Encarnação – José de Alencar

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José de Alencar

CAPÍTULO 1

Conheci outrora uma família que morava em São Clemente.

Havia em sua casa agradáveis reuniões de que fazia os encantos
uma filha, bonita moça de dezoito anos, corada como a aurora e loura
como o sol.

Amália seduzia especialmente pela graça radiante e pela viçosa
e ingênua alegria que manava nos lábios vermelhos como dos olhos
de topázio, e lhe rorejava a lúcida beleza.

Sua risada argentina era a mais cintilante das volatas que ressoavam entre
os rumores festivos da casa, onde à noite o piano trinava sob os dedos
ágeis da melhor discípula do Amaud.

Acontecia-lhe chorar algumas vezes por causa de um vestido que a modista
não lhe fizera a gosto, ou de um baile muito desejado que se transferia;
mas essas lágrimas efêmeras que saltavam em bagas dos grandes
olhos luminosos, iam nas covinhas da boca transformar-se em cascatas de risos
frescos e melodiosos.

Tinha razão de folgar.

Era o carinho dos pais e a predileta de quantos a conheciam. Muitos dos mais
distintos moços da corte a adoravam.

Ela, porém, preferia a isenção de menina, e não
pensava em escolher um dentre tantos apaixonados que a cercavam.

Os pais, que desejavam muito vê-la casada e feliz, sentiam quando ela
recusava algum partido vantajoso.

Mas reconheciam ao mesmo tempo que formosa, rica e prendada como era, a filha
tinha o direito de ser exigente; e confiavam no futuro.

Outra e bem diversa era a causa da indiferença da moça.

Amália não acreditava no amor. A paixão para ela só
existia no romance.

Os enlevos de duas almas a viverem uma da outra não passavam de arroubos
de poesia, que davam em comédia quando os queriam transportar para
o mundo real.

Tinha sobre o casamento idéias mui positivas.

Considerava o estado conjugal uma simples partilha de vida, de bens, de prazeres
e trabalhos.

Estes, não os queria; os mais, ela os possuia e gozava, mesmo solteira,
no seio de sua família.

Era feliz; não compreendia, portanto, a vantagem de ligar-se para
sempre a um estranho, no qual podia encontrar um insípido companheiro,
se não fosse um tirano doméstico.

Estes pensamentos, Amália não os enunciava, nem os erigia em
opiniões. Eram apenas os impulsos íntimos de sua vontade; obedecendo
a eles, não tinha a menor pretensão à excentricidade.

Ao contrário, como sabia do desejo dos pais, aceitava de boa mente
a corte de seus admiradores. Mas estes bem percebiam que para a travessa e
risonha vestal dos salões, o amor não era mais do que um divertimento
de sociedade semelhante à dança ou à música.

Conservando a sua independência de filha querida e moça da moda,
Amália não nutria prejuízos contra o casamento, que aliás
aceitava como uma solução natural para o outono da mulher.

Ela bem sabia, que depois de haver gozado da mocidade, no fim de sua esplêndida
primavera, teria de pagar o tributo à sociedade, e como as outras escolher
um marido, fazer-se dona de casa, e rever nos filhos a sua beleza desvanecida.

Até lá, porém, era e queria ser flor. Das suas lições
de botânica lhe ficara bem viva esta recordação, que o
fruto só desponta quando as pétalas começam a fanar-se;
se vem antes disso eiva.

Esta moça pertencia a uma variedade de mulher, que se pode bem classificar
como o gênero rosa. São elegâncias que só florescem
bem no clima ardente do baile, ao sol do gás. A luz é a alma
de sua formosura. Na sombra desfalecem e murcham.

Amália vivia no salão; só o deixava para repousar. Seu
dia era a noite com os lustres por astros. Quando em toda a cidade não
havia divertimento algum que a atraísse, ela passava a noite em casa;
mas com o seu piano, o seu contentamento e a sua graça improvisava
uma festa.

A volubilidade desse gênio não era, como alguns supunha, efeito
de uma alma fria, indiferente e egoísta. Enganavam-se aqueles que viam
na filha do Sr.Veiga uma dessas moças embotadas pela vida precoce da
sala.

Ao contrário, ou pela severa educação que recebera,
ou por tardio desenvolvimento, Amália conservara-se criança
além do período natural da infância. Aos dezessete anos
ainda se lembrava de suas lindas bonecas, bem guardadas em uma cômoda,
onde as conservava como recordação da meninice; e mais de uma
vez aconteceu-lhe no dia seguinte a um baile representar ao vivo com essas
figuras de cera e cetim as quadrilhas que dançara.

Quando o coração menino dessa moça elegante e espirituosa
pulsou pela primeira vez, já tinha ouvido tantas vezes declarações
e protestos ardentes, que não passavam para ela de uma linguagem polida
e lisonjeira, adotada na sociedade.

Gabar-lhe a beleza, ou elogiar-lhe o vestido, era a mesma fineza. Quando
um dos seus apaixonados animou-se o primeiro a dizer-lhe com a voz trêmula
que a amava, ela o ouviu calma, sem a menor emoção, como se
lhe falassem de música ou de pintura. O que lhe causou alguma surpresa
foi o esforço e turbação do cavalheiro ao proferir aquelas
palavras.

Entretanto, quem observasse a vida íntima dessa moca conheceria o
fundo de sensibilidade e temera que havia sob aquela aparência frívola
e risonha. Não só tinha amor extremoso à família
e dedicação pelos amigos, mas em certos momentos, como se a
afogasse uma exuberância do coração, cobria a mãe
de carinhos.

Alguma vez, nas horas de repouso, quando a imaginação vagueia
pelo azul, ela fazia também como todas as moças o seu romance;
com a diferença, porém, que o das outras era esperança
de futuro ardente aspiração d’alma; enquanto o seu não
passava de sonho fugace, ou simples devaneio do espírito.

Um traço singular destas cismas é que elas faziam contraste
ao modo habitual da moca, ao seu gênio. Essa natureza alegre e expansiva,
esse coração incrédulo e desdenhoso, quando fantasiava
os seus idílios, reservava sempre para si a melancolia, a abnegação
e o obscuro martírio de uma paixão infeliz.

Seria um pressentimento? Creio eu que não era senão uma antítese
natural da imaginação com o espírito. E muito freqüente
encontrarem-se caracteres joviais que têm o sentimento elegíaco,
e, ao contrário, misantropos com uma veia cômica inexaurível.

CAPÍTULO 2

Na chácara contígua à do Sr. Veiga, pelo lado esquerdo,
morava um desses homens que o povo designa com o nome de esquisitos.

Os amigos o chamavam Carlos; os estranhos tratavam-no por Sr. Hermano; ele,
porém, costumava assinar-se H. de Aguiar.

Para merecer do vulgo a qualificação de esquisito, basta às
vezes sair da trilha batida; mas o Sr. Hermano tinha com efeito hábitos
e ações que excitavam o reparo e lhe davam certo cunho de originalidade.

Não se lhe conhecia profissão; sabia-se entretanto que era
abastado, pois além da chácara de sua residência, possuía
apólices e prédios na cidade.

Sua casa vivia constantemente fechada na frente, e tinha o aspecto de uma
morada em vacância pela ausência do dono. Quem olhava pela grade
do portão, sempre trancado, não descobria outro indicio de habitação
a não ser o fumo da chaminé.

Todavia nas raras vezes em que soava a grossa campa da entrada, aparecia
logo um velho criado, todo vestido de preto, que introduzia a visita com uma
cortesia respeitosa mas fria e taciturna.

O dono da casa costumava ir à cidade três vezes na semana, para
tratar de seus negócios, ou talvez para não se isolar totalmente
do mundo de que já vivia tão apartado. Também saia de
passeio, a pé ou a cavalo pelos arrabaldes.

Certas ocasiões mostrava-se afável, polido, atencioso e expansivo,
retribuindo os cumprimentos que recebia, e dirigindo-os as pessoas de seu
conhecimento. Era então um modelo do homem de boa sociedade e fina
educação.

Outros dias estava de tal modo concentrado que passava pelas ruas como um
incógnito; não falava a ninguém; não fazia caso
das pessoas de maior consideração e a quem acatava. Se algum
amigo vinha-lhe ao encontro, recebia-o sem parar com a mascara muda e impassível
da abstração, e logo o despachava com um aperto de mão
automático.

Estas alternativas sucediam-se por fases; duravam semanas e meses. A fisionomia
denunciava logo a conjunção desse espírito com o mundo.
Havia nele, como em todos nós, dois homens, o íntimo e o social;
a diferença é que nele as duas faces revezavam-se, enquanto
que nos outros elas de ordinário são fixas e formam o direito
e o avesso do indivíduo.

Ainda mesmo nos seus dias de misantropia o semblante do Sr. Hermano era tão
modesto e sereno que ninguém via na sua desatenção orgulho
ou falta de civilidade.

Atribuíam estas desigualdades de caráter ao gênio e não
se ofendiam com elas. Em geral os vizinhos e conhecidos o saudavam sempre
cordialmente, embora ele passasse sem olhá-los.

Do que poucos sabiam, e só alguns amigos se lembravam, era da primeira
mocidade de Hermano, quando ele passava por um dos mais brilhantes cavalheiros
dos salões fluminenses. Sua graça natural, o primor de suas
maneiras, e as seduções do seu espírito, o distinguiam
entre todos como um tipo de elegância.

Eram os arrebóis dessa esplêndida mocidade que ele ainda mostrava
nos seus momentos de expansão, quando desprendia-se da constante preocupação.

Um dia, no meio de seus triunfos, quando a sua estrela mais brilhava, correu
a noticia de que Hermano estava para casar-se, o que não devia surpreender
em sua idade. Foi, porém, geral a admiração quando se
soube que D. Julieta, a moça por quem se apaixonara a ponto de sacrificar-lhe
a liberdade, não era rica nem bonita.

Ninguém esperava que ele, nas condições de pretender
as filhas dos primeiros capitalistas e de escolher entre as mais aristocráticas
belezas da corte, fizesse um casamento tão desvantajoso.

D. Julieta não freqüentava a alta sociedade; mas algumas pessoas
da creme’ a tinham encontrado por vezes em partidas familiares; e essas compreenderam
a repentina que ela tinha inspirado ao noivo.

Como estátua a moça era um esboço imperfeito, ainda
mesmo com as correções que aplica o molde de um traje elegante,
ou a feliz disposição dos enfeites.

Imagine-se que um cinzel inspirado idealizava esse esboço e dava às
linhas do perfil a harmonia que lhes negara a natureza. Tal seria, não
o retrato de Julieta, mas o tipo que sua pessoa refletia na imaginação
do artista a quem servisse de modelo.

Havia em seu olhar, em sua voz, em seus movimentos, inflexões maviosas,
mas de tão vivo relevo que se esculpiam como se tomassem corpo. Depois
de apagar-se o gesto, sentia-se ainda a sua doce impressão no vulto
a que animara.

O espírito fino, meigo e gentil de Julieta não tinha expansões
brilhantes. Era modesto, e às vezes tímido. Entretanto o que
ela dela por mais simples que fosse, trazia o calor de uma emoção
intima. Sua palavra exalava os perfumes de uma alma em flor.

Ao seu lado e conversando com ela, um homem de rigor estético poderia
esquivar-se ao enlevo que infundia a suprema distinção dessa
moça, e notar em suas feições e em seu talhe a ausência
da beleza plástica.

Mas apartando-se dela e perdendo-a de vista, raro era o que não levava
na fantasia um ideal suave e gracioso, que ofuscava a imagem das mais radiantes
formosuras de salão.

O primeiro encontro de Hermano com a noiva explica bem a influência
que ela devia exercer em sua vida.

Ao sair do teatro lembrou-se do convite que recebera para uma partida em
casa de pessoa de sua amizade, a quem devia atenções. Dirigiu-se
para lá, com a intenção apenas de fazer ato de presença.

Quando entrou no saguão, cantava uma senhora a ária da Lúcia
de Lammemor. A voz, que não era extensa, comoveu-o. Parou para escutar;
e viu desenhar-se em seu espírito a imagem esbelta e vaporosa da virgem
que o amor enlouquecera.

Terminado o canto, subiu. Havia na sala muitas senhoras algumas de seu conhecimento,
outras que via pela primeira vez. Notou entre estas uma moça alva,
de cabelos negros; era Julieta. Sem que lho dissessem, por uma rápida
intuição adivinhou que fora ela a intérprete inspirada
da música de Donizetti.

Teve pois uma decepção. Ele imaginara sempre uma Lúcia
loura como a filha das nevoentas montanhas da Escócia; e vinha achar
a sua cópia em um tipo tão oposto.

Hermano demorou-se mais do que tencionara; ficou até o fim da partida.
Por mais de uma vez aproximou-se de Julieta e conversou com ela. Quando se
recolheu, cantava mentalmente o Bell’anima, que ouvira executado por Mirati;
e pensava que talvez Lúcia apesar de escocesa, tivesse cabelos pretos
como a Maria Stuart de Walter Scott .

Julieta era filha de um coronel reformado de nosso exercito, que servira
por algum tempo em Goiás. Na sua primeira expedição para
aquela província acompanhou-o a mulher apesar de estar mui próxima
a dar à luz. A menina nascera em viagem.

Uma escrava que o oficial trazia, fatigada das jornadas, mal podia acudir
à senhora.

Foi pois o furriel Abreu que serviu de ama-seca a menina, e tal amizade tomou-lhe
que não quis mais separar-se dela. Completando o tempo de serviço
obteve baixa e ficou em companhia do oficial agregado

Hermano freqüentou a casa do coronel Soares. Pouco mais de mês
depois do seu primeiro encontro com Julieta manifestou-lhe os seus sentimentos,
que aliás já eram conhecidos da moça, e pediu-lhe um
consentimento, que tinha razão de esperar.

Ela ficou um momento pensativa; depois disse com o tom grave de uma convicção
profunda:

– O casamento é uma fatalidade.

Como Hermano interrogava-lhe o semblante para conhecer o sentido de suas
palavras, ela acrescentou:

– Meu marido há de pertencer-me de corpo e alma, como eu a ele, e
para sempre. É assim que entendo o casamento.

– Penso da mesma maneira.

– Para sempre é eternamente.

– Compreendi todo o seu pensamento, Julieta. e não imagina o meu júbilo
por encontrar tão perfeita identidade de sentimentos na mulher a quem
amo. Sempre acreditei que o casamento não deve ser uma simples união
social, mas a formação da alma criadora e mãe, da alma
perfeita, de que nós não somos senão as parcelas esparsas.
Essa alma uma vez formada, só Deus a pode dividir e mutilar.

O casamento realizou-se pouco tempo depois; e os noivos foram morar na casa
de São Clemente, a qual tinha sido preparada com esmero para recebê-los.

Abreu acompanhou sua filha de criação. Ele a tinha recebido
em seus braços ao nascer, e contava não deixá-la senão
quando Deus o chamasse.

CAPÍTULO 3

Aquela casa de São Clemente foi para os noivos o ninho do amor e da
felicidade; mas o ninho perene, sem estações, sem primavera,
sem lua-de-mel.

Essa ardente efusão de duas existências durava desde o primeiro
instante, não tinha lapsos nem desmaios.

Hermano aproximava-se dos trinta anos, e vivera muito nesse tempo. Julieta
aos vinte anos não conhecia o mundo; e seu coração virgem
era um manancial de ternura.

Que diálogo inefável entre aquela inteligência pródiga
e essa inocência ávida de saber, rica de afeto?

O passado de Hermano, desde a primeira infância até o casamento,
Julieta queria vivê-lo, dia por dia, hora por hora, se fosse possível,
para amar seu mando em cada um desses momentos anteriores a ela.

O presente não lhe bastava. nem o futuro. Carecia de remontar-se à
origem dessa existência que lhe pertencia, para soldá-la ainda
mais intimamente a si, de modo que não lhe fosse possível marcar
a época de sua união. Então o casamento teria sido apenas
a consagração social do vínculo de duas almas gêmeas.

Por seu lado Hermano sentia também a necessidade de vazar no coração
ingênuo e casto da esposa, como em um crisol, os seus pensamentos, as
idéias de que a sociedade o imbuíra, e assim apurar sua consciência
naquela chama celeste.

Sua individualidade, escoriando-se da liga mundana, apagando os traços
de uma mocidade fácil, identificava-se de mais em mais com o espírito
puro e imaculado da moça e embebia-se nele como o raio do sol que se
infunde na seiva da árvore e gera a flor.

Hermano e sua mulher freqüentavam a sociedade onde os chamavam. Iam,
porém, aos divertimentos unicamente para se desobrigarem de um dever
de cortesia e posição; ou talvez para certificarem-se de que
nada faltava à sua felicidade.

Depois de uma ou duas horas passadas no teatro ou nos salões, recolhiam-se
pressurosos à sua casa e ao seu amor.

Duas vezes por mês reuniam as famílias de sua amizade. Essas
longas noites, em que se deviam a seus convidados, eram uma ausência,
uma separação para eles. Tinham o mundo entre si.

Que saudades não sentiam um do outro nesses momentos; e com que anelos
encontravam-se de novo na sua querida solidão?

Amália era então uma criança de nove anos. No dia do
casamento tinha vindo do colégio passar o domingo com a família.
À noite vira a chácara vizinha iluminada e os noivos que chegavam
com grande acompanhamento de carros.

Reparando na elegância e garbo do par que subia as escadas de pedra
alcatifadas de fino tapete, a menina pensou no dia de seu casamento; e desejou
que seu noivo fosse tão lindo como aquele.

Nos outros domingos que passava em casa, quando chegava à janela,
via os noivos sempre juntos passeando no jardim, ou sentados em um banco à
sombra dos bambus.

Um dia ardeu-lhe a curiosidade de espiar os aposentos da noiva. O fundo da
chácara dava para a montanha; e o declive fora cortado em socalco com
terraços que se sucediam em degraus.

De uma dessas elevações dominava-se a casa vizinha especialmente
a asa do edifício, que ficava fronteira, a duas braças apenas
de distância.

Foi daí que Amália, aproveitando uma ocasião em que
as janelas estavam abertas, viu o quarto de dormir e o toucador da noiva,
ambos preparados com luxo e primor.

No toucador, sentada junto a uma mesa de charão Julieta procurava
numa caixinha de jóias uns botões para os seus punhos de cambraia.
O mando entrou. Em pé, por detrás da cadeira, colheu nas mãos
o rosto da moça e cobriu-o de beijos.

A travessa que os espiava, disparou a rir, Julieta corou e quis afastar-se;
porém Hermano a reteve e beijou-a de novo tranqüilamente, como
para afrontar a malícia da menina com a castidade de sua carícia.

Pouco tempo depois desta cena, o Sr. Veiga mudou-se para o Andaraí,
por causa da perda de sua sogra, e alugou a casa de São Clemente, para
onde D. Felícia não quis voltar depois do golpe que ali sofrera.

A existência dos dois noivos continuou sem alteração;
sua felicidade tornou-se com o tempo mais serena e por isso mesmo mais intensa.

Afinal apareceu uma ligeira nuvem naquele céu aberto. Estavam casados
havia mais de três anos, e não tinham filho. Começavam
a sentir essa falta; era o primeiro desejo não satisfeito.

Engolfados no misticismo do amor, tão grato às imaginações
vivas, eles consolavam-se com uma teoria psicológica um tanto abstrata,
mas original e encantadora.

Hermano dissera uma vez à mulher:

– Um filho é uma porção de nós que se destaca
para formar outro eu. Nós, Julieta, nos queremos exclusivamente, e
nos possuímos com tanta ânsia, que nenhum quer perder do outro
a menor parcela, ainda mesmo reproduzir o nosso ser.

A mulher aplaudia esta explicação que ela primeiro balbuciara
sem poder exprimi-la; e o egoísmo cheio de enlevos desse amor inexaurível
substituía para o feliz casal o outro penhor que a sorte lhes negara.

Todo esse encanto, a asa negra do infortúnio o apagou em um momento.
Hermano perdeu a mulher; e a perdeu justamente quando sua união ia
ser abençoada com um filho.

Um aborto levou Julieta. Suas últimas ao foram estas que ela proferiu
antes de perder o conhecimento:

– Minha alma não podia separar-se da tua Hermano.

Desde esse momento o marido caiu em um letargo profundo que o conservou alheio
ao que se passava. Esse estado que se assemelhava à idiotia, durou
por muito tempo.

O Dr. Teixeira, amigo de infância de Hermano, partindo para a Europa
a fim de praticar nos hospitais de Paris levou consigo o infeliz viúvo,
na esperança de que a viagem o arrancasse àquela estupefação
em que o deixara a perda da mulher.

Antes de seis meses Hermano voltou da Europa com Abreu que o acompanhara;
foi morar na casa de São Clemente, onde tomou-se o homem que era, quando
o encontramos cinco anos mais tarde.

Dias depois de sua chegada deu-se um incidente que não escapou à
curiosidade dos ociosos da vizinhança. Pararam no portão duas
carroças conduzindo caixotes de tamanho descomunal . O que, porém
mais intrigou os espíritos foi a circunstância de arrombar-se
uma parede para introduzir os volumes no interior da casa.

Em cada bairro há um ou mais parlatórios, que são uns
moinhos onde se tritura a matéria-prima para o fabrico da opinião
pública. Outrora era especialidade das boticas; hoje serve uma loja
qualquer. Para ai, para esses pontos, afluem todos os mexericos que os escravos
levam às tabernas, e todos os boatos e murmurações que
os noveleiros se incumbem de propagar.

Muito se falou dos tais enormes caixões. Na opinião de alguns
tinham eles desembarcado na Copacabana e entrado por contrabando na cidade.
Outros, admitindo o contrabando, afirmavam que passara pela própria
Alfândega. Finalmente, choviam as suposições acerca do
arrombamento da parede e da carga misteriosa que se ocultara até dos
criados da casa, com exceção do velho Abreu.

O Sr. Veiga voltou a ocupar sua antiga casa. Amália teve muitas ocasiões
de ver na alameda da chácara contígua passar o vulto, ainda
elegante, mas grave de Hermano.

Não lhe causava, porém, o aspecto daquele homem a menor impressão.
A moça, se guardara as recordações da menina não
as tinha presentes ao espírito. Olhando a casa outrora tão brilhante
e admirada por ela, revendo o feliz noivo agora solitário e abatido,
nem sequer notava a diferença dos primeiros tempos.

Sua alegria ainda era um esplendor sem crepúsculos.

CAPÍTULO 4

Era noite de partida em casa do Sr. Veiga.

Amália ainda não tinha perdido a sua jovialidade, e continuava
a ser uma das mais gentis princesas da moda.

Nesse dia vestira-se mais cedo para ensaiar com uma amiga o dueto que tinham
de cantar logo mais. Deixava ela o piano, quando entraram na safa ainda erma
duas pessoas.

Uma, o Sr. Borges, era íntimo da casa e aparentado com a família.
A outra, que Amália não conhecia, foi lhe apresentada em termos
de anúncio:

– O Dr. Henrique Teixeira. médico muito distinto. ultimamente chegado
da Europa; urna notabilidade oftalmológica.

Borges encontrara o companheiro no portão de Hermano:

– Por aqui doutor?

– Vim jantar com um amigo, e estou à espera de meu tílburi,
que mandei voltar às sete horas. Receio que o cocheiro me logre.

– Ah! é amigo do Sr. Hermano?

– Amigo de infância.

Borges convidou o doutor para a partida do parente; e tais e tão repetidas
foram as instâncias, que o outro acedeu por fim.

Diversos motivos influíram para aquele convite reiterado. Além
do desejo de obsequiar o médico e de arranjar mais um cavalheiro para
a dança, Borges fora movido sobretudo pela curiosidade de saber particularidades
acerca do excêntrico viúvo.

Depois dos cumprimentos e de algumas ligeiras observações relativas
à Europa, Borges dirigiu a conversa para o assunto que mais lhe interessava.

– É verdade que o Hermano está sofrendo da cabeça, doutor?

– Não é exato! acudiu Henrique Teixeira com vivacidade. Tem
a razão tão firme e tão lúcida como nunca; e o
senhor deve saber que ele mostrou sempre muito tino e bom senso. A prova é
que deixando-lhe o pai a livre disposição de sua fortuna, quando
não tinha mais de dezessete anos, não só a conservou,
como soube aumentá-la, apesar de sua vida elegante.

– Sei perfeitamente; mas tinham-me dito que ele não regula desde que
ficou viúvo.

– Com efeito, Carlos sofreu um abalo terrível com esse golpe. A morte
de D. Julieta, que ele ainda não esqueceu, nem esquecera, causou-!he
uma espécie de paralisia moral. Durante dois meses não pronunciou
uma palavra; vivia mecanicamente; era um autômato movido por um velho
criado, o Abreu, cuja dedicação por ele é a de um pau
extremoso.

– Tenho visto este criado; se não me engano é quem governa
a casa.

– Estava eu resolvido a passar algum tempo em Paris para dedicar-me aos estudos
de minha profissão. Apressei a partida para levar Carlos comigo e distraí-lo
. Nem a viagem , nem o turbilhão da vida parisiense produziram o resultado
que eu esperei Continuava indiferente a tudo: nada o interessava; nada prendia-lhe
a atenção.

– Então, doutor, sempre houve alguma coisa?

– Sem dúvida, mas não demência. O estado de Carlos era
simplesmente uma insensível causa, doutor, disse Amália a sorrir.

– A crítica é espirituosa, minha senhora, e eu já a
tinha lido em seus lábios antes que eles a preferissem. Mas eu quero
a este amigo, como a um irmão; e dói-me profundamente essa suspeita
de loucura, que alguns malévolos se incumbiram de espalhar. Felizmente
Carlos restabeleceu-se; aquela impassibilidade que me assustava dissipou-se
como por encanto.

– Em Paris? perguntou Borges com ar de dúvida, apenas de leve dissimulado
pela cortesia

– Em Paris, numa visita que fizemos ao Louvre Carlos sempre teve gosto e
inclinação para as artes; lembrei-me um dia de mostrar-lhe o
museu de pintura e escultura. Deixei-o um instante para falar a alguém
que encontrara na sala; quando o procurei fui achá-lo diante de um
quadro, creio que a Ester ou a Suzana do Veroneso. Voltou-se; já não
era o homem absorto e sombrio que ali entrara: tinha no semblante e em toda
a sua pessoa, a expressão afável dos mais belos dias de sua
vida. Vi em seu olhar uma interrogação e pensando que ela se
referia à tela, improvisei admiração, que não
sentia, pois, surpreso e contente daquela transfiguração, eu
nenhuma atenção prestava ao quadro. Não obstante prodigalizei
elogios ao desenho, ao colorido, à criação do grande
pintor. "Não; não é isto! disse-me ele. Mas tu não
podes compreender a beleza que este quadro tem para mim". Eu percebi
que ele achara nessa imagem uma reminiscência de sua Julieta.

– Ora, descobriu-se afinal a Fênix dos maridos! exclamou Amália
com uma risada expansiva dirigindo-se à amiga. Nenhum poeta até
hoje, que eu saída, animou-se a inventar um Penélope masculino.
Estava reservada esta glória ao Dr. Teixeira.

– Antes de mim um poeta, e dos mais ilustres, criou esse no Frei Luís
de Sousa, que a senhora talvez não conheça, porque é
escrito em nossa língua.

– Até o vi representar, o que deve parecer-lhe ainda mais admirável,
depois que os senhores fizeram do Rio de Janeiro um pequeno Paris de bulevar.
Mas esse marido que voltou ao cabo de vinte anos de exílio, foi o amor
da mulher que o trouxe, ou a lembrança da pátria, a saudade
de seu velho Portugal?

– Não se lembra de seu desespero por encontrar a mulher unida a outro?
É uma das cenas mais tocantes.

– Esse amor caduco e de cabelos brancos, pois tinha mais de vinte anos…

– Como o de Penélope, acrescentou Teixeira em nota.

– Esse fóssil conjugal é um monstro ideado por Garrett para
complicar a situação das duas metades, que o aparecimento do
primeiro marido veio separar. O drama está nessa separação
realmente incômoda, para quem não gosta de sair de seus hábitos.
Assim o romeiro bem longe de ser o herói, não passa de um pretexto,
de um incidente de um motivo. Faz aí o mesmo oficio de pai cruel que
não deixa a filha casar-se democraticamente com qualquer cidadão
da rua.

A chegada de uma senhora a quem Amália foi receber, cortou a réplica
do doutor, que ria da malícia da moça.

– Mas então o Hermano desde aquela visita do Louvre restabeleceu-se?
perguntou o Borges, que via a conversa apartar-se do tema.

– Completamente. Daí em diante foi outro, ou antes, foi o mesmo homem
que todos conheceram na época de seu casamento. Aquele painel tinha
operado nele uma verdadeira ressurreição.

Amália que tomara o seu lugar, interrompeu de novo o médico
para insinuar uma observação maliciosa.

– Foi o painel, ou alguma estátua?

– Nós estávamos na sala de pinturas, minha senhora.

– Pergunto se não seria alguma estátua viva que operou o milagre
da ressurreição. Alguma Madalena que passava?

– Não o conhece!

– Ou talvez o seu amigo seja como certos escultores que compõem a
sua estátua, tirando de cada modelo as belezas que ele possui e combinando-as
entre si.

O doutor Henrique Teixeira fitou a moça com alguma surpresa. A candura
do sorriso que brincava nos lábios faceiros convenceu-o de que Amália
não compreendia o alcance das palavras que preferia.

O médico chegava da Europa onde se tinha demorado quatro anos; e não
sabia que a invasão do romance realista que nos vem de Paris tem posto
em moda certa gíria de cafés e bastidores que algumas senhoras
vão repetindo como linguagem de bom-tom sem consciência das enormidades
que às vezes escondem tais ditos espirituosos.

O Dr. Teixeira deixou passar a observação da Amália;
e, para não acentuá-la com uma pausa, continuou a referir a
Borges o episódio da viagem de Hermano:

– Pode acreditar no que lhe digo. Carlos não tem o menor sintoma de
perturbação mental. Nesse mesmo dia da nossa visita ao Louvre
emancipou-se da minha solicitude e viveu sobre si. Depois que voltou ao Rio
de Janeiro entretivemos uma correspondência seguida; e nas suas cartas
respirava certo contentamento intimo e sereno, que eu vim encontrar na sua
vida habitual.

– Então é feliz o seu amigo? perguntou Amália

– Acredito que sim.

– E o senhor afirmou que ele não tinha esquecido a mulher e nem a
esqueceria nunca?

– Afirmei, e posso prová-lo, acudiu Henrique Teixeira picado pelo
remoque da moça.

– Há de ser difícil.

– Promete-me guardar reserva sobre o que lhe contar?

– Mais do que reserva. Prometo-lhe não acreditar nem uma palavra do
seu romance, o que não me impedirá de aplaudi-lo, se for interessante
como espero.

Nesse momento a sala enchia-se de convidados; e o piano dava o aviso da primeira
quadrilha.

Amália tomando o braço de seu par, separou-se do doutor com
esta palavra, confeita em um sorriso:

– Depois.

CAPÍTULO 5

Em meio da partida, quando servia-se o chá, Amália com um aceno
do leque indicou a Henrique Teixeira uma cadeira que vagara a seu lado.

– E o nosso folhetim?

– Refleti, D. Amália; o melhor é falarmos de outra coisa.

– Confessa, portanto, que seu amigo é como os outros; mais um exemplar
desse compêndio já muito conhecido que se chama marido.

– Não, senhora, não confesso; calo-me. Não devo expor
à sua zombaria a vida íntima do amigo que mais prezo.

– Esta reflexão, devia tê-la feito em princípio, doutor.
Depois de haver-me aguçado a curiosidade, está na obrigação
de satisfazê-la, e é o mais prudente, porque o seu silêncio
compromete o seu amigo.

– Em quê?

– Dá-me o desejo de fazer acerca dele, e acerca dessa vida íntima
que não pode ser profanada, as mais extravagantes suposições.

– Esta razão me decide.

– A outra devia ter a preferência, por fineza ao menos.

– Qual outra?

– A de duvidar da minha discrição.

– Perdão; eu a ofenderia se acreditasse nela. Seria suspeitar de seus
dezoito anos, e fazer brancos ou grisalhos tão belos cabelos louros.

– Entretanto há pouco pedia reserva aos meus belos cabelos louros,
observou Amália com um gesto encantador.

– Sem dúvida. A reserva que eu lhe pedia era a de contar a história
tão enfeitada que já não fosse a mesma referida por mim.

– Terei esse cuidado; e até me incumbo de ilustrá-la com retratos.
Mas antes de tudo preciso conhecê-la.

– Então quer ouvir?

– E dispenso o prólogo.

– Voltando da Europa, há três meses, passei os primeiros dias
em casa de Carlos, que me esperava e foi buscar-me a bordo. Chegamos a São
Clemente pela manhã; e depois do banho clássico, nos reunimos
em uma sala, que fazia parte dos aposentos da mulher e onde esta mais assistia.
Notei então que ele, algumas vezes, distraidamente, voltava-se para
o sofá, permanecia por momentos com os olhos fitos na almofada de veludo
a que habitualmente se recostada D. Julieta.

– E suspirava naturalmente ou enxugava a furto uma lágrima silenciosa
que lhe queimava a face? perguntou Amália com seriedade picante.

– Não; ao contrário, soma-se.

– Deveras! O seu herói tem um cunho original. Estou me interessando
por ele.

– A sala em que nos achávamos, e a presença de Carlos, a quem
revia depois de anos de ausência, remontavam o meu pensamento aos primeiros
tempos de seu casamento, em que tantas vezes nos reunia-mos ali em família,
ele, sua mulher e eu. Parecia-me ver ainda o talhe elegante de D. Julieta,
que nos escutava, atenta, enlevada na voz do marido, e dando-nos de vez em
quando, com uma observação espirituosa, o tema da conversação.
E essa evocação entristeceu-me. Entretanto Carlos estava contente;
e no seu semblante respirava a satisfação d’alma. Supus que
era o prazer da minha volta; mas não podia conciliá-lo com as
recordações vivas que se estavam traindo nos seus gestos.

– Essas recordações eram puramente cacoetes de viúvo.

– Vai ver. Pouco depois o Abreu chamou-nos para o almoço. Carlos tomou
o seu lugar de costume; eu sentei-me defronte e notei logo que havia um talher
em frente à cadeira de honra, outrora ocupada pela dona da casa. Tínhamos
pois uma terceira pessoa; talvez alguma velha parenta de Carlos.

– E por que não seria alguma prima moça e bonita, que viesse
tentar aquele modelo de constância? Aposto que adivinhei.

– Não adivinhamos, nem a senhora, nem eu. O Abreu serviu-nos e eu
a convite do dono da casa almocei com apetite de viajante. Uma coisa me causou
reparo. Quando Carlos incumbia-se de trinchar depois de fazer o prato para
mim, fazia outro que passava ao Abreu. Este em vez de advertir o amo da sua
distração colocava o prato na cabeceira, sobre o terceiro talher
intacto, e o meu amigo tirava para si nova porção; depois o
criado mudava todos os três talheres.

– Ah, percebo um eclipse matinal da estrela.

– Ao jantar reproduziram-se todas estas circunstâncias que referi.
A cadeira continuou vazia, sem a menor observação do dono da
casa, e o talher de estada foi ainda servido duas ou três vezes. Cresceu
porem a minha surpresa, quando na ocasião de tomarmos café,
Carlos continuando a conversa, preferiu o nome da mulher, mas de modo que
parecia indicar a sua presença.

Amália deu uma risada.

– Não é romance, então. É um conto fantástico!…

– Estou referindo fatos de vida real. A senhora dar-lhes-á o título
que for mais do seu agrado.

– Bem; vamos ao resto. Eu gosto mais deste gênero. Tem sua novidade.

– Como lhe disse passei algum tempo na companhia de Carlos; e do que observei
depois, assim de umas revelações a custo obtidas do Abreu, compreendi
o que a princípio me pareceu estranho.

– Ou por outra, compreendeu o incompreensível.

– Para aquele marido a mulher que ele amou estremecidamente ainda habita
a casa, que ela enchia de sua graça e de sua ternura. Ele já
sente perto de si, a seu lado, nas horas em que trocavam suas mútuas
expansões, e nos lugares que ela preferia.

– É poético e sublime não poder negar.

– Os aposentos particulares de D. Julieta estão da mesma forma como
ela os deixou. Não há ali a menor mudança; os mesmos
trastes os mesmos objetos, e cada um como ela os colocara. Ninguém
aí penetra senão Carlos e o Abreu. Esse criado velho adorava
a menina, que ele trouxe nos braços desde o dia de seu nascimento.
Também para ele, a dona da casa ainda vive, e governa o interior.

– Temos, pois, aqui na vizinhança um hospital de doidos! atalhou Amália.

– Não me entendeu.

– Ora, seriamente, doutor, o Sr. comprometeu-se a si e ao seu sexo. Obrigou-se
a apresentar um modelo de fidelidade conjugal e só o pode encontrar
como enfermidade. Confesse: a constância de seu amigo é apenas
uma mania, e o Sr. não foi sincero quando, há pouco, pretendeu
convencer ao Borges.

– Tão sincero como agora. Carlos não tem o menor eclipse na
sua razão calma e forte.

– Mas como se chama essa alucinação?

– É uma superstição a que estão sujeitos todos
os que vivem pelo espírito.

– Não sabia.

– Só não as têm os materialistas, aqueles para quem Deus
é um absurdo, a pátria e a família uma comandita; gente
que reduz a inteligência a um pouco de fósforo, e a virtude a
uma convenção. Esses vivem fisicamente; são corpos que
se transformam. Nós, porém, que nos remontamos à nossa
origem divina, todos temos nossas abusões.

– Eu não as tenho.

– Tem, afirmo-lhe. Mas as suas abusões são risonhas e brilhantes;
chamam-se esperanças. As suas orações também…
Quantas vezes não acreditou a senhora, que Deus, o criador do infinito,
comovido por sua prece, alterava as leis do universo para enxugar-lhe uma
lágrima, ou dar-lhe um sorriso? O que é isto senão uma
superstição?

– Bem diversa da que tem seu amigo.

– A senhora nunca perdeu uma pessoa a quem amasse. Aqueles que já
sofreram esse golpe, quando visitam o túmulo que encerra as cinzas
do ente querido, acreditaram que ali está alguma coisa deles, a sua
sombra, a sua alma quando ali não há senão pó
. P o mesmo que acontece a Carlos, com uma diferença: nos outros são
os vestígios materiais, é o despojo mortal, que produz aquele
efeito; nele é o espírito unicamente. O que ele sente, o que
vê, é a alma da mulher.

– Chega a vê-la? disse Amália cuja ironia nada perdoava.

– Com os olhos d’alma. O como nada é e nada era para ele.

– Desde o momento em que D. Julieta morreu, ele a abandonou como um objeto
indiferente, e não teve o menor desejo de vê-la. Isto observei
eu.

– Em todo caso, doutor, para fazer-lhe a vontade, convenho em que seu amigo
será um homem de muito juízo, mas não aqui neste mundo;
no da lua talvez.

– Devo dizer-lhe que a princípio também inquietou-me aquele
estado; busquei um pretexto para tocar nesse ponto delicado. Carlos compreendeu-me
logo e respondeu com franqueza: "É verdade, há ocasiões
em que sinto Julieta perto de mim, e em que vivo com ela como outrora. E a
sua alma que me acompanha ou é a minha lembrança que a tem sempre
viva e presente ao meu espírito? Seja o que for, isso me consola e
me restitui a felicidade que perdi. Que necessidade tenho eu de investigar
este mistério ou dissipar esta ilusão? Não há
maior mistério e maior ilusão do que a vida; e nós vivemos
sem conhecer, nem a nossa origem, nem a realidade de nossa existência".
Eis as palavras que ele me disse, e com a maior simplicidade e placidez de
ânimo. A razão e a ciência não teriam outra linguagem;
e quer a senhora que eu qualifique de

CAPÍTULO 6

No dia seguinte à partida, pelo fim da tarde, a família Veiga
achava-se reunida como de costume na varanda, que ficava à esquerda,
no centro do edifício.

Tinham-se levantado da mesa de jantar e tomavam café gozando da fresca.

D. Felícia conversava com o marido acerca do Dr. Henrique Teixeira.
Tinha ela notado o interesse e atenção que a filha mostrara
ao médico, a quem vira na véspera pela primeira vez, assim como
a rápida intimidade que se estabelecera entre ambos.

Talvez que esse impulso da moça tão volúvel e caprichosa
sempre com os outros, e ainda mais com os seus apaixonados, fosse o indício
de uma inclinação nascente. O Sr. Veiga acolhia pressuroso essa
esperança, felicitando-se com a mulher pela realização
do seu mais ardente desejo e, como homem positivo, pensava já nos meios
práticos de efetuar o negócio:

– Amanhã mesmo vou tirar informações, disse ele, e acrescentou
logo: por cautela! Mas estou convencido de que hão de ser das melhores.
Pareceu-me homem sério.

Enquanto os pais, à meia voz, se ocupavam do seu futuro, Amália
percorria a varanda, repetindo de memória, samezzo, a sua parte do
dueto, cantado na véspera. Avivava assim a recordação
dos aplausos que a tinham saudado nos trechos mais lindos; e ao mesmo tempo
apreciava severamente a sua execução, para corrigi-la e dar-lhe
maior realce.

Aproximava-se às vezes do balaústre onde colocara a taça
de porcelana e molhava no café já frio os lábios, que
ela sugava depois com um gesto gracioso para continuar os seus exercícios
de vocalização.

Em uma dessas ocasiões seus olhos caíram sobre a casa vizinha,
que muitas outras vezes lhe tinha da mesma forma interceptado a vista, sem
que excitasse o menor reparo de sua parte. Era um edifício como qualquer
de tantos que povoavam a rua por todos os lados.

Nesse momento, porém, seu espírito recebeu uma expressão
mais definida. Lembrou-se de que era aquela a habitação desse
Carlos, de quem na véspera lhe falara com tanta amizade e calor o Henrique
Teixeira.

Todas as particularidades de sua conversação com o médico
acudiram à mente. Esquecendo o dueto, repassou de memória as
que ouvira acerca do viúvo e então, como já não
estava dominada do sestro de motejar e meter a ridículo tudo quanto
era sentimental, compenetrou-se mais das observações do doutor
e dos fatos por ele referidos.

Quando absorta nestes pensamentos olhava o edifício meio oculto pelos
bambus e avermelhado pelo arrebol, viu Hermano que passava entre as árvores,
e aproximava-se do banco favorito.

A moça, disfarçando a sua curiosidade, recolheu o airoso busto
na penumbra da coluna, para observar o solitário passeador, que se
sentara a pequena distância do muro da chácara, em lugar onde
ela o via perfeitamente por entre a folhagem.

Impressionada pela narração de Teixeira, examinou a fisionomia,
e notou que ela não tinha nesse momento a expressão de recolhimento
e abstração própria do homem que está só.
O seu olhar não era de contemplação; animava-o o raio
do espírito em comunicação com outro espírito
não era o olhar que vê, mas o olhar que fala, que transmite a
impressão em vez de recebê-la.

Uma vez Hermano ergueu-se; foi até a platibanda, colheu uma flor lírio,
e tomando a seu lugar, conservou-o na mão com o gesto expressivo de
quem o mostrasse a outrem sentado à sua direita.

Então operou-se em Amália um fenômeno psicológico
estranho para ela que vivia unicamente no presente, porém em si mui
natural e freqüente. Assim como na tela de um transparente as figuras
assomam de repente quando as colocam à contraluz da mesma forma na
memória da moça desenharam-se cenas da infância esquecidas
por tantos anos.

Pareceu-lhe que via como outrora os dois noivos sentados no mesmo banco à
sombra dos bambus. Uma tarde Hermano tinha colhido a mais linda flor do lírio
e a apresentara à mulher dizendo-lhe:

– É a tua imagem.

– Então guarda-a, respondeu a mulher; e inclinando-se sobre a flor,
bafejou-a com o hálito. Dei-lhe um pouco de minha alma.

A travessa menina debruçada sobre o moro ouvira esse rápido
diálogo, de cujas palavras agora se recordava como se as estivesse
escutando. Hermano tinha guardado a flor, que ele aspirava com delícia,
sorrindo à mulher.

Lá estava ele ainda, com a flor, o gesto e o sorriso que ela vira
cinco anos antes; só faltava a noiva. Então Amália revolveu
debalde a memória na esperança de achar aquela imagem que se
esvanecera tentou recompor com os traços fugitivos de suas recordações
aquela meiga figura, mas não o conseguiu.

No vislumbre de suas reminiscências aparecia um vulto formoso e elegante;
mas ela não podia distinguir-lhe as feições; e isso a
contrariava. Sentia um desejo de rever aquela moça, de conhecê-la
agora que era moça também. Talvez viessem a ser amigas; com
certeza o seriam; e que prazer não lhe daria a sua intimidade!

Estas vagas aspirações, Amália não as cogitou;
despontavam em seu espírito de envolta com as recordações
do passado, e apagavam-se logo.

Amália tinha muitas vezes lido em romances uns lirismos de amor semelhantes
àquele bafejo da flor; e sabia que nos bailes e na vida real eles eram
freqüentemente copiados e até exagerados pelos noivos.

Todo esse formulário poético do namoro, ela o achava sumamente
ridículo; e sempre que o apanhava em flagrante, o havia aplaudido com
uma risada gostosa, como um lance de comédia.

Entretanto agora que o terno sentimento pela mulher devia parecer-lhe ainda
mais extravagante, pela circunstância de não ser já senão
uma mímica, bem longe de excitar-lhe o riso, ao contrário a
tinha comovido.

Assim devia ser. O gesto de Hermano por mais excêntrico e singular
que fosse, aparecia-lhe através da morte cuja sombra o envolvia. Não
era uma fineza banal de namorados, nem uma afetação vã.
Havia naquele diálogo mudo a comunicação de duas almas
cujo elo o túmulo não tinha partido.

Quando o viúvo afastou-se na direção da casa, Amália
sorriu-se; mas de si, de uma idéia de menina.

Lembrou se do desejo que tivera outrora de achar um noivo como aquele, que
a adorasse, como ele adorava a mulher, e lhe desse muitas jóias, muitas
fitas, muitas galantarias.

Tinham corrido os anos. Ela ficara moça e era bonita; alguns diziam
muito bonita, e ela concordava com estes. Seria mais bonita do que a outra
que ela invejava? Não sabia, e tinha uma certa curiosidade de verificar
esta circunstância.

Não lhe faltavam noivos; ela poderia ter escolhido um entre muitos
tão elegantes como esse, talvez mais sedutores. Entretanto os desdenhara
a todos; e não sentia o menor entusiasmo pelo casamento.

De que provinha isto?

Nessa noite Amália foi com a família ao teatro. Enquanto se
vestia e durante o espetáculo, seu espírito algumas vezes se
desprendia das impressões do momento para insistir naquela interrogação.

Até então nunca se preocupava com o motivo de sua isenção.
Era uma questão de gosto. Uns apreciam a música mais do que
a pintura; há quem não pode suportar o burburinho da cidade,
entretanto que outros detestam a monotonia campestre.

Ela preferia a vida de solteira, por ser mais livre, mais divertida e mais
tranqüila.

Ao recolher-se, avistando a casa vizinha, voltaram-lhe de tropel todos os
pensamentos, que a cena da tarde lhe tinha sugerido. Mas apenas esvoaçaram
um instante pela fantasia, e submergiram-se no repouso de um sono forte e
calmo, o sono da saúde e da mocidade.

Pela manhã, ao acordar, dissipado o primeiro torpor que deixa a longa
síncope da vida moral, a moça encontrou em seu espírito
a explicação com que neo atinava na véspera.

Até então não conhecia senão a aparência
do casamento, essa face material, que se vê de fora, e compõe
a sua fisionomia social. Agora compreendia que essa união era mais
do que um modo de vida; mais do que um hábito e uma conveniência.
Era, devia ser, um destino.

Aquele marido, neo só fiel à memória de sua mulher mas
unido a ela como no primeiro dia de seu amor; essa afeição alheia
ao mundo e indiferente às vicissitudes da vida, fora uma revelação
para Amália.

Entretanto esta revolução, que subitamente se tinha operado
em suas idéias, produziu efeito oposto ao que talvez se devesse esperar.
Bem longe de conciliá-!a com o casamento, ao contrário, acabou
de afastá-la.

Se até então ela evitava essa ligação como um
transtorno à sua mocidade e uma contrariedade à sua índole,
atualmente a considerava como um perigo, e um grande perigo.

Unir-se a outro homem, que não fosse o marido esperado, não
seria falhar a seu destino, sacrificar a existência inteira e condenar-se
ao eterno suplício de um cativeiro cheio de humilhações?

CAPÍTULO 7

Desde aquele dia, que se pode chamar de sua conversão, Amália
ocupou-se com a casa vizinha, que dantes não lhe merecia a menor atenção.

Agradava-lhe a chácara, o edifício, as árvores. Achava-lhes
alguma coisa de particular, embora não tivessem realmente de notável
senão a solidão e o silêncio que os cercavam.

Acompanhava os movimentos da habitação. Ligava aos mais casuais
e ordinários alguma significação. Uma janela que se abria,
um rumor qualquer, eram como o gesto ou a palavra do edifício, que
para ela tinha uma vida, uma história, uma individualidade.

Por Hermano, Amália sentia um indefinível respeito. Parecia-lhe
que via nele pela primeira vez um homem, bem diverso da gente que povoava
as salas e ruas. Nesse habitava uma alma: e era uma alma superior ao mundo,
que tinha o seu mundo em si.

Ela, que dias antes ria do espiritualismo de Henrique Teixeira, a propósito
do amigo, enlevou-se depois numa ideologia ainda mais abstrata; e achava simples,
naturais, evidentes, os fatos que sua imaginação fantasiava.

Julgara a princípio uma demência, essa ilusão em que
vivia Hermano. Entretanto que exagerava agora aquele fenômeno moral,
e atribula uma intenção misteriosa aos menores incidentes.

Por quem Amália, porém, mais se interessava era pela pessoa
que já não existia: pela mulher que Hermano amava. Ela a considerava
já como uma irmã sua evocava a sua imagem, falava-lhe e ficava
contente de vê-la feliz por ter inspirado ao marido aquele amor indelével.

Avivava-se-lhe o pesar de não a ter conhecido e de não lembrar-se
de suas feições. Desejava tanto contemplar-lhe a beleza, ainda
que fosse de memória! Hermano possuía necessariamente um retrato
fiel de sua Julieta. Que não daria ela para vê-lo?

Essa mulher que havia merecido um amor tão puro completamente desprendido
dos interesses e misérias sociais; que expressão, que encanto
especial, que magia celeste possuía a sua beleza?

Às vezes Amália tinha uma vaga reminiscência da alvura
deslumbrante de sua tez; do brilho sereno dos olhos; da suave inflexão
do talhe.

E insensivelmente comparava-se a esse modelo; e sorria-se com desvanecimento,
porque achava em si uns traços de semelhança

A sociedade começou a mostrar-se à moça por um novo
aspecto.

As futilidades brilhantes que dantes a alegravam e que ela chamava as flores
da vida, tornaram-se para seu espírito mais calmo, flores do vento,
rosas efêmeras e sem perfumes; e foi assim que a pouco e pouco se isolou
do mundo. Sentia um tédio indefinível pelos divertimentos, e
só achava prazer na solidão.

O Sr. Veiga havia colhido acerca de Henrique Teixeira boas informações.
Era médico de talento e podia contar com um brilhante futuro, se não
lhe faltasse a qualidade preciosa de saber-se apresentar.

Essa qualidade não é tão comum como se pensa; o que
se encontra a cada passo e em todas as profissões é o abuso
dela, o vício muito conhecido com o nome de charlatanismo. Não
se trata, porém, desse grosseiro arremedo, que está ao alcance
de qualquer sujeito desembaraçado, ainda mesmo ignorante e medíocre.

Os processos e fórmulas do charlatanismo já se aperfeiçoaram
de tal modo, que os adeptos não carecem mais de gênio inventivo;
tudo está feito, desde o anúncio. Até à celebridade
artificial.

Aquele que precisa do apetrecho completo, médico, advogado ou artista,
não tem mais do que pagar.

O que faltava a Henrique Teixeira não era pois essa fancaria a que
o seu caráter não se prestava; era sim a verdadeira e fina arte
social que ensina o homem a pôr em relevo o seu merecimento e atenuar
os seus defeitos, sem hipocrisia, unicamente pela simples reserva e discrição.

Os painéis dos melhores mestres carecem de uma posição
favorável para mostrarem todas as suas belezas; colocados contra a
luz ou de esguelha desmerecem completamente e confundem-se com qualquer pintura.
Assim são os homens na sociedade. A atitude é tudo: quase sempre
decide de uma carreira.

O Sr. Veiga era homem prático e muito conhecedor do seu mundo. Apreciou
pois no justo valor a observação do amigo que lhe prestava esta
informação; mas também sabia ele que a riqueza supre
perfeitamente na sociedade a virtude, o talento, o saber, e até a afeição.

O marido de Amália com duzentos contos de réis de dote, e o
dobro em perspectiva, não precisava de apresentar-se; estava apresentado
pela fortuna. Tinha um pedestal; todos o haviam de ver. Nenhuma necessidade
teria ele de insinuar-se de agradar por suas maneiras quando podia impor-se.
Que melhor anúncio e mais pomposo elogio do que um lindo carro tirado
por formosa parelha de cavalos do Cabo, a percorrer as ruas da cidade e a
excitar a atenção pública?

Em conclusão, o Sr. Veiga calculou que o Dr. Henrique Teixeira lhe
convinha para genro especialmente pela circunstância mui importante
de mostrar Amália por ele uma inclinação decidida.

Depois da noite da apresentação o médico fizera à
família a visita de rigor; e nessa ocasião ainda Amália
o acolhera com a maior afabilidade, insistindo para que não faltasse
às partidas. Além disso D. Felícia, que se incumbira
de sondar as disposições da filha não teve necessidade
de usar de sua diplomacia. A moça, espontaneamente e sem reticências,
manifestou a impressão agradável que o médico deixara
em seu ânimo.

À vista disto não restava senão entabular a negociação
que o Sr. Veiga queria terminar logo e de pronto com a decisão que
punha em suas transações. D. Felícia, porém, foi
de opinião que se deixasse as coisas seguirem o seu curso natural,
facilitando-se apenas o seu casamento.

Este último alvitre prevaleceu. O Sr. Veiga pagou a visita ao Dr.
Henrique Teixeira, e convidou-o para o jantar de família, combinação
lembrada pela mulher para introduzir na intimidade da casa o suposto pretendente
que não era realmente senão um pretendido.

O doutor foi assíduo às partidas e Amália continuou
a distingui-lo com uma atenção especial, deleitando-se na sua
conversa. Falavam acerca de Hermano; a moça interrogava a miude e ouvia
com avidez.

Não precisou o médico de grande perspicácia para conhecer
que esse interesse tão vivo da moça denunciava uma afeição
nascente, mas profunda. Hermano ainda ignorava naturalmente; mas quando viesse
a conhecê-la poderia ele partilhá-la?

Henrique era um tanto fisiologista. Ele acreditava que a natureza amante
e apaixonada de Hermano carecia de uma forte expressão de afeto; e
por isso revivia Julieta, para adorá-la. Desde, porém, que outra
mulher o impressionasse, ele transportaria aquela adoração para
o novo ídolo e continuaria neste o mesmo amor romanesco.

E que mulher estava mais nas condições de causar essa impressão
viva do que Amália, cuja beleza luminosa e esplêndida raiava
dentro d’alma como uma aurora de amor?

O médico afagava esta esperança. Ele compreendia a necessidade
de subtrair o amigo à constante preocupação que lhe consumia
parte da vida. Esse estado em todo caso não era natural; cumpria que
cessasse. Para isso o primeiro passo era aproximar Hermano da mulher, que
o podia salvar.

Entretanto, parecendo a D. Felícia muito lenta a marcha dos acontecimentos,
consultá-lo resolveu ela provocar uma explicação. Mandou
chamar o médico para consultá-lo sobre a saúde da filha,
cuja mudança já a inquietava.

Expôs o desejo que ela e o marido tinham de ver Amália casada.
Descreveu o tipo do noivo que preferiam; e apesar de sua modéstia Teixeira
foi obrigado a rever-se naquele retrato físico e moral, como em um
espelho do melhor aço. Finalmente rematou dando ela uma consulta matrimonial
ao médico, em vez da consulta profissional que devia pedir a este.

– Amália gosta de alguém, doutor. Tenho a certeza.

– E natural D. Felícia, e até muito provável.

– E o Sr. sabe quem é?

– Não devia entrar em assunto tão delicado; mas a sua confiança
minha senhora, a estima que consagro a toda a sua família, e o deseje
de concorrer para a felicidade de duas pessoas que tanto merecem impõe-me
esse dever.

Henrique revelou o segredo de Amália. D. Felícia caiu das nuvens.
Não podia crer. Apenas retirou-se o médico, ela dirigiu-se ao
aposento da filha.

Amália, de pé junto à janela, com a fronte apoiada na
aba da porta, tinha os olhos presos na casa vizinha; e tão absorta
nessa observação, que a mãe aproximou-se e ficou muito
tempo a fitá-la, sem que ela percebesse

D. Felícia não duvidava mais. Teixeira tinha razão.
Amália amava Hermano e era um amor veemente que se lia em seu formoso
semblante como em uma página aberta.

– Queres casar com ele? perguntou a senhora afetuosamente.

Amália estremecera a essa voz. Com as faces inflamadas pelo pejo e
os olhos em pranto, atirou-se nos braços da mãe e escondeu o
rosto no seio dela.

D. Felícia acariciou-a com ternura e repetiu a pergunta que a moça
escutara da primeira vez

– Casar?… Com quem?… interrogou ela atônita.

– Com ele! com o Hermano.

Uma palavra prorrompeu do seio da moça, como a explosão de
sua alma.

– Nunca!

E desprendeu-se dos braços da mãe, com uma violenta expressão
de pavor.

Amália passava pelo mesmo espanto que teria se sua mãe lhe
acabasse de propor para marido um homem casado.

CAPÍTULO 8

A primeira abertura de D. Felícia com Henrique Teixeira estabeleceu
entre ambos uma confidência constante sobre o delicado assunto do casamento
de Amália.

Ambos empenhavam-se na realização desse projeto do qual esperava
cada um a ventura da pessoa que lhe era tão cara. Se a graça
e os dotes da moça tinham cativado a simpatia do doutor, que já
a estimava como outra Julieta, também D. Felícia seduzida pelo
entusiasmo do amigo, queria a Hermano como a um filho e apreciava o seu caráter
leal e generoso.

Logo no dia seguinte, aflita com o modo por que Amália recebera a
idéia do casamento, e o terror de que se possuíra, a mãe
comunicara ao médico esse fato tanto mais inexplicável, quanto
a filha traia nos seus menores gestos um amor irresistível por Hermano.

Henrique Teixeira compreendeu logo o sentimento de Amália. Essa moça,
outrora tão positiva, pairava agora no mundo da fantasia. Desde que
Julieta vivia para o mando, e o acompanhava ainda e sempre, esse marido não
era para a moça um viúvo, e o seu casamento com outra mulher
seria um crime, um adultério.

Não pareceu prudente ao médico explicar a D. Felícia
o que influíra realmente no ânimo da filha, e evitou de tocar
em qualquer particularidade da viuvez do amigo para não assustar a
senhora. Atribuiu o espanto e emoção da moça à
repugnância que ela mostrara sempre pelo casamento, e de que anteriormente
fora informado.

D. Felícia aceitou esta razão, porque não descobria
outra; e combinou com Teixeira os meios de destruir aquela prevenção.
Deviam começar por estabelecer relações entre os dois
apaixonados. A senhora os chamava assim, na convicção em que
estava de que Hermano não podia deixar de ter por Amália um
amor ainda mais veemente do que soubera inspirar à filha.

O doutor incumbiu-se de apresentar Hermano em casa do Sr. Veiga. Essa tarefa
não era tão fácil como parecia: ele tinha de lutar com
uma das regras invariáveis a que o amigo submetera a sua existência,
desde a viuvez.

Quando não se achava nos seus dias negros, dominado pela obsessão
que era talvez uma recaída do letargo causado pela morte da mulher,
Hermano freqüentava a sociedade, e concorria aos divertimentos como no
seu tempo de casado. Encontrando nos bailes alguma amiga de Julieta dançava
com ela e a festejava. Não tinha os sestros do viúvo. Não
se enternecia, nem suspirava falando do golpe que sofrera; ao contrário
mostrava um doce regozijo ao avivar recordações de sua felicidade.

Mas também repelia toda inovação.

A sua vida parara no momento em que Julieta morrera, deixando-o, e portanto
mutilando-lhe o ser. O que ele fazia depois disso não era mais viver;
e sim reviver o passado, remontar o curso dessa existência dupla, que
absorvera sua individualidade.

Não tinha relações nem amizades que neo fossem daquele
tempo. Se o acaso o punha em contato com outras pessoas, tratava-as sempre
como estranhas, e não guardava lembrança desses nomes nem dessas
fisionomias desconhecidas.

Não visitava família que não tivesse freqüentado
com a mulher.

Henrique portanto contava que o primeiro impulso do amigo seria recusa formal
de acompanhá-lo à casa do Sr. Veiga; e cogitava pretextos para
induzi-lo e demover-se uma vez da sua inabalável resolução.

Em suas conversas acerca de Hermano, Amália tinha pedido ao doutor
que lhe fizesse o retrato de Julieta; e nessa ocasião lhe dissera que
outrora, bem menina, a tinha visto muitas vezes, mas não se podia lembrar
da fisionomia.

Henrique também não se lembrava senão dos cabelos negros
e da alvura da tez; do mais não reparara ele senão na graça
que envolvia e iluminava toda a pessoa de Julieta. De sorte que Amália
nada colheu além do que sabia.

Sobre estas circunstâncias que a moça lhe referira de sua meninice,
o médico propôs-se a bordar um conto que despertasse a curiosidade
de Hermano. Falou-lhe da vizinha que se lembrava muito de D. Julieta e imaginou
entre ambas uma semelhança, que não o podia comprometer na sua
opinião. Amália era uma beleza deslumbrante que ofuscava a outra.

Hermano, não mostrou o menor desejo de conhecer a moca: quando Teixeira
o convidou para acompanhá-lo à casa do Sr. Veiga ele respondeu
simplesmente:

– Não o conheço.

– Mas ele te visitou quando mudou-se para tua vizinhança, disse-me
a senhora.

– Não sei.

O doutor compreendeu que só havia um meio de arrancar o amigo àquela
vida abstrata. Era perturbar o seu recolhimento, quebrar os seu hábitos,
agitar-lhe o espírito. Antes de fazê-lo hesitou. Tinha ele certeza
de dar felicidade a Hermano? Não seria cruel dissipar-lhe a doce ilusão
em que vivia para lançá-lo em uma triste realidade?

Era caso de refletir.

O pavor que produzira em Amália a idéia de casar-se com Hermano,
deixou em seu espírito uma impressão profunda, que só
mais tarde se foi desvanecendo.

A chácara vizinha excitava nela um sentimento de repulsão;
desviava os olhos daquela direção; passava os dias fora para
fugir a essa vista que a incomodava. Foi para o Andaraí estar uma semana
com tia.

A ausência acalmou a sua agitação. Voltando a casa, D.
Felícia acabou de tranqüilizá-la. Disse-lhe que tivera
aquela idéia, por desconfiar que Hermano lhe agradava, mas desde que
ela rejeitava o partido não devia pensar mais nisso; pois nunca se
casaria senão de sua livre vontade e com um homem que escolhesse.

– Mas ele, mamãe, soube de seu desejo? perguntou Amália inquieta.

– Não; foi só lembrança minha. Ele não deu nenhum
passo.

– Se nem me conhece!

Esta conversa dissipou o susto da moça. Aquele interesse que ele havia
tomado pela constância do viúvo, tomou-se inocente como dantes.
Ela podia sem receio, e sem vexame, abandonar-se de novo aos impulsos desse
capricho.

Voltou pois à contemplação e devaneio, em que se esquecia
a observar os movimentos da habitação vizinha.

Uma tarde, Hermano não veio como de costume sentar-se no banco dos
bambus. Ela impacientou-se com a demora; lastimou Julieta por aquela primeira
inconstância; e afigurou-se-lhe ver a esposa desdenhada suspirando na
sua tristeza e abandono.

Pouco tempo depois Hermano saia à chácara acompanhado de Teixeira,
e dirigiu-se para o sítio habitual. Advertindo, porém, que não
estava só arredou-se e foi sentar-se longe com o amigo.

Amália adivinhou então a causa da ausência que a afligira.
Perdôo a Hermano em nome de Julieta; condoeu-se da contrariedade que
eu devia sofrer naquele momento; e irritou-se contra o Teixeira que vier disputar
o amigo ao amor da mulher e obrigá-lo a parecer ingrato.

À noite fechada Amália via através da folhagem brilhar
a luz do gás nas janelas que ela sabia serem as dos antigos aposentos
de Julieta; nessa ocasião murmurava:

– Está junto dela.

Recordava-se então da vez em que os vira ali outrora dos beijos que
Hermano dera na mulher, e do rubor da noiva quando percebe que alguém
os espiava, e que na de sua ternura. momentos repreendia-se por aquela travessura
de criança, de que se envergonhava.

Henrique Teixeira lhe dissera que esses aposentos ainda estavam como Julieta
os deixara. Que vontade não tinha de os ver de novo, e agora que podia
melhor apreciá-los! Ás vezes dirigia-se para o terraço
donde antigamente espreitava os noivos. Mas a delicadeza de seus sentimentos
a retinha. Repugnava-lhe espiar a casa alheia, e abaixar-se a essa curiosidade
leviana.

Notou, porém, que as rótulas estavam constantemente fechadas;
portanto ela podia sem indiscrição aproximar-se dessas janelas.
Para quê? Para estar mais perto, para ter uma esperança vaga
e ilusória de ver aquilo que fugia de olhar.

Em uma noite cálida e abafada, a moça recostada à leiva
de grama, fatigava, como de costume, os seus belos olhos em distinguir umas
sombras fugitivas e confusas que se agitavam por dentro das venezianas.

As rótulas estavam apenas cerradas, o que ela notou pela estreita
faixa de luz que indicava o interstício das duas abas não ajustadas.
A princípio teve escrúpulo; mas como era impossível enxergar
por aquela fresta deixou-se ficar.

Instantes depois a moça caiu de bruços sobre o respaldo de
grama, sufocando nos lábios o grito doloroso que lhe estalara no seio.

CAPÍTULO 9

Soprava a viração da noite.

O primeiro luto, cortando o ambiente cálido e estagnado e derramando
no ar uma onda de frescura, rugitou pela folhagem das mangueiras.

Com a rajada, as rótulas se tinham afastado de modo a mostrar no quadro
da janela o interior do aposento.

No centro havia uma mesa de charão com um vaso de rosas, colhidas
naquela tarde. Amália vira quando Hermano as cortara da haste e pensou
então que eram uma oferenda do mando à esposa querida. Naturalmente
iam ornar o seu toucador.

Junto do vaso estava aberta uma caixa de carvalho com preparos e utensílios
de flores artificiais; e na beira da mesa uma peanhazinha de bronze que mantinha
direita na sua haste de arame uma rosa de pano ainda por acabar.

Hermano sentado ao lado com um livro aberto lia a meia voz; e embora o sussurro
de suas palavras se perdesse nos rumores da noite, podia Amália mesmo
de longe ver-lhe o movimento dos lábios.

Mas não foi nada disto o que feriu a alma da moça, quando a
veneziana aberta patenteou-lhe aquela cena.

Em face de Hermano e também sentada como ele Amália viu, cheia
de espanto, uma mulher. Era moça e de rara formosura. Na posição
que tomara, o seu talhe moldado por um vestido simples e justo, de azul à
princesa, desenvolvia-se com um garbo indefinível.

A madeixa de cabelos negros sombreava o níveo fulgor do semblante,
cujo delicado perfil pareceu a Amália ser talhado em um jaspe macio
e diáfano, tão suave era o tom dessa carnação.

Descansava sobre a mesa um dos braços, cuja perfeição
estética aparecia no esvazado da manga, e tinha a fronte ao de leve
reclinada para a espádua, como uma flor que se realça para haurir
a luz e os orvalhos do céu.

Amália compreendeu essa expressão de êxtase.

Pensou que a moça interrompera o seu trabalho de florista para embeber-se
no encanto de ouvir as palavras de Hermano, o qual também abaixara
o livro para contemplá-la e encher-se de sua beleza.

Do primeiro relance Amália não viu senão naquele aposento,
que pertencia a Julieta: não sentiu senão o golpe de tão
indigna profanação; e foi este sentimento que lhe despedaçou
a alma em um grito de dor, e atirou-a convulsa e fulminada sobre o cômoro
de grama.

A cólera a reanimou. Ergueu-se e foi então que viu tudo. Seu
olhar repassado de ódio correu todas as linhas daquela estátua
harmoniosa como o faria o severo buril de um escultor; e não achou
uma aspereza, um lisim. Ela poderia notar naquela fisionomia a fixidez de
expressão, que a amortecia; mas era precisamente essa elação
do amor, a maior sedução da rival de Julieta, a sua beleza ideal
e celeste.

Um criado velho, o Abreu, entrara no aposento. Arranjou os objetos que estavam
sobre a mesa; colocou ali uma salva com serviço de chá para
duas pessoas; e reparando nas rótulas abertas pelo vento, fechou-as
com o trinco.

Amália não viu mais nada senão a luz coada entre as
lâminas das venezianas.

Não se imagina a indignação que sublevou sua alma, quando
refletiu naquele acontecimento.

Se um homem amado por ela, depois de ter-lhe jurado fidelidade, a enganasse
vilmente, não o puniria com o desprezo, que tinha por Hermano nesse
momento.

Era uma traição torpe e infame a que havia cometido esse marido.
Não lhe bastara esquecer a mulher, faltar ao seu juramento. Fez mais:
insultou a sua memória, cobrindo com o véu de uma constância
exemplar outro amor, que ele próprio se envergonhava de mostrar ao
mundo.

Amália identificava-se com a esposa traída; supunha Julieta
rediviva em si e erguendo-se implacável para castigar o pérfido
marido.

Mas como? Morrendo outra vez; porem morrendo eternamente para ele; rompendo
a cadeia que os unia, e abandonando-o a essa infeliz, como um sobejo da traição.

Nos dias que seguiram esta cena, Amália foi má. Sua alma se
tinha saturado de fel; os sentimentos afetuosos eram recalcados por um despeito
violento.

Anunciara-se a estréia de uma companhia italiana no Teatro Lírico.

Amália assistiu à representação. Queria vingar
Julieta cobrindo de desprezo a todos os homens, especialmente os homens que
fingiam o amor. Desejava sobretudo encontrar Henrique Teixeira para exprobrar-lhe
a indignidade do amigo.

Os cantores eram medíocres fossem embora insignes Amália não
lhes prestaria atenção naquela noite. Abriu o binóculo,
e correu-o pelos camarotes, não para apreciar os trajes como costumava,
mas para os criticar e às donas também; para dar alvo a seu
pungente sarcasmo.

Em um camarote fronteiro descobriu Hermano e perturbou-se.

Que vinha fazer aquele homem ao espetáculo? Antes, devia este fato
surpreendê-la; agora não; era tão natural!

A mulher que em uma das noites passadas ela vira no aposento da esposa traída
a rival de Julieta, com certeza estava no teatro; e o indigno amante só
viera para acompanhá-la, e gozar da admiração produzida
por sua beleza.

Amália notou que Hermano, apesar de estar só no camarote, deixara
o lugar fronteiro à cena, e sentara-se no outro voltado para o fundo
da sala. Parecia escutar atentamente a ópera; mas olhava com insistência
para a segunda ordem.

Acompanhando a direção desse olhar, Amália fitou um
camarote diagonal ao seu. Havia ali uma mulher vestida com muito luxo.

A sala de gorgorão verde com rendas finíssimas atufava-se por
entre as grades.

Estava de costas. A moça não podia enxergar-lhe o rosto, que
se retraía com o movimento do corpo ao voltar-se. Descobria, porém,
uma madeixa de cabelos negros; e descansando sobre o acolchoado de veludo
escarlate um braço alvo e torneado mesmo molde do outro, que vira na
mesa de charão.

Esta observação irritou a indignação de Amália.
Antes de terminar o espetáculo ela deu-se por incomodada e realmente
estava. Quando já se retiravam, apareceu Henrique Teixeira; a moça
não lhe deu atenção. A vontade que tinha de lançar-lhe
em rosto a traição do amigo cedera a outro sentimento , ao pudor.
Agora tinha vergonha de conhecer essa intriga vil e de ocupar-se com ela.

Quando se esmerada na cantoria, Amália tomara o hábito de recordar
os trechos de ópera que ouvia no teatro. Assim fixava as suas observações
de véspera; imitava as belezas, e corrigia o seu método.

Por isso ao acordar lembrou-se do piano já tão esquecido; e
depois do almoço dirigiu-se à sala. Se ao recolher-se perguntassem
que ópera se tinha cantado, ela com certeza não poderia responder.
Agora, porém, recordava-se perfeitamente; fora a Lúcia de Donizetti.
A música ficara-lhe no ouvido.

Abriu a partitura e cantou a parte de soprano. Disse admiravelmente o delicioso
allegro da fonte; mas na grande ária da loucura excedeu-se. Não
era o delírio da noiva escocesa que a inspirava: era o desespero de
Julieta, a dor da esposa traída.

Estava aberta uma das janelas. E o sol entrando pela sala, chamejava nos
espelhos e cristais. A claridade impacientou. Amália estava triste,
e achava insuportável essa alegria do céu que vinha importuná-la.

Ergueu-se para fechar a janela, onde a esperava uma surpresa.

Hermano, de pé, à sombra de uma árvore, escutava o canto,
em profundo recolhimento. Sua fisionomia denotava que ainda depois de ter
cessado a voz, ele ouvia dentro d’alma o eco, e esperava o seu retorno.

Tinha na mão um jornal e estava sem chapéu, como quem fora
surpreendido em casa, a meio da leitura, e viera pressuroso, não lhe
importando sair de cabeça descoberta.

Quando Amália recobrava-se da emoção, Hermano erguia
a fronte; pela primeira vez o olhar doce, profundo e exuberante desse homem
encontrou o seu; e subjugou-a.

Ela estremeceu como se recebesse um insulto; e arrebatadamente num assomo
de cólera, bateu a janela.

O que ela sentia era não ser homem para nesse mesmo instante precipitar-se
do sobrado, saltar o muro, e açoitar as faces daquele insolente.

CAPÍTULO 10

O gênio faceiro e jovial de Amália mudou completamente. A moça
tornou-se pensativa: tinha longas horas de cisma e melancolia, ela que dantes
não sabia senão rir e brincar.

Algumas vezes já se esquivava de freqüentar a sociedade, que
então fora para ela uma necessidade. Inventava pretextos para recusar
os convites: e ficava em casa solitária, distraída, vagas contemplações.

Passava noites inteiras, recostada à sua janela com os olhos fitos,
o seio palpitante, tão alheia de si que não ouvia a voz da mãe
a chamá-la, e tão presente aos seus pensamentos que estremecia
e sobressaltava-se a cada instante sem causa aparente.

Outras vezes saía ao jardim, e vagava pelos passeios talhados na relva,
a desfolhar as flores que sua mão distraída ia colhendo, e a
arrular palavras submissas que, pela cadência da voz melodiosa pareciam
trechos de poesia.

Amália admirava outrora as estrelas como umas jóias mimosas
de que Deus havia recamado o seu manto azul ou como umas violetas do céu
a luzir por entre as sombras da noite. Era bonito; mas ela preferia um adereço
de brilhantes sobre um vestido de cetim ou uma grinalda de miósotis.

Agora um místico sentimento a atraia para essas flores de luz , gostava
de conversar com elas. Pensava que talvez tivessem um coração
irmão do seu.

Quem sabe se não eram os anjos da guarda que velavam sobre as almas
exiladas na terra?

Ela própria achava ridículas estas abusões, quando repassava
na mente as cismas da véspera mas isto não impedia que de novo
se embalasse naquela e noutras fantasias, em seus momentos de devaneio.

Toda a sua pessoa ressentia-se da revolução que lhe transformava
o gênio.

Os movimentos sempre tão vivos e cintilantes tornaram-se frouxos e
lentos. Sua beleza já não irradiava como no tempo feliz; agora
embebia-se em uma sombra diáfana, que velava o matiz da cútis
aveludada.

Ao piano, a sua execução não perdera em correção
e limpidez; mas ou tocasse ou cantasse, havia na música, se esta era
triste, uma repercussão íntima e profunda. Sentia-se palpitar
a dor nas teclas como na voz.

De repente, sem motivo, e sem consciência, enchiam-se-lhe os olhos
d’água. As lágrimas doutros tempos eram orvalhos para as boninas
de seu gentil sorriso; estas de agora comam lentamente e deixavam nas faces
um brilho lívido.

A família assustou-se com esta mudança. Às perguntas
inquietas da mãe, Amália respondia que andava aborrecida; e
entretanto recusava as distrações que lhe ofereciam.

Afinal, tendo perscrutado debalde a causa da súbita transformação
da filha, D. Felícia a atribuiu a uma cessas moléstias nervosas
a que são muito sujeitas as moças fluminenses, pela falta de
educação higiênica.

Resolveu então a família passar algum tempo fora da corte.
Foram para Petrópolis.

Nos primeiros dias, Amália recobrou a sua antiga alegria; e voltou
à vida agitada e folgazã. Os passeios de carro descoberto, as
apostas a cavalo, e as partidas campestres, reanimaram-lhe o gosto da sociedade
e a restituíram ao seu natural.

A moça conseguiu durante alguns dias atordoar-se e submergir as suas
recordações num turbilhão de prazeres ruidosos, mas que
não lhe davam senão a alegria artificial do momento.

Ao cabo de alguns dias cansou. A tristeza que tinha espancado à força
de movimento e agitação, voltou e mais intensa. Com esta vieram
as saudades da casa de São Clemente. A moça lembrou-se da sua
doce solidão; e desejou-a, como nunca havia desejado os divertimentos.

Fizeram-lhe a vontade. Recolheram-se à corte depois de um mês
de ausência. Por diversas vezes quiseram levá-la para a Tijuca
ou para Juiz de Fora; mas ela resistiu sempre e com energia; foi preciso ceder.

A família então uma viagem à Europa, como único
meio que lhe restava para salvar a filha querida. Quando os pais comunicaram
essa intenção à moça, ela recebeu o anúncio
com espanto; depois foi se habituando à idéia, e, em vez de
a repelir, já por fim a acolhia favoravelmente, e dizia à mãe,
num ingênuo assomo de ternura

– Não se aflija tanto, mamãe, eu lhe prometo ficar boa com
a nossa viagem à Europa.

O Sr. Veiga, pai de Amália, começou a dispor os seus negócios.
Contava partir no futuro mês de março, por ser já fim
de ano, e não convir, na opinião dos médicos, nem à
filha nem a ele, uma transição brusca do nosso verão
para o inverno europeu.

D. Felícia depositava grandes esperanças nessa viagem; mas
sua convicção era que só o casamento podia restituir
a Amália a saúde e a felicidade perdidas

Desde que voltara de Petrópolis, Amália trazia no fundo d’alma
uma esperança, que não se animava a afagar, mas que se derramava
por sua mágoa como uma gota de bálsamo. Talvez que tudo quanto
vira naquela noite não fosse mais do que um momento de loucura, uma
alucinação passageira do marido de Julieta.

Hermano seduzido por aquela mulher fatal esquecera o seu juramento; mas passada
a primeira fascinação, o remorso o tinha pungido; e ele sem
dúvida repelira de si com horror a culpada. Amália ia pois achá-lo
restituído ao amor puro e legítimo da esposa.

Com efeito o marido de Julieta, quando não saia e ficava em casa a
sós, passava as tardes no sino habitual, junto aos bambus; submerso
no mesmo profundo recolhimento, que Amália observara da primeira vez.

A casa continuava solitária, tranqüila, silenciosa, como um retiro;
mas à noite ainda aparecia nas janelas de Julieta o clarão sinistro,
que batia nos olhos de Amália como o facho lúgubre de um sacrilégio.

Que se estava passando dentro daquele aposento, enquanto ela com os olhos
cravados na veneziana feria sua alma de encontro às réstias
de luz, que se enfiavam pelas rótulas?

Não poder arrancar esse obstáculo, que lhe ocultava o interior!
Já não tinha escrúpulos, já não considerava
essa curiosidade uma indiscrição. Ali não era Amália
quem estava, mas Julieta na pessoa dela; Julieta que tinha o direito de defender
contra uma intrusa a santidade de seu amor e o recato de sua câmara
nupcial.

Esta ansiedade, e as decepções que daí lhe provinham
a todo instante, aumentaram a tristeza de Amália; pelo que o Sr. Veiga
cedendo às instâncias da mulher, decidiu a viagem à Europa.

A moça, a quem a idéia de uma separação assustara,
compreendeu todavia a necessidade de arrancar-se à fatal dominação
que sobre ela exercia aquele homem, a quem não amava, e nem poderia
amar nunca.

Ela sente que faltavam-lhe as forças para conter os impulsos de sua
alma; e conhecia o poder da irresistível atração que
a prendia ali, e que a trouxera de Petrópolis aonde se tinha refugiado.

Era preciso pois interpor o oceano e afastar-se para longe, onde a maligna
influência que a tiranizava não pudesse chegar.

Afinal o acaso favoreceu a curiosidade da moça. Por esquecimento ficara
aberta uma janela, não do toucador, mas da sala próxima. Foi
o Abreu, ao escurecer, quando andara ali a espanar, contando fechá-la
mais tarde.

Amália alvoroçou-se com esta circunstância; logo conheceu
que nada adiantava. Era-lhe impossível distinguir coisa alguma na escuridão
da sala. Já ia se retirar, quando renasceu-lhe a esperança.

A lua assomara sobre o dorso do Corcovado; a sua claridade alva e doce como
a luz coada por um globo de cristal diáfano estampou-se nessa face
da casa.

À medida que o astro elevava-se no horizonte, essa faixa de luar cortada
pela cornija do teto, desdobrava-se sobre a parede.

Amália seguia com ansiedade o perfil luminoso, impaciente de que penetrasse
no aposento e o esclarecesse.

A princípio nada pode distinguir porque as réstias mutilavam
os objetos, deixando uma parte na sombra.

Chegou, porém, o momento em que viu. A sala fora inundada pelo luar
e o interior aparecia como uma cena de teatro, iluminada pela eletricidade.

A moça não teve a mesma súbita comoção
que da outra vez. Então ela nada suspeitava, e o fato se havia apresentado
a seus olhos de repente em toda a sua realidade. Agora, além de já
temer a repetição do golpe, fora a pouco e pouco, reunindo os
traços, lobrigando os vultos indecisos, que ela vira afinal desenhar-se
o painel.

Lá estava a mesma mulher da outra noite, não sentada como da
primeira vez mas reclinada em uma conversadeira acolchoada de cetim azul,
e ainda mais encantadora.

Tinha adormecido, com a cabeça pousada na curva do braço, e
o corpo meio voltado. O roupão de fina cambraia, fechado na gola e
nos punhos envolvia o seu talhe, moldando os contornos graciosos, que não
se podiam ver, mas palpavam-se com os olhos.

Amália admirava com toda a violência do ódio, que lhe
inspirava semelhante criatura. Envergonhava-se de ser bonita também
como ela; e ao mesmo tempo senta não ter uma formosura ainda mais esplêndida
para humilhá-la.

Um instante depois Amália recuou precipitadamente, cobrindo o rosto
com as mãos. Hermano que tinha entrado no aposento, achava-se de pé
junto à conversadeira.

As faces da moça abrasaram-se do pejo que sentiu.. Revoltou-se contra
a audácia daquele homem; e a indiferença dessa mulher que dormia
quando um olhar indiscreto devassava o seu recato.

Tinha medo de ver; e uma irresistível tentação de olhar.
Voltou as costas para a janela; mas não teve coragem de afastar-se.
Entretanto Hermano aproximara-se silenciosamente da conversadeira, sentara-se
ao lado e ficou imóvel, como se receasse levantar o menor rumor no
aposento.

Esta cena exacerbou a cólera de Amália e o seu escândalo
pela traição de Hermano. Nasceu-lhe um desejo veemente de vingar
Julieta. Se ela pudesse subtrair o marido pérfido à sedução
da amante; arrastá-lo a seus pés humilde e submisso; exprobrar-lhe
o seu perjúrio; e restituí-lo arrependido ao amor da esposa!

Que não daria ela em troca desse poder? Que satisfação
não teria de infligir o justo castigo a esse crime?

Mas bem compreendia, no seu despeito, que não tinha sobre Hermano
a menor ação. Ela, uma das belezas mais festejadas da corte,
rainha nos salões, e dos mais brilhantes vassalos; querida e adorada
por tantos admiradores, que todas as tardes faziam uma légua de carro
ou a cavalo, só para a verem ao longe e de passagem; ela, Amália,
não merecia a atenção daquele excêntrico, seu vizinho,
que poderia se quisesse olhá-la a todo momento, comodamente, sem o
menor sacrifício.

Talvez nem a conhecesse, e não soubesse que ela habitava ao lado de
sua casa…. Mas não; da vez em que o surpreendera ouvindo-a cantar;
curiosidade que a tinha irritado a ponto de bater-lhe a janela.

Agora arrependia-se do seu arrebatamento. Devia ter-se contido naquele momento,
e servir-se dessa impressão produzida por sua voz para atrair esse
homem, fasciná-lo também com a sua beleza, dominá-lo,
e então esmagá-lo com todo o seu desprezo.

Fora mal inspirada. Hermano ofendido com a desfeita que sofrera, não
se arriscaria a nova repulsa. Entretanto por que não havia ela de tentar
o meio que lhe restava para reatar o primeiro e único movimento desse
homem para ela?

No dia seguinte, depois do almoço, Amália sentou-se ao piano;
abriu a partitura da Lucia; e hesitou por algum tempo As portas das janelas
estavam abertas; foi cerrá-las e pela fresta lançou um olhar
à chácara vizinha. Estava erma e tranqüila.

Então a moça decidiu-se, e cantou com emoção
que nunca tivera em suas estreias de sala. Também nunca ela cantou
melhor, com mais alma e paixão.

Terminando, ergueu-se precipitadamente. Arfava-lhe o seio, menos do esforço
que fizera, do que do anelo de uma esperança que a agitava. Sentia
que esse momento podia decidir de seu destino.

Calcando com a mão esquerda as pulsações do coração,
caminhou para a janela, pálida e trêmula, e procurou com os olhos
o lugar onde Hermano a escutara da outra vez.

Não havia ninguém.

CAPÍTULO 11

A noite apareceu Henrique Teixeira, que andava um tanto arredio

O médico desistira do seu plano de trazer Hermano às partidas
do Sr. Veiga, desde que D. Felícia tinha abandonado a idéia
do casamento. Continuou, porém, a freqüentar a casa com a mesma
assiduidade. Foi só quando percebeu certa repulsão de Amália
para ele, que se retirou.

A causa dessa repulsão não a podia precisar; mas suspeitou
que se referia a Hermano, Seda porque fora ele quem envolvera o amigo na existência
da moça; ou era ao contrário porque não tivera força
de aproximá-lo dela?

A verdadeira causa, nós a sabemos.

Era a indignação que Amália sentira contra o esposo
infiel e que ressaltava sobre o amigo, como sobre tudo o mais que lhe pertencia.

– Já tive o prazer de ouvi-la hoje, disse o doutor apertando a mão
de Amália.

– Passou por aqui?

– Estive na sua vizinhança.

Amália entendeu a alusão.

– Ah! exclamou com indiferença.

Quando a moça começou a cantar naquela manhã Teixeira
estava em casa de Hermano e conversavam os dois no gabinete. As primeiras
notas este levantou-se; esqueceu a presença do amigo e saindo à
chácara aproximou-se da casa vizinha, resguardando-se com a folhagem
do arvoredo.

Teixeira que o acompanhara, sentou-se junto dele e escutou. Aquela vivacidade
do amigo, tão alheio a tudo que não se prendia à sua
antiga existência, e a emoção com que ele ouvia a Amália,
o surpreenderam. Interrogou as suas recordações. Julieta cantava
essa ária, o que explicava tudo.

Terminado o canto, Hermano voltou e gabinete a conversa, sem a menor alusão
ao incidente. Henrique de seu lado também absteve-se de qualquer observação,
e mui de propósito.

Deixando o amigo, lembrou-se o doutor de fazer à noite uma visita
à família Veiga; e no primeiro ensejo referiu a Amália
todas as circunstâncias do que ele chamava um triunfo.

– Um triunfo artístico bem entendido, acrescentou sorrindo.

– Os outros não são para mim, observou Amália em um
tom de modéstia desdenhosa, que tornava ambígua sua frase.

A moça conteve e dissimulou a alegria produzida pela confidência
do doutor. Agora sabia que Hermano a tinha ouvido e que sua voz atraia aquele
homem indiferente ao mundo. Esta certeza encheu-a de confiança

Desde esse dia não cantou mais a Lucia. As vezes ensaiava uns prelúdios,
como quem se preparasse, e de chofre passava a outra peça, que executava
primorosamente.

Compreende-se bem o que devia ser Amália nesses dias, convencida como
estava de que o seu encanto, o seu condão, estava na voz. Todos os
esplendores de sua formosura, todas as seduções de sua pessoa,
toda sua graça e gentileza, ela os transportou para a música
e idealizou em arpejos e melodias.

Quem já lhe tivesse admirado a beleza a reconheceria nesse canto inspirado
que era como uma transfusão de sua radiante imagem. Seus lábios
somam num trinado, com a mesma garridice com que desabrochavam a sua rubra
flor.

A moça já não duvidara de seu império. Ela senta
em torno de si, a envolvê-la incessante a admiração de
Hermano. A cada momento via ou adivinhava na espessura das árvores,
na penumbra de uma janela, o olhar que a buscava com ansiedade e a seguia
infatigável.

Entretanto mostrava-se despercebida dessa contemplação. Se
aparecia à varanda ou passeava no jardim, não dava o menor sinal
de ocupar-se com a casa vizinha que antes a absorvia tão completamente.
Saia agora mais vezes para ter o gosto de ver-se acompanhada de longe e respeitosamente;
ou para tornar mais desejada a sua presença.

Amália não tinha cultivado a arte de fazer-se amar que se chama
faceirice; mas parece que é esse um dom natural da mulher. São
as asas da borboleta, que nascem na estação própria,
quando é tempo de voar.

As partidas do Sr. Veiga tinham continuado; menos brilhantes do que outrora,
porque Amália já não as animava com sua alegria e espírito;
mas sempre concorridas. D. Felícia insista nessas recepções,
com a esperança de distrair a filha.

Uma noite, Amália, que mostrava certa volubilidade nervosa, dirigia
a miúdo os olhos para a porta, como se esperasse alguém. Eram
oito horas. Henrique Teixeira entrou, acompanhado por um cavalheiro alto e
elegante.

A moça estremeceu reconhecendo Hermano; entretanto tinha um pressentimento
mais do que isso, a certeza dessa visita. Ninguém lhe dissera coisa
alguma; mas ela percebeu por certos antecedentes que o fato ia realizar-se
enfim.

Hermano apresentou-se ele próprio a Amália, como um admirador
de sua bela voz que o tinha por muitas vezes arrebatado.

– Já me ouviu cantar? Onde? perguntou Amália simulando ironicamente
uma surpresa.

– Não me conhece então? interrogou o cavalheiro por sua vez,
pousando no semblante da moça um olhar comovido.

– Se nunca o vi! .. observou a moça com a mesma estranheza.

– Nunca?

Ela cerrou as pálpebras corando; quando as ergueu de novo todo o segredo
de sua alma estava nos seus olhos límpidos e no meigo sorriso que veio
à flor dos lábios.

Depois disso falaram sobre mil nugas dessas que servem às conversas
de sala. Eles bem sentiam a insignificância de suas palavras; mas achavam
prazer nessa troca de futilidades que os retinha juntos, e dava-lhes pretexto
para comunicarem-se pelo olhar e pelo gesto.

O mesmo aconteceu nas outras noites. Quem os visse tão presos um do
outro, tão entretidos na sua conversa, pensaria talvez que tratavam
de coisas importantes, quando efetivamente não se ocupavam senão
de trivialidades já muito repetidas.

Nessa fase da existência de Amália e Hermano, nada há
de novo e de particular. Foi o que tem sido sempre e há de ser eternamente
a aurora do amor Quem não conhece essas doces alvoradas do coração,
que espancam todas as sombras e nos transformam a vida em um esplendor?

Hermano, não se lembrava mais do homem que fora; nem tinha consciência
de outra vida, senão essa que lhe trouxera Amália. Quanto à
moça, os seus primeiros terrores, a indignação que sentira,
o segredo que surpreendera; tudo se dissipara como por encanto. Ignorava o
passado. A viuvez de Hermano, as relações dele com a desconhecida;
ela não sabia mais disso; não sabia senão que amava.

Como se havia operado esse milagre? Ninguém o poderia explicar, nem
eles mesmos que não tinham consciência da revolução
profunda consumada em sua vida no espaço de alguns dias apenas.

Mais de três anos foram vizinhos, avistando-se freqüentemente,
sem que se preocupassem um do outro. De repente algumas palavras de uma conversa,
algumas notas de uma ária, decidirem de seu mútuo destino..

D. Felícia enchera-se de esperanças e julgou-se dispensada
do sacrifício da viagem à Europa, à qual só extremos
de mãe a obrigariam. A prudente senhora sempre entendera que, de todas
as mudanças de clima, a mais proveitosa para uma menina depois dos
dezoito anos era essa que ela faz da casa paterna para o domicilio conjugal.

– Qual Vichy!… dizia aos médicos. Não há como água
da pia.

Entretanto os dias comam; e o acontecimento esperado não se realizava.
Debalde a senhora chamava constantemente a conversa para o assunto da viagem,
e insistia na proximidade da partida, lembrando as mágoas da separação.

Os dois apaixonados, absorvidos consigo não a escutavam. Para eles
não havia nem passado, nem futuro. A vida resumia-se no presente; e
o presente era aquela íntima efusão em que se isolavam dos outros,
em um canto da sala.

Uma vez, porém, D. Felícia interrompeu a confidência
de todas as noites para interpelar diretamente a filha.

– Amália, teu pai amanhã vai escolher os camarotes. Não
queres ir com ele?

– Tão cedo! observou o Borges. Ainda faltam dois meses.

– O Sr. Veiga quer prevenir-se com antecedência para obter os melhores
lugares.

– Mamãe não vai? perguntou Amália.

– Eu não; só de falar em vapor já estou enjoada.

– Irei com papai. A que horas?

– Depois do almoço.

– Às dez horas, disse a moça enviando a Hermano em um olhar
essa indicação.

Ele compreendeu.

– Então sempre se resolve a deixar o seu Rio de Janeiro?

– Mamãe vai.

– Mas a senhora podia ficar.

– Com quem? perguntou ela surpresa.

Com seu marido.

Amália enrubesceu.

– Posso falar a seu pai?

A moça ergueu-se perturbada e aproximou-se da mãe para dizer-lhe
ao ouvido:

– O Sr Hermano pergunta se pode falar a papai.

D. Felícia voltou-se para o seu hóspede, e disse-lhe com um
sorriso:

– Pode; ele está no gabinete.

CAPÍTULO 12

Guiado pelo aceno de D Felícia, Hermano dirigia-se ao gabinete do
Sr. Veiga, que tinha por costume fazer diariamente a sua caixa particular
antes do chá.

Ninguém ouvira na sala o breve diálogo dos dois namorados;
e menos a pergunta que Amália transmitira à mãe, calando
aliás a verdadeira intenção que Hermano lhe havia dado.
Mas as pessoas presentes suspeitavam que se tratava do pedido formal de um
casamento, que todas já previam.

Quanto a D. Felícia, tinha certeza do fato. A confusão da filha
e o alvoroço que se traia na voz e nas palpitações do
seio, revelavam bem o sentido da pergunta de Hermano e a significação
do seu ato.

Amália, para esquivar-se à curiosidade geral que lhe interrogava
a atitude e a expressão da fisionomia, fora sentar-se ao piano; e tocava
com um brio nervoso, para dissimular na agitação do exercício
musical e na excitação da fadiga os sobressaltos involuntários
bem como os rubores que lhe abrasavam as faces e o colo.

Pelo seu gosto se teria retirado da sala; mas Hermano devia ressentir-se
dessa ausência, e ela mesma não podia privar-se da sua presença
pelo resto da noite. Sair para voltar depois da decisão era expor-se
ainda mais ao reparo.

Durou meia hora a expectativa

Ouviu-se abrir a porta do gabinete e todos os olhos volveram-se para o corredor,
com exceção dos de Amália que se abaixaram a pretexto
de decifrar uma frase.

Ela não viu nada, nem ali, nem no papel, nem em torno; tinha uma névoa
nos olhos. Ouviu, porém, uma voz comovida pronunciar seu nome e sentiu
que lhe apertavam a mão.

Quando recobrou-se desse soçobro e ergueu-se correndo a sala com o
olhar, Hermano partia.

Voltara ele do gabinete grave e sombrio; despedira-se de Amália e
da dona da casa com um aperto de mão, cortejara as outras pessoas e
retirou-se sem uma explicação daquele procedimento estranho.

Fora tal a surpresa, que ninguém, nem D. Felícia, tivera a
presença de espírito necessária para fazer a menor observação.
Não havia para este fato senão uma interpretação:
e foi a que todos lhe deram imediatamente, apesar de a considerarem inadmissível.
Hermano tinha sofrido uma repulsa do Sr. Veiga.

Mas como era isso possível, sabia-se do desejo que tinha o capitalista
de casar a filha; e dos avanços que a família fazia ao pretendente,
e tão a contento da moça?

D. Felícia foi ao encontro do marido que entrava na sala e perguntou-lhe
a meia voz, com sofreguidão, o que se havia passado com Hermano.

– Nada, respondeu o Sr. Veiga mais admirado do tom do que da pergunta. Ofereceu-me
recomendações para a Europa e prometeu dar-me algumas informações
úteis para a viagem.

– Só? perguntou a senhora.

– Só.

O pasmo foi geral. D. Felícia não se pôde conter.

– Não se precisa das suas informaç&otilotilde;es; ele que as guarde
e nos livre de sua presença

O Borges encartou a sua mofina:

– Eu sempre o tive por maluco

O Sr. Veiga dissera a verdade. Quando Hermano estava no gabinete, o capitalista
estava no meio de uma adição.

Para não perder o trabalho começado, e usando já da
liberdade de futuro sogro; pediu ao hóspede o favor de esperar um instante,
dois minutos, enquanto fechava a conta.

Mal sabia ele que estes dois minutos iam decidir da felicidade da filha.

Hermano esperou, com a emoção que assalta todo homem de caráter
ao tomar grande responsabilidade. Não era a primeira vez que tinha
essa emoção. Lembrou-se do momento em que pedira a mão
de Julieta. O passado, que parecia morto, ressurgiu e apoderou-se dele.

Ficou estupefato, vendo-se ali naquela casa e encontrando-se nessa última
fase de sua existência, que ele se espantava de ter vivido. Parecia-lhe
sonho esse período. Não compreendia como ele, o marido de Julieta,
acreditara que pudesse nunca substitui-la por outra mulher.

O capitalista concluiu a sua conta e voltou-se para a visita. Trocaram algumas
palavras sobre o calor que tinha feito durante o dia, e calaram-se.

– Está próxima a sua viagem à Europa? disse Hermano
depois de uma pausa.

– E verdade! Daqui a dois meses.

– Sabe que já fiz esta viagem? Posso dar-lhe algumas informações
úteis.

Hermano falou um quarto de hora sobre Paris e Londres sem consciência
do que dizia; o Sr Veiga ainda absorvido nas suas parcelas de caixa não
lhe prestou a menor atenção; e assim terminaram a entrevista.

Os convidados compreenderam a conveniência de retirarem-se mais cedo;
o que, porem os decidiu a usar dessa atenção foi o desejo de
espalharem logo, naquela mesma noite, a noticia do rompimento, pois outra
coisa não era o que se acabava de pensar.

O Teixeira que chegara tarde, quis atenuar o procedimento do amigo, e teve
com D. Felícia longa explicação.

Parece que tocou nas excentricidades do viúvo atribuindo a elas a
sua hesitação, o que a senhora moralizou com esta exclamação:

– Então bem diz o Borges. E um maluco e foi uma felicidade que eu
o descobrisse, antes de dar-lhe minha filha

Amália tinha-se recolhido. A mãe foi achá-la pensativa:

– Tu sabes quanto desejo ver-te casada, Amália; mas antes fiques toda
a vida solteira, do que teres a desgraça de aturar um doido.

– A sua doidice, mamãe, também eu a tenho. Ele ama!…

– A ti? perguntou D. Felícia com ironia

– A mim também; mas não me ama bastante para fazer-me sua mulher.

– Não te faltam maridos.

Amália, durante as suas breves relações com Hermano,
costumava à tarde sentar-se no jardim, em um caramanchão que
ficava perto da grade, mas oculto pelas trepadeiras. Ali viam-se de passagem,
conversavam um instante, e separavam-se para de novo reunirem-se à
noite na sala.

Passados os primeiros dias depois do rompimento, a moça tornou a esse
hábito, talvez na esperança de que ele facilitasse a aproximação
de Hermano. Ela adivinhara a razão que havia determinado a súbita
mudança do amante; mas queria ouvi-la de seus lábios.

Com efeito uma tarde, ao escurecer, ouviu o rangido da areia sob os passos
de alguém que se aproximava; não ergueu os olhos do livro, mas
pressentiu que era ele; e não se enganava.

– Não venho pedir-lhe perdão. Não o mereço; e
a senhora não pode e não deve conceder. Desejo, porém
que saiba a causa do meu procedimento, para que não duvide um instante
de si e do respeito e admiração que me inspirou. Quer ouvir-me?

– Fale, murmurou a moça comovida.

– No momento de ligar para sempre o seu ao meu destino, hesitei; apoderou-se
de mim um grande tenor. Tive medo de fazer a sua infelicidade.

– Por quê?

Hermano concentrou-se um momento.

– Quem possui a sua beleza e a sua alma, tem o direito de ser amado exclusivamente,
sem reservas e sem partilhas. A senhora não pode ser a simples companheira
do homem a quem se unir. Preciso que esse homem lhe pertença, que viva
inteiramente de sua afeição, que se consagre todo à sua
felicidade. Se ele tivesse uma idéia, uma preocupação,
uma reminiscência, que o disputasse ao seu amor cometeria uma infidelidade;
e a senhora havia de exprobrar-lhe o tê-la enganado. Podia eu, conhecendo-a
como a conheço, sacrificar o seu futuro, que deve ser tão brilhante?

Amália pousou os seus belos olhos no semblante de Hermano.

– Tem razão, disse ela docemente. O meu amor não basta para
encher tão completamente a sua vida, que não haja lugar nela
para outra afeição. Desde que o passado ainda vive em sua alma,
o que iria eu fazer senão perturbar a tranqüilidade de seu espírito
e profanar as suas recordações? É melhor assim; guardaremos
pura e sem ressaibo a lembrança desses poucos dias que vivemos juntos.

Ela ergueu-se, estendendo a mão ao amante.

– Adeus, Hermano.

— Amália!… Talvez.– Não façamos do nosso amor um
galanteio de sala. Já esqueceu Julieta e poderia esquecê-la nunca?
Hermano não respondeu.

– Bem vê que é impossível.

A moça afastou-se lentamente Hermano entrou na sua chácara,
e sentou-se no primeiro banco A lua vinha assomando no horizonte.

Ouviram-se prelúdios de piano; e uma nota melancólica e suavíssima
cortou o silêncio da noite

Era a voz de Amália que soluçava o Addio del passato da Traviata

CAPÍTULO 13

Amália, durante a longa vigília daquela noite, se compenetrara
bem da situação, em que a tinham colocado os acontecimentos.

A proximidade do homem que amava, e a quem não podia pertencer; a
facilidade de vê-lo a cada instante involuntariamente, ou a casa onde
habitava; essa certeza de sua presença, ali, a alguns passos dela,
era um suplício cruel.

Cumpria quebrar de uma vez esse elo material, já que não podiam
unir-se pelos vínculos d’alma.

Amália lembrou-se a princípio de passar fora da corte algumas
semanas que faltavam para a viagem; mas pareceu-lhe melhor apressar de uma
vez a partida para a Europa.

Com esta idéia, ergueu-se pela manhã, e saindo do seu quarto,
encaminhou-se ao gabinete do pai resolvida a fazer-lhe o pedido. Foi, porém
na sala de jantar que o encontrou em companhia da mãe.

Veiga abraçou a filha muito risonho; e prendendo-lhe a loura cabeça
no peito, pôs-lhe diante dos olhos uma carta aberta, na qual a moça
reconheceu a letra de Hermano.

Antes que ela se recobrasse da surpresa e pudesse ler a carta, D. Felícia
lhe comunicara sofregamente o assunto.

Era um pedido de casamento, no qual Hermano manifestava o desejo de obter
pessoalmente de Amália o seu consentimento

– Pode vir? perguntou o pai à filha depois que esta acabou de ler
a carta.

-Ainda não, respondeu Amália agitada.

– Quando? disse D Felícia.

– Quero pensar, mamãe.

A senhora, para quem Hermano agora era o homem mais sensato do mundo, fez
à filha mui judiciosas observações acerca da conveniência
de apressar a decisão: e não se esqueceu de citar em seu abono
o conhecido anexim que dá por transtornado o casamento adiado.

Amália persistiu não obstante, e com uma razão que desarmou
a mãe.

– Se é preciso que responda imediatamente, mamãe, recuso porque
desejo aceitar, que peço a liberdade de refletir. Para dispor de minha
vida inteira, não são muitos alguns dias. – Pois bem, Amália,
pensa à tua vontade; mas lembra-te de que a viagem está próxima.
É verdade que pode-se adiar, até mesmo porque o tempo não
anda bom. Tem havido tantos temporais. Que diz, Sr. Veiga?

O capitalista que lia os jornais, levantou os óculos para observar:

– Mas o câmbio é ótimo. A ir não devemos perder
esta ocasião

Amália hesitou durante alguns dias. Ela tinha naquela carta, lida
tantas vezes, e guardada consigo, a prova cabal, além de muitas outras,
do amor que Hermano lhe consagrava. Mas podia ela confiar a sua sorte desse
amor?

Hermano era uma alma nobre, um caráter leal, incapaz de iludi-la.
Não duvidava dele; mas duvidava de si. Receava não ter força
para dominar e possuir esse coração generoso, arrancá-lo
ao passado em que se havia sepultado, e ressuscitá-lo felicidade.

Ela acreditava que o marido de Julieta ainda amava a primeira mulher e vivia
de sua lembrança

Mas esse afeto de além túmulo não podia encher-lhe a
existência; e por isso aquela alma rica de paixão e mocidade
se desprendia da sua idolatria para buscar no mundo uma expansão, um
sentimento de que se nutrisse.

Nesse impulso, Hermano se lançara na realidade, fascinado pela beleza
da desconhecida; mas, em breve a ilusão desvanecera-se. O homem regenerado
pelo amor casto de Julieta não podia corromper-se numa lição
impura. Passada a alucinação, tornara ao seu culto.

– Foi então que ele, desesperado pela recordação da
mulher, e crendo em mim outra Julieta, começou a amar-me, pensava Amália;
e talvez esse amor o tenha salvado, dando-lhe forças para reabilitar-se.
Sem ele, sem um afeto que o obrigue e o ampare, não se deixará
dominar ainda pela beleza fatal daquela mulher, ou de outra como ela? E poderá
reerguer-se da nova queda?

A moça decidiu então na generosidade de seu amor votar-se à
guarda e arrimo desse homem infeliz pela exuberância de sua alma.

-Mas, se o amor que inspirei, e que ele sinceramente acredita sentir por
mim, não for mais do que um capricho efêmero um reflexo apenas
da paixão que tem por Julieta? Quando dissipar-se o encanto me perdoará
ele ter profanado o culto da esposa e rompido para sempre o elo que o prendia
à primeira e única mulher amada? Não terei eu sacrificado
a minha vida, não para dar-lhe a felicidade, mas para fazer a sua desgraça?

Era esse o grande problema do seu destino. Amália bem o compreendia;
e sem deliberação para resolver por si, deixava isso ao tempo
esperando uma inspiração do céu. Entretanto passavam
os dias aproximava-se a época da viagem; e talvez fosse esta o melhor
e o único desenlace.

Toda essa hesitação, bastou um olhar para dissipá-la.
Amália indo com a mãe à cidade, encontrou Hermano e não
pôde resistir ao gesto de doce resignação com que ele
a saudou.

É o meu destino, pensou a moça. O meu e o seu.

Respondeu ao cumprimento, parando para falar-lhe; e na despedida, ao apertar-lhe
a mão disse:

-Até à noite.

Ao escurecer, quando Hermano chegou, Amália o esperava no jardim.
Antes que ele preferisse qualquer palavra, a moça, espontaneamente
e como se continuasse um diálogo não interrompido, entregou-lhe
a mão dizendo:

– Com uma condição.

– Qual?

– Se até o último instante eu perceber o menor sinal de arrependimento
ou mesmo de hesitação, fica-me o direito de restituir-lhe a
liberdade.

– Duvida de meu amor, Amália? Depois de ter-lhe dado a maior prova?
tornou Hermano magoado. Que conceito lhe mereço então?

– Não! acudiu a maca vivamente. Não duvido; nem do seu amor
nem da sua lealdade, Hermano. Po interesse pela sua felicidade que me inquieta.

A noite as visitas receberam com a notícia do malogro da viagem à
Europa, a participação ainda confidencial do próximo
casamento de Amália com Hermano.

A certeza dessa união, esperada pelas pessoas que freqüentavam
a família Veiga, foi bem recebida; todos felicitaram cordialmente os
noivos. O Borges, porém, embora se mostrasse dos mais pressurosos em
aplaudir, ia pelos vários grupos de convidados insinuando um veremos
significativo.

O Teixeira que o ouviu, incomodou-se; e receou talvez o agouro daquela dúvida.
Entretanto ele acabava de conversar com o amigo; e embora na sua qualidade
de médico calcasse na cicatriz dessa alma para conhecer se doía-se
ainda do golpe, não descobriu perplexidade no espírito de Hermano.
A sua resolução era firme e calma; tinha sido friamente meditada,
não provinha de um assomo de momento.

No dia seguinte começaram os preparos do casamento, que por parte
de Amália já estavam adiantados. Desde a apresentação
de Hermano em sua casa D. Felícia vira nele o marido que tanto desejava
para a filha e por isso a pretexto de arranjos de viagem, o que ela tinha
encomendado às costureiras e modistas era um rico enxoval de noiva,
já quase pronto.

Por parte do noivo também não havia muito que fazer. A casa
estava pronta; e não faltava senão a pintura, pois ainda conservava
a primitiva que recebera por ocasião do primeiro casamento. Isso e
a substituição dos móveis era negócio para um
mês.

Amália acompanhou de longe e com indiferença esses pormenores
domésticos, que têm geralmente um especial encanto para os noivos,
como primícias que são da vida conjugal, e flores de uma primavera
casta e serena.

A moça tinha outra preocupação mais séria que
absorvia a sua solicitude. Observava o noivo e estudava a sua alma, atenta
ao menor sintoma de desfalecimento que porventura se manifestasse na sua resolução.
O que ela temia sobretudo era um erro fatal.

– Se depois de unidos para sempre a sua alma separar-se de mim, eu serei
um obstáculo, um tormento para sua existência. Longe, nunca mais
deixará de amar-me; entretanto como meu marido, pode até odiar-me.

Esta reflexão íntima revela o que se passava em Amália.
O seu tempo de noiva, que para as outras é o idílio suave de
um amor partilhado, para ela foi todo cheio de inquietações,
de sustos e de graves pensamentos.

Ela velava sobre o seu futuro guardando-se para mais tarde gozar sem receios
de sua felicidade, se Deus a abençoasse.

Poucos dias antes da época marcada para o casamento, D. Felícia.
a pedido do noivo fez com a filha uma visita à casa que já se
achava preparada. Nessa ocasião Amália foi assaltada por uma
idéia que ainda não lhe tinha ocorrido, e que a fez estremecer.

A mãe falara do seu toucador e quarto de dormir. Estas palavras desenharam
em seu espírito pela primeira vez a realidade doméstica de sua
futura posição naquela casa. Ela vinha substituir outra mulher
que ali fora dona e senhora antes dela.

Seus aposentos seriam os mesmos aposentos de Julieta, fechados desde a morte
desta e respeitados durante cinco anos como um santuário?

E teria ela, Amália, a coragem de profaná-los como o fizera
uma dessas mulheres, que não conhecem a santidade da família?

CAPÍTULO 14

Depois de pequena demora na sala, Hermano convidou as senhoras para verem
o interior da casa.

– Em primeiro lugar o toucador, disse D. Felícia, que pretendia aferir
a ventura da filha pelo luxo desse aposento especial.

Amália que passara adiante dirigia-se para o lado do edifício
em que ela sabia desde muito achar-se a sala que servia de toucador a Julieta.
Hermano, porém, adiantou-se com visível precipitação
e tomou-lhe a passagem.

– Por aqui, Amália, disse ele um tanto perturbado e indicando com
o gesto a direção oposta.

Ai estavam efetivamente os aposentos da noiva, onde a arte reunira todas
as comodidades domésticas sob a forma mais graciosa, dando à
riqueza dos móveis os realces da elegância.

Enquanto D. Felícia. regozijava-se com esse luxo, que esperava encontrar,
e distribuía os seus elogios a cada peça, Amália observava
silenciosamente, estudando com uma prevenção que não
podia vencer, o aspecto e arranjo do aposento que lhe estava destinado.

A primeira circunstância que provocou sua atenção, foi
o contraste saliente deste toucador com o outro, o anterior, que ela vira
a primeira vez quando menina, e tornara a ver ultimamente..

Apesar de corresponder exatamente a repartição das duas asas
do edifício e de terem portanto as salas o mesmo plano e as mesmas
dimensões, tão opostas eram no adereço e arranjo que
denunciavam o propósito de torná-los o mais diferentes que fosse
possível.

O antagonismo manifestava-se em tudo, na pintura, na tapeçaria, nos
ornatos, nos móveis. As cores desdiziam inteiramente. O primeiro toucador
era azul e branco; este rosa e ouro. Os trastes daquele, de erable; os deste,
de ébano. A colocação dos objetos inversa.

Quando D. Felícia. passou ao quarto de dormir, a filha disfarçou
para não entrar; mas de relance percebeu que ali havia dominado o mesmo
intuito.

Para Amália esta antítese foi uma cifra do pensamento recôndito
de Hermano; e ela embalde perscrutou-lhe na fisionomia o verdadeiro sentido.
O noivo satisfeito e contente com os elogios de D. Felícia e com o
interesse que a moça tomava por seu toucador, não revelava no
semblante a menor preocupação.

Todavia Amália persistiu em descobrir um desígnio naquela circunstância
que podia ser casual. O susto que sentira a princípio, com a idéia
de ocupar os mesmos aposentos de Julieta, acabava de transformar-se em uma
fria suspeita e que transpassava-lhe o coração.

Pensativa, reservada, seguiu a mãe durante a visita minuciosa, que
fez ao resto da casa. Hermano, ocupado em mostrar à senhora os vários
objetos do trem doméstico, não teve ensejo de reparar na frieza
da noiva Se alguma vez achou-a recolhida e silenciosa, atribuiu sua timidez
ao recato natural da menina, ante esse prólogo da vida conjugal, que
se desdobra aos seus olhos de virgem noiva.

Nesse dia, quando Amália só e em liberdade, pôde coligir
suas impressões e refletir sobre o incidente da visita, a suspeita
que se aninhara em seu espírito cresceu, e tornou-se em certeza. A
alma de Hermano estava escrita naquele símbolo, que ela a princípio
não pudera decifrar.

Julieta ainda tinha naquela casa um templo onde era adorada ainda ela dominava
e possuía tão completamente o coração do marido
que este, apaixonado por outra mulher a quem ia ligar-se eternamente e na
véspera dessa união, não podia banir de si o passado
e divorciar-se do primeiro amor.

Era por isso, era para conjurar as recordações implacáveis
que surgiam a cada instante; para iludir-se emprestando uma virgindade artificial
a emoções já outrora sentidas, que Hermano recorrera
calculadamente àquela diversidade dos objetos que deviam cercá-lo
na fase nova de sua vida.

Tinha feito como o pintor que obrigado a repetir um quadro histórico,
buscasse na divergência das cores e na mudança das posições,
uma novidade que faltava ao assunto; e sem a qual a monotonia lhe matava a
inspiração.

Amália recordava-se de uma observação anterior. Pintava-se
a casa, notou que a asa direita do edifício continuava fechada; mas
não deu a isso nenhuma importância, distraída como andava
com outros cuidados. Agora tinha a explicação. Essa parte da
casa, que fora particularmente habitada por Julieta, ficara intata. Era uma
relíquia.

– É preciso romper este casamento! disse então Amália
consigo.

Tomada a resolução, ela espreitou o ensejo de levá-la
a efeito de modo que poupasse a suscetibilidade de Hermano. Quando estava
só fortalecia-se no seu intento; mas quando chegava o noivo e ela o
via tão feliz e tão regenerado por seu amor, não tinha
ânimo de precipitá-lo daquele faqueiro transporte, que também
a arrebatava.

Uma vez o amante exprobrou-lhe a esquivança que ela mostrava acerca
desses projetos de futuro, os quais não passam muitas vezes de fantasias,
mas são para os noivos como uma antecipação da felicidade
conjugal.

– Quer saber a razão? disse Amália.

– Não é preciso que o diga. Se me amasse como eu a amo, achada
o mesmo prazer nestas futilidades.

A moça respondeu-lhe com uma expressão grave e um olhar repassado
de tristeza:

– Se não o amasse, como o amo, achada decerto prazer em falar nessas
esperanças e promessas de uma ventura que é o meu sonho. Mas
ao contrário elas me entristecem.

– Por quê, Amália? perguntou ele surpreso e inquieto.

-Tenho um pressentimento.

– Não diga isto!

– Não serei sua mulher, Hermano.

O amante adivinhou a razão dessa dúvida que afligia o espírito
da moça; e respondeu-lhe com uma queixa:

-Mostrei-lhe acaso, Amália, o menor indicio de arrependimento e hesitação
para que retire o consentimento que me deu?

– Não o retiro; dei-lhe a mão; ela pertence-lhe.

– Mas então quem se oporá à nossa felicidade?

– Não sei; mas tenho medo que ela não se realize.

– Faltam tão poucos dias!

– Até à hora, ninguém sabe o que pode acontecer.

Hermano esforçou-se por dissuadir Amália daquela idéia,
e com tanta efusão falou-lhe de seu amor, que ela deixou-se convencer,
e creu enfim na possibilidade de ser feliz.

Se a moça cogitasse em um meio de fascinar o seu amante, de o prender
ainda mais a si, não poderia escolher melhor do que este receio sincero
por ela manifestado. Desde aquele diálogo Hermano redobrou de extremos;
e se já havia resumido sua existência em Amália, não
viveu mais senão das horas que passava junto dela.

Ao chegar interrogava ansiosamente o semblante da moça receoso de
ler nele a sua condenação. Depois de retirar-se, inventava pretextos
para voltar uma e mais vezes, como para certificar-se de que nenhum acidente
ameaçava de novo a sua felicidade.

Esse tempo foi para ele um continuo sobressalto – e para Amália o
mavioso enlevo de sentir-se amada com todas as emoções e todas
as energias dessa alma opulenta. As dúvidas e receios de seu espírito
dissiparam-se completamente. Tinha agora a confiança de seu poder,
e a convicção de que Hermano lhe pertencia, e a ela unicamente.

E não advertiu que essa impulsão era talvez o efeito de um
anelo estremecido pelo temor, e ao qual talvez sucedesse uma reação
violenta.

No dia marcado celebrou-se o casamento. Não sábado, dia tão
impropriamente pelo uso para esse ato solene. É com efeito difícil
atinar com a relação que possa haver entre a véspera
do repouso e o instante em que principia para o homem a grave responsabilidade
de família Saturno devorando os filhos é um mau signo para a
fecundidade do matrimônio.

Amália estava deslumbrante com seu traje de noiva. Os esplendores
de sua beleza ardente tomavam através dos cândidos véus
uns tons suavíssimos.

Hermano era o mesmo cavalheiro fino e elegante, que seus amigos tinham conhecido
dez anos antes Se a flor da primeira mocidade passara, a fisionomia, como
o porte, ganhara em distinção e naturalidade.

O Sr. Veiga festejou o casamento da filha com um baile suntuoso. Às
duas horas começou uma dessas intermináveis quadrilhas que servem
de remate ordinário a semelhantes reuniões dançantes.

A alegria era geral; e os noivos foram dos que mais se divertiram. Ambos
eles renasciam para a vida brilhante dos salões da qual se tinham por
algum tempo afastado; ela durante a sua tristeza, ele durante a sua viuvez

Já o nascente bruxuleava, quando o baile formou-se em procissão
para acompanhar os noivos à casa.

CAPÍTULO 15

Voltando de reconduzir os seus hóspedes, Hermano aproximou-se do sofá
onde Amália sentara-se.

– Estou caindo de sono, disse a moça conchegando-se com um gesto gracioso
na longa capa de caxemira que lhe cobria as espáduas, e as vestes de
noiva.

– Por que não se recolhe? perguntou o mando.

Ela hesitou um instante; mas afinal erguendo-se com um faceiro assomo para
romper o casto enleio, dirigiu-se ao toucador e ali achou sua criada.

Às pressas açodamente, como costumava quando recolhia-se tarde
e fatigada dos divertimentos, trocou as sedas e atavios por um alvo e fresco
roupão de cambraia com fitas escarlates, delicioso traje no qual ela
parecia vestida de sua candidez e de seu pudor.

Sentou-se então no divã.

Estava tão fatigada! Tinha dançado como uma menina de colégio
que vai ao seu primeiro baile. Não sentia o cansaço do corpo
somente; o espírito também havia sofrido as emoções
daquela noite e dos dias anteriores. Era feliz, tão feliz, que sua
alma carecia de repouso.

Reclinou a cabeça no recosto do divã, e insensivelmente o seu
lindo talhe descaiu lânguido. As pálpebras cerravam-se a seu
pesar: mas ela fazia um esforço para abri-las. Tinha um vago susto
de abandonar-se ao sono ali, sozinha; e também vexame de que Hermano
viesse encontrá-la a dormir

O marido entrou no toucador e chegando uma cadeira sentou-se defronte cautelosamente,
para não perturbar o repouso da noiva. Ela não o sentira entrar;
mas abrindo os olhos viu-o em face a contemplá-la com enlevo.

Sorriu-se, e dando-lhe a mão que ele guardou entre as suas, adormeceu
como uma criança. A presença de Hermano inspirou-lhe nesse momento
a mesma confiança, que outrora o afago materno; o amor a ninou.

Hermano demorou-se algum tempo a admirar a graça de Amália
assim adormecida. Involuntariamente seu pensamento enleando-se nas reminiscências
o transportou ao passado, à noite de seu primeiro casamento.

De repente, tornando daquele recordo ao presente volveu o olhar em tomo e
ficou atônito de ver ali em face dele a mulher que pouco antes admirava,
a esposa a quem se ligara havia poucas horas.

Ergueu-se pálido, desmudado, espavorido, e afastou-se.

No dia seguinte, eram dez horas da manhã quando um raio de sol brilhante
e alegre entrou pelo aposento de Amália como para festejá-la.
Durante a noite, a moça acordara, e tonta do sono, buscara no próximo
aposento o leito, onde refugiou-se.

Pela manhã a mucama abriu a janela do toucador; e uma réstia
de sol batendo no espelho refrangera acariciando o rosto mimoso da moça
pousado em um ninho de rendas.

Ela abriu os olhos e saltou da cama, alegre como um passarinho.

– Sinhá quer tomar alguma coisa? perguntou-lhe a mucama.

– Eu quero almoçar, que estou com muita fome.

– Mando pôr na mesa?

– Não; aqui mesmo, no toucador.

Amália teve então uma idéia que lhe sorriu. Sentou-se
à sua secretária, um mimo de marcenaria, e escreveu a seguinte
canta em papel que ali achou, com o seu monograma:

"D. Amália Veiga de Aguiar tem a honra de convidar seu marido
Carlos Hermano de Aguiar para almoçar em sua companhia, hoje, às
onze horas, no seu toucador. O ménu fica por conta do convidado."

A moça fechou o seu convite e mandou-o entregar a Hermano de quem
senta a falta perto de si. Ela não o censurava pela ausência;
mas parecia-lhe que ele devia ter-se apressado em saudá-la logo pela
manhã, e sobretudo nesse primeiro dia em que dormira na sua casa.

Hermano acudiu pressuroso ao convite; e os dois noivos almoçaram jovialmente
perto de uma janela, que dava para o jardim, ouvindo cantar os passarinhos
e aspirando a fragrância das flores que o vento, soprando nas roseiras
esparzia sobre a mesa.

O resto do dia passaram nesse mesmo devaneio amoroso lendo e recitando versos,
recordando a breve história de sua afeição, e estremecendo
ainda dos incidentes que os ameaçavam tantas vezes de uma separação
eterna.

No meio destes lirismos, Amália escreveu à mãe uma carta
cheia de ternuras; e D. Felícia veio fazer à filha uma rápida
visita que a encheu de júbilo por ver seu contentamento.

O jantar foi a reprodução do almoço. Comeram ali mesmo
no toucador em uma mesa volante, servidos pela mucama. Amália achava
encanto nessa solidão a dois, em que nenhum olhar estranho e indiscreto
vinha perturbar a sua casta felicidade.

No fim do crepúsculo, quando as sombras se condensavam entre as árvores,
saíram os noivos à chácara para espairecer. Sem intenção
e sem consciência, Amália dirigira o passeio justamente para
aquele banco onde outrora Julieta sentava-se todas as tardes com o mando.

Hermano a princípio a tinha acompanhado sem observação,
mas visivelmente contrariado, o que a noiva não percebeu por ter volvido
os olhos para a casa paterna. Quando, porém, a moça ia sentar-se
no banco, ele irrefletidamente impediu-lhe o movimento com o braço,
e obrigou-a a afastar-se.

– Não se sente ai, Amália.

Amália, surpresa por aquele gesto, que não era um abraço,
reconheceu o sito e adivinhou a razão da repugnância do narco.
Sua alma confrangeu-se. O erro, o erro fatal, que ela tanto receou, estava
consumado.

Calou-se, porém, e seguiu silenciosamente o marido que para que a
ocorrência, falava-lhe com volubilidade dos planos que tinha para embelezamento
da chácara, a fim de que Amália achasse ai todos os encantos,
quando, fatigada da sociedade, se deixasse ficar no seu retiro para repousar.

Notando afinal a mudez e esquivança da moça compreendeu que
a impressão fora profunda; e para serenar-lhe o espírito renovou
os protestos tantas vezes de que ela era sua felicidade, sua vida, sua alma.

– lludiu-se, Hermano, e eu também. A sua felicidade, se alguém
lha pode dar neste mundo, não sou eu; e Deus sabe que sacrifícios
eu não faça para merecer esta graça’

Amália proferiu estas palavras com uma tristeza maviosa e afastou-se
para que o mando, apesar do escuro, não lhe visse as lágrimas.

– Não tem razão, Amália. Se eu me lembrasse de oferecer-lhe
uma flor, já usada por outra senhora, não a rejeitada ofendida?
E me condenara, se eu procurasse antes para dar-lhe uma destas violetas, abertas
agora mesmo com o sereno da noite, cheias de perfume e colhidas por mim em
sua intenção? Pois assim deve ser também com as flores
d’alma. Eu não pude nascer no dia em que a conheci, para que minha
vida começasse com o meu amor. Quero, porém, despir-me do homem
que fui, porque esse não lhe pertence. e portanto não existe
mais.

– Então é por mim? perguntou a moça com surpresa

– Pois duvidava?!

Amália sorriu. A nuvem se tinha desvanecido: seu céu de amor
estava outra vez límpido e sereno

Entretanto quando, ao recolher, ficou só como na véspera, pensou
consigo que se Hermano a amasse, tanto quanto ela o amava não teria
lembrança para quanto não fosse o seu amor. A filha não
esquecia perto dele a mãe de quem nunca se apartara até aquele
dia? Por que não esquecia ele também uma pessoa finada desde
cinco anos?

Achava alguma razão nas palavras do marido, mas dispensara de bom
grado aquela delicadeza Desejada antes ser querida por Hermano com tanto anelo
e transporte que tudo para ele fosse novo nessa casa, nesses sítios,
cheios do passado.

Apreciava a pureza das flores d’alma recém-abertas ao seu influxo;
mas também pensava que em uma alma completamente regenerada pelo amor,
já não devia de haver flores murchas e fanadas, como eram essas
recordações que pungiam o mando.

Os três primeiros dias depois do casamento, Amália e Hermano
os passaram no mesmo delicioso a sós. Comiam no retiro do toucador,
não como casados da véspera, mas como namorados em partida campestre,
às ocultas.

Esse cunho de improviso e de folia era o que mais encantava Amália.
Ela que sempre fora menina e travessa queria descontar agora os dias de tristeza.
A solenidade da vida conjugal e a serenidade da posição de dona
de casa, assustavam a seu gênio faceiro. Assim esquivando-se a pretexto
de recato e acanhamento, retardava o momento de assumir suas graves funções

Chegou porém, o dia.

A mesa estava servida para o almoço. Amália tomou a cabeceira
e o marido sentou-se ao lado.

– Onde está Abreu? perguntou o dono da casa. Chame-o!

A voz de Hermano tinha uma severidade desusada. Nunca Amália ouvirá
aquele timbre. Ela fitou o semblante do marido, e notou a expressão
áspera de sua fisionomia e o olhar imperativo com que ele recebeu o
velho criado.

Abreu aproximou-se da mesa com o passo dos soldados; dobrou a cerviz por
um movimento de engonço, e perfilou-se

Quando Hermano passou-lhe o prato destinado a Amália ele o conservou
na mão imóvel. Foi preciso que o amo lhe desse ordem terminante:

– Para a senhora!

Então sem voltar-se, estendeu o braço e pôs o prato na
cabeceira. Nem então, nem depois, durante todo o almoço, o seu
olhar, que ele tinha sempre levantado, buscou a dona da casa.

Não a queria ver, e não a viu.

CAPÍTULO 16

Tinham decorrido quinze dias depois do casamento.

Amália já não podia esconder a sua tristeza. As apreenções,
que a haviam assaltado antes, ai estavam realizadas. Sacrificara-se para fazer
a felicidade do homem a quem amava, essa união ia tomar-se um suplício
cruel para ambos.

Nos primeiros dias, a moça enlevada pelos lirismos do coração
virgem, sentiu-se feliz. Em sua inocência, não desejava mais
do que possuía. As efusões de Hermano, sua palavra comovida,
seu olhar temo e faqueiro sorriso bastavam para encher-lhe a alma e transbordar.

Havia, porém, nesse afeto uma timidez que ela não podia definir.
Ainda não recebera uma só carícia; quando solteira tomada
tais demonstrações como desacato. Mas agora o seu título
de esposa as santificava. Parecia-lhe que seu mando devia ter o mesmo direito
que seu pai, de beijar-lhe a face e estreitá-la ao peito.

Talvez Hermano se acanhasse, e não tivesse ânimo de tomar essa
liberdade. Compreendia o seu enleio pela comoção, que tinha
ela também, só de pensar nisso. Mais tarde vida a intimidade.

Então o espírito da moça lançava-se no vago,
ansioso de perscrutar o desconhecido; e coligindo em suas recordações
idéias outrora incompreensíveis, rasteava um pensamento que
a fazia enrubescer. Não sabia nada; não suspeitava; mas pressentiu.

Julgou-se humilhada, não somente em sua beleza, mas em sua dignidade
de senhora.

Ao mesmo tempo outras circunstâncias concorriam para agravar a sua
posição já melindrosa. Hermano que a princípio
se mostrava cheio de atenções e somente ocupado dela, agora
tinha freqüentas distrações, sobretudo na mesa.

Seus olhos a evitavam ainda mesmo quando lhe dirigia a palavra. Ficava por
muito tempo calado e absorto. Às vezes no meio daquela concentração,
fitava a mulher, observava-lhe as feições com estranheza, e
no seu semblante pintava-se a surpresa. Desviava então a vista, e de
novo caia na sua abstração.

Uma manhã, Amália mandou mudar a disposição da
mesa colocando seu talher na outra cabeceira, para não ter o sol de
face. Veio o marido que tomou maquinalmente o seu lugar costumado. Pouco depois
reparando na alteração, lançou à moça um
olhar de espanto; e saiu precipitadamente da sala onde não voltou esse
dia, dando-se por incomodado.

Amália adivinhou que era o lugar de Julieta na mesa. Hermano não
querendo que ela o ocupasse, lhe havia destinado outro. Daí a sua contrariedade.
Não obstante a impressão que lhe causou o fato, a moça
procurou disfarçar, e convidou o mando para jantarem nessa tarde à
sombra das mangueiras.

O Abreu por seu lado continuava para ela, o mesmo homem de pau do primeiro
dia. Em quinze dias, ainda não lhe tinha dirigido um olhar, nem uma
palavra. Com a sua máscara impassível isolava-se dela inteiramente.

Durante a viuvez de Hermano, foi o velho quem governou a casa, onde por seu
intermédio as ordens de Julieta eram ainda executadas, como no dia
em que ela as dera. Os outros criados obedeciam-lhe como a um chefe; e tinham-lhe
senão mais respeito, decerto que mais temor do que ao amo. Era este
que os pagava; mas era aquele que os alugava e os despedia.

A presença da nova dona da casa não alterou esse regime. Era
preciso que alguém mandasse, e o ex-furriel levado pela hábito
ia determinando o serviço como dantes. Assim, quando Amália
quis ensaiar a sua autoridade doméstica achou uma resistência
muda mas tenaz.

Se mandava mudar um traste, ou fazer alguma leve alteração
no arranjo da casa, ninguém lhe opunha a menor observação.
Mas no outro dia as coisas voltavam ao estado anterior. Indagada a razão
os criados respondiam repetindo a palavra de Abreu a ordem". Isso queria
dizer que assim se havia feito por vontade de Julieta.

Amália retraiu-se para evitar conflitos que a obrigavam a um ato de
rigor. Muito a afligida se a sua união com Hermano desse causa à
expulsão do velho criado, que era já um amigo da casa. Ela tinha
bom coração; e lembrava-se de que o Abreu fazia aquelas coisas
pelo muito amor à sua filha de criação.

Todavia, quando pensava na sua posição, não podia dissimular
que era naquela casa uma intrusa, que estava ocupando o lugar de outra não
só nos atos da vida doméstica, mas também no coração
do mando. A cada instante a realidade fazia-se, para mostrar-lhe que era demais
ali

D. Felícia. não tardou em aperceber-se da tristeza da filha
e interrogou-a. Nada colheu. Amália guardou o seu segredo. Não
queria afligir a mãe; e ainda menos expor Hermano a uma censura ou
queixa que talvez ainda mais o separasse dela.

Uma noite, porém, a inquietação materna venceu o delicado
escrúpulo da sogra, e D. Felícia. tomando à parte Hermano,
perguntou-lhe o que tinha Amália

– Nada. Ela queixou-se?

– Não, e é o que mais me aflige. Pois ainda não reparou
na mudança que ela tem feito nestes últimos dias?

A senhora mostrou-lhe de longe a moça que nesse momento sentada de
perfil e pensativa era a mais bela estátua de melancolia, que um artista
poderia imaginar. O mando ficou a olha-la compassivo.

– Eu lha dei, Hermano, para fazê-la feliz.

– E é o meu ardente desejo; e se bastasse o meu amor!…

A entrada do Sr. Veiga pôs termo a esse diálogo. D. Felícia.
aproximou-se da filha e tentou ainda surpreender a causa daquela mágoa.
Desta vez não fez nenhuma pergunta direta; indagou disfarçadamente
de mil coisas a ver se descobria algum arrufo. A moça, porém,
não manifestava a mais leve sombra de ressentimento..

Eram dez horas.

Amália estava só e pensava no seu destino quando Hermano veio,
como costumava, sentar-se perto dela. Conversaram algum tempo.

– Anda triste, Amália? disse por fim o marido.

– E não tenho razão, Hermano?

Ele tomou a mão da mulher, e atraindo-a a si reclinou-se para beijar-lhe
o rosto. Amália, cheia de rubores e júbilos, palpitante de emoção,
abandonou-se ao doce impulso; mas de repente, faltando-lhe o apoio, o talhe
descaiu sobre o recosto.

Hermano soltara-lhe as mãos, no momento em que seus lábios
iam tocá-la; e erguera-se pálido, hirto, com a visão
pasmada, como se um espectro surgisse a seus olhos.

– Perdão! murmurou com a voz abafada.

Esta súplica, porém, Amália conheceu que não
se dirigia a ela, pois o olhar do marido passava por ama de sua cabeça
e fitava-se além.

Afinal dominando-se, sentou-se de novo, reportando à mulher aquela
mesma exclamação com a voz mais livre.

Amália sob a influência daquele estranho pavor, emudecera. O
marido não se animou a quebrar esse doloroso silêncio. Depois
de um instante de perplexidade, murmurou umas palavras de despedida, levantou-se
e saiu do toucador.

O primeiro sentimento de Amália depois da surpresa que lhe causara
esse fato foi a revolta contra o império que exercia a lembrança
de Julieta no ânimo do marido, e a fraqueza desse homem que se deixara
subjugar àquele ponto.

A mulher, ou antes, a sombra que sala do seu túmulo para disputar-lhe
o marido, ela a odiava. Que direito mais tinha Julieta sobre Hermano? Deus
não os havia separado, levando-a deste mundo e deixando-o, a ele, livre
de amar e escolher outra esposa?

Esse marido lhe pertencia agora; e ninguém lho podia roubar. Tinha-lhe
jurado fidelidade; e só ela podia dar-lhe a ventura. Essas recordações
que afligiam incessantemente o espírito de Hermano, eram uma vingança
de Julieta. Essa mulher nunca tinha amado sinceramente o esposo; pois não
sabia sacrificar-lhe o egoísmo de sua afeição.

A este assomo, ou talvez delírio de sua imaginação exaltada
pela idéias fantásticas do mando, sucedeu, como era natural,
o desânimo, o abatimento, a prostração do como e do espírito.

Vergou ao jugo da fatalidade que a oprimia; e compreendeu que só havia
para aquela situação insolúvel uma saída. Era
a separação.

Cumpra romper quanto antes o laço que não era mais vínculo
de união, e sim a algema de um.

Mas como? Que razão daria a seus pais e ao mundo para aquele ato de
tamanha gravidade e escândalo! De si não se preocupava. O que
não queria era lançar qualquer mácula sobre o marido,
a quem amava, e sujeitá-lo à reprovação geral.

Falada a Hermano logo no dia seguinte, e combinaram o melhor meio.

Separar-se-iam como dois irmãos queridos que o destino aparta e longe,
lembrando-se um do outro revivendo os dias felizes que haviam precedido o
seu casamento se amariam eternamente.

Mais tarde, talvez!…

Essa meiga esperança veio afagar o seu pensamento, cerrou-lhe as pálpebras
e trouxe-lhe um sono plácido, depois de tão violentas emoções.

CAPÍTULO 17

Era tarde quando Amália acordou deitada ainda e envolta nas alvuras
de suas roupas de linho, entrou a olhar amorosamente os objetos que a cercavam,
os móveis, as decorações da parede, as árvores
do jardim que ensombravam as janelas.

Tinha saudades deste sonhado ninho de seu amor, onde, se neo havia achado
a ventura, fruira tão doces momentos de enlevo conversando com seu
Hermano.

E agora era preciso e com eles as ilusões de uma de que lhe fugira
quando a supunha segura. Sua esperança despedia-se de todos estes companheiros
de solidão, que lhe haviam sorriso nos primeiros dias.

Hermano desde muito cedo andava na chácara. Ao entrar em casa viu
a mulher sentada na sala, a cismar. Ela revolvia as dolorosas impressões
da véspera, para fortalecer-se em sua primeira resolução.

Vendo o mando que parara indeciso, enviou-lhe o seu melancólico e
resignado sorriso.

Hermano aproximou-se então e disse-lhe impetuosamente com uma voz
sufocada:

– Sou um miserável, Amália; sacrifiqueia-a indignamente. Amei
com paixão, jurei fazer a sua felicidade, que era a minha, uni o meu
ar, seu destino: e eu não me pertencia, não era livre, não
podia dispor de mim! Sou um miserável!.. Trai a minha primeira mulher,
e à segunda enganei!…

– Não me enganou, Hermano; afaste semelhante idéia. Eu sabia
o que se passava em seu espírito e previ o que veio acontecer. Se alguém
errou, fui eu que me iludi numa esperança falaz, mas tão grata,
que ainda me deixaria enlevar por ela se fosse possível.

– Sabia, Amália?… Mas por que não me repeliu? E eu, cego
que estava, roubei-lhe a felicidade, a existência inteira!

– Tinha esse direito. Ela lhe pertencia.

Hermano afastou-se arrebatadamente com um gesto de desespero. Amália
foi a ele com o pensamento de acalmar essa agitação e de convencê-lo
da necessidade de uma separação que aplacada os seus escrúpulos,
e pouparia a ela novos e cruéis martírios.

O marido, porém, voltara para dizer-lhe:

– Não se aflija, Amália!… Cometi uma perfídia, mas
não passou de uma alucinação!… A minha honra e a minha
lealdade não me abandonaram ainda e espero em Deus que não me
hão de desamparar nua cá. Juro restituir-lhe intata a sua liberdade
que eu tive a desgraça de comprometer. Resigne-se por alguns dias a
este constrangimento. Ele cessará, deixando-a outra vez senhora de
si.

– É sobre isto mesmo que desejava falar-lhe, Hermano. Refleti, penso
que uma separação é necessária para o sossego
de ambos. Devemos porém fazê-la de modo que não nos fique
mal. O meio é que eu não sei. Se fosse possível!… Lembrei-me
que na Europa, com a viagens, ninguém suspeitada, nem mesmo mamãe.

– Oh! ninguém suspeitará! Terei o cuidado de ocultar! Tomarão
por um incidente um acaso!

Hermano, preferindo estas palavras com um tom equívoco e um sorriso
pungente, deixou a moça entregue a suas tristes reflexões.

A princípio ela não penetrou o verdadeiro sentido daquela resposta
do mando. Pensou que ele se referia apenas ao pretexto da separação
prometendo achar um que poupasse desgosto à família e não
desse azar à maledicência.

Mas aquele estranho sorriso, e a qualificação de acidente dada
pelo marido ao fato que devia desligá-los, lançou em seu espírito
uma dúvida cruel. Que pretendia ele fazer então, simuladamente,
para que os outros o atribuíssem a uma casualidade?…

Amália ergueu-se, trêmula de horror. Adivinhara! Hermano tinha
resolvido matar-se. Era essa a significação daquele juramento
que fizer de restituir-lhe a liberdade. Para não expor a reputação
dela, de sua esposa, é que prometia levar a efeito o plano sinistro
de modo que ninguém desconfiasse do suicídio.

Ansiosa buscou o marido; mas este se havia recolhido ao gabinete onde ela
não animou a entrar.

Imagine-se o que devia sofrer, pensando que naquele mesmo instante em que
tremia atenta ao menor rumor, ele, Hermano, talvez carregava o revólver,
armava-o e… despedaçava a cabeça com um tiro!

Nessa aflição foi até a porta do gabinete para escutar,
e volveu mais tranqüila lembrando-se de que o marido lhe falara em uma
demora de alguns dias. Tornou, porém, assaltada de novos terrores,
e chegou a bater.

Hermano abriu. Encontrando Amália, saiu. Fechou vivamente a porta
sobre si, e dirigiu-se com a moça para a sala próxima. Sua expressão
era calma e natural; ninguém diria que ele ocultava um desígnio
funesto.

Essa placidez aquietou a agitação da moça que para não
toldar novamente o ânimo do marido absteve-se de revelar o seu terror.
Hermano como se nada houvesse ocorrido entre ambos, passou a conversar acerca
de coisas indiferentes, lembrando à mulher vários divertimentos,
que ela recusou.

Na continuação da conversa, Amália confiada nessa tranqüilidade,
e querendo de uma vez acabar com a sua inquietação, perguntou
ao marido de que meio se tinha lembrado para realizar a separação.

– O meio? disse ele. Só há um, Amália.

– Qual?

– A morte.

– Então, é verdade, quer matar-se? exclamou a moça com
desespero, e travando das mãos do marido, como para retê-lo junto
a si.

– Já sou um morto. Metade do meu ser há cinco anos desceu à
sepultura. A outra metade que ficou neste mundo, para expiação
de suas culpas, não teria perturbado a sua felicidade, se estivesse
reunida àquela e restituída ao pó.

– Mas eu não quero que morra, Hermano! Deu-me sua vida; ela me pertence;
a mim também.

– Não a podia dar, Amália! Não lhe confessei já
que sou indigno, que a enganei?

– Pois bem! Esta união é nula; não existe. Mas a culpa
é toda minha: carregarei com ela. Direi a minha mãe que arrependi-me,
que não tinha propensão para o casamento, que não sei
fazer a felicidade de meu marido… Direi o que for preciso, contanto que
viva, Hermano!

– Para quê, Amália, se a amo, e não posso e não
devo amá-la! respondeu o marido.

– Também eu o amo; mas não penso em matar-me!

Hermano sorriu:

– Não preciso matar-me; basta morrer.

– Jura-me que não atentará contra sua vida?

– Já disse, Amália. Não careço do suicídio.
Para que soprar a luz, se ela apaga-se por si?

– Mas dê-me sempre esse juramento para sossegar o meu coração.

– Juro.

– Por ela?… Por Julieta?

– Sim.

Estas cenas abalaram profundamente o espírito de Amália, que
abandonou a idéia de separar-se do mando, naquelas circuntâncias,
deixando-o sob a influência de tão sinistros pensamentos. Apesar
da confiança de Hermano, o juramento deste não lhe dissipara
as apreensões. Não suspeitava um ardil; mas temia uma fatalidade.

Até ali, o recato tão natural em uma noiva, e ainda aumentado
pela reserva do mando, lhe tolhia a liberdade na própria casa em que
devia ser dona. Nunca se animara a penetrar no aposento de Hermano nem se
lembrara disso.

Agora, porém, sua posição. Tinha o dever de guardar
e defender a vida do marido; e para isso carecia de toda sua vigilância
e solicitude. Era mais que tempo de assumir a sua autoridade doméstica
sem a qual não poderia isentar-se da grave responsabilidade de esposa.

Assim, quando no dia seguinte Hermano foi à cidade, ela depois de
haver obtido dele a promessa de voltar cedo e de o ter acompanhado com os
olhos até perdê-lo de vista, saiu da janela resolvida a ensaiar
o seu papel de dona de casa.

Abreu, conforme o costume, acabava de arranjar o aposento do amo, e ia sair
fechando a porta para guardar a chave no bolso, quando Amália entrou.
Passado o seu espanto, o velho decidiu-se a ficar de guarda à moça,
que se sentara em uma cadeira de balanço.

Esse intento, porém, frustrou-se.

– Pode retirar-se, Abreu, disse a senhora com um tom brando, mas firme.

O ex-furriel estremeceu, como se outrora o seu capitão lhe desse uma
ordem contrária ao detalhe; e ficou imóvel.

– Não ouviu?

Aquela interrogação e o olhar que a acompanhara, expulsaram
o criado do gabinete. Ficando só, Amália fechou-se por dentro
e começou a sua investigação. Temia que o marido tivesse
armas ocultas ou veneno. O que achou foram algumas chaves de aço, dourado,
enfiadas em um aro de prata.

Adivinhou de que aposentos eram estas chaves, e abrindo com uma delas a porta
de comunicação, passou ao toucador de Julieta. As janelas cerradas
deixavam o interior em um tênue crepúsculo.

Ao dar o primeiro passo, Amália recuou e presa de súbita vertigem,
cairia, se as mãos não agarrassem convulsivamente as cortinas
da poda.

Instantes depois, recolhendo-se precipitadamente ao seu quarto a moça
caia de joelhos, banhada em lágrimas e murmurando:

– Louco!.. Louco, meu Deus!…

CAPÍTULO 18

Entrando no toucador de Julieta, escassamente alumiado pela claridade que
filtrava entre as lâminas das rótulas, Amália tinha visto,
ali sentada junto à mesa de charão, tal como lhe aparecera três
meses antes a desconhecida.

Fora o abalo dessa visão que lhe causara a vertigem. Tomando a si,
ainda a viu no mesmo lugar, impassível. Encheu-se de indignação
e adiantou-se para expulsar de sua casa aquela indigna.

Apesar do estrépito dos móveis arrastados, a desconhecida permanecia
imóvel.

Amália travou-lhe do pulso, e achou-o gelado. Era então um
cadáver que tinha diante dos olhos? Não; apesar do horror que
a invadiu, pôde afina conhecer a verdade.

Era uma figura de cera.

Atônita com esta descoberta, a moça lembrou-se da vez que avistara
a desconhecida recostada no sofá; e correndo ao quarto de dormir lá
encontrou-a no mesmo lugar, coberta com um véu de seda.

Era outra figura de cera representando a mesma mulher com a única
diferença da posição. Não podendo imprimir movimento
à estátua, o artista o tinha suprido com a mudança da
atitude e do gesto.

Qual era, porém, essa mulher assim reproduzida? Amália não
duvidava um instante que fosse Julieta, embora as figuras não no espírito
a lembrança vaga que tinha da primeira esposa de Hermano.

Mas o retrato de Julieta ali estava, suspenso à parede do toucador,
em um grande quadro a óleo, que representava a moca em corpo inteiro.
Pela data via-se que fora tirado um ano depois de seu casamento.

Entre a estátua e o retrato havia muita afinidade de expressão;
mas nos traços e contornos das feições, a diferença
era sensível. Poderiam ser duas irmãs; não eram, porém,
a mesma pessoa.

Hermano amara então outra mulher depois de Julieta? Amália
repelia essa conjetura, que repugnava com o culto do mando pela esposa a quem
primeiro se ligara.

A caixa de carvalho com preparos de flores artificiais, tinha embutido na
tampa o nome de Julieta. O lenço e as roupas das figuras de cera estavam
marcadas com três iniciais J. S. A.; e da mesma forma o livro que Hermano
lia à noite, um volume de Spirite de Teófilo Gautier.

A perturbação que a descoberta de tais particularidades lançou
no espírito de Amália, cresceu com a leitura salteada de alguns
trechos daquela obra fantástica. Uma luz sinistra, como a do relâmpago,
feriu o seu pensamento; compreendia enfim!

O amor de Hermano era uma demência. Não fora uma mulher que
ele havia adorado, e adorava ainda; mas um fantasma, um ente de sua imaginação.
Esse ideal, ele tinha encarnado em Julieta, desde o primeiro momento em que
a vira.

Por que misteriosa relação se havia operado essa transfusão,
ninguém o poderia explicar, senão por uma afinidade moral.

Morta Julieta, o ideal se tornara outra vez fantasia ou sonho, até
que pela mesma ignora afinidade se encarnara de novo na imagem de painel do
Veroneso, Ester ou Suzana, como dissera o Teixeira, referindo a visita ao
Louvre.

Estas figuras, pensava Amália, são a cópia daquela imagem,
a que Hermano dera o nome de Julieta por ser o da primeira encarnação
viva de seu ideal. Mas elas não tinham nada de comum com a morta senão
essa misteriosa relaçccedil;ão, que transparecia em uns longes da fisionomia
.

Julieta não era formosa; e toda a sua graça estava unicamente
na expressão. A mulher reproduzida em cera era uma beleza estatuária
que ofuscava inteiramente o retrato. Como pois tinha Hermano identificado
essas duas imagens tão diversas?

Este fenômeno só podia explicar-se por um modo. Hermano não
idolatrava a forma, embora a admirasse quando ela realizava a sua imaginação
. O que ele amava era uma larva, um espírito, um duende de beleza imaterial,
que transportara a princípio para uma mulher, depois para urna imagem
e afinal para uma estátua.

Estes pensamentos trabalhavam na mente de Amália, quando recolhida
a seu toucador, e atirada em uma poltrona baixa, ela cogitava sobre a cruel
revelação que se fizera em sua consciência.

-Achou em mim alguma coisa que recordou Julieta ou antes seu ideal. Foi minha
voz cantando a ária da Lucia que o atraiu; mas falta-me esse encanto,
essa fascinação misteriosa que um momento supôs encontrar.

Lançando um olhar ao espelho, onde se refletiam as suas formas esplêndidas,
ela suspirou:

– De que vale minha beleza? Ele não a vê, não a percebe.
Julieta não era bonita: seu retrato está muito parecido; agora
recordo-me bem dela, de quando passeava no jardim. Entretanto ele a amou.
Eu podia ser feia e muito feia; que também me amaria se eu fosse a
mulher que ele criou sua imaginação.

Mas por que não seda ela sua mulher?

Seu amor cheio de abnegação inspirou-lhe então uma resolução
generosa. Sua existência, que já não tinha sedução
nem fim ela a dedicada à felicidade do homem a quem amava. Adivinhara
o segredo dessa criação ideal da mente enferma de Hermano, e
a realizaria em si.

Deus lhe daria forças para operar essa nova encarnação.
Dominando então o espírito do mando, o restituiria à
razão, ao mundo, ao verdadeiro amor; e seriam felizes.

Para isso era preciso, ela bem o compreendia, fazer um sacrifício
de sua personalidade; sacrifício doloroso para as almas superiores,
que têm uma individualidade, e que não podem a exemplo das outras
almas de estalão, despir o seu eu, e receber como a cera o molde da
vulgaridade.

Ser outro, negar-se a si mesmo, suprimir-se moralmente, não se pode
imaginar mais terrível suplício para uma consciência altiva;
e foi a este que Amália se condenou no intento de salvar o marido ou
perder-se com ele.

Decerto, naquela moça travessa, risonha, incrédula e leviana,
que antes enchia de sua alegria as salas e os divertimentos, ninguém
pensara encontrar um ano depois a mulher dominada pela paixão mais
sublime, e capaz de um heroísmo de amor raro na vida ordinária.

Semelhante aberração não era senão aparente.
Ai nesse contraste manifestava-se o efeito de uma evolução psicológica
muito natural. A insensibilidade de Amália fora apenas a infância
prolongada de uma alma extremosa que só muito tarde conheceu a paixão.

Em vez de gastar-se nos ensaios precoces de amor, com que as meninas antecipam
a adolescência, exaltando os perfumes de sua flor, Amália preservara
o coração dessa babugem e quando amou foi com todas as energias
e arrojos da mulher.

Este romance de Amália, a incompreensível encarnação
do delírio de um cérebro enfermo, essa admirável intuição,
é que me propus contar; e agora sinto que não o conseguirei.

Como descrever a paciente eliminação de uma ama a despojar-se
de sua individualidade para infundir em si o ser imaginário, filho
de uma alucinação?

Hermano voltara da cidade. Encontrando-se com ele à hora do jantar,
Amália notou a sua expressão esquiva e o olhar suspeitoso que
lhe perscrutava a fisionomia. O Abreu sem dúvida contara que ela estivera
no gabinete; e o marido receava-se dos efeitos dessa investigação.

O modo expansivo e natural com que o tratou a mulher, foi dissipando as suspeitas
de Hermano, que por vezes mostrou um contentamento sincero.

Quando se levantaram da mesa, Amália, disse ao marido com meiguice:

– Eu tinha tanta vontade de conhecer Julieta!

Hermano disfarçou por delicadeza; mas insistindo a mulher e reiterando
perguntas sobre as feições de Julieta, ele foi ao gabinete donde
voltou com uma fotografia colorida. Era a mesma imagem do retrato a óleo.

– Como é bonita! exclamou Amália com um entusiasmo que o seu
amor a obrigava a simular.

– Isso é apenas a sombra de sua beleza. Falta-lhe o olhar, o gesto,
a voz.

– De que cor eram os olhos? – A cor… Não sei: mas o olhar ainda
o sinto: era como o seu agora, Amália.

A moça corou e as pálpebras rosadas vendaram os seus belos
olhos cheios de luz

Continuaram a conversar acerca de Julieta

Mais tarde Hermano ficou distraído, absorto. Amália sabia agora
o motivo Eram os sintomas da alucinação que, em certa horas
e ocasiões, desvairava o espírito do marido

A moça foi sentar-se ao piano e abriu a ária do Fausto. Hermano
lhe dissera um momento antes que era uma das peças favoritas de Julieta.

Ela cantou: e o marido que já se tinha retirado, veio sentar-se outra
vez a seu lado, e ficou ali preso a sua voz.

À última nota ele estremeceu e partiu. Esse canto era de Julieta
que o chamava.

CAPÍTULO 19

Cala a tarde

Amália e Hermano sentados no jardim, contemplavam em silêncio
as esplêndidas decorações, que os arrebóis desfraldavam
no horizonte sobre as encostas da montanha.

A moça afinal curvou a fronte e cerrando a meio os cílios para
concentrar-se disse ao marido:

– Ainda havia neste mundo uma felicidade para mim, Hermano: e essa não
lhe custaria o menor sacrifício.

O olhar do mando interrogou-a: ela respondeu com a voz súplice;

– Não me pode dar o seu amor; bem o sei, e não o exijo; mas
a sua amizade, sua confiança, por que motivo a recusa a quem não
tem outro pensamento senão a sua felicidade? Não lhe mereço
nem esta prova de estima?

Hermano quis interrompê-la: ela não consentiu:

– Não poderíamos viver como dois irmãos que se querem,
e se amparam mutuamente nas suas tristezas e infortúnios? Por que há
de ter segredos para mim que nada lhe oculto do que se passa em minha alma?
Cuida que tenho ciúmes de Julieta? Engana-se.

Vendo pintar-se a dúvida no semblante do marido, Amália apressou-se
em desvanecê-la:

– Quer uma prova? Estive ontem no toucador de Julieta e entretanto, quando
voltou da cidade, ainda achou-me nesta casa, onde me conservo. Se eu não
o amasse e a ela também, com amor de irmã, sofreria essa preferência,
que era uma humilhação cruel para a esposa?

Desde esse momento, Hermano não teve mais segredos para Amália;
e esta, durante as suas longas confidências pôde ler nas recordações
do marido como nas páginas de um livro inédito, toda a história
do homem a quem se unira.

Hermano contou-lhe uma e muitas vezes as menores circunstâncias de
sua vida com Julieta. As impressões nessa alma opulenta eram profundas.
A efígie da mulher amada ficara ali fundida como uma estátua
ideal.

Amália passava as horas nos aposentos, que tinham pertencido, e ainda
pertenciam, à sua rival. Ali coligia todos os traços, todos
os vestígios, deixados pela pessoa que os habitara e com esses indícios
esforçava-se em recompor a mulher que ela não conhecera, e que
mal vira de longe com olhos de criança.

Ao cabo de uma semana, sabia os gostos de Julieta, os seus perfumes prediletos,
os moldes de que ela mais gostava, as cores de seu agrado, as músicas
favoritas; todas essas simpatias que formam a originalidade de um caráter.

Amália tinha o mesmo corpo de Julieta com alguma diferença
das formas que nela eram mais ricas e harmoniosas. Vencendo a repugnância
que a principio sentira, a moca chegou a trajar-se completamente com as roupas
e enfeites da morta.

Pensava acaso que esses objetos lhe transmitiriam pelo contato alguma coisa
da pessoa a quem haviam servido? Ou buscava apenas criar uma semelhança
que favorecesse a ilusão de Hermano?

Ela própria não sabia que tenção era a sua. Não
calculava: cedia à influência de um desejo intenso. Queria ser
a mulher que Hermano amava, como Julieta fora antes dela.

Nos livros que achou na pequena estante do toucador, também Amália
colheu muitas idéias, de que se apropriou para imitar o misticismo
do original que ela se propunha copiar.

Um dia disse a Hermano:

– Eu acredito que Julieta me quer bem. Quando estou aqui, no seu quarto,
tenho um contentamento, como se estivesse em sua companhia. Às vezes
parece que ela me abraça.

Outro dia, no meio de uns idealismos romanescos, teve esta inspiração:

– O amor uniu a alma de Julieta à sua, Hermano. Por que não
poderá unir da mesma forma a alma dela à minha, que também
o ama?

A transformação de Amália já era tão perfeita,
que enganava Hermano e até o Abreu, sobretudo quando ela disfarçava
com uma renda preta os seus lindos cabelos louros, ou mesmo tingia com algum
cosmético.

O velho criado habituou-se a ver nela a imagem de Julieta, e desde então
envolveu-a na afeição que votara à sua filha de criação.
Estimou-a, como se estima um retrato de pessoa a quem se quer

Quanto a Hermano, tinha momentos de completa ilusão, em que supunha
se transportado aos tempos de seu primeiro casamento. Apagava-se então
de sua memória todo o tempo que vivera depois da morte de Julieta e
ele era feliz como se ainda tivesse a seu lado a mulher a quem amava.

De repente, porém, uma circunstância qualquer um incidente mínimo,
que Amália não percebia, talvez um volver dos olhos, uma inflexão
de gesto, o contato das mãos, rompia o encanto; e ele recuava como
o homem que vê abrir-se por diante um abismo.

Fugia então; e ia abrigar-se daquela sedução no quarto
de Julieta perto da estátua, que para ele representava o despojo material
da alma de sua primeira mulher.

Amália recomeçava então com a mesma energia e perseverança
aquela indução paciente, que terminava em decepção.
Crescia-lhe a esperança, porque a sua fascinação aumentava
a cada instante ela não podia duvidar. Hermano resistia ainda mas chegaria
o momento, em que se deixaria vencer, e então ele lhe pertenceria e
seriam felizes.

Se adivinhasse o efeito que essa luta produzia no ânimo do marido,
e o extremo a que o arrastava, ela decerto a abandonaria, cheia de horror.

Com efeito Hermano, quando libertava-se da fascinação que Amália
exercia sobre ele, enchia-se de pavor pelo perigo que o ameaçara. Estivera
a ponto de cometer esse crime que era para ele o mais indigno por ser o roubo
da honra e da vida.

Via-se já réu de um adultério infame!

Ter enganado a moça a quem se unira em segundas núpcias sacrificando
a sua felicidade, que ele não podia dar-lhe, era já uma vilania
de que se envergonhava, e da qual decidira resgatar-se com a morte. Que nome
teria essa indignidade, se a agravasse com a mácula da virgem pura
e ingênua que se confiava de sua lealdade?

Era preciso, ele o senha, pôr um termo a esta situação,
e salvar-se de um perjúrio atroz que o condenaria à eterna separação
de Julieta. Mas tinha de esperar não podia dispor de sua vida antes
de oito dias.

Quanto lhe custou a passar esta ultima semana!

Na ocasião em que cegamente apaixonado por Amália, decidiu
pedi-la em casamento, Hermano refletiu sobre o destino que devia dar às
relíquias da primeira mulher. Não podia guardá-las como
tinha feito até ali, porque seria isto uma infidelidade à esposa
atual: não se animava, porém, a abandonar e como que expelir
de si essas imagens e objetos, tão impregnados de sua vida, que faziam
parte dela. Seria mutilar-se moralmente.

Tomou uma resolução que pudesse conciliar tais escrúpulos
Reuniu naqueles dois aposentos de Julieta tudo que lhe pertencera e fechou-os
como se fossem a sepultura onde jazia a alma da primeira mulher. Quanto à
outra sepultura, onde jaziam as cinzas, dessa não se lembrava, nem
a conhecia: era um pouco de pó.

Depois, quando na própria noite do casamento o indefinível
terror de um adultério fantástico apoderou-se de seu espírito
enfermo, ele refugiou-se nos aposentos de Julieta, encerrou-se ali naquele
túmulo, onde encontrava o sossego e a ressurreição do
passado.

Agora, porém, já não tinha esse refúgio já
não podia transpor os umbrais da eternidade para encontrar-se com Julieta
e amá-la. Até ali, nesse mesmo santuário, onde guardara
todas as relíquias da morta, até ali o perseguia a formosa imagem
de Amália.

Sentia a tépida fragrância que a moça deixara na sua
passagem, e que derramava um sopro de vida nesses objetos frios e abandonados.
O toque de outras mãos animara aquela solidão e as mesmas estátuas
de cera pareciam influir-se de outra alma mais ardente, mais apaixonada do
que a de Julieta

Assim, quando Hermano corria a abrigar-se ai da sedução de
uma Amália parecida com Julieta, ele já não encontrava
a mulher de outros tempos, mas sim uma nova Julieta semelhante a Amália
e mais formosa que a primeira

Quantas vezes não voltou buscando essa visão encantadora! Mas
já não a via; Amália tinha-se feito Julieta aquela esplêndida
beleza de outrora se eclipsara.

Se em um desses momentos, a formosa criatura se mostrasse qual era, em seu
fulgor, Hermano teria sucumbido: e talvez aquela insana obsessão que
o afligia se dissipasse para sempre.

Mas a coincidência não se deu; e afinal chegou a época
em que Hermano julgou-se livre de dispor de sua vida. Só faltava a
ocasião esta não tardou.

Havia um baile no dia seguinte. Amália a princípio repugnou
ir, por fim cedeu às instâncias do marido. Seu traje era copiado
de um que achara no guarda-roupa de Julieta, um vestido de tule com sombra
e laivos escarlatres.

Estava encantadora, mas sentia-se inquieta e nervosa. Durante a dança
não tirava os olhos de Hermano, e a cada instante chamava-o para perto
de si.

De repente perdeu-o de vista. Acabada a quadrilha, ansiosa perguntou por
ele a D. Felícia.

– Ah!… Esqueceu a carteira e um amigo convidou-o a jogar. Foi a casa não
tarda. Pediu-me que te prevenisse.

D. Felícia voltando à conversa que interrompera para dizer
rapidamente estas palavras, não viu a palidez da filha.

Amália dominou o tenor que a invadira, dirigiu-se ao toucador, envolveu-se
na capa e desceu as escadas apressadamente. No patamar encontrou o lacaio
e mandou chegar o carro.

– Para casa! Depressa!… disse abrando-se sobre as almofadas do cupê.

Depois, enquanto os cavalos trotavam pela calçada da Glória,
ela travando as mãos convulsivamente, murmurava:

– Chegarei a tempo, meu Deus?

CAPÍTULO 20

Amália tinha razão de assustar-se.

Hermano deixara o baile, decidido a realizar a sua idéia fatal. Contava
que o pretexto do esquecimento da carteira lhe daria uma hora de liberdade,
e tanto bastava para consumar o plano medonho que havia concebido.

Ele prometera à mulher e a si mesmo jurara, dar à sua morte
aparências de acidente, de desastre casual. Escolhera o incêndio.
Sempre fora sectário da cremação. O corpo abandonado
da alma era para ele matéria em corrupção: o fogo a purificava
e consumindo imediatamente a forma humana, evitava a sua profanação,
pois outro nome não têm certas cerimônias fúnebres

Mas o seguro de sua casa não estava findo; e a consciência não
lhe permitia fraudar os seguradores com a indenização que teriam
de pagar a seus herdeiros pelo dano do incêndio Por isso foi obrigado
a adiar o seu projeto. O termo da apólice tinha expirado na véspera
estava livre enfim.

Ao sair do baile, tomou um tílburi que o levou a casa. O portão
estava cerrado apenas, e o Abreu, que fumava sentado na escada, veio ao seu
encontro, admirado de não ver a senhora.

– Esqueci a minha carteira e vim buscá-la para pagar uma dívida
de jogo mas sinto-me tão fatigado que não tenho ânimo
de voltar ao baile vou escrever um bilhete à senhora.

Deste modo afastou o velho criado cuja vigilância temia que pudesse
frustrar o plano. No bilhete que por ele enviara à mulher, depois de
escusar-se de ter saído do baile e de não ir buscá-la,
rematava com estas palavras.

"Agora, Amália, é que eu conheço quanto a amo:
pois esta curta ausência de alguns instantes parece-me uma separação
eterna."

Ficando só Hermano trancou-se no toucador de Julieta. Depois de fechar
as portas e janelas, abriu os bicos de gás, e sentou-se em face da
figura de cera. O aposento era apenas esclarecido pela vela do castiçal
colocado sobre a mesa.

Acreditava aquele visionário que era bastante a vontade de reunir-se
a Julieta para que sua alma deixasse este mundo e se restituísse à
sua metade. Nessa convicção, havia jurado a Amália não
matar-se; e tinha consciência de respeitar o seu juramento.

Quando o gás que se exalava dos bicos abertos, se fosse condensando
no aposento quase hermeticamente fechado, e afinal se inflamasse à
luz da vela produzindo uma explosão, o incêndio o acharia morto
já, e não serviria senão para destruir o seu despojo
e as relíquias de Julieta, que não devia abandonar à
alheia profanação.

Ele e tudo quanto amara não seriam mais do que cinzas, dispersas pelo
vento; e no dia seguinte ninguém suspeitaria da verdade. Um incêndio
é fato comezinho e tão freqüente!

Em cima da mesa estava uma fotografia em ponto grande, cuja moldura inclinada
em estante mostrava um lindo retrato. Amália o havia tirado poucos
dias antes; e naquela tarde, aproveitando-se de uma ausência do marido,
o colocara ali para fazer-lhe uma surpresa.

Esse retrato não era a imagem fiel da beleza radiante de Amália,
mas a cópia da transformação que sofrera a moça
depois de seu casamento, e especialmente nos últimos dias. Assim como
o louro brilhante de seus cabelos se ofuscara na sombra de uma renda preta,
também os fulgores dos grandes olhos, e o sorriso cheio de graça,
eram amortecidos por uma doce melancolia. Parecia que um véu de timidez
apagara-lhe a formosura cintilante.

A luz da vela dava de chapa sobre a fotografia. Hermano olhou e viu pela
primeira vez o retrato. Reconheceu o vulto, a atitude, o gesto, as roupas,
as jóias e uns matizes indefiníveis que só ele talvez
percebesse. Era Julieta: mas através da sombra de Julieta, ao longe,
como uma estrela imersa no azul surgia a imagem luminosa de Amália.

Foi então que esse cérebro já tão exaltado precipitou-se
na derradeira e mais violenta das alucinações que o tinham abalado.
As duas mulheres que Hermano havia amado neste mundo, erguiam-se em sua alma,
como duas soberanas em campo de batalha, para disputarem o seu despojo.

Quando já a consciência da realidade o ia abandonando, ouviu
rumor na casa e teve um rápido momento lúcido para recear que
o viessem perturbar na consumação de sua idéia sinistra.
Ergueu-se e saiu fora, lembrando-se de fechar a porta, para que não
se escapasse o gás, já condensado no aposento.

Foi mesmo às escuras trancar a comunicação para o fundo
da casa onde estavam os criados, e livre do receio, caiu de novo no delírio,
que o havia acometido, e no qual se apagaram os últimos lumes da razão.

Nos raptos da imaginação, viu outra vez as duas esposas, a
quem havia jurado fidelidade. Às vezes, elas se aproximavam, perto,
muito perto, uniam-se estreitamente, e fundiam-se numa só massa vaporosa,
donde surgia afinal essa mulher dúplice, essa Julieta-Amália,
que estava pintada no retrato.

Pouco depois a imagem da esposa gêmea também por sua vez apagava-se
em uma sombra indecisa, da qual se destacavam as duas moças, cada uma
no seu tipo distinto. Julieta com a esquisita elegância, que vestia
de uma graça divina a sua figura apenas regular e Amália com
a deslumbrante beleza, que materializava a sua alma, vazando-a em formas esplêndidas

Em face uma da outra Amália triunfava. Ela era a aurora: e sua rival
o crepúsculo suave e encantador. Assim Julieta timidamente, envolta
no seu perfume de modéstia, afastava-se: e a sombra gentil e melancólica
ia-se desvanecendo até esvair-se no fulgor que derramava a formosura
da rival.

Foi então que Hermano sentiu uma dor agudíssima, como se lhe
arrancassem vivo o coração. Arrojou-se com todo o ímpeto
de seu amor para chamar a esposa, que se separava dele pela eternidade. Era
ela a primeira amada, e nesse momento a única. A ela devia pertencer
exclusivamente por isso iam unir-se outra vez: a morte que os tinha apartado
não tardaria em ligá-los de novo, revertendo-os um ao outro.

– Julieta! exclamou ele em um grito de ânsia.

A esposa o tinha ouvido ali. Ali estava ela a seu lado. A luz desaparecera
e os seus raios se haviam transformado em estrelas. Foi ao trêmulo dessa
luz celeste que ele divisou a sombra amada. Ela trazia o seu traje favorito
de baile, o mesmo com que a viu da primeira vez.

Julieta lhe cingira o colo com o braço e ele sentia o doce contato
do talhe gentil na sua espádua e no seu flanco. Depois a voz terna
e queixosa da esposa murmurou-lhe ao ouvido como um arpejo:

– Ingrato!…

– Perdão, Julieta, perdão! confesso que Amália me fascinou:
mas o que eu amei nela foi unicamente a tua lembrança, a tua alma que
às vezes eu ouvia em seus lábios, e via em seus olhos. O que
era ela, e só ela, a sua beleza, essa eu a admirava mas enchia-me de
terror. Resistia à tentação, refugiando-me em teu amor:
e se tu não me amparasses, teria sucumbido! Salvei-me, preservei minha
alma e ela está pura como a deixaste, e vai reunir-se à tua
pela eternidade. Eis o momento. Recebe-me em teu seio; não me deixes
mais um instante neste mundo, pois aqui mesmo, perto de ti, próximo
a infundir-me no teu ser, eu a vejo, eu a sinto, a ela, a Amália: e
tenho medo que venha arrebatar-me e separar-nos para sempre.

A voz de Julieta murmurava-lhe então ao ouvido:

– Não tenhas este receio, meu Hermano. Queres saber por que tu vês
Amália, em mim, em tua Julieta? É porque ela te ama como eu
te amei, com igual paixão. Ela e eu não somos senão a
mesma e única mulher que tu sonhaste. Podes dar-te a ela: é
como se te desses novamente a mim. Vi que estavas triste e só no mundo;
que a minha lembrança não te bastava; e então revivi
em Amália, transmiti-lhe minha alma para que fosse tua esposa; para
que tu me adorasses em uma imagem viva, que te retribuisse, e não em
uma estátua de cera.

– Embora; estou cansado de viver; quero reunir-me a ti, em espírito,
desprendendo-me dessa materialidade impura, que pode subjugar a alma, e arrastá-la
ao crime. Amália é minha esposa perante os homens; e desde que
nela está a alma de minha Julieta, ela é também minha
esposa perante Deus; poderei pertencer-lhe legitimamente, porque te pertenceria
a ti: mas essa poderosa sedução de sua beleza, se eu a sofresse
de outra mulher?.. Não passaria de novo pelo martírio que me
atormentou?… Melhor é nos reunirmos no céu recolhe a alma
que deste a Amália, e leva-nos com ela.

A voz melodiosa suspirou outra vez:

– Queres morrer, meu Hermano? Queres deixar o mundo? Pois bem, dá-me
tua alma: deixa-me absorvê-la na minha, e confundi-las que não
formem senão uma só. Então abandonaremos a terra e iremos
esconder-nos no seio de Deus, que nos criou.

Então Hermano sentiu uns lábios que se embebiam nos seus e
hauriam-lhe a vida. Esse beijo ideal foi como a inalação do
espírito que animara o seu corpo e que absorvido por Julieta, o desamparou.
Desde esse momento ele não foi mais do que uma múmia.

E assim, como um corpo ermo de vontade e pensamento, seguiu Julieta, ou melhor
diria, a alma gêmea em que se tinham condensado a sua e a da esposa.
Atravessaram uma série de anos eram os de sua existência, cujo
curso haviam remontado, e agora de novo repassam. Todas as fases de sua história,
ele as reviveu com uma mulher que não era nem Julieta, nem Amália
mas as duas vazadas em um só molde.

O passado e o presente se travavam e confundiam. O seu primeiro casamento
que fôra de manhã, e o segundo que celebrara à noite as
noivas, de tipos diversos; aqueles dois toucadores, um azul e branco, e outro
rosa e ouro; todas essas coisas se haviam identificado.

A mulher que ele amara tinha a beleza de Amália e a alma de Julieta.
Com essa mulher percorreu toda a sua vida até aquele momento em que
resolvera deixar o mundo para consumar o consórcio da eternidade.

Uma nuvem branca e nítida vendava-lhe o céu. Ali estava um
objeto cuja forma não distinguia; parecia-lhe o corpo, depurando a
alma e preparando-a para a bem-aventurança.

Ele estava só; junto dele não havia outro corpo, mas uma essência
divina, em que se imergia; um resplendor que se condensava em formas voluptuosas
para envolvê-lo de luz. As chamas dessa luz o abrasavam, mas com uma
lava doce e inebriante, que lhe acrisolava o ser. Enfim ele sentiu que sua
alma desprendendo-se das cinzas, remontava ao céu.

Nesse momento D. Felícia que voltava do baile com o marido soltou
um grito de terror vendo o grande clarão que avermelhava o horizonte.

Um incêndio violento devorava a casa de Hermano.

CAPÍTULO 21

Cinco anos permaneceram em abandono as ruínas da casa incendiada.
Um ilhéu que alugara a horta para negócio, tratava da chácara.

Já se tinha desvanecido a lembrança do sinistro, quando uma
manhã, cerca de onze horas, parou ao portão uma vitória
descoberta, conduzindo pessoas com o aspecto muito conhecido de viajantes
que desembarcam.

O assento principal era ocupado por uma senhora de rara formosura, trajada
com elegância, e por um homem de parecer distinto, ainda moço
apesar dos fios de prata que matizavam os seus cabelos negros.

Em frente a eles ficava uma gentil menina de quatro anos, na qual reproduzia-se
como em uma miniatura a beleza da senhora, porém, com certo contraste
de fisionomia. Tinha as feições da mãe, os mesmos traços,
a mesma expressão; mas os cabelos e os olhos eram castanhos, e não
louros.

Um criado velho, que vinha ao lado do cocheiro saltara do carro e abrira
o portão, enquanto o cavalheiro apeava-se com a família.

– Espera-nos aqui, Abreu, disse a senhora entregando a filha ao criado, e
não deixe Julieta apanhar sol.

Tomando então o braço do marido, seguiu pelo passeio gramado
da chácara na direção das ruínas que apareciam
por entre as árvores e indicavam o lugar onde fora a casa.

O incêndio desmoronando o teto e consumindo todo o madeiramento, deixara
em pé as paredes do edifício de modo que de fora via-se como
um esqueleto a antiga habitação com seus aposentos e divisões.

– Lembras-te, Hermano? perguntou a senhora fitando no marido seus grandes
olhos cheios de luz.

– De tudo, Amália, respondeu simplesmente o marido.

Como para confirmar a sua asseveração, Hermano começou
a recordar as reminiscências dos dias que ali vivera com Amália,
apontando os menores incidentes e os lugares da casa em que tinham ocorrido.

Amália respirou do soçobro em que trazia a alma e que debalde
tentava abafar. A casa, que a memória de Julieta enchia antigamente,
agora não era mais povoada senão de sua lembrança.

Daí passaram à chácara e percorreram os sítios,
em que tão viva era para Hermano a presença de sua primeira
mulher. Essas recordações primitivas tinham sido apagadas pelas
outras recordações mais recentes de seu amor por Amália.

Outrora o passado surgia com tanto vigor na vida desse homem que anulava
o presente. Agora era o presente que reagia de modo a substituir-se ao passado.
Hermano não se lembrava de ter amado nunca outra mulher senão
a sua Amália e identificava tão completamente as duas esposas,
que Julieta já não era para ele senão um primeiro nome
daquela a quem se unira para sempre.

Afinal sentaram-se para descansar, em um sombrio formado pela copa de uma
mangueira frondosa, donde pendiam ramas de maracujá

Hermano recolheu-se, como para penetrar mais profundamente em suas recordações,
e murmurou:

– Não me lembro do incêndio!

Amália conchegou se, e apoiando o rosto na espádua do marido
começou a sussurrar-lhe ao ouvido, cobrindo a face com a mão
para esconder o rubor:

– Tu me deixaste no baile… Eu tive um pressentimento cruel e corri… Felizmente
ainda encontrei-te; estavas na sala em pé. Foi talvez o rumor de meus
passos que te perturbou. Eu prendi-te nos meus braços com receio que
me fugisses. Tu me contaste tudo Querias morrer para não ser infiel
a Julieta e tinhas preparado o incêndio que devia consumir o teu corpo,
e a imagem daquela que amavas. Eu também devia morrer, e consumir-me
contigo. Foi então que nossos lábios se tocaram. Tu me pertencias.
e eu salvei-te para o meu amor. Era preciso arrancar-te desta casa; quando
partimos, sem que nos vissem deixei nela o incêndio que a devorou Depois
partimos para a Europa e…

– E eu renasci para a felicidade, disse Hermano, cingindo a loura cabeça
da moça e pousando-lhe um beijo na face.

– Esta manhã, vendo ao longe, de bordo do vapor a praia de Botafogo,
tive medo, e por isso trouxe-te aqui apenas desembarcamos. Se estes lugares
ainda conservassem para ti alguma sombra do passado, partiríamos hoje
mesmo para Montevidéu, para qualquer parte do mundo, onde a tua felicidade
não corresse perigo. Mas estou tranqüila, podemos reconstruir
a nossa casa e viver aqui, onde nasceu o nosso amor.

– De tudo isto só uma coisa não compreendo, disse Hermano.

– O que? perguntou Amália assustada.

– Fica tranqüila; a alucinação passou; tenho a razão
inteiramente livre. O que não compreendo é como sendo tu e Julieta
tão diferentes uma da outra, têm aos meus olhos uma semelhança
tão grande, que parecem a mesma.

Nesse momento as folhas rumorejaram.

A menina que estava impaciente pela mãe, iludira a vigilância
do velho criado e correra para Amália cujo vestido descobrira através
da folhagem.

– Olha! disse a moça apresentando ao marido o rostinho gracioso da
filha.

– É verdade!

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