Armazém de Pena e Dor

Crônica do Viver Baiano Seiscentista

PUBLICIDADE

OPÚSCULO DE GREGÓRIO DE MATTOS E GUERRA, POETA,
AO TEMPO EM QUE, HOMEM BENEMÉRITO, FOI JUIZ DO
CRIME E DE ÓRFÃOS EM LISBOA, ONDE ASSISTIU DU–
RANTE VINTE ANOS, TENDO-SE CASADO E ENVIUVADO;
DE QUANDO EM SUA PÁTRIA DA BAHIA, FOI DEGRE–
DADO PARA BENGUELA, EM ANGOLA, PELO CRIME DE
SUA POESIA; SUA PARTICIPAÇÃO COMO SECRETÁRIO DE
ESTADO NA REVOLTA DA TROPA ALI AQUARTELADA; E
DE COMO FOI REMETIDO DE VOLTA AO BRASIL, DESTA
VEZ PARA PERNAMBUCO, ONDE REMANESCEU PROIBIDO
DE FAZER SÁTIRAS ATÉ O DIA DE SUA MORTE.

Pelo crime de poeta
sobre jurista famoso
Tomás Pinto Brandão
Porque todos te fazem degradá-,
Que no nosso idioma é para Angó-.

1 — ANGOLA

mande-me já degradado
por sentença ou de perceito,
ao mar, largo, ou mar estreito,
onde os campos de Zafir
com respeito me hão de ouvir
e não falar por respeito
Ver dar açotes sin piedad ni tassa

AO GOVERNADOR D. JOÃO D’ALENCASTRE QUANDO MANDOU PRENDER AO AUCTOR PARA O DEGRADAR POR TER CHEGADO DISFARÇADO DE LISBOA EM HUMA NAO DE GUERRA O FILHO DE ANTONIO LUIZ DA CAMARA COUTINHO COM INTENTO DE Ó MATAR PELAS SATYRAS. QUE FEZ A SEU PAY: O QUE CONHECIDO PELO GOVERNADOR D. JOÃO D’ALENCASTRE, LHE QUIS SEGURAR A VIDA COM O PRETEXTO DE DEGREDO PARA ANGOLLA. O QUE O AUCTOR NESTA OBRA QUER NEGAR DESCULPANDO-SE.

MOTE

Não há mais tirano efeito,
que padecer, e calar
ter boca para falar,
e não falar por respeito.
1 Que hoje à força meu fado
um Governador envolto,
que, por ser na língua solta,
seja no discurso atado:
velhacamente informado
formou de mim tal conceito:
porém (salvo o seu respeito)
fazer-me a defesa pausa,
havendo mentir a causa,
Não há mais tirano efeito.
2 Já não há bem, e conheço
que neste presente abalo
padeço mais, do que calo,
calo mais, do que padeço:
porém, Senhor, se eu mereço
nos dous extremos votar,
se qualquer me há de ultrajar,
tenho a melhor padecer,
antes falar, e morrer,
Que padecer, e calar.

3 Eu tenho a língua embargada
aqui, que se a não tivera,
cousa boa não dissera,
fizera cousa falada:
tudo digo neste nada,
nada faço em me explicar;
assim quero-me calar,
porque no presente ano
só pode qualquer magano
Ter boca para falar.

4 Serei qual melão letrado
com bem estranho sentido,
que hei de ser mais entendido,
quando estiver mais calado:
mande-me já degradado
por sentença, ou de perceito,
ao mar largo, ou mar estreito,
onde os campos de Zafir
com respeito me hão de ouvir,
E não falar por respeito.

DESCREVE O QUE REALMENTE SE PASSA NO REINO DE ANGOLLA.

Passar la vida, sin sentir que passa,
De gustos falta, y de esperanças llena,
Bolver atraz pisando en seca arena,
Sufrir un sol, que como fuego abraza.
Beber delas cacimas água bassa,
Comer mal pos a medio dia, y cena,
Oyr por qualquer parte una cadena,
Ver dar açotes sin piedad, ni tassa:

Ver-se uno rico por encantamiento,
Y señor, quando a penas fué creado,
No tener, de quien fué, conocimiento;

Ser mentiroso por razon de estado,
Vivir en ambicion siempre sediento,
Morir de deudas, y pezar cargado.

DESCREVE A HUM AMIGO DESDE AQUELLE DEGREDO AS ALTERAÇÕES, E MISERIAS DAQUELLE REYNO DE ANGOLLA, E O QUE JUNTAMENTE LHE ACONTECEO COM OS SOLDADOS AMOTINADOS, QUE O LEVARAM PARA O CAMPO, E TIVERAM CONSIGO PARA OS ACONSELHAR NO MOTIM.

Angola é terra de pretos,
mas por vida de Gonçalo,
que o melhor do mundo é Angola,
e o melhor de Angola os trapos.
Trapos foi o seu dinheiro
este século passado,
hoje já trapos não correm,
corre dinheiro mulato.
Dinheiro de infame casta,
e de sangue inficionado,
por cuja causa em Angola
houve os seguintes fracassos.
Houve amotinar-se o Terço,
e de ponto em branco armado
na praia de Nazaré
pôr-nos em sítio apertado.
Houve, que Luís Fernandes
foi entonces aclamado
por rei dos jeribiteiros,
e por sova dos borrachos.
Houve expulsão do Ouvidor,
que na chinela de um barco
botou pela barra fora
mais medroso, que outro tanto.
Houve levar-se o Doutor
rocim pelo barbicacho,
à campanha do motim
por Secretário de estado.
Houve, que receando o Terço
mandou aqui lançar bandos,
alguns com pena de morte,
outros com pena de tratos.
Houve, que sete cabeças
foram metidas num saco,
porque o dinheiro crescesse,
como os fizessem em quartos.
Houve, que sete mosquetes
leram aos sete borrachos
as sentenças aos ouvidos
em segredo aqui entre ambos.
Houve, que sete mosquetes
inda hoje se estão queixando,
que aquela grande porfia
lhe tem os cascos quebrados.
Houve, que após da sentença,
e execução dos madraços
prenderam os esmoleiros,
que deram socorro ao campo.
Houve, que saíram livres
por força de um texto Santo,
cuja fé nos persuade,
que a esmola apaga os pecados.
Houve mil desaventuras,
mil sustos, e mil desmaios,
uns tremiam com quartãs,
a outros tremiam os quartos.
Houve, que esteve em depósito,
a ponto de ser queimado
arremedando nas cinzas
ao antigo mar Troiano.
Leve o diabo o dinheiro,
por cujo sangue queimado
tanta queimação de sangue
padecem negros, e brancos.
Com isto não digo mais,
antes tenho sido largo,
que me esquccia até agora
do nosso amigo Lencastro.

LAMENTA O POETA O TRISTE PARADEYRO DA SUA FORTUNA DESCREVENDO AS MIZERIAS DO REYNO DE ANGOLLA PARA ONDE Ò DESTERRARAM.

Nesta turbulenta terra
armazém de pena, e dor,
confusa mais do temor,
inferno em vida.
Terra de gente oprimida,
monturo de Portugal,
para onde purga seu mal,
e sua escória:

Onde se tem por vanglória
o furto, a malignidade,
a mentira, a falsidade,
e o interesse:

Onde a justiça perece
por falta, de quem a entenda,
e onde para haver emenda
usa Deus,

Do que usava cos Judeus,
quando era Deus de vinganças,
que com todas as três lanças
de sua ira

De seu tronco nos atira
com peste, e sanguínea guerra,
com infecúndias da terra,
e pestilente

Febre maligna, e ardente,
que aos três dias, ou aos sete
debaixo da terra mete
o mais robusto.

Corpo queimado, e combusto,
sem lhe valer medicina,
como se peçonha fina
fora o ar:

Deste nosso respirar
efeitos da zona ardente,
onde a etiópica gente
faz morada:

Gente asnaval, e tostada,
que da cor da escura noite
a pura marca, e açoite
se encaminha:

Aqui a fortuna minha
conjurada com seu fado
me trazem em tal estado,
qual me vejo.

Aqui onde o meu desejo
debalde busca seu fim,
e sempre me acho sem mim,
quando me busco.

Aqui onde o filho é fusco,
e quase negro é o neto,
negro de todo o bisneto
e todo escuro;

Aqui onde ao sangue puro
o clima gasta, e conforme,
o gesto rói, e corcome
o ar, e o vento,

Sendo tão forte e violento,
que ao bronze metal eterno,
que o mesmo fogo do inferno
não gastara,

O racha, quebra, e prepara,
que o reduz a quase nada;
os bosques são vil morada
de Empacassas

Animais de estranhas raças,
de Leões, Tigres, e Abadas,
Elefantes às marradas,
e matreiros:

Lobos servis, carniceiros,
Javalis de agudas setas,
Monos, Bugios de tretas
e dos rios

Há maldições de assobios
de crocodilos manhosos
de cavalos espantosos
dos marinhos,

Que fazem horrendo ninhos
nas mais ocultas paragens
das emaranhadas margens,
e se acaso,

Quereis encher de água um vaso,
chegando ao rio ignorante
logo nesse mesmo instante
vos sepulta

Na tripagem mais oculta
um intrépido lagarto,
vós inda vivo, ele farto:
pelo que

Não ousais a pôr o pé
uma braça da corrente
que este tragador da gente
vos obriga

A fugir-lhe da barriga;
Deus me valha, Deus me acuda,
e com sua santa ajuda
me reserve:

Em terra não me conserve,
onde a sussurros, e a gritos
a multidão de mosquitos
toda a noite

Me traga em contino açoite,
e bofetadas soantes,
porque as veias abundantes
do vital

Humor puro, e cordial
não veja quase rasgadas
a puras ferretoadas:
e inda é mais;

Se acaso vos inclinais
por fugir da ocasião
da vossa condenação
a lavrador,

Estando a semente em flor,
qual contra pintos minhotos,
um bando de gafanhotos,
imundícia,

Ou qual bárbara milícia
em confusos esquadrões
marcham confusas legiões,
(estranho caso!)

Que deixam o campo raso,
sem raiz, talo, nem fruto,
sem que o lavrador astuto
valer lhe possa:

Antes metido na choça
se lastima, e desconsola
vendo, o quão geral assola
esta má praga.

Há uma cobra, que traga
de um só sorvo, e de um bocado
um grandíssimo veado:
e se me ouvis,

Há outra chamada Enfuís,
que se vos chegais a ela
vos lança uma esguicha dela
de peçonha,

Quantidade, que se exponha
bem dos olhos na menina,
com dores, que desatina
o paciente:

Cega-vos incontinenti
que o trabuco vos assesta
distante um tiro de besta:
(ó clemência

De Deus?) ó onipotência,
que nada embalde criaste!
Para que depositaste
num lugar

lnstrumentos de matar
tais, e em tanta quantidade!
e se o sol com claridade,
e reflexão

É causa da geração
como aqui corrompe, e mata?
e se a lua cria a prata,
e seu humor

Almo, puro, e criador
comunica às verdes plantas,
como aqui maldades tantas
descarrega?

E se a chuva só se emprega
em fertilizar os prados,
como febres aos molhados
dá mortais?

E se quantos animais
a terra sustenta, e cria,
são dos homens comedia,
como nesta

Terra maldita, e infesta,
triste, horrorosa, e escura
são dos homens sepultura?
Mas, Senhor,

Vós sois sábio e criador
desta fábrica do mundo,
e é vosso saber profundo,
e sem medida.

Lembrai-vos da minha vida,
antes que em pó se desfaça,
ou dai-me da vossa graça
por eterna despedida.

Veja também

Os Reis Magos

PUBLICIDADE Diz a Sagrada Escritura Que, quando Jesus nasceu, No céu, fulgurante e pura, Uma …

O Lobo e o Cão

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Encontraram-se na estrada Um cão e um lobo. …

O Leão e o Camundongo

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Um camundongo humilde e pobre Foi um dia …

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.