria de sua legislação
a pena que ele impunha com tamanho arbítrio a três desgraçados
a quem faltava a instrução mais elementar, teria ouvido o poderoso
agente da realeza metropolitana classificar como uma utopia dos sonhadores
do século 18 esta brilhante conquista das nossas luzes. Os tempos vingam?se,
e se a humanidade algumas vezes, como as aves, rasteja e se enloda nos charcos
da terra, purifica?se como elas, nas chuvas celestes, e eleva?se a regiões
sereníssimas donde vê a grandeza do Onipotente nos milhões
de mundos que povoam a imensidade; a sua sabedoria na harmonia que os prende;
a sua bondade no sem?número de leis, assim físicas, como morais,
que protegem os corpos e dignificam os espíritos.

Na hora em que se construía o cadafalso, uma mulher que representava
cinqüenta, mas na realidade não tinha senão 36 anos de
idade, pedia por tudo quanto há sagrado, a uma das sentinelas do palácio
permissão para falar ao governador.

Joana havia chegado de Santo Antão no dia anterior, e de noite soubera
que o filho e o marido tinham sido condenados à morte. Não lhe
permitiram ver os entes que pertenciam mais a ela, representante do coração
por dobrado direito, do que à justiça que nesse momento exprimia
uma vontade poderosa e apaixonada.

Pela manhã Joana correra ao palácio para cair aos pés
de José César, e rogar?lhe que lhe deixasse ver o filho. A sentinela,
em resposta, perguntara?lhe simplesmente:

Quem é você para falar ao sr. governador ?

Sou a mãe do Cabeleira. Será possível que meu filho
morra sem que eu o tenha visto antes ?

Ponha?se no largo das Cinco Pontas, que o verá subir à forca
à volta de uma hora da tarde.

Meu filho ! gritara ela em soluço. Pois hei de ver meu filho morrer
na forca !

Joana caíra com a face sobre a laje do pavimento, carpindo?como louca
a sua desventura.

Tendo ouvido os ais, lamentos, exclamações e gritos daquela
consternada mãe, mandara José César inquirir a causa
do alarido. Quando lhe disseram a desoladora verdade, ordenara que incontinenti
a mãe infeliz fosse posta em custódia até que se cumprisse
a execução.

Joana mal pudera ouvir a intimação deste cruel mandado.

Não, não ! gritara, atirando?se para fora do palácio
em estado de puro desespero.

Alguns soldados correram a pegá?la, mas em vão, porque, empregando
esforços sobre a natureza, pudera Joana escapar, não sem deixar
primeiro despedaçados nas mãos de um o lençol em que
estava envolta, nas de outro parte dos seus cabelos que haviam de todo embranquecido.
Aquela pobre mulher fora condenada pela adversidade a padecer angustiados
momentos, para os quais não acharemos semelhantes no catálogo
das tragédias humanas.

Ela fora pôr?se junto da masmorra, donde Cabeleira, Joaquim e Teodósio,
que aí se achavam em grande recado, logo que houvessem recebido os
confortos da religião, tinham de partir para o lugar do suplício.

A esse tempo já as circunvizinhanças desse lugar se achavam
ocupadas por grandes massas de povo.

Quando no relógio da cadeia soou a hora fatal,; viu?se desfilar entre
fortes colunas militares e a multidão os condenados. O silêncio
e a tristeza que aumentam a solenidade destes espetáculos indescritíveis,
eram de momento a momento perturbados pelos lamentos de Joana.

Meu filho vai morrer enforcado ! Ah ! meu Deus, vós bem sabeis que
ele não teve culpa dizia ela com a voz entrecortada de soluços.

José César, cercado dos seus privados e lisonjeiros viu da
varanda do palácio, outrora povoado pelo vulto homérico de Maurício
de Nassau, tipo de mais fidalgo liberalismo que ainda transpôs aqueles
umbrais, com uma espécie de recolhimento qual se estivesse presenciado
uma procissão desfilar o fúnebre préstito, que em seu
trajeto percorreu as ruas do Crespo, Queimado, Livramento, Direita, Pátio
do Terço, e finalmente parou no largo das Cinco Pontas ao pé
do terrível artefato. Era uma hora da tarde.

O juiz nomeado pelo governador para assistir à execução
em conformidade do disposto na provisão régia, ordenou que o
escrivão repetisse a leitura da sentença. Os delinqüente.
ouviram pela vigésima vez, com sincera contrição, esse
padrão do absolutismo colonial.

Finda a leitura, viu?se o Cabeleira aparecer, quase de súbito, no
estrado da forca, ao lado do carrasco.

Ele não havia vacilado na rápida ascensão nem dava mostras
de abatido.

Seu rosto estava pálido, mas sereno. A cabeça tinha despojada
do belo distintivo a que o mancebo devia a alcunha com que seu nome chegou
à posteridade.

Com um olhar longo e rápido abrangeu a multidão que se apinhava
em derredor do patíbulo, e proferi, sem titubear, com voz ligeiramente
alterada, estas palavras que a tradição recebeu como herança,
para transmitir às gerações vindouras:

Morro arrependido dos meus erros. Quando caí no poder da justiça,
meu braço era já incapaz de matar, porque eu já tinha
entrado no caminho do bem…

Meu filho ! meu filho ! gritou nesse momento Joana do meio do povo por entre
o qual buscava embalde abrir caminho para chegar ao pé do cadafalso.

A esta exclamação, o Cabeleira voltou?se confuso e comovido.
Um longo suspiro escapou?lhe do peito opresso da súbita aflição.
Seus lábios trêmulos deixaram passar estas precisas e pontuais
palavras:

Adeus mamãezinha do meu coração !

No mesmo instante, aos olhos da multidão profundamente abalada, a
cena transformou?se como por oculto maquinismo. O infeliz mancebo, que, mal
acabara de falar tinha sido rudemente impelido do estrado para o vácuo,
pendia da corda assassina, tendo sobre os ombros o carrasco que apertava com
as mãos cobardes o laço sufocante. Cena bárbara que enche
de horror a humanidade, e cobre de vergonha e luto, como tantas outras, a
história do período colonial !

No meio da multidão esta cena de morte reproduziu?se no mesmo instante,
unicamente modificada na forma. Entre os braços de umas mulheres do
povo, pobres mães decerto, Joana acabara de exalar o último
suspiro. O coração tinha?se instantaneamente estalado de dor.

Poucos momentos depois ao cadáver do Cabeleira reuniram?se os de
Joaquim e Teodósio, seus companheiros na vida e na morte, na história
da província e nas reminiscências do povo, ?de presente quase
de todo apagadas pela mão do tempo.

A notícia de tão triste exemplo atravessou as remotas paragens
onde repercutia a fama do grande matador, e passou ainda além nas asas
ligeiras dos versos já citados, aos quais se devem reunir estes dois
últimos, trovistas pernambucanos:

Quem tiver seus filhos
Saiba?os ensinar;
Veja Cabeleira
Que vai a enforcar.

Adeus, ó cidade,
Adeus, Santo Antão,
Adeus, mamãezinha
Do meu coração.

A execução do Cabeleira e seus co?réus não atalhou
as desordens e delitos, a que se refere a provisão; não trouxe
terror nem emenda aos malfeitores.

Os crimes atrozes, então muito freqüentes, se têm diminuído,
ainda não cessaram de todo. As folhas públicas registram todos
os dias por infelicidade nossa muitos deles, perpetrados no Norte, no Sul
e na própria corte do Império.

De que serviu pois a provisão régia ? Em que consistiu o proveito
da execução dos três infelizes no regime colonial; e dos
que os precederam, ou se lhes seguiram neste e no regime do Império
?

Ah ! meu amigo, a pena de morte, que as idades e as luzes têm demonstrado
não ser mais que um crime jurídico, de feito não corrige
nem moraliza. O que ela faz é enegrecer os códigos que em suas
páginas a estampam, por mais liberais e sábios que sejam como
é o nosso; é abater o poder que a aplica; é escandalizar,
consternar e envilecer as populações em cujo seio se efetua.

A justiça executou o Cabeleira por crimes que tiveram sua principal
origem na ignorância e na pobreza.

Mas o responsável de males semelhantes não será primeiro
que todos a sociedade que não cumpre o dever de difundir a instrução,
fonte da moral, e de organizar o trabalho, fonte da riqueza?

Se a sociedade não tem em caso nenhum o direito de aplicar a pena
de morte a ninguém, muito menos tem o de aplicá?la aos réus
ignorantes e pobres, isto é, aqueles que cometem o delito sem pleno
conhecimento do mal, e obrigados muitas vezes da necessidade. O Cabeleira
pode acaso comparar?se em culpabilidade a Lapomerais, médico ilustrado,
ou a esse negociante alemão ou americano, Tomás ou Thompson,
que, com intuito de enriquecer do dia para a noite, ocasionou com a perda
do paquete Moselle a morte de oitenta, e os ferimentos de cem passageiros
?

Condena?se à forca o escravo que mata o senhor, sem se atender a que,
rebaixado pela condição servil, paciente do açoite diário,
coberto de andrajos, quase sempre faminto, sobrecarregado com trabalhos excessivos,
semelhante criatura é mais própria para o cego instrumento do
desespero, do que competente para o exercício da razão. Ainda
em 28 de abril do corrente ano, em uma cidade da província das Alagoas
um destes infelizes padeceu o suplício capital. Por honra da civilização,
um dos primeiros órgãos da imprensa do Norte, o Diário
de Pernambuco lavrou contra essa cobardia jurídica o seguinte protesto:
«Registramos este acontecimento com a mágoa que sói causar
àqueles que amam a pátria e a humanidade a continuação
entre nós da bárbara pena de morte, que, infamando, nem ao menos
corrige".

Arrastam os delinqüente. à barra dos tribunais ou ao pé
dos juízes para serem interrogados sobre as circunstâncias dos
crimes que cometeram. Não devia ser assim. O interrogatório
principal devia ter por objeto os precedentes do culpado, o grau da sua instrução
literária, a sua educação, os seus teres.

A pobreza, que é na realidade uma desgraça, deve a sociedade
atribuir o maior número dos crimes que pune e dos erros e faltas que
não se julga com o direito de punir. A pobreza nunca foi nem será
jamais um elemento de elevação; ela foi e será sempre
um elemento de degradação social.

A riqueza, meu amigo, é um dos primeiros bens da vida.

Quando ela resulta de um trabalho honesto, e servido por uma ambição
nobre e ponderada, não podem dela redundar males. Ao reverso, de uma
riqueza assim adquirida, provém quase sempre benefícios não
só para aquele que a possui, mas também para a sociedade.

Quanto mais medito sobre este assunto, mais me parece que o evangelho que
ensina a pobreza voluntária, considerada pela moderna ciência
um absurdo econômico, e um impossível social, é antes
um código de moral prática sujeito à revisão da
sabedoria dos tempos, do que o corpo de leis de uma religião imutável.
A prova de que não estou em erro, eu a vou achar no exemplo que nos
dão os atuais ministros do evangelho, os quais, muito diferentes dos
pescadores da Galiléia e da Samaria que, descalços e humildes,
o ensinaram gratuitamente a todas as gentes, empregam hoje todos os meios
de tornar?se ricos e poderosos, e não desestimam a opulência,
começando pelos que ocupam os primeiros lugares na hierarquia eclesiástica.

Não sirvam estas verdades de consternação aos pobres.

Sirvam?lhe de estímulo para que trabalhem, cultivem a terra, as indústrias,
as artes, e possam, por seu próprio esforço, vir a ser independentes
é felizes.

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