A Viúva de Simões

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Júlia Lopes de Almeida

I

Apesar de moça e de rica, a viúva Simões raras vezes
saía; dedicava-se absolutamente à sua casa, um bonito chalet
em Santa Tereza. Vivia sempre ali; inquirindo, analisando tudo num exame fixo,
demorado, paciente, que exasperava os seus cinco criados: a Benedita, cozinheira
preta, ex-escrava da família; o Augusto, copeiro, francês, habituado
a servir só gente de luxo; a lavadeira Ana, alemã, de rosto
largo e olhos deslavados; o jardineiro João, português; homem
já antigo no serviço, e uma mulatinha de quinze anos, cria de
casa, a Simplícia, magra, baixa, com um focinho de fuinha e olhos pequenos,
perspicazes e terríveis.

Não era fácil dirigir pessoal tão diferente em raças
e em educação. A viúva; modesta, e um pouco indolente
para os deveres exteriores, consumia ali, dentro das suas paredes, toda a
sua atividade.

Em vida do marido freqüentara algum tanto a sociedade; mas depois que
ele partiu sozinho para o outro mundo, ela encolheu-se com medo que se discutisse
lá fora a sua reputação, coisa em que pensava numa obsessão
quase nevrótica.

Adquirira fama de menagère exemplar; e então levava o escrúpulo
a um ponto elevadíssimo para não desmerecer nunca do conceito
de boa dona de casa. Levantava-se cedo; percorria o jardim, a horta, o pomar,
o galinheiro; censurava o hortelão pelo menor descuido; via bem até
as mais insignificantes ninharias: a grama precisava ser aparada… As roseiras
careciam de poda; porque não se enxertavam estes ou aqueles pés
de fruta? O homem respondia que já tinha deliberado aquilo mesmo, e
ela passava adiante, sempre com perguntas ou ordens.

No interior era um chuveiro de recriminações. A cozinha tomava-lhe
horas. Passava os dedos nas panelas e nos ferros do fogo, a ver se estavam
limpos; cheirava as caçarolas; obrigava a Benedita a arear de novo
tachos e grelhas, a lavar a tábua dos bifes e o mármore das
pias e da mesa. Se havia alguma torneira pouco reluzente ou alguma nódoa
no chão, detinha-se, exigindo que se corrigisse a falta logo ali, à
sua vista. E era assim por todos os compartimentos, minuciosa, ativa, severa.

Lamentava-se da falta de método, que a obrigava a ter em casa tantos
criados; mas se pensava em despedir algum deles, achava-o logo indispensável.
A casa era grande e o dia curto para observá-la em todas as suas exigências.
A viúva não fazia outra coisa senão mandar; entretanto
não lhe sobrava tempo para mais nada!

Tinha de vez em quando as suas horas tristes, em que a inteligência
se lhe revoltava contra a monotonia daqueles meses que se desfolhavam iguais
em tudo, sempre iguais… O corpo cansado não reagia, e o pensamento
nadava preguiçosamente em idéias vagas, coloridas pelo romantismo
da idade em que as alegrias e entusiasmos da mocidade já não
existem, e em que as friezas da velhice ainda não chegaram… Ela tinha
uma filha, Sara, que era o seu conforto e a sua agonia. Por causa dela renunciava
aos divertimentos do mundo, exagerando as suas atribuições caseiras.
Tinha medo de apaixonar-se um dia, fugia do perigo de amar, de trazer para
casa, para o gozo do seu corpo e da sua alma, um padrasto para a filha, um
estranho com quem tivesse de repartir os seus cuidados e as suas riquezas.

O seu temperamento, aparentemente frio, dava-lhe por vezes momentaneamente,
um ar de rija autoridade, muito em contradição com o seu tipo
moreno, de brasileira. No trato comum era calma, e tinha sempre o cuidado
de não trair as suas horas de desfalecimento, em que lhe passavam pela
mente desejos e idílios irrealizáveis…

A viúva já não tinha a frescura da primeira mocidade,
mas era ainda uma mulher bonita. Era alta e esbelta e tinha um par de olhos
pretos belíssimos e uma pele morena delicadamente penujenta e macia.

A sua carne já não tinha a rijeza do pomo verde, que resiste
à dentada, e caía sobre ela toda um ar de moleza, de doce cansaço,
que lhe quebrantava a voz e o gesto. Vinha dela um encanto esquisito e delicado,
que ninguém afirmaria ser da pureza das suas linhas ou da maneira que
tinha de andar, de sorrir ou de dizer as coisas.

Aos domingos a vida era mais calma. Os criados trabalhavam afincadamente
ao sábado, em lavagens, polimentos, renovações de plantas
e de flores nas salas, e gozavam de lazeres maiores e permissões de
passeios no dia imediato. A viúva então respirava de alívio
com o silêncio e a ausência dos servos que se revezavam no serviço.

Num domingo de junho de 1891 ela sentou-se na sua sala, muito fresca e perfumada;
e, estendida numa cadeira de balanço, perto da janela, pôs-se
muito sossegadamente a ler um jornal do dia.

Estava num dos seus momentos de melancolia; almejava qualquer coisa que ela
mesma não sabia definir. Era a revolta surda contra a pacatez da sua
vida sem emoções, contra aquele propósito de enterrar
a sua mocidade e a sua formosura longe dos gozos e dos triunfos mundanos.

O que lhe parecia agora um sacrifício parecera-lhe horas antes uma
delícia.

A verdade era que a viúva além, do medo de comprometer a felicidade
da filha, sentia preguiça de cortar de uma vez aquele sistema recolhido
de vida, iniciado pelo marido, um pouco ciumento.

Os seus olhos percorriam superficialmente todo o jornal, quando de súbito
estacaram num ponto. Por muito tempo não se despregaram de quatro linhas
banais, lendo-as e relendo-as até que o jornal, levado por um dos seus
gestos lânguidos, caiu aberto sobre os joelhos. Voltada para o sonho,
ela continuou imóvel, com os membros lassos estendidos sob as roupagens
longas e negras do seu ainda rigoroso luto de viuvez, e pôs-se a seguir
com o olhar, que o pensamento erradio tornava ora abstrato, ora pensativo,
uma barquinha de velas pandas que deslizava lá embaixo, isolada e pequenina,
na solidão das águas.

Estava uma manhã gloriosa, céu azul cheio de sol, mar de um
azul ainda mais denso, pacificado pela doçura da atmosfera.

Pelos socalcos abruptos da montanha desciam os quintais e o casario disperso.
A grande alegria da luz envolvia tudo: manchas vermelhas de barro, tufos de
vegetação, quadros domésticos encerrados entre a brancura
de quatro muros caiados surpreendidos do alto, homens trabalhando nas suas
hortas, mulheres estendendo roupa ao sol. O azul e o verde enchiam o ar com
os seus tons fortes. Água, céu e montanhas, tudo isso a viúva
olhava do alto, como se estivesse suspensa no espaço. Seguindo a linha
alva de uma praia riscada além da baía, o seu pensamento ia
agora em linha reta aos primeiros tempos da sua vida.

Mal se lembrava da mãe, um vulto tênue que fugia à sua
lembrança… ficara órfã cedo… Do pai sim! Que bom
velho! Que doce amigo fora ele sempre!…

A transparência do dia fazia realçar com nitidez todas as minúcias
da paisagem, mas os olhos da viúva afeitos àquele esplendor
não o observavam, tinham um fluído dourado, vago, de quem olha
para coisas que outros não vêem…

Lembranças antigas de pessoas, de palavras, de idéias ou de
sonhos, fugidios, apagados ou mortos.

Silenciosas, no meio das águas profundas e aniladas, as Fortalezas
de Santa Cruz e da Laje viam-se distintamente, na sua triste cor de granito
umedecido e velho. Na de Santa Cruz, poder-se-iam contar as seteiras da casamata,
como órbitas vazias; nos recifes da Laje, a onda, embora branda, punha
rendilhações brancas, de espuma salitrosa; e lá ao fundo,
na barra, como outras sentinelas igualmente firmes e igualmente poderosas,
levantavam os seus dorsos redondos, duas ilhas em tudo semelhantes, como dois
irmãos gêmeos.

As montanhas sucediam-se, esmeraldinas, escuras, azuladas ou violáceas
conforme o grau de distância e a luz que as feria, e para além
das ilhas o mar estendia-se, até confundir-se no horizonte num tom
enfumaçado e compacto.

A areia do jardim rangeu e a viúva voltou para a rabeca. Era a Simplícia,
que ia lépida, de saias engomadas, procurando cravinas para enfeitar
a carapinha, já amarrada com uma fita azul. Quando passou rente à
janela, a viúva sentiu o cheiro das suas essências exageradamente
impregnadas na mulatinha; fechou os olhos, sentindo preguiça de ralhar
por aquela confiança…

A rapariga rabeou ligeira por entre os canteiros e sumiu-se.

O barco de vela ia também ligeiro, como uma asa branca cortando o
azul, e a moça seguia-o, pensativa, lembrando fatos…

De repente o seu olhar perdeu aquela cor crepuscular, que dá a saudade,
e fixou-se na cidade, como se quisesse indagar do que se passava por lá.

Surgindo de entre a verdura e a casaria, erguia-se logo em baixo, risonho
e fresco, o outeiro da Glória, encimado pela igreja branca e pitoresca,
contrapondo a sua poesia graciosa e aldeã à majestade ilimitada
do mar.

Todo o bairro do Catete, com as suas ruas elegantes, parecia imerso numa
grande paz. A esguia chaminé da City Improvements não sujava
o ar com o seu fumo, denegrido e infecto. Subia de tudo uma poesia alegre,
desde as pontes rústicas de madeira alcatroadas, que mal se viam numa
curva de praia, até o deslizar da barca de Niterói que atravessava
a baía, com a bandeira flutuante na ré e um rastro de espumarada
na proa.

A filha da viúva jogava o croquet com um grupo de amigas, no pomar;
mal se ouviam em casa a bulha seca dos martelos nas bolas, mais as risadas
das jogadoras alegres. Tinha sido o pai, riograndense robusto e sangüíneo,
quem a habituara àqueles exercícios e jogos ao ar livre.

Filho de uma senhora alemã e de um negociante português, o Simões
de Porto Alegre, ele tinha recebido da mãe uma educação
viril e uma saúde robusta, e do pai um pequeno patrimônio com
que mais tarde se estabeleceu no Rio, quando, já órfão
de mãe, o veio acompanhar até portas do hospício de D.
Pedro II, onde o velho, louco, ainda viveu alguns anos terrivelmente agoniados!…

O olhar da viúva passou num vôo rápido por sobre o mar,
as ilhas, a cidade e as montanhas e ficou abstrato, voltado de novo aos sonhos,
inconscientemente preso ao Pão de Açúcar, cabeça
da formidável esfinge que descansa sobre o leito misterioso do mar
o seu enormíssimo corpo de montanha, com as garras sumidas nas águas
e a fronte sumida nas nuvens. O seu pensamento lá ia esvoaçando
como ave ligeira, pelo tempo antigo, sem que a vista se desfitasse da pedra
arroxeada do monte, cortada de grandes laivos esbranquiçados ou escuros,
escorregando de cima, como se fossem lágrimas.

E o pensamento, acordado de um letargo em que jazia sepultado havia longo
tempo… corria agora mais doce e velozmente do que o barco de velas lá
em baixo, na solidão das águas.

Junho espalhava cores luminosas; as primaveras estavam cobertas de pétalas
solferinas, as paineiras abriam sorrisos cor de rosa nas suas grandes flores;
nas inúmeras araucárias do morro suspendiam-se estrelas de um
verdor condensado e as rosas embalsamavam o ar fresco, leve, inundado de luz.

A viúva deixava-se, preguiçosamente, no mesmo lugar, a idéia
longe, a carne alagada pela doçura inigualável do inverno fluminense
e os olhos errando pelo que a natureza pode ter de mais idealmente formoso!
O pensamento ia, ia…

– O Dias… o Luciano Dias! que lindo e que amável ele tinha sido!
Sempre muito assíduo… apaixonado… meigo, desenrolando uma voz veludosa,
concentrada, acariciadora… Ai, o Luciano! fora quase seu noivo…

Luciano tinha sido o primeiro e o mais duradouro amor da viúva; cartas,
promessas, juramentos, frases aquecidas na mais ardente paixão, haviam
partido de um para outro nos bons tempos da juventude. Ela era ainda muito
criança, ele também… como se amaram! Entretanto, ela o havia
esquecido: só uma ou outra vez, por qualquer acaso, se recordava dele.
Supunha mesmo que nunca mais o tornasse a ver, e que, se porventura isso se
viesse a dar, ela não experimentaria a mais leve comoção;
e ei-la agora alarmada, só porque lera na Gazeta a notícia da
sua chegada da Europa! Havia dois dias já que ele estava no Rio, debaixo
do mesmo céu, respirando o mesmo ar que ela!

Quando o encontraria? Desejava vê-lo. Uma revoada de saudades trouxe-lhe
à alma todo o perfume daquele amor passado. Parecia-lhe que estivera
todo aquele tempo à sua espera, como uma noiva extremosa e fiel…

Sim, desejava vê-lo, mas tinha receio.

Receio… nem sabia de que, mas tinha-o. Afinal não houvera amado
nunca outro homem como amara aquele!

– O Luciano… porque a deixara ele? Que história tê-lo-ia obrigado
a abandonar o seu amor? Diziam-no leviano… volúvel… talvez o tivesse
sido. Que seria agora?

Voltaria casado? Pensaria ainda alguma vez nos tempos idos, quando se correspondiam
e se encontravam em casa do tio Gustavo, no Engenho Velho? Ele teria ainda
na memória o beijo que lhe furtara, na face, timidamente, no dia dos
anos dela? Teria sabido do seu casamento? Desconfiaria que ele se havia realizado
por despeito? Dezenove anos tinham decorrido depois de tudo isso! Parecia-lhe
impossível! Dezenove anos já! A verdade, porém, é
que a memória do Luciano estava, havia muito, apagada no seu coração,
e agora uma simples notícia, lacônica e murcha, ressuscitava-lhe
na alma a saudade de todo aquele romance passado. O Luciano já lhe
não saía do pensamento: era alto… magro, tinha o cabelo ligeiramente
ondeado e os olhos grandes, negros, um pouco melancólicos talvez, em
todo o caso formosos.

E ficou ainda por alguns minutos a pensar nas coisas que lera ou julgara
ler nesses formosos olhos lânguidos e pretos.

Em que consistira a sua vida depois dessa encantadora leitura? Arranjos de
casa… idas à modista… passeios inúteis pela rua do Ouvidor….
estudos de música para figurar nos saraus das amigas… um ou outro
verão em Petrópolis, raro… e os cuidados pela educação
e saúde da filha, pelo bem estar do marido e por bem conservar as regalias
da sua vida material, de burguesa rica.

Dias fáceis, simples, sem comoções que os marcasse.
O esposo fora um bom homem, embora genioso e um pouco violento; ela era grata
à sua memória e sentia-se feliz por tê-lo estimado com
sinceridade, fidelidade.

Com o jornal caído nos joelhos, a viúva continuava imóvel,
misturando na idéia a lembrança da morte do pai com as expressões
amorosas do Luciano, o nascimento da Sara, o dia da partida do namorado e
o dia do seu casamento com o Simões; a paciência do marido, os
sucessos da sua voz nos concertos das Nunes, a última carta de Luciano
e o primeiro beijo da filha… lágrimas, alegrias… banalidades, coisas
que enchem a vida de toda a gente.

Na sua inteligência modesta todas as miudezas tomavam grandes vultos.
A volta de Luciano Dias reavivava-lhe a imaginação.

Desde a morte do marido que procurava estiolar, ressequir o seu coração
de moça. O seu egoísmo maternal absorvia-a toda; não
se daria a ninguém, não roubaria à filha nem um dos seus
afagos, nem um único dos seus pensamentos e dos seus cuidados. Pela
sua idolatrada Sara deixaria queimar o seu corpo, cegar os seus olhos e despedaçar
o seu coração. Perecesse tudo sobre a terra se só a custa
desse aniquilamento pudesse o sorriso iluminar os lábios frescos da
filha!

A viúva caíra numa prostração singular; por fim,
sacudindo o pensamento, procurou reagir e fixar o espírito em coisas
diversas.

Pensar em Luciano… para quê? Ele deixara-a sem explicação,
ela casara-se com outro, estava tudo acabado.

A estas horas ele teria meia dúzia de filhos, uma esposa estrangeira
um lar calmo e feliz; ela tinha uma filha moça, a responsabilidade
do seu nome e da sua casa. Cada um que seguisse o seu rumo; olhar para trás
seria, além de ridículo, pueril e perigoso… Na estrada da
vida todos os passos que damos deixam vestígios, mas desde que desejemos
voltar atrás, já não lhes encontramos as pegadas. Tudo
se esvai, todas as cenas se desligam, ficando aqui e ali, como névoas
esgarçadas em penedias calvas, uma ou outra lembrança, uma ou
outra saudade. A vida é assim.

A viúva Simões estava a pensar nisso quando o Augusto foi entregar-te
um cartão de visita.

Ela leu-o e quedou-se pensativa. O sangue afluiu-lhe ao rosto, apertou com
força nos dedos finos e nervosos o bilhete, indecisa. Com o olhar chamejante
e o lábio inferior apertado entre os dentes

– A resposta? perguntou por fim o criado.

– Manda entrar.

– É extraordinário! murmurou a viúva Simões;
nunca mais pensei nele… hoje penso… e ele chega!

Aquela coincidência afigurava-se, ao seu espírito mal educado,
como que um aviso sobrenatural. Já nem se recordava de que a sua memória
fora despertada pela notícia da Gazeta!

Luciano! Sim. Era ele quem se anunciava! Que vinha fazer à sua casa,
após dezenove anos de ausência e de completa indiferença?
Que saudades vinha revolver ou que idílios acordar?

Ao mesmo tempo que estes pensamentos se atropelavam no seu espírito,
ela, por um movimento em que entrava tanto de coquetterie como de nervosismo,
ergueu-se, apoiou a mão no espaldar baixo de um fauteuil, impelindo
com o pé, para o lado, a longa cauda do seu vestido de viúva.
Houve um silêncio; o coração bateu-lhe com força.
Soaram passos pelo corredor encerado, esses passos foram abalados na alcatifa
da saleta contígua, onde a voz do Augusto indicou:

– Tenha a bondade de passar a outra sala…

Ela voltou-se com um sorriso desbotado e viu destacar-se, no fundo bronzeado
do reposteiro, a figura elegante e correta de Luciano Dias…

Ele avançou, e curvando-se diante dela:

– Minha senhora…

A viúva Simões estendeu-lhe a mão que a comoção
gelava e ele elegantemente beijou a mão que se lhe oferecia.

Lá fora, entre os murtais, continuavam as gargalhadas das moças,
e na doida alegria da luz, voavam os pombos por sobre as árvores e
o telhado do chalet.

Sentados um em frente do outro, a viúva Simões observava que
o Luciano Dias de então era bem diverso do Luciano de outrora! Tinha
os cabelos grisalhos, embora fartos, o que lhe dava um novo encanto à
fisionomia viril; já não era esbelto: o seu corpo perdera a
graciosa flexibilidade dos vinte anos, tornara-se um pouco grosso, o ventre
arredondara-se-lhe, e no seu rosto expressivo e simpático, havia vestígios
de cansadas insônias.

Por seu turno ele analisava a viúva. Achava-a com certeza muito menos
fresca, mas talvez mais encantadora. Agora tinha a graça consciente,
um pouco amaneirada, em todo o caso cativante. As faces tinham descaído
um pouco mas o corpo era agora mais airoso e ondeante.

Se as olheiras se haviam acentuado e os cabelos negros estriado de um ou
de outro fio branco, ao menos o sorriso tornara-se mais fino, mais inteligente
e perspicaz, e para ele, homem de sociedade, no saber sorrir estava toda a
arte e ciência da mulher de salão.

Ao princípio houve um certo embaraço na conversa. Esboçavam-se
frases que morriam depressa. Ele não justificava a visita; ela encolhia-se
com reserva. Luciano, era, aparentemente, já quase um estranho! Trocaram-se
falas banais.

Se a viagem tinha corrido calma… se não achava agora o Rio uma cidade
feia…

Ele respondia num modo cerimonioso e discreto e ambos, escondendo com todo
recato os seus pensamentos e lembranças, afetavam indiferença
e sossego.

Um gesto, um olhar, um suspiro quebram às vezes os mais firmes propósitos.

Fios há que parecendo de ouro são de seda: se lhes querem prolongar
muito a tensão – estalam. Foi o que sucedeu.

Luciano, depois de um pequeno silêncio, fixando a viúva nos
olhos, deu-lhe os pêsames pelo seu luto.

Houve um estremecimento.

Sem saberem como, de fato em fato, vieram a falar do tempo antigo. A evocação
desses dias de mocidade foi como que um pouco de sol que derretesse o gelo
entre ambos, e chegou mesmo um instante em que ele, enlanguescendo a voz e
os olhos murmurou baixo:

– Ernestina!

Era o nome dela. A viúva Simões levantou-se muito vermelha,
atravessou a sala até a um gueridon que ficava em frente, mudou ali
a posição de uma camponesa de biscuit, sem perceber mesmo porque
fazia aquilo, e voltando a sentir-se perto de Luciano, disse, olhando para
os zig-zags da alcatifa:

– Estou velha!

– Formosa velhice.!

– Trinta e seis anos…

– E eu trinta e nove…

– Os homens são sempre moços…

Luciano não respondeu; contemplava agora, com muita atenção
o retrato a óleo do finado comendador Simões.

Ernestina, um tanto embaraçada, perguntou:

– Conheceu meu marido?

– Conheci… quando fui para a Europa ele tinha-se associado a um amigo de
meu pai, o Nunes. Vi-o no armazém, exatamente no dia da partida.

– Era muito bom homem.. murmurou Ernestina quase a medo.

– Sim? talvez por instinto, eu antipatizava com ele… perdoe-me que lhe
confesse estas coisas…

Ela sorriu-se, ele continuou:

– Tive uma grande surpresa em Paris quando soube do seu casamento. Eu tencionava
voltar cedo e julgava vir encontrá-la ainda solteira…

Luciano crivava de reticências essas frases, sublinhando-as com o olhar.
Chegou ao ponto de afirmar que, se não fosse esse casamento ele não
teria vivido na Europa tantos anos…

Ernestina, atônita, respondeu com visível ressentimento:

– Mas o sr. foi como adido da legação!

– Não… mas que teria isso? Por acaso um adido de legação
não pode vir buscar a noiva ao seu país?

– Inda não éramos… Ernestina suspendeu a última palavra.

– Noivos?

– Sim, respondeu ela com a cabeça.

– Eu assim a considerava, disse Luciano, envolvendo-a no seu olhar de veludo.
Que faltava? o pedido ao papai!… ele consentiria por certo…

– Mas nem ao menos…

– Conclua! por Deus.!

– Não recebi nem uma linha, nem uma explicação. A sua
partida era a significação de um rompimento! Foi o que eu entendi.

– Entendeu mal… não tive coragem de lhe dizer adeus… e depois,
perdoe-me a vaidade! quis por em prova o seu afeto!

Ernestina abaixou a cabeça, subitamente arrependida de ter dado a
mão de esposa ao Simões. Lamentava agora em espírito
a perda de todo esse tempo, em que poderia ter vivido ao lado de Luciano,
na Europa, freqüentando palácios de príncipes e fazendo
ressaltar, com os atavios parisienses, os seus encantos de brasileira gentil.

– Afirmaram-me que o senhor ia para sempre… murmurou ela por fim.

– Calúnias… aposto que foi o Simões quem lhe disse isso?

– Talvez…

– Mas como foi que ele conseguiu fazer-se amar! era um urso, lembra-me bem,
era um urso!

Desta vez foi Ernestina que murmurou como um queixume:

– Sr. Luciano!

– Isto não é falar mal, mas sempre gostaria de saber… como
foi?

– O casamento foi feito… meu pai queria… eu cedi.

Ernestina não teve coragem de levantar os olhos; receou ver erguer-se
da sua cadeira de veludo escarlate, na grande tela em frente, o marido terrível
e ameaçador.

Enquanto Luciano lhe dizia quanto tinha sofrido com esse casamento e a espécie
de alívio que sentira ao sabê-la viúva, enquanto ele,
cheio de sedução, se apoderava da sua mão esguia e branca
e lhe dizia que viera da Europa por ela, só por ela; Ernestina, trêmula,
envergonhava-se da sua mentira, parecendo-lhe sentir os olhos do esposo fixos
nela.

O casamento feito pelo pai! Mentira! O Simões fora aceito por despeito
dela com o outro, o Luciano, mais nada. O pai não interviera, ficou
até surpreso quando o negociante lhe pediu a filha. Em verdade, ele,
o bom Simões, fora requestado pela moça! O plano fora seu; queria
casar, ser rica, vingar-se de Luciano, que a perseguia sempre nos bailes,
nos teatros, em toda a parte, e que afinal, sem uma explicação
deixava-a para ir para França!…

O comendador Simões tinha sido um bom marido, carinhoso, cortês,
sempre pronto a dar-lhe tudo quanto ela desejasse, vestidos caros, casa ajardinada,
mobílias modernas, vida farta, confortável e doce.

Ela tinha consciência disso tudo, gozara a seu modo, conforme as exigências
da sua educação burguesa. Se não tivesse tido a filha,
talvez que a própria comodidade em que vivia imersa a tivesse feito
procurar os gozos efêmeros da sociedade, mas a sua pequenina Sara prendia-a
aos deveres da casa, preocupando-a muito…

– Então seu pai obrigou-a a casar? perguntou Luciano numa insistência
maldosa.

– Obrigar propriamente não… aconselhou e achei que era do meu dever
obedecer…

– E não se arrependeu, Ernestina ? Não lhe ocorreu nunca à
memória a lembrança de alguém que sofreria muito com
o seu casamento?

A viúva Simões corava, alisando com a mão a preta do
seu longo vestido. Conteve o desejo de contar quanto tinha chorado, na manhã
do casamento, com a lembrança de Luciano… Ocorreu-lhe também
o constrangimento que tinha sentido, no dia seguinte, pelo marido, vendo-o
comer com a faca, ao almoço. Vieram-lhe à mente cenas desligadas,
que ela repelia, sem atinar com uma resposta.

Luciano aproximava-se dela, envolvendo-a com a sua voz quente e o seu olhar
macio e caricioso, ali mesmo, bem em frente às barbas fartas e ruivas
do comendador Simões. As suas palavras escorriam como o mel de um favo.
Ernestina, sempre de cabeça baixa, tinha o sorriso paralisado, sem
coragem de por um dique àquela ternura perigosa.

Ele ousava queixar-se de ter sido esquecido! A viúva não protestava.
Entretanto, lembrava-se bem! nos primeiros meses de casada aborrecia o marido
e disfarçava mal esse sentimento. O seu sonho tinha sido casar e partir.
Ir a Paris ver Luciano, tratá-lo com desprezo, fingir-se feliz… O
marido opôs-se à viagem, o único desejo em que a contrariou,
expondo-lhe razões de comércio e fortuna… Sair do Rio era
impossível então: prometeu que mais tarde percorreriam o mundo!

O tempo e a convivência desvaneceram o desamor da esposa. O nascimento
de Sara acabou de solidificar a aflição de Ernestina pelo marido.
O pensamento de ambos convergia para a pequenita; tinham ambos o mesmo cuidado,
encontravam-se ao mesmo tempo a beijar o mesmo rosto ou a embalar o mesmo
berço… As suas conversações mais intimamente doces
eram a respeito da Sarinha, vendo-a brincar dos joelhos de um para os joelhos
do outro, a dizer com igual ternura.

– Papai… ou mamãe!

Essas coisas iam voando pelo espírito da viúva, enquanto Luciano
lhe dizia que viera de Paris por sabê-la livre, do contrário
lá estaria ainda…

Falando sempre, doce e mansamente ele pegou-lhe na mão e retirou,
muito devagar, a aliança de ouro que ela ainda usava no dedo.

Ernestina consentiu. O anel rolou para o chão.

– Sempre julguei que o senhor voltasse casado.

– Não se lembrava que os homens são menos volúveis do
que as mulheres…

– Oh!

E Ernestina riu-se.

– Temos uma prova em nós mesmos.

Ernestina, já menos perturbada, perguntou, fixando em Luciano um olhar
claro e sério:

– Diga-me uma coisa, com toda a franqueza e lealdade: porque saiu do Rio
sem me mandar ao menos um bilhete, uma palavra qualquer de despedida?

– Mas eu já lhe disse.

– Não, interrompeu Ernestina, a razão apresentada não
é aceitável. Por em prova o meu afeto! Isso não é
coisa que ocorra a um namorado de vinte anos.

– Incompletos… acrescentou Luciano com um sorriso.

– Demais a mais!

– Realmente éramos muito crianças…

– Não fuja a minha pergunta, lembraremos isso depois…

– Que maldade! Por que não há de acreditar no que eu disse?
Quis por à prova o seu amor; além disso, meu pai, note que meu
pai é que era secretário da legação e não
eu, impôs-me essa viagem; negócios de família complicados
e que nem mesmo a gente depois de passado o tempo, sabe explicar! Eu era o
secretário de meu pai… foi isso naturalmente o que fez com que lhe
dissessem que eu tinha ido como adido. Inda a pouco não esclareci esse
ponto para não interrompê-la…

– Bem! vejo que o senhor é teimoso e não quer dizer o motivo
de um rompimento tão inesperado… Seja. E mesmo, agora, que nos importa
isso?

– Ficou zangada comigo?

– Muito

– Perdoa-me?

Ernestina teve vontade de dizer – esqueci-o – mas calou-se; roda a sua energia
e resolução tinham-se despedaçado!

– A senhora casou muito cedo…

– Com dezoito anos incompletos…

– Quantos meses depois da minha partida?

– Cinco…

– Que barbaridade!…

Riram-se. Lembravam-se juntos do passado.

Tinham começado a amar-se em casa de um tio de Ernestina, ela com
quinze anos, ele com dezoito… uma criancice de que Ernestina se teria esquecido,
se o seu casamento não tivesse sido feito por despeito disso. Luciano
era então estudante de medicina; o pai morava em Minas o ele hospedava-se
em casa de um negociante, Gustavo Ferreira, no Engenho Velho.

O negociante era o correspondente e o amigo mais querido do pai de Luciano
e era também o irmão preferido do pai de Ernestina. Isso ligou-os.

O tio Gustavo, como ambos diziam, não tinha filhos, a mulher passava
a vida doente, sempre queixosa e asmática, no entanto, ela vivia ainda
e ele tinha morrido de um ataque apopléctico.

– Seu pai? Perguntou Luciano

– Morreu… Daquele tempo só vivem a tia Mariana e a Josefa.

– Que Josefa?

– Aquela mulata lá de casa… que lhe fazia muita guerra.

– Uma baixa… queixuda…

– Isso mesmo…

– Tenho idéia… sim… que interceptava as minhas cartas!…

– Exatamente.

– Deve estar muito velha!

– Não…

– Como o tempo passa!

– E que saudades o senhor veio trazer-me da minha mocidade!

Ouvindo de longe uma gargalhada argentina e fresca, a viúva Simões
disse:

– Minha filha! é preciso que a conheça; vamos ao jardim!

– Uma filha!… tornou Luciano com tristeza, ali está uma lembrança
do outro que me amargura bastante…

– Ela é um anjo!

– Tanto pior…

Ernestina tornou-se muito séria o seu olhar até ali inefavelmente
doce, ficou de repente áspero, por ofendido.

– Vamos, desejo mesmo cumprimentar Melle. Simões, murmurou Luciano
emendando o seu erro, e demonstrando interesse pela menina.

– Pois sim, mas prometa-me…

– O quê?

– Não é nada, vamos? E a viúva passou adiante.

A sala tinha portas para uma varanda de ladrilhos cor de rosa e colunas finas
de ferro bronzeado. Dali descia-se por três degraus baixos e muito largos
para o jardim. O sol de junho iluminava tudo com uma luz risonha, e nos largos
canteiros relvados as flores rubras das casadinhas pareciam gotejar o sangue
nos seus braços espinhosos.

A viúva Simões ia adiante, erguendo a cauda do vestido preto;
Luciano admirava-lhe a graça do andar e a cor levemente morena do seu
pescoço roliço e delicado. Dando volta ao jardim foram parar
a uma segunda grade; a dona da casa abriu e entraram no pomar. Aí,
num espaço bem varrido, nivelado e todo guarnecido em derredor por
bambus, é que Sara e as amigas jogavam o croquet.

No momento em que entraram, exatamente quem jogava era a filha de Ernestina.
Não lhe viram a cara; estava curvada para diante; o vestido arrastava
na frente, mostrando-lhe atrás os tornozelos finos e as meias pretas
riscadas de cinzento. A mãe deixou-a jogar, e ao vê-la erguer-se
bateu-lhe levemente no ombro. Sara voltou-se.

Luciano observou-a com curiosidade.

– Mas é já uma moça! observou ele atônito.

– Eu não lhe disse que estava velha? perguntou Ernestina com um sorriso.

Olhando atentamente para Sara, Luciano resumiu assim o seu juízo:
a cara do pai! ponham-lhe umas barbas vermelhas e aí teremos o comendador
Simões.

Sara não era alta como a mãe, nem tinha a gentileza do seu
porte aristocrático. Tinha a cabeça um pouco grande e forte,
a testa arredondada, os olhos castanhos e inteligentes, o cabelo de um louro
ardente e luminoso, a boca risonha, os dentes sãos.

O que encantava nela era o bom ar de saúde, de inocência e de
alegria que se emanava do seu olhar franco, da sua pele rosada e fresca, e
da sua boca simpática.

Pareceria um rapaz vestido de mulher se não tivesse uma expressão
tão ingênua e se os cabelos não lhe cobrissem as costas
numa trança tão longa e tão farta.

Falava alto, e conquanto de tom autoritário, a sua voz era doce e
clara.

Ganhara a partida e estava vitoriosa; estendeu a mão a Luciano, como
se fosse a um amigo velho, com uma franqueza descuidada. Impelindo para trás
o cabelo que lhe voava para o rosto, convidou as amigas para outra partida
mas as companheiras estavam cansadas e ela começou a juntar o aparelho
numa caixa, contando ao mesmo tempo à mãe o fiasco de Georgina
Tavares. Uma graça!

A Georgina era uma moreninha galante, filha de um advogado da vizinhança,
e a maior amiga de Sara. As outras eram quatro sobrinhas do dr. Tavares, filhas
de um médico do Espírito Santo, e estavam passando uma temporada
com a prima. Vestiam mal e encolhiam-se envergonhadas, umas de encontro às
outras.

Ernestina voltou para dentro em companhia de Luciano. Atravessaram calados
o jardim. No primeiro degrau da varanda a viúva perguntou, parando
de repente com a mão sumida na trepadeira que envolvia uma das colunas:

– Que tal achou minha filha?

Ele moveu a cabeça com um sorriso, estendeu, depois de alguma hesitação,
os beiços em bico, e não respondeu.

– Quer dizer que lhe desagradou…

– A senhora parece-me ser uma dessas mães excessivas a quem não
se pode dar uma opinião franca dos filhos?

– Engana-se, respondeu secamente a viúva.

– O melhor é não perguntar nada. Ao contrário, eu quero
saber qual a sua impressão! Tenho empenho nisso!

– Manda?

– Exijo!

– Então aí está: acho-a feia!

– Feia! mas em que!?

– Em tudo menos no cabelo, que assim mesmo tem o defeito de ser um pouco
avermelhado, e na cor da pele. Admira-me como não tem sardas, que são
quase uma conseqüência do tipo.

– Antipatizou com ela, é o que eu vejo!

– Não… balbuciou Luciano vacilando.

– Sara é m anjo

– Muito parecida com o pai!

– Ora.

– Antes tivesse saído à mãe, concluiu Luciano, seria
muito mais formosa e menos…

– E menos?

– Quero dizer – mais agradável para mim.

Ernestina, apesar dos esforços por encobrir a tristeza que essas palavras
provocaram, deixou-a transparecer e Luciano despediu-se com uma certa frieza,
como se estivessem amuados.

II

– Então você foi hoje à Santa Tereza? perguntou o Rosas
a Luciano Dias.

– Fui…

– E então, que tal?

– Ainda fresca! Bonita!

– É bonitona, é.

Conversavam acerca da viúva Simões.

O Rosas acabava de jantar com o amigo regaladamente, na sua saleta do pavilhão,
no Flamengo, com vista para o mar. Estavam sós; o criado levara o café
e eles tinham acendido os charutos.

A tarde caía serena e bela num esmaecimento de tons delicados. Diante
da porta aberta do pavilhão, a rua larga e arenosa do jardim estendia-se
com uma brancura pálida, sem brilho, e nos largos canteiros relvados,
batidos de sombra, as palmeiras ornamentais abriam muito as folhas, como enormes
mãos espalmadas. Entre o verdor enegrecido das plantas, sorriam de
vez em quando rosas claras, cor de carne moça, e os arbustos das azaléias
brancas destacavam-se muito, todos cobertos com as suas flores de neve.

Do outro lado, pelas janelas abertas, vinha o marulho das ondas a morrerem
na praia.

– Já tenho licor… disse Luciano, respondendo a um gesto do Rosas,
que tornara a encher o seu cálice e passava a garrafa ao amigo.

– É bom; isto reanima e conforta o estômago. E depois de um
trago em que esgotou o cálice:

– Pois você fez mal em ir à Simões… pode comprometer-se
e depois não ter remédio, senão…

– Casar?

– Casar.

– Qual!

– Veja o que aconteceu comigo!

O Rosas, homem já dos seus cinqüenta anos, gordo e calvo, cansado
do seu viver de solteirão, tinha-se casado, para um ano depois separar-se
da mulher, com grande escândalo.

A pobrezinha tinha sido uma cabeça tonta e bonita. Passara a mocidade
a ler novelas dos jornais e a fazer crochet à janela da casa do pai,
em S. Cristóvão.

Montépin lançou-lhe no espírito a semente da inveja
das fidalgas loiras, de mãos de cetim e olhos de veludo turquesa. O
crochet dava-lhe tempo para remoer mentalmente cenas de amor adúltero
deslizadas nos parques alfombrados de castelos provincianos. Quando casou,
o Rosas tinha ainda todos os gostos do negociante pacato e burguês.
Como isso fosse por 1890, no período efervescente do jogo da bolsa,
em que os luxos se assanharam até o desmando, não custou muito
transformá-lo. Foi ela, portanto, quem o acostumou àqueles jantares
no pavilhão, quem o obrigou a comprar carro, a freqüentar o lírico,
até que um belo dia – zás! Lá se foi mar em fora com
um primo dele, levando todas as jóias e deixando por despedida algumas
linhas mal escritas.

Entretanto, aquele golpe não o desesperou; tinha mesmo facilidade
extrema em aludir a ele. Chegava a ponto de constranger os amigos. Um deles
notou-lhe um dia:

– Homem! há certas infelicidades que se escondem…

– Ao contrário, respondeu-lhe o Rosas, há certas infelicidades
que devem ser espalhadas para servirem de exemplo!

Lá tinha o seu modo de ver.

– Há muitos meses que não vejo a Simões, prosseguiu
o dono da casa, fincando o cotovelo na mesa e erguendo até a altura
da calva a mão gorda e curta, em que luzia um enorme brilhante.

– Eu, já agora hei de morrer solteiro, disse Luciano pausadamente.
Conheci por alguns anos a vida de família, fui tão feliz quanto
podia ser nas condições em que me achava, e isso bastou-me.

– Alguma ligação.

– Sim. Uma rapariga por quem me apaixonei… vivemos quatro anos juntos.
Hei de ter sempre saudades desse tempo… ela era linda e era um anjo!

– Um anjo com asas para fugir depois de quatro anos de ventura, não
é assim?

– Não.

– Foi você que a deixou ?

– Morreu.

– Ah!…

Houve um instante de silêncio. O Rosas prosseguiu:

– Sabe que eu estava mal com o Simões?

– Não… por quê?

– Negócios.

– Ouvi dizer que ele era um homem mau.

– Não era tal.

– Por mim não sei nada. Eu mal o conheci.

– Ele era um pouco irascível e muito extremado nas suas opiniões
mas era o que se pode chamar homem de bem! Na questão que tivemos,
eu mesmo confesso, hoje, bem entendido, que a razão estava do lado
dele.

– Então?

– Que quer? tive maus conselheiros. Essa é que é a verdade.

– Ele era português, não era?

– Não… riograndense, filho de alemã e de um negociante que
morreu doido, aqui no hospício; ainda o conheci… O Simões
tinha puxado ao tipo da mãe, era vermelho e ruivo; morreu de congestão.
Já se esperava isso mesmo era um touro, pescoço curto, cabeça
grande…

– A filha parece-se muito com ele deve ser violenta e forte. É feia.

– Tem uma filha só?

– Só…

– Pois o Simões não era mau homem. Um poço curto de
idéias… Se a menina sair ao pai não será atormentada
pela inteligência…

– Agora diga-me: acerca do comportamento de Ernestina nunca se falou?

– Nunca ouvi nada! Gozou sempre de reputação. Isso a meu ver
não tem valor. Há mulheres tão sonsas!

– Que diabo! nem um amante, hein?

– Nenhum, que me conste.

– O Simões deixou grande fortuna?

– Não sei… calcula-se nuns quatrocentos contos, talvez.

– Não é má soma… Pois se não fosse o demo da
filha, quem sabe? Talvez que realmente eu caísse na asneira de casar…

– Você não quis quando ela era moça, e então agora…

– Quando era moça era pobre… Mas o que me metia mais medo, ainda
assim, não era a pobreza, eram os olhos dela!

– Os olhos!

– Receava que viesse a suceder-me o que sucedeu a você Ernestina tinha
uma beleza provocante, de espantar maridos!

– Pois foi uma boa mulher… essas coisas enganam. A minha era mansa como
um cordeiro, olhos postos no chão… parecia um anjo! Caí como
um patinho… e aí está o resultado! Ora! estou livre! Isto
de casamento é o diabo! Evita Santa Tereza!

– Não há perigo! Preciso de alguma coisa para entreter o tempo…

– Trabalha…

– Em que! Perdi o costume. Depois o que tenho dá-me para viver…

Luciano levantou-se e foi à janela, enquanto o Rosas sacudia com o
dedo a cinza do charuto.

– Sabe! disse Luciano sem se voltar, e prosseguindo logo: estou encantado
com a minha terra. Que beleza!

– Homem, não é isso que costuma dizer quem vem da Europa…

– Ora! Onde viu você nunca uma cidade com vistas destas?! e apontou
com um gesto largo a baía em frente.

O Rosas levantou-se e foi encostar-se ao peitoril ao lado do outro. Ficaram
silenciosos vendo os últimos raios do sol iluminarem com uma luz policroma
parte do mar. De um lado tremulava uma rede malhada de ouro cintilante, mais
além uma nuvem vermelha refletia nas águas um tapete de rosas,
e em outros pontos apareciam manchas violáceas e sombrias que iam crescendo
e movendo-se na onda. Na areia clara destacavam-se velhas pedras escuras,
em que as algas se apegavam, como aranhas secas.

– Vamos dar um giro, interrompeu o Rosas, pouco afeito às contemplações
da natureza.

E saíram os dois.

III

Luciano e o amigo desceram pela rua do Catete conversando e devagar, num
exercício de boa digestão.

O Rosas bamboleava o corpo curto e grosso, com o veston azul aberto na frente
e as mãos sumidas nos bolsos; o Luciano ia ao lado, distraído,
com os braços p’r’as costas e o bengalão suspenso entre as duas
mãos.

Os bondes passavam cheios. Em uma ou outra casa iam-se moças à
janela, quase todas bonitas, bem vestidas.

Ia caindo docemente a noite. Um propheta corria de lampião a lampião,
com a blusa de zuarte flutuante, o varal erguido e o chapéu enterrado
até as orelhas.

A rua tinha trechos menos tumultuosos de feição aristocrática,
onde as casas não se abriam tão burguesmente à poeira
e à curiosidade de fora; mas logo em outro quarteirão, tudo
mudava, aspecto de pessoas e de coisas, como se se tivesse dado um salto para
outro bairro. Então, em vez de prédios grandes, de cortinas
cerradas e plantas ornamentais nas entradas, eram as casas apertadas, desiguais;
e, de vez em quando, ou um frege tresandando a azeite e sardinhas, ou uma
quitanda apertada, cheirando a fruta apodrecida e a hortaliça murcha.
Nesse ponto andavam crianças aos magotes pela calçada, de mãos
dadas, embaraçando os transeuntes. À porta de um barbeiro ou
de outra qualquer casa de negócio, sufocada por prédios maiores,
conversavam algumas pessoas com muitos gestos e poucas risadas.

Luciano prestava atenção às mínimas coisas, querendo
em vão comparar o aspecto dessa rua de então, como do tempo
em que ali tinha morado, havia largos anos!… A diferença estaria
na sua maneira de olhar? perguntava ele a si próprio.

O Rosas conhecia meio mundo, morava por ali havia muito, por isso cumprimentava
quase toda a gente; quando o fazia a alguma senhora chic, Luciano não
tardava em perguntar-lhe:

– Quem é?

Pelo meio da rua rolavam maciamente os carros particulares, de volta do passeio
a Botafogo e em demanda dos lares. O Rosas citava o nome das donas, gente
boa, freqüentadora do Lírico e de Petrópolis.

O Luciano pedia-lhe que o apresentasse, não conhecia ninguém,
e era sociável, afeito às saias e a conversações
com senhoras.

O Rosas sorria.

– Você está-me com cara de conquistador.

– Ora…

– Hoje apresentar a gente um amigo como você em casa de outro… é
um perigo… enfim, não direi que…

– Faça-se de puritano!

– E sou; desde que me sucedeu o que você sabe, então, nem se
fala!…

– Ora adeus!

Nisso o Rosas apontou para um carrinho elegante e leve, que vinha da cidade
guiado por uma moça de claro, airosa, bem sentada na almofada. Como
a luz já fosse escassa, Luciano não a pode ver bem. Atrás
dela desenham-se as silhouéttes de dois lacaios empertigados.

– Quem é? inquiriu Luciano, reparando para um gesto do Rosas.

– Clara Silvestre… uma ex-atriz do Recreio.

– Parece chic.

– É uma das mais bonitas, aí…

– Apresenta-me?

– Sem escrúpulo.

Houve um sorriso. Passavam pela esquina de Santo Amaro. Luciano parou, mostrando
um prédio em frente.

– Já morei naquela casa… era então rapazinho, andava às
voltas com exames de francês.

– Você não foi nascido e criado em Minas?

– Não. Ali ao lado era uma padaria e aqui, nesta esquina, um armazém.

– Já as reminiscências vão tomando um caráter
mais positivo. Mas, que diabo! Não me lembra que seu pai tenha morado
aqui!…

– Pois não, foi só depois do meu nascimento que meu pai se
resolveu a ir para a província; voltamos de lá por doença
de minha mãe. No fim de dois anos ela morreu, meu pai regressou para
a província e eu fui então morar com o nosso correspondente,
o Gustavo Ferreira…

– Tio da Simões…

– Sim, tio da Simões…

– Conheci-o. Morreu, sabe?

– Disse-mo a sobrinha.

– Ah… Ela pô-lo ao corrente de todos os sucessos… Falaram do passado?

– Um pouco…

– Devia ter sido linda, a Simões.

– Esplêndida! e depois viva, alegre!… parece muito mudada. Era de
meter medo!… Hoje não é a mesma… ainda assim… não
lhe digo nada…

– É chic. Agora, fora de caçoada, não se ponha a brincar
com o fogo inutilmente! A Simões é seria; você deve evitar
a convivência, visto não querer casar. Conheço bem a nossa
sociedade… isto está feio…

– Que mania!

– Tome sentido!

– Que diabo! Ernestina é uma viúva, não é mulher
que se deixe iludir… Será capaz até de me iludir a mim!

– Qual! E quer saber uma coisa? Em todo este desmando em que vivemos, eu
não culpo as mulheres, culpo os homens. Elas são boas.

– Ora essa!

– Se você quer a Simões, case-se com ela.

– Isso não.

– Então não volte a Santa Tereza.

– Eu tenho muita prática… conheço bem as mulheres!…

– Pode enganar-se uma vez. Você agora está em Paris…

– Parisiense ou não, a mulher é sempre a mesma!

– Pois sim! ouça o meu conselho!

– Ora!

A noite tinha caído completamente. Durante a travessia do cais da
Glória, sentiram frio. O Rosas falava sempre, Luciano mal o ouvia,
com o pensamento afastado.

Atravessavam agora a rua da Lapa.

Moças cheias de fitinhas e de papelotes recostavam-se ao peitoral
das janelas baixas; na calçada os moleques assobiavam o Chegou, chegou,
chegou, e os baleiros roçavam pelas crianças, oferecendo-lhes
balas. Ali não podiam conversar, a calçada era estreita, muito
atravancada; Luciano caminhava atrás do Rosas, reparando para os tipos,
admirado de ver tão poucas pretas. Uma ou outra mulata cruzava-se de
vez em quando no caminho, carregada de essências e de laços,
muito espartilhada, exagerando a moda do vestido e do penteado. Onde se teriam
metido os pretos do ganho, os minas, de cara retalhada, rodilha na cabeça,
cesto na mão? E o fervilhamento de crioulas na rua, de vestido de riscado
e manga curta, mais a quantidade de formosas baianas, muito limpas, como seu
belo traje flamante, a camisa de renda, o turbante airoso, o pescoço
e os braços cheios de contas de vidro e de corais, a manta riscada,
a tiracolo, a sala muito franzida rebolando aos movimentos dos sólidos
quadris carnudos, e as chinelinhas tac-que-tac nas calçadas?

E os chins de trança longa, roupa de algodão grosso, vara no
ombro gigos pendentes, percorrendo as ruas num passo apressado e ferindo o
ar com a sua voz achatada – camalon – péce!? E os crioulos que vendiam
calçado em caixas envidraçadas, apregoando, numa melopéia
grave e prolongada – Sapato! E as gôndolas, diligências desengonçadas,
suspensas sobre as suas quatro rodas altas, rodando aos solavancos sobre os
paralelepípedos, num fracasso tremendo? E os meninos vendedores de
cana, entoando musicalmente:

– Vai cana, sinhá, vai cana sinhá, vai cana sinhá, bem
doce!? E os carregadores de pianos, empunhando o caracaxá tradicional,
que vinha desde longe num rumor inconfundível?

Que vento dispersara aquela gente? para que país teriam fugido todos
aqueles tipos a que se habituara na infância? Agora só via caras
estrangeiradas, muitos italianos, turcos imundos, quase toda a gente branca,
muito luxo, muitas equipagens, cavalos de raça guiados por titulares,
com lacaios e grooms ingleses, muitas toilettes vistosas, muitos brilhantes
e uma variedade infinita da cores nas bandejas de balas e nas cabeças
das burguezinhas pobres, cheias de papelotes!

De dia para dia as coisas mudam de aspecto e muda a observação
dos olhos que as vêem. Luciano sentia saudades da sua maneira dever
e de sentir de outrora! Então as impressões ficavam-lhe sem
que o espírito as analisasse, agora submetia tudo a crítica
e a comparação estúpida e fatigante, sem conseguir fixar
bem no espírito o caráter especial do lugar e do povo por que
passava.

Tinham chegado ao largo da Lapa e encaminharam-se para o passeio. O Rosas
retomou o fio da conversa; para ele era ponto de fé: a felicidade no
lar era prejudicada pelo marido.

– Somos uns viciosos acrescentava ele – pensamos em duas coisas – roleta
e mulheres; ainda no Rio não é nada, mas nas províncias?
Nós damos às nossas esposas o luxo que podemos, mas não
as associamos aos nossos empreendimentos, não as fazemos entrar em
nosso espírito. Compreende você? São objetos de luxo e
de comodidade… também percebendo isto mesmo, algumas delas, desde
que não nos faltem botões na roupa branca e o almoço
à hora certa, não têm muito escrúpulo em nos retribuírem
as mentiras que lhes pregamos.

– Homem! Você é um original! Se outro o dissesse…

– Isto não quer dizer que a maioria das famílias aqui não
sejam honestíssimas!

– Honestidade é palavra que se não usa em países civilizados…

O Rosas não respondeu; seguiram pela alameda da esquerda até
o terraço, fugindo ao povo que se aproximava do restaurant, à
espera da música.

E foi então à luz das estrelas que tremulava lá em cima
entre flocos de nuvens, e ao olhar das ondas cá em baixo, que um desfiar
do anedotas, de parte a parte, os obrigava muitas vezes a parar e a torcerem-se
de riso.

Uma hora depois despediram-se. O Rosas ia para um voltarete com amigos e
Luciano para o teatro.

IV

O caráter de Ernestina ia-se transformando rapidamente. Depois da
visita de Luciano, ela passou uns dias muito sombria e ríspida, indignada
consigo mesma contra as idéias que lhe iam nascendo como rebentões
novos em tronco maduro, diversas em tudo das antigas, que se despegavam como
folhas secas… Enraivecia-a a lembrança da sua fraqueza e condescendência,
deixando Luciano recordar coisas perigosas… Ah! se pudesse voltar atrás
recomeçar todo o tempo da visita, como se faria impassível,
serena e austera!

As coisas agora eram bem outras! Ainda há pouco tempo ela não
saía de casa e impunha à filha, rigorosamente, todos os preceitos
e tristezas do luto. Eram então baldados os convites da Georgina Tavares,
que morava ao lado e que não faltava com os pais a instâncias
e oferecimentos. Nada! Sara tinha muitas vezes desejo de ir a uma ou outra
soirée, mas respondia gaguejando que não, à espera que
a mãe consentisse.

Ernestina conservava-se muda e Georgina retirava-se desapontada e triste.
No dia seguinte esta corria logo cedo a vazar nos ouvidos da amiga as suas
impressões do baile ou do teatro, e era então um chilrear de
risadinhas sufocadas e de exclamações por coisas apenas entrevistas
por uma nas descrições muito falhadas e entrecortadas da outra.

Sara perguntava pelas toilettes mais lindas do baile e Georgina explicava-as
com uma minúcia surpreendente. Assim o enredo dos dramas. Que de lágrimas
rebentavam dos olhos de ambas e que desfolhar de risos tinham os seus lábios
de meninas, quando Georgina transladava para aquele sereno canto do jardim
os gritos de agonia ou as frases jocosas que ouvira no palco!

E era só:

– Meu Deus! Você não imagina! Que coisa bonita!

– Conte o resto! suplicava Sara com olhar ávido e ouvidos bem abertos.

E as cenas atropelavam-se.

Georgina ia e vinha muito ligeira, esquecia minúcias que ligavam o
entrecho, voltava atrás, parava de repente para um detalhe, descrevia
os vestidos das atrizes e atrapalhava-se a miúdo embrulhando cenas
ou repetindo frases.

Às vezes, num ou noutro ponto, confessava: aqui não entendi
bem! e, outras vezes então, a sua imaginação colaborava
em grande escala com o autor da peça, descrita e ampliada.

Sara impacientava-se, tirava por conclusões, farrapo a farrapo, o
drama inteiro! Como deveria ser lindo!

Na manhã seguinte a uma récita do Lírico, Georgina ia
mais cedo para a casa da amiga, havia mais que contar. Em primeiro lugar,
descarnava-se o libreto, depois o cenário. Georgina movia o seu corpo
leve e delgado, explicando com muitos gestos:

– A cena representava o mar, ao fundo; à esquerda uma igreja com torres,
sino e tudo. Aqui, e apontava para um canteiro de jurujubas, havia uns degraus,
ali (outro canteiro) uma casa grande com um portão em arco; à
direita as ruas. Quando a Theodorini entra, com um grande véu branco
pelo rosto e o vestido de noiva a rastos, a gente sente una calafrio – que
não pode explicar.

Podia; Sara encolhia os ombros, imitando insensivelmente o movimento da outra.

– Que pena que você não ouça a Theodorini!

– E a música?

– Ah!… Georgina levantava embevecida os olhos ao céu. Sara suspirava,
lamentando não ter ouvido e visto tudo aquilo.

Passava depois à descrição dos espectadores.

– Estavam muitos conhecidos?

– Alguns. O Breves foi falar conosco num intervalo; perguntou por você…

O Breves era sempre o primeiro mencionado por ela, por fazer a corte a Sara.

– Que me importa o Breves! E o Raul?

O Raul fazia a corte a Georgina.

– Estava também.

– Olhou muito p’ra você?

– Olhou… Eu fingi que não o via… por causa da mamãe…

Seguia depois a relação dos camarotes. As Mendes; duas de azul,
duas de cor de rosa; já um pouco amarrotadas pelos anos, mas, com o
muito pó d’arroz e alguns brilhantes, ainda faziam vista…

O pai, em pé, atrás delas com as barbicas brancas espetadas
e a sua eterna posição de braços cruzados, parecia um
lacaio…

– A Helena Gomes estava?

– Muito chic! Toda de branco, com pérolas no pescoço e violetas
na cintura… o marido, que tolo! Deixava de olhar para ela para se derreter
para a prima, que é uma lesma!

– Que prima?

– Para a D. Catarina!

– Ah! Aquela a quem você me apresentou no hotel da Boa Vista?!

– Essa mesma! Está seca e com umas olheiras que lhe comem a cara!
Horrível!

– A Helena vinga-se…

– Isso é verdade!… lá estava o Seixas no mesmo camarote….

– Assim mesmo têm sido fiéis…

Riam-se. Comentavam tudo. O focinhozinho inteligente de Georgina farejava
todo o teatro, descortinava sorrisos que partiam de uns para outros, leves
e sutis como o voar de arminhos soltos. A ingenuidade dos quinze anos era
uma história nessa criatura freqüentadora da sociedade em que
todos os vícios se expõem tanto à luz. Curiosidade e
perspicácia, sim, tinha de sobra, e quando comentava erros alheios
punia sempre os delinqüentes, afirmando:

– Quando eu me casar não hei de incorrer na mais pequena falta!

Partiam quase sempre dessa frase no batel de ouro do futuro, a fazer e desfazer
sonhos, até que se separavam com dois beijos.

Antes disso ainda num lamento por não ter visto o mesmo que Georgina,
Sara suspirava:

– Se papai fosse vivo!

Era o ponto final.

Ernestina, que fora sempre inflexível às solicitações
da filha para saídas e divertimentos, mudara completamente de parecer
depois da visita de Luciano.

Agora, ela não sabia mesmo por que, sentia necessidade de andar, divertir-se,
num ambiente diverso do seu.

Pouco a pouco, com a tardança que Luciano punha em fazer-lhe a segunda
visita, esse desejo aumentou, caracterizando-se nela vontade que tinha de
o encontrar na rua, num jardim numa sala, em qualquer parte, como obra do
acaso.

Ernestina lembrou à filha toilettes novas, como pretexto para descer
à cidade.

Era a sua primeira tentativa. Sara exultou. Estavam ao almoço; comeram
com apetite, conversando numa camaradagem risonha. Bonito sol… dia fresco.
Belo passeio! Logo ali fizeram uma lista de coisas precisas.

Ernestina disse à filha que se não vestisse antes das duas
horas, e dirigiu-se para o seu quarto. O diabinho da Simplícia é
que sabia bem o lugar de todas as coisas, e veio pressurosa ajudar a ama,
observando-a de esguelha, como se lhe estudasse os movimentos. Começou
a dispor das roupas para a saída, com o maior esmero. Os crepes do
luto passavam do guarda-vestidos para cima da cama, onde Ernestina os examinava
com cuidado.

A Simplícia ia e vinha, sumindo as mãos magras nas gavetas,
retirando as roupas brancas e os fichus, lenços e meias de seda. De
vez em quando, num giro rápido, ocultava no seio, sutilmente, um rolo
de fitas, sem que a viúva desse por tal, mas vinha logo estender na
cama o leque, as luvas, o véu, a saia de seda, até o chapéu
de sol, que ela escovava com minúcia. Tudo pronto, Ernestina mandou-a
sair mas a rapariga achou jeito de se chegar para o guarda-vestidos, ainda
escancarado, e de exclamar com modo lisonjeiro:

– Iaiá é a moça de mais gosto que há em Santa
Tereza!… É preciso Iaiá se casar outra veiz para usá
seus vestidos claros… Hi! Iaiá fica bonita com roupa clara!

Ernestina corou; e vendo os olhinhos da mulata fixos nela, disse com aspereza:

– Vai-te embora.

A Simplícia saiu e a moça fechou-se por dentro. Foi então
para outro quarto contíguo, onde estava o toucador. Sentou-se em frente
ao espelho e ensaiou penteados novos pacientemente, a ver se algum lhe ficaria
melhor que o habitual; venceu por fim o costumado; o cabelo parecia ir tombando
sozinho, nas ondulações naturais. A viúva curvou-se,
observou de perto os dentes, perfumou-se muito, sorrindo para o espelho, achando
bonito o seu rosto oval, onde as pestanas faziam sombra.

Em frente dela, sobre o mármore, o perfumista Guerlin parecia ter
despejado, profusamente, os seus mais finos produtos. Potes de porcelana,
vasos de cristal, bocetas de veloutine exalavam um aroma confuso, forte, entontecedor.

Sozinha naquele quarto em que a sua imagem se duplicava, Ernestina estudava
os seus movimentos procurando ao mesmo tempo adivinhar qual seria, entre tantos,
o perfume preferido de Luciano.

O musgo?… Quem sabe? Talvez… fazia lembrar o campo… água limpa
rolando em pedras claras, camponesas contentes, de carnes fortes.

O lírio? Quem sabe?… Talvez… fazia sonhar em idílios brandos
e amores virginais. A flor de fruta? O jicky? O heliotropo? A violeta?…
Quem pudesse adivinhar! Ernestina abria os diversos frascos, consecutivamente.
Chegava-os bem perto, as narinas palpitantes; mas no fundo de todos eles encontrava
o mesmo mistério, a mesma vertigem, a mesma dúvida!

Isso exacerbava a voluptuosidade da moça, irritando-a no mesmo tempo.
Desmanchava com mãos nervosas, na água simples, as nuvens opalinas
das essências e quedava-se depois observando os seus ombros delicados
e nus, os seus formosos braços e a maciez do seu colo airoso.

Vestia-se devagar, demoradamente. A lã preta do luto repugnou-lhe;
aquele trajo áspero e triste não era o que o seu corpo desejava.
A pele bem tratada queria seda, um contato macio que caísse sobre ela
como uma caricia…

Abriu a gaveta das jóias, apalpou os anéis de brilhantes e
de pérolas, as pulseiras e o seu alfinete predileto, um botão
de rubi e brilhantes. Mas sobre a lã do vestido as jóias iam
mal, e o mundo impedia-lhe o prazer de as trazer com o luto.

Toda de preto parecia mais magra e menos bonita. Exasperou-se. Achou o vestido
medonho, o chapéu detestável!

Durante mais de uma hora foi um incessante abrir e fechar de gavetas, até
que a voz de Sara se fez ouvir através da porta.

– Mamãe? Está pronta? São duas horas!…

– Já vou…

– Sim… eu estou pronta… a senhora quer lunch ?

– Não!

– É melhor irmos ao Paschoal, não é?

– É sim, vai descendo… eu já vou.

Sara descia o jardim quando sentiu os passos apressados da mãe. Ernestina
impacientara-se com a espera do bonde para o elevador, e embaixo, com o outro
que a levasse a S. Francisco. Falava em comprar carro, mudar mesmo de bairro,
ir para Laranjeiras. Sara estranhava aquilo, fazendo objeções.
Concordava com a aquisição do carro, mas opunha-se à
troca de casa; aquela em que viviam estava cheia de recordações
do pai: o escritório, sua varanda predileta… os cantos preferidos
no terraço, na sala de jantar… até as plantas fora, árvores
e roseiras cultivadas por ele! Suplicava que não falasse nisso.

Chegadas à cidade Ernestina procurava em não esconder o seu
alvoroço. Sara fê-la entrar na Notre Dame, encantada pela exposição
das vitrines. A mãe deixava-a perto do balcão, sozinha e dirigia–se
amiudadamente à porta, numa ansiedade febril.

A moça reclamava:

– Mamãe! Escolha; qual é mais bonito, este corte cinzento ou
aquele branco e preto?

– O azul.

– O azul!

– Sim, o azul é o mais bonito, respondeu a mãe apressada quase
sem olhar.

– E o luto?

Ernestina atrapalhou-se, já nem lhe ocorria o luto. E num disfarce:

– Quero dizer – podes também comprar o azul, para fazer depois.

– Não passará da moda?!

– Eu sei lá!…

– Mamãe, acha que o azul me vai bem?

– Muito bem.

Cansada de pedir conselhos à mãe, Sara passava sozinha do rayon
das lãs para os das sedas, das capas, dos chapéus, das rendas,
de tudo!

Comprava aqui, ali, acolá, meio tonta, magnetizada por tantas coisas
brilhantes e bem dispostas.

A travessia daquela casa ia-lhe povoando a imaginação de sonhos.

As escomilhas, as gazes, as tules transparentes, as sedas muito claras, de
tecidos mimosos lembravam-lhe bailes, acendiam-lhe desejos de valsas, cortadas
por frases curtas ao som ritmado da música. As sedas pretas, os livros
de missa, as grandes franjas do vidrilho, chamavam-na de repente a festas
de igreja, muito solenes, onde o bispo abençoasse o povo… Dali saltava
para o ménage; as toalhas de linho adamascadas com barras vermelhas,
ouro velho e azul persa, sorriam-lhe, chamando-a para a sua alegre sala de
jantar, cheirando as belas rosas – marechal Niel, que se enroscavam às
janelas. E ela apalpava pelúcias cor de fogo e rendas cor de opala,
pensava em toilettes de teatro, de baile, de recepção, de passeio,
vendo as fitas desenroscarem-se dentre as mãos de um caixeiro, como
serpentes multicores e tentadoras, e contemplando os grandes leques de plumas,
que uma moça escolhia perto do balcão.

Queria comprar tudo; encontrava uma aplicação imediata para
cada objeto. A moda sorria-lhe, chamava-a para fora daquele luto, daquela
vida austera, concentrada e simples do seu chalet. Invejava as mulheres que
freqüentam a sociedade arrastando capas de arminhos em corredores de
teatros e caudas de veludo nos salões de baile.

Na ocasião do pagamento, Sara correu a mãe, que não
saíra da porta. Ernestina entregou-lhe a carteira, que fosse sozinha
à caixa, ela esperaria ali.

Um instante depois desciam a par a rua do Ouvidor.

Havia muita gente nas calçadas, um rumor surdo de passos e de vozes
que as atordoava; tinham-se afeito ao silêncio da sua chácara.
Sara entrou num armarinho, Ernestina acompanhou-a até o interior da
casa, mas voltou depressa para fora com um sobressalto. Parecia-lhe ouvir
a voz de Luciano. Fora erro: era um sujeito que discutia com um velhote surdo,
gesticulando muito.

De pé, na soleira da porta, a viúva olhava para a multidão
que passava, esperando, a todos os minutos, o Luciano… Pela lã mole
do seu vestido preto roçavam as saias de seda e as saias de chita das
outras mulheres que passeavam devagar ou que passavam apenas, na pressa dos
que trabalham.

Na esquina, perto, estacionavam os vendedores de flores; os seus ramos de
cravos e violetas embalsamavam o ar; e era um encanto ver a variedade de rosas
finas, brancas, amarelas, escarlates, cor de rosa, e os raminhos de miosótis,
de um azul delicado, dormindo na concha verde e macia de uma folha de malva,
mais as formosas camélias da Petrópolis de uma alvura puríssima…

No meio da rua, um homenzinho cor de folha seca atraía a criançada
segurando pelos fios os alegres balões de gás, vermelhos e azuis,
muito leves, que bailavam sobre a onda movediça dos chapéus
escuros.

Mas que importava à viúva Simões aquela variedade de
matizes, aquela doçura de sons, aquela onda de perfumes, de toilletes,
e de mulheres bonitas que se alastrava por ali? Tinha só um objetivo:
vê-lo.

Uma cigana imunda, com o filho ao colo e o xale em farrapos, esteve longo
tempo parada diante dela, com a mão estendida, murmurando queixumes.
Ernestina, com a cabeça erguida e o olhar em busca de Luciano entre
grupos e grupos de homens que se sucediam, nem a viu nem ouviu, e a mendiga,
desanimada, passou adiante.

Uma pancada de leque num ombro chamou-a a realidade. Era D. Candinha, a mulher
do Nunes.

– Que milagre é esse?! Você na cidade!

– Ah! É verdade…

– Onde está Sara? Bem se vê que você não vem à
rua do Ouvidor há muito tempo!

– Por quê?!

– Está com ar esquisito… tem alguma coisa?

– Não… Sara!…

– Estou aqui, mamãe.

Foi um alívio para a viúva. Sara desatou a conversar com D.
Candinha e Ernestina deixou-se silenciosa, à vontade.

D. Candinha era uma boa companheira de passeio, desembaraçada, risonha
e conhecendo meio mundo, o que encantava Sara, ávida por divertimentos
e sociabilidade. A mulher do Nunes era alta, gorda, morena, beiço ensombrado
por um buço, ameaçador de se tornar em bigode lá para
a velhice, bonita de feições, com dentes magníficos e
olhos rasgados, úmidos e espertos. Gostava muito de reunir em casa
os amigos em soirées que se prolongavam até as primeiras horas
do dia. Vestia com luxo, embora sem gosto, sedas com ramos, tecidos vistosos
que lhe iam mal. Usava muitas jóias e falava alto, abrindo os braços
para cada amiga, e a bolsa para cada pobre.

– Viram passar por aqui o meu velho? perguntou às Simões.

– Não…

D. Candinha adorava o marido, negociante português, homem generoso,
que lhe fazia todas as vontades e ainda pagava colégio de luxo às
cunhadas e casa a duas tias velhas, irmãs do sogro.

Estiveram conversando algum tempo, até que Ernestina, muito impaciente,
arrastou a filha consigo.

De longe em longe alguns conhecidos faziam-nas parar, manifestando espanto
por encontrá-las na cidade, tão raro isso era. Sara ria-se,
Ernestina respondia, seguindo com o olhar a turba que passava. Em uma dessas
ocasiões conversavam com um velho, amigo do finado Simões quando
Ernestina julgou ver Luciano ao longe.

Foi uma lástima! o velho falava-lhe sem que ela percebesse nada e
apressou-se em despedir-se, cortando uma frase que o pobre homem começava
a dizer. Estranhando os movimentos da moça, ele não se pôde
coibir e perguntou:

– Procura alguém?

– Não!… respondeu Ernestina embaraçada; há muito tempo
que não saio e esta bulha incomoda-me. Vou para casa.

Entretanto, seguiu caminho oposto e até as 6 horas subiu e desceu
a rua do Ouvidor, deixando Sara comprar o que lhe aprouvesse, sem a mínima
intervenção, num verdadeiro suplício.

V

-Çá va bien monsiu Auguste? perguntava a Simplícia ao
copeiro, na cozinha, esganiçando-se e rindo para ele, que mal lhe respondia,
com um sorriso desdenhoso.

– Diabo de negrinha assanhada! murmurava Benedita, remexendo as panelas.

– Ora veja só! Aquela treze de maio!.. Eu não sou negrinha
sou moça morena, ouviu?

– Quem lhe ensinou francês?! perguntou o jardineiro a mulata, interrompendo
o café que bebia pelo pires.

– Mamãe.

A Benedita riu-se alegremente, fartamente.

Simplícia na ausência de Ernestina chamava-a mamãe.

Ora veja se nhanhã ia-se cansá de ensinar franceis à
negrinha! Seu João! Ela só sabe dizê aquilo!…

– Sei mais coisas!…

– Então converse com seu Augusto, prá gente vê…

O copeiro levou os talheres para a sala do jantar, sem querer dar confiança
à pequena.

– Toma! gritou-lhe a Benedita; e estalou a língua depois de ter provado
o feijão.

Simplícia acrescentou, espalmando no ar a mão curta e magra:
– Deixe está, que ele me paga; inda há de gostá mais
di mim do que eu gosto dele. Depois tirou do peito um lencinho da ama, muito
perfumado, e começou a dançar, cantando alto: xó-xó-xó-araúna,
para que o copeiro a ouvisse, sacudindo o lenço sobre a cabeça,
hirsuta e cheia de terra, do hortelão.

– Sapeca! murmurou a Benedita com desprezo.

A dança continuou requebrada e lenta, até que ouviram a voz
de Ernestina zangada por não encontrar ainda a mesa posta.

Calaram-se todos; caiu a casa no costumado e respeitoso silêncio.

A viúva voltara enfadada e nervosa; saíra à procura
de Luciano e não o tinha encontrado. Onde estaria? Por que o amava
assim?! Como podia um amor há tanto tempo extinto renascer com tamanha
veemência ? Arrependia-se
de ter saído; não queria pensar nele, nem amar ninguém.
Aquilo era uma loucura que havia de passar. Desejava somente vê-lo mais
uma vez, só uma vez… depois afastá-lo-ia da idéia.
Ela não se pertencia, era da filha; tudo que havia ali devia ser da
filha… tinha sido ganho pelo pai, com esforço, por amor dela…

Logo depois do jantar, Ernestina recolheu-se ao quarto, muito fatigada e
nervosa. Parecia-lhe um sonho aquilo! Principiava a considerar ignominioso
todo o tempo que vivera ao lado do marido, na pacatez burguesa e honesta do
seu lar. Lembrando-se dos beijos que o esposo lhe dera, esfregava com força
os lábios e as faces, como se os sentisse ainda e os quisesse arrancar
da pele. Chegou a lamentar o nascimento da filha, mas desse sentimento arrependeu-se
depressa; adorava Sara, e queria-a sempre bem pertinho de si, conquanto desse
razão a Luciano; afinal, o ciúme dele lisonjeava-a… Se Luciano
aborrecia Sara era porque a amava, a ela, e a pequena era a recordação
viva e inextinguível do pai…

Andou pelo quarto, febrilmente, até o anoitecer.

Volta e meia esbarrava com algum objeto que pertencera ao marido e desviava
o olhar, indignada de o ver ainda ali, na intimidade do seu quarto. Ernestina
encostou-se por fim à janela: a tarde morria rapidamente; toda a terra
lhe parecia escura, de uma tristeza singular: o mar, ao longe, como que um
deserto de cinza; as casas, túmulos dispersos; as árvores, sombras
negras e mudas!

Ernestina sentia as lágrimas queimarem-lhe as pálpebras, o
coração grosso pesando-lhe no peito, e uma raiva crescente de
tudo, de todos! Ficou por muito tempo olhando, até que as luzes de
gás bordaram toda a cidade de pontos luminosos. Num canto, um foco
de luz clara enluarava um grande círculo em um nimbo indistinto, e
a viúva, aconchegando os braços ao corpo friorento, olhava para
a luz, fixa, abstratamente.

Eram sete horas quando desceu ao jardim à procura da filha. Encontrou-a
trepada numa escada de mão, debruçada no muro, conversando para
o quintal vizinho, com a sua amiga Georgina.

Desta vez era Sara quem descrevia as suas impressões, narrando episódios
vulgares do passeio e relatando o número de pessoas conhecidas, com
que se tinha encontrado.

Ernestina zangou-se, desabafando contra a filha toda a sua cólera.

– Que é isso! Estás aqui com este frio?! Eu depois que te ature
se ficares doente! Vamos; para dentro, anda!

– Já vou, mamãe… adeus Gina!

– Então! Que modos são esses?

– Já estou descendo, mamãe!

– Vamos, vamos!

– Eu ainda hoje não tinha visto Gina…

– Nem há necessidade de se verem todos os dias! Estou farta de tolices!

A voz de Ernestina tornara-se brusca, imperativa.

Entraram ambas.

– Mamãezinha está zangada? perguntou Sara com doçura,
abraçando a mãe.

Ernestina arrependeu-se e, envergonhada da sua aspereza, beijou a filha,
dizendo-lhe com brandura:

– Vai tocar.

– Tocar?! E o luto?

O luto! O eterno luto? Era sempre a resposta! Passaram um serão melancólico.
Às 18 horas recolheram-se aos quartos.

Ernestina não pôde dormir; a cama fazia-lhe mal; atormentava-a
a idéia das noites que dormira ali, com o Simões.

Quinze dias depois Luciano fez-lhe a segunda visita. A viúva lamentou-se
da sua ausência e indagou dos lugares que ele mais freqüentava.

Ele, muito calculadamente, mostrava-se frio, disse ter estado fora, na fazenda
de um amigo, e a visita corre, às vezes silenciosa e sempre constrangida.

Quando Luciano saiu, Ernestina fechou-se no quarto, a chorar.

No dia seguinte, Sara, ao almoço, notou a falta da aliança
no dedo da mãe.

– Há já muitos dias que ando sem ela, objetou Ernestina, perdi-a.

Sara mandou imediatamente a Simplícia procurar o anel. A mulata encontrava
tudo, parecia ter o dom especial de adivinhar as coisas, o que fazia dizer
à Benedita:

– Simplícia acha tudo que se some porque é ela mesma que esconde
tudo que se pode sumir!

O anel não fora escondido por ela, entretanto achara-o rapidamente,
embaixo de um dunkerque da sala. Aquilo acabou de contrariar Ernestina. Alegou
que a aliança estava muito larga; o frio contraíra-lhe a carne…

Ela já não procurava lutar contra o seu amor; a resistência
tinha-a martirizado inutilmente.

Passava os dias a pensar nele, nuns idílios de menina de quinze anos.
Os criados já não sofriam a mesma fiscalização
severa. Os armários ficavam abertos, a chave da dispensa nas mãos
da Benedita, para regalo da Simplícia, que apreciava os seus copinhos
de licor de cacau…

Uma noite em que a saudade e o desejo de ver Luciano apertaram, foram ao
teatro.

Sara estava contentíssima, mas a mãe arrependeu-se depressa.
Levavam uma peça grosseira, que a platéia aplaudia muito. Luciano
não aparecia. A Simões não tirava os olhos das portas
da entrada, esperando sempre que ele viesse, atraído pelo seu amor.
Sentia febre e não prestava atenção ao que se passava
em cena. As gargalhadas e os aplausos atormentavam-na. À saída,
quando já nada esperava, teve uma surpresa: Luciano conversava num
grupo de rapazes, perto do teatro. Ele destacando-se da roda, foi cumprimentá-la.

– Vieram de carro, não? Perguntou, procurando em redor com a vista.

– Não… viemos de bonde…

– Sozinhas?! E mostrou espanto.

Ernestina ficou embaraçada.

– Que tem isso? objetou Sara, o luar está tão lindo que até
convida a irmos a pé até o ascensor!

– Sim… mas não é prudente arriscarem-se duas senhoras moças
a andar por estas horas na rua, sem um cavalheiro.

Luciano acompanhou-as; ia ao lado da viúva censurando-a pela mal escolha
do teatro e por virem ambas tão sós. Achou-a linda nessa noite.

Ela calava-se, sem confessar que todas aquelas loucuras as fazia por ele,
mesmo com prejuízo da filha! Passadas as ruas de maior movimento, ele
deu-lhe o braço e curvou-se meigo para ela.

– Lembra-se de uma noite de luar como esta, em que andamos de braço
pela chácara do tio Gustavo?

– Se me lembro!… Dias depois foi o senhor para a Europa…

– E um ano depois recebi a notícia do seu casamento…

A evocação do tempo passado tornou a envolvê-los na mesma
familiaridade da primeira visita. Sara andava na frente, cantarolando baixo
os couplets que ouvira; eles iam muito juntos, apertando-se as mãos
e falando de amor.

VI

No dia seguinte Luciano foi jantar a Santa Tereza; encontrou as duas senhoras
na saleta do piano; a viúva fazia um bordado de tapeçaria, a
filha renovava as flores de um jarrão.

Ele sentou-se entre ambas, votando toda a sua atenção para
a dona da casa, a quem ofereceu um pacote de marrons-glacés, enfeitado
de fitinhas azuis. A viúva desamarrou o embrulho com toda a delicadeza,
mostrando as unhas, que brilhvam como coral polido. Entretanto Sara, com o
pescoço esticado, ia dizendo:

– Eu gosto muito de doces… saí a papai! Como ele apreciava marrons-glacés!
Lembra-se, mamãe, aquela vez que fomos todos ao Jardim Botânico?
só nós dois acabamos com um pacote de marrons do tamanho desse?
Mamãe só dizia: "Sara! Que é isso?! Basta!"
e papai então, santo que ele era! respondia-lhe "Ora, meu amor
deixa a pequena! se ela come, é porque tem vontade!"

– Papai muitas vezes chamava mamãe assim: Meu amor!

Luciano mordeu o bigode, enquanto a viúva, muito corada, disfarçava,
perguntando-lhe se não achava de bom gosto o seu bordado.

E erguia a talagarça, já meio encoberta pelas sedas e as lãs.

Querendo desviar da memória da filha a lembrança do pai, ela
começou a falar com volubilidade em coisas diferentes, saltando de
assunto, como a escolher terreno.

Como por fim a conversa recaísse sobre coisas de arte, Luciano pediu-lhes
que marcassem um dia para irem ver o seu pequeno museu.

Ele trouxera da Europa algumas coisas valiosas e citava entre elas um busto
de garoto que figurara no Salon.

– Está dito! exclamou Sara alegremente, iremos amanhã!

– Amanhã; não… objetou Luciano quase sem olhar para a moça.
Tenho ainda alguns preparativos a fazer. Ainda não achei um tapete
a meu gosto para a biblioteca.

– Ah! O senhor tem uma biblioteca? tornou Sara.

E depois de uma pequena pausa:

– Aí está uma coisa que eu ainda não vi em casas particulares…
Se papai fosse vivo eu também teria uma biblioteca! Ele dizia sempre
que havia de me dar ma bonita educação. Não é
verdade, mamãe?

– É sim… é…

Luciano rufava com os dedos na mesa, sem ocultar o seu enfado.

– Ah! se o senhor conhecesse papai, havia de gostar muito dele!

Luciano sorriu; Sara continuou:

– Todos o estimavam! Só uma pessoa lhe tinha raiva… Inveja! Também
eu odeio-a!

Sem pronunciar o nome, compreenderam todos que aludia ao Rosas.

– Papai era tão meigo! Tão condescendente! Dava-me sempre um
beijo em cada face e outro na boca. E à mamãe também.

Luciano levantou-se e Ernestina, muito corada, disse, precipitando as palavras:

– Então, Sara! que termos são esses? Vai espairecer as saudades
de teu pai com a Gina, anda! É melhor isso do que estar constantemente
a relembrar coisas passadas!

Os olhos de Sara encheram-se de lágrimas; mas para que Luciano não
a visse chorar, saiu precipitadamente da sala.

Ernestina ficou silenciosa, com as mãos trêmulas, a vista pasmada
nas cores vistosas do bordado.

– Decididamente, eu não posso tolerar a presença desta menina!
exclamou Luciano num desabafo.

– Oh!…

– Sou brutal? Desculpe, mas sou sincero.

– Ela é uma criança… ignora que…

– Uma criança!

– Então?

– Mas diga-me: que significação tem aquilo de estar sempre,
mas sempre, referindo-se ao pai?!

– Amava-o muito.

– Embora, mas isso parece ou não parece proposital?

– Não!…

– Não?! As mães são cegas!

– Coitadinha, é tão inocente, a minha Sara…

– Não sei; mas confesso-lhe que só a sua vista me mortifica!

Ernestina levantou-se pálida e trêmula de indignação.

– Não lhe posso impor simpatia por minha filha, mas julgo estar no
direito de ordenar que a respeite… ou…

– Ou que me retire?

Ernestina calou-se, sufocando na garganta os soluços.

– Pois não vê, Ernestina, que se eu odeio a filha, é
porque adoro a mãe?! Perdoe as minhas palavras, são filhas do
ciúme violento, tenaz, que se apoderou de mim desde que vi Sara! Ela
é a continuação do pai, o beijo vivo, ardente, trocado
pelas vossas bocas! E é essa idéia que me martiriza e que me
perde!

– É uma… insensatez…

– Chame como quiser.

Nessa tarde Ernestina lembrou à filha que fosse passar parte da noite
em casa da Gina.

– Mamãe vai?

– Eu não.

A filha admirou-se; até então a mãe não a deixara
nunca sair só!

O luar inundava a terra coro a sua luz veludosa. Pelas portas de vidro, fechadas
ao frio, via-se lá embaixo a cidade, com umas luzes frouxas.

Sara tinha saído; Ernestina e Luciano, sentados junto a uma janela
da sala, conservaram-se por instantes silenciosos, pensando talvez nos primeiros
elas do seu amor, desabotoado e esquecido em plena mocidade.

– Dizem os psicólogos que duas criaturas que se amaram e que se esqueceram
mutuamente não se tornam a amar nunca mais!

– Bravo! Não a imaginava tão letrada!… mas fique certa de
que a psicologia é uma palavra tão enganadora como outra qualquer…
E depois, nós nunca nos esquecemos, não e assim?

– Eu por mim… – Ernestina não teve coragem de concluir A mentira
não lhe saiu da garganta. Luciano aproximou para bem perto da dela
a sua cadeira, tomou a mão da viúva e beijou-a demoradamente
na palma, nos dedos, nas unhas.

– Que mãos bonitas!… – Como eu adoro estas mãozinhas!…
Ernestina sorriu; ele continuou a falar amorosamente, e pediu-lhe que tirasse
o luto. Queria vê-la de branco, como uma noiva, e de cores claras e
cantantes.

– É preciso esperar…

– Dê-me esta prova de amor, tire o luto!…

– É cedo… tenho medo…

– Medo de quê? De que os outros reparem?!

– Medo de…

– De quem?!

– De minha filha…

– Oh!

Ernestina corou, arrependida de ter dito aquilo. Ficaram alguns segundos
calados e imóveis; de repente a moça, resvalando o olhar pelas
paredes, pareceu-lhe distinguir o corpo da Simplícia, mal oculto por
um reposteiro; levantou-se de chofre e atravessou a sala. Luciano seguia-lhe
os movimentos com estranheza.

– Que tem? Que é isso?!

Mas a viúva chamava para dentro, afastando rapidamente o reposteiro;
já não havia nem a sombra da mulata. O Augusto apareceu e ela
mandou iluminar a sala.

– Para quê? indagou Luciano, o luar está tão bonito…

Entretanto, Ernestina não cedeu e exigiu de Augusto que acendesse
todos os bicos do lustre e das arandelas…

Quando voltou para o lado de Luciano, encontrou-o com a fisionomia áspera
e pensativa. Ela falou lhe em casamento. Não queria prolongar aquela
situação. Logo que expirasse o prazo do luto, poderiam unir-se
para sempre.

Ele ouvia-a calado; depois de um curto espaço de silêncio, perguntou
se não haveria algum pretendente a mão de Sara…

– Não… por quê?!

– Seria melhor que ela casasse primeiro… viveríamos sós,
sem ouvir referências a outro que me viessem estragar a felicidade!…

– Separar-me de minha filha?!

– Não será a primeira mãe a quem isso aconteça!

– Nunca!

– Não falemos mais nisso, replicou Luciano com tristeza.

– Conservaram-se por algum tempo afastados, mas as mãos uniram-se
outra vez, os olhos procuraram-se e ele beijou-a na fronte, na face, na boca.

Ernestina, meio oculta pela cortina de renda preta, deixava-se abraçar
amolecida, tonta, sem forças para resistir; o busto vergado para Luciano,
os braços pendentes, o corpo trêmulo.

Nas paredes cinzentas da sala, os arabescos de ouro cintilavam, como se os
milhares de gafanhotos que estampavam no papel suas asas agudas e as suas
pernas finíssimas, se embaralhassem numa dança endiabrada!

O gás a toda força chamejava no cristal do espelho, amornando
a atmosfera e fazendo uma bulha de sopro surdo, como riso abafado!

Toda a energia da viúva tinha fugido. A luz? Que lhe importava a luz?!
Ela não via, não pensava, resvalava sem pena nem cuidado, sentindo-se
feliz, mais nada!

Subitamente ouviram a voz de Sara, que se aproximava de casa, cantando alto.

– Vá-se embora, Luciano!

– Mais um momento…

– Minha filha aí vem!…

– Está ainda em casa da Gina… a voz vem de lá…

– Não, vem do jardim…

– Mais um beijo… Afirmo-lhe que ela está em casa da Gina!

– E que esteja… é tarde.

– É cedo…

Ele quis abraçá-la; ela resistiu: reassumira toda a sua energia.

Luciano saiu, cruzando-se com Sara já perto do terraço. A moça
sorriu-se interrompendo o canto, deu-lhe as boas-noites; ele resmungou umas
palavras incompreensíveis e mal tocou o chapéu.

– Então não me diz adeus?! perguntou Sara atônita, voltando-se
para trás, para o vulto de Luciano, que fugia na sombra.

Ele não respondeu.

– Bruto! murmurou a moça ofendida. Por que não falaria comigo?!
Ora por qualquer coisa! Que me importa!

Ernestina tinha ficado só. A filha calara-se; a casa parecia adormecida.
Batia-lhe o coração e o sangue abrasava-lhe as faces. Precisava
de ar; abriu a janela e encostou-se; respirou com força, sentindo-se
feliz por ter vencido. Ser amante de Luciano? Nunca. Esposa, sim. À
proporção que os seus sentidos se acalmavam, ela pensava na
implacável exigência de Luciano, de a separar da filha…

Encostada ao umbral, deixou que a sua alma fraca de mulher interrogasse as
coisas mudas! Que lhe destinaria o futuro? Nada lhe respondia. Foi em vão
que meditou, cravando o olhar interrogativo na grande esfinge que desenhava
além, na noite enluarada, o seu enorme corpo vigilante e altivo!

Voltou para dentro muito nervosa e agitada. Ao atravessar a sala, teve medo.

Da sua grande tela sombria, o marido parecia acompanhá-la com a vista.

Ernestina sentiu vergarem-se-lhe os joelhos e tateou com mão trêmula
o fecho da porta por onde saiu.

Nessa noite não pôde conciliar o sono. No quarto tudo lhe falava
do marido.

A cama parecia-lhe guardar o calor do seu corpo; os lençóis
o as fronhas eram marcados com o seu nome, e o cabide em que ele costumava
pendurar a roupa estendia para ela os braços nus…

Ernestina revolvia-se no leito, sem descanso. Sem perceber como, com a convivência
adquirira certos hábitos do esposo; procurava agora um meio de os corrigir.
Só agora notava que era como o dele o jeito porque cerrava o cortinado,
sempre de um lado só; que fora com ele que se viciara em não
adormecer sem tomar uns goles de água açucarada, e que até
os seus gestos, as suas palavras e o seu modo de pensar refletiam particularidades
dele.

Sem poder dormir e muito impressionada, passou ao quarto da filha. Sara dormia
profundamente, respirando alto, com os braços sumidos embaixo da roupa
e a sua cabeça redonda e grande enterrada no travesseiro.

Ernestina, a tremer de frio, deitou-se aos pés da cama, muito devagarinho,
encolhendo-se para diminuir de volume.

Adormeceu e acordou várias vezes, mas o seu sono era leve, como que
assustado.

Ao amanhecer, levantou-se antes que Sara a surpreendesse e saiu. Tornou para
o seu quarto, estendeu-se num divã, muito cansada, com o corpo cheio
de dores, a cabeça fraca, e pôs-se a cismar em futilidades: concertos
de jóias, vestidos a fazer, e visitas…

Nesse dia aliviou o luto.

Sara mostrou-se admirada e ofendida.

– Ainda não há um ano e mamã já usa branco?!

– O luto é uma tolice… creio que já dei uma satisfação
à sociedade…

– De rigor é um ano.

– Não é na roupa que está o sentimento, é no
coração.

– Eu sei… mas… gostava que mamã fizesse como as outras…

– As outras! Quem te ouvir falar assim há de pensar que não
lamentei a morte de teu pai?

– Não, minha mamãzinha. Deus me livre! Eu bem sei que mamã
tem muitas saudades… pudera! se não fosse assim, a senhora seria
ingrata!

Ernestina corou, mas Sara, muito ingênua, não deu por tal.

Principiou então uma vida toda diferente.

Era a lufa-lufa dos vestidos novos, sedas caras, luxo sem método.
Assinatura no Lírico, concertos, dias inteiros fora de casa, em passeios
onde se encontrasse Luciano. Ele vinha sempre muito atencioso, numa amabilidade
discreta e delicada, conversar com Ernestina, que tinha assim a sua recompensa.
Sara recebia com prazer e sem observação essas coisas, que a
mãe explicava assim aos amigos:

– Sara tem dezoito anos… está no tempo de gozar, não lhe
faltarão desgostos no futuro!

O seu amor por Luciano crescia como uma febre. Não pensava, não
via outra coisa. Era sempre ele a povoar-lhe o espírito de sonhos.
Nos bailes, como não dançava ainda, incitava-o a dançar
com a filha, e no outro dia, indagava dela o que lhe tinham dito os pares,
fazendo-a repetir as palavras de Luciano.

Sara ia contando, sem reparo, e confessava que fora ele o mais espirituoso
entre todos os pares com quem tinha conversado.

Ernestina, lisonjeada, beijava a filha, muito alegre.

Todas as pessoas que elogiassem Luciano tornavam-se logo para ela muito simpáticas.
Sabendo que o Rosas, velho e encarniçado inimigo do seu defunto marido,
era o melhor e mais íntimo amigo de Luciano Dias, entrou a consagrar-lhe
tal amizade que o convidou repetidas vezes, com insistência, para ir
a sua casa. E isso aconteceu.

O Rosas cedeu à vontade da viúva e do amigo, procurando mesmo
intervir para que se realizasse o casamento. Um dia Ernestina conversava com
ele muito satisfeita na sua sala, esperando ouvi-lo falar de Luciano, quando
Sara, ainda desprevenida, abriu a porta e entrou.

A moça estacou no umbral, fixando atenta e admirada os olhos na visita.
O seu rosto, habitualmente rosado, tornou-se lívido; os abas tremeram-lhe,
não encontrando palavras para a indignação que lhe fervia
no peito.

A mãe, embaraçadíssima, ergueu-se e foi ter com ela,
automaticamente, sem atinar com o que dissesse; mas Sara repeliu-a com um
gesto.

Ernestina compreendeu então, num relance, a sua imprudência
e empurrando a filha para fora, fechou com raiva o reposteiro.

Sara saiu para o jardim, tonta e trêmula. Não via nada; andava
de um lado para outro como um pássaro ferido a lutar com a morte. A
pouco e pouco a dor ia se abrindo, mostrando-se toda, como uma flor ao sol.
A moça esmagava com os pés, maldosamente, os miosótis
rasteiros de florinhas azuis como olhos de anjos e as folhas tenras da malva-maçã
cheirosa. Rangiam sob as suas botinas a grama fresca, as hastes dos junquilhos,
os amores-perfeitos de cores veludosas, os botões de ouro, as violetas,
os cravos, as anêmonas e as flores lácteas do nardo.

Destruir, arrasar tudo, era a sua vontade.

O Rosas, o grande inimigo de seu pai, ali, dentro daquela casa, em doce tête-a-tête
com sua mãe! O comendador Simões não o pudera ver nunca
sem desgosto e sem raiva, e o vil aproveitava-se agora que ele já não
vivia, para ir recostar-se nos seus estofos e pisar as suas alcatifas!

Sara sentia-se forte; tinha ímpetos de esperar ali o Rosas e de lhe
bater na cara com as suas mãos nervosas. Desesperada, fustigava as
plantas, em movimentos furiosos. Voavam dispersas as flores aromáticas
do belo manacá, o heliotropo lânguido pendia para o chão.
Um dilúvio de flores inundava os gramados. Choviam pétalas de
rosas e de hibiscos, de dálias, lírios, margaridas, jasmins,
cidrilha, jurujubas, murta, petúnias, fúcsias, resedá,
esponjas, ixora e açucenas. Flores de arbustos, flores de trepadeiras,
flores tuberosas ou flores de orquídeas, obedeciam todas à vontade
de Sara, que as derrubava, subindo e descendo as ruas do jardim e do pomar,
repetindo baixinho: Papai… papai!… como a pedir-lhe socorro, por sentir
iminente um perigo.

O dia estava formoso, de um azul violeta muito intenso, onde a luz dourada
do sol rolava em ondas largas. As romãzeiras enfeitavam-se com as suas
flores de um escarlate régio; pendiam das jaqueiras, como úberes
enormes, grandes jacas maduras; e a parreira abria numa cruz, cor da esperança,
os seus braços cobertos de folhas largas e macias. Sara corria no meio
de tudo aquilo, nervosa, resfolegante como um animal de raça, mostrando
as pernas finas, galgando os degraus dos socalcos, esmagando com as solas
as flores claras dos morangueiros, abrindo para todas as coisas os seus olhos
muito brilhantes e movendo os lábios secos na repetida suplica da sua
alma: "Papai… papai…" Mas o pai não lhe respondia e ela,
de vez em quando, desesperada, arrancava com repelões as frutas que
a mão alcançava e atirava-as ao chão, bruta, violentamente,
só pelo delírio de estragar.

As laranjas, de um verde que a maturação começava a
tingir, rolavam de socalco em socalco. Grupos de jambos brancos, caíam,
separando as suas campânulas de cristal rosado de mistura com araçás
ainda verdes e pitangas cor de rubi. Um tapete de frutas ia-se alastrando
pelo pomar, e Sara pisava, esmigalhava, mordia, rangendo os dentes nas frutas
acres, ainda verdes, ou sacudia as árvores, abraçando-se aos
troncos cetinosos dos pés de cambucá, ou aos galhos ásperos
das goiabeiras.

Tudo a mortificava, a exacerbava. Revivia a lembrança do pai, o ódio
antigo, entranhado, feroz, por ele consagrado ao Rosas, a surpresa de o ter
sentado perto da mãe e ao mesmo tempo a vergonha, a dor ter sido repelida!

O sol parecia queimá-la, abrasando-lhe a cabeça nua, refulgindo
no seu formoso cabelo cor de ouro, solto pelas costas, numa trança
lassa. Ela ia, ora batida de sombra, ora toda vestida de sol, sem saber para
onde, parando aqui, ali, voltando para trás, desfolhando sem piedade
as grandes flores roxas do maracujá ou as flores perfumosas dos limoeiros,
batendo com os pés nos cajás soltos, nas carambolas e nas ameixas
de Madagascar, espalhadas no chão. O seu desejo era que aquele bom
sol, enorme e fecundante, incendiasse num momento todas aquelas limeiras e
cidreiras, os pés de sapoti, de pinhas, de genipapo a dos abius, as
figueiras, as ameixeiras, o laranjal, os bambus, as jabuticabeiras, os pés
da grumixama e de abricó, todas as velhas árvores amadas e o
roseiral, e a casa, e ela e tudo!

De repente estacou; os joelhos vergaram-se-lhe – e rebentou em soluços.
Em frente dela erguia-se o vulto enorme e sombrio de uma mangueira que tinha
sido sempre ali a árvore predileta do pai.

Sara deixou cair na terra dura o seu corpo branco e cansado. A mangueira
era no alto, no extremo da chácara; estendia para todos os lados os
seus poderosos braços tranqüilos, de onde pendia a erva – barba
de velho, caindo em fios longos, que lhe davam um aspecto de vetusta e doce
austeridade.

Sara quedou-se imóvel, sobre as raízes da mangueira, que se
salientavam na terra escura, como uma vigorosa ramificação de
nervos. Lá embaixo, ao longe, a cidade atirava ao ar rolos de fumaça,
e como que a evaporação do suor do trabalho, que parecia subir
em camadas contínuas, densas, distintas na atmosfera. No mar, que a
muita luz empalidecia, distinguiam-se os cascos negros dos navios mercantes
e as chaminés bojudas dos paquetes. A febre dos dias de semana rumorejava
num delírio rouco, cortado de vez em quando por um ou outro silvo agudíssimo,
das máquinas de alguma fabrica…

O Rio de Janeiro arfava. De todos os telhados parecia elevar-se, ignota e
grande, a dor da luta pela vida.

A felicidade, o luxo, a miséria, o dinheiro, o gozo, a raiva, o esplendor,
a fé, a mentira, a paz e a desordem, tudo ela via dali, na suprema
glorificação da luz de ouro que tombava a jorros do céu
violáceo.

O teatro, o hospício, as igrejas, as fábricas, os cães,
os jardins, os palácios, os casebres, o mar, o arvoredo, o cemitério,
tudo se unia e se confundia na fogueira do sol, na vida da grande e poderosa
cidade.

Sara chorava baixinho.

Aquela mangueira muda, serena, com a sua velha casca rugosa, as suas nodosidades
cobertas de cambaxilras, as suas folhas sombrias e abertas; e as suas parasitas,
quebrava-lhe a excitação raivosa numa onda de ternura. Era ali
que o comendador Simões gostava de sentar-se, nas tardes de domingo,
recomendando sempre ao hortelão que não lhe bulisse nessa árvore;
que a deixasse livre de enxertos e de podas; queria-a assim: agreste, inculta
e sossegada.

Sara recordava isso, olhando para as toalhas ondeadas de verdura que se iam
desenrolando pelo pomar até lá em baixo, à casa, de que
só distinguia o telhado. Os tamarindeiros, salpicados com florinhas
amarelas, e os pessegueiros, de um verde cinzento; mais as figueiras, as ameixeiras,
os cajueiros, as árvores de abricó, das carambolas, da fruta
do conde, do abacate, as amendoeiras enormes e as bananeiras airosas, confundiam-se,
unindo as ramas, variando os matizes do verde mais claro até o verde
mais negro, com manchas: aqui louras, ali esbranquiçadas, ou róseas,
ou cor de ferrugem. A meio do pomar, à direita, destacavam-se entre
todas pela forma bizarramente recortada das suas folhas elegantíssimas,
a árvore da fruta-pão, e lá embaixo, sobre o telhado
vermelho do chalet, ela via a última estrela, pequenina e escura, da
grande araucária do jardim.

Sara continuava chorando, enraivecida contra a mãe. Por que consentira
ela em receber o Rosas?! Por que mudava de dia para dia o seu caráter?
Porque se ocupava agora tanto consigo, passando horas no seu quarto, sozinha,
fugindo da companhia dos outros e aparecendo depois toda cheirosa, fresca
como a flor apenas desabrochada? Que mistério seria esse que ia afastando
dela, evidentemente, todo o carinhoso e doce amor de Ernestina? Que falta
teria ela cometido? Por que se adivinhava tão só?

Sem achar explicação para os seus tristes pressentimentos,
Sara escondeu o rosto, a invocar a memória do pai.

Estava assim, quando ouviu passos perto. Era a mãe que a procurava,
entre zangada e aflita.

– Sara!? Que loucura é essa?

– Mamãe…

– Levanta-te!

A moça ergueu-se, comovida pelo tom severo da viúva.

Ernestina continuou áspera e decisivamente:

– É preciso compreender bem isto: exijo que sejas cortês para
toda a pessoa; seja ela quem for, que eu quiser receber em minha casa!

– Mamãe, eu…

– Se não deseja sujeitar-se à minha vontade, case-se!

– Ah!…

– Que vergonha!

– Mas mamãe! Aquele homem?

– Com aquele ou com qualquer outro tens de ser delicada.

– Não! Isso não! Aquele é um infame; foi o maior inimigo
de meu pai eu não o esqueço! e se ela voltar cá eu bato-lhe
na cara, bato-lhe!

– Cala-te! Quem manda aqui sou eu! Se o recebi, é porque entendi que
o devia fazer!

– Oh! Mamãe!

– Vamos! E Ernestina com o olhar seco apontou o caminho de casa.

Sara seguiu silenciosa, trêmula, ainda embaixo da raiva e do despeito
que tão intensamente tinham vibrado nela. Pisava com força,
fitando a sombra da mãe, que se projetava muito esguia a seu lado.

À porta da sala de jantar encontraram o jardineiro, que subira da
cidade com um garrafão de vinho ao ombro.

Ele quis dizer qualquer coisa; a viúva fez-lhe um gesto, que se calasse.
Durante o jantar a mãe e a filha não se falaram. Sara não
comia, sentia um novelo na garganta e receava chorar ali mesmo, diante dos
criados. À noite entrou cedo para o quarto, deixando a mãe sozinha
no terraço.

Ernestina não sofria menos. A indignação da filha exasperara-a,
mas a sua submissão depois tinha-a comovido. Afinal reconhecia razão
na moça e chegava a envergonhar-se do seu procedimento. O Rosas tinha
sido um inimigo acérrimo do marido. A questão entre ambos tomara
um rumo tão perigoso, que fora preciso intervenção de
terceiro. O Nunes, como amigo mais íntimo do comendador, tinha-se posto
de permeio e evitado um desenlace terrível à negregada questão.
Por muito tempo o nome do Rosas tinha sido envolto no mais asqueroso desprezo
e Sara, que adorava o pai, e compartilhava do seu temperamento, começou
a ter pelo Rosas a mesma raiva, talvez ainda mais violenta que a dele. Depois
da morte do Simões, esse sentimento de rancor havia-se acentuado. A
lembrança do pai enchia-a de caridade para todos, menos para os que
em vida o tivessem insultado ou feito sofrer!

Por isso a viúva Simões entrava a ter remorsos e a preocupar-se
muito com a opinião de Sara. Que diria ela quando soubesse de tudo?

Pensava nisso quando sentiu ranger o portão de ferro do jardim; voltando
o rosto percebeu, através da meia escuridade da noite, o vulto de Luciano
Dias, em que se destacava num fato escuro uma nesga de colete branco.

Ernestina levantou-se e disse-lhe, mal o viu aproximar-se:

– Sei porque vem. O seu amigo Rosas contou-lhe tudo!

– É verdade: e já que abordou a questão tão abruptamente,
deixe-me dizer-lhe que venho indignado!…

– Não sei porque!…

– Não sabe porque!?

– A culpada fui eu… Sara não tinha sido prevenida, e…

– Não a desculpe, pelo amor de Deus!

– O Rosas não devia ter vindo… eu estava louca quando o convidei!…

– Veio porque eu lhe pedi também que viesse. É tempo de se
acabar com inimizades insensatas. Ele é um bom homem.

– Será, mas…

– Mas?

– Sara teve razão.

– Não diga isso! Uma menina de educação não faz
o que ela fez. Foi insolente!

Ernestina levantou-se, muito ofendida; mas Luciano não lhe deu tempo
de falar; continuava, muito nervoso:

– O Rosas descreveu-me bem nitidamente a cena… saiu envergonhadíssimo
e furioso! Quando eu digo que precisamos arranjar um casamento para sua filha!

Ernestina mastigou, colérica:

– Um casamento…

– Sim é indispensável para a nossa felicidade. Isto assim não
pode continuar, bem vê…

– Pode. Eu não quero que minha filha se case. É minha, amo-a;
acabou-se! Pensando friamente, Sara fez bem. O Rosas foi um inimigo acérrimo
do pai; não devia ter vindo.

– Perfeitamente; mas o pai está morto, o Rosas esqueceu ofensas, veio
exatamente para uma reconciliação e não e a ela, menina
sentimental e mal educada, a quem compete receber ou despedir este ou aquele
indivíduo que entre em casa de sua mãe…

– Luciano!

– Não senhora! Sara foi brutal. Além de tudo, o Rosas é
um velho e ela abusou da sua posição de senhora…

– Basta! Isso desgosta-me.

– E a mim ainda mais. Imagine: caso-me. Bem. E então? hei de deixar
de receber o meu melhor amigo, em minha casa, só por um capricho piegas
da menina.? Precisamos meditar bem em tudo! O que passou, passou!

– O Rosas era inimigo do pai? Que tenho eu com isso? É meu amigo,
e portanto da minha família!

– Lembre-se de que nós ainda não somos a sua família…
Amamo-nos, queremos casar, e desde que isso suceda, as vontades dela ficarão
em segundo plano, terá de submeter-se à nossa. O que determinarmos
é o que se há de fazer. É melhor explicar-lhe isso já.

– Falar-lhe no casamento? É cedo deixemos passar o ano de luto…
respondeu Luciano…

– Do luto? Mas onde está ele?

– Nela…

– É verdade que Sara persiste em andar de luto…

– A sua tolerância, Ernestina, é que a tem perdido! Sua filha
é autoritária e caprichosa. Decida-se a fazer o que lhe tenho
dito: e aconselhe-a de longe…

– Ela vai sofrer muito!… Não…

– Embora; tudo redundará em seu proveito.

– Não sei por que aborrece assim a minha pobre filha: se convivesse
com ela, havia de adorá-la! É um anjo.

– O que vejo é que tem medo de magoá-la com uma simples palavra,
e entretanto a mim não poupa desgostos…

– Eu?!

– Sim.

– Meu Deus! Mas como!

– Referindo-se constantemente ao seu finado marido, não reprimindo
o modo desabrido da senhora sua filha, conservando na sala, bem em frente
ao seu, o retrato do Simões como senhor legítimo de sua casa
e ao seu coração… Por que não retira dali aquele quadro?
Não calcula o ciúme, o ódio que lhe tenho e o mal que
ele me faz!

– Desculpo as suas palavras, porque elas são filhas do ciúme.

Ernestina estava surpreendida e desgostosa com Luciano. A cólera tornava-o
grosseiro, áspero. O seu gênio rompia todos os preceitos da educação
e do cavalheirismo para se mostrar rude e indomável.

Sara foi todo o assunto da noite. A mãe defendia-a, punha-a acima
de tudo e de todos, como se fosse um símbolo da perfeição
na terra. Fazia isso exatamente por vê-la acusada. O seu amor maternal
reagia contra todas as censuras num grande exagero.

Luciano saiu cedo, impressionado e nervoso.

A verdade era que os olhos de Ernestina inquietavam-no mais do que ele desejava.

Como dissera ao Rosas, furtava-se ao casamento, procurando no amor da viúva
uma dessas páginas de paixão, freqüentes na vida dos homens.
Ernestina, porém, sabia defender-se, era muito mais forte do que ele
poderia supor, os planos de amor fácil iam-se desmoronando e ele revolvia-se
desesperado entre o desejo de possuir a mulher e a má vontade de a
chamar – esposa!

Não era positivamente como marido que ele queria beijar a boca pequena
e rubra da viúva Simões! O corpo esbelto e ondeante da moça,
o negro azulado do seu cabelo farto, a doçura dos seus olhos rasgados
e úmidos o moreno quente da sua pele rosada, acendiam-lhe no coração,
não o amor puro e casto que o homem deve dedicar a companheira eterna,
mas o fogo sensual de uma paixão violenta e transitória. Ele
amava-a, amava-a, sim; tinha ciúmes do passado, era sincero na sua
cólera, odiava o Simões e a filha do Simões, porém
à sua imaginação o vulto de Ernestina aparecia, teimosamente,
engrinaldado de pâmpanos e de taça em punho, como uma bachante!

VII

Corria o mês de agosto, muito morno e ameno. No meio da bateria da
cozinha a Benedita ouvia o palavreado da Simplícia, que rodopiava pela
casa, trazendo novidades e inventando coisas. O Augusto olhava com altivez
e desdém para aquela raça de mulheres, enquanto o hortelão
se babava todo, ouvindo as tagarelices e a discussão das duas. Simplícia
tinha o bolso sempre cheio de dinheiro, moedinhas de prata e níqueis
subtraídos à gaveta da ama. Detestava o cobre. Fazia-se fina,
com lacinhos de fita na gola do casaco branco e saias bem talhadas. A outra
era fiel e ameaçava às vezes de ir direito à ama denunciar
a mulata.

Simplícia levantava os ombros. Que lhe importava? Que fosse!

Como se aproximasse o dia de Nossa Senhora da Glória, ela afirmava
que iria à festa de braço com seu Augusto, como-se fossem marido
e mulher…

Os outros riam-se, vendo a indiferença e um certo ar de nojo do copeiro
pela pequena.

Na véspera do dia da Glória a Simplícia foi direto à
viúva pedir-lhe licença para a saída. Ernestina negou-lha;
mandara retirar da sala, precipitadamente, o retrato do comendador. Simplícia
sorria sem ressentimento, vendo o Augusto e o João descerem a tela
da parede. Aproveitava uma ocasião em que Sara conversava com Georgina,
no jardim vizinho. Mal o hortelão saíra de casa com o quadro,
já a Simplícia rondava o portão, à espera de Sara.
Quando a moça entrou, a mulata disse-lhe:

– Nhá Sara, a senhora sabe para onde é que Iaiá mandou
o retrato de Sinhô?

– Hein?!

– Seu João levou ele… Coitado de quem morre!

Aquela piedade da negrinha pelo morto fez estremecer a moça com um
movimento de amargurada indignação. Subiu correndo até
a casa e abriu com estrondo a porta da sala.

Ernestina voltou-se, inquieta. A filha olhara atônita e demoradamente
para a parede vazia, onde se destacava numa mancha clara o bocado do papel
até aí resguardado pela tela.

– Por que tirou dali o retrato de papai?! perguntou Sara à mãe,
com a voz alterada e o rosto pálido.

Ernestina corou: disse de um modo confuso que o retrato precisava de reparo…
que o teria mandado ao pintor que o fizera; e inventou um desastre em que
um desajeitamento do Augusto figurava como único responsável.

Tinha mentido e desviava a vista dos olhos claros da filha.

Cedera ao desejo de Luciano. O retrato do comendador tinha ido para S. Cristóvão,
para a casa de uma mulher pobre, a Josefa, que a tinha criado e a quem ela
protegia com uma pequena mesada.

Até então não se servira dessa criatura, que entretanto
lhe aparecia agora como um recurso para segredos e aflições.

Sara retirou-se desconfiada e tristonha; ocorreu então a Ernestina
ir à casa da ama e fazer voltar o retrato. Veio um clarão de
bom raciocínio iluminar-lhe o espírito. Afinal, ela andava a
fazer um papel de culpada; temia a filha como se o seu amor por Luciano fosse
coisa ilegítima ou criminosa.

O que tinha a fazer era chamar Sara e dizer-lhe muito simplesmente: Luciano
e eu amamo-nos e casar-nos-emos em breve…

Entretanto vinham-lhe à mente os conselhos e pedidos do noivo, rogando
que conservasse o seu amor em mistério! E por sua vez formulava um
– por quê? A que não podia dar solução!

A viúva Simões saiu sem se despedir da filha, desceu rapidamente
o jardim, compondo sobre o rosto o veuzinho preto e sacudindo com as pontas
dos dedos o plastron do vestido. Chegou afadigada à casa da ama.

A pobre mulher recebeu-a de braços abertos, como de costume.

– Uê gente! Como Iaiá veio vermelha! foi a sua primeira exclamação;
e logo depois foi-a levando para o sofá, tirou-lhe o chapéu,
disse-lhe que descansasse para ir depois fazer lunch, e apontou para o doce
de coco em duas compoteiras na mesa.

Ernestina deixava-a falar; estava ainda ofegante, meditando no que devia
fazer. De repente:

– Diga, Josefa recebeu o retrato de meu marido, não recebeu?

– Pois então não havéra de recebê? Está
no quarto do oratório, mas há de se pendurá aqui, em
cima do sofá! Como aquele, é que não há outro
homem! Santo mesmo! Não se case mais, Iaiá, que outro assim
não acha!

– Cale-se… você nem sabe o que está dizendo!…

– Como não sei? Agora me diga porque foi que me deu o retrato dele?
Mandou copiar outro novo lá pra sala?!

Ernestina não pôde deixar de sorrir àquela ingenuidade
e, atraindo a velha para seu lado, contou-lhe tudo.

A Josefa era uma velhota acaboclada, baixa e ossuda, de ombros largos e direitos,
queixo quadrado e mãos grandes. Gozara a preferência entre os
antigos escravos dos pais de Ernestina por ser de uma limpeza e fidelidade
sem exemplo. Toda a sua roupa andava recendendo às raízes do
capim cheiroso e ela era o braço direito da casa. Quando a senhora
morreu, Ernestina tinha só dois anos. A Josefa ficou encarregada de
olhar por tudo: dirigia o serviço das outras, tratava da menina com
esmero, trazendo-a sempre asseada e contente. Alforriada, não abandonou
a casa. Era teimosa, de humor desigual, mas firme e amorável como um
cão.

Tinha reminiscências muito claras de Luciano Dias. Embirrara sempre
com ele. Farejara-lhe maus sentimentos. Tinha-lhe feito um mal terrível:
apreendido cartas, rasgado fotografias, feito desaparecer muitos raminhos
de flores por ele dirigidos à moça. Agora o que a
comovia era a saudade de Sara. Já não tinha ascendente na família,
nem a idade lhe consentia a mesma força de gênio. Estava quebrantada,
mole; apoiou-se por isso todas as idéias de Ernestina sem contestar
nem aconselhar cosa alguma; dependia dela e temia ir de encontro aos seus
desejos.

Recebeu calada as confidências, ficando por fim assente que no dia
seguinte voltaria para Santa Tereza o retrato do comendador. Ernestina saiu
risonha; aquele desabafo fizera-lhe bem. Percebia ter na Josefa um arrimo
seguro. Se por um lado a velha não a consolava, não sabendo
aconselhá-la, por outro dizia a tudo amém e favorecia-lhe assim
todos os seus projetos. Em caminho para casa, Ernestina forjava uma mentira,
preparando-se para sustentar o olhar claro e interrogativo da filha.

VIII

A Simplícia aproveitava a ausência de Ernestina, enchendo-se
de goiabada, queijo do Reino e cálices de licor, muito bem repimpada
numa cadeira da sala de jantar. Sara conversava com a amiga na casa vizinha,
Augusto fora à cidade, a Ana estava no tanque às voltas com
a roupa e a Benedita cochichava com o hortelão lá para os fundos
da casa; podia estar tranqüila.

A Simplícia arremedava a senhora na maneira de estar à mesa,
movia com delicadeza o cálice e dava dentadinhas pequenas no doce,
sorrindo sua finura, a remoer idéias.

A tola Iaiá estava-lhe nas unhas. Conhecera-lhe o seu amor por Luciano
desde o primeiro dia… não que ela não tinha só habilidade
para encontrar as coisas que as outras perdiam, nem para subtrair das gavetas
moedinhas e fitas… Ria-se da cegueira de Sara… ainda havia de ser ela
quem lhe abrisse os olhos!…

Os cálices de licor sucederam-se até cair do frasco a última
gota. Que estupidez! Ela ainda tinha tanta goiabada no prato… lembrou-se
do cognac. Foi ao armário, mas deu-lhe uma tontura; o chão fugia-lhe
embaixo dos pés, o guarda pratos inclinava-se, a mesa recuava, as cadeiras
tomavam atitudes de dança e as aves mortas dos quadros das paredes
agitavam-se todas, sacudindo as penas.

– Uê! exclamou a mulatinha, esfregando os olhos; e demorou-se, percebendo
a verdade, com tato bastante para esconder a garrafa e levá-la para
o quarto… Beberia à noite, na cama. Não lhe convinha embebedar-se
de dia; e foi pedir à Benedita uma xícara de café. Estava
com uma enxaqueca!

Quando Ernestina entrou, a Simplícia correu a tirar-lhe o chapéu
e guardar as luvas. Ernestina deu-lhas maquinalmente.

– Então, Iaiá, me deixa ir na festa?

– Não.

– Por quê?… Seu Luciano não quer?

Ernestina deu um salto, assustada; sem atinar com o que dissesse, repetiu:

– Seu Luciano!

– Sim, senhora… pois então ele não está para casar
com a senhora?

– Estás doida! Cala-te; repreendeu a viúva, mas a Simplícia
ajuntou com ar malicioso:

– Iaiá não se zangue não… mas eu vi outro dia seu
Luciano dar um beijo na senhora… lá na sala… perto da janela…
Eu não conto nada a nhá Sara… mas a senhora há de me
deixá i na festa…

Ernestina estava vencida; entretanto levantou-se, colérica, erguendo
a mão para bater na negrinha. Àquela ameaça Simplícia
saltou:

– Iaiá, já não sou sua escrava! Se a senhora não
me fizé as vontades eu juro em como vou direitinha dizê tudo
a nhá Sara: que seu Luciano tem raiva dela, e que dá beijinhos
na senhora!…

O licor fazia-a ir muito mais longe do que premeditara; a cabeça girava-lhe
ainda um pouco e ela não podia conter a língua. Via o seu erro,
mas já não o sabia emendar; declarara tudo; tinha um plano antigo:
ir confidenciando aos caixeiros das vendas o segredo da ama… e ser a primeira
a declará-lo a Sara, se Ernestina não lhe desse consentimento
para ir à festa, e ainda mais dinheiro e mais ainda a ordem para que
a acompanhasse o Augusto!

A viúva estava aterrada, com medo de levantar um escarcéu despedindo
a rapariga e sem vontade de lhe fazer o gosto. Mas a mulata venceu; e ainda
Ernestina lhe pôs nas orelhas uns brincos de coral e nas mãos
uma nota de dez mil réis.

– Vai…

Ernestina chorou de raiva. Por ela, chamaria imediatamente Sara, e diria
toda a verdade; mas Luciano opunha-se a isso tenazmente e ela mesmo esperava
fazê-lo quando o visse mais propenso a estimar a filha. O seu terror
agora era que Sara viesse a saber de tudo pela boca asquerosa da mulata.

Resolveu mandá-la passar um tempo em Friburgo, com a tia Mariana,
viúva de Gustavo Ferreira. Naqueles dias ao menos estaria livre de
qualquer intriga ou revelação desagradável. Escreveu
a Luciano largamente. Pedia que decidisse o casamento. A convivência
fá-lo-ia depois amar a enteada. A seu ver, Luciano não esperava
outra coisa senão vencer a antipatia pela pequena…

No dia seguinte a Simplícia, toda vestida de branco, com fitinhas
verdes, descia o jardim ao lado do Augusto, muito sério e bem arranjado.

A Benedita acompanhava-os com a vista, e quando eles, embaixo, abriram o
portão, ela disse alto, em cima sacudindo no ar a mão engordurada:

– Sapeca do diabo! Que boa sova!

IX

Em um dos primeiros dias de setembro, Ernestina partiu para Friburgo, com
a filha e a Georgina Tavares. Durante a viagem elas mal se falavam, abrindo
muito os olhos para as paisagens soberanamente belas do caminho.

A tia Mariana já as esperava, palestrando na gare com um empregado
da estação. Era uma velha alta e seca, fiel ao uso da crinolina,
com uns bandôs grisalhos que lhe tapavam as orelhas, e umas sobrancelhas
espessas, que em vão pretendiam dar ferocidade ao seu aspecto tranqüilo.
Passava por milionária e avarenta; mas em verdade a pobre senhora só
tinha com que viver regularmente e bem alimentar a criação dos
seus ricos bichinhos de seda, gozo único dos seus dias insípidos.

Morava num casarão baixo, antigo, com janelas de peitoril para o largo
e grande quintal plantado de amoreiras, de onde se via ao longe, a cascata
do Neves, desenrolando no veludo verde da montanha o seu lençol d’água
cristalina…

A primavera desabotoava-se magnífica, numa exuberância de tons
deliciosa; mas as meninas, afeitas ao clima do Rio, andavam tiritantes, envolvidas
em lãs.

Nos primeiros dias a tia Mariana reclamava detalhes da revolução,
maldizendo a república e chorando pelo imperador, o bom velho das barbas
de neve, que lhe tinha apertado casualmente a mão uma vez, havia muitos
anos, numa festa de caridade…

Ernestina fazia coro nas lamentações, mas não sabia
explicar nada, o que desesperava a outra; então Sara, mais indiferente,
inventava detalhes que a velha ouvia, limpando os óculos.

Um dia, a viúva Simões decidiu-se a deixar as meninas com a
tia, e descer para o Rio sozinha, conquanto um pouco assustada por aquela
ousadia.

Ela afirmava à filha que voltaria depressa, explicando alto, repetidamente,
que não podia deixar a casa entregue aos criados…

A Ana era cada vez mais exigente; todos os meses pedia aumento de ordenado,
e mais cerveja, e mais isto e mais aquilo…

O Augusto mudara completamente depois do passeio à Glória do
Outeiro, dormia de dia horas inteiras e ria alto coma Simplícia, pelos
cantos, sem respeita nenhum…

O João andava doente, a Benedita com um mau humor execrável…
e ela, confessava, tinha medo que lhe pusessem fogo à casa!…

A tia Mariana aprovava: – que fosse depressa! Isto de criados não
há que fiar… cada um faz o que pode para ser pior!

Quando Ernestina entrou em casa sentiu uma profunda e dolorida saudade da
filha. Era o seu primeiro apartamento. Toda a tarde e toda a noite não
lhe puderam sair do sentido a voz e o vulto de Sara, a adorada companheira
de toda a sua vida… Logo de manhã cedo escreveu-lhe uma grande carta
cheia de recomendações: que se agasalhasse, que fizesse exercício,
que lhe escrevesse sempre…

Depois escreveu a Luciano, e parou, com a pena no ar, pensando em qual daqueles
amores a absorvia mais…

Agora que Sara estava ausente, sentia por ela uma ternura esquisita, mais
penetrante, que lhe ia até o fundo do coração, que a
afastava de todas as outras coisas, arredando mesmo para um plano mais nublado
e indeciso a figura de Luciano… Estranhava aquilo; aquele redobramento de
amor maternal que a dominava completamente, absolutamente. Aproveitou pressurosa
a frieza que lhe parecia então sentir pelo noivo, e pediu-lhe na carta
que a não fosse ver. Contou-lhe tudo. Sara estava longe mas sentia
bem que não a poderia conservar assim… faltara-lhe o ar em casa,
sem ela… não se resignaria nunca a viver daquele modo! Casá-la
não era coisa admissível. Sara era ainda muito nova. Concluía
pedindo mais uma vez a Luciano que dominasse a antipatia pueril que o afastava
de Sara para viverem depois todos felizes… muito felizes!

Ernestina acabou a carta chorando. Aquela harmonia sonhada e pedida não
existiria nunca; percebia bem. Viveriam juntos talvez, mas aborrecendo-se.
Era isso mesmo que ela tentara outrora, quando escondia em casa a sua mocidade,
o seu lindo rosto, a sua alma ansiosa, ávida de amor! Era por isso
mesmo que ela desejara sempre a velhice que a vestisse de gelo, lhe quebrasse
os ímpetos, que a deixasse sem aspirações e sem desejos,
na sua grande virtude de mãe sem mácula…

Ela pedia a Luciano que a não fosse ver, temendo que ele lhe desobedecesse.
Entretanto era preciso. Estava só; tinha medo de sucumbir.

Nessa mesma tarde recebeu a primeira carta de Sara, escrita à mesma
hora em que ela lhe escrevera, com iguais pedidos e recomendações,
com a mesma chuva de beijos, a mesma intensidade de afeto.

X

O Rosas balouçava-se em uma grande cadeira austríaca no seu
terraço do Flamengo, ouvindo Luciano ler a última carta de Ernestina
e uma de Sara dirigida à mãe. Acabada a leitura, o Rosas deitou
ao ar o fumo azul do seu havana e o amigo perguntou-lhe:

– E então?!

– É o que eu dizia: você tem de casar com ela!

– É boa! Se a gente tivesse de casar com todas as mulheres a quem
faz a corte!…

– Mas você foi mais longe do que isso!

– Aqueles olhos põem-me tonto! A verdade é esta: eu amo Ernestina,
mas não quero casar com ela…-

– Por quê?!

– Não sei! Aquela filha… o gênio dela mesmo, incomoda-me,
irrita-me! Você não vê esta carta? Manda a filha para Friburgo
e é exatamente agora que me pede para não ir vê-la!

– Muito bem. Isso compreende-se… é uma mulher honesta… você,
que diabo! É um homem perigoso! Mas, deixe-se de histórias!
Peça a viúva e case-se. É mulher garantida, vê-se
por essas cartas. Afinal, você gosta dela… lá por embirrar
com a filha não é razão! O caso é outro. Você
é um galanteador e julga que as mulheres nasceram só para joguetes
do seu capricho…

– Bonito! Ponha-se agora com frases…

– Ora! quantos amores já lhe conheci! Mas o tempo passa. Vá-se
ver ao espelho! Tem já muitos cabelos brancos e olhe que por ter vindo
de Paris não pense que não haja por aí outros mais chics…

Luciano relia a carta de Sara.

– A pequena não escreve mal…

– É muito expansiva!

– Você não compreende? A mãe quer catequizar-me com as
cartas da filha.

E guardando os papéis no bolso:

– Bem! Ela talvez deseje que eu lhe desobedeça.

– É até provável que conte com isso…

– Acha?

– Ora! com certeza.

– Pois não vou; há de chamar-me primeiro; se quiser. Hoje vou
passar a tarde com…

– Clara Silvestre?

– Não! com o Henrique Bastos… ele convidou-me para um passeio a
S. Paulo, vou-lhe dizer que aceito.

– Faz bem.

Entretanto, Ernestina sentia-se febril, quase doente de ansiedade, esperando
o momento em que Luciano fosse pedir oficialmente a sua mão. Ele escrevia-lhe
de S. Paulo, mas as cartas iam rareando e as saudades crescendo. Ernestina
foi duas vezes a Friburgo; afogava a filha em beijos e abraços e voltava
com uma enorme lista de encomenda que acrescentava sempre com mais tetéias
e gulodices. Todavia, sentia nessa dura experiência ser impossível
viver longe da sua querida Sara, e teimava em prolongar a separação,
pagando com lágrimas de saudade esse sacrifício.

Três meses depois da ausência, Luciano voltou a casa de Ernestina;
encontrou-a em doce palestra com D. Candinha Nunes. Sara voltaria no dia seguinte.
Ernestina estava radiante. Ele achou-a pálida, transparecia nela o
cansaço da tristeza e da solidão, embora a alegria do momento
a sacudisse nervosamente.

Passaram a tarde no jardim; à noite entraram para a sala, mobiliada
de novo, e entretiveram-se vendo os arranjos e modificações
feitos em tudo pela viúva para surpreender Sara.

D. Candinha exclamava:

– Qual! Não há amor como o de mãe! Vejam como Ernestina
pensa na filha!

Luciano abanava afirmativamente a cabeça, vendo Ernestina embaraçada,
tateando as coisas,

Às dez horas, como o Nunes não aparecesse, D. Candinha disse:

– Ora, o senhor meu marido esqueceu-se de mim! Seu Luciano, acompanha-me
à cidade?

– Até a sua casa, minha senhora. Despediram-se; e Ernestina, retendo
a mão de Luciano, disse:

– Ela chega amanhã!… Vem vê-la?

– Certamente…

Não puderam dizer mais nada, D. Candinha, murmurava já fora:

– Que noite linda!

XI

Sara encontrou a casa toda renovada. Ernestina comprara mobílias caras
e reposteiros de luxo. Tinha aproveitado a ausência da filha para varrer
pela porta fora todas as recordações do passado.

O João enchera tudo de flores, desde a porta da rua até à
do quintal, muito contente com a volta da menina, que era a alegria da casa.
A Benedita preparou surpresas para o jantar, uns pastéis e uns pudins
especiais, feitos com prazer e capricho, muito ornamentados, A Simplícia
pregou na carapinha um cravo vermelho e amarrou fitinhas no pescoço,
dizendo fazer isso para ser agradável a Nhá Sara.

A Ana pôs no guarda-louça, sorrateiramente, um queijo fabricado
pelo pai em Petrópolis e só o Augusto continuou indiferente
no serviço.

Sara tinha voltado de Friburgo com o dr. Tavares e a Gina. Não se
cansava de beijar a mãe, falando-lhe rente à cara.

– Sabe? Fui pedida em casamento!

– Sim?!

– Sim, mas eu respondi que mamãe já me tinha prometido a um
príncipe estrangeiro.

– Quem foi?

– Um velhote muito rico, mas muito feio, chamado Menezes. Depois desse, quem
também não desgostou de mim foi o Eugênio Ribas. Esse
não chegou a falar em casamento… mas deu a entender… e confessou
ao dr. Tavares que me adorava!

– O Eugênio Ribas não é um moço louro, amigo do
Nunes?

– Esse mesmo! Ia aos bailes em Friburgo, de casaca e luvas brancas. Por aqui
há alguma novidade?

– D. Candinha esteve cá, ontem; veio convidar-nos para um baile masqué.

– Que bom!

Começaram logo as combinações de toilettes e de idas
à cidade para compras.

Nessa tarde, quando Luciano abriu o portão do jardim, deparou com
Sara que ia muito risonha ao seu encontro. Estranhou-a. A moça parecia-lhe
agora mais alta e mais elegante. Usava um vestido branco transparente, que
mostrava numa sombra tênue a sua carnação de loura, alva
e rosada. Aquele traje dava-lhe um ar encantador de alegria e de ingenuidade.

Até então vira-a sempre de escuro, vacilando entre o cinzento
e o preto tristonho do luto; os tons claros iluminavam-lhe a fisionomia numa
doce irradiação de poesia e de graça.

– Entre depressa! exclamou ela, senhor ingrato, que não me mandava
nem sequer saudades por intermédio de mamãe! E fique desde já
sabendo que, para seu castigo, tem de desenhar hoje mesmo uma toilette de
fantasia para esta sua amiguinha!

E puxou-o, rindo, para dentro, segurando-lhe a mão.

Luciano deixava-se ir, encantado com aquele acolhimento. Estava num dos seus
dias de bom humor, e o passeio a S. Paulo e a ausência de Ernestina,
cujo amor o enervava, tinham-lhe temperado os pobres nervos doentios. Sentia-se
saudável e tranqüilo naquela tarde.

Passaram todo o tempo da visita combinando fantasias para o baile de D. Candinha.

À despedida, Sara perguntou.

– É verdade, mamãe já foi ver a sua coleção
de quadros?

– Coleção de quadros? Quem a ouvisse diria que possuo uma galeria!

– Está arrependido do convite que nos fez, ou gracejava quando nos
relatou objetos artísticos e mais trapalhadas adquiridas na Europa?

– Não menti. O que desde já lhes digo é que a minha
coleção é pobre; mas façam uma coisa: vão
lá amanhã; por exemplo.

– Está dito! Valeu, mamãe?

Ernestina consentiu. Nessa noite ela foi dormir contentíssima: pareciam
feitas as pazes entre Sara e Luciano Dias.

No dia seguinte, às 2 horas, desceram de Santa Tereza. A tarde estava
quente, de um azul carregado.

A casa de Luciano Dias ficava perto, na rua do Riachuelo; era de uma aparência
simples: fachada sem estilo, de um tom cinzento, com frisos dourados nas três
janelas de peitoril. Entraram; dentro, uma pequena escada de mármore
conduzia à saleta de onde Luciano desceu a recebê-las. Ernestina
estava comovida, Sara curiosa, Momentos depois, conversavam no pequenino salão
de Luciano, com ele afrancesadamente chamava à sua boa sala.

Nas paredes de verde-escuro, encaixilhadas em madeiras. finas, destacava-se
uma multidão de objetos e pequenas telas: medalhões históricos,
baixos relevo, adagas e punhais, recordações de touriste, insignificantes
para os indiferentes; aqui um punho da mais rara merletti veneziana, ali um
mosaico de Roma, um ramo da flor dos Alpes, a penugenta edelweiss, uma faca
de Toledo incrustada de ouro, ou um leque de Madri.

Sara ia observando tudo com muxoxos de desilusão, até alegrar-se
com a vista de uma formosa cabeça de mulher, que surgia, risonha e
fresca, do fundo cor de aurora da tela.

Ernestina sentara-se num divã, procurando prender toda a atenção
de Luciano; mas este respondia-lhe apenas, lisonjeado com a observação
que Sara prestava a tudo, comentando os objetos, indo e vindo de um para outro
lado, fazendo-lhe perguntas, apontando como feias, antiguidades que ele achava
lindas, extasiando-se às vezes em frente de outras coisas que considerava
medíocres! Tudo que tivesse um ar de alegria ou de saúde, era
o que vibrava na moça maior entusiasmo. Um grupo de crianças,
uma aldeã robusta, um pescador banhado de sol, um ramo de papoulas
sangüíneas ou de frutas bem desenhadas e frescas, rebentavam-lhe
dos lábios vermelhos frases de espontânea admiração.

Os assuntos diabólicos, nervosos, os quadros torturados em que, em
fundos turvos, se estorcessem corpos aflitos ou relampejassem olhares de agonia,
de dúvida, ou de ódio, tudo em que a dor domadora, atrocíssima
e amarga, derramasse o seu travo ou fincasse o seu dente impiedoso; tudo em
que a arte reproduzisse a lágrima e o sofrimento humano, arrepiava
as carnes sadias de Sara, para quem a vida tinha só por dever ser risonha,
ser boa, ser fértil!

Os seus olhos de menina inexperiente não compreendiam os requintes
artísticos de um ou de outro autor, mas a sua alma entusiástica
abria-se com alegria às impressões da arte.

Ernestina passeou o olhar através do lorgnon por tudo que a rodeava,
sem demonstrar claramente as suas predileções, temendo cair
em erros de observação. A filha, mal ou bem, ia apontando defeitos
e belezas, manifestando sem rebuço a sua maneira de ver e de sentir.
A cabeça do garoto elogiada por Luciano, fez com que a moça
batesse palmas de contentamento. O busto talhado em mármore tinha energia,
graça e independência, qualidades que se juntavam no caráter
de Sara. A moça não pôde conter-se, e, com os olhos úmidos,
beijou nas duas faces a cara rechonchuda do pequeno garoto de Paris.

Luciano estremeceu como se alguma coisa nova se tivesse revelado nele. Ernestina
murmurou, repreensivamente:

– Sara! Que criancice!

– Ah! Mamãe! Se este diabinho é tão bonito! Repare para
os olhos!… que malícia!… e para a cabeça!… que audácia…
Não parece mesmo que esta boca está gritando: Viva a França!
e que neste peito bate orgulhosamente um coração!

Estiveram algum tempo de pé em frente ao busto, depois Luciano conduziu-as
para outra salinha interior, onde mandara preparar uma fineza de lunch.

Sobre o linho escarlate e preto da toalha, brilhavam pratos finos de bombons,
frutas e guloseimas variadas. A viúva tirou vagarosamente as luvas,
sorrindo com sossego para Luciano, que lhe dava o lugar de honra, à
cabeceira. Sara, sem esperar por convite, sentou-se, dizendo alto:

– Ui! Tanta coisa!! Para mim bastam as uvas… o que peço é
que não se admire se eu comer todas!

Luciano chegou para ela a cestinha das uvas e sentou-se entre as duas senhoras.

Ernestina rescendia a Scherry-blosson e as suas mãos bem tratadas
moviam-se vagarosamente acima dos pratos ou do linho escuro da toalha. Por
toda ela descia um ar de tranqüilidade e de ventura, fixando em Luciano
um olhar calmo, como o de esposa feliz, em Sara um olhar de mãe confiante.

A moça, numa gourmandise notável, ia dando cabo das uvas brancas,
falando sempre, enchendo a casa com a sua voz fresca e com os seus risos gorjeados.

Nessa tarde Luciano não saiu; sentou-se preguiçosamente a ler
no seu escritório; mas a própria leitura fatigava-o e abandonava
de vez em quando o livro, relembrando a graça de Sara, a onda de alegria
que ela espalhara por toda a sua casa; os seus ditos, a singular mudança
dos seus traços, do seu caráter e até da sua roupa! Nas
duas horas em que ela estivera ali, quantas coisas notara!

Tinha-lhe feito observações justas e lembrado coisas em que
ele agora nem repararia… aquela colcha de veludo preto suspensa na biblioteca
fazia lembrar um pano de enterro… era uma fantasia de mau gosto. O piano
deveria estar longe da janela… o busto do garoto mais voltado para a luz…
a sala dos quartos não deveria ter cortinas… e faltava um tapete
de fundo vermelho no escritório… tudo isso ela dissera à vol-d’oiseau
, no primeiro relance; e ele percebia agora que ela tinha razão. Era
como se de repente o vácuo de sua casa solitária se tivesse
tornado em um corpo de mulher moça e contente, e lhe reclamasse tudo
que lhe faltava… E parecia-lhe então que Sara fora momentaneamente
a alma daquele ninho que ele enfeitava, amava, e que encontrava sempre mudo,
frio, morto, incapaz de corresponder ao seu carinho!

E Ernestina? Parecera-lhe nesse dia um pouco avelhentada, medrosa de expressão.
E teve pena daquela alma de criança, fechada em um corpo já
em decadência… entretanto ela era mais formosa do que a filha, e não
era a filha certamente que ele amava!

Desde desse dia Luciano não deixou de ir nem uma só tarde a
Santa Tereza. E era sempre Sara quem o vinha receber, enquanto Ernestina o
esperava, risonha e calma, na sua varanda entrelaçada de flores.

XII

Chegou a noite do baile masqué. Fazia calor e luar; o céu tinha
poucas estrelas, mas muita luz.

Ernestina trajava um dominó à fantasia, muito unido ao corpo,
da seda e rendas pretas, com longa cauda e capuchão seguro ao cabelo
por brilhantes esplêndidos.

Ia elegante na sua seriedade. O seu desejo era ter ido decotada, com um traje
farfalhante e claro, mas teve medo da crítica e absteve-se preocupada
sempre com a opinião dos outros. Às dez horas entraram no baile.

O Nunes abria os seus ricos salões burgueses num esplendor de luzes
e de flores. Não tivera espírito para reviver na sua festa uma
época histórica qualquer, em que tudo, convidados e casa, fosse
submetido rigorosamente ao estilo e ao figurino do tempo reproduzido. Negociante
rico e feliz, pouco afeito aos requintes literários, satisfazia condescendente
e bondosamente ao capricho da esposa, proporcionando-lhe o ensejo de mostrar
a sua casa e os seus jardins formosíssimos.

Luciano esperava as Simões na saleta da entrada. Ele riu-se vendo
Sara com um vestuário diverso do que haviam combinado. Tinha-lhe aconselhado
o romântico costume de Margarida, que lhe fazia valer a beleza das tranças,
e ela aparecia-lhe numa toilette extravagante, sem origem bem determinada
e onde o ouro e o vermelho se embaralhavam indiscretamente.

Era uma verdadeira boemia de opereta com pandeiro, cabelo solto, braços
nus, saia redonda tilintante de moedas. Sara zangou-se ao deparar com Luciano
encasacado, foi logo direita a ele, dizendo que, se todos fizessem o mesmo,
não teria graça nenhuma o tal baile masqué! Depois de
um muxoxo, acrescentou:

– Estou bem?

– Está linda!

– Se eu não lhe falasse, agora o senhor não me reconheceria.
Mamãe acha a minha toilette vulgar. Eu estava morta por saber a sua
opinião… ainda bem que me acha bonita!

Ernestina ouviu tudo imóvel, sentindo um calafrio percorrer-lhe a
espinha. Luciano não desviava a vista da cabeça loura da filha,
onde flutuava a ponta de um lenço de seda vermelha.

Nessa noite ela não lhe pediu como costumava: dance com minha filha,
sim? Ao contrário, desejava afastá-lo de Sara. Entretanto eles
dançavam juntos.

A gentil boemia fazia tilintar as moedas da saia; em uma alegria barulhenta.

Estava feliz nessa noite; tinha ditos de espírito e havia sempre um
grupo de rapazes a cortejá-la muito.

O Eugênio Ribas não a perdia de vista, procurando todas as ocasiões
de estar a seu lado. A coisa chegava a dar na vista; algumas pessoas diziam
mesmo que o Eugênio era já noivo da Sara Simões. O Nunes,
velho amigo de Ernestina, julgou prudente advertir o moço, e ele lealmente
confessou adorar a filha da viúva e esperar só um momento oportuno
para fazer-lhe a sua declaração. Ernestina soube depressa da
resolução de Eugênio e sentiu um alívio inexplicável.
Entretanto Luciano, num zelo de pai, começava a achar embirrativa a
assiduidade do outro.

Sara ia-o levando também, inconscientemente, atrás de si, de
sala em sala, risonha e descuidada, sempre a preferência, distinguindo-o
entre todos os outros.

Ele seguia-a sem saber porque, obedecendo a um sentimento de proteção
que julgava dever dispensar-lhe.

À uma hora estavam no jardim. Como a noite estivesse quente, seguiram
até ao fundo, ao paredão que dava sobre o mar. Pelos relvados
circundavam linhas multicores de copinhos luminosos e um foco de luz elétrica,
partindo do centro do jardim, derramava a sua luz diáfana sobre a verdura
reluzente dos arbustos e a brancura marmórea das Vênus e das
bachantes nuas.

A vegetação abundante e incomparável do Rio exibia ali
os seus mais encantadores exemplares. Palmeiras variadíssimas, fetos
enormes misturavam os seus leques e as suas rendas às carnudas begônias,
às avencas sutis, às parasitas de formas artisticamente rebeldes
e fantásticas, às rosas, aos cactos, aos jasmins, às
flores ardentes e rudes e às flores idealmente brandas e leves como
flocos de espuma. A folhagem vermelha e cor de ouro velho do croton tinha
a seus pés os tapetes rose-dourados dos jasmins-manga, caídos
como um chuveiro de perfume e de luz dos galhos claros da árvore.

Luciano continuava ao lado de Sara, sem saber mesmo porque considerava-se
agora o seu protetor e o seu guarda, num zelo mais do que paterno. A moça
fugira um pouco à assiduidade importuna do Eugênio Ribas, confessara
isso mesmo a Luciano, numa confidência amiga e sincera. A intimidade
a que Ernestina os obrigara autorizara aquilo.

Sara encostou-se ao paredão, olhando para o mar. Uma expressão
de indefinível doçura espalhou-se-lhe pela fisionomia, até
aí radiante de alegria. Sobre a sua cabeça estendia os braços
um formidável magnólia escura, em que as flores pálidas
vazavam dos seus copos marfíneos o aroma da paixão, violento
e entontecedor. Ao longe, do pavilhão das ipoméias, vinham os
sons da banda com os seus clarins sonoros, e lá em cima, no azul tranqüilo
do céu, a lua ia rolando, lentamente!

Luciano contemplava extático a órfã do seu velho rival.
Ela tinha os braços nus, brancos e estendidos para a frente, as mãos
sobre as pedras esverdeadas do muro, os olhos entrecerrados acompanhando as
ondas, que iam e vinham brandamente, queixosas.

Luciano contemplava-a assim, achando-a bizarra naquele traje quente que envolvia,
como uma injúria, o seu corpo delicado e virginal, sentindo-a ao mesmo
tempo mais cândida, mais ideal, mais doce do que nunca! Aquela cisma
e súbita melancolia da moça tornavam-na como que uma imagem
de santa milagrosa, que ele tivesse visto surgir por encanto daquelas flores
ou daquele mar. Ora desejava vê-la sempre assim, imóvel e serena,
ora sentia ímpetos de a beijar, de a morder, de lhe dizer que a amava!

Sara prendera a meia mascara de veludo ao cinto e no seu rosto largo, onde
sempre a expressão de lealdade tinha suprido a falta de delicadeza,
iam agora rolando duas lágrimas.

– Em que pensa? perguntou-lhe Luciano comovido, segurando-lhe na mão.

– Em meu pai! Sinto remorsos desta alegria que tenho tido hoje…

– Que criancice!

– Será! Mas que quer? Ele era tão bom! Amava-me tanto! e depois…
bem sabe; é a primeira festa a que eu assisto aqui, nesta casa, onde
tantas vezes vim em sua companhia! Ele era íntimo desta família…
Papai e o Nunes eram como se fossem irmãos!…

Sara, excitada pelo excesso da dança e pelo aroma das flores, pôs-se
a falar do comendador, relembrando os seus carinhos, o extremoso cuidado que
lhe dedicava, a maneira por que se fazia criança para brincar com ela;
a sua solicitude e bondade, o modo piegas com que a tratava, chamando-a: –
Jojóia, meu bem!

Citava fatos, descrevendo a sua caridade modesta, a sua honradez sem mácula
e a retidão do seu espírito. Dava ao pai uma auréola
de santidade, sem esconder contudo a rigidez austera do seu caráter.

Luciano ouvia-a com uma atenção silenciosa simpatizando a pouco
e pouco com esse homem, que ainda havia alguns dias odiara e que parecia agora
outro através das saudades e das palavras de Sara!

Não analisava os seus sentimentos; esquecia todo o passado ao influxo
daquela ternura filial; daquela voz argentina, molhada de lágrimas,
que vibrava no ar perfumado da noite com uma doçura de sonho. Compreendia
agora bem o coração extremoso e leal da moça; sentia-a
forte, fiel, sincera e justiceira, alma feita para esposa e para mãe,
capaz de todas as lutas, digna de todas as glórias!

Caía por terra o seu ciúme raivoso e ele desejaria agora ver
o Simões reassumir milagrosamente o seu antigo posto ao lado de Sara
e ao lado de Ernestina!

Quantas vezes a viúva lhe tinta respondido, quando ele maldizia o
marido:

– Ele morreu! E ter ciúmes de um morto é uma insensatez!

– Não! redargüia-lhe Luciano; eu preferiria ter ciúmes
de um vivo, com quem pudesse lutar e a quem pudesse vencer!

– Mas se ele não tivesse morrido, eu ainda seria casada…

Era sempre esta frase e tapava a boca de Luciano, até que ele, entre
risonho e agastado, concluía:

– Sim… ele teve ao menos o juízo de morrer a tempo!

Entretanto, Luciano via agora com respeito e comoção o nome
daquele homem há pouco detestado! O coração abria-se-lhe
a um sentimento novo de simpatia e de piedade.

Sentindo-se compreendida, Sara desabafou as suas mágoas. Referiu-se
à historia do retrato do pai, à mudança inexplicável
do gênio de Ernestina, à maneira por que tirara o luto antes
do tempo, o seu nervosismo, o modo por que evitava falar no marido, cujo nome
deixara de soar em casa. Aquela ingratidão é que lhe doía
muito!

Agitada pelas danças, pela música, pelo brilho da noite e o
aroma voluptuoso das magnólias, Sara expandia-se, na embriaguez da
dor, falando sempre, revendo-se no olhar de Luciano.

Ele deixou-se envolver de tal sorte que se indignava contra Ernestina, esquecido
de que tudo o que ela fizera tinha sido a pedido e a conselho seu! E olhava
para a Sara amorosamente, embevecidamente!

Atrás deles, suspensos das árvores e de festões de folhas,
pendiam as lanternas multicores, como fitas luminosas apanhadas aqui e além
pela mão invisível da noite. A música do jardim tocava
uma fanfarra, os sons dos clarins vibravam trêmulos e límpidos,
espalhando pelo espaço uma grande sonoridade!

Ernestina aproximou-se de braço dado com o Nunes e chamou a filha
com voz irritada e áspera. Sara baixou humildemente o rosto, iluminado
por uma comoção feliz. Seguiram ambas para a toilette à
procura das capas.

XIII

A ama Josefa rematava uma costura quando sentiu um farfalhar de sedas pelo
corredor.

– Um gente? como Iaiá vem bonita!

– Escute, Josefa, atalhou Ernestina, eu hoje espero uma visita aqui, em sua
casa! Preciso da sala, ouviu?

– A casa toda é sua!…

– Que horas serão?

– São duas…

– Não pode tardar!…

Josefa correu à sala, para tirar de cima do sofá e das cadeiras,
camisas engomadas, dos fregueses, que lá tinha estendido, cobertas
com uma tarlatana cor de rosa… E nesse trabalho ia pensando que a Ernestina
era uma tonta, mesmo uma criatura muito sem juízo, e concluía:

– Por que diabo não se casará ela de uma vez?!

Quando voltou para dentro, encontrou a viúva Simões em frente
do espelho, compondo os anéis do cabelo.

Mirou-a toda. Nem um vestígio de luto no seu traje!

Ernestina levava um vestido de seda mole, que lhe caía rente ao corpo,
mostrando-lhe as formas delicadas da cinta, do seio e das pernas. Tinha nas
orelhas duas safiras, a pedra da felicidade, que sorriam nas suas cintilações
como dois olhos de anjo rebelde. Por toda ela escorria um aroma quente.

– Esse vestido é novo? perguntou a ama.

– É; não vê que tem a cor da moda?

– Azul… ou cinzento…?

– Azul elétrico.

– Ah!.. não sei que mais hão de inventar! Iaiá agora
anda muito chic !…

Ernestina sorriu; mas depressa as sobrancelhas contraíram-se, formando-lhe
uma ligeira ruga acima do nariz; esteve um momento silenciosa, pensativa e
imóvel; tornou, porém, depressa a alisar com a mão a
seda do corpinho. Tirou do bolso uma caixinha redonda, pouco maior do que
uma noz, abriu-a, puxou por um pom-pom quase microscópico e agitou
sobre o rosto com toda a sutileza, espalhando uma nuvenzinha de pó
de arroz.

– Iaiá sempre dizia que não haverá de usá nunca
essas coisas!… – observou a ama.

– Eu era moça! E hoje…

Houve um relâmpago de ódio a fuzilar-lhe nos olhos…

– É velha?! perguntou a outra rindo.

Ernestina não respondeu; limpava com a ponta da toalha umedecida na
água as pestanas e as sobrancelhas, que se desenhavam negras e finas
numa leve curva harmoniosa. Depois, sacudiu os ombros com o lenço,
examinou os dentes, as unhas… e prestou o ouvido atenta; sentira passos..
mas os passos passaram e ela então disse com um sorriso irônico:

– Uma mulher apaixonada não deveria nunca envelhecer.

Bateram. Josefa correu a abrir a porta da sala; Ernestina relanceou a vista
para o espelho e murmurou num desafio quase triunfante:

– Sara! Vamos a ver qual de nós duas vence!

Dois minutos depois, ela entrava na sala. Luciano foi ao seu encontro com
um modo embaraçado, conquanto afável. Ernestina fixava-o com
altivez.

– Chamou-me e aqui me tem, disse ele procurando sorrir.

– Compreende porque não lhe pedi que fosse antes a minha casa.

– Não…

– Não?!

– Não.

– Deveras? E riu-se. Depois, num tom ora precipitado, ora lento:

– Pois vai compreender. Trata-se de minha filha.

Luciano não pôde reprimir um movimento de surpresa. A viúva
observou-o um instante e continuou:

– O senhor tem tido várias vezes a bárbara franqueza de me
dizer que a não pode suportar! Ela, além de todos os defeitos
da má educação, tem a enorme desvantagem de ser o retrato
do pai!… Ora, refletindo em tudo isso e de acordo com uma idéia sua,
já mais de uma vez manifestada, resolvi uma coisa: – casá-la!

Luciano estremeceu, mas continuou silencioso e sério. Ernestina tinha
o olhar cravado nele, procurando estudar-lhe os gestos e penetrar-lhe no pensamento.
Aquele olhar cheio de fogo e de paixão perturbava-o tanto como as palavras
que ia ouvindo.

– É já tempo de lhe declararmos o nosso amor e os nossos projetos.
Para que o casamento se realize, é forçoso separar-me dela…
assim o senhor me tem dito… Aconselhe-me agora.

Luciano quis falar, mas deteve-se. Ernestina esperou um segundo.

– Porque não responde? O senhor nunca teve cuidado em esconder de
mim o mal que lhe queria. Disse-me muitíssimas vezes que a achava intolerável,
mal educada, autoritária, feia e antipática. Foi por sua causa
que eu a mandei para Friburgo; foi por inexplicáveis pedidos seus que
escondi até hoje as nossas intenções, como se elas fossem
criminosas.

"Não me tem custado pouco o mentir à minha filha, acredite!
Se ela não tivesse por mim a veneração, o amor absoluto
que me faz parecer a seus olhos a mais pura e a melhor das mulheres, que julgaria
de mim?!

"Muitas vezes o senhor me tem dito que pareço indiferente ao
seu amor, e fria!… Entretanto fique certo de que a minha frieza e indiferentismo
têm-me custado um grande esforço, porque bem sabe que o amo com
veemência, que o amo com paixão!

A voz de Ernestina tinha urna sonoridade nova, ondeando, entre a censura
e a queixa, e a maneira acentuada e firme porque falava revestia-a de um encanto
singular.

Houve uma pausa; a viúva Simões cortou-a com azedume:

– Devemos casar Sara quanto antes.

– Casá-la… – balbuciou Luciano como um eco.

– Sim! Eugênio Ribas ama-a, e como é seu amigo lembrei-me de
uma coisa…

– É verdade?!

– É certo; e o que o senhor tem a fazer é o seguinte: – Vá
ter com o Eugênio, prontifique-se a pedir a mão de minha filha,
depois….

– Depois?

– Vá à minha casa e consulte a opinião de Sara; elogie
o rapaz, que é na verdade digno. Em seguida poderemos declarar-lhe
as nossas intenções.

Ernestina falava com uma linguagem estudada, reprimindo os sentimentos, domados
por um esforço de vontade que já não podia sustentar.

Contemplaram-se por algum tempo silenciosos. Luciano com espanto. Ernestina
com altivez: por fim, ele disse baixo, num tom magoado:

– É impossível!

– Impossível! Por que?! Não tem sido o senhor mesmo a insinuar,
a aconselhar, a exigir mesmo, que eu case minha filha?! Além de tudo,
ela ama o Eugênio…

– Ah!

– Adora-o!

– Confessou-lhe isso já? perguntou Luciano.

A viúva não teve coragem de sobrecarregar sua impiedosa mentira
e, corando um pouco, acrescentou:

– Sei que ela o ama… vive a falar nele a propósito de tudo… basta
ouvir-lhe o nome para embaraçar-se… surpreendi-a pedindo á
Georgina notícias dele… É natural, são ambos moços…
são ambos bonitos…

– Sim… são ambos moços… Luciano baixou a cabeça
entristecido por aquela confidência, pensando na felicidade do outro.
Ernestina compreendeu-o talvez e agarrou-lhe na mão com doçura,
falando-lhe baixinho e tratando-o por tu, pela primeira vez.

– Oh! meu Luciano, como te amo! Como eu te quero bem! Havemos de ser felizes…
Há tantos anos já que nós sonhávamos com essa
felicidade!… Lembras-te? Eu era ainda menina! Quando vesti o meu primeiro
vestido de mulher, eu já te amava! Foste tu que despertaste o meu primeiro
sonho… serás tu quem me feche caridosamente os olhos quando eu morrer,
beijando-te! Meu marido! Meu marido! Luciano! Lembro-me ainda de todas as
palavras que me dizias há vinte anos!… Dize-me outra vez que me amas…
Estás triste!… Eu daria todo o meu sangue para que fosses feliz!
Amo-te assim.

Luciano ia sentindo reviver pouco a pouco o amor. Sara amava outro? Que amasse!
Era tempo de acabar com aquilo; que se casassem depressa e lhe fugissem dos
olhos.

Ernestina falava agora, falava sempre, já sem calma, feliz, desatando
frases de queixa, de censura, de desespero e de amor, deslumbrando Luciano
com a sua voz quente, a sua formosura miraculosamente rejuvenescida nessa
hora de enlevo e de paixão ardente e concentrada.

Ele já não a observa com reserva, mas com admiração.

A pouco e pouco a palidez mate, o luminoso olhar da viúva, toda aquela
febre em que ela se revolvia, iam-lhe acendendo desejos de a apertar nos braços.
Ela percebeu isso e postou-se defronte dele, com o corpo arfando sob a seda
mole do vestido e a cabeça inclinada como a pedir beijos.

Luciano ergueu-se desvairado e quis beijá-la, ela furtou-se a isso
nuns movimentos arredondados e lânguidos, e, baixando a cabeça
muito risonha e feliz, disse-lhe quase num murmúrio:

– Depois…

Foi então Luciano quem prometeu ir falar ao Eugênio e combinou
a maneira de o fazer sem indiscrição. A viúva envolvia-o
num longo olhar voluptuoso e perturbante, ele ia prometendo tudo quanto ela
queria e mandava.

– Amanhã ficará tudo acabado? perguntou-lhe por fim Ernestina.

– Assim o espero.

– Adeus.

Nessa tarde, Ernestina ao tirar no seu quarto o lindo vestido de seda, parou
em frente ao espelho, olhando para os braços e o colo nus, de um moreno
delicado que a luz tingia de um reflexo dourado. Contemplou-se por muito tempo
e concluiu triunfante:

– Sara é moça, mas eu sou mais bonita!

Luciano saíra tonto! As palavras de Ernestina, o seu corpo esbelto,
as atitudes provocantes, o aroma forte que a envolvia, e aquela cena de paixão
e de enleio, tinham-no alvoroçado. Ele acostumara-se à serenidade
um tanto fria da moça; o seu amor por ela já se ia tornando
num hábito mais digno do nome de amizade. Agora, porém, as coisas
mudavam e ele sentia que iam mudando a tempo.

Durante todo o resto do dia, vibraram nos seus ouvidos as expressões
queixosas de Ernestina, e as narinas dilatavam-se-lhe, sentindo como que impregnada
a essência dela no seu fato, na sua própria pele!

À tarde deveria procurar o Eugênio, mas às primeiras
horas da noite ainda o encontraram em casa, e em casa ficou sem resolução,
atado. A verdade era que, com o correr das horas, Ernestina ia cedendo lugar
à filha, e ele sofria querendo e não podendo cumprir a extravagante
missão que lhe dera a Simões.

Luciano mesmo estranhava aquela indecisão. Sara não lhe era
nada, havia poucos dias apenas que percebera que ela não era feia e
que tinha espírito. Procurava abster-se de pensar nela, mas o pensamento
teimoso voltava a reproduzi-la num deleite amargo. À proporção
que o tempo avançava, ele enfraquecia no propósito de obedecer
a viúva. Não compreendia agora o amor de Sara por Eugênio
Ribas.

Supunha a confidência de Ernestina um estratagema.

Ele tinha julgado ler nos olhos de Sara, essas estranhas pupilas ora castanhas
ora azuis, alguma coisa de infinitamente doce, uma promessa, um sonho, um
vôo de pensamento que parecia dirigir-se a ele.

Com a ausência, o vulto de Ernestina ia-se esfumando no seu espírito,
e numa irradiação de luz ele via Sara, dizendo-lhe na sua grande
franqueza:

– Amo-a!

E era toda essa graça, lealdade e candura, toda essa mocidade e alegria
que ele ia oferecer a outro, a um estranho, que a não compreenderia
nunca talvez! Esposa…

Ele também a preferiria para esposa, quereria ser ele a conduzi-la
ao altar a chamá-la – minha!

Em toda a sua vida era a primeira vez que essa palavra simples assumia no
seu pensamento proporções tão belas! E Sara haveria de
sagrar essas três silabas divinas com as suas qualidades perfeitas,
seria esposa amorável e honesta a quem a mentira repugnasse e o sacrifício
aprouvesse!

Não se resignando a falar ao Eugênio Ribas nesse mesmo dia,
Luciano sentou-se à mesa e escreveu longamente à viúva
Simões. Alegou necessidade urgente de partir nessa madrugada para Minas,
para onde o chamava, por telegrama, um velho parente moribundo…

Adiava tudo para a volta.

Luciano escreveu aquilo com a convicção de poder mais tarde
vencer a sua vontade e apressar o casamento de Sara. Entretanto, percebia
bem: se Ernestina era para ele a mulher de fogo que lhe queimava a carne,
a filha era a mulher de luz benéfica que lhe iluminava o futuro, e
ele amava a ambas, a uma com os sentidos, a outra com o coração.

XIV

Fazia um calor abafadiço e medonho.

Pelas janelas abertas da sala via-se a cidade coberta por um pesado véu
cinzento da atmosfera enfumaçada e densa.

As plantas enlanguesciam no jardim e a areia faiscava na sua alvura brilhante.

Ernestina estava na sala, onde o retrato do marido reassumira o seu antigo
posto. Caíra num grande abatimento.

A carta de Luciano tinha-a amargurado. Era evidente que ele fugira à
entrevista com o Eugênio Ribas: Amaria então muito a filha? Era
isso o que a desesperava.

Compreendia finalmente que não soubera inspirar a Luciano mais do
que uma paixão carnal. O coração e o espírito
tinham vivido alheios. Ele quisera um galanteio e ela dera-lhe todo o seu
amor.

Envergonhava-se de ter sido tão crédula; se o tivesse tratado
com desdém, ele adorá-la-ia talvez! pensava ela.

Tomou a ler a carta, e amarrotou-a com desespero. Vendo fugir o noivo sentia
recrudescer a sua paixão. Amava-o como nunca!

A rivalidade com a filha exacerbava isso. A mocidade de Sara era a sua tortura.
Invejava aqueles dezoito anos, aquela alma primaveril, aquele rosto fresco
e tranqüilo. Estremecia, com medo da velhice, da sua fatal e terrível
decadência que sentia já perto, muito perto.

Suprimir Sara, pelo casamento, era o seu sonho de ouro! Na sua imaginação
doente surgiam idéias extravagantes. Pensou em ir ela mesma, procurar
o Eugênio Ribas, ou fazer-lhe constar pelo Nunes, que daria um grande
dote à filha…

Ernestina era delicada e repeliu depressa essa lembrança. Seria expor
a filha a comentários, isso nunca! Como sair daquele embaraço?
Queria vencer, custasse o que custasse. Seria abominável que Luciano
lhe fugisse uma segunda vez! A sua esperança era de que a filha não
retribuiria nunca o amor dele!

Ernestina imaginara que haveria de ser cada vez mais amada, exatamente por
não ter cedido aos desejos e solicitações do noivo e
eis que via agora desmoronarem-se todos os seus cálculos e aspirações.

Enraivecia-se contra Luciano! Imaginava os mais estranhos e esquisitos meios
de prendê-lo a si. Já não importava tanto que ele amasse
a outra, contanto que se casasse com ela!… Ser abandonada sendo formosa
e livre, era uma monstruosidade! Depois, Ernestina já se humilhava
a que o Luciano se deixasse amar, unicamente desde que pudesse dizer alto
à vista de toda a gente, a verdade que sepultava na alma havia tanto
tempo! Ser feliz com ele, por ele, dedicar-se-lhe completa, absolutamente,
era o seu sonho.

Tinha fé que todo o seu carinho, todo o seu amor e cuidado cativariam
o marido mais do que haviam cativado o amante!

No meio destes pensamentos, que se atropelavam desordenadamente no seu cérebro,
a viúva foi interrompida por Sara que entrando na sala foi direita
a ela.

Mãe e filha olharam-se, como adivinhando-se.

Subitamente a moça, que era como fora o pai, de uma franqueza arrojada,
disse num tom sacudido e firme:

– Tenho que lhe dizer.

– Ah!…

– Deu-me ontem a entender que o Eugênio Ribas quer casar comigo…

– Sim, quer.

– Pois eu não quero.

– Oh! Ele é um moço excelente, muito bem educado.

– Seja o que for; não gosto dele.

– Minha filha! repara que ele faria a tua felicidade…

– Não. Enfim mamãe eu só lhe peço uma coisa…

Ernestina ouvia-a, suspensa.

– Se ele vier pedir a minha mão, não me consulte; diga-lhe
logo que eu amo outro.

– Amas outro?!

– Sim.

– Quem é esse outro? perguntou Ernestina com medo, com uma voz abafada,
segurando-se ao braço da filha.

– Luciano.

– É mentira! exclamou Ernestina já de pé e com raiva,
é mentira!

Sara olhava-a com pasmo; a viúva deteve-se um minuto, depois puxou-a
para si, beijou-lhe a tranças, as faces, os olhos e murmurou quase
numa súplica:

– Ah… dize-me que é mentira!

Sara não respondeu: olhava-a sempre com o mesmo olhar espantado e
mudo.

A mãe levou-a até o sofá, fê-la sentar-se, sentou-se
ela também e segurando-lhe nas mãos deixou-se resvalar até
ficar quase de joelhos aos pés da filha. E foi assim, com os olhos
empanados de lágrimas que ela disse:

– Eu também o amo, Sara, eu também o adoro!

A moça teve um gesto de horror e de susto a mãe prosseguiu:

– Escutai para ti ele é um amor que começa, um capricho de
criança talvez, que se apagará depressa; e para mim ele é
a vida, toda a minha mocidade! Eu era ainda mais nova do que tu e já
o amava!

Abandona essa idéia! Tens um futuro tamanho!.. amarás depois
outro homem, mais novo, mais belo, mais digno de ti! Eu é que estou
no fim… eu e que já não tenho esperança e que morrerei
se ele me desprezar!

Sara, com o rosto voltado para fora, não respondia. Ernestina suplicava-lhe:

– Olha para mim! Não imaginas o sacrifício que tenho feito
para te esconder este amor! E ele é tão velho em meu coração!
Quando eu te gerei, quando te sentia nas minhas entranhas ou que te suspendia
no meu seio, ele já palpitava em mim, com o mesmo fogo, com a mesma
violência!

Sara voltou os olhos para o retrato do pai e duas lágrimas grossas
deslizaram-lhe devagar pelas faces.

Surpreendendo a dolorosa piedade que aquele gesto exprimia, Ernestina murmurou:

– Respeitei sempre teu pai e procurei por todos os modos fazê-lo feliz…
Se o meu coração era de outro…

A filha sufocou-lhe a frase tapando-lhe a boca com a mão, fria e nervosa.
Houve uma pausa, ouvia-se a cansada respiração de ambas. Sara
a retirou mão com um movimento brusco, Ernestina soluçou baixo:

– Dize-me que lhe fugirás!

Sara não respondeu.

– E hás de ser tu, minha filha! quem me roube a ventura com que desde
menina sonho! Sara eu sou uma louca! Ah! Na minha idade as paixões
são assim, levam a estes desatinos! Como é cruel a velhice!…
como tu és feliz, minha Sara!

Ernestina cobrindo de beijos a mão gelada da filha foi-lhe contando
tudo baixo e precipitadamente.

Revelou assim numa doidice indiscreta, as promessas e exigências de
Luciano, os seus conselhos e até os seus ditos ferinos contra a filha!

Já exausta, Ernestina deixou-se cair sentada na alcatifa. Sara então
levantou-se, atravessou a sala sem olhar para trás e saiu. A mãe
ficou só com o rosto sumido no estofo de um fauteuil, soluçando
alto como uma doida!

XV

Sara encerrou-se no seu quarto. Sentia-se atordoada e opressa. Esteve longo
tempo à janela com os olhos parados no azul acinzentado do mar.

A pouco e pouco via esclarecidas muitas passagens de outrora: frases irônicas
e secas de Luciano, atitudes constrangidas da mãe e mesmo certos ditos
levemente maliciosos da Georgina, que tinha sido, como sempre, muito mais
perspicaz do que ela…

Isso tudo vinha-lhe à memória demoradamente, como se umas coisas
arrastassem outras.

Mas afinal, o que tangia com mais dor no seu coração, eram
aquelas pungentíssimas palavras da mãe, referindo-se à
antiguidade do seu afeto: "Quando eu te gerei, quando te sentia nas minhas
entranhas ou que te suspendia no meu seio, ele já palpitara em mim
com o mesmo fogo, com a mesma violência!"

Eram essas expressões nervosas e apaixonadas que soavam mais repetidamente
aos ouvidos da moça.

Por que se teria casado a mãe! Por que teria mentido àquele
santo, que se não fosse a filha estaria completamente esquecido na
terra? Envergonhava-se como se, por ter sido concebida sob a influência
desse amor, tivesse comparticipação no crime da mentira. Votava
tal adoração à memória do seu querido morto, que,
mais pequena ainda que tivesse sido a falta, lhe pareceria uma monstruosidade!
Amar um homem e casar com outro era, aos seus olhos castos, uma ignomínia!
Que mistério haveria em tudo aquilo? Por que não se teriam eles
declarado e unido se eram ambos livres?! Começava a duvidar da honestidade
da mãe; queria-a toda voltada para aquele que a amara, leal, exclusivamente!

A confissão de Ernestina fora até a brutalidade. Para que desvendar-lhe
as queixas e antipatias de Luciano? Não precisava disso para compreender
agora tudo: a retirada do luto antes do tempo… a história do retrato…
o seu afastamento para Friburgo… os gestos e conversas com que procuravam
livrar-se dela… Lamentava ter vazado a sua alma no coração
de Luciano naquela terrível noite do baile. O seu amor transformara-se
subitamente em ódio: Execrava Luciano, não compreendia mesmo
como o tivesse amado! E amara-o talvez por tanto ouvir falar dele; à
força de vê-lo na intimidade da casa, de respirar aquela atmosfera
em que o nome dele, o gosto dele, a ida dele pareciam impregnar-se; fora talvez
por ter sido tratada por ele com pouca atenção… Nascera esse
amor do ressentimento, morria na raiva!

Sara começou depois a passear pelo quarto, mordendo as mãos,
sacudindo os ombros em movimentos fortes, sobressaltada, coberta de vergonha
só com a idéia de que Luciano adivinhara o seu primeiro amor!
Que a vira chorar, que demorara nas suas pupilas enternecidas os olhos pérfidos,
que lhe apertara as mãos com modo enamorado, sentindo-a dele… toda
dele! Revia tudo: as vozes… as luzes… o mar… as flores… o seu nome
suspirado por ele num enlevo… aquele perfume, aqueles batimentos de coração…
aquele despertar no amor, que a comovera tanto!

Enganada, enganada! Pensava ela com asco de si mesma, como se tivesse sido
um crime a sua credulidade. A mãe tinha-lhe mentido. Tinham-lhe mentido
todos que a rodeavam!

Começava a odiar toda a gente.

De repente estacou; a visita do Rosas ocorreu-lhe como a lembrança
da maior ignomínia de toda a sua vida. E a mãe, que a tinha
deixado sofrer tanto.

Pensou logo que Ernestina já não a amasse. Cuidou mesmo que
ela talvez desejasse a sua morte…

O calor sufocava-a. Sentia um novelo na garganta, que lhe tapava o ar. Foi
ao lavatório, encharcou a toalha de rosto na água do jarro e
envolveu-se nela.

Nisso a Simplícia passou rente à janela cantando, em um disfarce,
para ver o que se passava lá dentro do quarto da moça. Sara
retraiu-se, envergonhada, lembrando-se de frases da mulata, percebendo a sua
curiosidade.

Toda a gente sabia do amor da viúva por Luciano, só ela ignorara
tudo! Simplícia, voltou, ondulando o seu corpo de cobra em movimentos
preguiçosos, cantarolando entre dentes.

Era demais! Sara fechou violentamente as venezianas e recomeçou agitadíssima
a passear de um lado para outro.

Até as negras de casa queriam vigiá-la!

Supôs que tivesse sido aquilo mandado pela mãe, e rasgou-lhe
o retrato num ímpeto, arrancando-o da sua cabeceira onde ele sorria
junto do retrato do esposo!… Depois atirou ao chão a fotografia despedaçada,
e voltou-se religiosamente para o retrato do pai.

Amava-o mais do que nunca! Beijou-o, disse-lhe baixinho tudo que ia voando
pela sua imaginação…

Queria vingar-se e vingá-lo, remir os beijos que a mal lhe dera, pensando
no outro; fazê-los amargar aquele crime; aniquilá-los entre as
suas mãos frágeis. A vergonha de ter amado Luciano, de lhe ter
demonstrado o seu amor nascente, punha-a vermelha trêmula, excitada.
Como podia isso ter sido, santo Deus? Agora chamava-lhe miserável,
cão, cão!

Teve vontade de socorrer-se em alguém, e achava-se só no mundo,
completamente só!

Sara pestanejava, sentindo nas pupilas secas uma impressão dolorosa,
como se as tivessem polvilhado de areia quente. O sangue tingia-lhe todo o
rosto de um rosado vivíssimo e ela apertava com as mãos geladas
as fontes palpitante. A toalha resvalara-lhe dos ombros para o chão,
e através do vestido molhado, via-se-lhe tremer a carne das costas
em convulsões repetidas. O pai olhava-a com o mesmo olhar mudo e frio.
A moça deitou-se abatida por uma vertigem que a sossegou momentaneamente.
Depois abriu os olhos para o teto nu. Voltou-lhe o conhecimento das coisas.
As lágrimas não vieram, mas veio a febre.

XVI

Eram 11 horas da noite; no quarto de Sara havia um rumor baixo do vozes e
um forte cheiro de mostarda com que sinapizavam a doente. A lamparina espalhava
uma claridade morna e discreta. No papel branco da parede o cortinado da cama
desenhava em sombras movediças as suas rosas, pâmpanos e fetos.
Sara estava ali deitada de costas no seu leito de virgem, com os olhos cerrados,
imóvel como a imagem de um túmulo. A mãe mudava-lhe os
sinapismos, ajoelhada no chão, com as mãos sumidas em baixo
dos lençóis, os olhos vermelhos, maltratados pelo choro.

O médico examinava com atenção o remédio acabado
de chegar da botica.

– Dêem-me uma luz pediu ele, impaciente, revirando entre os dedos magros
o frasco do xarope.

A Ana chegou uma vela, fazendo com a mão anteparo, para que a claridade
não batesse no rosto da doente.

– Erraram a fórmula! Erraram como burros! gritou o doutor lendo com
atenção o rótulo e mirando a cor opalizada do remédio,

Ernestina voltou-se; o médico abrira o frasco lambia a ponta do dedo
molhada no xarope.

– Peço remédio e mandam-me veneno, resmungou o médico
zangado, pousando o vidro sobre a cômoda.

– E agora? perguntou-lhe Ernestina.

– Agora é preciso mandar buscar outro.

– Chamem o João! Gritou a viúva para dentro.

O médico escreveu, exigindo que fossem a outra farmácia.

– Eu não quero que minha filha morra! gemeu Ernestina

– Não morrerá, descanse…

– Não me engana, doutor?!

– Estas doenças cerebrais são graves, gravíssimas…
mas espero que havemos de triunfar.

– Oh! O senhor não tem certeza!

– Sua filha tem um temperamento sangüíneo, muito forte… mas,
Senhor, que determinaria isto?!

Era a vigésima vez que ele fazia aquela pergunta. Ernestina suspirou,
muito opressa.

– Daqui a uma hora dê-lhe uma colher de xarope. Depois só o
calmante.

A viúva acompanhou o médico até a porta repetindo a
pergunta:

– Há perigo… há muito perigo?!

– Não posso dizer nada… por enquanto… respondeu o médico
embaraçado

Ernestina juntou as mãos, aflita.

– Amanhã deve apresentar melhoras… murmurou ele, procurando consolá-la.
Ele saiu, Ernestina voltou cambaleante para o quarto da filha.

Aproximou-se do leito; Sara tinha os olhos abertos, mas fixos, mudos.

– Meu amor… como estás?

Sara não se moveu. Ernestina recuou, chorando, para um recanto mais
sombrio do quarto.

Havia já muitos dias que aquilo era assim; dias e noites passadas
naquele canto, com as mãos nos joelhos e olhos na filha. De vez em
quando levantava-se; Sara gemia, ela ia arranjar-lhe a roupa, beijá-la,
pedir-lhe perdão, baixinho, com toda a humildade e ternura; sem obter
nenhum olhar em resposta, voltava para o seu canto, lugubremente. Rezava então
de um modo desordenado e aflito, encolhendo-se na cadeira, com verdadeiro
pavor do retrato do marido que continuava suspenso sobre a cabeceira da cama,
e que parecia estar ali para proteger a filha e argüir terrivelmente
a esposa. A viúva via incessantemente esta pergunta atroz nos olhos
dele:

– Que fizeste de nossa filha?

Sara balançava-se entre a vida e a morte. A mãe não
sabia de mais nada; estava sempre ali sem dormir, sem se despir, quase sem
comer, com o rosto transformado, o cabelo em desalinho, os lábios a
murmurarem preces e promessas:

– "Meu Deus! se salvares minha filha eu vestirei dez órfãos
pobres e dar-lhes-ei educação…

Virgem Maria! se deres saúde à minha filha eu irei descalça,
como a mais humilde e pobre das criaturas, angariar esmolas para os velhinhos
fracos e aleijados!…"

Ao médico ela suplicava, de joelhos; que lhe salvasse a filha, prometendo-lhe
fortunas e coisas impossíveis!

Quando a noite chegava, era horrível! Via-se sozinha; a filha parecia-lhe,
às vezes, moribunda, outras vezes morta.

Então tinha medo de se chegar à cama, arrastava-se de joelhos
e rezava ao retrato do marido como rezaria a uma imagem sagrada. Ela era a
culpada e tudo!

O remorso juntava-se à dor. Agora a sua felicidade seria ver Sara
feliz.

O seu amor era um crime! Pedia perdão a Deus, prometendo-lhe altares
de ouro se ele salvasse Sara!

Naquela noite Ernestina estava mais agitada do que nunca. O cansaço
físico juntava-se à fadiga e tortura moral. Ela revoltava-se
contra o corpo, sentindo por vezes vacilar-lhe a vista e a razão.

No silêncio profundo da noite, a badalada da uma hora soou como um
grande suspiro de agonia. Ernestina levantou-se e foi direita à cômoda.

O médico tinha recomendado vigilância e extrema pontualidade
nas horas do remédio… Ela tomou o vidro por onde o remédio
coava uma boa cor opalina e aproximou-se do leito. Sara tinha os olhos abertos,
mas como se não vissem; a mãe agitou-a, ela moveu a cabeça
com um gemido… Ernestina chegou lhe a colher à boca, a moça
cerrou apertadamente os lábios. Foi então uma luta até
que a mãe forçou-a, batendo-lhe com a colher nos dentes, a tomar
o remédio; chegava a ser brutal, mas queria a todo o custo a salvação
da filha! Sara não pôde engolir o xarope, gorgolejou-lhe na boca
e saiu espumante, escorrendo-lhe pelo queixo. Desesperada, Ernestina deu-lhe
outra colher e tapou-lhe depois rapidamente a boca, com a mão espalmada.
A doente engoliu com ruído, e ficou-se, como dantes, imóvel.
A viúva beijou-a devagar, como a pedir perdão por aquela violência,
e levantou-se; mas ao voltar-se estremeceu! Sobre a mesa de cabeceira estava
o outro vidro de xarope.

De repente lembrou-se de tudo e viu o seu erro. Enganara-se nos remédios.
Comparou os dois frascos, eram iguais no tamanho, eram quase iguais na cor…
mas num estaria talvez a salvação, no outro estava com certeza
a morte!

E fora a morte que ela levava à sua amada, à sua idolatrada
filha!

Ernestina correu para fora, gritando pelos criados: tornou depois a entrar
no quarto, e pareceu-lhe que as pupilas de Sara se tinham dilatado muito e
que na sua pele branca e pálida desabrochavam manchas violáceas.
Tornou a sair e foi bater com ambas as mãos na porta do quarto das
criadas, que já se vestiam estremunhadas e aflitas. Quis tornar para
o lado de Sara, não teve coragem e atirou-se para o jardim.

A casa do hortelão era ao fundo, meio encoberta pelos pés de
murta, ao lado da horta. Ernestina correu para lá, pisando nos canteiros,
colérica contra os espinhos das roseiras que a obrigavam a parar, prendendo-lhe
o vestido que ela estraçalhava.

O João acordou assustado, ouvindo a voz da patroa que lhe ordenava
de ir chamar o médico depressa, muito depressa. Ele respondeu que sim,
com a voz empastada, cheia de sono.

– Chame também um padre! Minha filha morre!

Ernestina voltou para dentro mais uma vez. Seguiu pelo corredor com as mãos
no ar, o peito arfante. Esbarrou na porta do quarto de Sara, sem forças
para entrar, com medo da morte. Esteve algum tempo inerte, encostada no umbral,
repetindo baixo, num tremor nervoso, matei rainha filha… matei minha filha…
matei minha filha… Espreitou de longe, por fim; criadas rodeavam a cama
de Sara. Lembrou-se de repente de ir buscar Luciano; Sara amava-o, só
ele a poderia salvar!

Seria o amor o Cristo que ressuscitasse aquele corpo exânime e que
fizesse erguerem-se, na miraculosa paz das almas satisfeitas, aquelas pálpebras
imóveis e aquela pálida cabeça de moribunda! Só
a amor teria o poder mágico de acordar aquela carne que nem os seus
beijos, nem as suas lágrimas faziam estremecer?

Ernestina saiu para a rua e correu pelo morro abaixo, num atordoamento. Ia
para buscar Luciano, o seu amado, o seu sonhado esposo, e dizer-lhe: confesse
o seu amor à minha filha e salve-a!

O caminho estava negro, a viúva sentia o vestido embaraçar-se-lhe
debaixo dos pés; tropeçava a miúdo, caiu uma vez; ergueu-se;
e foi seguindo.

Não levava nem chapéu nem xale, e o vestido leve, caseiro,
mal a resguardava da chuva que principiava a cair.

Uma patrulha cortou-lhe o caminho; ela disse-lhe, entre soluços: –
Vou buscar Luciano, minha filha morre! E com tal dor disse aquilo que a policia
deixou-a passar, através da noite, sozinha na sua angústia!

A chuva caía do céu enegrecido; as casas estavam fechadas e
mudas, as ruas solitárias; os lampiões de gás pareciam
tochas fúnebres, acesas de longe em longe e os passos da viúva
Simões soavam no meio daquilo tudo de uma maneira irregular, nervosa,
triste.

Chegou quase morta à rua do Riachuelo; encostou-se à parede
dum prédio, tateou a campainha elétrica e vibrou-a sem interrupção
até que lhe abriram a porta. Era a casa de Luciano; o criado reconheceu-a
logo e não pôde conter um murmúrio de espanto.

– A senhora aqui!… a estas horas! balbuciou ele.

Ernestina não respondeu; galgou os degraus e seguiu esbarrando nos
móveis e nas paredes até perto do quarto de Luciano, para onde
gritou com toda a sua alma, num último esforço:

– Luciano! Luciano! Matei minha filha! Salve minha filha!

Ernestina não pôde suster-se por mais tempo em pé. A
vista escureceu-se-lhe, os joelhos vergaram-se-lhe e ela caiu desmaiada.

Quando Luciano entrou na sala ela ainda estava estendida no chão.

O criado iluminava a cena, com os olhos espantados. Vendo o amo, perguntou
indeciso:

– Ela diz que matou a filha… quer o senhor que vá avisar a polícia?

– Quero que vás chamar um carro, oh burro! Pois não vês
que ela morre?

Luciano tinha chegado nesse dia da viagem a Minas, arranjada como pretexto
para adiar as explicações com o Eugênio Ribas. Nada sabia
acerca de Sara, temia escrever a Ernestina em quem pensava, quando longe,
como numa doce amiga de infância, e quando perto, no alvoroço
dos sentidos, como na mais desejável das amantes! Aquela mulher era
um enigma!

Desde os tempos antigos da sua primeira paixão, que ele lhe fugira
por medo!…

A beleza de Ernestina ela então de uma singularidade atormentadora!
Vira sempre nela a tentação da carne, chamando-a por isso de:
– virgem inconscientemente pecaminosa! Nunca lhe ocorrera dar-lhe uma flor.
Se pensava em presenteá-la, vinham-lhe à idéia pedrarias
caras, engastadas em metais rijos e vistosos.

A não ser como amante, lasciva e ardente, ele só podia conceber
Ernestina casar-se com um príncipe poderoso ou um desses homens fantásticos,
das lendas, que a vestisse de roupas suntuosíssimas e a fizesse servir
em baixela de ouro. Era a mulher destinada, pela sua formosura emocionadora,
ao luxo, à grandeza e ao amor!

Não que o seu rosto fosse de linhas puras, nem que as suas palavras
denunciassem a volúpia; aquele ardor, aquele domínio, vinham
da sua pele, do seu olhar, do seu porte e do seu sorriso.

Decorreram anos depois de tudo isso; agora ele sabia-a boa e honesta; a sua
vida de casada fora doce, invejável, simples, reta! Inda assim, era
sempre a mesma impressão esquisita, meramente sensual, que essa mulher
produzia nele!

Lamentava-se disso agora que, pela convivência, conhecia as maneiras
e idéias severas de Ernestina, sempre tão correta e tão
fria.

Aquela cena em casa da ama Josefa encheu-o de assombro e de piedade. Calculava
o sacrifício que teria custado à viúva o seu coquetismo
quase canalha.

Ernestina aí estava agora a seus pés, com o vestido sujo de
lama, o cabelo solto, os olhos dentro de um círculo negro.

Luciano, atônito, curvou-se para vê-la bem de perto.

O criado repetiu:

– O senhor fará o que entender… mas eu sempre achava bom avisar
a policia…

– Um carro, já disse! gritou Luciano com raiva; e enquanto o outro
saía a procurar um carro, ele fixava com susto a fisionomia da viúva.

– Que se teria passado? As hipóteses voavam-lhe doidamente pelo espírito.
Suspendeu a viúva, pô-la no sofá agitando-lhe a cabeça
numa almofada.

Julgava-a vítima de uma febre. Era delírio tudo aquilo: a sua
vinda e aquelas palavras horríveis que o tinham despertado de um modo
tão cruel.

– "Matei minha filha; salve minha filha!"

Luciano vestira um robe de chambre ao conhecer a voz de Ernestina, apressando-se
em vê-la: agora fazia rapidamente a sua toilette, com o ouvido à
escuta e o coração aos saltos.

Sara… Sara! Meu Deus! Que haveria de verdade em tudo isso? A ser delírio,
não teriam deixado a doente sair aquela hora… sozinha… Loucura?
Quem sabe?… Mas como? Por que teria enlouquecido Ernestina?… E no fundo
do seu espírito debatia-se o medo de que realmente a viúva tivesse
estrangulado a filha em um momento de ciúme…

Ao mesmo tempo a razão lembrava-lhe o amor daquela mãe, para
quem a filha era o símbolo da perfeição na terra, o inexaurível
manancial de todos os bens! Impressionado e perplexo, ele procurava às
vezes interrogar a viúva, mas curvava-se para ela, sem ânimo
de a despertar, abandonando-a naquela vertigem que a imobilizara completamente.

A chuva tinha engrossado e batia agora com força nos vidros da janela.

Luciano ia e vinha do quarto para a sala, esperando a todos os momentos o
carro, ansioso por sair e saber a verdade!

Mas o carro tardava e, acabada a sua toilette, ele iluminou a sala e sentou-se
em frente da viúva Simões. Que diferença. Ela parecia-lhe
muito mais morena; os cabelos caídos para os ombros davam-lhe um aspecto
de louca, e a sua boca, deliciosamente pequenina e vermelha, estava então
desbotada, entreaberta numa expressão de agonia.

Luciano, não tendo em casa éter, recorreu às essências,
mas vacilava se deveria ou não chamar a viúva à realidade
da vida. Julgou mais acertado levá-la assim, receando que lhe sobreviesse
uma crise violenta.

Pobre mulher! pensava Luciano com infinita tristeza. E sentia uma dor incompreensível,
que seria talvez o remorso, imaginando que no fundo a causa de tudo aquilo…
era ele!

XVII

As criadas tinham despertado nos gritos de Ernestina, mas quando saíram
do quarto já não a encontraram. Foram todas rodear o leito de
Sara, espavoridas sem atinar com o que fizessem.

A cozinheira tomou por fim o expediente de mandar o jardineiro chamar o padre
Anselmo. A moça estava nas últimas, afirmava ela. Saiu para
isso e encontrou o hortelão já na porta, acabando de enfiar
já as mangas da jaqueta.

– Seu João? Nhá Sara tá morrendo… vá chamá
o padre…

– A patroa já me disse…

A Benedita voltou chorosa para o lado da doente. O seu coração
sentia uma mágoa imensa por ver assim a sua sinhá moça,
que tantas vezes trouxera ao colo, quando pequenina!

O hortelão caminhava apressado sob a chuva miúda, que vinha
caindo como uma nuvem ligeira, na montanha.

– Se a menina morre, dizia ele consigo mesmo, eu saio da casa!…

Sara era adora pelos servos; não tendo de ordenar coisa alguma, ela
não se mostrava severa e intervinha muitas vezes nas zangas da mãe,
procurando desculpá-los.

Às vezes mesmo a moça ia ajudá-lo, de manhã cedo,
na cultura do jardim. Era trafega, alegre e robusta, gostava daqueles exercícios
ao sol; tinha os seus instrumentos e os seus canteiros, onde não consentia
que outras pessoas bulissem.

E depois que risadas, que alegres cantorias! Era extraordinária! Nem
ele nunca vira moça rica e de cidade ter tanto humor! E pensava:

"Ai! as belas manhãs!…, se elas não voltam mais… pobre
menina!"

Depois de ter batido à porta do medico, o jardineiro apressou-se a
ir chamar o sacerdote.

O padre Anselmo morava mais longe, numa casa rodeada de cães e de
roseiras bravas… Mas nem os espinhos das flores nem o latido dos cães
dissuadiam os crentes de o ir chamar a desoras. Sabiam todos que o padre Anselmo
não se negava a ninguém.

Rico ou pobre, que lhe importava! Era uma a salvar, e ele ia sempre! A chuva
tinha apertado. Os dois homens caminhavam depressa, os seus vultos manchavam
ainda de mais negro a escuridão da noite, que nenhuma bulha de vida
perturbava. Somente ao longe a água do aqueduto rumoreja uns soluços
surdos, que o jardineiro maldizia, trazendo-lhe à mente o estertor
de um moribundo…

O seu pavor por vezes era tamanho que ele, o trabalhador da terra, forte
e rude, tinha ímpetos de se agarrar à batina e ao manto negro
e flutuante do padre!

– Está aí o carro, disse o criado a Luciano; e quis logo narrar
a grande dificuldade que tivera para obter uma caleça, àquela
hora; mas o amo sem lhe dar atenção ordenou-lhe que o ajudasse
a transportar a doente.

Ernestina ia desacordada, ele sentia-a nos braços, como morta.

O cocheiro, receando talvez ser cúmplice involuntário num crime,
veio, antes de subir para a boléia, examinar de perto a moça,
e foi depois para o seu posto resmungando baixo. Seguiram. A chuva diminuiu
pouco a pouco; poder-se-iam por fim contar as gotas que soavam como pancadas
dadas compassadamente com as pontas dos dedos na coberta do carro.

Ernestina continuava insensível a tudo; ia com a cabeça deitada
no peito de Luciano, os pés pousados no banco fronteiro. Ele amparava-a
com desvelo, levando através da noite imaculada e só, a sua
desejada amante. De vez em quando ao passarem por algum lampião de
gás, a luz vinha amarelada e frouxa, iluminar a cabeça desfalecida
da viúva.

Luciano contemplava atônito; parecia-lhe incrível que se envelhecesse
tão depressa! Havia menos de um mês que não via Ernestina;
deixara-a fresca, louçã, tentadora, vinha encontrá-la
amolecida, pálida, cheia de cabelos brancos. Uma grande piedade substituía
agora o seu amor tempestuoso e antigo. Um filho não teria carinho mais
doce nem mais respeitoso para sua mãe!

Quando chegaram ao portão do jardim, Ernestina voltara a si. O cocheiro
desceu da boléia e abriu a portinhola, sacudindo barulhentamente a
água que lhe escorria do capote de borracha. A noite estava ainda trevosa;
dentro, através das grades, viam-se as janelas do chalet, cujos vidros,
molhados, coavam uma luz pálida e triste. Luciano ajudou Ernestina
a apear-se.

O carro voltou, enterrando as rodas na lama, com uma bulha surda. A viúva
Simões mal se podia arrastar, e a travessia do jardim foi vagarosa;
em torno deles as flores, abafadas pela chuva, tinham um aroma discreto e
vago. Uma ou outra gota de chuva, retida nas folhas e despenhada agora das
árvores, caía como uma lágrima fria sobre a cabeça
nua de Ernestina. Ela lá não podia mover as pernas; um grande
peso paralisava-lhe as forças; a voz sumiu-se-lhe também e de
tal jeito que só pôde acenar com a mão a Luciano, que
fosse depressa e que a deixasse ali.

Luciano tremia, estava perplexo, apreensivo; as suas suposições
haviam-se dissipado logo que ao chegar ao portão da chácara
não vira Sara, como esperava, correr para a mãe doente.

O silêncio daquela casa iluminada encheu-o de pavor e sentia, instintivamente,
repulsão por aquela mulher que ia conduzindo com tanta solicitude!

Sentia ainda ferir-lhe os ouvidos o seu grito terrível:

– Luciano! Luciano! Matei minha filha! Salve minha filha!

Nesse instante, manchando o corredor coma sua ampla batina negra, ele viu
o padre Anselmo dirigir-se para o quarto de Sara. Ao mesmo tempo rompeu ali
de dentro um soluço que ondulou dolorosamente pelo ar silencioso da
noite, fincando-se-lhe no coração como uma dor atrocíssima.

– Então é verdade!? gritou Luciano sacudindo Ernestina.

– É… disse ela por entre os dentes cerrados, com m olhar de susto.

Num grande desvairamento, Luciano galgou de um pulo os poucos degraus do
terraço, deixando a viúva fora sozinha. Outro soluço
mais brando choroso, voou pela noite negra.

Ernestina deu alguns passos. cambaleante, até que sem forças
caiu de joelhos, erguendo as mãos unidas para o céu impiedoso.

Ela também tinha reconhecido o padre; aquela batina preta passando
rápida, de uma porta a outra porta, como que lhe dissera alto e de
longe: acabou-se!

Dentro, havia um rumor abalado de vozes, e um crepitar de luzes, talvez das
velas de cera alumiadas junto ao cadáver… E cá fora nem uma
luz; tudo preto; água correndo pelos declives da montanha, nada mais.

Ernestina já não rezava, nem o seu espírito sabia formular,
nem os seus lábios articular palavras. Encolhida, de joelhos na areia
molhada; ela afundava o olhar pelo corredor, agarrando-se as grades do terraço,
e empapando a cabeça nas trepadeiras alagadas…

Subitamente, uma voz desconhecida disse alto, lá de dentro:

– Muito depressa! – e ela viu o jardineiro vir correndo pelo corredor e sair.

– Que seria?! Teve desejo de o segurar em ambas as mãos, de lhe perguntar
se a sua filha adorada era viva ou morta… mas não pôde mover-se,
e ele, como a não visse… passou.

Ernestina então deixou-se cair sentada, com as mãos espalmadas
no chão e o pescoço dobrado sobre a espinha. A chuva recomeçava
em pingos grossos que lhe caíam nos olhos abertos, no queixo, ora um…
ora outro… ora dois a um tempo.

Queria ir ver a filha, beijá-la, suplicar-lhe que vivesse, que vivesse,
que vivesse! Mas eram inúteis os seus tremendos esforços para
levantar-se, subir os degraus e ir ao quarto de Sara.

Sentia-se presa à terra; já não era uma mulher, mas
como que uma planta, nascida para o sofrimento e por isso mesmo valentemente
enraizada no chão.

Quando Luciano entrou no quarto de Sara viu o padre Anselmo de pé
junto do leito, com uma das mãos estendida sobre a cabeça da
moça numa atitude de benção.

A fronte do velho erguida, os olhos úmidos e levantados, os lábios
movendo-se numa oração compenetrada, baixa e fervorosa, tinham
uma doçura solene em que a piedade humana se misturava com a austeridade
religiosa. O homem nele sofria uma revolta contra a natureza, por que morrer
uma mulher tão jovem; o padre porém congratulava-se com o céu,
que ia receber no seu seio límpido uma virgem pura!

Luciano ficou preso àquele leito, numa mudez gelada, olhos fixos em
Sara, por quem sentia agora recrudescer o seu amor. Amava-a sim, com intensidade!
As lágrimas rebentavam-lhe dos olhos celeremente. A Benedita soluçava
alto, de vez em quando, e aqueles soluços revolviam-lhe n’alma toda
a sua ternura. Atrás dele, o médico escrevia; mas no seu desespero
Luciano nem reparava nele; todo o seu sentido estava nessa cama estreita,
branca, revolta, onde, como uma estátua, pesada e rígida, Sara
parecia dormir! Morta não estava! Ele via-lhe o peito abaixar-se e
erguer-se numa respiração custosa, como se aquele resto de vida
lhe pesasse sobre o coração.

A doente tinha as feições alteradas, o rosto lívido,
manchado de escuro, os lábios entumecidos e as pálpebras roxas.

Luciano quis beijá-la na testa, o padre Anselmo desviou-o com austeridade.

A pena do médico rangia no papel, e as criadas, agrupadas aos pés
da cama, esperavam as ordens, olhando com tristeza para a moça. Benedita
chorava sempre alto, e o padre compadecido, disse-lhe com voz doce e triste:

– Espere! Ela talvez não morra… a misericórdia de Deus é
infinita!

O médico postou-se novamente à cabeceira da doente.

Luciano, vendo-o, contou-lhe o que ouvira de Ernestina, baixo e precipitadamente.
Que seria aquilo, um envenenamento?!

– Não!… houve um engano de remédio, nada mais. Percebi, logo
que entrei, do que se tratava, vendo à cabeceira da doente o frasco
que eu já tinha posto de parte, por terem errado a fórmula…
mas não era caso de matar… mormente em dose pequena… Não
foi isso que determinou o acesso!

– Mas há esperança?

– Nenhuma…

Luciano estremeceu e um suor frio inundou-lhe a testa.

– Isto é… acudiu o médico, quem sabe? não será
a primeira que eu veja ressuscitar… Estas doenças de cabeça
são terríveis.

– Ah… ela foi atacada…

– De uma febre cerebral.

– Meu Deus!…

– Às vezes, é melhor morrer, concluiu o medo abaixando-se para
examinar o rosto de Sara.

O médico empregava a atividade de toda a gente da casa; as criadas
iam e vinham, aquecendo água, transportando roupas, luzes, receitas,
acudindo sem cansaço a todos os chamados, com boa vontade e ligeireza.

Entretanto o padre Anselmo perguntava por Ernestina. Até aí
tanto ele como o médico tinham-na julgado recolhida, propositalmente
afastada da filha, e poupavam-lhe a agonia de a ver morrer. Agora porém
o caso era outro, desde que Luciano narrara a ida da viúva a sua casa.

– Mas então onde está ela? perguntava o padre.

Ninguém sabia responder, percorreram a casa inutilmente.

– Veio comigo, afirmava Luciano; entramos juntos!… Mas Luciano não
se arredava do leito de Sara, não se lembrava de mais nada, repetia
maquinalmente aquilo – veio comigo, entramos juntos! – sem interesse, sem
preocupação, entregue à sua surpresa, com os olhos fitos
em Sara, esperando a morte!

O padre estremecia; vinham-lhe à idéia os despenhadeiros do
morro, onde Ernestina fosse talvez pedir o esquecimento da dor que a pungia.

Chamou então o jardineiro e saíram ambos.

As sombras da noite iam-se dissipando. A dois passos da porta o padre distinguiu
alguém deitado sobre a grama; aproximou-se abaixando-se, apalpou Ernestina.

– Ajude-me a levá-la para dentro, disse ele ao jardineiro.

E ergueram a viúva que estava alagada e fria.

– Pobre mãe!… repetia o bom velho, comovido. Dentro recomendou às
criadas que lhe mudassem roupa e friccionassem o corpo. Feito isso, ele entrou
no quarto e sentou-se ao pé do leito.

Ernestina abriu os olhos e, de repente, espavorida com a lembrança
da filha perguntou:

– Morreu?

– Não morrerá, tenha esperança!… respondeu-lhe o padre.

No entorpecimento da sua terrível dor, Ernestina não pareceu
alegrar-se; deixou-se cair sobre os travesseiros e adormeceu profundamente.

XVIII

Quando Ernestina acordou era dia. Quis mover-se, não pôde. A
cabeça ardia-lhe, muito pesada e dorida, tinha o rosto vermelho e uma
dor no peito que a não deixava respirar. O médico foi vê-la,
assegurou-lhe que Sara não morreria, consolando-a muito. Ela quis contar
a história toda como confundira os remédios e o seu desatino
depois. Ele fê-la calar-se, percebera a verdade vendo os dois frascos
juntos e abertos… providenciara a tempo.

Tudo ia bem.

Tudo ia bem!… Entretanto, numa ocasião ela teve medo que a enganassem
e saltou da cama descalça, com a camisa aberta no peito e os cabelos
soltos; atravessou a sala sem que a vissem, passou pelo corredor onde circulava
livremente o ar, e abriu de mansinho a porta do quarto de Sara, com um medo
terrível de o ir encontrar vazio… mas não; Sara dormia numa
atitude serena, e, a seus pés, de costas para a porta, estava Luciano.

Ernestina voltou para o seu quarto, sem desgosto, sem alegria, impassível
como se tudo aquilo fosse esperado!

Sentou-se na cama com os pés nus sobre o tapete, as mãos caídas
nos joelhos, e assim ficou algum tempo, com os olhos fixos no reposteiro da
porta, sem pestanejar, imóvel, abstrata. A pouco e pouco a respiração
foi-se tornando mais difícil e o corpo, vencido, caiu pesadamente sobre
os travesseiros. Recrudesceram-lhe as dores e a febre. Pelas faces, muito
vermelhas, rolavam lágrimas grossas e ardentes, e ela mal podia respirar,
sentindo uma pontada violenta no peito.

Luciano entrava a medo no quarto da viúva, esperando sempre uma recriminação,
temendo também exacerbar-lhe o mal. A sua consciência não
o deixava à vontade entre aquelas duas mulheres enfermas. Entretanto
não se afastava dali. Daquela casa.

Sara não o tinha percebido ainda; a viúva não falava
a ninguém. Como o médico exigisse enfermeiras, ele julgou dever
avisar a mulher do Nunes e a ama Josefa.

Georgina passava também agora os dias e as noites no quarto da amiga.
Desenvolvera uma atividade de que ninguém a julgara capaz. Era enérgica,
movia sem cansaço o seu corpo franzino; com as mãos ágeis,
os passos leves, o ouvido atento e o seu belo olhar de gazela, tão
vivo e tão meigo, a sondar a doente, buscando uma esperança
que não aparecia!

Ah, ela compreendeu a verdade sem ouvir explicações! O amor
de Ernestina por Luciano não fora nunca um segredo para ela; a sua
perspicácia adivinhara-o logo. Percebendo mais tarde que, por sua vez
Sara o adorava, esperou com curiosidade e medo o desfecho daquela história.

Ele aí estava, e bem triste!

A D. Candinha Nunes mudou-se também para Santa Tereza e era quem determinava
tudo, assídua, solícita e animada. Entrava pouco nos quartos
das doentes, mas preparava-lhes lá dentro os caldos, o leite, o gelo,
as roupas e ordenava o silêncio entre as criadas que; a um gesto seu,
suspendiam o mínimo rumor.

À cabeceira da viúva Simões estava a Josefa sentada
em um banquinho, com as mãos descansadas no colo e o queixo erguido
para a cama. De vez em quando cochilava, e então o queixo, quadrado
e forte, batia-lhe no peito ossudo, ela despertava com vexame, olhando em
roda, observando se a tinham visto, receosa de um olhar de censura. Mas, nada.
A viúva tinha os olhos fechados ou postos no teto, as mãos sumidas
nas dobras do linho, os lábios silenciosos.

Pelas janelas cerradas o sol encrava em fisgas; a não ser o tic-tac
do relógio, só se ouvia o voar das moscas na sua bulha quase
imperceptível e vaga. Josefa para justificar a sua estada ali, erguia-se
de vez em quando, alisava o lençol da doente e perguntava-lhe:

– Quer alguma coisa?

A viúva respondia com um gesto que não; a maior parte das vezes
nem assim mesmo respondia, quedava-se imóvel, e a Josefa tornava para
o banquinho, com um suspiro de cansaço ao corpo moído daquela
indolência. E as horas iam passando; o sol abrandava a sua luz amarela,
recolhia pouco a pouco as fitas de ouro, que estendera através das
venezianas cerradas. Caía a tarde e o silêncio continuava, triste
e profundo.

D. Candinha ia de hora em hora dar o remédio, recomendando sempre
à Josefa que a avisasse se houvesse alguma falta. Às vezes,
de longe em longe, a pobre mulher pedia à moça que ficasse ali
um minuto; ela voltaria depressa.

Saía; e, logo fora da porta, respirava com força, sacudia as
saias e andava com passos largos, desentorpecendo-se. Ia ao quintal girar
um pouco, colhia um raminho de mangerona ou de hortelã e entrava na
cozinha mastigando as folhas e pedindo um caldo.

Tornava o alimento à pressa, lamentando não poder saboreá-lo.
Em verdade o que ela saboreava mais não era a sopa, era a liberdade,
era a janela francamente aberta, a variedade das caras e a variedade das coisas,
a ausência do quarto de doente, com o seu cheiro enjoativo de remédios,
cortinas descidas e o relógio estúpido, a dizer sobre a cômoda
sempre o mesmo: tic, tac, tic, tac tic, tac!

Mas outras vizinhas vieram, boas, cuidadosas e, apesar de tudo, a Josefa,
como um cão de guarda passava os dias sentada no banquinho, olhando
para a viúva, cansada, triste esperando pelas horas da refeição
para ir gozar lá fora, sob esse pretexto, o ar, a luz e a palestra.

– Tomara já que isto acabe! pensava ela, que Iaiá fique boa
e Sarinha também. Ave Maria! Como estarão os meus cacos em S.
Cristóvão!

A visão da casa atormentava-a muito. Via as baratas passeando sobre
os pratos da marmelada, feitos para quitanda, na manhã da subida para
Santa Tereza; lembrava-se de ter deixado fora do quarto, pendurado, à
toa, o seu melhor vestido e parecia-lhe sentir o ruído dos dentinhos
dos ratos nas roupas dos fregueses… Credo! Calculava os prejuízos,
somava pelos dedos o que teria de pagar a um e a outro, e pasmava diante das
cifras que se desenhavam em seu espírito em proporções
enormes!

Uma noite, a Josefa teve um sonho que a decidiu a abandonar a doente por
algum tempo.

Sonhou que o seu adorado S. Sebastião, furioso por ver apagada a lamparina
com que ela, cuidadosa, religiosamente, o alumiava no seu oratório
dia e noite, entrara a desfechar-lhe nos olhos todas as setas do seu bendito
corpo.

– Perdão! gemia a pobre; mas o santo não lhe perdoava.

Quando Josefa acordou sentiu dor nos olhos… aquilo tornou-a apreensiva.
Foi ao espelho; os olhos estavam vermelhos!

– Uê! Gente! Isto é aviso do Céu! Eu vou logo a S. Cristóvão!

Ao meio-dia vestiu o seu vestido de merino preto, pôs o seu velho toucado
de vidrilhos e flores roxas e dispôs-se a sair.

Estava toda a casa silenciosa. A viúva dormia e a mãe de Georgina
fazia-lhe quarto. Josefa atravessou a sala de jantar em bicos de pés
e entrou no corredor. Ao fundo, a porta do jardim atraia-a, muito aberta,
como um quadro de luz; e ela seguia com passos miúdos, segurando na
mão a bolsinha de couro que não deixava nunca, quando de repente
um grito agudo feriu o ar e o silêncio da casa. Josefa estacou.

Deus do céu! Que teria sido!? Houve uma pausa; correram minutos…
outro grito igual e estrídulo partiu do quarto de Sara. Josefa voltou
depressa para o quarto da moça.

– Que foi?!

Georgina levantou para ela os olhos chorosos, D.Candinha, mais calma, respondeu-lhe
sem olhar para ela, fixando a doente:

– Foi a morte, Josefa! Sara está perdida!…

Josefa caiu de joelhos e pôs as mãos, Georgina imitou-a, sem
saber como, e ambas rezaram silenciosas, chorando.

Ambas rezaram, ambas fizeram promessas, e quando se levantaram abraçaram-se,
sem saber como, sem saber porque!

XIX

Tomavam-se precauções para que os gritos de Sara não
chegassem ao quarto da mãe; entretanto a viúva Simões
ouviu-os e perguntou por eles uma vez.

– São as crianças do vizinho; respondeu-lhe D. Candinha, trocando
depois um olhar de inteligência com a Josefa, que se agachara no seu
posto, com o queixo erguido para a cama.

A pobre mulher desistira da ida à casa. Baratas e ratos que andassem
por lá à vontade. Já não temia coisa alguma.

– Olhe que você ainda está de chapéu!… avisou D. Candinha.

Josefa elevou as mãos grossas à altura das flores roxas do
toucado:

– Vê! Por isso é que tenho dor de cabeça… – murmurou
ela.

Mudara de vestido, estava agora de chita; com uma saia e um casaco da cozinheira.
O toucado dava-lhe ares de macaco velho, desconfiado, ainda não acertado
ao ritmo do realejo.

– Vá descansar! disse-lhe D. Candinha.

– Não; fico. E agora já não tenho sono… já
não tenho nada…

E os seu olhinhos castanhos encheram-se de lágrimas.

Entretanto, no quarto de Sara, Luciano e Georgina conversavam acerca da doente:

– Tem reparado numa coisa? perguntou ele.

– Em que?

– Nos raros momentos em que Sara parecia melhorar, mostrava-se aflita com
a minha presença!…

– É verdade…

– Notou também isso?

– Notei.

– Julguei que pudesse ser uma ilusão minha…

– Não foi. Sara quando o viu e o reconheceu teve um grande abalo;
tornou-se roxa; não viu como ela fechou apertadamente os olhos?

– Porque me odiará ela?

– Ainda o senhor pergunta?

Georgina agravava os remorsos de Luciano, vingando a amiga. Outras vezes
falavam-se como irmãos, elogiando Sara, recordando em comum os seus
gestos e os seus ditos, como se tratassem de uma morta.

O arrependimento de Luciano crescia, à vista da doente. Já
nada esperava, não podia à força de amor resgatar culpas
as antigas… Todas as noites saía daquela casa pensando em não
voltar… que ia fazer ali, entre duas mulheres, vítimas do seu capricho
de homem gasto pelos prazeres e pelas dores da vida? Ele não era mau
afinal… como se tinha deixado levar tão levianamente, em tudo aquilo?!
Julgara talvez todas as mulheres iguais… Habituara-se à vida frívola
longe da família, do meio de que se afastara para correr boemiamente,
alegremente, dos salões fáceis para os cafés, e os teatros,
sem afeições sérias, sem preocupações,
sem trabalho, gastando as forças e adquirindo vícios.

Depois toda aquela história tinha começado como uma simples
flirtation leve e risonha… Este desenlace agora enchia-o de pavor e procurava
salvar a sua consciência sem encontrar auxílio… Outras vezes
exagerava as suas faltas, revolvendo idéias, penitenciando o seu espírito
decaído…

Os médicos faziam repetidas visitas ao dia; as enfermeiras eram incansáveis
e o tempo ia cada vez mais azul e formoso. Luciano subia todas as tardes,
ficava até meia-noite e descia atormentado, sozinho, dizendo consigo
que estava tudo acabado, bem acabado…

Entretanto a viúva chorava e teimava por sair da cama. Queria ver
a filha, pressentia alguma coisa, dizia às vezes que a enganavam. Sara
estava morta… Outras cismava com aquele rumor estranho que se fazia em toda
a casa, e em que o nome de Sara parecia sussurrado continuamente…

Médicos e enfermeiros prolongaram aquele estado negando-lhe autorização
para erguer-se.

Os gritos de Sara tinham cessado, a casa voltara ao anterior silêncio.
Uma vez a viúva viu, através das pálpebras, no levíssimo
sono dos convalescentes, entrar D. Candinha e dirigir-se à Josefa,
que estava a cochilar no seu canto. A moça curvou-se para a velha,
e, entre ambas, Ernestina distinguiu no ar, sutilmente estas palavras:

– … Sara…

– Que me diz, senhora?

– Psiu!…

Saíram ambas, cautelosamente. A viúva Simões sentou-se
de um salto e prestou o ouvido. Pareceu-lhe sentir um choro abafado, afastou
desvairadamente as roupas da cama e ergueu-se do leito sempre escutando, trêmula,
com os cabelos desgrenhados sobre os ombros magros e as pernas finas desenhadas
no linho da camisola.

Entreabriu assim a porta e esgueirou-se a medo para o corredor:

Lá fora, na atmosfera suavemente morna, vagava o aroma das flores
de laranjeira. Ernestina teve uma vertigem. A luz cegou-a, o aroma entonteceu-a.
Encostou-se ao umbral. Não passava ninguém, a casa parecia deserta;
a viúva recobrou alento e atravessou o corredor, descalça, com
os artelhos nus, pensando em ir encontrar a filha amortalhada, no cetim branco
das esponsais, com a grinalda de virgem e o véu castíssimo esparso
em ondas sobre as suas opulentas tranças loiras…

Foi desse modo, sem ser pressentida, até ao quarto de vestir da filha,
e, sempre muda e atenta, aproximou-se da alcova. Dali não podia ver
Sara, encoberta pelas costas e o cortinado do leito. Tinha ainda medo… medo
de entrar naquele quarto… medo de se aproximar da filha! Junto à
mesa, de que só via um ângulo, estava sentado um homem; divisava-lhe
a orla das calças cinzentas e os pés que se moviam nervosamente.

Georgina olhava para fora, com o rosto unido aos vidros. O seu corpo de menina
tino e chato, ondulava com o esforço da respiração, e
os cotovelos pontudos, erguidos à altura das orelhas, que as mãos
cruzadas sobre a nuca encobriam, faziam cismar no desejo das asas, asas que
se batessem pelo azul fora levando aquele coração de pomba para
bem longe das misérias da vida!

Perto da cama, D. Candinha e Josefa cochichavam, curvando-se para a doente.
Transparecia a dor no perfil de ambas.

Ernestina deu mais dois passes para diante.

D. Candina percebendo-a exclamou assustada:

– Olhem quem está ali!

Rodearam Ernestina; Josefa enrolou-a no seu xale, enquanto a viúva
perguntava baixinho à Georgina, apontando o leito:

– Morreu?!…

– Não… mas…

Como se aquelas palavras lhe tivessem insuflado nova vida, Ernestina desembaraçou-se
de todos, que procuravam retê-la, e correu para a cama.

Pararam os outros a vê-la silenciosos e opressos. D. Candinha cobriu-lhe
de novo os ombros com o xale, mas o xale resvalava para o chão. A viúva
curvada para a filha não dizia nada nem se movia tão pouco.
Olhava… olhava… olhava!

Sara tinha emagrecido muito e a sua cabeça, redonda e forte, parecia
desproporcionada agora emergindo de uns ombros estreitos, de criança.
Os olhos não tinham brilho, olhavam sem ver e a boca entreaberta enchia-se
de baba, que Georgina limpava de vez em quando, pacientemente.

A mãe parecia não compreender…

D. Candinha murmurou-lhe ao ouvido:

– Que é isso, Ernestina? Vá vestir-se! Luciano está
aqui…

– Que me importa! Sara? oh minha filha?

Sara voltou-se para a mãe e arrastou algumas sílabas embrulhadamente
que ninguém pôde entender!

Pouco a pouco a viúva foi percebendo a verdade; a filha não
morreria… mas estava idiota! Ao redor dela, todos calados esperavam uma
cena em que a dor explodisse em gritos, ou a abatesse num desmaio. Nada! A
viúva achava, apesar de tudo, uma consolação – a filha
vivia e, idiota embora, respirava, deixava-se beijar! Estava nisso o seu resto
de ventura materna!

De joelhos, perto da cama, esteve longo tempo a olhar, a olhar… Ergueu-se
com um suspiro e deixou que D. Candinha lhe vestisse um peignoir de lã;
atou ela mesma maquinalmente os cordões da cinta sem desviar os olhos
da filha.

Só depois de algum tempo foi que ela chorou, muito baixinho, embebendo
as lágrimas no lenço.

Luciano tinha-se afastado do quarto e passeava no jardim, fugindo aos olhos
de todos e à bulha atormentadora das vozes. Subia e descia pelas ruas
vagarosamente, parando às vezes para afastar com o pé uma folha
seca do caminho, ou para esmagar entre as unhas as pétalas leitosas
das flores das laranjeiras. Os galhos carregados das árvores desciam
muito e as formiguinhas passeavam pelos troncos apressadamente, carregando
folhinhas e salpicando de preto a brancura das folhas.

Luciano contemplava aquilo tudo sem pensar no que via, mas vendo, sem pensar
também em outra coisa. Cansado, subiu pelo pomar dando volta pela horta,
meio inculta agora e abandonada.

Por entre as largas folhas ásperas das abóboras que se alastravam
comendo vencedoramente a maior parte do terreno, erguiam-se os cálices
altos das flores na sua triunfante cor de ouro vivo. E ele notou com preguiça
o desleixo em que o João tinha agora a verdura, toda abafada pelo aboboral.
Afinal de contas, é sempre a força bruta que predomina em toda
a natureza. As flores delicadas e franzinas que nascem para o perfume, como
o coração da mulher para o amor, caem e morrem se não
lhes dão amparo doce e cuidadoso. Luciano continuou até acima,
à touceira de bambus, onde vira pela primeira vez Sara e Georgina com
outras amigas jogando o croquet. Parou aí um momento com a lembrança
daquele dia na memória. Teve saudades… Entrou depois no jardim e
viu logo ali perto duas saracuras brigando sobre a grama de um canteiro largo.
Ele chegou a sorrir, reparando para os meneios aqueles corpos delicados; uma
delas fez-lhe lembrar Georgina, na graça e na ligeireza. Subiu por
fim ao terraço e, exausto como se viesse de longas caminhadas, sentou-se
num banco, encostou a cabeça à parede e olhou para a frente.

A luz forte do sol envolvia tudo no seu manto glorioso e quente. O mar estendia-se
sereno, muito azul, limpo de barcos, beijando as fitas brancas das praias
longínquas e fronteiras. As montanhas recortavam no céu límpido
os seus enormes perfis bizarros num esbatimento de sombras e de luz. Embaixo,
no pitoresco outeiro da Glória tremulavam bandeiras de festa. Entre
a casaria da cidade, lá uma outra janela, batida de sol, despedia dos
vidros chamas de incêndio e repicavam os sinos e havia em tudo um ar
de alegria e de infinita doçura! Só ao longe, temível
no seu grandioso mistério, a Esfinge silenciosa mergulhava parte do
seu corpo de montanhas na água profunda, erguendo para o alto espaço
a sua fronte rochosa e altiva!

Luciano quedou-se ali longo tempo, ora com os olhos fitos nos galhardetes
da igreja, ora nas fortalezas silenciosas, ou nos despenhadeiros do morro,
onde as paineiras abriam, em sorrisos cor de rosa, as suas grandes flores.

Concluindo uma série de reflexões quaisquer, Luciano murmurou
a meia-voz, levantando-se:

– Decididamente hei de morrer solteiro…

– Está falando sozinho? perguntou-lhe D. Candinha, que havia chegado
sem ser pressentida.

– Falei alto? Não admira, estou meio maluco…. respondeu ele sorrindo.

– É preciso cuidado… as paredes têm ouvidos… e….

– Está tudo acabado…

– Para Ernestina e para Sara, com certeza.

– E para mim.

– Isso… duvido! Conheço os homens, as impressões neles não
duram como em nós… Mas, enfim, não é disso que se trata
agora. Vim procurá-lo para dizer-lhe adeus…

– Já?!

– De que se admira?

– Acho muito cedo…

– O senhor não se lembra de que sou casada e que de mais a mais hoje
é dia santo?

– Ser dia santo não é razão!…

-É. Imagine: devo ter a casa cheia de gente! Acostumei-me a fazer
dançar os sobrinhos nos dias feriados e tanto eles como os empregados
do Nunes contam com isso… Já que acudi as aflições
de uns, é justo que divirta os outros… Contudo, sr. egoísta,
repare bem: se vou embora é porque Ernestina tem uma coragem única.
Exigiu a minha retirada, bem como a de Georgina!

– Deveras! Está assim calma?

– Perfeitamente… Diz que o que temia era encontrar a filha morta… A pequena
conhece-a. Coitadas!

– Que futuro triste!

– Ora… a tudo a gente se acostuma! Adeus, vá ver-me de vez em quando.

– Consente que eu a acompanhe?

– Não. O senhor pode ser preciso aqui.

D. Candinha ajeitou o veuzinho preto sobre o seu rosto largo e desceu o jardim
calçando as luvas.

Luciano entrou. A Josefa esperava-o e disse-lhe logo que o viu, com um jeito
embaraçado:

– Não vá lá dentro…

– Por quê?

– Iaiá não quer…

– Ah… ela disse-lhe isso?…

– Disse…

Luciano parou indeciso, magoado, sem saber como falar a Ernestina, mas desejando
ardentemente vê-la e beijar-lhe a mão antes de sair. Respeitava-a
agora como a uma santa, amava-a com a ternura de um filho. A Josefa observava-o
com dó e com espanto, ele continuava perplexo diante dela.

– O senhor quer mesmo falar com Iaiá? rompeu ela.

– Sim, quero….

– Espere um pouco… Ela está sozinha. Georgina já foi para
casa… que moça boa! Eu fico morando aqui. Iaiá quer que eu
tome conta da casa… que hei de fazer? Olhe, eu ainda não disse nada;
mas a Simplícia fugiu com o Augusto esta madrugada e o pior é
que levou roupas finas e talheres de prata!… Que mulatinha levada! Aquilo
há de acabar rolando bêbada pelas ruas. A Ana já veio
me dizer que exige mais ordenado!… Ui!… agora esta história de
criadas é um inferno!

Luciano interrompeu-a com um gesto.

– Eu já volto, disse ela, e saiu. Ele ficou só, sentado no
sofá, embaixo do retrato do comendador Simões.

Passado algum tempo, a Josefa tornou pressurosa.

– Então?! Inquiriu Luciano.

– Iaiá não quer vê-lo e pede-lhe para não voltar
a esta casa.

Dias depois, a viúva Simões acompanhava com a vista, do seu
terraço de ladrilhos cor de rosa, um paquete transatlântico,
que demandava a barra, levando Luciano para a Europa.

O tempo estava esplêndido, de um azul glorioso, o mar desenrolava o
seu manto, sem rugas, com uma serenidade de sonho, e as flores desabrochavam
numa alegre ansiedade de luz e de vida, perfumando tudo…

Ao lado da mãe, numa cadeira de rodas, Sara, com o seu eterno e doloroso
sorriso, fazia e desmanchava a única coisa bela que lhe ficara: a sua
trança loura.

FIM

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