Casos do Romualdo

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João Simão Lopes Neto

Introdução

Leitor!

Entendamo-nos desde já:

É possível (o autor ignora-o), que haja coletânea semelhante,
anterior, nacional; se existe, para melhor bem, que supere a atual no conteúdo
e na forma!

Em assunto de populdrio (folk-lore diz-se, elegantemente, nas altas letras…),
o registro comporta o pueril do conto, o esborcinado do dizer e a ingenuidade
do ouvinte.

O merecimento deste livro subsiste na paciência com que foi ele coligido;
falta-lhe relevância artística, é certo; fora porém
crueza destroçá-lo por esse pecado.

Destinado à leitura entre golpes de cousas sérias, aos homens
graves entediará; pois – e lhes não advirá mal, por isso-,
demo-lo então aos frívolos e, destes, aos mais elevados: às
crianças.

Patranhas por patranhas… que se não diga que até nisso falta-nos
prata em casa!… Fica entendido, pois não?

O Primeiro caso

Certa hora de pleno dezembro, por véspera do Natal, estava eu desassossegadamente
abanando os mosquitos, quando, por mão de alto e grave sujeito, chegou-me
um pacote, atado em cruz por cadarço listado; farta placa de lacre
fechava a laçada do atilho, nem endereço nem sinete.

— Mandam-lhe!

Assim disse e logo saiu o imperturbado bípede.

Fiz – há! – solertemente e estendi a mão, tomando o volume,
trégua foi para os mosquitos, que apertaram as evoluções
e o zumbir.

Mas logo, mirado o pacote e o seu anonimato, despontou a dúvida, o
receio, a inconveniência de um engano, uma troca…

Verificar, lógico, o verificar impunha-se.

— Oh! senhor?!… clamei.

O senhor sumira-se; nem sombra dele nem rastro; dobrara a esquina…, sumira-se,
era o certo.

Pois…

Se fora a desfiar ponderações sobre a interrogante – e muda
– expectativa, não bastaria a hora, aquela, de pleno dezembro, por
véspera do Natal, etc. etc.

Fui-me ao laçarote: o lacre o impediu de correr, quebrei o lacre e
ainda o laçarote não correu…

Cortei-o!

Sublime lance! Recordei o de Alexandre, o magno, perante o nó górdio…

Enquanto isso, os mosquitos revigoraram o ataque. Olhei-os com furor, à
nuvem oscilante com ódio! E abanei, abanei-os em acelerado, com o próprio
sobredito pacote. Súbito, passei de irado para pacífico; estaquei,
e, num sorriso arguto, soprei ao ignoto:

— E – isto – se é uma broma?…

E sopesei o… problema: leve.

Apalpei-o: brando.

Olfatei-o: inodoro. Inodoro, bem, não. algo de lacre e de cadarço
novo…

Apus-lhe o ouvido: mudo. Figura geométrica: ladrilho. Comentário
de estética: papel de embrulho, amarelo, pingentes de cadarço;
escamas de cera com breu e ocre.

Lamentável!

Âmbito de conjetura: tudo.

Ímpeto de curiosidade: abre!

Conselho de prudência: vê lá!

O livre arbítrio: ora!…

E sem mais tardança esventrei o calhamaço. Era um robusto caderno
salpintado de muito porém legibilíssimo bastardinho da mão
inteligente de um Padre vigário, arquivista alegre nas horas vagas,
e que na primeira página, com sutil e perita malícia, tracejara
o título:

CASOS DO ROMUALDO

Subsídios para as suas esperadas memórias póstumas,
caso nestas esqueça aqueles.

Ora, aqui tem o leitor o primeiro da série dos que vão, talvez
fazê-lo dizer:

— Apre!…

Eu, de mim, ignoro quem foi Romualdo. Contados os seus casos na prosa chata
que se vai ler, muito perdem do sabor e graça originais; guarde porém
o leitor a essência da historieta e repita-a, – por sua vez: recorte-a,
enfeite-a com o brilho do gesto e da dicção, acrescente um ponto
a cada conto.., e terá presente, imaginoso, criador, inesgotável..,
serás tu próprio, leitor, o Romualdo, redivivo…

Verifique o mais incrédulo: em roda de palestra há dois temas
que fornecem – sempre – matéria para assunto; histórias de cobras
e de jóias perdidas.

Quando a conversação amodorrar, quando nela forem caindo retalhos
de silêncio,

pausas longas, frases dispersas… experimente, amigo: fale de cobras e de
jóias perdidas; e, daqui por diante… nos casos do Romualdo!

Sou eu, o homem!

É no geral sestroso e dado a pôr em dúvida o que com
outrem se passa o indivíduo mal-andado por este mundo de Deus.

Que pode saber do que vai – além – o homem que nunca – daqui —
moveu-se, mesmo a passo de cágado?

Por isso sou mirado, eu, Romualdo, por esses tais, com um olhar parado, dentro
do qual as dúvidas galopam…

É admissível, afinal, e eu perdôo-lhes: pois se eles
– nunca — viram nada! Cada um viveu como um toco plantado no terreiro…
como soleira de porta… como parafuso de dobradiça!

Bastará já que tivesse vivido como galo de torre de igreja,
como coleira de cachorro ou como sanguessuga de barbeiro… e já muito
mais cousas teria visto, cem novidades saberia, mil sucessos poderia referir.
E, melhor ainda, se vivera como realejo de minhas aventuras?… Nada, pois
que nada -nunca! – viram.

Entre os segundos o negócio muda um tanto de figura: falo, mas pouco,
e pouco porque ainda não seria bem compreendido. Agora, quando sou
centro dos terceiros, ah! então, sim, ouvidos haja, porque língua
tenho e acontecimentos sobram!

Abro o saco e conto o muitíssimo que tenho visto, as aventuras em
que fui parte.

Dos meus verdadeiros – casos, posso citar inúmeras testemunhas…
infelizmente quase todas mortas e as restantes morando longe; há mesmo
algumas cujos nomes esqueci, mas cujas fisionomias guardo nos escaninhos da
memória.

Como neste assunto não sou obrigado a reger-me pelo Código
do Comércio, que exige os lançamentos por ordem de datas, irei
consignando os meus depoimentos, conforme se me forem eles apresentados.

E se, apesar das minhas afirmativas, pretender alguém pôr em
dúvida os meus casos, peço a esse alguém que suspenda
o seu juízo. Suspenda-o e consulte-me.

De corporal, sou baixinho e gordo, ruivo e imberbe; de moral, sou calado
e tagarela, violento e calmo; em tudo, homem para as ocasiões.

Quinta de São Romualdo

Compre chácara quem quiser; eu, por mim, estou farto, e jurei nunca
mais!…

Cansado de viagens e de caçadas, e desejando repousar, comprei uma
bonita quinta, com muito arvoredo frutífero, boas águas, casa
cômoda. Uma pechincha!

Pra não estar debalde, resolvi fazer uma plantação de
abóboras, para vender as pevides, que, informaram-me, é remédio
infalível para a solitária.

Cada abóbora produz mais de cento e cinqüenta pevides; e bastam
três destas para expelir uma solitária; cada uma destas a cinco
mil-réis, eram duzentos e cinqüenta mil-réis que eu apurava,
só em solitárias, afora a massa das abóboras… de que
eu faria goiabada.

Era ou não era negócio?…

Ora bem:

Comprei – não me lembro bem – se sete ou quinze sacos de semente,
da melhor; virei as terras, encanteirei-as e semeei as minhas solitárias,
digo, as minhas abóboras, numa lua nova, para grelarem com força.

Pois, passado um mês… a lavoura era pura barba-de-bode!… Dura,
empenachada, parecia uma plantação de vassouras de piaçava,
verdes!….

Briguei, e forte, com o vendedor das sementes, que desculpou-se dizendo ter
havido troca de volumes: a semente de barba-de-bode era para um armazeneiro,
que vendia-a – e caro – como tempêro estrangeiro, de luxo; que o homem
tinha-se dado ao diabo, quando pelo engano tinha recebido as pevides de abóbora,
mas que afinal agradou-se e havia já pedido segunda remessa, para jorrar
e misturar ao café, para dar-lhe mais gosto de café.

Não achei graça nenhuma à esfarrapada explicação;
o que era certo é que estava com a minha lavoura perdida, inçada
daquela praga.

Ensinaram-me então que para destruir barba-de-bode, para nunca mais
nascer, o único remédio era… a preá.

Comecei pois a comprar preás a torto e a direito; mandei peães
a todos os rumos, escrevi a amigos e conhecidos, encomendando preás.

Foi então unia chuva dos tais bichinhos, recebia-os em sacos, em gongás,
em caixões, e até tocados por diante, como tropa.

Contava, pagava e soliava, logo, na lavoura.

Realmente:uma maravilha!

Ao cabo de duas semanas não havia mais um fio de barba-de-bode.

E eu, satisfeitissimo!

Mas logo em seguida, as preás, acossadas pela fome, deram na roça
do milho e do feijão; foram-me as hortaliças, aos alegretes
do jardim; treparam às laranjeiras, tudo devoraram – menos marmelos.

Uma devastação!

Refleti um momento; e para extinguir as preás, resolvi meter… gatos.

Nova trabalheira; vieram-me gatos de todos os tamanhos e sexos e idades,
gatos mimosos – roubados – e gatos ladrões – escorraçados –
e rabões, pelados e peludos, e desorelhados, queimados, gordos, sarnentos.

Foi um jorro, uma inundação de gatos, sobre a minha quinta.

Contava, pagava e soltava-os, logo, às preás.

Efetivamente, um assombro!

Em menos duma semana não havia mais uma preá, para remédio.
Liquidadas. E eu, esfregando as mãos. Mas – nem tudo lembra! – os bichanos,
já sem pitança, miavam que era um desespero… e quando menos
eu sonhava…

Olha a gatalhada no galinheiro E não me ficou viva uma só ave,
desde os pintos até os galos de rinha!

Uma calamidade!

Nem por isso dei parte de fraco; pensei, e para acabar com os gatos, resolvi
soltar-lhes… cachorros!

E vá! Na estrada!

A peonada andava numa contradança, trazendo cachorros e logo voltando
a buscar mais; pelas estradas só se via passarem andantes conduzindo
matilhas, e trelas de até vinte cachorros. Apareceram-me perdigueiros,
veadeiros, paqueiros, onceiros, rateiros, tatuzeiros; e galgos, d’água,
terras-novas, crespinhos; e grandes e pequenos, brigadores, ranhentos.

Eram centos e centos de cachorros!

Contava, pagava e soltava-os logo, aos gatos!

Indiscutivelmente: um sucesso.

Em poucos dias não se acharia nem mais um único gato, um só
que fosse, para salvar um condenado da forca!

E eu, assobiando, satisfeito.

Mas – é que andei precipitado… – a cachorrada sem mais gatos…
gania de jeito, que só a chumbo! E como eu não tivesse mais
gatos. -. os cães, uma bela noite, atiraram-se às ovelhas, e
com tal gana, que nem as maçarocas ficaram!

Um cataclismo!

Aí, meio que desanimei; mas depois de coçar-me forte, durante
uns minutos largos pensei, e para acabar com os cachorros, resolvi contratar
gringos, tocadores de realejo!…

Custou-me um pouco a organizar o batalhão: mas a notícia de
que a paga era boa correu, e começaram a aparecer-me gringos, vindos
até de onde o diabo perdeu as botas!…

Cachorro tem um terror doudo pelo realejo; é tocar-se um desses moinhos
de música e o cão, mesmo preso na corrente, uiva, chora, apavora-se…,
e não bá nada que o detenha na fuga; nem água fervendo,
nem tição de fogo, nem comida, nem pau… só outro realejo,
que o faça mudar de rumo!

Quando botei a gringalhada a manobrar os realejos, toda ao mesmo tempo, marchas,
polcas, funerais, o miserere, o caranguejo, a Esteia confidente, o bitu, valsas,
o solo Inglês… o maxixe quando tudo isso estrondeou nos ares… Oh!
Deus do céu!…

Senhor S. Pedro!… Meu anjo da Guarda!… cachorro houve, que tão
desnorteado de horror ficou, que até sobre os próprios gringos
atirou-se… atirou-se…, e caiu, estrebuchando, espumando, rilhando os dentes,
como danado! …

O cachorrio pegou numa uivaçada tão espantosa que chegou a
abafar o barulho dos realejos: mas logo desatou a disparar… a disparar…
a disparar… e foram-se, campo fora, para os lados da rosa-dos-ventos, como
assombrados!

Inegavelmente: soberbo!

E eu, cheguei a fazer uns passos de gavota, rejubilando-me; sim, senhor!
Mas – e aqui tive um baque no coração.. – os gringos, sem mais
cachorros para espantar, pediam comida. E eu, que não contava com a
rapidez do negócio, havia-os contratado por três dias, calculando
que com três dias de realejo não haveria cachorro – nem morto!
– capaz de resistir…

E errei feio, porque os próprios buldogues não chegaram a agüentar
nem uma hora…

E eles a pedirem comida!

E a chegarem mais gringos, que pelas estradas tinham tido notícias
do meu anúncio; outros que eram ainda mandados expressamente pelos
meus amigos e conhecidos e comissionados!

E cada desgraçado que chegava, como saudação, tocava-me
uma peça de realejo; e quando foi de noite, todos eles, de combinação
– eram cento e cinqüenta e três – resolveram fazer-me uma surpresa,
e todos a um tempo, como um furacão que desaba, manobraram uma serenata
sem fôlego, que durou da uma às três horas da madrugada.

Comecei a deitar sangue pelo nariz, pelos ouvidos, pelas gengivas, e desmaiei.

Ao clarear do dia recobrei os sentidos; chamei os capatazes, a peonada, uns
hóspedes que tinha, e armei-os de revólveres, de davinas, de
pistolas, de bacamartes; meti em quadrado os gringos, com os realejos; todos
nós, armas engatilhadas, facas reluzindo, prontos a matar, tocamo-los
porteira fora, aos gritos imperiosos de – silêncio! silêncio!
silêncio!

Passei então um dia delicioso; sesteei regaladamente!

Mas – sempre aparece cada uma! – logo começaram a aparecer-me em casa
advogados, escrivães, meirinhos, autoridades.

Ora dá-se! Um homem quieto na sua quinta, sem se preocupar da vida
alheia e a vida alheia atrapalhando a sua! …

Eram os vizinhos, queixosos, que me processavam, pediam indenizações,
reclamavam contra prejuízos de que eu era causante!

Estes, porque as preás que conseguiram escapar-se haviam-se-lhes entocado
nas plantações; aqueles, porque, gatos danados – dos meus –
tinham-lhes mordido as criações; outros, porque os cachorros
corridos comiam-lhes os rebanhos.., e até um violento protesto do cônsul,
acusando-me de tentativa de morte sobre trezentos e sete gringos e meio!…

E eram citações, requerimentos, autos, contrafes, termos, inquirições..,
um inferno!

Chamei advogados para a minha defesa, estes pegaram-se a discutir com os
contrários: então é que a complicação complicou-se
mesmo!

Os peães despediram-se medrosos os capatazes foram saindo, por causa
das dúvidas…

Fiquei sozinho, na quinta solitária.

Então adoeci.

Veio um doutor para salvar-me. Mostrei-lhe a língua, tateou o pulso,
rufou-me na barriga e… chamou um colega. Depois os dois chamaram um terceiro,
os três, um outro; os quatro, um quinto… Já era uma dúzia
deles; vieram mais ainda: cheguei a contar um quarteirão!

Desde a nuca até a sola dos pés, o meu corpo era um mapa geográfico
de manchas e vergões; estava todo sanado e empolado de ventosas, inflamado
dos sinapismos, lambuzado dos ungüentos, queimado dos vesicatórios,
encorrilhado das embrocações, cruzado das pinceladas…

Na casca consenti tudo: no miolo, nada. Engolir, isso sim, isso é
que nem à mão de Deus-Padre nenhum deles foi homem para me obrigar!

Certo dia, por doze votos fui considerado ainda vivo, e por treze dado por
morto.

Venceu o um da maioria: passaram atestado de óbito e foram-se… e
veio o defunteiro tomar as medidas do caixão… Que cena, esta, da
tomada das medidas … que cena!..

Dormi… até acordar-me; depois levantei-me, fiz um churrasquinho,
chupei dois mates e pitei um cigarro de fumo crioulo. Sol alto montei a cavalo,
para ir-me embora, de vez.

Tinha vencido sete pragas: bastava de combate.

Mas, ao sair a cancela do terreiro, vi o que nunca imaginei mais ver! …

Vi a barba-de-bode renascendo na lavoura, algumas preás roendo ervas,
três gatos em cima do telhado; dois cachorros coçando as pulgas;
um gringo de realejo à sombra de um moirão, um meirinho que
chegava a trote…, e um doutor que apeava-se da carriola!…

Amigo!

Cerrei pernas ao baio e só parei… quando vendi a quinta.

Pagas as contas, sobraram-me três patacas, em cobre: comprei as espoletas,
pólvora e balas, e ganhei, outra vez, no sertão!

Tenha chácara quem quiser: eu, Romualdo, é que nunca mais!

Nem atado!

O Papagaio

O reverendo Padre Bento de S. Bento – que o Senhor talvez conhecesse, não?
– era um santo homem paciente – paciente! paciente! – como naquela época
outro não houve.

Nos circos de burlantins muita cousa curiosa tenho apreciado: cachorros sábios,
cabras que fazem provas, cavalos dançarmos e burros que a dente pegam
o palhaço pelo… atrás das pantalonas; mas a paciência
para esse ensino não pode comparar-se, não pode-se, com a do
reverendíssimo.

O Padre Bento, farto de aturar sacristães e não querendo estragar
a sua paciência, que estava-lhe na massa do corpo, resolveu dizer as
suas missas… sozinho.

Preparava as galhetas, o missal, etc.; depois pachotrentameflte paramentava-se
e pachorrentamente esperava a hora de oficiar; chegada, encaminhava-se para
o altar, ë começava e concluía, parte por parte, tudo muito
em ordem.

Mas o filé, o bem bom era quando entrava a ladainha: ele cantava o
nome do soneto e uma vozinha esquisita, porém, muito clara respondia
logo:

— O-o-a por nob-s!

E os fiéis, em seguida, pela pequena nave atora, acudiam ao estribilho:

— Ora pro nobis!

Dessas ladainhas assisti eu a muitas, na capelinha de S. Romualdo, que era
próxima a nossa casa, na Vila de…

Agora sabem quem cantava as ladainhas do Padre Bento?

Era o Lorota, um pagagaio amarelo, criado na gaiola e muito bem falante…

Com ele diverti-me muitas vezes:

— Lorota, dá cá o pé!

E ele, ensinado pelo padre, respondia, amável!

Coitado! … O padre morreu e o Lorota, não tendo mais a quem dar
contas, fugiu.

Passaram-se os anos.

Uma vez, estava eu na Serra, numa espera de onça, quando senti – confesso
não medo mas um arrepio de… frio – quando ouvi, nas profundezas do
mato virgem, uma ladainha religiosa!

E pausada, afinada, bem puxada em suma!

Seria um sonho? … Estaria eu errado na tocaia das onças, e em vez
de estar na floresta cheia de bichos ferozes, estava na vizinhança
de algum convento, de alguma capela, de alguma romaria?

E a ladainha, compassada e cheia, vinha se aproximando:

— Bento S. Bento!

— Ora pro nobis!

— Santo Atanásio!

— Ora pro nobis!

— S. Romualdo!

— Ora pro nobis!

Eu mergulhava os olhos por entre os troncos, os cipós e as japecangas
a ver se bispava uma cor de opa, uma luz de tocha, uma figura de gente; nada!

Nisto, a ladainha pousou nas árvores, por cima de mim. Pousou, sim,
é o termo próprio, porque quem cantava era um bando de papagaios
e quem puxava a ladainha era o papagaio do Padre Bento, era o Lorota!

A paciência do bicho! … Ensinar, direitinho, aos outros, a cantoria
toda! …

Pasmo daquele espetáculo, e duvidando, quis tirar uma prova real,
e perguntei para cima:

— Lorota? Dá cá o pé!

Pois o papagaio conheceu a minha voz, conheceu, porque logo retrucou-me com
a antiga resposta que ele sempre dava:

— Romualdo é bonito! Bonito!

E como para obsequiar-me fez um – crrr! – como aviso de comando e recomeçou
a ladainha:

— Bento S. Bento!

— Ora pro nobis!

— Santo…

Nisto tremeu o mato com um berro pavoroso… o Lorota e seu bando bateu asas…
e eu olhei em frente: a sete passas de distância estava agachada, de
bocarra aberta, pronta para o salto, uma onça dourada, uma onça
ruiva, uma onça de braça e meia de comprido!

E na aragem do mato ainda soou um vozerio distante:

— Or…a pro no.. .bis!

S… Ro…mual…do!

Ora… pro… nobis!…

O Tatu-rosqueira

Já em rapaz eu ouvira falar numa raça de tatus-rosqueira, porém,
punha minhas dúvidas nessas históriasPassaram-se os anos caminhei
muito, muito, aconteceu-me muito, mas de. tatu-rosqueira, nada!

Pois dessa feita, no Rincão das Tunas, vi; do outro lado do rio Camaquã,
com estes, que a terra há de comer, vi… e se me fosse contado não
acreditaria.

Periga a verdade, mas lá vai, e, demais, estavam presentes o capitão
Felizardo, já falecido, o licenciado Silvinha (que perdi de vista),
além dos peães, sem falar nos cachorros, por sinal bons tatuzeiros.

É sabido que as jararacas andam sempre em casal e que se alguém
mata uma pode também matar a outra, no mesmo lugar, porque a viúva
vem pelo rastro da companheira; se se carrega a primeira, por exemplo, para
perto de casa, é contar que a outra aí vem dar; quer dizer,
o bicho acompanha o seu defunto, ou seja pelo faro, ou pela dor da saudade,
com os olhos da alma…

Sabe-se também – isso eu vi, vezes e vezes! – que o lagarto conduzido
pela cauda, semimorto ou semivivo (há diferença entre estes
estados de saúde), quando menos se espera, quebra o rabo e escapa-se.

A perdiz, finge de morta: fecha os olhos, afrouxa o pescoço, reina
as asas e… zuct! de repente apruma-se e desfere o vôo.

O zorrilho…

Esta pequena divagação, que pode parecer maçante, é
necessária e vem apenas provar que todo animal tem um instinto muito
particular para certas aflições em que se encontra.

Era por uma bonita noite de luar. Estávamos mateando e pitando; conversa
vai, conversa vem, quando o major Felizardo lembrou que podia divertir-nos
proporcionando-nos uma caçadita aos tatus.

— E tatu-rosqueira, então, que é praga! … concluiu
o major.

A este dito, saltei.

— Pois há? … inquiri.

—Xi! assim!…

E o major juntou em molho os dedos das duas mios, e assobiou comprido.

Aprestamo-nos e saímos rumo do rincão.

De chegada soltamos os cachorros, e daí a um quase-nada já
lhes ouvíamos o ganiçado. Começamos a bater as toca.
Aquilo foi rápido.

Havia mesmo muito tatu!

Cachorro farejava, cavava na entrada da toca, e nós já rente,
de enxada, dá-le que dá-le!

Eu é que tive a sorte de descobrir o primeiro tatu; o primeiro tatu,
não, o primeiro rabo de tatu. E no que o descobri, agarrei-o. Tironeei,
tironeei, e nada, o bicho não vinha; já ia meter o dedo… sabem,
bem?… quando o licenciado Silvinha gritou-me:

— Não faça isso, Romualdo… destorça a rosca
do rabo!…

— Quê?

— Sim, e para a esquerda, a modo de parafuso inglês!

Sem ter consciência do que fazia, às mãos ambas dei umas
quantas voltas para a esquerda, e qual não foi o meu espanto quando
senti que efetivamente aquilo cedia, afrouxava, desatarraxava-se! … E fiquei
com o rabo na mão… sem o tatu!

Pelos outros lados os companheiros andavam na mesma faina. Algo desapontado,
indaguei do licenciado:

— E agora?…

— Passe a outro. Guarde esse rabo aí no saco; daqui a pouco
você verá o resto!

Aquilo era curioso, passei a outra cova, a mesma manobra: outro rabo, no
saco; outra e outra, e assim porção delas.

A certa altura o tenente-coronel deu ordem de parar, pois não poderíamos
transportar toda a caçada; o saco estava cheio a mais de meio.

Eu estava desconfiado e furioso, mas disfarçando, achava esquisito
vir ao mato caçar tatus e só levar-lhes as caudas…

Mas o coronel Felizardo fez um sinal e logo nos arrolhamos em volta do saco;
fez-se silêncio e daí a pouco começou a tatuzada a sair
das tocas – desrabados todos – e vieram se chegando para o saco, focinhavam
nele e ficavam quietos, como viúva velha chorando na cova de marido
novo…

Ai então é que era pegar e sangrar tatu! … Foi uma senhora
matança! Fizemos umas quantas enfiadas e voltamos para casa vergando
ao peso da caçada. Eu, por mim, confesso, estava atônito!

Em caminho é que o brigadeiro Felizardo me foi contando a cousa pelo
miúdo

— Romualdo, você conhece o tatu peludo ou de rabo mole, o bola,
o guaçu e outros; mas parece que este, nunca viu…

— De ouvido, sim!

— Ora! ouvir falar é uma cousa, ver é outra… Este tatu
tem o rabo como uma rosca, por isso se chama rosqueira; caçá-lo
é facílimo: descoberta a toca, basta poder agarrá-lo
pela cauda e em vez de puxar destorcê-la e depois levá-la para
um pouco distante naturalmente o rosqueira sente falta do peso do rabo e pelo
faro vai em busca, acha-o e começa logo a cavar no chão um buraco
estreito e fundo, entra então com o focinho a dar voltas e mais voltas
à cauda solta, e tanto trabalha que fá-la cair de ponta para
baixo no buraco que preparou: então, chega-lhe terra e vai-o enchendo,
de forma que a cauda pode ficar fincada corno uma estaca, e quando ele sente
que está firme, senta-se-lhe em cima e…

— E… parece incrível!

— E começa a andar à roda, à roda, sempre para
a direita, até atarraxar-se de novo ao rabo. No que está pronto
vai-se embora!

No dia seguinte fui ao mato, sozinho, para verificar o caso.

Descobri logo umas sete covas, portanto sete tatus; destorci sete rabos,
pu-los no chão trepei a uma árvore topada e esperei vieram os
tatus: vieram os tatus, fizeram os tais buracos, fincaram as caudas, sentaram-se
em cima delas e começaram a rodar, a rodar, a rodar. Dentro em pouco
um primeiro cessou o movimento e atirou-se para a frente, na sua posição
natural, de quatro patas; e logo outro, enfim todos os sete, perfeitamente
bons, enrabados, completos. Sem querer fiz um movimento, e os bichos fugiram
rápidos como setas. Era a pino do meio-dia.

Para comer é que não são bons: têm a carne mui
dura.

A Figueira

Morava na rua da tomba em um casarão acachapado, pintado de amarelo.
Ao fundo o quintal, parecendo pequeno por ter ao centro uma colossal figueira.

Esta colossal figueira havia estendido grossos braços para todos os
lados e copava e fechava de tal forma a ramaria e a folhagem, que a sombra
era perpétua.

Não só através dela não filtrava um rastilho
de sol, como também nem um pingo de chuva passava para baixo.

Não consegui manter uma galinha no quintal: quantas lá punha
morriam de frio; e ali mesmo as enterrava, o cachorro, esse, tiritava como
se estivesse em plena garua de agosto, batida de minuano.

Por estas e outras andava eu aborrecido com a figueira. Carregar, isso carregava
que era uma temeridade.., mas nos últimos anos, menos, bastante menos.

Por outro lado, era debaixo da figueira que os meus pequenos e os da vizinhança
brincavam; ai faziam as suas merendas, principalmente quando havia frutas;
e com o andar do tempo a criançada chegou a fazer em volta dela um
verdadeiro tapete de sementes diversas, de laranjas, marmelos, pêssegos,
uvas, pêras, ameixas, de araçás, de butiás, de
limas, melões, etc., enfim um calçamento de caroços e
pevides.

Naturalmente cada ano as raízes da figueira cresciam e enterravam
e afogavam essa caroçama que desaparecia.

Preciso dizer que a casa e o quintal e portanto a árvore pertenceram
aos avós da minha sogra, esta aí nasceu e faleceu, com noventa
e sete anos; e que há cinqüenta e três anos que os ditos
bens pertenciam ao meu casal: basta isto para calcular-se a idade da figueira!

Ora muito bem.

Há de haver uns sete anos fez um inverno molhado e frio como nunca
passei outro. Todo o mundo lembra-se desse ano. Em casa fomos todos, de ponta
a ponta, atacados de tosses e catarreiras tão fortes, que julguei iríamos
acabar héticos. Chiados de peito, roncos, assobios, fanhosidades, rouquidães…
um barulho que até alarmava os andantes na rua!

O doutor que acudiu, como se tratasse de uma única doença,
já receitava os lambedouros em dose para vir em frasco grande, dos
de genebra.

Mas, qual! … Cheguei a desanimar, e certa vez puxei o médico para
uma sala dos fundos, para conversar à vontade. Conforme íamos
andando, a casa ia ficando às escuras; o doutor estacou:

— Homessa! Estaremos à boca da noite às duas horas da
tarde?…

— Não é nada, doutor: é a figueira!

— Que figueira, Romualdo?

— Ali, na escuridão.., não vê?

O doutor teve medo de seguir avante; eu, já se vê, prático
velho, nem me abalei.

Mas tanto como rodou nos calcanhares, disse-me com franqueza:

— Romualdo, toda a doença da sua casa está ali; é
a umidade, a escuridão, o abafamento que a figueira produz, derrube-a,
Romualdo, derrube-a!

— O abafamento… a escuridão… a umidade…

— Sim, homem: meta-lhe o machado!

Compreendi: era tal e qual! Mas como todos estimávamos muito a figueira,
resolvi derruba-la, não podá-la muito, sim.

Logo no dia seguinte começou a esgalhação; trabalhou-se
uma semana, de fio a pavio, apenas parando para comer, veio carreta de bois
para levantar as lenhas da poda.

Foi uma alegria, na casa. Sol, ar livre, por todas as portas e janelas; chio
e paredes começaram a orear.

Ninguém mais tomou lambedouro.

Logo na primavera começou a brotação e vieram galhos
novos, bonitos porém com um enfolhamento esquisito.

Esquisito, deveras. Folhas compridas e curtas, e largas e estreitas; recortadas
umas, lisas outras; lustrosas, foscas; … uma trapalhada! … e até
notei alguns pequenos espinhos.

Vi, vi bem: eram espinhos; pequenos, porém espinhos.

Até aí nada de espantar: curioso e tal, mas tem-se visto..

No ano seguinte porém, e nos outros, é que a figueira começou
a encher-me de espanto, a num e ao vizindário e outras pessoas muitas.
Sinto não lhes haver tomado os nomes, mas nem tudo lembra: se tenho
tido essa precaução, hoje, com tais testemunhas, entupiria a
muitos incrédulos malcriados a quem hei referido este caso. Mas quem
mal não pensa, mal não cuida…

Pois esse ano a figueira deu figos e… marmelos; no seguinte, pêssegos
e ameixas, de repente, só peras; no noutro ano, puramente laranjas,
depois, apenas figos; em seguida, uvas.., e assim sucessivamente, melancias,
cocos, limas, araçás, etc.., até que em certa temporada
deu umas frutas esquisitas, compridinhas, ressequidas, sem gosto nenhum, nem
sumo, e que, bem examinadas, eram quase como penas de aves.., até pelo
cheiro … de galinha, que conservavam…

Matutei muito, mas encontrei a explicação do fenômeno.

Simplíssimo: a figueira tinha absorvido o suco germinativo de todas
as pevides e caroços e sementes que lhe alastravam o chão..,
e também o das galinhas mortas que junto às suas raízes
foram enterradas… Com a força do sol tudo aquilo grelou dentro da
sua seiva. Como a árvore não pôde reagir contra a invasão,
antes foi dominada, assim é que começou a dar frutos, na desordem
que mencionei.

Em conclusão: a figueira já não sabia o que fazia; estava
como uma pessoa muito velha, de miolo mole, que já não regula.

Pobre da minha figueira. Coitada!

Estava caduca!

Uma balda do Gemada

Mais vale jeito que força.

O meu cavalinho, o Gemada, era um ótimo animal, de cômodo e
rédea: marrequeiro fino e até farejador de perdizes, pelo hábito
aprendido com a minha cachorra Tetéia, que foi uma maravilha.

Mas o Gemada tinha uma balda; a não ser comigo, não havia quem
o obrigasse a passar um rio, em balsa.

Para cavalo era até uma burrice, isso; pois os próprios cavalos
confessam – confessam pelo comportamento – que é muito mais agradável
atravessar o rio na balsa, do que nadando: cansa menos e não é
tão frio…

O Gemada, porém, era refratário a tais comodidades.

Fosse um peão ou qualquer outra pessoa fazê-lo entrar na balsa:
gastaria horas, zangar-se-ia, cairia n’água e nada arranjava: o cavalo
firmava-se, recuava, pulava, empacava-se, mas não entrava; a cacete,
então era pior: empinava-se, couceava, mordia, mas não ia…

Ora, certa vez que, da barranca, eu assistia a uma dessas cenas, e tendo
muita pressa e pouca paciência para fazê-lo passar a nado e encilbar
do outro lado; enquanto o balseiro, já cansado de firmar a embarcação,
praguejava, e o peão, já de mau humor, dava sofrenaços
e tirões, e um outro auxiliar já estava rouco de tanto gritar
com o cavalo, e embarreado e encharcado; enquanto essa luta durava, a mim
fervia-me o sangue, e batia o queixo, enraivado, como que sacudido por febre
de sezões…

Não me contive.

Desci da barranca, tomei o cavalo, apertei muito bem os arreios montei e
mandei que os peães se afastassem, e que o balseiro, encostando bem
a balsa à beira do rio, apenas a segurasse com a mão, de terra.

Isto feito, afastei-me como umas sete braças, firmei as rédeas
e cravei as esporas na barriga do cavalo teimoso: ele gemeu com a dor, mosqueou,
e saltou pra frente, como unia mola!

Daquele arranco vim à praia, e sempre tocado de espora e rebenque,
de pulo, o Gemada atirou-se dentro da balsa, comigo em cima, olé!

O impulso para diante foi tão forte, que a balsa, como uma flecha,
deslizou sobre a água e foi, certinha, abicar na outra margem!…

E conforme lá cheguei, tomei a cravar as esporas no Gemada, e ele,
desesperado, arrancou, e, de pulo, atirou-se da balsa para terra…

O impulso para trás foi tão forte, que a balsa desandou sobre
a água, e foi certinha, como uma flecha, abicar na margem donde havia
saído…

Fora esse, exatamente, o cálculo que eu havia feito.

Dai por diante nunca mais inquietei-me. Havia rio para passar, em balsa?
Ora!

Espora… pulo.., balsa pra lá!

Espora… pulo.., balsa pra cá!

Caçar com velas

Poucas, as pessoas cuja vida tenha deslizado serena sempre, como um dia de
sol sem nuvens; raros, aqueles que Viveram sempre ao abrigo da luta pela existência;
e se esses, assim postos ao abrigo, por uma circunstância toda especial
da fortuna ganha pelos seus progenitores, se esses, digo, fossem de momento
lançados àquela luta, provavelmente nela sucumbiriam, por entrarem
na liça muito tarde, sem preparo algum nem o hábito da peleja
e dos seus rigores nem da utilização das próprias faculdades.

A necessidade é uma grande mestra, e é sempre preferível
que os homens moços aprendam com ela.

Houve um tempo em que eu cacei – não como amador, por simples recreio
– mas por necessidade, para ganhar a vida, como negócio, em suma.

É claro que não ia perder as minhas horas a espera de preás
nem tuto-tucos, nem tampouco a levantar bem-te-vis ou pica-paus. Nada: procurava
caça redonda, de poder até fazer fortuna com da, pois já
não podia atender às encomendas que de toda parte me chegavam.

Cada dia mais avultavam os pedidos: os compradores pagavam à vista
e sem rega-tear, por vezes, para ver-me livre deles, pedia preços loucos..,
nem assim!

É que eu tinha uma especialidade! -mas que especialidade! – só,
somente vendia peles de onças, muito bem tiradas com rabo, cabeça
e garras — tudo perfeito, sem um talho, sem um furo, sem um buraco!

Todos podem matar – e alguns, matam – onças a tiro, como eu; mas por
melhor que seja esse atirador, ele estragara – sempre – o couro da presa,
porque usa balas ou balins ou, pelo menos, chumbo grosso.

Eu, não: só empregava… Esperem um pouco.

Parece até que tomava a minha caça em urupuca, inteirinha,
sem um arranhão, e esfolava-a tranqüilamente, como se depenasse
um perdigão.

Era isso o que encantava os compradores dos meus couros… de onças.

Vários bisbilhoteiros acompanharam-me ao mato para verem o meu sistema;
deixava-os ir, convidava-os mesmo, porém dispistava-os facilmente.

Como conhecia os paradouros das onças, encaminhava-me para lá.

Afoutamente.

Assobiando.

Mal os bichos pressentiam a aproximação de gente, principiavam
a urrar, já assustados, mas para assustar’…

Eu, então, para fingir medo, punha-me em altos brados, a chamar pelos
tais fulanos… e quanto maior a gritaria, mais urravam as onças e…
mais fugiam os bisbilhoteiros! Então ficava só em campo, ou
antes, no mato, muito a meu gosto.

Outros, invejosos, diziam que eu tinha um – breve – contra onça; outros,
que rezava a oração de São Cogominho, que é muito
forte contra os perigos do mato.

Diziam, porém tudo pura invenção.

O meu segredo era simplíssimo.

Como se sabe, é o homem o único animal capaz de respirar pela
boca; todos os demais bichos respiram unicamente pelas ventas: quem lhas tapar,
mata-os. Fiz centenas de verificações, por isso afirmo.

E mais, todo o bicho preso pelo focinho é bicho dominado. Veja-se
o touro, por bravo que seja, uma vez tendo uma argola passada nas ventas,
já está dominado, o potro, com um cachimbo bem passado, está
entregue; e assim outros.

Foi partindo desta certeza que pus em prática o meu processe, mesmo
porque naquela época eu não tinha ainda descoberto minha futura
famosa essência – de cachorro – que tão notáveis vitórias
granjeou-me. Quando ia para o mato levava duas espingardas – das marrequeiras
— de carregar pela boca, e de munição de guerra apenas
espoletas, pólvoras e buchas.

E em vez de …… espere um pouco!

No que descobria a onça, fazia barulho, assanhava-a!

Ela pulava, encastelava-se numa forquilha de qualquer árvore, agitando
a cauda lambendo as barbas, miando rouco, afiando as unhas…

Eu, parava-me bem em frente – que e a regra – porque se você dá
costas, a onça pula-lhe em cima, e, adeus! era um dia…

Carregava a marrequeira com a sua espoleta, sua carga de pólvora e
uma bucha, de sabugo de milho; depois então é que metia a…
Espere um pouco!

Mas não despregava os olhos da fera. De tal forma a gente acostuma-se
a estes perigos que chega a carregar a arma simplesmente pelo tato e pelo
ouvido.

Quando estava preparado enfiava na mira a racha do fochinho da onça,
e pum!

O bicho recebia a carga bem nas fuças; roncava, sufocado, e vinha
ao chão, tonto, inconsciente, mortalmente batido, com as ventas entupidas
e com o atilho pendurado no focinho.

Lestamente coma, por ele amarrava a fera a qualquer ramo e já carregava
a segunda espingarda – pra dar à primeira o tempo de esfriar – e assim,
ia-me à segunda. terceira, sétima onça, etc.

Caçado o número marcado, sangrava cada uma e tirava-lhe o couro,
sem um talho, sem um furo, um buraco: perfeito, sem avaria!

Em lugar de balas eu comprava velas de sebo, já preparadas pelo calibre
das armas em cada ponta do pavio ia preso um forte anzol.

Com o calor da póvora, no tiro o sebo saia derretido, e dando bem
pela frente nas ventas da onça, entrava por elas a dentro, enchendo-as
e entupindo-as; a fera mesmo espirrando não mais podia expelir aqueles
batoques, que, endurecendo, asfixiavam-na.

O pavio também seguia o seu caminho: um dos anzóis fisgava
certo, no focinho; o outro quase sempre pegava na língua, outra vez
numa das beiçolas ou no céu da boca… e cravava-se fortemente.
Assim, firmado pelas duas pontes, o pavio formava uma alça.

O……….

A……….

Nem é preciso explicar.

As cousas mais simples são sempre as que parecem mais difíceis.

Desvendado, o meu segredo é como o ovo de Colombo; agora todos dizem:

— Ora, que milagre!… Assim, Romualdo, assim, eu também faço!

O meu rosilho "Piolho"

Não gosto nem admito fanfarrices perto de mim.

Freqüentemente encontro sujeitos maturrangos contando façanhas
e fazendo gatimoribas de campeiros e a todo instante falando – no meu cavalo..,
porque o meu cavalo… e o meu cavalo.., e vai-se a ver e trata-se de um sotreta
qualquer, assoleado ou manco.

Cavalo, o que se diz – cavalo -, de chapéu na mão, foi o meu
rosilho "Piolho"!

Isso, sim, era de se lavar com um bochecho d’água; de cômodo,
era uma rede! de patas, um raio! de rédea, como uma balança!
E manso como um cordeiro, de boa boca como um frade, faceiro como uma rosa,
e armado, de barba ao peito, como um conde de baralho!

A não ser um azulego do capitão Manduquinha Pereira nunca encontrei
outro pingaço para cotejo. Foi domado pelo Chico Piola e não
preciso dizer mais nada.

Morreu de garrotilho, até hoje ainda me treme a raiz da alma quando
lembro o garbo do meu rosilho…

Uma vez, andava eu, de escoteiro, para as bandas do Alegrete. Calor de rachar.

Lá pelas tantas, desviei-me da cruzada sobre uma restinga, disposto
a dar um alce ao rosilho e ao mesmo tempo tirar uma sesteada, até abrandar
a quentura.

Apeei-me à sombra de um salsal; dei água ao flete e maneei-o,
para um verdeiozito. Era ele cavalo mui mestre nestas cousas.

Em seguida estendi os arreios e aplastei-me sobre os pelegos, de carnal pra
cima; puxei o chapéu para os olhos e encruzei os braços sobre
a boca do estômago, tendo antes posto de jeito o facão e a pistola,
por um – se acaso…

Nem as folhas buliam, nem um passarinho cantava, apenas um que outro trilirim
de gafanhoto vermelho saltando nas macegas. Nem quero-quero fazia ronda.

Assim tirei uma cochilada morruda e iria a mais se…

Amigo! ouvi um tronar forte, de tremer o chão! Era um temporal de
verão, desses que não dão tempo nem para se apagar o
cigarro!

Foi o quanto saltei das caronas e trouxe o rosilho, enfrenei-o – num vá!
– sentei-lhe as garras – num vu — e montei de pulo…

A trovoada roncava ali, logo no outro lado da canhada.

Via-se cair a chuva, em manga, em linha, e via-se muito bem porque o sol
dava de refilão pela esquerda. E todo aquele borbotâo d’água
que desabava corria sobre mim, no pé-do-vento.

Levantei as rédeas, firmei-me nos estribos e trepei a coxilha… e
no que achei campo em frente, rumbeei para a estância do falecido João
Silvério, que branqueava lá longe, obra de três quartos
de légua, cortando à direita.

Nisto senti um – tchá! tcbá! tchá! -atrás de
mim; olhei, de relancina apenas, porque nem tempo para mais, tive; era o temporal,
a bomba d’água que se despenhava, quase nos garrões do rosilho!
Foi o quanto amaguei o corpo e toquei, de meia rédea.

Cupins e buracos de caranguejos, tacurus, macegas e carquejas, sangas, lagoas,
barrais – o diabo! – não vi nada! Se rodasse, nem o sebo da coalheira
se me aproveitava!

Mas o rosilho "Piolho" era firme e bonzão, sem mais nada!

Eu corria, é verdade, porém a manga d’água também
corria… A polvadeira que eu levantava a chuvarada engolia logo.

Eu sentia-lhe a frescura, percebia que ela estava-me na garupa, na anca dó
rosilho, nos garrões dele! Um que outro pingo de chuva mais ponteiro
batia-me às vezes na aba do chapéu…

Era um duelo esquisito. Um duelo, em que um valente fugia para ficar vencedor!

Vencer, aqui, era chegar enxuto.

E assim viemos, eu e a tormenta, na mesma disparada: a que te pego! a que
te largo! a que te pego! a que te largo! – Já perto das casas, vi a
gente do João Silvério, e ele mesmo, todos de mão em
pala sobre os olhos, gozando aquela gauchada.

Issi foi rápido, pois logo todos entraram, a fechar portas e janelas,
quando viram que eu vinha feito sobre o galpão.

Quando ia mesmo a entrar, saiu-me a cachorrada, furiosa, enovelando-se, em
latidos e investidas: suspendi a rédea com pena de matar algum debaixo
das …….

Olhem que isto foi como um pensamento; mas foi o tempinho bastante para o
demônio da chuva molhar a anca do cavalo!

Fiquei furioso! Se não tenho a pieguice de poupar um daqueles ladrões
daqueles cachorros, a chuva não me tocava, nem na cola do rosilho:
chegaria enxuto!

Assim é que entendo cavalo bom.

O João Silvério ficou doudo pelo "Piolho"; dava-me
cem onças de outro, um apero completo, de prataria lavrada, por fim,
de quebra, por cima de tudo, ainda me tenteou com um rodeio tambeiro.

Um horror de propostas. Mas eu não quis.

Durante muitos anos aí esteve ele vivo e são, que podia contar
este caso, tal qual eu. Hoje não sei que fim levou essa gente, e mesmo
se eu quisesse ir agora a essa estância, talvez não atinasse
mais com o caminho, por causa da divisão dos campos, estradas novas,
cercas e corredores que despistam muito um vaqueano… Mas que o caso passou-se,
isso, passou-se!! mal … apenas a chuva tocou a anca do baio… e isso mesmo
por causa dos cachorros do João Silvério!

Entre bugios

Quando, no norte do país, houve uma seca espantosa, que durou um par
de anos e alarmou o governo e o povo todo, a farinha de mandioca encareceu,
porque quanta se fabricava toda ia para aqueles infelizes flagelados.

Por essa época andava eu caçando antas nas serras do Paraná,
e aí tive notícia da seca e da necessidade de mantimentos para
os socorros.

Eu estava dentro dos pinheirais: tive uma idéia, isto é, tive
uma pilha de idéias, porém uma prevaleceu: em três tempos
montei um engenho e comecei a fabricar farinha de pinhão.

Pinhões, havia, às centenas de carretas…; o que dava trabalho..,
era descascá-los.

Ora… mas também havia muito bugio… Preparei a minha gente e fiz
algumas batidas, apanhando uma caterva de bugios, que são uns macacões
ruivos, fortes e mui práticos de comer pinhões.

Estão querendo perceber?

Colhíamos os pinhões e os entregávamos aos bugios, amarrados
em volta do terreiro — homens a um lado, mulheres a outro, para evitar
rusgas… -; por imitação do que nós fazíamos,
os bichos aprenderam a pelar os pinhões, atirando as cascas para um
monte e as amêndoas limpas para dentro de cestos.

É verdade que eles comiam muito: mas o pinhão sobrava.

Eu tinha mais de duzentos macacos -bugios e bugias – mestres de pelar pinhão,
e tudo gente moça, porque os velhos não tinham metido a mão
na cumbuca, e lá andavam no mato, passando vida de… cachorro.

Ora, pois, não é nada, mas cada dia preparava minhas sete arrobas,
mais ou menos, de farinha de pinhão, que era logo ensacada e mandada
para a comissão da fome da seca.

Fabricada, ensacada e mandada de graça! Confesso a minha verdade:
eu esperava ser recompensado com uma comendazinha… Era o meu fraco: poder
um dia enfrentar uma onça, de comenda no peito!

Cada um com a sua fraqueza…

Nesse meio tempo apareceu o gafanhoto, uma praga monstruosa, que derrotou
tudo quanto era pinhão que havia na serra: não se encontrava
um, para remédio.

Vi-me então obrigado a licenciar os bugios e soltei-os, dando-lhes
conselhos e recomendando-lhes juízo…

Foi um grande dia para aqueles bichos.

Estou convencido que se durasse mais tempo o serviço, muitos deles,
os mais inteligentes, acabariam, não digo – falando -porém –
mastigando – alguma cousinha que se entendesse.

Por exemplo: havia um, que com alguns exercícios já dizia –
mual! mual! – o que parece-me que seria – Romualdo -, que era o nome que ele
mais ouvia na roda do dia. Pouco antes de retirar-me daqueles lugares, andava
eu no mato, aborrecido por não encontrar caça alguma que me
satisfizesse.

Embrenhado num cerrado, encostei-me a uma árvore, à espera
do que aparecesse.

Nisto senti ali por perto um – hã, hã, hã! – muito compassado
e monátono. Hã! hã! hã! Lembrei-me da cantoria
das amas, embalando crianças.

Por instinto de caçador, apurei o ouvido e percebi donde vinha o som;
olhei, e por entre as ramarias lobriguei um vulto amarelo-vermelho; levei
a arma à cara, fiz pontaria, e ia desfechar…

Quando senti que puxavam-me pela aba do casaco … voltei-me, e qual o meu
espanto, dando de cara com um bugio, que ria-se e dizia – mual! Mual!

Abaixei a arma; ele e não, sempre puxando-me pela aba do casaco, foi-me
levando em direção ao vulto que eu descobrira; mais perto vi
então que era uma macaca, sentada, com um macaquinho ao colo, dando-lhe
de mamar!

O lugar onde ela estava era uma espécie de rancho, mal feito, é
verdade, mas mostrando já alguma civilização, havia um
porongo d’água pendurado num galho, e, numa forquilha, espetado, um
ninho de sabiá cheio de guabijus, parecendo uma fruteira.

O bugio pôs uma mão no ombro da bugia, a outra sobre a cabeça
do macaquinho e com a outra bateu no peito, como a dizer:

— Minha mulher! Meu filho!

Oh! senti toda a poesia daquela felicidade!…

Tirei do bolso o meu lenço de ramagens e dei-o de presente à
bugia, dizendo:

— Toma! Faze fraldas para o pequeno!

O Iadrãozinho parece que entendeu.., e engraçando com a corrente
do meu relógio, pôs-se a brincar com ela; e eu, para divertir-me,
ainda encostei-lhe a "cebola" ao ouvido, para ele- apreciar o tique-taque
da máquina…

O casal saltou de contente, berrou -mual! mual! — umas quantas vezes,
e quando me despedi, veiu acompanhar-me até a beira do mato. Nunca
mais os vi. Quem nos diz a nós que, com tempo e paciência e pinhões,
os bugios…

Ah! antes que esqueça: da minha farinha e da tal comissão…
também nunca mais tive notícias. E da comenda, menos!…

O Cobertorzinho de Mostardas

No meu tempo de meninote fui caixeiro na cidade do Rio Grande, que naquela
época dava a nota no comércio da província. Como era
da praxe, o meu primeiro posto foi o de – vassoura.

Varria o armazém – uma "venda" em ponto grande – agarrava
à unha as baratas vagabundas que passeavam sobre os queijos e os bacalhaus,
lustrava os sapatos de fivela do patrão e ia à missa das sete
horas, porque era dos mandamentos. As vezes chuchava o meu cascudo dado pelo
sr. 1º caixeiro; comia – por último – na ponta da mesa grande,
sem toalha e tudo no mesmo prato; ao escurecer ia a casa tomar a bênção
aos meus pais e voltava logo, para dormir numa esteira, atrás das pipas.
Isso tudo eu e os outros fazíamos para aprender – a ser gente.

Mas a vida ia correndo. O diabo foi uma mulatinha, que…

Foi assim: perto do armazém morava uma senhora viúva, com três
filhas, meninotas como eu, porém bonitinhas como uns feitiços…

De manhã, quando eu ia à missa ou de lá vinha, espichava
para elas os olhos… mas baixava-os logo, entre respeitoso e envergonhado.

As meninas riam-se, cochichavam e beliscavam-se.

À noite, quando ia à bênção caseira ou
de lá vinha, etc, e tal, era a mesma cousa.

Aquela obrigada passagem pelos três diabinhos punha-me as orelhas em
fogo e forçava-me a trocar o passo, na atrapalhação do
meu acanhamento.

Porém, a mais dos três diabinhos havia mais uma mulatinha, repolhudinha,
bem da cor do pêssego maduro, e ladina como um sorro…

A mandado das sinhazinhas a mulatinha vinha ao armazém comprar rapaduras,
puxa-puxa, pé-de-moleque ou broinhas, que eram os doces que havia;
e embirrava em que só havia de ser servida por mim!

— Seu Romualdo, quatro de broinhas e dois de puxa-puxa!

Se outro caixeiro vinha atendê-la, a mulata empacava-se e teimava:

— É o seu Romualdo quem me serve. A nhãnhã deu
"orde"! …

E este seu criado Matias… A vida ia correndo.

Ora, uma tarde, tinham todos ido jantar, ficando eu, como de costume, sozinho
de plantão ao balcão. Nessa tarde, não sei porquê,
até uns sujeitos que costumavam ficar por ali fazendo horas, até
esses não apareceram.

Estava eu olhando para uma caixa de massas italianas e cá de mim para
mim perguntando que estranha árvore seria aquela que dava lasanha e
macarrão, quando embarafustou porta adentro a mulatinha:

— Seu Romualdo, três de pé-de-moleque!

Fiz os três vinténs de pé-de-moleque e por minha conta
tomei de uma rapadura e dei-lha, dizendo, meio a tremer de mim mesmo:

— Toma: isto é doce como tu..

A mulatinha avançou na rapadura e respondeu espevitada:

— Como tu, vá ele! "Menas" confiança! Estomagado
com a ingratidão, quis retomar a rapadura e fisguei o pulso da mulata.
Houve uma pequena luta silenciosa e … justo, ao tempo que entrava da rua
o patrão, a mulata bradava às armas:

— Seu Romualdo, não me belisque!

— Largue a cabra, menino! berrou o meu patrão, a dois passos
de mim.

E como vinha de mãos a prumo sobre as minhas orelhas … quebrei o
corpo. Depois, não sei explicar o que se passou: divisei ao meu lado,
na boca de uma barrica, um alguidar com manteiga; nele e nela afundei as mãos
e com tal bocado – três ou quatro libras – fiz arma de defesa.

Os dedos ferozes tornaram a roçar-me as orelhas … outra negaça
de corpo e quando alcei-me, plantei a plastada da manteiga na cara do patrão.
Olhos, barbas, nariz, boca, testa. Calafetei-o!

E voei, porta fora, assombrado. A mulatinha, em frente, fez uma careta e
gritou-me:

— Bem feito! Apanhou! … Apanhou! Bem feito! …

Cinco minutos depois entrava em casa.

— Tratante! bradava Romualdo pai. Atreveres-te! ao teu patrão…
ao segundo pai dos caixeiros! Patife!

— Mas ele ia arrancar-me as orelhas… murmurava eu, Romualdo filho,
a tremer, com a boca pegada a cuspo grosso.

E Romualdo pai:

— Pois fazia muito bem! Quem dá o pão dá o ensino!

E Romualdo filho:

— Que ele sempre… tratou-me… como cachorro… gaudério!
Ih! Ih! Ih!

E mais não disse, que os soluços embargaram-me a voz e os queixumes.
Afinal a "velha" acomodou as cousas. As mães sabem sempre
ser anjos.

Fui mandado para Mostardas, a passar uns dias com o meu padrinho.

Foi um rega-bofe a viagem, que durou três dias, a bordo dum lanchão;
foi outro rega-bofe a estadia, que durou duas semanas, em casa do padrinho.

Mostardas é uma povoação perdida entre areiais, junto
à costa do oceano. Gente boa, do bom tempo. Tece o linho, de que faz
desde os enxovais de casamento até as camisas do diário; tece
a lã desde os xergões grosseiros até o picotinho lustroso.

Nesse tempo existia aí uma raça especial de ovelhas que produziam
uma lã tão aquecedora como nunca mais vi outra. Essas ovelhas
morriam muito no verão abafadas na pele, era necessário tosqueá-los
à navalha. A gente que trabalhava com tal lã suava em barda
e ficava com as mãos vermelhas, quentes, fumegando, como se estivesse
lidando em água esperta.

Mas eu, como criançola, pouca atenção dava a estas cousas.

O lanchão amarrou novamente; nele devia eu regressar. Na véspera
da partida, a santa da madrinha arrumou a minha bagagem. Minha, propriamente,
era apenas uma canastra pequena, forrada de couro cru, peludo. O mais eram
presentes que eu levava: um fardo de miraguaia salgada, uma barrica de camarões
secos, uma peça de picote, umas toalhas com rendas de bilros, etc.

E para mim, expressamente meu, um cobertorzinho, feito da tal lã das
tais ovelhas especiais. O meu cobertorzinho era pequeno; dava apenas bem para
o meu corpo: muito leve, transparente e felpudinho. Do lado que devia ficar
para os pés. tinha duas barras vermelhas e do lado da cabeça
tinha o meu -Romualdo – em letras azuis.

Fiquei encantado! E como já queria utilizá-lo na viagem, emalei-o
atando-o com uma eitibira larga, descascada a capricho.

Na manhã seguinte, sob bênçãos e lágrimas
dos meus padrinhos, embarquei.

O lanchão içou velas. Ainda uns abanados de mãos, de
lenços … e tudo lá ficou, para sempre, na volta do arroio!

Mal pus os pés em terra, meu pai disse-me que eu marcharia para Bagé…
como caixeiro!

Chorei pelo patrão da manteiga, pelas meninas e até pela mulatinha;
chorei por Mostardas, pelo lanchão…

Entreguei os presentes, as cartas, dei as lembranças, os recados e
os abraços que me confiaram.

Na minha desgraça só o meu cobertorzinho me consolava. Mal
toquei-lhe, para mostrá-lo à minha mãe, a embira, de
ressequida, esfarinhou-se. Não prestei a isso maior atenção,
mas já foi suando que o amarrei de novo com uma ourela de pano piloto.
Minha mãe abanava-se de leque, como em dezembro.

Segui para Bagé. Uma viagem dessas, naquele tempo, dava para um romance!

Todos sabem disso. Passemos adiante.

Quando a "deligência" fez a última parada, perto da
igreja de S. Sebastião de Bagé, o meu novo patrão esperava
a encomenda.

Era eu.

Era ele um espanhol baixinho, gordo e gritão.

Como é dos estilos, pus a canastra ao ombro e marchamos para a casa
do negócio.

Fazia frio!… frio!… Que frio que fazia!… As fumaças do cigarro
do espanhol ficavam paradas no ar, endurecidas, talvez congeladas… Pouca
gente a pé. Muitos homens a cavalo; emponchados, todos.

Chegamos. Entramos. Pousei a canastra. Olhei.

E chorei, logo. Aquela. distância, aquelas caras novas e cousas estranhas
achatavam-me.

O patrão então falou:

— Mira, chico, estarás estrompado, he?… Vate a dormir. Mañana
tempranito te tomarás un cimarón con galletas!

E conduziu-me ao meu quarto, isto é, ao quarto da caixeirada.

Lá, no Rio Grande, tínhamos esteiras, aqui temos pe1egos…
Ganhei na troca.

Atirei-me sobre o meu pelego. Mas o frio cortava.

Meio de gatinhas, pés duros, canelas duras, ombros duros, mãos
duras, consegui abrir a canastra e sacar o meu cobertorzinho. Provavelmente
eu devia de estar com a cara como uma batata roxa…

Tocar no cobertor foi uma satisfação, abri-lo um prazer, estendê-lo
sobre meus pelegos, uma alegria; meter-me debaixo dele, um consolo divino…
E ferrei num sono de pedra.

Lá pelas tantas acordei-me meio afogado, lavado em suor.

Acordei-me sob uma granizada de risadas e falaraz dos rapazes companheiros,
todos em trajes menores, sentados nos peitoris das janelas, que davam para
o quintal.

— Que abafamento! que calor! diziam eles.

— Parece meio-dia de fevereiro!

— Se tivesse água agora, era banho certo!

Eu, por mim, não podia mais; parecia-me que tinha um pano de fogo
em cima do corpo. Fui para a janela, como os outros.

Nisto o espanhol abriu a porta do nosso quarto e – descalço, em ceroulas
e de poncho de pala enfiado – bradou:

— Eh! muchachos! Habrá fuego en la calle? Que está caliente
como un sol dormiendo!

Mas logo bateram à porta da frente.

— Hay fuego, muchachos! Es fuego! A ver!

Saímos todos com o patrão; abriu-se uma porta e logo entraram
uns quantos sujeitos vestidos muito à frescata.

— Chê! Bote um capilé! pediu um, esbaforido.

— Outro! Que calor! gritou outro tipo.

— Menino, dá cá um refresco… reclamou um terceiro.

— Donde es el fuego? inquiria, aflito, o espanhol.

— Que fuego, nem fuego! Calor da noite é que é.

— Isto é tormenta!

— Olha! Outro capilé!

— Aqui também!

E o calor aumentava.

Casas abriam-se com rumor, acendiam-se os candeeiros e as velas das "mangas"
de vidro.

Crianças vinham para a rua, em camisinha. Ouviam-se risadas, conversas,
chamados. Começavam a mandar buscar cousas ao armazém. Tijolos
de goiabada, rapaduras e bolacha doce, latas de sardinha, ovos e toucinho
para fritadas, varas de lingüiça, para comezainas improvisadas.

Outras casas de negócio vizinhas também abriam, para servir
à sua freguesia. Havia movimento em toda parte, como se fosse de dia.

As pessoas que chegavam de outros lugares queixavam-se de que o calor aqui
no armazém ainda era mais insuportável que lá.

De repente ouvimos um estouro forte, dentro do balcão; era um barril
de melado que arrebentava, espumando. Um dos caixeiros que fora servir a um
freguês avisou ao patrão que as velas de sebo e as barras de
sabão estavam pegadas, tudo quase como uma pasta.

Todos os que bebiam ao balcão, queixavam-se e reclamavam que os refrescos
estavam mornos. Veio um negro buscar uma galinha, que o seu senhor queria
comer uma canja, para passar o tempo…; o caixeiro que foi ao galinheiro
voltou, atarantado, a participar ao patrão que as aves todas estavam
assoleadas e já morto um peru gordo.

O espanhol, corado, pingando suor, e sempre em ceroulas e de pala enfiado,
correu para os fundos.

Mira! Que cosa bárbara!

Do lado do arroio vinha uma algazarra alegre, gritos, gargalhadas, ditos:
era o povo que tomava banho!

Nós todos no armazém suávamos como tampa de panela.
Um estancieiro, freguês da casa, pediu um chimarrão; o primeiro
caixeiro amarrou a cara, porque era estopada ir-se aquentar água àquela
hora, mas mandou preparar o amargo. Saiu e voltou logo o peão com os
avios e a "chocolateira" com água, fervendo em pulo, e de
entrada foi dizendo:

— Eta, diabo! … Lá na cozinha "tá" tudo fervendo!

Aquilo estava esquisito, estava… Nunca se tinha visto um tão curioso
calor em junho, entre Santo Antônio e São João, que é
o tempo justo em que a geada cura as laranjas e branqueia como farinha, no
terreiro e nos telhados.

E o espanhol, bufando, repetia:

— Que cosa bárbara! que cosa bárbara!

Eu, bem se imagina, estava atarantado com tudo aquilo; e sentindo a roupa
empapada, com receio de alguma constipação, resolvi mudar outra,
enxuta … e esgueirei-me para o quarto.

Quase não pude entrar, sufocava, lá dentro; era um forno. Contudo,
avancei até a minha canastra: era insuportável, aí perto.

Então, só então, como um raio, foi que me lembrei do
meu cobertorzinho!

Era ele, só ele, o calor, a quentura da sua lã, que estava
causando todo aquele estrupício na cidade.

Fiquei aterrorizado.., se o espanhol descobrisse!

Muito caladinho, apressado, dobrei-o, amarrei-o e atirei-o para o fundo da
canastra, que fechei com o cadeado.

E disfarçado, vim para o balcão, com os companheiros. Daí
a pouco começou a abrandar a torreira’ foi abrandando; veio a viração
da madrugada; já se respirava melhor. Surgiram as barras do dia e todos
se foram deitar, para aproveitar ainda uma hora de sono.

Nunca ninguém soube disto. Dias depois, para tirar-lhe as pulgas,
estendi o meu cobertorzinho ao sol.

Foi o meu prejuízo: combinaram-se a quentura da lã e o calor
do astro… e pegou fogo!

Quando fui levantar a minha coberta, era pura cinza.., e nem fumaça
tinha havido!

Olhem que era cobertorzinho quente, aquele!

A Tetéia

Pois sim! … Venham-me pra cá com histórias de cachorros bem-ensinados
e obedientes! Igual, pode – e ainda duvido! – porém melhor que a minha
perdigueira Tetéia não há nem houve.., e talvez até
nunca haja!

Contaram-me como grande cousa um caso dum barão alemão, um
tal Münchausen, que possuiu uma cadela lebreira, a qual, estando grávida,
mesmo assim correu uma lebre que, por coincidência estava também
grávida. Correram, correram muito as duas próximas mães…
e tão próximas que durante a corrida a lebre teve as lebrinhas
e a cachorra os cachorrinhos. E como a raça não nega a traça,
os cachorrinhos largaram-se logo a correr atrás das lebrinhas, enquanto
que a cachorra recém-mãe continuava a correr atrás da
lebre também recém-mãe…

Sim, senhor! era um bom animal, não nego: mas a Tetéia era
melhor.

Escutem e julguem.

Uma manhã saí a caçar perdizes e levei a Tetéia.

Eu não conhecia o campo, e isso foi a causa de um grande desgosto
para mim. Mal entramos no macegal, a Tetéia amarrou, toquei-lhe com
o joelho na anca, ela andou uns passos: a perdiz levantou-se no vôo
e flechou! Pum! Tiro dado, perdiz em terra, e Tetéia, trazendo!

E assim, de enfiada, foram-se os cem cartuchos que eu trazia: cem perdizes
em meia hora. E note-se que eu errei dois tiros e cinco cartuchos falharam.

Sentei-me e comecei a atar as minhas perdizes, pelas pernas, para pô-las
ao ombro e regressar.

E, distraído, esqueci-me da chamar a perdigueira e fazer-lhe compreender
que estava findo o divertimento. Esqueci-me; e quando, tudo pronto, ia a marchar,
só então lembrei-me da cachorra.

Chamei: Tetéia! Tetéia! assobiei, fiz os sinais costumados..,
nada! Estranhando o fato arriei o fardo das perdizes, e andei a procurar,
sempre chamando, assobiando, e nada, nada de resposta!

Supus então – naturalmente – que a perdigueira, desobedecendo pela
primeira vez, tivesse ido para casa, sozinha, antes de mim. Era um procedimento
de cachorro, mas vá lá… por uma vez! E assim pensando, fui-me
embora.

De chegada indaguei. Não, não tinha aparecido. Causou-me espécie
aquela demora; depois, quem sabe.., algum namoro…

Esperei, chegou a noite, o outro dia; e nada de Tetéia!

Tive então um pressentimento funesto… nem me restava mais dúvida:
a honesta perdigueira certamente havia sido picada por cobra… alguma cascavel,
alguma viradeira medonha, e a esta hora! … Pobre, pobre… infeliz bicho!…
Fiquei realmente paralisado, triste.

Para distrair as mágoas e variar de comida e emoções,
andei caçando veados para outro rumo; marrecas, nos banhados; quatis,
tatus, etc.; e fiz várias batidas num tigre fugido de gaiola, que não
apareceu nunca, talvez assustado da minha fama.

Foi até uma imprudência esta batida ao feroz tigre; eu não
tinha cachorros próprios e os companheiros falharam-me à última
hora, alegando cada qual a sua razão; um que tinha de arrancar batatas,
outro que a mulher estava para cada hora, outro que fincara um estrepe no
pé … enfim, deixaram-me sozinho, justamente quando ali perto, à
vista, o tigre urrava tremendamente, como desafiando!

Pois fui, sozinho: eu e a minha faca de mato; apenas por segurança,
para ter o alarme certo, levei um gato num cesto, porque o gato é um
animal muito elétrico e de longe já sente a catinga do tigre,
e dá logo sinal que não engana, nunca. Se é de dia, fica
de pêlo eriçado e duro, como arame, e mia duma forma muito particular;
são dois miadinhos curtos e um comprido, dois curtos e um comprido;
se é de noite, apenas bufa e lambe as barbas, ficando então
o pêlo fosforescente, como vaga-lume. É claro, pois, que quem
leva gato não corre o risco de ser surpreendido por tigre; muito antes
deste aproximar-se já o caçador está avisado e tem tempo
de sobra -de preparar-lhe a espera.

Deste fato, creio mesmo que e que nasceu a expressão vulgar de que
– quem não tem cão, caça com gato.

Com estas distrações e outros que fazeres, passou-se o tempo;
de vez em quando e sempre com pesar e saudade, Lembrava-me da desaparecida
Tetéia.

Dediquei-me então a ensinar um cachorrinho, filho dela, o seu retrato
escrito e escarrado, que me havia ficado.

Há dias – meses passados – levei o cachorrinho ao campo, para exercício.
E andando, andando, sem dar por tal, fui ter ao lugar certo daquela malfadada
caçada em que se sumiu a minha maravilhosa perdigueira.

E, dum lado para outro, eis senão quando, o cachorrinho pára,
amarra.., levanta a pata, sacudindo a cauda! Chego-me, toco-lhe com o joelho..,
e quando espero que o totó vai levantar a perdiz, ele volta-se para
mim, desarrumado, humilde, com os olhos arrasados de lágrimas… Surpreso,
dei três passos, estiquei o pescoço e vi…

Vi, sim, o esqueleto da Tetéia ainda de coleira, firme, correto, na
posição de amarrar; adiante, um esqueleto de perdiz, na posição
de preparar o vôo; ao lado, num ninho quase desfeito, sete esqueletinhos
de filhotes, na posição de piar, com fome! …

Querem mais claro? … E agora, cousa notável, foi ainda o faro filial
que guiou o cachorrinho e fê-lo descobrir e chorar perante os ossos
da mãe!

Pois, e então?

A cachorra do Münchausen será acaso superior à Tetéia?
Só se for porque ele era um barão, e eu sou apenas… o Romualdo.

Três cobras

Sempre que ouço falar em cobras, benzo-me, em sinal de gratidão
à divindade, por estar ainda hoje vivo, e aqui, com saúde, para
poder referir o passado comigo.., e elas.

Quisesse eu contar casos de cobras… Registro apenas um terço, por
causa da circunstância de ter sucedido durante uma só viagem.

Foi no tempo da guerra do Paraguai. Eu era cadete; o meu regimento seguia,
pela campanha, recebendo a incorporação de piquetes de recrutas
mandados de vários lugares: já se vê portanto que muita
gente presenciou o acontecido.

E que muitos já morreram, outros extraviaram-se, e se não,
eu apresentaria testemunhas, isto se alguém me duvidasse, o que não
espero: felizmente sou tido e havido por homem de palavra!

Primeira cobra.

Uma tarde, ao lusco-fusco, acampamos junto a um pedregal; arrumada a cavalhada,
oficiais e soldados, soprando nos dedos, fomos fazendo as camas nos arreios,
e como o cansaço era grande, só se fez uma fogueira, e quem
pôde aí perto deitou-se, com os pés para o braseiro.

Eu fui dos felizardos da quentura… Mas também o único de
negra sorte, nessa noite.

Deitei-me; como de costume, fiz uma reza a São Romualdo e adormeci,
sonhando com uma moça que no caminho me havia dado um pires de doce
de coco.

Depois o sonho foi passando para aflito; eu era chão, chão
de terra, e em cima de mim, chão, um gigante, parecido com o corneteiro
do regimento, estava enroscando uma espia de navio, grossa, como um braço
de homem, e fria, fria, como água de pedra…

E o gigante alava a espia, alava e ia-a enroscando, volta sobre volta, em
cima de mim.

Depois eu já não era mais chão, era eu mesmo; queria
agarrar o pires de cocada da moça, mas não podia, por causa
do peso da espia; e do peso me veio vindo um pesadelo, que me dava a idéia
de uma imensa lingüiça crua, enrolada e achatada sobre o meu rosto,
sobre a garganta e o peito.

Quando o pesadelo foi me tomando por completo, quando eu ia gritar e bracejar
para livrar-me da sufocação… o nariz entrou em função
e pôs-me alerta; e acordei-me.

O nariz acusava o cheiro acre de uma catinga, catinga de cobra, que chega
a arder lá dentro, nas voltinhas do cheiramento.

Despertei, disso.

E senti o horror da minha situação. Exatamente como eu havia
sonhado o gigante enrolando a espia, assim estava enroscada sobre a minha
cara e pescoço e peito uma tremenda cobra; pesava como chumbo, cujo
frio trespassava-me, cuja catinga me sufocava!

E dormia, muito a seu gosto, o monstro, aproveitando o calorzinho do meu
corpo! Sentia-lhe a respiração curta, um nadinha assobiada;
pareceu-me até – isso não garanto, mas pareceu-me – que a cobra
ressonava…

Que posição, hem?… Mexer-me.., era acordá-la; gritar..,
ia assanhá-la, levantar-me, de salto, uma loucura; dar-lhe um bote
à cabeça, apertá-lha pela goela… mas, no escuro, se
em vez do pescoço eu agarrasse-lhe.., o rabo?…

No perigo é que se aprecia a calma dos homens.

Com mil cautelas tirei do bolso o naco de fumo, piquei-o, sovei uma palha,
enrolei um grosso cigarro e comecei a pitar… a pitar… a pitar… puxando
umas fumaças tão encorpadas, tão espessas, que se fosse
dentro de casa fechada nublariam os aposentos! Ao cheiro ativo do forte fumo
criolo a bicha moveu-se…

Deu-se com ela o que se havia dado comigo; o meu nariz despertou-me pela
catinga dela; o nariz dela acordou-a pelo sarro do meu fumo. Estávamos
a mano, de nariz.

A cobra acordou-se, deu uns seis ou sete espirros e foi se desenrosquilando,
escapando-se furiosa, lanceando o ar, com a língua.

Eu, fuma que te fuma! E vá fumaça pelas ventas, vá fumaça!…

Para encurtar o caso: nem sei para que lado ela tomou, a noite estava muito
escura, o lugar muito carregado de fumaça e eu muito cansado de pitar
e com frio.

Virei-me para a parede e tornei a ferrar no sono.

Segunda.

Foi poucos dias depois. Vínhamos em marcha forçada; alta madrugada
o regimento fez alto. Trazíamos umas novilhas gordas, que foram logo
abatidas para um rancho apressado, de churrasco.

Fazia um frio de rachar pedras.

Acendeu-se uma grande fogueira e cada um tratou de chamuscar o seu pedaço
de carne.

Eu saí a procurar um espeto para o meu assadinho. A noite era muito
escura, mas graças ao clarão da fogueira descobri uma pequena
reboleira de mato, ali perto. Aproximei-me e quando ia cortar um galho qualquer,
caiu-me ao chão a faca, abaixei-me para apanhá-la dentre as
ervas, e com tal sorte, que ao lado dela encontrei um pedaço de pau
tal e qual como eu queria: duma meia braça, grossinho, liso, e o que
mais é, já com a ponta feita.

Por certo que seria um espeto já pronto que algum dos camaradas perdera;
melhor para mim!

E ainda bati com ele no chão para limpá-lo duns capins secos,
e terra que estava pegada.

Voltando, atravessei o meu churrasco no meu espeto achado, e finquei-o na
beirada do fogo.

Vinha clareando o dia.

Por toda parte branqueava a geada, alta de dois dedos, geada farinhenta,.
que é a mais fria de todas. Estava eu um pouco arriado, conversando,
quando um cabo, baiano, que viera acender o cigarro numa brasa, gritou, olhando
para o chão, admirado:

— Olha o assado com o espeto, cadete Romualdo, que vai-se embora!…

Julguei que era algum gaiato que pretendia furtar-me o churrasco; mas o baiano
repetiu:

— Acuda, seu cadete, que o assado vai de trote!…

Corri, e que vi?…

O churrasco, sim senhor, borrifado de salmoura, já chiando na gordura,
que ia andando pelo chão.., dava a idéia de um cágado
sem pernas, mas de cabeça é cauda mui compridas! …

Acudiram então outros rapazes, muitos, quase todos: e todos viram
o churrasco arrastando-se, fugindo da fogueira.

Então rompeu o sol. Foi quando se pode verificar a cousa: o espeto
era uma cobra!

Como estava dura, dura de frio, agüentai a todo o trabalho de atravessar
o churrasco e ser cravada ao lado do fogo; depois o calor começou a
assar a carne e a aquecer o espeto, isto é, a cobra, que se foi reanimando,
revivendo. E logo que ela sentiu-se quentinha e de saúde, tratou de
escapar.

Com o alarido e o movimento a cobra assustou-se, fez força e desfincou-se
do churrasco, escondendo-se logo num buraco ali adiante.

Este caso foi muito falado naquele tempo.

Terceira cobra.

Isso deu-se depois, já no regresso do regimento, depois de entregarmos
os recrutas.

Seria uma hora da tarde; tempo seco; pesado.

Vínhamos numa troteada rasgada, levantando poeira, na estrada.

Eu estava morto de sede; avistando à direita um mato, calculei que
ali devia haver algum olho-d’água e pedi’ licença ao meu alferes
para chegar até lá num galope.

Concedida; mas logo outros não se sofreram e imitaram-me e fomos,
como uns sete, beber umas goladas d’água fresca.

Apeei-me eu, primeiro; e quando, já de beiço preparado para
o chupão, ia debruçar-me, atirei-me pra trás, porque
a meio palmo da cara vi. enroscada e furiosa, já silvando, uma cobra
roxa, de umas tais que tem cerdas crespas, que nascem debaixo de cada escama
da casca.

É a cobra chamada "viradeira", porque qualquer animal por
ela mordido vira-se logo de papo para o ar, estrebuchando ou logo morto.

É cem vezes mais venenosa que a cascavel.

— Mata, Romualdo, senão ela vira-te!

Não esperei segundo aviso; foi só o quanto desafivelei o loro
com o estribo, e fazendo deste arma, desferi uma pancada mestra sobre a cabeça
da "viradeira".

Porém, ligeiríssima, a cobra ainda atirou um bote ao estribo,
que era de prata, e tiniu, com o choque da dentada.

Porém matei-a.

Com a impressão do acontecimento e porque a bicha ao morrer caísse
e se estorcesse n’água, todos, de nojo, perderam a sede.

Apresilhei novamente o estribo, montei e galopamos para alcançar a
força, já distanciada.

Logo correu conversa sobre a cobra, aquela, e sobre outras, que não
as conhecia, eu: oficiais e soldados, cada um muito honradamente esfolou a
sua cobra.

Continuávamos a trotear, quando comecei a sentir o pé apertado
no estribo e o cavalo meio derreado, como se trouxesse todo o peso a um lado.

Parei para examinar a esquisitice: era o estribo que ia inchando, a olhos
vistos envenenado pela bruta peçonha da "viradeira", e conforme
ia inchando apertava-me o pé, que já custei a retirar; e o peso
da inchação ia sobrecarregando cada vez mais o cavalo…

O comandante veio ver o etribo inchado; o major veio ver: e vieram os capitães,
os tenentes, os alferes, os cadetes, os sargentos, os cabos, os furriéis,
os rasos.

O capitão-cirurgião ainda falou em lavar o estribo com cachaça,
fumo e sal, a ver se ele vomitava.., mas o regimento não podia demorar-se,
e eu fui obrigado a abandonar na estrada o estribo, que já estava como
um trambolho, inchado e balofo e meio azinhavrado, tirante a verde de defunto
passado…

— Cadete Romualdo! Que dentada, hem?… dizia o comandante.

— Que veneno! … dizia o major.

— Que cobra! … diziam os capitães.

Que "viradeira"!.., diziam os pica-fumo.

— Pois sim! Vão cantando, dizia eu … O que vale é que
todos viram!

A enfiada de macacos

Quando estive no sertão de Goiás vi uma cena horrível
e rara, talvez única: vi uma jibóia engolir toda uma enfiada
de macacos!…

Eis como:

Sabe-se que quando os macacos querem atravessar um rio, não largo,
o bando sobe a uma árvore alta, à beira d’água, e lá
uma vez em cima o capitão, que é o macaco chefe, engancha o
rabo num galho forte, dela; outro vem e engancha o rabo à volta da
cintura do primeiro; o terceiro, no segundo; o quartos no terceiro, e assim
por diante, até o derradeiro; e quando assim estão todos presos,
uns aos outros, e portanto pendurados, como uma corda, nesse jeito começam
a balançar-se… a balançar-se…; e mais, e mais; nesse balanço
de vaivém a enfiada ganha impulso.

É como uma pêndula de relógio ou como um badalo de sino,
tal e qual!

Quando o macaco. da ponta de baixo consegue agarrar um ramo na margem oposta,
prende-se a ele firmemente, marinha pelo tronco acima e dá um grito:
então o macaco da ponta de cima – o capitão – da outra margem
solta-se, e – pronto! – a enfiada atravessou o rio.., a pé enxuto.

Ora, uma vez que, silenciosamente, para não despertar os jacarés,
eu descia em ubá. um braço de rio, justamente numa das voltas
topei com uma enfiada que se balançava, para fazer a travessia.

Parei logo de moita para ver a interessante manobra.

Num dos balançoso o macaco – ponta – prendeu-se a um galho forte de
uma enorme sucupira: mas quando ia a galgar tronco acima, uma senhora jibóia,
uma jibóia – senhoria! – abocou-o, faminta, e já o foi engolindo,
como quem não encontra caroço nem espinha…

Com a dor do abocanhamento o pobre macaco gritou desesperadamente; o capitão,
na outra ponta, julgando que era o sinal, desprendeu-se.., e a enfiada inteira
bateu na água do rio!

E tanto que caíram n’água, os macacos todos taparam os ouvidos
com as mãos … mas não se desenrabaram!

Fiquei com lástima daquela atrapalhação e pus-me, e
gritar-lhes:

— Estúpidos! Soltem os rabos! Burros! aproveitem enquanto ela
papa o primeiro! Desenganchem!….

Qual! Os burros faziam-se caretas, guinchavam e não atinavam com a
salvação, tão simples!

A jibóia nem o trabalho teve de mover-se: engoliu o primeiro, o segundo,
o terceiro… e assim todos.

O último macaco, o capitão, que era portanto o único
que tinha a cauda livre, quando o companheiro da frente – o penúltimo,
pois – ia entrar para a goela da jibóia… o último macaco,
quando isso viu, teve um rasgo de herói, que me comoveu até
às entranhas: disse adeus de mão para os dois lados, e, enroscando
no pescoço a própria cauda … suicidou-se!

A jibóia, talvez admirando aquele valente, não o tragou; mal
engoliu o penúltimo, com a dentuça atorou-lhe a cauda.., e então
caiu sobre a barranca o corpo ainda quente do capitão da enfiada:.
o suicidado… E eu toquei a minha canoinha pra diante…

O gringo das lingüiças

Bom é o dito: viver, não custa, saber viver é que são
elas!…

Estrangeiro é que é gente mestraça para saber arranjar
a vida, de um nada faz muito e quando um de nós mal se precata vê
o tal homezinho embandeirado, cheio de boas patacas e … sempre chorando
pitangas…

Conheci muito – quase na estrada do Caverá – um gringo ruivo, torto,
de cabelo à escovinha, chamado Domenico, o qual tinha um boliche mui
arrebentado, localizado ao lado de cá do Passo do Mutuca, sobre um
galho do Ibicuí da Armada.

O lugar do arranchamento parece que foi escolhido a dedo: era trânsito
obrigado de carreteiros, tropas, cargueiros e quaisquer andantes. E todos,
de comitiva ou escoteiro, antes ou depois de varar o passo, faziam a parada
certa no Domenico, que tinha boas sombras, boa aguada e bom potreiro.

O gringo era sabido …

A venda só tinha uns garrafões de canha, rapaduras, queijo
e alguns surrões de ótima erva-mate; já de matreiro o
dono não supria a casa – pelo menos à vista – porque tinha receio
de algum saque se mostrasse fartura nas prateleiras… sim, que araganos por
aqueles pagos era cisco!

O que fazia a especialidade do Domenico era o amargo, e acima do amargo a
comida: era só lingüiça com ovos. Só, só,
só: mas era uma senhora comida!

Quem chegasse – a que hora fosse – se pedia de comer, lá vinha a lingüiça
com ovos…

E apesar de que o diabo cobrava-se a lo largo, o cobre não aparecia;
entrava aos punhados – balastracas, bolivianos e até onças!
– porém ele chorava sempre, que mal "guadanhava" para sustentar
os filhos, que eram uma ratatulha.

Por uma causa desconhecida, porém infalível, aquela redondeza
era também a cancha certa da cachorrada gaudéria.

Em toda esta minha longa vida, nem antes nem depois, nunca vi tanto cachorro
chimarrão! Creio porém que seria o cheiro das fritadas que atraía
aquele bicharedo: era como uma isca cheirosa que voava no vento e entrava
pelas bibocas e restingas chamando os chimarrões…

Todo o vizindário queixava-se de que a cachorrada baguala comia-lhe
ovelhas, terneiros, potrilhos, vacas magras e até a criação
do terreiro; todos se lastimavam dos prejuízos…

O Domenico, não.

Uma ocasião, por motivo de grandes chuvas, fiquei ilhado no Domenico;
quando melhorou o tempo e dispunha-me a seguir viagem, fui atacado de violenta
nevralgia, que por uns quantos dias trouxe-me de canto chorado…

Ora, quando, a poder de folhas de mamono aquecidas com sebo de carneiro,
melhorei o meu tanto e resolvi marchar na manhã seguinte, justamente
nessa noite foi a casa do Domenico assaltada por uma pandilha de ladrões.
E por mal dos pecados, estávamos sós; de homens: eu e ele.

O gringo era passado nestas cousas… vi logo que não era esse o primeiro
mondongo que ele pelava…

Não se acobardou com o perigo; ao contrário, reforçou
as trancas das portas, fechou toda a família num quarto do centro da
casa, pôs as roncadeiras, de dois canos, e a munição,
em cima do balcão, empinou um trago gordo, convidou-me para ajudá-lo
e apagou todas as luzes.

Eu nem se pergunta – já se vê, estava pronto; amartilhei as
minhas pistolas e desembainhei os meus facões.

Os assaltantes, do lado de fora, junto à janela, cochichavam; de repente
fizeram um alarido e meteram ombros à porta, forçando-a. Nós,
quietos.

O Domenico soprou ao meu ouvido:

— La casa é di pau a pique, barreata…

Compreendi logo o partido a tirar e comecei a defesa, enérgica. Tiro
sobre tiro na parede que dava para o terreiro, e que era a do assalto. Como
as pistolas eram especiais, de dupla carga em cada cano, cada tiro, cada bala,
varava a parede como se esta fosse manteiga!

E, tiro dado, bandido no chão!

O gringo fazia como eu; por fim já quase não podíamos
respirar, de cerrado que tudo estava de fumaça. Com o cheiro da pólvora
começamos a espirrar, e aproveitei logo esse recurso, espirrando e
fazendo o Domenico espirrar, em tons diferentes e em pontos diferentes…;
e vá tiro!

Com essa hábil manobra sucedeu o que eu previa: os bandidos julgaram
que havia muitos defensores entrincheirados dentro da casa – pudera! tanto
espirro e tanto tiro! – e rasparam-se, carregando os mortos e feridos, que
deviam ser muitos, pelos meus cálculos.

Suspendemos o tiroteio; tranqüilamente acendi um cigarro no cano da
pistola, que estava em brasa. E como não havia mais perigo urgente,
resolvemos deixar o exame do local do combate para de manhã. Acendemos
a candeia e resfrescamos as armas.

O gringo apertou-me a mão, calorosamente agradecido, e declarou-me,
a queima-roupa.

— Dopo mafiana voi no mangerete piü linguice in questa casa mia…

E foi soltar a sua gente.

Julguei que com o susto o coitado estivesse variando.

Deitei-me e dormi até sol alto. Apenas desperto lembrei-me do assalto
noturno e saltei do catre para ir ver os estragos que houvesse.

O terreiro apresentava enormes manchas de sangue, além de pequenos
regatos onde ele estava empoçado, coalhado, e espalhados pelo chão
(que o Domenico deixara para eu ver – e que os bandidos perderam por ter sido
a noite muito escura) encontramos uns quantos dedos de mão, vários
pedaços de nariz e de orelhas, três retalhos de bochechas, alguns
bocados de miolos arrebentados e chamuscados pelas buchas, uma tampinha de
joelho, um pé inteiro, atorado pelo tornozelo, ainda calçado
com o pé da bota e a espora, e muitos outros vestígios da carnificina
que haviamos feito, aliás sem esperar aquele montão de avarias.
Enterramos aquela pedaçaria pondo-lhe uma cruz ao lado!

Fomos almoçar. Tive então, e clara, a explicação
da frase do Domenico, na véspera: não havia lingüiça
à mesa!

Galinha ensopada, uma paleta de ovelha, assada, e canjica de milho branco.
Era uma novidade completa! Verdade que eu não estava almoçando
na mesa do boliche e sim na da família do gringo.

Ele, então, abriu-se:

— Voi, qui, non mangerete piú linguiza. Vi diró perché
e solo a voi, per gratitudine!.

E disse-o, assim, que eu repito em língua de gente, por não
obrigar ninguém a traduzir:

— "Signor" Romualdo, já reparou como comem os diversos
animais?

— Não, Domenico!

— Repare, "Signor", e curioso e instrutivo, O gato, come
devagar, esparramando a comida, escolhendo, catando, jeitosamente pegando,
largando o pedaço; o porco, atola o focinho no cocho, mastiga tudo,
misturando, batendo a queixada, babando-se, roncando; o boi, deita de lado
a língua, para apanhar o pasto; o cavalo, corta-o, delicadamente; a
galinha vai de ponta de bico; o urubu, a bico e unhas, estraçalhando…
mas o cachorro! o cachorro! … come esganado, sôfrego, às bocadas,
tudo inteiro, sem mastigar! Parece que em vez de meter a comida dentro de
si, parece que ele é que se quer meter pela comida adentro. "É
vero, Signor?"

— Sim, Domenico, é assim mesmo!

Ebbene! Aqui os vizinhos todos lastimam-se por causa do cachorro chimarrão;
eu, não, ao contrário: gosto! Poupo muito trabalho, "Signor"
Romualdo. É com eles que faço as lingüiças para
os andantes.., mas deles, não é a carne que eu quero, "Signor",
são as tripas. Dellcate, fine, mervegliose!"

É assim:

O cheiro das fritadas atrai muito os cachorros baguais; vai então,
por isso, lá dentro do galpão penduro um pedaço de lingüiça
frita de bom tamanho, e bem alto, para eles não lhe chegarem. Vem o
primeiro farejando, outro e mais outro vem; enfim dezenas de cachorros vão
chegando, apenas no ar o cheiro da fritura anda voando! …

Quando o galpão está cheio, fecho a porta e começo a
laçar os cachorros e ponho-os todos na corrente, cada um no seu palanque,
lá detrás da horta.

Comida, nada; água, sim, à vontade. Assim, durante uma semana
os vou limpando perfeitamente; aquelas tripas ficam que nem resma têm,
mais… perfeitissimamente limpas.

Nas vésperas de um precisar, só então começo
a dar água com sal, uma salmourita leve, para manter o apetite…

Enquanto isso, mato os porcos, as ovelhas, ou as vaquilhonas, conforme a
conta, isto é, conforme os cachorros que tenho em compostura, isto
é, conforme a quantidade de varas de tripa que calculo em cada um,
conforme o respectivo tamanho:

Bem, carneio as reses, pico toda a carne, tempero-a e deixo ficar uns dias,
para tomar gosto, cada porção separada para cada cachorro, conforme
o tamanho, na competente gamela.

A tudo isso, nos bichos, salmourita fraca!

No dia marcado para a fabricação, vou levando as gamelas e
pondo em frente de cada chimarrão.

"Per la madonna! Signor Romualdo!" aquilo é em dois tempos!…
Uhn! … uhn! … uhn! … e zás! come, que comer inhact! inhact! …
às bocadas, aos punhados, ao montões, sofregamente, esganadamente,
inteiro, sem respirar, às goladas, sem provar nem mastigar nada! É
uma cachoeira pra dentro!

Mal o chimarrão acaba de engolir e pega a lamber a gamela, então
aproveito a ocasião…

Mato o cachorro! abro-o, amarro as duas pontas – o principio e o fim – da
tripa… e pronto, tenho uma lingüiça bem-feita, grossa, parelha,
e que me não deu trabalho nenhum para encher…

Depois é pôr na vara a orear e ir cortando os pedaços
para fritar, conforme o número de gente a servir, e pra bonito, enfeitar
sempre com ovos estrelados por cima. É "meraviglia!"

Tive, a modo, uns engulhos, e tratei de montar a cavalo.

Aquele gringo … aquele gringo era das Arábias!…

A morte do Gemada

Ah! descuidos! descuidos! … Quanta desgraça, quanta perda, quanta
tristeza eles causam.., e a gente não se emenda, sempre a cair neles!

Por um descuido tive já um grande desgosto. Foi assim:

Andávamos numa caçada de tatus.

Havia muito.

Para não perder tempo a cavar o buraco até tirar o tatu, e
enquanto cuida-se de um, outros escapam-se, eu usava assinalar as tocas: a
primeira, a segunda, etc. e assim por diante as que encontrava ocupadas, de
forma que num momento garantia seis, oito, dez tatus.

Para assinalar o processo é simplíssimo: achado o tatu, cava-se
um pouco, até descobrir-lhe a cauda, e então, com uma embira
ou cipó, amarra-se na dita cauda uma estaca, formando cruz. E pronto.
Larga-se. O tatu procura logo cavar pra diante, é claro, mas não
avança, que a cruz do rabo, ficando atravessada na boca da toca, não
deixa.

Percebem?

Experimentem:não nega fogo!

Pois um dia, não tendo à mão uma estaca, e para não
perder tempo, amarrei pelo rabo um enorme tatu ao cabresto do meu estimado
cavalo baio, o Gemada.

O tal senhor tatu foi cavando…, cavando… entrando terra adentro: o cavalo,
muito dócil, sentindo-se puxado, cedendo e foi indo…

E o tatu foi penetrando … e o cavalo foi cedendo.

A boca da toca era grande; o Gemada, muito manso, meteu o focinho, a cabeça,
lá dentro; o tatu puxou mais e o cavalo cedeu, ainda. Quando não
pôde ceder mais, e justamente por isso, o tatu fez ainda maior finca-pé.
Quem é caçador sabe que força tem no rabo o tatu…

Travou-se por certo luta renhida: o cavalo puxando para fora e o tatu para
dentro.

Quando voltei ao lugar encontrei o meu Gemada sufocado, asfixiado, morto,
com a cabeça como uma rolha metida no gargalo da toca! … E ainda
perdi o cabresto, que tive de cortar.

Quase um ano depois, vim a pegar aquele mesmíssimo tatu, que conheci
porque ainda trazia de arrasto o dito cabresto… apenas com as argolas mui
gastas de roçarem pelo chão. Uma cousa de admirar foi o bem
atado que ficou; verdade que fiz – como de costume – um nó de soga,
a preceito, legítimo nó de Romualdo!

Essência de cachorro

(novo método para caçar)

Arrotam os europeus grandes fumaças de sabedores em cousas de caçadas;
mas como de presunção e água benta.., deixá-los
lá.

O que têm eles, de bichos caçáveis – graúdos ou
miúdos – mais ou melhor que nós outros?

O javali? Ora qual! O javali é como o nosso porco-do-mato.

O urso? Deixa! O urso de lá é como o… tamanduá-bandeira,
nosso.

Têm eles a onça, o jacaré, a sucuri, o bugio? Nem sombra
disso.

A perdiz? Sim, têm a perdiz, mas é preciso notar que a perdiz,
lá, é quase criada como as nossas galinhas, em cercados. E não
têm o perdigão, o perdigão soberbo, que salta no vôo,
encastela no ar… paira um momento, e logo desfere numa flechada comprida,
para o pajonal…

A marreca? Vá lá, têm marreca… porém marreca
de tanque, nascida e criada atrás das casas, quase a comer milho na
mão! … Mas não têm, nem tiveram, nem terão nunca
as nossas bandadas de marreca assobiadeira, de marrecão do banhado,
nem o maçarico-carão, que voa em fileira, como soldados em forma.
Afora o alho!

E é engraçado: não têm caça … mas cachorros,
matilhas, têm em quantidade e regularesinhos. Foi sempre o que achei
esquisito: cachorrada imensa, para caça vasqueira.

Pode lá ser também um luxo daqueles duques e barões
e outros topetudos de dinheiro.

Eu, por mim, nunca me embaracei para caçar – de pêlo ou de pena
– por causa de cachorro. E já agora, que vivo arredado desses prazeres,
por motivo de muitos encargos de outra espécie, resolvi revelar e ensinar
aos meus confrades em venatória o processo que usei e que pareceu maravilhoso
a muitos sujeitos mestres, caçadores provados, porém aos quais,
sempre – desbanquei com facilidade.

Eles ralavam-se, mas qual! … ficavam sempre na culatra!

Esse segredo eu o aprendi com um índio velho, em Goiás, quando
por lá andei em busca do… Não digo agora a busca de quem,
porque é também outro segredo, que não posso por enquanto
revelar.

Pois o velho caboclo tomou-se de particular simpatia por mim, porque ensinei-lhe
três cousas, novíssimas, e para ele, de alto mérito.

Ensinei-o a fumar charuto, e como logo mostrou-se um apaixonado pelo "tarbuco",
ensinei-o também a fazê-lo, com aquele magnífico fumo
goiano, muito superior ao havano, que tem mais fama que valia. Os nossos charutos
não saíam lá grande cousa quanto ao feitio, mas de qualidade
eram especiais. Punhamos-lhes anéis de folhas várias, coloridas
com diferentes sumos e colávamos as capas com resina de benjoim, que
é perfumosa.

Eram deliciosos os nossos charutos, principalmente depois de um regalado
almoço de mocotó de onça, sucuri moqueada, picadinho
de tromba de anta e rins de jacaré assados no espeto! E disso caçávamos
todos os dias. Ainda hoje, crio água na boca ao recordar aqueles petiscos

Segundo: ensinei ao caboclo a fazer "omelettes". Cortava-me a alma
o ver aquela gente perder ovos preciosos, chupando-os crus, como os lagartos,
ou comendo-os assados no borralho. Ensinei então a fazer "omelettes".
Batia as claras e logo as gemas em uma casca de tartaruga; em outra casca
derretia banha de paca (que é finíssima) e dava o ponto, virando
com duas espinhas de tucunaré, que é um peixe deste tamanho!
… Tostava com uma pedra em brasa e adoçava com mel.

O caboclo pelava-se pelo prato… digo, pelo casco de "omelette";
e as caboclas – modéstia à parte – traziam-me nas palminhas…

Terceiro: ao referido caboclo também ensinei a pregar botões
na roupa.

Em troca desses serviços foi que o cacique, por sua vez, ensinou-me
o precioso segredo que ao depois assegurou-me sempre a vitória em toda
e qualquer caçada em que tomei parte e cuja conta perdi.

Disse o pajé:

— Branco, tu és o Romualdo! Tu tens o que chamas espingarda
e facão tu tens, e tu, coragem tens! Mas, tens também cachorros,
muitos; e Tupã só se alegra de fornecer caça aos guerreiros,
mas não às alimárias do guerreiro!

"O mosquito também pode matar a anta, porque o mosquito é
muitíssimo e a anta, uma só, e o muitíssimo mosquito,
que é pequeno, vence a anta, que é forte, porém sozinha!
E a piranha, que é pequenina, também come o mais valente guerreiro,
porque é muitíssima."

"Portanto, branco, é cobardia ter muitos cachorros para caçar
um bicho só, seja qual for. Ouve, Romualdo! Atenta nas palavras da
minha boca. Tupã te fala de dentro da minha cabeça. Atenta,
branco!"

"Todo bicho tem sua catinga, que é o seu cheiro, como as flores
têm o seu perfume. A catinga de cada bicho é sua só, e
nenhum outro tem-na igual. Ouve, branco: e os bichos conhecem os seus iguais
e os seus inimigos só pela catinga, o bicho levanta o focinho pra catinga
do outro bicho, e já conhece o perigo ou a paz."

Mas bicho sempre é bicho e o homem vence-o sempre, porque tem o hálito
de Tupã dentro da sua cabeça. Ouve, branco …

E na sua linguagem difusa, cheia de imagens, o caboclo falou horas esquecidas,
dando a explicação da matéria.

É complicadíssimo o processo, mas isso explica-se pela dificuldade
que o indígena tem de preparar os meios de que carece.

Posto, porém, em pratos limpos, para nós, civilizados, é
facílimo.

Por exemplo: o caçador vai para o mato com dez cachorros; de repente
estes farejam… onça. Portanto – catinga de onça. A onça,
por sua vez, também fareja os cães: portanto – catinga de cachorro.

Temos, pois, catinga contra catinga… Porém a onça, sendo
uma, a sua catinga é menor que a dos cachorros, que são dez.
Ora, aqui está a chave da receita.

Partindo desta regra, que é infalível, compreende-se desde
logo o mistério. Basta o caçador dispor de algum recurso pecuniário
para preparar as essências.

As essências, isto é:

O caçador onceiro tem de comprar uns duzentos cachorros onceiros…,
escolhe e separa o melhor de todos eles para – figura – mata todos os outros
e jeitosamente extrai a cada um a respectiva catinga.

Então, quando for ao mato oncear, leva apenas o cachorro – figura
– para farejar e levantar o inimigo; no que o cão acuar, o caçador
derrama-lhe no cogote sete gotas da essência da catinga dos duzentos
cachorros… A onça, que de começo farejou um só cão
inimigo, já sente agora a catinga dos duzentos… e desanima, acobarda-se,
fica como uma ovelha; o caçador então pode chegar-se e sangrá-la,
ou mesmo, se for destro, amarrá-la das quatro patas … O bicho fica
entregue… Está sob a impressão do terror de um cerco de duzentos
cachorros… talvez até sinta as dores de já estar despedaçado
aos golpes de tantos mil dentes… e, adeus! … resistência! Era uma
vez – uma onça…

O mesmo processo, ainda aperfeiçoado por mim, empreguei para a caça
do veado, da avestruz, da perdiz, do tatu, etc.

O veado, perseguido pelo – figura veadeiro – (este, já se sabe, molhado
com a essência de catinga de veadeiros) o veado, digo, não dispara
quase, ilude-se pelo faro, julga-se acossado por dezenas de veadeiros… desanima,
julga-se estraçalhado, morto, e então o – figura – aproveita
e subjuga-o facilmente.

A avestruz também não corre; embalde ela vê que o cachorro
que a persegue – o figura – é apenas um… mas a estúpida fareja
muitos – na catinga do avestruzeiro -e… faz as mesmas cousas que o veado,
e deixa-se prender.

A perdiz, da mesma forma: como que se sente rodeada de perdigueiros; que
o campo está coalhado de perdigueiros… e que, tendo vôo curto,
não poderia transpor a zona dos inimigos…

E… enfim, nem preciso pôr mais, na carta. Como se vê, por este
processo, praticam-se prodígios, e como não sou egoísta
aí deixo a receita do famoso – sistema Romualdo -que tantas invejas
e calúnias acarretou ao humilde descobridor.

O dia das munhecas

Fui sempre um homem metódico, cuidadoso das minhas contas e cauteloso
nos negócios em que me envolvo. Não gosto de correr à
aventura e menos assentar a minha barraca sobre a areia.

No decurso das minhas viagens, ora de prazer ora de estudo, observei que
o negócio das tartarugas do Amazonas era um negócio… da China!

As cascas ou os cascos (não sei como convém dizer) das tartarugas,
valem um dinheirão; a carne, em sopa, vale outro dinheirão,
dos ovos faz-se uma espécie de manteiga, que vale um dinheirão
ainda maior que os outros dois.

Resolvi, pois, fazer alguns cálculos preliminares e jogando com os
algarismos – e todos sabem que os algarismos não mentem – cheguei a
este resultado, satisfatório para um indivíduo modesto, como
eu, Romualdo, prezo-me de ser.

Para fundar o estabelecimento adquiriria 1.000 tartarugas prontas a pôr;
cada tartaruga, de cada assentada, desova 400 ovos ou sejam 400.000 para a
primeira ninhada. No segundo ano, outros 400.000 ovos; no terceiro ano, as
primeiras 400.000 tartarugas novas já começariam a pôr,
na razão de 400 ovos cada uma, ou sejam 160.400.000 ovos para o choco
do quarto ano; e assim, sucessivamente multiplicados e somados, tiradas as
provas dos noves, os algarismos patenteavam que ao cabo de sete anos eu teria
um viveiro de 7.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000 de tartarugas,
e que daí em diante, com vigilância e economia, começaria
então eu a desfrutar em manteiga de ovos, sopa e cascas (ou cascos)
um regular rendimento, justa compensação do rigor do meu jogo
de algarismos.

Isto assim assentado, parti para o Amazonas; fretei um pequeno navio e segui
rio acima, munido de todo o necessário, inclusive muita lata de sardinha,
pó de mosquito e uma grosa de garrafinhas de óleo de rícino.

Arrendei uma praia de desova e fiquei cinco meses à espera das tartarugas.

Enquanto isso, ia verificando os cálculos antigos e fazendo novos.

Um dia reuni todos os tabaréus daquela redondeza e expus-lhes o grande
plano, propondo-lhes associarem-se comigo, tomando nós outras praias
de 1.000 tartarugas a 400 ovos cada uma, no primeiro ano, 400.000 no segundo,
etc.

Os tabaréus ficaram pasmados: de olhos parados, boca aberta… apenas
coçavam o queixo ou a orelha ou a nuca… Era a força dos algarismos
que os achatava.

Apenas um deles, cearense, magrinho, mascador de fumo, amarelo chumbado como
um bacalhau seco, apenas o cearense, puxou as barbichas do queixo, cuspinhou
preto e disse, pausado:

— Eh! Eh! A conta que mencê faz, é bonita! Sim, sr…
e um contão! Mas porém o jacaré não deixa ela
dar esse espicho de sernambi, nhor, não!

— O jacaré?!

— Nhor sim, o jacaré! Ele come mais tartaruga do que a que nasce!
…Jacaré e regatão… cruz! Até parecem irmãos
gêmeos, de tão excomungados!

— Mas então o jacaré…

— O jacaré come tudo, patrão. Come todos os seus "garismos";
come pau, come pacu, come gente, e até o maior come o mais pequeno!
"Tou" dizendo!

— Pois sim, mas o jacaré mata-se … acaba-se com ele!

— Ah! mencê sabe acabar com ele, então, sim! … Mas,
porém, patrão … Enfim mencê é homem "estruído",
há de saber …

No dia seguinte, começou a correr a voz que eu tinha jurado a matança
dos jacarés do Amazonas e… coincidência ou pirraça,
a minha praia começou também a ficar apinhada, amontoada, estivada,
forrada de jacarés, de todo o porte.

Os tabaréus comunicaram-me que as tartarugas estavam a chegar, não
tardariam para a desova, e que o sinal certo era aquele, dado pelos jacarés,
que se preparavam para a carniça.

E cada manhã mais jacaré aparecia; já se empilhavam
uns sobre os outros; formavam pencas, cachos.

— As tartarugas já chegaram – dizia o cearense – mas não
sobem por causa deles.

— Ah! sim! bradei. Pois já amanhã limpo a praia! Não
vê que Romualdo erra contas por causa de jacarés! … Era só
o que faltava!

Ao clarear do dia, antes do sol, chamei o cearense. Cada um meteu no bolso
meia vara de lingüiça frita e bolachas e pôs em bandoleiras
uma cabaça d’água. Armas, apenas duas machadas, afiadas, marca
XPTO.

Tomamos a montaria, uma igara grande e forte,o e vogamos até meio
rio. De pé na canoa, bem em frente à nossa praia, começamos
a observar para resolver como e por onde começaríamos o ataque.

Nisto, à minha direita, surgiu uma cabeça monstruosa, de jacaré
velho, velhíssimo, tanto tinha os olhos enrugados. Surgiu a cabeça
esgoelada e logo o corpanzil atirou-se para a embarcação; sentimos
o bruto embate e imediatamente as munhecas do jacaré firmaram-se na
borda da canoa, como para virá-la, de borco.

Aí, confesso, descuidei-me um pouco, não de medo, porque jacaré
não me assusta, mas de pura piedade; porque vi que a fera -talvez arrependida
– chorava, chorava a lágrimas grossas …

— Vai-te, bicho! bradei.

— Mencê corte! gritou o cearense. O bicho chora por falso…
Corte!

Num relâmpago lembrei-me das lágrimas de crocodilo, o que sempre
julguei que fosse preta.., mas, não é, não: agora vi
o jacaré chorar.

Travei da machadinha e paf! – fora, munheca de jacaré!

Imediatamente outro grandalhão surgiu ao lado do cearense; – paf!
– bateu-lhe em cima a machada e as munhecas rolaram para o fundo da canoa.

O meu atacante foi ao fundo, o outro também.

Porém – que horror! – começou então o combate, como
eu não esperava. Era jacaré sobre jacaré, uns após
outros, em fila, aos três, aos pares, em grupos, todos abordando a canoa,
esforçando-se por virá-la.

E nós, decididos, atentos, era só – paf! paf! – e corta que
corta munheca e focinho e rabo de jacaré.

Em torno a água fervia como numa caldeira: era o bicharedo ferido,
que se amontoava e revolvia furioso; nas praias outros agitavam-se, alarmados;
e longe, nas barrancas, a minha gente. assistia àquilo, bestificada
de admiração.

E nós, tranqüilamente, era só – paf! paf! – e corta que
corta munheca!

A certa hora notei que tinha fome. Pudera, com aquele exercício! …
E já familiarizado com o inimigo, com uma mão ia decepando munhecas
e com a outra tirei do bolso a lingüiça e a bolacha e fui comendo;
e bebi água à minha vontade.

Mas sempre – paf! paf! – cortando munheca, porque os jacarés não
diminuíram.

Com o exemplo o cearense fez como eu. Quando foi pelo meio-dia, eu já
não enxergava mais o companheiro, pois que entre nós elevava-se
uma pilha de munhecas, de mais de braça de altura.

Ouviamo-nos, mas não nos víamos.

Tendo almoçado fartamente, suando um pouco, sofrendo o calor e habituado
à minha sesta, comecei a abrir a boca e a piscar os olhos, sonolento.

Então gritei ao cearense:

— Chega! por hoje, basta! Vamos para terra!

E para nos divertirmos e aliviar a canoa, fomos atirando munhecas cortadas
para dentro das goelas dos atacantes. Pegaram a brigar uns com os outros e
esqueceram-se de nós. E vá! e vá! demos-lhe um fartão.
Enquanto eles se disputavam a carniça, abicamos na praia, e com lástima
verifiquei que, de tanto golpe, tínhamos atorado a canoa pelo meio:
dela só restava a proa, onde remava o cearense, e a popa, onde eu rabeava
o leme; as machadinhas, essas estavam como meias-luas, desgastadas de tanto
cortar munhecas!

Fosse pelo que fosse, já nessa noite poucos jacarés foram vistos
sobre as areias da praia; no dia seguinte, menos ainda. Depois desabou uma
cheia colossal do rio, inundou tudo e tudo levava na correnteza.

Tive que abandonar o meu estabelecimento, não pelos jacarés,
mas por força da enchente, justamente quando devia começar a
desova das tartarugas.

Ainda hoje, nas praias do Amazonas, quando estes ferozes bichos aparecem,
basta que alguém – uma criança, uma mulher – basta que alguém
grite: – Jacaré, olha o Romualdo! – e a fera, acobardada, envergonhada,
desmoralizada pela lembrança daquela esfrega, foge, foge, a sete pés!

— Jacaré! Olha o Romualdo!

Ataque de marimbondos

Certa ocasião tinha eu ido caçar uns tatus-rosqueira. Lindo
dia: céu azul, sol a pino, nem nuvens, nem ventos, aragem branda.

Havia já sangrado uns quantos tatus e agora divertia-me a ver os restantes,
cujas caudas eu destorcera, ocupados em atarraxarem-se novamente.

Estava, pois, mui quieto, moita, ativo apenas de olhos… Eis quando, adiante,
vejo alguma cousa estranha: uma como nuvem escura, que subia e descia, alongava-se,
adelgaçava-se, adensava-se… Pé ante pé, fui me aproximando.
Houve então um confuso zumbimento irritado, forte, e, com extraordinária
surpresa, verifiquei que era um colossal enxame de marimbondos!

Camoatins dos de barriga riscada, uns de grande ferrão, os mais ferozes
que conheço. E, deitado no chão, tranqüilamente dormindo,
um homem. Sujeito gordo, claro, muito ruivo.

Contra o meu hábito, fiquei embaraçado para tomar uma decisão.

Acordar o homem?

Sim… mas no ele mover-se, aquele perigoso exército de camoatins
caia-lhe em cima e deixava o infeliz como um crivo, a poder de ferroadas!

Deixá-lo dormir? Mas, e depois? …

A massa dos marimbondos crescia cada vez mais. O camoatim – a casa – que
se via num galho da árvore que abrigava o ruivo, não podia comportar,
era pequeníssima para tantos habitantes como os que revoavam por sobre
o dorminhoco.

Reparei então que toda aquela massa escura e movediça dividia-se
em lotes, que se não misturavam nem confundiam… Naturalmente o povo
camoatim ameaçado passou aviso aos vizinhos mais de perto e cada um
mandou um destacamento para reforçar a defesa comum.

Mas por que não atacavam eles? Por que não caíam sobre
o homem, quando se sabe que camoatim não observa cerimônias para
travar e ferrão em quem quer que seja?…

Ao contrário, parecia que eles hesitavam, consultavam-se…

Nisto apareceu uma outra nuvem de marimbondos, dos amarelos …

Xi Deus! Era mangangás, estes, os temíveis mangangás
amarelos, cuja picada dói… dói.., dói desde a véspera
até o dia seguinte!

Compreendi, então: os camoatins, habituados só com a nossa
gente – morena e de cabelos pretos – estranhavam e desconheciam aquele claro
e ruivo. Temeram talvez que fosse algum mangangá colossal, e para certificarem-se
chamaram aquele piquete de amarelos.

Os mangangás, para começar o exame, puseram-se a passear sobre
a cara do adormecido; fizeram-lhe cócegas no nariz: ele soprou-lhes;
mexeram-lhe nas barbas: ele abanou-os com mão incerta…

Eu estava pasmo, apreciando a inteligência daqueles insetos … quando
o pau a que achava-me encostado estalou … faltando-me o apoio quase cai..,
e as ramas, violentamente sacudidas, bateram nos marimbondos…

Camoatins e mangangás viram-me, conheceram que eu era patrício
– pela cor e pelos cabelos – e caíram-me em cima como uma chuva batida
do vento!

Nessa emergência, com o sangue frio que nunca me abandona, corri para
a fogueira que havia feito, e onde, por boa sorte, na ocasião, fervia
a água que eu trouxera, para chimarrão.

Agarrei a chaleira, destampei-a, meti dentro a bomba do mate, e chupando
grandes goles de água fervente, tornava logo a expeli-los, pela própria
bombinha, com força, em forma de chuveiro regador; assim arranjei uma
verdadeira defesa de água quente contra aquele horrível ataque.

Esta manobra deu-me uma ligeira folga, que aproveitei soprando o fogo até
puxar labareda e atirando-lhe em cima umas braçadas de gravetos e ramas,
que logo incendiaram-se, produzindo uma fumaçada espessa. Era tempo…

Quando o bicharedo voltou à carga, já topou com a parede de
fumaça. Então apanhei mais umas ervas secas, prendi-lhes fogo
e corri em socorro do homem ruivo, que dormia ainda.

Acordei-o a gritos e vim-no trazendo são e salvo, dentro da fumaça,
cercados ambos por urna muralha viva de camoatins e mangangás enfurecidos…

E entre o fatigante trabalho de arranjar faxina para manter a fumaceira,
que seria a nossa garantia única contra os ferrões daqueles
marimbondos, suando em bica, espinhados, com fome e com sede, fui explicando
ao companheiro o perigo a que ele escapara, graças a mim, e de que
não me escapei eu, graças a ele…

O alemão – era alemão, o ruivo – agradecia comovido.

Labutamos toda a tarde; ao escurecer, foi abrandando o ataque, e por fim
só noite fechada conseguimos retirar.

Pensei então em levantar os tatus que havia morto e ao mesmo tempo
tomar o meu casaco e poncho-pala, que havia estendido ali perto, nuns galhos.

Caso esquisito!… Os tatus mortos, uns quinze, mal lhe toquei, desfizeram-se
por completo… estavam reduzidos a farelos, de tantas ferroadas que levaram;
o pala e o casaco, esses, então (periga, mas é verdade o alemão
viu tão bem como eu!) o casaco e o pala, ia pegá-los e eles
desfaziam-se; tocava-lhes, eles esfarinhavam-se; sacudi o galho, desfizeram-se
em pedacinhos, como um bolinho de polvilho; como cinza! …

Atinei, então.

Os marimbondos, não podendo ferretoar-me e ao alemão, por causa
da fumaça, em vingança estragaram a caça e a roupa.

O alemão, esse, estava apavorado!

— "Pichiches prapes, hein, Romualte! .. dizia ele.

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