A Bela Madame Vargas

PUBLICIDADE

 

João do Rio

Primeiro Ato

O esplêndido terraço da vila de Mme. Vargas. Á direita,
avançando sobre o terraço entre grinaldas de rosas e trepadeiras
floridas, a fachada da linda casa, com varanda e escadaria. Para essa varanda
dão a larga janela e a porta do salão de música. No fundo
balaustrada de mármore. Do terraço domina-se um maravilhoso
panorama de florestas, deslizando para a baía em baixo, ao fundo. Em
baixo os jardins do palacete.
Entretanto, são cinco horas de um dia de inverno e há nesse
terraço um chá ao ar livre. As pequenas mesas já estão
dispostas, com gosto e com muitas flores. Os criados dão os últimos
cuidados a organização geral. Ouve-se no salão de música
risos, e pedaços de uma cançoneta parisiense. Quando abre o
pano estão em cena de casaca, a arrumar as mesas Antônio e Braz.

Antônio – A idéia de tomarem chá no terraço c’est
três bien.
Braz – Pois sim. Desde que te dêem ares e haja palavras estrangeiras,
ficas satisfeito. Eu é que não. Estou aqui, estou a deixar isto.
Olha que é trabalho. Chá no salão, chá nos quartos,
chá no terraço, chá em toda a parte, chá a toda
hora…
Antônio – É a civilização, rapaz…
Braz – Mas de dinheiro, nem cheta. Preferia menos chá e mais massa.
Tu a olhar-me com esses modos superiores. Não sou eu só. Na
copa todos se queixam.
Antônio – Mas ficam?
Braz – A ver se recebem…
Antônio – C’est très bien. As casas assim, ainda não são
as melhores. De repente vem o dinheiro. Olha, eu enquanto houver tapetes,
música, chá, comedorias – vou esperando. Ça me vá.
Nasci para o luxo.
Braz – Palerma!
Neste momento aparece no alto da escada, vindo do salão de música,
D. Maria Miraflor.
D. Maria – Então, meus rapazes. Tudo bem?
Antônio – Como V. Exa. vê muito bem. O homem das flores é
que não as queria deixar.
D. Maria – Muda aquela mesa para o canto. Mas deixou?
Antônio – Assim? Deixou. Prometi ir logo lá.
D. Maria – Braz, arranja o samovar.
Braz – Que samovar?
D. Maria – O aparelho de chá. Digo-lhe todos os dias a mesma coisa.
Ainda não sabe?
Braz – E eu também, senhora D. Maria, digo-lhe todos os dias o mesmo
sem ser atendido.
D. Maria – Braz, que é isso? Comigo? Vá, olhe que sou eu…
Braz parece resignar-se.
De resto, chega nervoso e alacre Carlos Vilar.
Carlos – Boa tarde.
D. Maria – Oh! Carlos…
Carlos – Muito ocupada?
D. Maria – Dando os últimos toques ao chá.
Carlos – Sala cheia, não?
D. Maria – Os de costume.
Carlos – Parece estar contrariada.
D. Maria – Quem sabe?
Carlos – Comigo?
D. Maria – Ainda ontem no Lírico você parecia um detetive americano,
sempre de binóculo a varejar o nosso camarote. Por que faz isso?
Carlos – Não tinha razão?
D. Maria – Não tinha o direito. São coisas tão diferentes
a razão e o direito, que o direito foi feito para dar razão
a quem não a tem. Você não só tem direito, como
não tem razão, nem juízo.
Carlos – Má.
D. Maria – Conheço-o muito bem.
Carlos – Oh! D. Maria, seja minha amiga. Sinto qualquer coisa que parece me
anunciar uma grande transformação das coisas.
D. Maria – E o mundo que vai acabar.
Carlos (pensativo) – Quem sabe?
D. Maria – Apenas comigo esses ares são menos úteis. Seria muito
melhor que não tivesse o desejo de prejudicar os outros.
Carlos – Está insuportável!
D. Maria – E você então!
Os risos no jardim interrompem o diálogo. Entram Julieta Gomes, Carlota
Pais, Gastão Buarque, en coup de vent.
D. Maria – Sejam bem-vindos os retardatários!
Julieta – Já acabou o chá?
Carlota Pais – Good evening! Não há mais ninguém?
D. Maria – Como vocês vêm!
Julieta – Oh! Uma corrida louca pela montanha. O automóvel do Gastão
é tão doido como o dono!
Gastão – Fala de prazer.
Carlota – Devo estar descabelada, pois não?
Carlos – Está ainda mais bonita!
Carlota – Obrigada. Sempre amável.
D. Maria – Todos no salão de música, jogando o puzzle.
Carlota – Vamos ver isso. (Sobe a escada e sai)
D. Maria – E há também a Baby ensaiando o Elle était
souriante.
Carlos – Entremos. A Baby ensaiando! Deve estar aflita para que a interrompam.
O grupo sai subindo a escada. Há risos.
Depois palmas. A cançoneta continua dentro. E no terraço um
momento deserto aparecem o Barão André de Belfort, José
Ferreira.
Belfort – Chegamos no melhor momento, meu caro José. As mesas de bridge,
já devem estar organizadas e não falta ninguém. Nas recepções
cariocas só é prudente entrar quando a dona da casa já
não precisa de parceiros para o bridge, nem de figuras para os flertes.
José – Oh! Barão, recepções! Que grande palavra
para um chá simples, na mais simples intimidade;
Belfort – Mas onde viu você uma festa no Rio que não fosse íntima?
Como somos sempre os mesmos, ainda não fomos apresentados e já
nos conhecemos intimamente. Mesmo um grande baile é uma festa íntima.
José – Maldizente!
Belfort – De resto, vamos assim muito bem. A única intimidade possível
hoje em dia é fingir que sabemos da vida alheia. Com os amigos escapamos
de logros e com os indiferentes nada há que melhor nos coloque. A maioria
das pessoas a quem cumprimento não me foi apresentada. Acontece a muitos
o mesmo. E é esplêndido. Um homem que trata toda a gente de você
e pergunta pela família dos desconhecidos é um tremendo valor.
Por isso nós nos tratamos todos por você.
José – É o que se chama exagerar.
Belfort – O exagero é a personalidade da observação.
José – Quando a observação é a de um espírito
tão superior…
Belfort – Jovem lisonjeiro!
José – Se entrássemos?
Belfort (sentando-se) – um minuto ainda. Mas que orgia floral, que encanto!
Estamos de fato muito bem. Decididamente Hortência tem gosto.
José – Perdão…
Belfort – Hortência ou a tia.
José (acentuando) – Mme. Vargas tem de fato muito chic.
Belfort (encara-o um segundo) – Quê? Então é verdade?
O meu jovem amigo está apaixonado?
José – Oh! Barão! Também?
Belfort – Perdão. Não quero com isso ofender ninguém.
Mas conheço Hortência há largos anos e vejo-a sempre vitima
de paixões. (Gesto de José) Vítima é o termo,
porque as recebeu sempre com a mais glacial indiferença.
José (alegre) – Com efeito?
Belfort – Talvez por isso seja levado a estimá-la mais, como quem a
defende. Não tem culpa a probezinha de causar paixões. Mas quanto
mais gélida se faz, mais amores.
Provoca Amores? Não são amores, são loucuras. Já
lhe contaram que antes de casar com o Vargas, Hortência foi a causa
de duas mortes?
José – Duas?
Belfort – A do estudante Theotônio Rodrigues, que se precipitou de um
pedreira, e a do velho conselheiro Gomide, que tomou lisol.
José – Mas o conselheiro não morreu.
Belfort – Acha você que um conselheiro, mesmo não morrendo, possa
sobreviver a um suicídio por lisol? O enterro é no caso um epílogo
sem importância – como aliás todos os enterros.
José (rindo) – Pelo menos para os que são enterrados.
Belfort (continuando, tom de narrativa) – A terceira morte de Hortência
foi causa involuntária…
José – Quê? Mais uma?
Belfort – Aquela da qual ninguém fala. o casamento.
José – O barão está sempre a brincar.
Belfort – O fato é que Hortência nunca amou o marido. Creio que
o pobre Vargas partiu para o outro mundo, descorçoado de realizar o
impossível. Era o bastante? Parece que não. A epidemia sentimental
continua. Teremos mais algum desastre.
José – E Hortência a dizer-me que o senhor é o seu melhor
amigo!
Belfort – Hortência é inteligente, percebe que, sendo eu o único
a não lhe fazer declarações, devo ser o mais amigo.
José – Oh! Barão!
Belfort – Claro. Já viu você desastre maior do que uma pessoa
que tem amor por outra? Quando não é a desgraça de ambos,
é pelo menos o desastre de um.
José – Do que ama ou do que é amado?
Belfort – Do que tiver menos sorte. Hortência, por exemplo, é
sempre obrigada ao papel de Vênus destruidora, numa época que
é a negação da mitologia.
José (grave) – Como o barão labora em erro. Hortência
é Tão boa?
Belfort – Não digo ao contrário.
José – Deve saber melhor do que eu, que se ela casou, casou por conveniência
de família e soube apesar disso honrar o nome de seu marido. (Pausa)
Belfort – Como o sinto diferente, José, desta sociedade!
José – Ela então é muito má, para que me admire
tanto?
Belfort – Não. Todas as sociedades são mais ou menos assim.
A única sociedade sem perigo seria a da própria pessoa, se não
acabasse por aborrecer, o que leva ás vezes ao suicídio. Acho-o
diverso, entretanto, porque se abstém das intrigas, das calúnias,
do debinage – por esta larga força de afirmar…
José – Cheguei há quatro meses apenas. Ainda não tive
tempo de ser mau.
Belfort – Porque não chegou todo ele senão para ver Hortência.
José – Como não a compreendem! Hortência é um coração
puro, meigo, capaz de amar.
Belfort – Muito bem!
José – Falo sério.
Belfort – Eu também. Quando me falam com tamanha solenidade, tenho
a impressão de que me vou aborrecer. Então digo muito bem. Digo
muito bem, para refletir no que as
palavras escondem. Ora, neste momento sou capaz de jurar que já declarou
a sua paixão e que ela foi bem recebida.
José – De fato.
Belfort (retraindo-se) – Ah!
José – Parece-lhe extraordinário?
Belfort – Só as coisas sem importância são extraordinárias.
José – Não sou como os outros, barão. Há muito
tempo guardava em segredo o meu amor. Só depois de pensar muito, declarei-me.
E quando pedi a mão de Hortência, ela estava comovida; o seu
olhar foi tão profundo, que nunca mais esquecerei esse instante imenso.
Belfort – Pobre Hortência!
José – Não acha que se enganava?
Belfort – O amor vem quando menos o esperamos. Para quando o casamento?
José – Espero hoje falar a minha mãe. Sou maior, formado como
toda a gente, possuidor de uma fortuna não pequena. O casamento será
logo que queira Hortência. Procurarei ser apaixonado, mas amigo.
Belfort – Será espantoso se realizar essas duas coisas contraditórias
– ao mesmo tempo.
José – Mas barão, peço-lhe o maior sigilo. Uma frase
comprometer-me-ia. Hortência fez­me jurar segredo. Quer partir.
Quer casar fora daqui. Também tem medo da sociedade em que vive. É
de um nervoso. Tem sofrido tanto!
Belfort – Acho que faz bem.
José – Em esconder um ato honesto?
Belfort – É que ela o julga por demais grave. Que vê o José
aqui, em redor do seu amor? Senhoras, meninas, rapazes, a rir e a fletar.
Parecem-lhe inofensivos? São perigosíssimos, feitos de desrespeito,
de invejas, de egoísmos. É uma sociedade que se forma de aluvião
em torno do dinheiro, – que a maioria tem por hipótese. Há gente
rica hoje e amanhã sem real continuando a viver como quem tem dinheiro;
há damas que caçam o amante como quem caça borboletas
e meninas que caçam maridos como quem caça a raposa. Os rapazes,
alguns parecem milionários, numa idade em que poderiam jogar a pelota,
e outros não tem profissão no momento em que e preciso trabalhar.
José – E de que vivem?
Belfort- Os que parecem ricos?
José – Os outros.
Belfort – Do crédito dos que parecem ricos, do nome das famílias,
da complacência geral. São esses rapazes encantadores, bem lavados,
bem vestidos, bem perfumados, que não renunciam a nenhum prazer devem
a todos, e cometeriam crimes para beber champanha nos clubes, fletar, ter
amantes, gozar – se não tivessem medo ao código. Toda essa gente
acumula despeitos contra os que encontram a felicidade. Hortência defende-se
do ataque há muito tempo, a espera do Lohengrin. Tape os ouvidos e
fujam.
José – O senhor é fulminante.
Belfort – Digo apenas o que todos sabem. Sou banal; (mudando de tom) – Mas
estas flores: As flores anunciam sempre o desejo que tem a gente de ser ou
parecer feliz. estas são mais denunciadoras que uma declaração.
José – Entretanto, só agora percebeu.
Belfort – É que eu só compreendo logo o que não é
possível. Entremos, meu caro José, a conversar com essas damas.
Do alto da escada aparece D. Maria. Ouve-se a cançoneta sem compasso.

D. Maria – Oh! Aqui? Por que não entram?
José – Acabamos de chegar. (Apertos de mão)
D. Maria – Bem?
Belfort – Pessimamente bem.
D. Maria – Fala da cançoneta ou da sua saúde?
Belfort – De ambas.
D. Maria – Pois perdeu em não entrar. Fizeram um puzzle tout a fait
réussi.
José – Quem acertou mais?
D. Maria – A Renata d’Azambuja. (Ao criado Braz que entra com o aparelho de
chá) – Ponha o samovar na mesa do centro. Bem. Leve os chapéus
dos senhores. (Braz executa as ordens e sai). É preciso repetir todo
o dia a mesma coisa. Os criados são cada vez menos inteligentes.
Belfort – A razão é simples: os inteligentes mudaram de profissão.

D. Maria – Deram em vagabundos?
Belfort – Não, deram em patrões. A profissão de patrão
ainda é a menos desacreditada das profissões, mesmo quando não
paga. Um criado deve desejar o que parece mais sério.
D. Maria (Rindo) – Onde está o seu juízo barão?
Belfort – No bolso, D. Maria. O juízo traz a gente no bolso para não
incomodar os conhecidos.
D. Maria – Então, peço-lhe que o mostre agora. Temos no chá
meninas e velhas rabugentas.
Belfort – Que me diz? E a senhora ainda não perdeu o seu juízo
em tão respeitável companhia?
D. Maria – Não perdi e vou chamá-las até.
José – Parece não ser preciso.
De fato. Entram Hortência de Vargas, D. Eufrosina Gomensoro, Baby Gomensoro,
Carlota Pais, Julieta Gomes, Carlos Villar, Gastão Buarque, deputado

Guedes – Essas pessoas vão entrando aos poucos, saídas do salão,
a conversar com animação. apertos de mão. Beija-mão.
Trocam-se as primeiras frases, ao sentarem-se segundo as simpatias. Os dois
criados fazem discretamente o serviço. Há nos gestos de Carlos
lima permanente inquietação.
Madame Vargas – Como vai o meu caro amigo?
Belfort – Receoso de perturbar a bela companhia.
José – Ficamos de fora a ouvir.
Madame Vargas – Oh! Dr. Ferreira!
Belfort – O José, a Maria e eu. Um quadro romântico: a beira
do palácio, na estrada deserta, a Mocidade, a Velhice e a Mulher ouviam
a canção do prazer.
D. Maria – Neste caso a mulher é também a velhice.
Belfort – Nunca. A mulher está sempre para aquém da idade.
D. Eufrosina – Dr. Ferreira, bons olhos o vejam.
José – Minha senhora, encantado.
Baby – Então ouviu a cançoneta?
José – Logo vi que não era a senhora.
D. Eufrosina – Minha filha tem o mau vezo de cantar cançonetas.
Julieta – Que tem isso mal?
D. Eufrosina – Não foi a educação que lhe dei. No meu
tempo as meninas não cantavam cançonetas.
Baby – E lucraram muito com isso!
Carlos – Eu gostei imenso! Tem até filosofia.
Baby – Não minta. Imaginem que era o Fiorelli o acompanhador. Fiorelli
só gosta de acompanhar músicas aborrecidas: a ária do
suicídio da Gioconda o dueto da Tosca. A cada passo atrapalhava-se.
Ri todo o tempo.
Deputado Guedes – – Mademoiselle canta com grande expressão. Eu preferiria
contudo que deixasse o gênero francês.
Baby – Por que?
Belfort – Como havia de ser se ninguém mais compreende o português?

Carlos – Só se cantasse em inglês.
Deputado Guedes – – Perdão. apesar da invasão das línguas
estrangeiras ainda há muita gente que resiste.
D. Eufrosina – Sou da mesma opinião.
D. Maria – Mas que gente é essa?
Belfort – Onde encontrá-la? Na Câmara, no Senado, na Academia?
(Risos, conversa).
Madame Vargas – (A José, baixo) – Veio tão tarde…
José – A tanta gente, hoje…
Madame Vargas – Que importam os outros?
Julieta – Com que então teremos o deputado
Guedes – batendo-se a favor da língua portuguesa na Câmara?
Belfort – Será de certo o único. Vai ser uma tremenda campanha.
Os seus colegas fazem o contrário: batem-se sem tréguas contra
a gramática. É a luta no próprio reduto.
Deputado Guedes — Os senhores esquecem que eu sou apenas candidato ao reconhecimento.
Gastão – Mas foi eleito?
Deputado Guedes – – A eleição é uma formalidade sem importância.

Gastão – Está enganado. No meu club e definitiva.
Belfort – Mas no club da política depende do banqueiro.
Carlos – D. Maria…
D. Maria (baixo) – Deixe de olhar assim Hortência!
Carlos – Eu?
D. Maria – Está a enegrecer uma vida digna de melhor sorte.
Carlos – Mas são todos contra mim!
D. Maria – A seu favor, Carlos. Que interesse tem em aborrecer Hortência!

Carlos – Veja como conversa com o riquíssimo Ferreira.
D. Maria – Você perde a cabeça. Não seja infantil.
José – Onde se senta?
Madame Vargas – Sente-se do outro lado.
Belfort (olhando Gastão cada vez mais magro) – Então Gastão,
como vamos de esporte?
Gastão – Cada vez melhor, senhor barão. Não me viu domingo
no time de futebol?
Belfort – Francamente? É extraordinário o que este esporte tem
feito de bem aos rapazes. Dá-me a aparência de que não
faz exercício.
Gastão – As aparências enganam.
Belfort – Talvez não… O exercício é o esporte que se
pratica para a própria higiene. E o esporte é o exercício
que se faz para dar que falar da gente. O senhor ao que parece só faz
esporte.
D. Eufrosina – Se esporte é isso, então barão não
há quem não seja esportivo agora.
Carlos – Todos mais ou menos tocam para o poste do vencedor.
José – Eu gosto imenso de esporte.
Belfort – E faz algum?
José – Nenhum.
Belfort – Imagine o Gastão se o imitasse com que corpo estaria.
D. Eufrosina – Estes bolos são muitos bons. Como os faz D. Hortência?

Madame Vargas – Os bolos? Oh! isso é com a tia Eufrosina.
D. Maria – Mandamo-nos buscar fora.
Baby – Mamãe com idéias de bolos feitos em casa!
Julieta – Eu não sei nem os de palmatória.
Carlota – Que coisa pouco chic.
Belfort – Claríssimo. A única diferença entre a sociedade
d’agora e a que representa D. Eufrosina, é que a de D. Eufrosina fazia
os bolos em casa e a atual como todos os bolos sem saber onde são feitos.
Deputado Guedes – – E um progresso.
Carlos – Ou pelo menos um aumento de despesa.
Belfort – E também a origem da neurastenia. Os bolos fazem a dispepsia,
a dispepsia a neurastenia, a neurastenia a extravagância. Enfim, procurando
bem, o mal fundamental está em não saber fazer bolos em casa.
Mas tomemos o chá. O amor é como o chá, dizia Ibsen.
Carlos – Por isso é que tantas senhoras gostam de chá.
D. Maria – Por que?
Carlos – Para mudar de xícara; sempre que podem.
Carlota – Não me canso nunca de admirar este panorama do terraço
de Hortência. Não acha bonito dr. Guedes -?
Deputado Guedes – – Muito. Eu gosto do mar…
Julieta – E eu!
José – E Hortência?
Madame Vargas – Mais do que eles, acredite..
Belfort – É impossível deixar de ter uma grande paixão
pelo mar. Principalmente de terra, o mar é um sugestionador poderoso.
Basta olhar para o mar para cair uma pessoa no largo domínio das idéias
vagas. E nada mais agradável do que sonhar sentado num rochedo, como
os poetas das holografias românticas, ou mesmo na areia como faz a maioria
dos contemplativos, no Leme. Um sujeito sem idéias até sem ter
tido a idéia de ter idéias, chega a beira da praia, olha o mar
e tem logo meia dúzia de pensamentos. É fatal. O mar é
um laboratório de imaginação e é por isso que
eu explico a superprodução de poetas nacionais pela extensão
das costas…
Madame Vargas – Tia, manda servir o chá aos que ficaram no salão.
(D. Maria vai até a porta do salão).
José – Muita gente?
Madame Vargas – Uma mesa de bridge e outra de pocker.
D. Eufrosina – À mesa do pocker, sempre a ganhar aquele insuportável
senhor Jesuíno.
José – Mas o senhor Jesuíno é, segundo me disseram, seu
parente afastado.
D. Eufrosina – Infelizmente;
Carlos – E é muito rico?
Baby (rindo) – É um parente afastado que quanto mais rico fica mais
afastado.
D. Maria (voltando) – Como todos os parentes ricos.
D. Eufrosina – Acho o gracejo, menina de muito mau gosto…
Baby – São opiniões. Mamãe tem sempre opiniões
que eu não tenho.
Belfort (perto de Mme. Vargas) – Perece-me nervosa, Hortência.
Madame Vargas – Realmente, um pouco.
Belfort – Tenha calma e prudência.
Madame Vargas – Preciso de seu apoio, meu amigo.
Belfort – Pode contar com ele.
Baby – (indo ao grupo de Carlos e D. Maria) – Que conversam vocês?
Belfort (deixando Mme. Vargas) – A apostar que conspiram contra a tranqüilidade
de alguém?
Carlos – Estamos a ver por quem se decide o Gastão. Se pela Julieta
se pela Baby.
Baby – É uma pilhéria sem graça. Nesses casos eu e que
decido e por ti é que não me decidiria nunca.
Carlos – Muita pena.
Baby (rindo) – A não ser que o barão quisesse… (Carlos afasta-se)

Belfort (a Carlota Pais) – Está hoje um pouco pálida, D. Carlota.
Carlota – Palavra? Diga-me então alguma coisa que me faça corar.

Belfort – Não posso. D. Maria recomendou-me que tivesse juízo.

D. Maria – Mas as suas inconveniências são sempre interessantes.

Belfort – Reputação atroz.
Carlota – Parece-me que D. Maria foi de uma delicadeza…
Belfort – Ao contrário. Coopera conscientemente para me criar uma reputação.
A reputação é a opinião alheia que só nos
cria embaraços, mesmo quando é lisonjeira. Todos nós
somos, graças a ela, vítimas uns dos outros. Só um homem
cumpriu o seu dever na terra porque ainda ignorava a reputação.
Julieta – Quem?
Belfort – Adão! Horas depois tinha uma tal reputação
que não fez mais nada digno de nota. E depois de Adão, D. Carlota,
a reputação é que nos faz.
Deputado Guedes – – Não apoiado.
Carlos – Ninguém concorda com o barão.
Carlota – É um monstro!
José – Que diz Hortência?
Madame Vargas – Eu nunca sou da opinião do barão.
Belfort – Mas no dia em que eu tiver a vossa opinião, deixo de ter
a vossa simpatia. O acordo foi sempre a trégua da antipatia…
Gastão – Pelo menos numa coisa o _senhor barão -concordará
conosco. Está. uma tarde linda!
D. Eufrosina – De fato. Uma beleza. Também esta Tijuco é um
encanto.
Deputado Guedes – – Um tanto perigoso para as famílias agora.
Julieta – Como assim?
Deputado Guedes – – Muito mal freqüentada a noite.
Carlos – Gatunos?
D. Maria – Qual! O Dr. Guedes – refere-se aos automóveis, às
ceias em más companhias.
Carlos (ironia) – Cocotes! Ceias! Automóveis? Horror!
Baby – Como deve ser interessante!
D. Eufrosina – Menina!
Baby – Que tem de mal? Eu até agora só falei com uma cocotte
na minha vida. Mas gostei muito. Era uma senhora séria.
Todos – Oh! Qual! Não! Não!
Baby – Palavra. Foi no carnaval.
D. Eufrosina – Menina, não conte isso.
Baby – Que tem mamãe, se já passou tanto tempo? D. Jesuina Praxedes
com várias outras senhoras nossas amigas teve a idéia de passar
uns trotes e de entrar nos clubes e bailes, onde os maridos pintam o sete.
Mas precisávamos de um guia e D. Jesuina não queria homem. Então
Carlota Pais lembrou a Argentina.
Carlota – Eu, não!
Baby (teimando) – Você sim. Você tinha lido o nome dela nos jornais
e D. Jesuina exclamou até : “uma mulher que tem vinte amantes
e trezentos contos é de confiança”…
Vozes – oh! oh!
Madame Vargas – Baby, você está dizendo inconveniências.

Baby – Mas se não tem nada de mal; D. Hortência?
Belfort – E a Argentina foi?
Baby – Foram propor o caso ao palacete que ela habita. Ela custou muito a
aceitar. Mas afinal acedeu. Saímos todos de dominó preto fazendo
“A Mão Negra”. Como nos divertimos! Pois quando uma de nós
brincava de mais, a Argentina dizia! ninãs tengan modos! e ferrava-nos
um beliscão. Parecia mais uma professora.
Guedes – (no riso geral) – Caspité!
Belfort – Para mostrar como a moral e uma coisa, de que fazemos questão
– nos outros…
Baby – Estão a rir? Pois a única que não foi reconhecida
foi a Argentina…
Belfort – Como o nosso caro Guedes. Sabidamente eleito e não reconhecido!

Madame Vargas – Essa brincadeira tem feito o sucesso da estação.
Julieta – E a Argentina?
Carlota – Vai casar. Li os proclamas.
Carlos (a Hortência) – Que pena!
Madame Vargas – Acha?
Carlos (impertinente) – Acho!
Madame Vargas (aos outros, nervosa) – Começa a cair a noite. Se entrássemos?

Carlota – Eu parto. Tenho hoje a ópera.
Baby – Eu prefiro descer ao jardim. Gastão acompanha-me.
D. Eufrosina – Olha o sereno, minha filha. (Baby e Gastão saem para
o jardim).
Madame Vargas – Não quero que partam sem ouvir um pouco de música.
É Tão cedo ainda. Se fôssemos ver os jogadores? Dr. Ferreira
o seu braço. (Baixo). Hoje a noite no teatro.
José – Muito obrigado.
Movimento geral. Vão saindo aos poucos, animada conversa. Ficara D.
Maria e Carlos.
Carlos – Bem. Vou-me embora.
D. Maria – Já devia ter feito isso.
Carlos – A senhora viu o convite, a provocação com que Hortência?
pediu o braço ao dr. Ferreira?
D. Maria – Carlos, você é desolador. Leva a contrariar-se, contrariando
os outros. Hortência? estava irritadíssima.
Carlos – Não era por mim.
D. Maria – Não, era por mim.
Carlos – E se eu lhe falasse, D. Maria?
D. Maria – Se você não é doido, faz o possível
por parecer. Para que falar a Hortência?
Carlos – Porque ela está zangada.
D. Maria – Vá-se embora, Carlos. É melhor.
Carlos – A senhora sabe tão bem que eu não vou! Não vou
enquanto não falar com Hortência. Não me olhe assim. É
cá uma coisa.
D. Maria – Paixão ou pedido?
Carlos – É cá uma coisa que me deu. Hortência? é
outra. Eu não vivo bem desde que apareceu esse homem. É idiota,
bem sei, mas não posso. Se a senhora soubesse como me incomoda! Hoje
não me continha. Hortência? zangou-se. Vá chamá-la.
Um minutinho. Estão a conversar. Não repararão. Diga-lhe
que venha.
D. Maria – E se eu não disser?
Carlos (mais impertinente) – Chamo eu mesmo. Não acha que fica mal?
D. Maria – Julgou-o capaz de mais. Vamos ver. (Ao entrar no salão).
Ainda não se decidiu esse bridge? (Rumor de dentro. Carlos encosta-se
ao balaústre. Um minuto. Depois aparece Mme. Vargas).
Madame Vargas (para dentro) – descanse, D. Eufrosina. Vou vê-los (Alto)
Oh! Senhor Carlos.
Carlos (Alto) – Retiro-me D. Hortência. A sua festa esteve encantadora.

Madame Vargas (baixo) – Que me queres tu?
Carlos – A boas horas!
Madame Vargas – Temos alguma nova desagradável?
Carlos – Não.
Madame Vargas – Ora temos. Devemos ter. O ar de censura, a impertinência,
a frase de dúvida…
Carlos – Deve ser impressão sua Anda nervosa demais!
Madame Vargas – E não tenho razão?
Carlos – Sei lá!
Madame Vargas – Levas-te a vigiar-me a tarde inteira.
Carlos – Talvez.
Madame Vargas – Só não viu quem não quis.
Carlos – Eu, por exemplo, por que tinha de a ver a vigiar-me a mim.
Madame Vargas – Não me enerves, Carlos. Precisamos de tanta prudência.
Tu bem sabes que não deves proceder assim!
Carlos – Mas não faço nada, olho quando muito.
Madame Vargas – Compromete-mes de um modo perigoso. Todos reparam, hoje ninguém
duvida!
Carlos – Salvo os que a viram comprometer-se com outro.
Madame Vargas – Eu?
Carlos – Nada de surpresas. Com o Ferreira.
Madame Vargas – Com o José?
Carlos – Com o José? Como as coisas caminham! Já o trata por
José…
Madame Vargas – Mas acreditas que depois desta loucura contigo, eu arrisquei
outra loucura?
Carlos – Por que não? Nada de ilusões. É a vida. Preciso
saber ao justo o grau dos seus
sentimentos por mim.
Madame Vargas – Se fazes o possível para me desgostar!
Carlos – Parece-lhe?
Madame Vargas – Tu é que te mostras mudar. Tomaste-me de assalto, creio
que só para me fazer sofrer! Não dou um passo, não faço
um gesto, que não te sinta a chamar-me, a dominar-me, a impor-me as
tuas mais loucas extravagâncias.
Carlos – É que não gostei nunca de mulher nenhuma como de ti.

Madame Vargas – Meu Deus!
Carlos – Deploras!
Madame Vargas – Sinto como é superior essa frase de amor…
Carlos – Fazes ironia às minhas frases: Realmente. Não devem
ter literatura como as do Ferreira.
Madame Vargas – Por que falas assim, Carlos? Agora, a cada instante, volta
o José à discussão. Tem tão pouca importância.
Carlos (Num ímpeto) – tem tão pouca importância o que?
O José? Eu? A minha loucura? Talvez tudo isso junto. Ninguém
pode adivinhar a intenção das tuas palavras. Continuas a mesma,
a fazer sofrer, a torturar, a desgraçar…
Madame Vargas – Oh! Não me fales de fazer sofrer! É tempo de
acabar com essa legenda. E tu bastas para redimir as maiores faltas!
Carlos – Queres dizer que sou eu quem te tortura?
Madame Vargas – Vamos a saber. Carlos, que queres?
Carlos – Eu?
Madame Vargas – Mandaste chamar-me e não posso demorar. Que queres?

Carlos – Mas por que esses ares de inimiga?
Madame Vargas – Pelo amor de Deus, dize o que desejas.
Carlos – Desejo apenas que expliques claramente a situação.

Madame Vargas – Que situação?
Carlos – A nossa. Não terás coragem de acabar logo com isso,
e dizer francamente: aquele idiota comvém-me, tem dinheiro. Ponha-se
fora você!
Madame Vargas – Carlos! Estas provocando uma cena _perigosa.
Carlos – Tu gostas dele, sim, tu gostas. Nada de subterfúgios. Nada
de medo. Sim. tens a certeza de que eu perco a cabeça, e adias. Mas
eu te forçarei.
Madame Vargas – Tu?
Carlos – Não é possível que em três meses tenha
acabado um amor tão grande. Lembras­te daquele teu bilhete, o único
que me escreveste? Já o li tanta vez, que até o decorei. “Espero-o
hoje á noite. Deus perdoe a minha loucura. Venha à 1 hora.”
Essa loucura passou? Não podia ter passado! Nunca mais me escrevestes,
mas as loucuras não acabam de repente. E estas cenas que reprovas,
que te contrariam, estes ciúmes são do amor que te tenho. É
sempre assim quando a gente gosta.
Madame Vargas – Em que sociedade?
Carlos – Em todas. Em amor somos sempre os mesmos. Quando a gente ama não
há diferenças, não, convence-te. Mas se queres com isso
fazer alusões aos clubes, aos meus hábitos antigos, enganas-te.
A minha vida de alegria passou. Desde que te amei, nunca mais voltei a esses
lugares. Só a ti amo e não quero, não quero que outro
te tome. Só por isso, só por isso te chamei, só por isso
endoideço.
Madame Vargas – Mas tu me falas como se eu fosse qualquer. Tu duvidas de mim.
Não te bastou o que fiz por ti?
Carlos – Perdoa. É a doidice, é sem querer. Devo-te parecer
muito mau?
Madame Vargas – Um pouco.
Carlos – Que queres? Bem procuro conter-me, mas não posso. Sei que
não tenho e quanto mais te tenho, mais receio de perder-te.
Madame Vargas – E fazes-me sofrer.
Carlos – É tua a culpa. Sim. Tratas-me mal, não me vês
diante dos outros. Principalmente quando aparece esse moço rico, que
aparece agora todos os dias.
Madame Vargas – Porque te fazes inconveniente! Ah! Carlos, não me contraries.
Sabes lá como vivo neste meio em que se espia com volúpia a
falta alheia. Se soubesses! estás estragando a minha vida. É
só por isso, ouves, é só por isso que me desgosto.
Carlos – Hortência!
Madame Vargas – Sim, sim. A nossa loucura deve ficar secreta. Dizes que me
amas?
Carlos – Duvidas?
Madame Vargas – Não, mas reflito. Ignoras por acaso a nossa situação?
Sabes tão bem! Não podes casar comigo. Nem queres.
Carlos – Tu é que não querias.
Madame Vargas – Não é possível. Nem tu, nem eu podemos
– ou falha, cada vez mais falha de recursos. Não é justo que
me queiras exibir como tua amante, para que eu veja todas as portas fechadas.
Não é justo nem digno.
Carlos – A tua frieza a refletir na loucura. Eu não faço tal,
eu não quero nada!
Madame Vargas – Reflito como a vítima que se defende. E tu fazes tudo
isso talvez sem querer, mas fazes.
Carlos – Estás arrependida do nosso amor, Hortência?
Madame Vargas – Tu, insistindo num ponto que conheces, é que me fazes
arrepender. Tu é que me apontas o arrependimento.
Carlos – Não, não! Faço tudo sem sentir, sem querer.
Tens razão, tens muita razão. Perdoa. Não posso casar,
porque não tenho nem situação, nem dinheiro. Mas sabes?
É instintivo. Quando te vejo com outros, que te cobiçam, que
te acham bela, perco a cabeça, desconfio. Sou capaz de tudo.
Madame Vargas – Mas não tens razão de desconfiar.
Carlos – Se se casares?
Madame Vargas – Se eu casar?
Carlos – Sim.
Madame Vargas – Creio que não vais proibir que eu me case?
Carlos (num ímpeto quase alto) – Mas então é verdade
tudo quanto desconfio! É verdade que queres o outro, é verdade
que me afastas, que me aborreces?
Madame Vargas (assustada) – Carlos, por piedade, não insistas, nesta
triste situação nossa, o teu cavalheirismo é, deve ser
ajudar-me. Queres perder a minha vida, porque cedi aos teus desejos? Não
pode ser bonito, não pode parecer digno.
Carlos – Só pela maneira que falas, vejo a tua indiferença.
Madame Vargas – Sou indiferente e dei-te o que não dei a nenhum outro
homem, e faço conscientemente a loucura de te amar, e recebo-te aqui
com risco de perder-me. Sou indiferente e entrego-me dou-me. Eu!
Carlos – Hortência!
Madame Vargas – Sou indiferente, e sou o teu objeto, a tua vibração
e ando no medo constante de ver que um dia acabas com tudo, e confio-te aquilo
que uma mulher preza mais que o corpo; a própria reputação.
Tens razão. E por que? Porque queres estragar aos olhos de todos, egoistamente,
por vaidade, a minha salvação!
Carlos – Não, Hortência, não.
Madame Vargas – Sabes as coisas, não ignoras nada da minha vida. Ainda
ontem à noite eu te dizia pela milésima vez.
Carlos – Ainda ontem…
Madame Vargas – Ainda ontem. Eu te expliquei claramente. Não há
outra solução. Não é possível. O verdadeiro
amor é aquele que se sujeita. Diante desse rapaz…
Carlos – Não! Não! não me fales nele, ao recordar a nossa
noite de ontem. Dou-te razão, aceito a frieza do teu bom senso, faço
o que quiseres! Mas não me fales nele.
Madame Vargas – Mas se és tu que o lembras?
Carlos – Oh! Hortênsia, odeio-o tanto!
Madame Vargas – Para que? Por que? Não desejo ouvir essas palavras.
Nunca te falei dele, não te falo. És injusto. E não te
falarei nunca mais.
Carlos – Mesmo que venha ocupar na tua vida um grande lugar?
Madame Vargas – Na minha vida só ocupa lugar quem eu amo.
Carlos – E vê tu. Eu sinto que sou covarde, que sou um pobre diabo.
Quero reagir, quero ser homem, gritar. E diante de ti não sou mais
nada. Hei de fazer o que tu quiseres!…
Madame Vargas – Chamas a isso fazer o que eu quero!
Carlos – Sempre, sempre, irresistivelmente. O amor faz outros os homens. O
Carlos que tu conheces, é um Carlos que ninguém ouvistes? Ninguém,
nem minha. mãe conhece.
Madame Vargas – É uma criancice…
Carlos – O amor fez-me criança, assim tolo, assim nervoso. Quero-te
tanto porque o meu desejo é muito maior que o teu. Mas consolo-me porque
aos outros ainda queres menos.Não? Não? (Aproxima-.se) Dize.
Pois não? Ainda agora. Quanta crueldade! Quanta frieza! Quanto bom
senso! E enquanto tu falas, eu sinto apenas o desejo, um desejo imenso que
aumenta. Estás tão bonita! este teu vestido… Este teu cabelo…
Hortência! Perdoa. Escuta. Se hoje fosse como ontem?
Madame Vargas – Oh!
Carlos – Eu esqueço tudo, eu farei o que quiseres. Se fosse como ontem,
uma noite encantada, a noite em que adormeceste todas as minhas dúvidas.
Madame Vargas – Não! Carlos. Preciso voltar ao salão. Não
insistas.
Carlos – Pareço-te muito miserável, não é?
Madame Vargas – Não. Sabia que havias de terminar por isso. Há
uma semana fazes assim. Há uma semana exiges e me atormentas! Estou
fatigadíssima.
Carlos – Mas então está tudo acabado entre nós? Queres
deixar-me? Serias tu a primeira mulher que me abandonasse. Não!
Madame Vargas – Digo-te apenas que hoje não. Estou cansada.
Carlos – Mas dizes sempre não.
Madame Vargas – E ainda ontem cedi!
Carlos – Quero hoje. Quero ainda hoje. Hortência, concede.
Madame Vargas – Como me atormentas, Carlos!
Carlos – Dize de boa vontade: até logo.
Madame Vargas – Oh! Não!
Carlos – Hortência, não sejas assim. Eu não posso. Vem
cá (de repente, na exaltação do desejo). Se não
me deres um beijo, faço um escândalo.
Madame Vargas – Estas doido?
Carlos – Completamente. Faço o escândalo.
Madame Vargas – Deixa para outro dia! Hoje não.
Carlos – Assim por assim, é teu desejo acabar, amar o outro. Vê-se.
Não queres, porque já amas outro. Mas eu grito, faço
escândalo, e verás depois.
Madame Vargas – Carlos, por piedade.
Carlos – Dá-me o beijo, então. (Agarra-a).
Madame Vargas – Mas é mau. É mau. Que horror! Não! Não!

Carlos (puxando-a) – Mas dá-me duma vez?
Madame Vargas (presa, debate-se com horror e medo nos braços do amante)
– O que quiseres! O que quiseres! Eu não me pertenço mais. Sou
tua. Continua a ser tua!
Carlos (esmagando-lhe a boca num beijo) – Sim, minha!
E o pano cai enquanto mais alto a voz abaritonada canta o desejo do “Madrigal”.

Segundo Ato

No dia seguinte, às 2 horas da tarde
É o salão de música. Pela janela aberta, vê-se
a varanda e um trecho do esplêndido panorama que é o encanto
do terraço. Um piano de cauda ao fundo, com uma colcha de seda vermelha.
Jarrão da China entre a janela e a porta. Mobília de laca vermelha
e palha dourada. À direita, no primeiro plano, um bibelô com
espelho, junto à porta de comunicação com o interior.
As paredes são forradas de tapeçaria d’Araccio em lilás
e prata velha, motivo: as nove Musas.

Estão em cena Fiorelli e D. Maria que vem entrando.

Fiorelli – La signora?
D. Maria – Doente.
Fiorelli – Como?
D. Maria – Uma leve indisposição. Desde ontem, veio-lhe a migraine.

Fiorelli – Com este lindo dia de primavera?
D. Maria – Infelizmente, não escolhemos o dia para adoecer. Mas sente-se,
Fiorelli, descanse.
Fiorelli – E Ia signora não me mandou dizer nada?
D. Maria – Não. Creio mesmo que não se lembrou de você.
Compreende, uma dor de cabeça. Mas sente-se, Fiorelli, ao menos enquanto
espera condução.
Fiorelli (sem sentar-se, hesitando) – Com que então, sempre, bem senhora
D. Maria?
D. Maria – Eu? Como Deus é servido. Cuidando da vida dos outros desde
que a minha já vai no epílogo.
Fiorelli (distraído) – Seriamente!
D. Maria – Este Fiorelli! Sempre distraído! Sim, seriamente – séria
e tristemente. Mas fale-me de si. Que fez ontem à noite?
Fiorelli – Estive no Lino com a família Gomes Pedreira. Cantavam a
Bohemia.
D. Maria – Pobre Fiorelli!
Fiorelli – Bela música, um tanto renitente, mas bela música.
(ouve-se o timbre elétrico rio interior). Mas chamam. É, de
certo, Ia signora. Senza incomodo. (subtamente mais tímido). Quando
será então? Eu preciso tanto!
D. Maria – Mando-lhe amanhã.
Fiorelli – Veramente!
D. Maria – Sem falta.
Fiorelli – Oh! Grazzie! Grazzie! (sai)
D. Maria (acompanhou o músico até aporta, diz-lhe adeus. Volta)
– Pobre Fiorelli!
Madame Vargas (Aparecendo no interior) – Foi-se?
D. Maria – Com a resignação de sempre. Está convencido
de que eu mando pagar amanhã. Devemos ao Fiorelli cinco meses de tocadas
e lições.
Madame Vargas – Outros devem mais. Também tu! Lembrar-me tal coisa,
na situação em que estou!
D. Maria – Situação que não é de hoje…
Madame Vargas – Ainda o dizes!
D. Maria – E que piora a cada dia. Ontem o copeiro despediu-se antes de jantar.
Foi preciso uma grande tática de que devia servir à mesa. Dei-lhe
até o laço na gravata com ar de quem o faz pelo menos comandante
de uma brigada estratégica.
Madame Vargas – E ainda brincas?

D. Maria – Para que desanimar? Tenha fé em ti. A nossa situação
é desesperadora. Tu mesmo não sabes quanto deves. Devemos a
todos os fornecedores, aos criados e ainda por cima fazemos mais dívidas,
com o mesmo louco trem de vida. É delicado. Mas seria possível
parar agora, fazer leilão, ir morar para uma casa qualquer? Que prazer
teriam os teus inimigos, isto é, a sociedade inteira! A bela Hortência
Vargas, a viúva do diplomata, a orgulhosa Hortência que rejeita
as melhores propostas, descendo do seu pedestal.
Madame Vargas – Nem todos pensam assim.
D. Maria – A maioria não sabe que não temos mais dinheiro e
quer ver o fim. É humano. Que fazer? Resistir. Esperar. Tenho virado
um pouco financeira e devo dizer-te que esgotados os dinheiros da hipoteca
da casa começo a liquidar as tuas jóias. Belfort dá-me
conselhos e já aceitou duas letras minhas.
Madame Vargas – Tia!
D. Maria – Ele é tão delicado, que é impossível
recusar. E há um ano vivemos nesta despesa de grão-duque sem
rendimento! Mas tenho fé Resolves agora tudo.
Madame Vargas – Resolvo?
D. Maria – Então o José? O casamento é a única
solução. Que esperavas tu? Um casamento rico. Vem-te rico, jovem
e apaixonado.
Madame Vargas – Sim. É rico, é milionário, é moço,
amante. Seria minha felicidade. Ama-me…
D. Maria – Mas é a tua felicidade.
Madame Vargas – Como, tia?
D. Maria – Como? Então não aceitaste?
Madame Vargas – Aceitei sim, aceitei. Não foi só pela questão
de dinheiro. Desde que José tão humildemente me ofereceu a sua
mão de esposo, uma imensa e submissa gratidão me foi enchendo
a alma. Aceitei. Mas querer-me ele e desejar eu esse enlace já, é
o mesmo.
D. Maria – Não pode deixar de ser já. A demora é o desastre.
Madame Vargas – A quem o dizes! Ele quer, eu quero. Mas há de outro
lado as insinuações, as cartas anônimas, os despeitos,
tudo quanto tem o rótulo da sociedade. (Levanta-se). E há, meu
Deus, e há, para suprema infelicidade, Carlos.
D. Maria – Não se convence?
Madame Vargas – Não se convence. Ao contrário. Ameaça
fazer um escândalo, ameaça contar tudo.
D. Maria – Mas é infame.
Madame Vargas – Infame, fui eu. Infame que me entreguei, após tanto
tempo de honestidade a um rapaz sem escrúpulos. É louco? Mas
louca sou eu que me deixei levar, arrastar por ele. Não me olhes assim.
Eu estava só, só, sem ter ninguém que me amasse. Agora,
não. Agora sinto que não é possível mais, que
há uma grande, oh! Enorme diferença entre os dois. E quero realizar
minha vida; Quero e hei de realizar.
D. Maria – Realizarás, estou certa. Mas que vais fazer?
Madame Vargas – Imagina o que é preciso fazer! Que esforço,
que contenção de nervos. Há oito dias, Carlos desconfiou;
sentiu que José era mais do que um partido. O seu ciúme as suas
cenas! Aumentam hora a hora! Tia, se Carlos tiver a certeza do pedido de casamento,
estou perdida. E ele desconfia.
D. Maria – Não.
Madame Vargas – Mais do que isso. Tem quase a certeza. Está louco.
Disse-me ontem no chá.
D. Maria – E cometeste a imprudência de recebê-lo à noite!

Madame Vargas – Viste?
D. Maria – Não vi, mas tinha a certeza. Não fosse eu mulher!
A mulher só tem um recurso contra o ciúme: entregar-se. Esquece
que ainda complica a vida.
Madame Vargas – Sim, sim. Foi pior. Não imaginas que noite, que pavorosa
noite de sofrimento. A insistência sua, a terrível insistência,
o nome do outro nos seus lábios que me beijavam com brutalidade! Tinha
ímpetos de escorraçá-lo e estreitava-o mais. É
preciso o ocultar, ocultar. No dia que souber, conta tudo ao José Não
dormi. Só há um recurso, fugir, casar fora daqui, ver-me livre
dele. Depois José defender-me-á!
D. Maria – Minha pobre Hortência!
Madame Vargas – E tenho de fingir, continuar a fingir sem que ninguém
me ajude. Tia, já não se trata de dinheiro, trata-se da minha
honra para um homem que me respeita a ponto de me oferecer sua mão.
D. Maria – Por que não falas a Belfort?
Madame Vargas – Ele vem hoje. Prometeu-me ontem. Só ele que sabe de
tudo e é bom e poderá ajudar-me. (Aparece o criado).
Antônio – O Dr. José Ferreira.
Madame Vargas – Mande entrar. (O criado sai). Deixai-nas sós, tia.
Vê que não nos interrompam. A todo o instante penso no outro_
Como eu leria vontade de dizer a este toda a verdade, e como é impossível!
(Vai ao espelho, compõe a fisionomia e volta-se a sorrir quando entra
José Ferreira com um ramo de rosas, fica perto do puff). Seja bem­vindo
com as suas lindas flores!
José – Como todos os dias as flores são suas.
Madame Vargas – (vai por as flores no vaso sobre o piano) – Merci. Mas sabe
que é escandaloso? Quem o vir chegar todo dia com um ramo de rosas
o que não dirá?
José – Que importa, se é para bom fim!
Madame Vargas – E a nossa combinação?
José – O segredo? É o de Polichinelo. Sabe que falei ontem à
mamã?
Madame Vargas – Ah!
José – Era apenas uma formalidade, mas não podia deixar de a
cumprir.
Madame Vargas – Fez bem. Que disse ela?
José – Ficou contente. Tudo que parece ser a minha felicidade é
de resto sempre a vontade de mamã. Sou _filho único e ela é
só. Imagine que pensa em netos! Mas conhecia-a de vista e acha-a linda.
Sabe que causa uma impressão de rainha?
Madame Vargas – Lisonjeiro!
José – A mamã é uma senhora muito ativa, de costumes
rígidos, bem a senhora antiga, esposa de fazendeiro, achando que ninguém
pode ser superior aos seus. Sabe entretanto a sua frase? Disse-me a sorrir
: “Aquela senhora tão bonita gostou de ti, JoséT’
Madame Vargas – Oh! José!
José – Repito o que disse a mamã. E olhe que para falar francamente,
de vez enquanto ponho-me a pensar e indago a mim mesmo: como seria isso?
Madame Vargas – Senhor Dr. José Ferreira, se viesse sentar-se em vez
de dizer isso?
José – É a verdade. Quando há dois meses a vi no teatro
tive uma tão esmagadora impressão! O coração se
fez pequeno, pequeno. Já me disseram que só se fica assim diante
das pessoas que nos vão dar um grande bem ou mal irremediável.
Lembra-se? Ao entrar no seu camarote pelo braço do Guedes, não
sabia o que dizer. O coração adivinhava e fazia-se pequeno com
medo.
Madame Vargas – (rindo) – Felizmente, o medo durou pouco­
José – Porque logo se fez amor. Mas nem calcula como esse seu ar tão
superior, esse seu ar de imperatriz faz os outros se julgarem menores. Eu
tremo sempre de a perder…
Madame Vargas – Ilusão! A imperatriz já o vira na platéia
e indagava: quem será aquele rapaz diverso dos outros que me olha na
quinta fila?
José – Hortência!
Madame Vargas – É bom gostar um pouco dos outros!
José – Amo-a tanto! Hortência, que bem o sinto, o meu amor há
de fazê-la feliz.
Madame Vargas – José! Conhece-me. Deve-lhe ter dito tanto mal de mim!
A fria Hortência, é que despreza todos os pretendentes! Sim!
é uma pouco verdade. Nunca amei. Entretanto, não sei porque
nesta minha vida, neste inferno de festas, de alegrias que são amargores
e amargores que não são alegrias, só uma pessoa dá-me
uma impressão de sossego, de paz d’alma, de apoio, de satisfação
completa – você. Quando você está, sinto­me tão
calma, tão descansada, tão bem! É fé – a fé
de que encontrei enfim o meu amigo, o meu protetor, o meu verdadeiro esposo.
E o meu coração sente-se então muito largo, muito largo,
e eu tenho uma grande vontade de chorar.
José – É bom falar-me assim, Hortência. Se eu quisesse
dizer-lhe o que é o meu amor, dir­lhe-ia que desejava fazê-lo
forte e macio como de aço coberto de veludo, para defender sem a magoar.
Porque é superior ás outras, porque tem a alma tão alta
e a beleza tão altiva, é que precisa de quem lhe abra o caminho,
de quem limpe a estrada da pedra e da erva daninha, de quem sob os seus passos
estenda o arminho e as rosas. Eu amo-a assim, Hortência. Muito, muito.
Se não me desse atenção, se não me quisesse ver,
teria desaparecido sem a criminar. Levaria comigo apenas a mágoa da
minha inferioridade, e não teria uma queixa e não diria nada.
Sabendo que me aceita, que me agasalha, sinto que a vida se completa e que
a sorte, trazendo-me a felicidade e fazendo-me bom, completou que a série
dos seus bens, dando-me para conduzir a estrela que de longe eu seguia…

Madame Vargas – José! José! Eu nunca tive me falasse assim.
Eu nunca tive. Se tudo entre nós tivesse de acabar, poderia levar a
certeza de uma recordação indelével, a certeza da revelação.
É tão delicado e tão bom! Dá-me flores e o seu
amor. Quantos me ofereceram isso antes, eu recusei. Ofereciam? Sei lá!
Queriam. É você o único que oferta, e tão bem que
o perfume da sua alma entontece, e que uma grande vontade de ser boa faz da
pobre Hortência alguém que só no mundo o quer. Mas é
sonho. Tudo quanto é muito bom não pode ser verdade.
José – Por que?
Madame Vargas – Tenho medo daqui, tenho medo de tudo. Enquanto não
o conhecia, José, enquanto a minha vida era lutar e resistir nesta
sociedade de invejas, de intrigantes e
de egoístas, era forte e queria. Tinha de ser. Diante de mim o horizonte
se definia sempre igual e pardacento. Agora não. Agora tenho medo,
tenho medo de tudo. A cada passo penso que vão destruir a minha felicidade.
José – Mas quem?
Madame Vargas – Esta vida! Esta gente!
José – Mas se eu estou a seu lado?
Madame Vargas – O meu desejo era um só – partir. Partir consigo.
José – Já agora está assentado o nosso casamento.
Madame Vargas – Seria tão bom que não fosse aqui! escute, José
É uma estado de nervos, um receio vago inexplicável. Eu não
queria que fosse aqui. Partir. Partir. Levar para longe dos curiosos a nossa
felicidade e de lá então anunciar.
José – Sempre a mesma idéia.
Madame Vargas – Guardar o segredo, o segredo imenso do meu primeiro amor.

José – Não quer que ninguém o saiba?
Madame Vargas – O meu desejo era que o mundo o ignorasse, que fosse depois
como uma surpresa irrevogável.
José – Eu, ao contrário desejaria que todos soubessem.
Madame Vargas – Vaidoso!
José – Orgulhoso! Ando tão alegre, tão cheio de felicidade,
que só tenho o desejo de irradiar pelos que encontro o meu prazer.
O segredo sufoca-me.
Madame Vargas- Guarda-o por mim, José, guarda-o. Há tanta gente
que não suportaria a nossa alegria! Procurariam envenenar os nossos
instantes de prazer, falando, inventando, caluniando. Seria o tormento nas
reuniões, a curiosidade indiscreta nos teatros – coisas pior, quem
sabe…
José – Que importa a opinião dos outros?
Madame Vargas – Essa gente vive conosco na mais cordial simpatia, mas ao perceber
a felicidade, é uma raiva que lhes dá de despeito e de inveja.
José – Dizendo-o a todos, ninguém se atreverá. O mistério
dá-me a impressão de que vamos cometer um crime.
Matame Vargas – E há maior crime para os outros de que organizarmos
a própria felicidade? Não, José Como seria bom partir!
José – Mas parto. Sempre acedi aos seus desejos.
Madame Vargas (de súbito, rindo) – Tu partes num dia, eu parto no outro.
Chegamos no mesmo dia. E depois de lá chegar, eu rirei, eu rirei…
José – Como está nervosa, Hortência. Nunca a vi tão
nervosa como hoje.
Madame Vargas – É que não posso mais, José Não
posso mais aturar esta gente, esta sociedade. Tudo antes de você. Nada
agora, Nem mais um dia, porque um dia é um século. Eu iria,
partiria se não fosse primeiro.
José – Mas não é preciso tamanha exaltação.
Já tanto me-falou no mistério e nessa partida, que estou de
há muito resolvido.
Madame Vargas – Palavra?
José – Palavra. Desde que lhe declarei o meu amor, imagina inimigos
por todos os cantos. Não é tanto assim! Levei um mês.
a ouvir o-~ fala~ de si. E o que diziam? Que era insensível, que era
má, que seria incapaz de amar? Vivem a verdade de tudo isso! De mim
o que poderão dizer? Nada ou tudo. Que importa se não acredita?
Mas é vontade sua.
Para que contrariar? Acabemos. Amo-a. Quer partir? Que seja já. Mais
depressa casaremos.
Madame Vargas – José, José!
José – Mas que nervos! Que nervos, Hortência!
Madame Vargas – Hoje é terça. Partiria amanhã?
José – Como?
Madame Vargas – Sim, embarcando amanhã, eu seguiria depois de amanhã
noutro paquete, só com a criada. tia ficaria. Ninguém saberá
senão depois de estarmos longe. tudo se esclarecerá quando dois
dias depois os telegramas disserem o nosso casamento.
José – Mas é uma-fugida.
Madame Vargas – É.
José – Dirão, que fugimos juntos.
Madame Vargas – Que importa?
José – Mas,_3ortência, é um estado de nervos…
Madame Vargas – Não, é medo. Medo de ver desfeita a única
ilusão da minha vida. Sou só no mundo. Só agora comecei
a amar a um ente, quando o sofrimento já me fizera medrosa. Esta sociedade
dilacera-me. Enquanto não o conheci – não pensava. Agora cada
vez penso mais, cada vez desejo mais. Terá que anunciar uma felicidade
a realizar-se. Realizamo-la antes para fazê-la depois conhecida. Para
que demorar?
José – Não me incomoda a opinião alheia. Mas neste caso
a maledicência será contra si. Hortência.
Madame Vargas – Que importa, se sabe você bem o que é? O meu
desejo é impedir o travo da felicidade. Se eu não o amasse José,
juro que não lhe pediria isso!
José – Como é possível negar-lhe alguma coisa? Mas são
duas horas. E eu tenho de levar a mãe à cidade. É obrigação.
Logo à noite estarei cá.
Madame Vargas – Ainda há tempo de partir amanhã?
José – É uma viagem de núpcias inteiramente nova!
Madame Vargas – Cada um no seu vapor e antes do casamento! Como vou rir! Como
vou rir!
José – Mas é preciso não ficar assim nervosa… porque
então não vou nem mesmo à cidade…
Madame Vargas – Sim por mim, por mim (Pendendo no seu ombro). Nunca imaginará,
José, como lhe quero bem!
José – Seria dar-me força para querê-la mais – se fosse
possível. Minha querida, sempre tão nervosa!… Até logo.
Madame Vargas – Volta para dar-me a resposta?
José – Volto à noite. Tranqüilize-se. Já lho disse.
E juro que parto.
Madame Vargas – Meu querido! (Acompanha-o até a porta. Fica a dizer-lhe
adeus porque José passa pela varanda. Depois tem um grande suspiro,
distende os braços. Infinita tristeza na face. Instante. Silêncio.
C,ái numa cadeira junto à janela, meditando. Entra Belfort).
Belfort – Muito bom dia, Hortência.
Madame Vargas – Oh! Barão.
Belfort – Como vamos de ontem?
Madame Vargas – Como fiquei ontem?
Belfort – Alguma coisa grave?
Madame Vargas – Infinitamente Grave. Encontrou José?
Belfort – Vim do landaulet. Não o vi. Trata-se dele?
Madame Vargas – Trata-se do drama da minha vida, desta minha desgraçada
vida. Não tenho ninguém para desabafar, para me aconselhar num
grave momento, a não ser a tia, que é boa e não tem inteligência,
e o senhor que é inteligente…
Belfort – Mas não sou bom.
Madame Vargas – É o melhor dos homens.
Belfort – Não diga isso. Sabe bem que só pode ser bom para uns
o que é mau para outros. (Desce a ela) Mas como está nervosa!
Pobre Hortência! Que coração o seu! Sabe a que a comparo?
A uma flor cujo viço depende de muito cuidado e que jaz para aí
sem esse cuidado à mercê da intempérie. Diga-me. Vai casar
sempre?
Madame Vargas – Barão, sabe toda a minha vida. Nunca lhe ocultei nada
porque seria inútil. Sabe mesmo antes que lhe digam. Sim. Quero realizar
esse casamento. Que pensa ele?
Belfort – É uma solução, a única mesmo.
Madame Vargas – Não lhe pergunto a opinião que faz de José
Vejo que o acha melhor do que os outros.
Belfort – É raro. Bom, nobre, sério, escandalosamente sério.
Só não me atrevo a rir da sua inverossímil seriedade
para que os outros seriamente não se convençam de que não
há perigo em continuarem patifes.
Madame Vargas – E pensa como eu desta gente!
Belfort – Engana-se. Não penso, classifico. No dia em que cada homem
sério quiser organizar-se um pouco à maneira de um gabinete
de identificação, a sociedade melhorará quase tanto como
o desejam os socialistas. Será apenas o uso intensivo da precaução,
– da ciência da precaução. Mas em tudo isso, minha querida
Hortência, o essencial é não sofrer. Todos nós
desejamos não sofrer. E parece que sofre pelo menos uma grande preocupação.
Não é o José? Esse ama-a leal e sinceramente…
Madame Vargas – É a minha vida.
Belfort – Só?
Madame Vargas – Estou incapaz de continuar, estou sim, cansada de sofrer.
Não posso mais. Conhece-me há muito, barão. Não
me queixo nunca. Mas já não posso.
Belfort – Não se trata mais de lutar. Trata-se de um sentimento.
Madame Vargas – Sim, talvez.
Belfort – A sua vida tem sido à espera da felicidade.
Madame Vargas – Com que desejo a espero!
Belfort – Desta vez está a tê-la nas mãos…
Madame Vargas – Barão, sou muito infeliz! Nunca fiz mal a ninguém
por vontade. E entretanto parece que tudo se revolta contra mim. Sabe o que
se passa?
Belfort – Q que não podia deixar de ser, minha boa Hortência.
Acabou por amar deveras um homem digno que a pediu…
Madame Vargas – E de repente, quando tenho a felicidade, quando a sinto ao
alcance da mão, após uma vida de esforço, de sacrificio,
de tormento oculto, o único momento de loucura, o único instante
de esquecimento desta vida exemplar, ergue-se como o desastre.
Belfort – Como?
Madame Vargas – Lembra-me a sua frase, há dois meses, na legação
do Japão.. “Há pequenas tolices que são grandes
desastres”. O senhor olhava Carlos com um frieza terrível. Compreendi
que sabia, que tinha sabido.
Belfort – A velhice torna infalível a observação.
Madame Vargas – Eu entretanto já antes o compreendera também.
Abandonara-me a um desvario de momento, a um desejo mais forte, e estava à
mercê de uma criatura egoísta, seca, brutal, um rapaz que tem
a prática da maldade de um velho. Precisava dum consolo. Tive um aro
de ferro que me cerra, que me cinge, que me aperta. Antes de poder escapar­lhe,
veio José É tão diferente!
Belfort – É não pensar senão no José…
Madame Vargas – Ah! não posso. Infelizmente não posso. Viu ontem
Carlos no chá?
Belfort – Fazia acena do ciúme insolente.
Madame Vargas – Desconfiou que há da minha parte mais do que simples
interesse por José. Desconfiou e eu neguei. Neguei por medo, neguei
por covardia. Quanto mais eu nego, porém, mais o seu ciúme quer,
mais exige. Vivo num tormento. Não posso mais. Se confesso, sinto-o
bastante capaz de, por vingança, ir dizer ao outro a minha falta. Se
nego, tenho de fingir, de fingir amor por um ente, que não amo, que
não amei nunca, que apenas me entonteceu. Como é fátuo,
como é mau, como é cruel esse rapaz, meu amigo. Não!
É preciso acabar com isso já. Mesmo que não case com
o José, não poderei mais suportá-lo!
Belfort – Tenha calma.
Madame Vargas – Só a um homem como o senhor falo como a mim mesmo.
Sou bem uma infeliz. Sabe o meu orgulho de menina, a minha vaidade. Recalquei
o desejo, com a ambição de triunfar. Era bela, a intangível.
Casaria com um grande nome. Há dez anos – em torno de mim amontoaram-se
os desastres. Fugi do amor, e quando esse amor estava para chegar, ainda o
desastre, o maior, o insuperável me fez ruir todas as esperanças.
Não quero! Não quero, não! É de mais. Porque preciso
vencer, porque quero ser digna – porque amo.
Belfort – Mas não se exalte.
Madame Vargas – Chegou ao auge, meu amigo. É a tortura, estou nas mãos
de Carlos, sabe? Inteiramente nas suas mãos. Ele conta tudo se souber
que eu caso. É o escândalo. Pior. E o meu fim.
Belfort – Não fará isso.
Madame Vargas – Jurou-me. E faz. Sei que faz, para muito mais. Conhece-o?

Belfort – Vi-o menino.
Madame Vargas – Tem-se por chic, tem-me por prazer mau, tem-me como se tem
uma tem uma presa. Dei-lhe o que uma mulher tem de mais caro: a reputação.
Como? Não sei! Era a sua impertinência, era a sua ciência
de tentação. Eu estava só, havia tanto tempo… Se pudesse
ser perdoada, teria apenas para o perdão essa terrível expiação
de todos os momentos, sentindo-o a fingir amor, a gozar, a mandar, a dispor
da minha honra, da minha vida, por vaidade, por egoísmo, por maldade.
Belfort – Mas não fará nada disso.
Madame Vargas – Não o conhece.
Belfort – Mais do que supõe. Quer ter confiança em mim?
Madame Vargas – É a única pessoa que me merece.
Belfort – Que pretende fazer?
Madame Vargas – Fingi até agora, fingi com pavor, com a idéia
única de salvar-me. Tudo, menos que o José venha-a saber. E
consegui, consegui tudo. O José embarca amanhã. Eu sigo-o. Se
ele não cometer a sua ameaça até amanhã, estou
salva!
Belfort – É apenas uma criancice. E o José embarca?
Madame Vargas – Pedi-lhe tanto!
Belfort – Mas, minha querida Hortência, fugir é levar o tiro
pelas costas.
Madame Vargas – Que fazer? Eu não sei! Já não penso.
Belfort – É simples. Dizer-lhe tudo.
Madame Vargas – Nunca!
Belfort – Carlos é de uma família honrada: refletirá.

Madame Vargas – Não! Não! Quero partir!
Belfort – Partir é secundário. É preciso apenas partir
com a certeza de que esse rapaz não lhe fará uma infâmia
ao saber do caso.
Madame Vargas – Fa-la-á, barão, fiá-la-á!
Maria (à porta) – Hortência. (Os dois voltam-.se, D. Maria faz
um sinal significativo).
Madame Vargas – Ei-lo aí. Vê? Volta! Está continuadamente
aqui. Volta a ameaçar-me.
Belfort (resolução.súbita) – Recebo-o eu.
Madame Vargas – Barão, por quem é!
Belfort – Deixe-nos sós, Hortência. É muito grave o que
se passa. Sou eu quem lho diz. Juro que lhe darei a felicidade. Deixe-me conversar
um pouco com ele. Bastará isso. Depois venha falar-lhe.
Madame Vargas – Não me perca! Não me perca!
Belfort – Nunca dou um passo sem a certeza do que vou fazer. Vá. (Leva-a
com autoridade até a porta, fecha-a. Senta-se numa poltrona). Há
quanto tempo não via um pequeno drama em pleno desenlace. Vai ser realmente
delicioso! (Recosta-se com indiferença).
Carlos (entrando, surpreendido) – Oh! O senhor?
Belfort – Bom dia, jovem Carlos.
Carlos – Pensava tudo menos encontrá-lo agora.
Belfort – Goza você da mesma surpresa que eu. Também não
contava.
Carlos – Madame Vargas?
Belfort – Acaba de sair daqui.
Carlos – D. Maria?
Belfort – Ainda não a vi. Anda de certo nos arranjos da casa. Pobre
D. Maria!
Carlos – É uma boa senhora.
Belfort – Quem sabe? Não há ninguém bom nem mau completamente.
As pessoas são como as ações. Tomam o aspecto do momento.
Há ações que encaradas sob o prisma da rigorosa moral
parecem pouco apreciáveis, e que, entretanto, se pensarmos bem, sem
moral, chegam a ser desculpáveis.
Carlos – Sempre moralista!
Belfort – E dos melhores, porque compreendo a imoralidade geral sem regenerá-la.
Mas como nós divagamos!
Carlos – Talvez do calor!
Belfort – É que ambos temos uma preocupação forte.
Carlos – 0 barão tem alguma?
Belfort – A de querer conversar com você.
Carlos – É o que fazemos.
Belfort – Conversar a sério. Em geral conversamos muito para não
dizer nada. Escondemos o terrível diálogo do silêncio.
Desde que chegou, você pergunta: que me queres tu? E eu respondo; já
te direi!
Carlos – É imaginoso.
Belfort – É, como vê, muito triste. Não negue. O nervosismo
impaciente da sua atitude parece traí-lo. Que quer fazer?
Carlos – Mas… Nada.
Belfort – Ainda bem. Há pouco, depois do almoço, vim ver Hortência
e soube de coisas muito interessantes.
Carlos – Ah!
Belfort – Sente-se aqui. Tenho por Hortência uma grande amizade, a amizade
que se tem pelos que não conseguem realizar a felicidade, tendo todas
as condições para obtê-la. Hortência, não
sei se sabe? Continuando depois da morte do marido, a mesma vida de fausto,
está sem recursos. Ou antes tem pouco para manter uma vida que é
a. razão de ser da sua existência. A aparência! Como a
aparência leva à ruina neste país! Hortência soçobra,
porém, sem salvamento. Falta-lhe um auxílio forte, falta-lhe
um homem.
Carlos – Ah!
Belfort – Claro que com a sua altivez e a sua intangível honestidade
ela não aceitaria nem aceitará nunca auxílios de dinheiro
estranho. Qual a solução que você apontaria à nossa
pobre amiga, que não sabe ser senão bela e gastadora – para
a salvar do cataclismo?
Carlos – Francamente…
Belfort – Ela está bem num dilema, não acha?
Carlos – Compreende, esta confidência imprevista…
Belfort – Da minha parte, não há dúvida, deve espantá-lo.
Mas nós conversamos muito. E há de fato uma solução
providencial, a solução que noventa e nove vezes sobre cem acode
as pessoas acostumadas ao luxo, quando o luxo vê que as vai perder.
Hortência, no seu desastre financeiro, conserva a maior dignidade e
a maior pureza. Dela até agora, nem suspeita. Quer um charuto?
Carlos – Obrigado, não fumo.
Belfort – Inibe-se com isso de dois prazeres; o de devancar e o de perder
a memória, o que em certos casos é excelente. Mas onde estava
eu?
Carlos – No dilema.
Belfort – Não. Um pouco mais adiante. Na providência. Creio que
o não fadigo.
Carlos – Ao contrário.
Belfort – E a providência, como sempre providencial, arranjou a solução…

Carlos (explodindo) – Barão, por que me tortura, há tanto tempo?

Belfort – Mas não. Procuro as palavras. Quero apenas fazê-lo
refletir.
Carlos – Ela vai casar, ela aceitou o casamento?
Belfort – Ela aceitará.
Carlos – Com ele?
Belfort – Que importa que seja com ele ou com outro? É a salvação.

Carlos – E mandou chamá-lo para me dizer isso?
Belfort – Como amigo que a respeita e que deseja a sua felicidade.
Carlos – Só isso, barão, só esse ato dela, mostra que
eu tenho um pouco de razão. Não teve coragem de me dizer face
a face.
Belfort – Estima por você talvez.
Carlos – Estima! A ironia dessa palavra! Estima! Dou-me a ela, hipoteco-me
à sua vontade, vivo por ela, pensando, sonhando nela, num sentimento
imenso de dedicação, de amor, escondendo-me, humilhando-me.
E quando após três meses, ainda é maior o meu sacrifício,
casa com outro e manda-me dizer que eu reflita. Há de convir que é
cômico.
Belfort (impassível) – A vida é uma dor contínua que
se finge não sentir – como medo de não mais a sentir. Que se
há de fazer/
Carlos – mas para que fingir.
Belfort – Você engana-se. Não fingiu até agora nem finge.
Outra fosse a situação e estou certo de que não a veria
sofrendo. Foi você a sua única loucura.
Carlos – Uma loucura que passa à passagem da primeira conta corrente.
Belfort (leve impaciência) – Carlos, você esquece que eu respeito
madame Vargas.
Carlos – Mas é o senhor mesmo quem me dá as suas razões.
Belfort – E esquece que eu o conheço muito bem.
Carlos – Trata-se de um caso diverso, trata-se de outra coisa.
Belfort – E esquece também que não a pode prejudicar, não
tem o direito de o fazer.
Carlos – Que me importa?
Belfort – E esquece até mesmo a sua situação, que me
abstenho de definir.
Carlos – Diga. Continue. A minha situação miserável,
a situação que no primeiro momento envaidece, mas que só
se compreende depois. Diga. Ela é a grande dama, que esqueceu alguns
meses o seu dever. Eu sou o rapaz sem conseqüências. Bem vestido,
filho de boa família, mas sem profissão e sem dinheiro. Quando
vem o interesse, allons oust! Seja cavalheiro e passe muito bem. Simplesmente
o inferior! Ah! Meu caro barão, você não compreenderá
nunca a fúria de amar, quando a gente se sente inferior. É uma
miséria, é um nojo, é um desespero. A maioria dos desclassificados
vem do amor em que eram inferiores. Eu sou inferior. Eu não tenho dinheiro.
Se ela fosse rica, eu seria apenas o preferido, o manteúdo! Oh! Sim.
Havia de bater-lhe para mostrar que antes de ser dela, ela é minha.
Há mais porém. Sou o preferido secreto que ela arreda para casar
com outro. E então tudo quanto ainda tenho de nobre, que é um
desesperado orgulho, me sobe à cabeça. Tenho ciúmes,
ciúmes idiotas, sem razão de ser. Ë uma luta. Vou quase
a ceder e de repente vem-me palpável a lembrança dela e dele,
que é estúpido, que é rico. Estúpido, rico e forte…
Penso que ele sabe, que ele me despreza. Penso que ela acabará desprezando-me
também, satisfeita em tudo com um espírito que se deixe dominar,
com o dinheiro para gastar e além disso, com um homem forte e moço!
Meu Deus! Eu já sabia que ela ia casar. Ao ver esse pobre diabo, que
só a leva pelo dinheiro e pela posição, adivinhei. Então
agarrei-me aos últimos instantes de dúvida, desejei-a como quem
rouba, violei-lhe a fraqueza como um salteador, entontecia de.medo, de susto,
de pavor…
Belfort (frio) – E vai tranqüilamente deixá-la em paz!
Carlos – Como?
Belfort – Para que esse desespero? Você é moço. A juventude
pensa que tudo acaba, quando tudo continua. Para que tanto drama? Raramente
as mulheres valem uma loucura. Talvez por isso não há mulher
que não tenha enlouquecido um homem. Ou dois. Ou mesmo três.
Mas não importa. As mulheres são pequenos vasos de cristal transparente.
Não tem cor. Nós é que lhes pomos a tinta da nossa ilusão.
Vemo-las azuis, rosas, ou negras. retirada a tinta, meu rapaz, os vasos continuam
sem cor. Você é um temperamento que eu conheço bem. Ela
porém é um pouco diversa de você. Acabou. Acabou tudo.
Retire a tinta. Outros amores virão. E o que fizer sofrer a outras
mulheres compensá-lo-á do que não pode mais fazer a Hortência.
Carlos – O senhor não acredita na minha dor, barão?
Belfort – Meu caro Carlos, decididamente exagera.
Carlos – Exagero?
Belfort – Não quererá fazer-me crer numa paixão fatal
por Hortência. Conheço-o muito bem. Uma paixão fatal é
profundamente aborrecido_ Trata-se de uma conquista mundana, aquilo por que
vocês todos almejam: a mulher bonita de sociedade, que se assalta uma
noite de baile, que se envolve em luxúrias aprendidas nas pensões,
e que se conserva mesmo às escondidas como um brasão, porque
posa bem. Oh! não! Interromper-me para quê? É exatamente
isso. depois a paixão ocupa. Entra uma Renée e uma Glória
qualquer e sempre elegante, o luxo gratuito de uma senhora a quem se domina
pela revelação libidinosa, pelo próprio terror do escândalo…
Carlos – Barão! Não me confunda com essa gente. O seu ceticismo
aniquila a vontade que tenho de convencê-lo! Não! Eu não
quero impedir a felicidade dela, eu sei que sou transitório, que não
devo ser levado em conta.-Ela pode casar. Mas não com aquele, não
com ele. Esse não! não!
Belfort – Por que?
Carlos – Não sei! Já não sei o que digo! Mas não.
É instintivo, é uma revolta furiosa.
Belfort – Uma pequena revolta. Compreende-se. Outro qualquer não reuniria
as qualidades que tanto o incomodam no José É por conseqüência
uma questão de despeito, de vaidade. Tanto mais dolorosa quando é
na _sombra, sem que ninguém saiba. Mas por isso mesmo nobre, mais nobre.
Hortência falou-me do receio que o seu ciúme lhe causa. Teme
desgraças, horrores. Logo a tranqüilizei lembrando: Carlos é
um cavalheiro. A nossa palestra tem esse fim. Você vai deixar de ameaças
que não são um prodígio de galanteria.
Carlos – Eu não ameaço, só eu faço.
Belfort – Você vai deixar de pensar em fazer.
Carlos – Veremos.
Belfort – Desejo convencê-lo apenas.
Carlos – Que me importa a mim ela? O respeito é recíproco. Tramou
um casamento e põe-me na rua sem satisfação. Vingo-me.
estou no meu direito. Não é capaz de dizer-me que o procedimento
dela é moral?
Belfort – Não discuto o acaso, que tem contingências. Nada é
moral. Mas acho que tudo é digno quando se procura conservar com sacrifício
de um, de cem, ou de um milhão de homens a honra de uma senhora.
Carlos – É uma opinião de efeito para as mulheres.
Belfort – A melhor, Carlos, que, peço aceitar.
Carlos – Manda-me embora. É a primeira mulher que me despede! Vingo-me.
Belfort – Mas sou eu quem lhe peço.
Carlos – Em nome de quem?
Belfort – Em seu nome, em nome de seu caráter, primeiro: em meu nome
depois. Sou um velho amigo da sua família, de seu pai.
Carlos – Oh! meu pai!
Belfort – Por ser amigo de seu pai, encontrou-me você sempre…
Carlos – Oh! barão. Creio que não vai trazer á coleção
uns pedidos de rapaz para peitar a minha consciência.
Belfort (impaciente) – Se tem essa consciência, deveria ter começado
por não ameaçar uma mulher sem defesa. Mas se a retoma agora,
deve respeitar-me.
Carlos – Entre o respeito que possa ter pelo senhor e esta questão
em que o senhor nada tem, há um abismo.
Belfort – Carlos, seria melhor não azedar esta palestra. Peço-lhe
em meu nome ainda uma vez, em nome de um velho cético que já
lhe pagou algumas contas.
Carlos – O senhor alega-me coisas que de certo não fez com o fim de
se fazer meu tutor em questões de mulheres?
Belfort – É um caminho errado esse. Estás a mostrar a alma demais.
E se eu quisesse alegar?
Carlos – O que?
Belfort – Eu poderia lembrar há cinco anos a sua entrada na minha casa.

Carlos (senta-se bruscamente) – Barão!Barão!
Belfort – Eu poderia recordar a sua fisionomia desmudada, o seu gesto nervoso,
os seus soluços.
Carlos – Barão, é pouco generosos o que faz. Não é
de um homem como o senhor!
Belfort – Eu poderia dizer-lhe as minhas reflexões diante dessa pequena
falta, em que se mostrou com lucro tão mau imitador…
Carlos – Mas não é digno! Não é digno!
Belfort – Eu poderia lembrar que tenho todos as provas de um desvairamento
da sua juventude, fui tão pouco generoso que guardei esse documento
num canto e nunca mais dele me lembrei.
Carlos (prostrado) – Barão! É o senhor o único homem
que me pode falar assim. Não! Não continue. Eu não sei
o que faço. Eu não sou mau, não, não sou! É
a fatalidade. A fatalidade que me fez um gozador sem fortuna, um leviano,
um pobre rapaz leviano. Tudo é contra mim. Até agora. Até
agora. É o desespero que me leva a ameaçar Hortência.
Eu aceitaria tudo menos o outro. E até aí a minha desgraça
o faz ganhando a partida. Porque lembrar o que foi mau, por que lembrar o
que passou há tanto tempo?
Belfort – A nossa palestra termina.
Carlos – Eu sou-lhe muito grato, muito, muito. Aquilo o senhor fez, não
por mim mas pela minha família. Para que recordar, se continua amigo
de meu pai? Esse desvario passou. Nunca mais. Nunca mais. Não precisava
vir com o espectro do passado ameaçar, me.

Belforf – Não ameaço. Valorizo o meu pedido.
Carlos – Foi mau,.foi tão mau! _Disso só o senhor e eu sabemos.
Nada mais resta… Não precisava lembrar tanta coisa. Eu sou eu. Não
precisava fazer valer em defesa de uma criatura que eu amo, esse processo
tão esquisito, tão policial…
Belfort – Diga a palavra. Essa chantagem. Graças aos deuses a chantagem
não é só para as coisas ruins. Mas a nossa palestra findou.
Levou-me a excessos de que me arrependo.
Pedia-lhe que refletisse. Ainda o peço. E tenho tanta confiança
na sua prudência que o deixo só.
Carlos – Faz muito pouco do homem a que trata tão mal!
Belfort – Não. espero tudo do seu cavalheirismo. (consultando o relógio).
Oh! Esperam­me no clube para. uma partida séria. Carlos, vai ter
com Hortência uma última palestra.. Seja um homem digno. E não
volte mais aqui. Se precisar (põe o chapéu, á porta,
elegantíssimo) uma estação d’águas, vá
falar-me. Não volte. (sai).
Carlos (anda nervosamente, morde os pulsos, está furioso).
Madame Vargas (abre a porta da direita de repente) – Belfort?
Carlos (estacando) – Foi-se.
Madame Vargas – Ah! Carlos – Contou-me tudo.
Madame Vargas – Tudo?
Carlos – O teu casamento, o José Ferreira, a situação.

Madame Vargas – Não são coisas definitivas.
Carlos – Mas vão ser. É inútil mais rodeios. Falou-me
como tu, friamente.
Madame Vargas – Ai de mim!
Carios – Falou-me como um negociante. Convenceu-me.
Madame Vargas – De que?
Carlos – De que somos todos do mesmo pano, assaz infames: ele, tu, o noivo
e eu. Cedemos um pouco cada um de nós e as coisas irão da melhor
maneira, no melhor dos mundos possíveis.
Madame Vargas – Se pensas assim…
Carlos – Pensamos. Pensamos todos assim numa peça bem imoral…
Madame Vargas – Em que não tens o melhor papel.
Carios – Nem tu.
Madame Vargas – Acho esquisito que tivesses ficado para dizer insolências.

Carlos – Não as direi mais.
Madame Vargas – Belfort falou-me. É um amigo comum.
Carlos – Extraordinário, absolutamente extraordinário, é
o que ele é
Madame Vargas – A tua insistência, os teus ciúmes não
me davam coragem para te expor a salvação da minha vida. Chamei-o
como a única pessoa capaz de te convencer.
Carlos – Convenceu-me. Mas por que chamá-lo? Que se deu? O que eu pensava?
Bastava que me tivesse dito logo no primeiro dia. Sou um cavalheiro, sou ao
menos teu amigo. Compreendo as necessidades. Compreendo muito bem. Para que
fingiste? Tu é que andaste mal.
Madame Vargas – Eu? Se não tivesse estabelecido um cerco angustioso
em torno de mim, a espreitar, a entrar a todo o instante, a responderes quase
com ódio, se não tivesse a cada passo uma cena terrível
de ameaça, teria agido doutro modo. Mas tu viraste meu inimigo.
Carlos – O amor é cego.
Madame Vargas – Sabes que detesto frases vazias.
Carlos – Eu também. Principalmente ditas por nós.
Madame Vargas – Esse tom de impertinência vai-te mal.
Carlos – Não sei porque.
Madame Vargas – Devo lembrar-te que falas comigo.
Carlos – Estou certo.
Madame Vargas – Eu é que estou cansada, ouviste? Esses teus modos são
para outro lugar.
Carlos – Não se trata aqui da minha educação. Trata-se
de um arranjo. Eu estava estorvando. vem o Belfort e eu cá estou pronto.
Nada de talon rouge-apaches!
Madame Vargas – Longe de me acalmar, tudo quanto dizes, mais me excita. Se
tivesses aceitado razoavelmente os. fatos, não dirias grosserias.
Carlos (rompendo) – Mas vocês são engraçadas! Vocês
são tão boas como as outras, vocês têm amigos, vocês
têm protetores, com que combinam enganar a humanidade…
Madame Vargas – Carlos!
Carlos – E no momento em que lhe falamos como a iguais, ficam imensamente
ofendidas.
Madame Vargas – Carlos! Carlos!
Carlos – Que temos?
Madame Vargas – É de mais. Não me afrontes mais. É indigno
o que fazes.
Carlos – Somos iguais. Nada de poesia.
Madame Vargas – Nunca pensei que me humilhasses assim… Não podias
fazer.
Carlos – Não se trata do que eu possa fazer.
Madame Vargas – É uma miséria! E dizer que me entreguei a um
grosseirão da tua ordem!
Carlos – O papel de vítima vai-te mal.
Madame Vargas – Esqueci todo o meu passado, o meu nome, o meu faturo.
Carlos – A bela lamentação!
Madame Vargas – Meu Deus!
Carlos – Mas não perdes o futuro, fica certa. Que é preciso
fazer? Desaparecer? acompanhar o casamento?
Madame Vargas – Tenho pena de ti, Carlos!
Carlos – Em troca eu tenho-te inveja!
Madame Vargas – Para que cavar entre nós o abismo das más palavras?

Carlos – Há um maior.
Madame Vargas – Há a fatalidade – o que não podia deixar de
ser.
Carlos – Achas?

Madame Vargas – Mas o que desejas tu, afinal? Que eu perca minha posição
social? Que me denuncie publicamente tua amante? Que eu case contigo? Dize.
Não podemos continuar definidamente nesta situação, em
que me colocas. Não te bastou o meu orgulho. Queres ver-me vilipendiada,
corrida. O meu erro foi pensar um momento que tinhas por mim alguma feição.
Carlos – Hortência!
Madame Vargas – Não vens nunca senão com a ameaça. O
teu amor é a violência e a afronta. Que queres tu afinal? Dize,
que eu faço. O barão falou-te. Estou arrependida de lho ter
pedido. Era melhor, sem receio, desde que é esta a minha situação,
arrostar com tudo. Vamos a saber. Queres casar comigo?
Carlos – Hortência.
Madame Vargas – Queres? Essa seria a melhor das hipóteses para mim
e é irrealizável. Sabes bem que é E as outras? As outras
são o meu desastre apenas.
Carlos – Quando se ama não se reflete como tu refletes. O teu casamento
é um pretexto para me afastar. Já não me queres`
Madame Vargas – Não quero loucuras, não quero o meu sacrificio
inútil – inútil porque não o compreenderias. Por enquanto
eu sou a Bela Madame Vargas que requestas numa linda vila na melhor sociedade.
Seria a mesma amanhã seguindo-te na miséria?
Carlos – Para que frases?
Madame Vargas – Quero ao menos saber francamente o que desejas. Esta é
a nossa última explicação. Fala.
Carlos – Para que?
Madame Vargas – Fala, dize o que desejas, o que se poderá fazer?
Carlos – Ora!
Madame Vargas – Dize sempre. Dize… Ficaremos com a situação
clara.
Carlos – O amor-é o sofrimento.
Madame Vargas – O amor é a dedicação. Mas não
fales de amor!
Carlos – Falo, falo, sim. Queres saber? Sofres? Eu sofro muito mais. Já
-não vivo senão com a tua idéia, idéia de egoísmo,
de ambição, de desejo, seja! Mas tu! Cada um ama como pode.
Há três meses que me importava ires com outro… casares? Há
dois meses mesmo! Hoje eu não posso, eu não quero, oh! sim!
não quero, não! Ver-te com outro, só a lembrança
me enche de sangue a cabeça e me atordoa.
Madame Vargas – Não divagues, Carlos. Fala a verdade.
Carlos – Digo o que sinto.
Madame Vargas – Dize inteiramente.
Carlos – Não quero que cases.
Madame Vargas – Que devo fazer então? Casar contigo? Fugir contigo?

Carlos – Hortência!
Madame Vargas – Mas completa o teu pensamento, tem a coragem de completá-lo,
dize o que ambos sentimos há muito tempo. Não é o meu
casamento que te preocupa. Quantas vezes falas-te dele a rir como uma coisa
fatal.
Carios – Hortência!
Madame Vargas – Não te incomodava eu ser de outro, não te aborrecia
isso, o sangue não te enchia a cabeça nessa ocasião.
Eu que te ouvia, tu que falavas como éramos iguais! Tem pois a coragem
da verdade. Não te aborreceria que eu desposasse fulano ou sicrano,
o deputado Guedes ou o banqueiro Praxedes. O que te incomoda, o que tu não
queres é que seja o José.
Carlos – Pois si. Confesso. É verdade. Odeio-o, odeio-o. Não
me revoltaria se casasse com outro. Mas com ele não! Com esse nunca!
Com ele é que não quero.
Madame Vargas – Por que?
Carlos – Não sei, não sei!
Madame Vargas – Porque é rico?
Carlos – Não -sei.
Madame Vargas – Porque é moço?
Carlos – Não quero! Não quero!
Madame Vargas – Porque é digno?
Carlos – Como eu adivinhava! Antes de ser comerciante, es bem mulher. Sim,
não quero que cases com ele, confesso-o, porque é rico, é
moço, é digno, porque é estúpido, porque
o amas. Sim. Gostas dele! É o único de quem tu gostas. Cada
dia gostas mais. Cada dia mais. Vi, senti, tive a certeza. Eu fui a loucura
que se recorda com horror. Ele é o teu amor.
Madame Vargas – Estás louco. Fala baixo.
Carlos – Não _negues, não mintas também. Acabemos com
isso. Há um mês que lutamos eu e tu – eu querendo saber, tu a
fugir. Vieste. É um bem. sabes o que eu penso. Mas eu sei o que tu
sentes. Esse imbecil conquistou-te! Todos nós colaboramos para que
ele ficasse em foco. E tu amaste-o ao vê-lo. E tu me abandonas por causa
dele.
Madame Vargas – Não!
Carlos – Não ocultarias, se o não amasses. E fingiste, fingiste!
Para que fingiste tanta razão, tu que é tão doida como
qualquer de nós? Para que fostes buscar Belfort, para acabar as nossas
relações?
Madame Vargas – Pela tua exasperação contínua. Com medo
de ti.
Carlos – Medo por ele! Só por ele! Ele é o alfenim a que tu
vais pertencer e não deve ser incomodado. A sociedade! os teus credores!
Mas continuarias comigo apesar da sociedade e dos credores, se não
fosse ele. Tudo por ele, só por ele!
Madame Vargas – medo por ti, por mim.
Carlos – Eu é que grito agora: deixa de farsa! Mas escuta, vem cá.
Há instantes lembrastes as minhas conversas cobre a possibilidade do
teu casamento. Pois bem. Dize-me cá: se casares com ele, continuaríamos
os dois os mesmos?
Madame Vargas – Mas é indecente o que fazes_ Não estás
no teu juízo. Tudo o que dizes é desvario.
Carlos – Porque eu sei que não será, compreendes? Eu sei. Ele
adquiriu-te completa com a estupidez e o dinheiro. Já viste um imbecil
enganado pela mulher? Nem que case com uma meretriz!
Madame Vargas – É demais! É demais! Carlos, vai-te. Tinha de
acabar assim a nossa afeição. pensarás depois na grande
dor que me dás! Vai-te. Não posso mais! Não posso mais!
Está tudo acabado!
Carlos – Como o amas! Como queres ver-te livre de mim para realizar com ele
toda a tua ambição! Atiras-me á rua como um trapo, como
uma bola de papel. Mas é que não sabes que eu não quero.
Madame Vargas – Não queres o que?
Carlos – Não quero que case contigo.
Madame Vargas – É uma baixeza que não farás.
Carlos – Nunca mulher nenhuma me abandonou. Vais ver.
Madame Vargas – Não farás. Não será possível!
Carlos – Nem tu, nem as conversas de Belfort, nem cem como tu.me poderiam
deter_
Madame Vargas – Dir-lhe-ei tudo, contar-lhe-ei tudo, antes de ti. Ele me perdoará.

Carlos – Antes de. lho dizeres, vou eu dizer-lho!
Madame Vargas – Carlos, não transformes o meu sentimento por ti em
ódio.
Carlos (pegando no chapéu) – O teu sentimento por mim agora é
medo. Mas não creias que me dominarás, que me vencerás.
Ele não casará contigo.
Madame Vargas – Ele é um homem de bem. Não te ouvirá.

Carlos – Gritarei!
Madame Vargas – Correr-te-á!
Carlos – Não o fará, ouviste? Não o fará! Não
-se trata mais de mulheres doidas e de velhos tolos. Trata-se de homens, estás
ouvindo?
Madame Vargas (precipitando-se) – Carlos! Carlos!
Carlos (no auge da fúria, agarrando-lhe os pulsos) – Fica sabendo.
Fica sabendo bem. Havemos de contar-lhe tudo, ouviste? Havemos de ver-lhe
a decepção de idiota. E ele não correrá ninguém,
porque se der um passo – mato-o!
(Atira-a sobre as cadeiras, sai).
Madame Vargas (soluçando) – Carlos! Carlos! Carlos! 0 pano cerra-se
bruscamente.

Terceiro Ato

(O mesmo cenário do segundo ato, seis horas depois. E o salão
de música à noite. Há um extraordinário luar que
inunda os espaços e se alastra fora pelo terraço. Das janelas
e da porta vê-se bem o luar. A varanda está toda cheia de luz
da noite).
Estão no salão:
Madame Vargas, Belfort, Baby Gomensoro, Madame Azambuja, D. Maria, Julieta,
Carlota Pais, Gastão, Deputado Guedes e José Ferreira.

(Quando levanta o pano todos em roda do piano dão palmas e aplaudem
Mme. Azambuja que termina o segundo noturno de Chopin).

Baby – É realmente admirável.
Guedes – V. Exa. toca divinamente.
Carlota – É a alma de Chopin.
Belfort – Eu ficaria reconciliado com os pianos, se todos os amadores fossem
como Mme. Azambuja.
Madame Vargas – Não sei, esse noturno deu-me vontade de chorar.
D. Maria – É porque estás nervosa.
José – Ainda tem dor de cabeça?
Madame Vargas – Ainda, um pouco.
Baby – Deixe de cuidados demasiados. D. Hortência não podia deixar
de estar. nervosa.
Madame Vargas – Ora esta. Por que?
Baby – Um noturno de Chopin com este luar!
Carlota (indo à janela) – Está realmente um luar deslumbrante.

Gastão – Muito bonito.
Madame Azambuja – Um luar para tragédias.
Baby – O dr. Ferreira, avistamos a sua casa de cá?
José – Não, mademoiselle.
Guedes – Está uma claridade de dia…
Madame Azambuja – Fica a gente romântica. Lembra Shakespeare.
José – Romeu e Julieta…
Julieta – Verona…
D. Maria – Urna escada de seda.
Carlota – E os versos do Bilac. (Madame Azambuja fica a tocar languidamente,
enquanto em torno e perto da porta conversam Madame Vargas e Belfort no primeiro
plano).
Belfort – Por que está tão abatida?
Madame Vargas – A cabeça estala-me, já não posso ter
mão em mim. É o máximo da resistência.
Belfort – Mas porque abandonar a coragem no último momento?
Madame Vargas – Por que é o desastre.
Belfort – Que idéia triste. Vai partir e tudo será pelo melhor,
ao contrário.
Madame Vargas – É que não pode imaginar o que se passou com
Carlos. A sua presença exarcebou-o.
Belfort (vinco na testa) – Hein?
Madame Vargas – Ameaçou-me de tal forma, que a todo o instante o espera.
Carlos é capaz de tudo!
Belfort – Minha cara Hortência, pode ter a certeza de que são
raros os capazes de tudo. Os capazes de tudo são os excepcionais. O
mundo é uma grande repartição pública. Nessas
repartições há sempre um ministro para centenas de funcionários.
No mundo há um ser d’exceções para milhares de outros
que não passam de amanuenses da vida. Madame Vargas – Amanuense o Carlos!
Belfort – Há amanuense e amanuense. Há os que trabalham, casam,
pagam a lavadeira, tem filhos e cometem regularmente outras coisas insignificantes;
e há os que indo à repartição pretendem cometer
ações de maior importância e não fazem nada. O
Carlos pertence aos que não fazem nada é amanuense da vida com
a proteção do diretor e o medo dos credores.
Madame Vargas – Porque brincar ainda, barão, neste momento angustioso?

Belfort – Porque tenho confiança-no futuro.
Madame Vargas – Se escapássemos até amanhã a catástrofe
estaria adiada.
Belfort – Só se dão as catástrofes pelas quais não
esperamos.
Madame Vargas – Eu é que não posse mais. Se ele vem, se faz
o escândalo público!…
Belfort – Esquece que estou aqui!
José (no grupo junto à janela) – Com essas disposições,
o luar deixa-a incapaz de resistir?
Baby – Não sei. teria uma grande vontade de ser conquistada.. deve
ser bom, não acham?
Guedes – Aquele grande palacete é o do banqueiro Praxedes?
D. Maria – Conhece-o? É um sujeito terrível esse tal de Praxedes.
Já me explicaram porque quando conversa fecha os olhos.
Julieta – Por que é?
D. Maria – É para ter tempo de fazer algumas somas entre as perguntas
e as respostas. Carlota (ao fundo) – Hortência, venha ver os efeitos
do luar. Parece ouro líquido.
Madame Vargas (caminhando) – Há noites doidas.
Baby – Doidas é o termo.
Belfort (baixo a José) – Parabéns.
José – De que?
Belfort – Sei que parte amanhã.
José – Psiu, quem lho disse?
Belfort – Hortência estava a pedir-me que tratasse da passagem dela.
Gastão (descendo) – É esquisito. Todos nós falamos do
luar. Só o barão parece não o ver.
Belfort – Porque adoro as coisas simples e naturais.
D. Maria – Acha então o luar pouco natural?
Belfort – O luar é o artificio. Metemo-lhes tanta coisa, arrebicamo-lo
tanto, que nada mais resta do verdadeiro luar. A lua das cidades é
uma invenção literária. Acho muito mais natural a D.
Carlota ou o Deputado Guedes.
Guedes – Mas já lhe tenho dito uma porção de vezes que
não sou reconhecido…
Baby -Não é?
Guedes – Infelizmente!
Madame Azambuja – Mas o que vai ser então?
Belfort – Sim, se não for deputado, o que vai ser então?

Guedes – Ah! isso… Hoje, com a certeza do meu degolamento, o partido que
está no governo ofereceu-me a candidatura à presidência.
Baby – Bravo! Presidente!
Gastão – Mas são precisas muitas coisas para ser presidente?

Guedes – Sim. Capacidade, energia, tino…
Belfort – Tudo isso é de mais.
José – Como assim?
Belfort – Para ser presidente de estado no Brasil só é necessário
uma qualidade: a de saber preparar o buffet.
Todos – Hein? Como?
Belfort – Porque sendo a campanha das candidaturas uma noite de contradanças,
os vencedores só têm uma preocupação política
administrativa: avançar na ceia…
Guedes (riso geral) – Vê-se que o barão gosta de brincar. Não
respondo a pilhérias.
Belfort – É sempre assim que os presidentes começam.
Madame Vargas – E se saíssemos um pouco?
D. Maria – Com este sereno!
Madame Vargas – Vamos todos até à estrada?
José – Que idéia!
Belfort – Que nervos, diga antes. vai piorar a sua dor de cabeça.
Madame Vargas – Ao contrário. Talvez me faça bem. Venha daí
doutor. Todos – vamos! Não! Bela idéia!
Belfort – Eu não_ Prefiro fumar um cigarro no terraço.
Madame Azambuja – Não. Estou cansadíssima.
Movimento de saída, saem todos: ficam apenas Mme. Azambuja e o deputado
Guedes.
Guedes – Esta vida mundana é motivo de graves neurastenias.
Madame Azambuja – Depois as preocupações…
Guedes – Quais?
Madame Azambuja – Só sustentar este luxo e escolher os flertes.
Guedes – Má língua.
Madame Azambuja – Eu? Ao contrário. Falo a verdade. Só não
vê quem não quer. Não lhe parece muito terno o Dr. Ferreira?
Guedes – Sempre pensei que fosse o outro, o Dr. Carlos.
Madame Azambuja – E depois diga que sou eu a má língua. Pois
contam-no também, o Sr., no rol dos apaixonados.
Guedes – Sabe bem que só tenho uma paixão.
Madame Azambuja – A política?
Guedes – Nunca se ama o que nos sustenta.
D. Maria entra.
D. Maria – Que imprudência! Lá se foram!
Guedes – É um passeio extravagante.
D. Maria – O Dr. Guedes é que não iria, hein? A Tijuca mete-lhe
medo.
Guedes – Perdão. Mete-me medo quando vou com senhoras de respeito.
Só, ou com homens, acho até graça. Já uma vez
vim cá à noite com um amigo do meu Estado e dei com uma ceia
de estalo na mesa do imperador. A iluminação era a velas multicores.
D. Maria – Que escândalo.
Guedes – Só cocotes e rapazes, que diziam os maiores horrores!
Madame Azambuja – Atacaram-no?
Guedes – Felizmente não. Escapei, porque estava na roda o senador Policarpo.
D. Maria – A propósito, a senhora do senador Policarpo continua a enganar
o marido?
Guedes – Absolutamente.
Madame Azambuja – É lá senhora para voltar atrás. Nunca!

Guedes – O Policarpo é que enviuvou.
D. Maria – Foi o seu primeiro ato da satisfação à sociedade.
Baby e Belfort aparecem à janela do lado da varanda.
Madame Azambuja – Já acabou o cigarro?
Belfort – A apostar que falavam mal da vida alheia?
Baby – Enquanto não falávamos de amor.
Madame Azambuja – Alguma declaração?
Belfort – Não. A Baby confessava que precisa amar. Eu disse-lhe que
trabalhasse em alguma coisa útil. O amor é sempre uma resultante
da falta do que fazer. Ela ri e não acredita. Chamou-me criança.
D. Maria – O topete desta menina!
Belfort – Deus fala pela boca da inocência.
Baby (que já está na sala) – Não me faça corar!

Belfort – Impossível! Hoje tanto do rouge abusou, que está permanentemente
ruborizada.
(Baby corre à janela. O barão refira se)
Madame Azambuja – A verdade é que o barão, é um inimigo
do casamento.
Belfort (entrando) – Eu?
Guedes – Pelo menos não pensou nunca em casar.
Belfort – Apenas por influência de leituras. Em rapaz caiu-me nas mão
um livro antigo escrito em latim. Falava do casamento e dava o silogismo do
matrimônio segundo Bias.
Baby – Que Bias?
Belfort – Um sujeito muito antigo, que morreu antes de nós nascermos.
Bias diz: A mulher que escolhermos será bela ou feia. Se for bela,
não será só tua; se for feia, casarás com uma
fúria.
Madame Azambuja – Oh! Barão!
Belfort – É verdade que logo depois o autor citava Favorinus, que aconselha
o meio termo entre as duas, e Quintus Ennius que chama o meio termo stata.
Até hoje procuro a stata e não há meio de me resolver…
Madame Azambuja (indo ao piano corre uma escala) – Mas que extravagância
a de sua sobrinha D. Maria. Tanto mais quanto estou arrependida de não
ter ido também.
Belfort – Obrigado, por todos nós.
Madame Azambuja – Não. É que o luar me poe nervosa.
Belfort – O luar é o inventor de todas as loucuras, segundo alguns
literatos Até o nosso Guedes, com um luar destes seria capaz de as
realizar.
Guedes – Não. Tenho sempre juízo… Não sou mais homem
para essas coisas.
Belfort – Por que? Porque vai ser presidente de Estado?
Guedes – Porque a espinha mo proíbe.
Baby – Sofre da espinha?
Guedes – Aqui onde me vê, D. Baby, sou um candidato a ataxia.
Baby – Então respiremos.
D. Maria – É uma moléstia grave, Baby.
Baby – Mas basta que o Dr. Guedes seja candidato a ela para que a gente tenha
a certeza de que não a apanha.
Guedes – Má! E o senhor barão a rir. Está a fazer da
Baby uma discípula.
Belfort – Não. Rio com sentimentos conservadores – com medo de perder
a alegria. É tão raro encontrar alguém alegre! Vejam
os transeuntes na rua. Cada fisionomia tem um vinco de preocupação.
As mulheres olham-se com mal disfarçado rancor. Os homens não
conseguem esconder a mágoa oculta. Já ninguém mais ri
francamente. O riso dói a princípio o prazer de devorar. Foi
depois o prazer de viver. Hoje é o desespero de não poder arrasar
a geração. A Baby rir por prazer, ao menos.
Baby – Obrigada pela conferência. Vou colecionar anedotas.
(Mas pela varanda surgem a correr e a rir Madame Vargas, José, Gastão,
Carlota, Julieta. Irrupção na sala).
Madame Azambuja – Ora viva a companhia!
Madame Vargas – Uma corrida louca, minha filha!
Carlota – Fomos perseguidos.
Guedes – Que dizia eu?
Julieta – Só o Gastão nos salvaria.
José – Imaginem. Dois automóveis cheios de cavalheiros e damas.

Madame Vargas – Queriam por força reconhecer-nos.
D. Maria – Como assim?
Madame Vargas – É que tínhamos tapado o rosto com as écharpes.
Julieta – O Amaral Fataça pegou-me o braço teimando que eu era
a Liliane. Cariota – Felizmente, Gastão conseguiu fazê-lo recuar.
Julieta – Traiu-nos.
Belfort – Mais uma vitória nos bíceps, Gastão?
Gastão – Qual bíceps. Inteligência.
Belfort – É surpreendente!
Baby – Que fez você? Julieta – Disse o nosso nome é claro.
Gastão – Juro que não. Foi tudo quanto há de mais simples.
Disse que as senhoras eram outras.
Carlota – Que outras?
Gastão – Outras senhoras com que eles flertam.
José – Foi um salve-se quem puder!
Carlota – E corremos até aqui.
Madame Vargas – Mas a cena aumentou-me ainda a dor de cabeça.
José – Não será coisa de gravidade?
Madame Vargas – Não. Quando tenho uma forte emoção a
dor sempre vem.
José – Por que não toma uma pouco d’aspirina?
Madame Vargas – Não, obrigada.
Madame Azambuja – É uma dor tremenda essa. Eu nunca a tinha tido. Parece-lhes
impossível? Pois é. Só há oito dias é que
a senti pela primeira vez. Quase morri!
Belfort – Que me diz?
Madame Azambuja – Sério. Foi depois de um jantar em casa de Madame
Braga, a esposa do homem de borracha.
Carlota – Aquela que dá agora recepções?
Gastão – Uma senhora tremendamente gorda?
Madame Azambuja – Essa mesma. Nunca vi tanta gente feia reunida.
Baby – A dor de cabeça talvez fosse disso.
Madame Azambuja – A Braga estava decotada, com um colar que o marido disse
ter dado 200 contos.
Carlota – É uma soma muito razoável. Não acha, D. Maria?

D. Maria – D’acordo. Três bien.
Madame Azambuja – Mas é que vocês não imaginam a Braga
decotada!
Baby – Eu a vi ontem no Lírico.
Madame Azambuja – Não é verdade? Já viste decote igual?
Baby -Francamente em público, desde que perdi a minha ama de leite,
foi a primeira vez…
Guedes – Mas o decote da senhora Braga é que lhe causou dor de cabeça?
Madame Azambuja – Não sei. Atribuo aos seringueiros, ao decote aquela
gente toda e a uma salada, á moda do Pará, que serviram no fim.
Era de matar.
Gastão – Não_ há nada pior do que uma salada quando faz
mal.
Madame Azambuja – Até agora não sei do que era. O senhor barão,
que sabe tudo, conhece por acaso a salada do Pará?
Belfort – Qual delas? Porque há muitas. Salada é o termo que
se aplica admiravelmente a todas as coisas do Brasil. Há a.salada política,
de que por exemplo agora o Guedes é o azeite. Há a salada filosófica,
em que ninguém se entende. Há a salada social, uma dessas saladas
panachés que dariam indigestão a um avestruz. A qual delas se
refere?
Julieta – Às que se comem, está visto.
Belfort – Dessas não sei. É verdade que o diplomata Schmidt
pretendeu ensinar-me uma. Mas não conseguiu. Quando chegava a lição
estava sempre com champagne de mais.
José – Era apanhá-lo quando a tivesse de menos.
Belfort – Impossível. Schmidt apostou que o champagne não lhe
fez mal. de modo que quanto mais bebe mais vontade tem de beber para mostrar
que é forte. Tem com isso um lucro. Apesar de morar à beira
mar desconhece a ressaca…
D. Maria – Mas, pelo amor de Deus, não falemos mal da vida alheia!

Belfort – Que havemos de fazer então para sermos elegantes.
Carlota – Irmo-nos embora, por exemplo. Hortência precisa descansar.

Madame Vargas – Oh! não.
Carlota – Pois sim! Não deseja você outra coisa.
Gastão – Está evidentemente doente.
José – Não diga!
Madame Vargas – Descanse. Não tenho nada.
Guedes – Mas há de dar licença. (Cumprimenta). Julieta – É
isso mesmo. estamos insuportáveis.
Carlota – Vivemos quase na casa de Hortência.
Madame Azambuja – Hoje só faltou o Dr. Carlos.
Baby – É verdade. O que andará fazendo aquele conquistador?

Belfort – Dorme com certeza sobre os louros.
Madame Vargas – Até amanhã.
Guedes – Vai V.Exa. ao Lirico?
Madame Vargas – Talvez.
Madame Azambuja – É ópera nova.
Belfort – Então não presta.
Julieta – Por que?
Belfort – Porque todas as óperas novas são sempre para os entendidos
do Rio, borracheiras tremendas.
Baby – Se D. Hortência for, eu quero um lugar no camarote.
Madame Azambuja – Por causa do tenor?
Baby – Por causa do Bastão. O camarote do pai é pegado.
Madame Azambuja – Para começar, quer você vir no meu automóvel?
deixo-a em casa.
Baby – Merci. Aceito.
Põem as capas. D. Maria ajuda-as. Cumprimentos, shaknands.
Guedes – E uma imprudência vir à porta, senhora D. Hortência;

Carlota – Não venha, Hortência.
Madame Azambuja – Melhoras. Nunca vi você tão nervosa como esta
noite.
Baby – É verdade. Eu também. O Dr. José, leve-nos até
lá em baixo.
José – Mas, vou também com as senhoras.
Carlota – Como, se mora para cima?
Madame Azambuja – Nada de flertes, Baby. É tarde. (No salão,
sós, Belfort e Hortência).
Belfort – Que lhe disse eu? Não veio!
Madame Vargas – Mas onde estará, que fará ele?
Belfort – Tranqüilamente em qualquer clube.
Madame Vargas – O barão não o conhece.
Belfort – Melhor do que a Hortência.
Madame Vargas – Ele faz alguma, ele disse que faria.
Belfort – Esta noite, pelo menos, parece ter adiado. Tenho a certeza. Foi
a sua última cena. Ele sabe quem eu sou, e sabe que o tenho…
Madame Vargas – Barão, salve-me! Mais algumas horas e eu terei evitado
essa desgraçado empecilho. Já começaram a falar nele,
já o notam. Ouviu a Renata?
Belfort – Tenha confiança. Eu quero e quando eu quero, raramente os
outros deixam de querer o que eu quero. Estou vigilante. se o que lhe disse
não bastar, agirei, e diante do que eu tenho, as veleidades desaparecerão.
José (voltando)- Então até amanhã.
Madame Vargas – Meu bom José… Vai, não é assim?
José – Que se há de fazer, se é vontade sua.
Madame Vargas – José, vá. E saiba que nunca na minha vida estimei
alguém como o estimo.
José – Está nervosa, Hortência. Continua nervosa. Não
imagina como fico inquieto. Ainda há pouco quase comprometo o nosso
segredo…
Belfort – Descanse, é a emoção da despedida. O único
meio de ser feliz é não discutir os caprichos da dama dos nossos
sonhos.
José – Eu estou também muito alegre, e muito triste!
Madame Vargas – Não! Não! Deves ficar alegre, e só alegre!

Belfort – Está bem, está bem, nada de nervos.
Belfort – Eu vou, Hortência. Até amanhã.
Madame Vargas – Adeus, meu querido José. (Dá-lhe a mão
a beijar).
Belfort (interrompe) – Vai para sua casa?
José – Claro. Arranjar as malas.
Belfort – Consente que o acompanhe? A noite está linda. Preciso dar
um passeio. Leve-o no meu automóvel e conversaremos.
José – Não se incomode, por quem é… Estamos a duzentos
metros se tanto…
Belfort – Não. Quero ver como se comporta. Já não o largo!
Minha cara Hortência. Tenha fé! Está tudo acabado. Até
amanhã. (A D. Maria que lhe dá o sobretudo e o chapéu).
Não, sem sobretudo. Obrigado. (A José, saindo) Diga-me? Nunca
teve medo de bandidos? Eu gosto imenso. O bandido é o covarde valente,
sem a coragem de afirmar. Sempre tive vontade de encontrar um bandido face
a face. Se fôssemos atacados?
José – Sempre o mesmo barão. Até amanhã, Hortência!
Descanse. Não fique mais nervosa. Adeus.
Madame Vargas – Até amanhã. (saem José e Belfort). Ah!
Dia! Dia horrível que não acaba! Mas algumas horas e salvo-me!
D. Maria – Queres partir?
Madame Vargas – Quero impedir que mais uma vez estraguem o meu futuro. Só!
Quero ser feliz, compreendes? Quero mostrar publicamente que eu também
amo, que posso ser uma esposa que se inveje. Quero a claridade do dia! Basta
de escuro, basta de crime.
D. Maria – Não te excites assim, com as.próprias palavras. Tens
um pouco de culpa…
Madame Vargas – Tia, não me censures.
D. Maria – Eu teria dito a esse pequeno cínico as coisas como elas
são, desde o começo. Garanto que só ameaça vingar-se
por despeito.
Madame Vargas – A quem o dizes! E a cada gesto seu, mais sobe José
no meu conceito, mais vejo quanto desci, mais sinto a minha ignomínia,
mais amo o outro. Sim. Não é mais
interesse, não é mais, não_ Com esse que me ofereceu
tudo e não pediu nada, com esse eu iria. Porque o amo! Porque o amo!
E ter aquela criatura imaginando estragar a minha vida, perder-me no conceito
de José, só porque me assaltou num _momento de _lassidão
e de amargor! Oh! não sabe ele como me defenderei! Faltam apenas algumas
horas. Depois já não poderá dizer nada, já não
poderá. fazer nada, estará sem os dentes de veneno e peçonha…
D. Maria (indo apagar o lustre central) – Vem deitar-te. É melhor.

Madame Vargas – Não. Um instante. Quero repousar os nervos.
D. Maria (hesitante) – Não fazes hoje nenhuma tolice?
Madame Vargas – Oh! Tia!
D. Maria – Ainda ontem, minha filha!
Madame Vargas – Ontem… vai já tão longe. Hoje preferiria morrer.

D. Maria – Ainda bem. Tudo menos aquilo.
Madame Vargas – Oh! tia, não insistas. Até já; vai-te
deitar.
D. Maria – Até já, meu tesouro. Hás de ver. Não
acontecerá nada de mau. Ele não cometerá as infâ
mias que disse. Repousa. Está para chegar a felicidade. Não
te apoquentes mais. (sai).
Madame Vargas, um instante só.
Madame Vargas – Como custa chegar a,felicidade!
Tem um largo suspiro, fica um instante diante do espelho abatida. A porta
do terraço descerra-se. Entra por ela num golfão de luar Carlos.
Madame Vargas vê a sua entrada pelo espelho. Volta-se aterrada.
Carlos – Boa noite.
Madame Vargas – Tu? Tu aqui?
Carlos – Do que te admiras? Não é a primeira vez.
Madame Vargas – Voltaste? Voltaste depois do que se deu ontem conosco.
Carlos – Como vês. Não incomodo? Andei por fora à espera
que os outros. saíssem.
Madame Vargas – Tens coragem de voltar, de entrar aqui, sem o meu consentimento,
alta hora?
Carlos – Deixei-te tão doida hoje à tarde! Precisávamos
conversar, não te parece?
Madame Vargas – Mas não temos mais que dizer. Mais nada. Será
o que tu quiseres. Tudo quanto quiseres.
Carlos – Finge calma! estás convencida de garantias. O barão
encheu-te de confiança. Vê­se!
Madame Vargas – Não. Fizeste-me sofrer muito e perdeste com isso o
que me restava de afeição por ti. Podes fazer o que quiseres.
desinteresso me.
Carlos – Ainda bem. Foi o que eu fiz, descansa.
Madame Vargas – Que fizeste?
Carlos – Preparei uma pequena vingança.
Madame Vargas -Vindo aqui mais uma vez, torturar-me e desgostar-me ainda mais
de ti?
Carlos – Seria isso uma vingança?
Madame Vargas – Mas que vingança? Vingança porquê?
Carlos – Porque me deu na cabeça.
Madame Vargas – Sabes que começo a perder a calma!
Carlos – Vais perdê-la de todo dentro de alguns momentos.
Madame Vargas – Tu é que te vais embora imediatamente.
Carlos – Tem tempo. depois de liquidarmos o nosso caso.
Madame Vargas – Mas afinal que queres tu? Não creio que me vás
exigir uma noite, depois do que me disseste hoje. Que queres tu? Discutir
o que estamos fartos de saber? Ameaçar-me? Dize, fala. Que queres tu
afinal?
Carlos – Não sei se recordas há três meses uma noite de
luar assim?
Madame Vargas – Desgraçada Noite!
Carlos – Há três meses era outro o teu pensar…
Madame Vargas – Não pensava de forma alguma. Rolava para um abismo.
Carlos (sempre calmo, sentando-se) – Pois há três meses eu beijava
doido de alegria um bilhete teu…
Madame Vargas – Não tragas a história do bilhete. sempre a mesma,
sempre a mesma.
Carlos – Foi o único que me escrevestes. Beijei-o muito. Tenho-o de
cor.
Madame Vargas – Devias restituir-mo.
Carlos – Acabo de o fazer.
Madame Vargas – Como?
Carlos – Recordas de certo as breves palavras sem nome algum, misteriosamente
atiradas à sombra “espero-o hoje à noite. Deus perdoe a
minha loucura. Venha a 1 hora”.
Madame Vargas – Loucura! Desastrada loucura!
Carlos – Mas porque, se o bilhete sem o meu nome não era para mim?

Madame Vargas – Hein?
Carlos – Era um bilhete que transitava pelas minhas mãos. Só
hoje compreendi, e ao sair daqui, meti-o num subscrito e mandei-o a quem de
direito pertence agora. É um bilhete talismã. Serve de passe.
Madame Vargas – Não compreendo.
Carlos – É simples, caramba! Mandei o teu bilhete ao dr. José
ferreira.
Madame Vargas – Tu fizeste isso?
Carlos – Com certeza lho entregaram agora, quando voltou para casa.
Madame Vargas – Tu fizeste isso?
Carlos – Honestamente, sem uma palavra minha. Sou um homem que se preza. E
depois a cena é muito mais interessante como a imagino. A estas horas,
o Dr. Ferreira deve estar doido de alegria, a olhar o relógio.
Madame Vargas – Mas para que fizeste isso? Por que não me deste o bilhete
a mim? O José virá, eu direi qualquer coisa… É tão
simples mentir! Não terás feito mais uma pequena infâmia
para me aborrecer.
Carlos – Decididamente perdes a inteligência com a perspectiva do casamento.
Mandei-lhe o teu bilhete e vim esperá-lo contigo.
Madame Vargas – Tu?
Carlos – Ah! minha dona, pensavas então que eu era qualquer trapo,
a por de lado no melhor momento? Estavas crente que era possível enganar-me,
arredar-me com cantigas e as ameaças do Belfort, esse velho ridículo
que não sei bem o que e aqui? Pensavas mesmo que realizarias o negócio
sem me prevenir, pondo-me no andar da rua? Não! Ah! não! Eu
sou alguém, sabes, eu sou alguém. Não sou homem que ponham
a andar, não sou desses. Cá estou. Vamos esperá-lo juntos.
Ou não tem vergonha, ou com ele não arranjas mais nada. Depois
será o que for!
Madame Vargas – Miserável! Como és miserável!
Carlos – Isso. Chama-me nomes. Vamos ver depois. Com aquele ar de demoiselle
de Sion o Dr. José vai receber um golpe em pleno.
Madame Vargas – Indigno! Covarde! Perder assim uma mulher, perder pelo prazer
da infâmia, sem outro fim senão o de fazer mal! Por que, meu
deus? Por que? Mas pensas mas se acreditas que eu não resista.
Carlos – Vamos a ver como.
Madame Vargas – Sai, sai, já daqui.
Carlos – Muito bonito como teatro.
Madame Vargas – Covarde!
Carlos – Fala baixo, pode acordar alguém.
Madame Vargas – Ao contrário, gritarei. Vou chamar gente, chamo todos.
Mando-te por fora, pelos criados.
Carlos – estou certo de que o não farás. é o escândalo
já. Ficarão todos sabendo das nossas relações
– porque eu também gritarei, contarei. Talvez cheguemos a ter a polícia.
Hortência, venha cá.
Madame Vargas – Larga-me!
Carlos – Seja! Mas vejo que já não queres gritar. Sempre prudente.
O melhor é mesmo esperarmos o homem. É meia-noite. Temos diante
de nós uma hora, se ele não chegar antes.
Madame Vargas – Não. Tudo o que quiserdes. Carlos, tudo, menos essa
atroz miséria! Chamá-lo aqui, mostrar-me tal qual sou!
Carlos – Isso é para os íntimos, ou antes para aqueles a quem
já não queres…
Madame Vargas – Não é possível! Não é possível!
Não farás isso!
Carlos – Vais ver.
Madame Vargas – Depende ainda dele. E ele não vem,. afirmo-te eu; não
vem porque compreende os perigos desta gente com que vivemos, porque desconfiará
de uma traição
Carlos – Talvez. Como é homem, porém, terá pelo menos
a curiosidade de vir ver. É escusado olhares as portas. (Dando volta
à chave da porta da comunicação interna). Não
sairás senão para o escândalo. E eu não desejo
que ninguém nos perturbe. Dentro de 50 minutos: ele, tu.e eu. A apostar
como vem?
Madame Vargas – Que venha! Que venha! Devia vir, sim, deve vir, tem de vir!
Há infâmias que a fatalidade ajuda. Vem mesmo, esta a chegar.
E eu sei que vem, porque antes já lhe escrevera chamando-o. Pobre José!
Receberá duas cartas minhas. Sim. Escrevi. estou a ouvirte apenas como
lição só para sentir bem a tua baixeza, para ver quanto
desci. Mas o José, está a chegar. Contei-lhe tudo, tudo. Ele
sabe tudo. E vai-te expulsar, vai-te correr como um criado ordinário.
Carlos – Havemos de ver.
Madame Vargas – Verás bem pago o teu cinismo. Um homem que tortura
assim uma mulher é um covarde. Mas não és tu que o esperas,
sou eu que te retenho para que ele te encontre. Que venha! Que venha! (Ruído
fora, recua apavorada). Ah!
Carlos (dando um salto) – Silêncio! (Vai até a janela, espia
o terraço. Hortência acompanha-o quase de rasto. Momento). Uf!
Nada. Talvez o Braz, passando em baixo… (Olha Hortência). Muito menos
desejo de que eu, hein? Dê-me o consolo ao menos de confessar que só
escreveu a mim! Deixe-se de fingimentos, não delires. Sim. De fato.
Há coisas pessoas na vida. Esta espera enerva. Tenha calma. _Ainda
temos 40 minutos.
Madame Vargas (implorando)- Mas que vais fazer? Que vais fazer?
Carlos – Que vou fazer? O trepasso, minha filha!
Madame Vargas – Carlos!
Carlos – Aqui tem a minha amante: faça-a sua mulher. Hei de gozar-lhe
a decepção!
Madame Vargas – Mas se não te fez mal algum?
Carlos – Por isso mesmo odeio-o. Odeio-o pelos seus ares superiores, pelo
seu dinheiro, por essa honestidade palerma que ele exibe como um cartaz, pelas
suas idéias, por tudo! Odeio-o visceralmente – odeio-o porque tu o
amas! Honesto, rico, querendo casar! Pateta! Como se fosse dificil ser honesto
e casar, quando -se tem dinheiro! Tivesse-o eu! Tivesse-o eu! E verias em
vez deste “Capaz de tudo para viver” o teu honestíssimo esposo.
Porque tu havias de amar-me. Oh! as mulheres! Havias de amar-me e enganar-me
depois com outro. Aqui, porém, dá-se o inverso. Enganas-me para
casar com ele! Veremos a gargalhada final quem a dá!
Madame Vargas – É a mim que tu perdes, só a mim… Desmoronas
para sempre a minha vida…
Carlos – Que importa, se me abandonastes antes, se por todos os lados me dizem
que eu não passo de um malandrim disfarçado? Que importa se
devo ceder o lugar aos honestos, que são ricos? Eu te ajudaria a enganá-lo
se mo tivesse dito. Não mo dissestes senão quando era impossível
ocultar mais tempo. É porque só amas a ele. Eu vingo-me.
Madame Vargas – Ele é forte. Ele tem coragem.
Carlos – Não se trata de coragem. Trata-se de fatos. (Neste instante,
batem à porta de dentro. Salto. Angústia. Carlos agarra o braço
de Hortência). Baixinho! Baixinho! Se deixar entrar alguém aqui,
o escândalo é amanhã de toda a cidade. estás perdida!
(Batem de novo). Anda. pergunta quem é_ Com calma.
Madame Vargas – (Imenso esforço, vencida, olhando-o com ódio)
– Quem está? ë a tia?
D. Maria (dentro) – Sim, minha filha. É quase uma hora. Não
te vens deitar?
Carlos (baixo) – Tranqüiliza-a, anda.
Madame Vargas – Já vou. Não me aborreças. Deita-te. (Num
ímpeto). Feche a… (Carlos tapa-lhe a boca).
Carlos – Cala-te. (Ela debate-se. Rolam ambos no divã. Silêncio
angustioso). Tens que esperar. Quero que esperes. Ao menos hoje obedeces.
Eu quero.
Madame Vargas – Odeio-te!
Carlos – E eu vingo-me! (O relógio bate meia hora dentro). Temos apenas
trinta minutos. Pouco tempo.
Madame Vargas (Esfrega os olhos já secos de não poder chorar,
alisa os cabelos, como se convencendo) – Ele vem! Ele vem! (Desespero). Não
fiques, oh! Já te vingastes de mais. Sim. Confesso. Devia ter dito
tudo, devia ter falado. Mas já resgatei o meu crime. Sei que é
brincadeira tua, que nada disso é verdade, que não passa de
uma tortura, uma grande tortura… Pelo amor de Deus, pelo nosso amor…
Carlos – Pelo nosso amor, egoísta! Pelo nosso amor, traidora! Pelo
nosso amor, vendida!
Madame Vargas – Vai-te! Vai-te! Não fiques! Não me tortures!
Eu não quero que ele saiba! Não que não! Nunca! Nunca!
Se tens ciúmes, mata-me! Mata-me! Anda, mata-me! Mas não lhe
digas nada.
Carlos – Dentro de alguns minutos.
Madame Vargas – Canalha! Canalha! Canalha!
Carlos – Vem gente.
Madame Vargas – Cana… (Estaca, porém. Carlos precipita-se para a
janela. Espia).
Carlos – É um vulto. Caminha entre as árvores. Veio cedo. É
ele.
Madame Vargas (Cai na poltrona sentada, batendo o queixo no auge o pavor)
– É ele! É ele! É ele!
Carlos – (tirando o revólver do bolso da calça e colocando-o
no bolso do casaco) – Seja a Bela Mme. Vargas, sempre até o fim. Tenha
ânimo!
Madame Vargas – Crápula! Eu direi tudo.
Carlos (abre todo um lado da porta) -Esperemos bem. (precipita-se na cadeira
em que está sentada Mme. Vargas. Torcendo-lhe a mão). Sinto-lhe
os passos rápidos na escada. tenha o ar de quem me presta atenção.
Ande.
Madame Vargas (debatendo-se) – Larga-me! Larga-me! (faz um último esforço
para soltar-se).
Belfort (entra, lívido, rápido, voz forte) – Afinal encontro-te!
(Carlos ergue-se atônito. Mme. Vargas pende na cadeira. Belfort a Hortência).
Mil perdões por entrar na sua casa tão tarde. Mas vi luz e tive
a certeza de que Carlos estava cá. Chegou de certo depois dos outros,
disse eu. E subi. (A Carlos). Vim buscá-lo.
Carlos (entra arrogante e atônito)- A mim?
Madame Vargas – Preciso de você já!
Carlos – Esquisito.
Belfort – Extremamente. Tanto que você vai sair já.
Carlos – É o senhor quem manda?
Belfort – Nada de rodeios. É tarde. Sai já! Carlos- Manda também
cá?
Belfort – Mando onde devo mandar. É inútil a bravata comigo,
menino. Poupe-me um pouco a sua petulância. cartas na mesa. _A senhora
Hortência Vargas vai casar com o Dr. José Ferreira. Eu quero.
Você é demais. Disse-lhe que se afastasse. Não quis. Repito-o.
Compreendeu? Perdeu a partida.
Carlos – Talvez. Esperemos por esse Ferreira. Mais alguns minutos e ele chega.
Veremos.
Madame Vargas – Barão, salve-me! salve-me!
Belfort – Eu é que vou esperar sem você. Saia.
Carlos – Não acredite que me aterroriza.
Belfort – Cale-se! Conheço-o bem. Ou você sai imediatamente,
sem encontrar o Dr. José Ferreira ou está amanhã na prisão.
Disse-lhe que pensasse. Quer brincar comigo. Engana­se. Tenho-o no bolso,
e se fizer contra Hortência mais um gesto está em mau lugar.
Madame Vargas (horrorizada)- Belfort!
Belfort – Nada como os grandes remédios.
Carlos – Caluniador.
Belfort – Por que? Tenho a sua carta pedindo-me perdão, tenho a letra
em que tão mal fingiu a minha e a firma de seu pai, e o denuncio com
todas as provas como falsificador da minha firma.. Disse-lho já se
sabe que o faço. Faço-o à primeira tentativa sua. A sua
cena é bonita enquanto serve para contar nos clubes. É moda
e dá amantes até, mas muda quando tem por fim um cubículo
da detenção, mesmo arejado. Saia!
Carlos – É indecente o que faz.
Belfort – Não insista. O ar de fora far-lhe-á bem. E note: mesmo
o respeito que tenho por seu pai, não impedirá que o declare
publicamente e o faço prender se disser uma palavra a respeito deste
caso. Mando-o prender irrevogavelmente.
Carlos – Há amizades suspeitas.
Belfort – E gente como você que não deixa dúvidas. Mas
saia. A situação é ridícula. Cheguei no momento
em que ia cometer a sua maior torpeza. dessas torpezas que estragam vidas
mas não levam à cadeia. Deixo-lhe o último insulto. Desabafe
e fuja da cadeia que pela sua demora ameaça começar aqui. Mais
um segundo e está preso.
Carlos – É capaz?
Belfort – Experimente!
Carlos (pega no chapéu, excitação, fúria) – Velho
pulha!
(Sai)
Madame Vargas (correndo ao barão) – Ele vai encontrá-lo. Ele
dirá tudo! Estou perdida!
Belfort – Em homens como Carlos tenho a máxima confiança. Só
há contra esses apaches da nossa sociedade uma coisa respeitável:
a cadeia. Ele sabe que eu o liquido. Já não pensa mais em vingança.
Vai daqui para um clube a passar o resto da noite com champagne pago pelos
outros.
Madame Vargas – Mas mandou ao José o único bilhete que ele tinha
escrito. José vem aí.
Belfort – Esperaremos juntos o José. O pobre rapaz ficará enternecido
com a lembrança. Aí está um bilhete que o mau serviço
dos correios levou três meses a entregar ao seu verdadeiro destinatário.
Madame Vargas – Meu amigo! Foi Deus que o mandou para salvar a minha vida!
Belfort – Deus, neste caso, foi apenas ter olhado, ao voltar da casa de José,
o seu terraço e ver alguém que a ele subia. Era o Carlos, esperei-o.
Como não saísse, subi. Talvez fosse mesmo Deus, porque o devo
ao luar, parece dia… Apesar da literatura (Caminha para a janela).
Madame Vargas (num ímpeto beija-lhe a mão)- Meu amigo! Meu amigo!
E perdoou, perdoou mesmo a minha falta, a minha loucura?
Belfort – Mas que é isto, Hortência? Ria, esteja alegre. Todos
nós precisamos de perdão. E o mundo seria a maior sensaboria
se as mulheres passassem por ele pensando em tudo quanto fazem…

Fonte: cce.ufsc.br

Veja também

Os Reis Magos

PUBLICIDADE Diz a Sagrada Escritura Que, quando Jesus nasceu, No céu, fulgurante e pura, Uma …

O Lobo e o Cão

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Encontraram-se na estrada Um cão e um lobo. …

O Leão e o Camundongo

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Um camundongo humilde e pobre Foi um dia …

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.