Vinte Mil Léguas Submarinas

 

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Júlio Verne

Primeira Parte

O HOMEM DAS ÁGUAS

Capítulo I

O ano de 1866 foi assinalado por um acontecimento estranho. Havia já
algum tempo que vários navios vinham encontrando nos mares “uma
coisa enorme”, um objeto comprido, em forma de fuso, às vezes
rodeado por uma espécie de fosforescência, muito mais corpulento
e rápido do que uma baleia. Os relatos sobre esses encontros, registrados
nos diários de bordo, coincidiam perfeitamente nos pormenores da estrutura
do objeto ou do ser em questão. Relatavam a espantosa mobilidade de
sua movimentação, a sua surpreendente força de deslocação
e falavam da vida especial de que ele parecia dotado.

Negociantes, armadores, capitães de navios, mestres e contramestres
da Europa e da América, oficiais das marinhas de guerra de todos os
países e os governantes das diversas nações dos dois
continentes, andavam seriamente preocupados com o fenômeno.

Que ele existia era um fato incontestável. Com o pendor do cérebro
humano para o maravilhoso, será fácil compreender-se a sensação
suscitada em todo o mundo por esse aparecimento sobrenatural.

A 20 de julho de 1866, o vapor “Governor Higginson” havia encontrado
o objeto em questão, a cinco milhas a leste das costas da Austrália.

A primeira vista o Capitão Baker julgou ver um escolho desconhecido.

Dispunha-se a determinar a sua situação exata, quando duas
colunas de água projetadas pelo inexplicável objeto, ergueram-se
nos ares a quase vinte metros de altura. Portanto, a menos que o escolho estivesse
sujeito às erupções intermitentes de um gêiser,
o “Governor Higginson” tinha-se encontrado com algum mamífero
aquático, até então desconhecido, que expelia pelas ventas
colunas de água misturada com vapor e ar. No dia 23 de julho do mesmo
ano, no Pacífico, foi observado fato semelhante pelo navio “Cristobal
Colon”.

Assim, este extraordinário cetáceo podia deslocar-se de um
sítio para o outro com uma velocidade surpreendente, uma vez que, com
um intervalo de dois dias os navios o tinham visto em dois pontos geográficos
afastados entre si mais de setecentas léguas marítimas.

Duas semanas depois, a duas mil léguas de distância, o “Helvetia”
e o “Shannon”, cruzando-se na zona do Atlântico compreendida
entre os Estados Unidos e a Europa, deram conhecimento um ao outro de terem
avistado o monstro a 42° 15′ de latitude norte e 60° 35′ de longitude
do meridiano de Greenwich. Através dessa observação simultânea,
foi possível avaliar o comprimento mínimo do mamífero
em mais de cento e seis metros, uma vez que o “Shannon” e o “Helvetia”
eram de dimensões inferiores a ele, embora medissem cem metros da proa
à popa.

Essas notícias chegadas seguidamente, mais as observações
feitas de bordo do transatlântico “Pereire”, um abalroamento
entre o “Etna” da linha Iseman e o monstro, além de um
relato verbal feito pelos oficiais da fragata francesa “Normandie”
e uma bem cuidada comprovação providenciada por oficiais do
Comodoro Fitzjames de bordo do “Lord Clyde”, abalaram profundamente
a opinião pública.

A 5 de março de 1867, o “Moravian”, da Montreal Ocean
Co., encontrando- se a 270 30′ de latitude e a 720 15′ de longitude, abalroou
por estibordo com um rochedo não assinalado em qualquer mapa daquelas
paragens. Com o esforço combinado do vento e dos seus quatrocentos
cavalos-vapor, ele avançava a uma velocidade de treze nós. Não
há dúvida de que se não fosse a qualidade superior do
seu casco, o “Moravian”, que foi arrombado com o choque, teria
sido engolido pelas águas com os seus duzentos e trinta e sete passageiros.

A 13 de abril de 1867, com o mar calmo e o vento propício, o “Escócia”
encontrava-se a 150 12′ de longitude e 45° 37′ de latitude. As quatro
horas e dezessete minutos da tarde, durante o lanche dos passageiros, sentiu-se
um choque ligeiro no casco do navio, de lado e um pouco atrás da roda
de bombordo. O “Escócia” não fora abalroado, mas
tinha sido tocado por um grande objeto cortante. A pancada fora tão
leve que ninguém a bordo se preocuparia se não fossem os gritos
dos marinheiros do porão, que subiram ao convés gritando que
o navio estava fazendo água.

A princípio os passageiros ficaram muito assustados, mas o Capitão
Anderson apressou-se a tranqüilizá-los, explicando-lhes que o
perigo não podia ser iminente. O “Escócia” estava
preparado para enfrentar um rombo no casco sem grande perigo de se afundar.
Continuou navegando e chegou ao porto de Liverpool com três dias de
atraso. Os engenheiros verificaram que a dois metros e meio abaixo da linha
de flutuação, abria-se um rombo em forma de triângulo
isósceles. O corte na chapa metálica era perfeitamente nítido
e não teria sido mais bem executado por um instrumento apropriado para
tal fim.

Esse acontecimento veio exaltar de novo a opinião pública.
Na verdade, a partir desses incidentes, todos os desastres marítimos
cujas causas se desconheciam passaram a ser atribuídos ao monstro.
As comunicações entre os diversos continentes tornaram-se cada
vez mais perigosas, levando o público a exigir categoricamente que
os mares fossem libertados a todo custo desse terrível cetáceo.

Capítulo II

Na época em que esses acontecimentos ocorreram, regressava eu de
uma expedição científica nas inóspitas terras
do Nebraska, nos Estados Unidos. Quando cheguei a Nova Iorque para embarcar
em um navio que me levasse para a Europa, a controversa questão estava
no auge.

A minha chegada, várias pessoas deram-me a honra de me consultar
sobre o fenômeno, em vista de uma obra que eu publicara na França,
intitulada “Os Mistérios dos Grandes Fundos Submarinos”.
O acontecimento passara a preocupar várias camadas da população
americana, e os Estados Unidos foi o primeiro país a adotar medidas
enérgicas, em nível de governo, para esclarecer o mistério.

A fragata “Abraham Lincoln”, moderna e muito rápida,
recebeu ordens para se fazer ao mar o mais depressa possível, com esse
objetivo. O Comandante Farragut reforçou o armamento de seu navio e
encheu de munição os seus arsenais.

Como sempre acontece, quando se decidiu, a perseguição ao
monstro, ele desapareceu. Durante dois meses ninguém ouviu falar dele.
A fragata armada e abastecida para uma campanha demorada, não tinha
para onde se dirigir. A impaciência crescia a bordo entre oficiais e
marinheiros, quando chegou a notícia de que um vapor da linha de São
Francisco da Califórnia tinha visto o animal nos limites sententrionais
do Pacífico. A sensação causada por essa noticia foi
grande.

Os víveres continuavam a bordo, os depósitos de carvão
estavam cheios e todos os homens se encontravam em seus postos. Só
faltava acender as caldeiras da fragata e levantar ferro. Em menos de vinte
e quatro horas o Capitão Farragut fazia-se ao mar.

Três horas antes da “Abraham Lincoln” deixar o cais do
Brooklyn, recebi uma carta do secretário da Marinha J. B. Hobson, que
em nome de seu governo, convidava-me para representar a França participando
daquela expedição.

Capítulo III

Três minutos depois de ter lido a carta do ilustre secretário
da Marinha, caçar aquele monstro inquietante e livrar os mares de sua
constante ameaça tornara-se o único objetivo de minha vida.
A oportunidade de participar daquela caçada me empolgou.

No entanto, eu estava cansado e precisando de repouso. O meu maior desejo
era rever o meu pais, os meus amigos, o meu pequeno apartamento do Jardim
Botânico, em Paris, as minhas preciosas coleções.

Mas nada me deteve. Esqueci tudo: fadigas, amigos, conforto, e aceitei,
sem mais reflexões, a oferta do governo americano.

– Conselho! – chamei com voz impaciente.

Conselho era o meu criado. Tratava-se de um rapaz dedicado que me acompanhava
em todas as minhas viagens, apto para todo o serviço e que, apesar
do seu nome, nunca dava conselhos mesmo quando não lhe eram pedidos.
Era uma excelente e honesta criatura.

– Conselho! – chamei-o de novo, começando os meus preparativos para
a viagem, com grande agitação – Prepare-se, meu rapaz, partimos
dentro de duas horas.

– Vamos para Paris? – perguntou ele.

– Sim… certamente… mas dando uma volta primeiro – respondi.

– Daremos a volta que o senhor quiser – concordou o criado.

– Não será uma grande volta. Trata-se de um caminho menos direto.

Vamos embarcar na “Abraham Lincoln”.

– Se é a sua decisão, para mim é a melhor, senhor –
disse ele.

– Vou lhe dizer a verdade, meu rapaz. Trata-se do monstro marinho.

Vamos livrar os mares da sua presença. O autor de uma obra importante,
sobre os “Mistérios dos Grandes Fundos Submarinos”, não
poderia deixar de embarcar com o Capitão Farragut. Missão gloriosa,
mas perigosa também. Não sabemos para onde vamos. Esses animais
são seres caprichosos. Mas, ainda assim, vamos. Temos um comandante
que não tem medo de nada.

– O que o senhor fizer eu também farei – disse ele.

Um quarto de hora depois as nossas malas estavam prontas. Em poucos minutos
chegávamos ao cais. As chaminés da “Abraham Lincoln”
soltavam na atmosfera torrentes de fumaça negra. Subimos a bordo e
um dos marinheiros conduziu-nos ao tombadilho. Conselho caminhou para a amurada
e eu fui levado à presença de um oficial de aspecto agradável,
que me estendeu a mão: – Sr. Pierre Aronnax? – perguntou-me.

– O próprio – respondi. – O Comandante Farragut? – Em pessoa. Seja
bem-vindo, Sr. Professor.

Após os cumprimentos de praxe deixei o capitão entregue ao
seu trabalho e me encaminhei para a cabina que me estava reservada. A arrumação
interior da fragata correspondia às suas qualidades náuticas.

Fiquei muito satisfeito com o meu alojamento, situado à ré
e comunicando- se com a sala dos oficiais. Deixei Conselho a arrumar convenientemente
as nossas coisas e subi à coberta a fim de assistir aos preparativos
da partida.

As oito horas da noite, navegávamos a todo vapor nas sombrias águas
do Atlântico.

Capítulo IV

O comandante Farragut era um marinheiro muito experiente, digno da fragata
que dirigia. Navio e comandante eram um só, sendo este a alma daquele.
Sobre a existência real do cetáceo gigante, o Comandante Farragut
não tinha a menor dúvida, e não permitia que os seus
homens pensassem diferente dele.

A tripulação observava os mares com escrupuloso cuidado, cada
homem querendo ganhar a soma de dois mil dólares prometida para aquele
que, grumete ou marinheiro, mestre ou oficial, avistasse o monstro primeiro.
Por isso, todos forçavam os olhos a bordo da “Abraham Lincoln”.
A fragata não faltava nenhum meio de destruição. Mas
ainda tinha mais: entre a sua tripulação encontrava-se Ned Land,
homem conhecido como o rei dos arpoadores.

Ned Land era um canadense de uma destreza pouco comum, sem rival no seu
perigoso mister. Agilidade e sangue-frio, audácia e esperteza eram
qualidades que ele possuía em elevado grau, e seria preciso uma baleia
muito manhosa ou um cachalote particularmente astucioso para escapar ao seu
arpão.

Entretanto, ele era o único homem a bordo que não acreditava
na existência do fabuloso cetáceo, deixando de participar da
convicção geral. Resolvi conversar com ela sobre o assunto.

Numa magnífica noite, a 30 de julho, isto é, três semanas
depois de nossa partida de Nova Iorque, encontrava-se a fragata nas alturas
do Cabo Branco, trinta milhas a sotavento das costas da Patagônia. Tínhamos
ultrapassado o Trópico de Capricórnio e o Estreito de Magalhães
situava-se a menos de setecentas milhas para o sul. Dentro de oito dias, a
fragata estaria navegando em águas do Pacífico.

– Ned, como pode estar convencido de que o narval que vamos caçar
não existe? Tem razões particulares para proceder assim? O arpoador
olhou-me durante alguns instantes em silêncio, bateu na testa com a
mão, gesto que lhe era peculiar, fechou os olhos como que para refletir,
e disse:

– É possível que eu tenha, Sr. Aronnax.

– No entanto, você que é baleeiro há tantos anos, que
está familiarizado com os grandes mamíferos marinhos, e cuja
imaginação deve facilmente aceitar a existência de enormes
cetáceos, devia ser o último a duvidar em tais circunstâncias.

– Aí que se engana, professor – falou Ned. – Que o vulgo acredite
em meteoros deslumbrantes que cruzam o espaço ou na existência
de dinossauros pré-históricos que vivem no interior da terra,
ainda se aceita. Mas nem o astrônomo nem o geólogo admitem tais
quimeras.

Com o baleeiro acontece o mesmo. Persegui muitos cetáceos, arpoei
um grande número deles, matei vários, mas por mais bem armados
e possantes que fossem, não possuíam caudas ou dentes capazes
de furar as placas de aço de um navio.

– Porém, Ned, fala-se de barcos cujo casco foi perfurado de lado
a lado pelo dente do narval.

– Navios de madeira talvez – respondeu o canadense. – Mas mesmo nesse caso,
jamais vi um narval capaz dessas proezas. Portanto, até provas em contrário,
nego em absoluto que baleias, cachalotes ou narvais possam produzir tais estragos.

– Escute-me, Ned . . .

– Não, professor, não. Tudo o que quiser, menos isso. Talvez
um polvo gigante…

– Isso ainda menos, Ned! O polvo não passa de um molusco, e o próprio
nome indica a pouca consistência das suas carnes. Mesmo com todo o seu
grande comprimento, o polvo, que não pertence ao ramo dos vertebrados,
seria inofensivo para navios como o “Escócia” ou esta fragata
em que viajamos.

– Então, Sr. Aronnax – replicou ele, num tom bastante irônico
– persiste em admitir a existência de um enorme cetáceo? – Sim,
Ned, e com uma convicção baseada na lógica dos acontecimentos.

Acredito na existência de um mamífero desmesuradamente desenvolvido,
pertencente ao ramo dos vertebrados, como as baleias, os cachalotes ou os
golfinhos, armado de um dente córneo de grande poder de penetração.

– Hum! – fez o arpoador, abanando a cabeça com o ar de um homem que
não se quer deixar convencer.

Naquele dia não insisti mais com ele.

Capítulo V

A fragata percorreu a costa sudoeste da América com uma rapidez prodigiosa.
No dia 3 de julho estávamos à entrada do Estreito de Magalhães,
perto do Cabo das Virgens. O Comandante Farragut não quis atravessar
esta sinuosa passagem e manobrou de forma a dobrar o Cabo Horn.

No dia 6 de julho, cerca das três horas da tarde, a “Abraham
Lincoln”, quinze milhas para o sul, dobrou essa ilhota solitária,
esse rochedo perdido no extremo do continente americano, ao qual alguns marinheiros
holandeses deram o nome da sua cidade natal, o Cabo Horn.

Rumamos para noroeste e no dia seguinte a hélice da fragata batia
finalmente nas águas do Oceano Pacífico.

As atenções de todos foram redobradas. Várias vezes
partilhei da emoção dos oficiais e da tripulação,
quando alguma baleia emergia o dorso escuro à tona da água.
A coberta da fragata enchia-se de gente num abrir e fechar de olhos. Todos,
com os peitos ofegantes e os olhares ansiosos, observavam a marcha do cetáceo.
Eu olhava e tornava a olhar até gastar a retina ou ficar cego, enquanto
Conselho, sempre fleumático, dizia-me num tom calmo: – Se o senhor
quisesse ter a bondade de não arregalar tanto os olhos, talvez visse
melhor.

Esperanças vãs! A fragata aumentava a velocidade e perseguia
o animal assinalado, que não passava de uma simples baleia ou cachalote,
que em breve desaparecia no meio de um concerto de imprecações.

A 20 de julho atravessamos o Trópico de Capricórnio a cento
e cinco graus de longitude e no dia 27 do mesmo mês chegamos ao Equador
pelo meridiano cento e dez. Depois a fragata rumou mais decididamente para
oeste e entrou nos mares centrais do Pacífico. O Comandante Farragut
pensava, com razão, que era preferível navegar em águas
profundas e afastar-se dos continentes e das ilhas, que o animal parecia ter
sempre evitado, “sem dúvida porque as águas não
eram suficientemente profundas para ele”, segundo o mestre da tripulação.
A fragata passou, portanto, ao largo das Pomotu, das Marquesas, das Sandwish,
passou o Trópico de Câncer a cento e trinta e dois graus de longitude
e dirigiu-se para os mares da China.

Não ficou nessas águas um único ponto por explorar,
desde as costas do Japão às da América. E nada! Nada,
a não ser a imensidão dos mares desertos. Nada que se parecesse
com um narval gigantesco, com uma ilhota submersa, com o casco de um navio
afundado, com um escolho móvel ou com algo de sobrenatural.

O desânimo apoderou-se dos espíritos e abriu caminho à
incredulidade.

Com a desesperança e o descontentamento da tripulação,
o Comandante Farragut decidiu que se no prazo de três dias o monstro
não aparecesse, o timoneiro daria três voltas ao leme é
a “Abraham Lincoln” navegaria para os mares da Europa.

A decisão, tomada: a 2 de novembro, teve como resultado reanimar
a tripulação. O oceano foi observado com novo entusiasmo. Todos
queriam dar-lhe uma última olhadela, como que para guardar uma recordação.
Os óculos funcionavam com uma atividade febril. Era um desafio supremo
lançado ao narval gigante, e este não podia deixar de corresponder
àquele desejo de encontrá-lo.

No dia 5 de novembro, exatamente ao meio-dia, expirava o prazo estabelecido
pelo Comandante Farragut, depois do que, fiel à sua promessa, devia
rumar para sudeste e abandonar definitivamente as regiões setentrionais
do Pacífico.

A fragata encontrava-se então a 310 15′ de latitude norte e a 1360
42′ de longitude leste. As terras do Japão estavam a menos de duzentas
milhas para sotavento. A noite aproximava-se. Acabavam de soar as oito horas.
Grandes nuvens envolviam o disco da lua, então em quarto crescente.
O mar ondulava calmo sob a quilha do navio.

De repente, no meio do silêncio geral, ouviu-se uma voz. Era Ned Land
quem gritava: – Alerta! Vejo o monstro! Dirige-se para nós.

Capítulo VI

Aquele brado, toda a tripulação se precipitou para o arpoador.
A escuridão era total e, por muito bons que fossem os olhos do canadense,
eu me perguntava como e o que ele teria visto. Sentia o meu coração
bater aceleradamente. Land não havia se enganado e todos viram o objeto
,que ele apontava com a mão. Inclusive eu.

A cerca de quatrocentos metros da “Abraham Lincoln” e a estibordo,
o mar parecia iluminado por baixo. Não era um simples fenômeno
de fosforescência. Não havia engano. Do monstro, submerso a alguns
metros da superfície, emanava aquele brilho intenso e inexplicável,
mencionado em vários relatos de capitães que o tinham visto.
O comandante havia mandado parar a fragata.

– Não passa de uma aglomeração de moléculas
fosforescentes – opinou um dos oficiais.

– Não, senhor – repliquei, com convicção. – E um brilho
de natureza essencialmente elétrica. Desloca-se. Move-se para a frente
e para trás.

Dirige-se para nós! Um grito de muitas vozes fez-se ouvir na fragata.

– Silêncio! – ordenou o capitão. – Virar para barlavento a
toda velocidade! – comandou, enérgico. Os marinheiros correram para
o leme e os maquinistas para a casa de máquinas. A “Abraham Lincoln”
virou para bombordo e descreveu um semicírculo.

– O leme a direita! A todo vapor! – gritou o comandante.

Essas ordens foram executadas e a fragata afastou-se rapidamente do foco
luminoso. Na verdade, ela tentou afastar-se, mas o enigmático animal
aproximou-se com uma velocidade dupla da sua.

Todos a bordo não podíamos nem respirar. A estupefação,
mais do que o medo, mantinha-nos mudos e imóveis. O animal ultrapassava-nos
com a maior facilidade. Deu uma volta &agagrave; fragata, que navegava a quatorze
nós e a envolveu com a sua claridade elétrica como se fosse
uma poeira luminosa. Depois afastou-se duas ou três milhas, deixando
um rasto fosforescente comparável aos turbilhões de vapor que
lança a locomotiva de um expresso. De repente, dos obscuros limites
do horizonte onde se encontrava, o monstro avançou para a “Abraham
Lincoln” com aterradora velocidade, parou bem próximo de nós
e se apagou sem mergulhar nos abismos profundos. O seu brilho não sofreu
um desaparecimento gradual, mas repentino, como se a fonte do seu brilhante
eflúvio se tivesse cerrado. Depois reapareceu do outro lado da fragata,
rodeando-a ou passando-lhe por baixo do casco. Apesar de acompanhar cada movimento,
não pudemos ver a sua manobra.

Entretanto, eu me surpreendia com os movimentos da fragata. Ela fugia em
vez de atacar. Era perseguida em vez de perseguir. Falei sobre isso com o
Comandante Farragut. O seu rosto, habitualmente impassível, estava
dominado por uma surpresa indefinível.

– Sr. Aronnax – respondeu-me. – Não sei que espécie de gigantesco
animal tenho pela frente e não quero arriscar imprudentemente a minha
fragata. Esperemos pelo amanhecer e os papéis serão trocados.
Eu passarei ao ataque.

– Então o comandante não tem dúvidas quanto à
natureza do animal? – Não, senhor. Trata-se evidentemente de um narval
gigantesco, mas também de um animal elétrico.

– Talvez não seja possível uma aproximação –
opinei.

– Pode ser – concordou o comandante. – Se ele possuir em si mesmo um poder
fulminante, é sem dúvida o animal mais terrível saído
das mãos de Deus. É por isso, meu caro professor, que estou
tendo cautela.

Toda a tripulação ficou acordada aquela noite. Ninguém
pensou em dormir. A “Abraham Lincoln”, não podendo competir
em velocidade com o animal, moderou a sua marcha e navegava a meio vapor.
Por seu lado, o narval, imitando a fragata, deixava-se embalar pelas águas
do mar, parecendo decidido a não abandonar o teatro da luta.

A uma hora da madrugada ouviu-se um silvo ensurdecedor, semelhante àquele
que é produzido por uma coluna de água arremessada com extrema
violência por algum engenho de grande força propulsora.

O Comandante Farragut, Ned Land e eu nos encontrávamos então
no tombadilho, perscrutando avidamente as trevas profundas.

– Ned Land, você já ouviu baleias rugindo? – perguntou o comandante.

– Muitas vezes, senhor. Mas nenhuma igual a essa.

– Esse barulho não é igual ao que fazem os cetáceos
quando expelem água pelos respiradouros? – Esse é incomparavelmente
mais forte, senhor. Acho que não há engano possível:
é mesmo um cetáceo que temos diante dos olhos. Se o senhor autorizar
– acrescentou o arpoador – ao nascer o dia vou dar-lhe duas palavrinhas.

– Se ele quiser ouvi-10, meu caro Land – observei. – Se eu conseguir me
aproximar dele à distância ideal para lançar o arpão,
ele terá de me ouvir – afirmou o canadense.

– Mas para se aproximar – disse o comandante – terei de pôr uma baleeira
à sua disposição.

– Sem dúvida, comandante.

– Será arriscar as vidas dos meus homens.

– E a minha – respondeu simplesmente o arpoador.

Pelas duas horas da madrugada, o foco luminoso reapareceu com a mesma intensidade,
cinco milhas a barlavento da “Abraham Lincoln”.

Apesar da distância, apesar do barulho do vento e do mar, ouvia-se
as formidáveis batidas da cauda do animal, assim como a sua respiração
ofegante.

Toda a tripulação permaneceu de vigia até o amanhecer,
preparando-se para o combate. Os aparelhos de pesca foram dispostos ao longo
da balaustrada. O imediato mandou carregar as enormes espingardas que lançam
os arpões à distância de uma milha e as que disparam balas
explosivas, cujo ferimento é mortal mesmo para os animais mais possantes.

Ned Land limitara-se a preparar o arpão, arma terrível em
suas mãos. Na fragata estavam todos prontos para iniciar o combate.

As seis horas o dia nasceu. Com a sua claridade desapareceu o brilho elétrico
do narval. As sete horas um nevoeiro matinal muito cerrado diminuía
o horizonte e os melhores óculos de longo alcance não conseguiam
penetrá-lo. Esse fenômeno deixou todos aborrecidos a bordo.

De repente, ouviu-se a voz de Ned Land – O monstro está à
ré, do lado de bombordo! Todos os olhares se dirigiram para o ponto
indicado. A cerca de uma e meia milha da fragata, um longo corpo escuro emergia
um metro acima do nível das águas. A sua cauda, violentamente
agitada, produzia um redemoinho considerável. Um imenso rasto de deslumbrante
brancura marcava a passagem do animal e descrevia uma curva alongada.

A fragata aproximou-se do cetáceo. Examinou-o atentamente. Os relatórios
do “Shannon” e do “Helvetia” tinham exagerado um pouco
as suas dimensões. Calculei o comprimento em cerca de oitenta e cinco
metros. Quanto ao volume era difícil fazer um cálculo, mas o
estranho animal parecia bem proporcionado em suas dimensões.

Tinha soado a hora do combate.

A “Abraham Lincoln” impelida para a frente pela sua potente
hélice dirigia-se diretamente para o animal. Ele a deixou aproximar-se
com a maior indiferença, até uma distância de cem metros.
Depois, não querendo dar-se ao trabalho de mergulhar, fez como se pretendesse
fugir e continuou a manter a distância que lhe convinha da fragata.

Esta perseguição prolongou-se por quarenta e cinco minutos,
sem que ganhássemos sequer um metro ao cetáceo. Era evidente
que a continuar naquele jogo nunca o apanharíamos. O Comandante Farragut
torcia com raiva a barba espessa.

– Ned Land! – chamou ele. – Ainda me aconselha a jogar as minhas embarcações
ao mar? – perguntou ao canadense.

– Não, comandante. Este animal só se deixará apanhar
se quiser – respondeu ele.

– Que faremos então? – Se for possível, aumente a velocidade.
Quanto a mim, se o senhor permitir, vou me instalar no cesto do gurupés
e quando o animal estiver ao alcance do arpão, disparo.

O comandante o autorizou a fazer o que pretendia e mandou que o maquinista
aumentasse a pressão das caldeiras. A fragata não demorou a
alcançar a velocidade de dezoito milhas por hora.

Porém, o maldito animal avançava com igual velocidade, continuando
a manter a mesma distância que o separava de nós. Depois de algum
tempo dessa emocionante perseguição, o narval começou
a fazer um jogo que ainda nos causava mais suspense. As vezes deixava a fragata
se aproximar bastante e depois fugia de novo. Ned Land continuava no seu posto,
de arpão na mão, pronto para disparar.

– Vamos apanhá-lo! Vamos apanhá-lo! – gritava esperançoso,
a cada vez que a fragata se aproximava do monstro.

No entanto, no momento em que se preparava para arpoá-lo, o cetáceo
afastava-se a uma velocidade que talvez atingisse as trinta milhas por hora.
Mesmo quando avançávamos à velocidade máxima,
o animal permitia-se brincar com a fragata dando-lhe uma volta por baixo.

Um enorme grito de raiva saía então de todas as gargantas.

Ao meio-dia estávamos na mesma situação que às
oito horas da manhã.

O Comandante Farragut decidiu usar meios mais diretos.

– Então esse animal anda mais depressa do que a minha fragata! –
falou nervoso. – Pois bem, vamos ver se ele consegue escapar às balas
cônicas. Mestre, mande os homens para a peça da proa.

O canhão da proa foi imediatamente carregado e apontado. O tiro partiu,
mas a bala passou alguns metros por cima do cetáceo, que estava a meia
milha de distância. – Outro disparo com mais pontaria! – ordenou o comandante.
– Quinhentos dólares para quem atingi-lo – acrescentou.

Um velho artilheiro, de barba grisalha, de olhar calmo e frio, aproximou-
se do canhão e fez pontaria durante algum tempo. Soou uma forte detonação,
à qual se misturaram os vivas da tripulação. A bala atingiu
o alvo, mas de maneira estranha, pois escorregou na superfície arredondada
do animal e foi perder-se no mar.

– Ora esta! – exclamou o velho artilheiro. – Parece que está blindado
com chapas de seis polegadas! – Maldição! – gritou o Comandante
Farragut.

A perseguição continuou. Voltando-se para mim, disse ele:
– Pegarei esse animal ainda que a minha fragata se rebente! – Temos que pegá-lo,
comandante! – animei-o.

Era de esperar que o animal se esgotasse e não fosse indiferente
à fadiga. Mas isso não aconteceu. As horas passaram sem que
ele desse qualquer sinal de cansaço. A “Abraham Lincoln”
lutava com infatigável tenacidade. Calculo que tenha percorrido mais
de quinhentos quilômetros ao longo daquele fatídico dia 6 de
novembro. Mas a noite chegou e envolveu em sombras o mar encapelado.

Pensei que a nossa expedição havia chegado ao fim e que nunca
mais veríamos aquele animal fantástico. Enganei-me. Quase às
onze horas da noite a luminosidade elétrica reapareceu a três
milhas a barlavento da fragata, tão pura e tão intensa como
na noite anterior. O narval parecia estar imóvel, talvez fatigado,
deixando-se vogar ao sabor das ondas.

Era uma oportunidade que o Comandante Farragut resolveu aproveitar.

Deu as suas ordens. A “Abraham Lincoln” avançou a baixa
velocidade, prudentemente, para não acordar o adversário. Desligou
as caldeiras a cerca de trezentos metros do animal e se pôs à
deriva. Ninguém respirava a bordo. Reinava um silêncio profundo
na coberta. Estávamos a menos de quarenta metros do foco ardente, cujo
brilho aumentava e nos ofuscava os olhos.

Nesse momento vi Ned Land encostado ao cabo do castelo de proa segurando
o arpão. Menos de sete metros o separavam do animal. De repente ele
estendeu o braço com toda a força e o arpão foi lançado.

Ouvi o choque sonoro da arma, que parecia ter-se embatido num corpo duro.

O foco elétrico apagou-se subitamente e duas enormes trombas de água
abateram-se sobre a coberta da fragata, deslizando como uma torrente, de proa
à popa, derrubando os marinheiros e quebrando os mastros. Deu-se um
embate terrível. Pego de surpresa, não consegui me segurar e
fui lançado por cima da amurada. Caí ao mar.

Capítulo VII

Embora tivesse sido surpreendido por essa queda inesperada, conservei minha
presença de espírito. O mergulho na água não me
fez perder o controle de minhas ações. Com dois vigorosos impulsos
voltei à superfície.

O meu primeiro reflexo foi tentar localizar a fragata.

As trevas eram profundas. Descortinei uma massa negra que desaparecia para
leste e cujos focos de luz se desvaneciam no horizonte. Era a fragata e eu
me senti perdido. Com braçadas desesperadas nadei na direção
dela, gritando por socorro. As minhas roupas me atrapalhavam, colando-se ao
meu corpo e me impedindo os movimentos. Afogavame.

Sufocava. Minha boca se enchia de água. Debatia-me, arrastado para
o abismo. Já me desesperava de fazer mais qualquer esforço,
quando me senti agarrado por uma mão vigorosa que me levou de volta
à tona.

– Se o senhor fizer o favor de se apoiar no meu ombro, nadará muito
mais à vontade.

Reconheci a voz de meu fiel criado e me agarrei ao braço dele.

– O choque o lançou ao mar ao mesmo tempo que a mim? – perguntei.

– De maneira nenhuma. Mas uma vez que estou ao serviço do senhor,
tinha de segui-lo.

0 valente rapaz achava isso natural.

– E a fragata? – Acho que o senhor não pode contar com ela. No momento
em que me atirei ao mar ouvi os homens gritando que a hélice e o leme
haviam se quebrado.

– Partiram-se? – Sim. Foi o dente do monstro. Penso que foi a única
avaria sofrida pela fragata. Mas, infelizmente para nós, ela não
ficou em condições de se governar.

– Então estamos perdidos! – Talvez – respondeu-me Conselho, tranqüilamente.
– No entanto ainda temos algumas horas à nossa frente e durante esse
tempo muita coisa pode acontecer.

O imperturbável sangue-frio dele animou-me um pouco.

No entanto, com o passar do tempo a nossa situação foi se
tornando insustentável. Terrível mesmo. Ainda que o nosso desaparecimento
tivesse sido notado imediatamente a bordo da fragata, ela não podia
tentar nos socorrer porque estava desgovernada. Portanto, só podíamos
contar com os botes.

A colisão entre a fragata e o cetáceo tinha ocorrido por volta
das onze horas da noite. Tínhamos portanto ainda oito horas até
o nascer do sol.

Durante esse tempo deveríamos nadar, boiar, fazer o possível
para nos mantermos vivos. Por volta da uma hora da manhã, sentia-me
extremamente fatigado e com as pernas inteiriçadas devido a violentas
cãibras.

Conselho foi obrigado a suster-me e passou a ser o único responsável
pelo nosso salvamento. Mas não demorou muito para que eu notasse o
seu cansaço e concluísse que ele não poderia agüentar
aquela situação por mais tempo.

– Deixe-me! – falei-lhe.

– Abandonar o senhor? Nunca farei isso – afirmou. – Na verdade, espero afogar-me
primeiro do que o senhor! Neste momento, a lua surgiu através das franjas
de uma grande nuvem que o vento arrastou para leste. A superfície do
mar brilhou sob os seus raios e esta luz benfazeja fez-me recuperar as forças.
Levantei a cabeça e perscrutei todos os pontos do horizonte. Avistei
a fragata, que se encontrava a cerca de cinco milhas de nós e constituía
uma massa sombria que mal se notava no horizonte. Mas não vi um só
dos seus botes. Conselho, embora eu não visse nenhuma utilidade naquilo,
gritou por socorro algumas vezes.

Suspendemos os movimentos e nos pusemos à escuta. Podia ter sido
um desses zumbidos originados pelo espírito oprimido, mas a verdade
é que me pareceu ouvir um grito respondendo ao apelo do meu criado.

– Ouviste? – perguntei a ele.

– Sim, ouvi.

Conselho lançou mais um grito de socorro. Agora não podíamos
ter mais dúvida. Uma voz humana respondia à dele. Naquele instante
bati num corpo duro e me agarrei nele. Senti que era arrastado, que me puxavam
até a superfície, que o peito se me aliviava e desmaiei. Recuperei
rapidamente os sentidos e entreabri os olhos.

– Conselho! – murmurei.

– O senhor chamou? – ouvi a voz dele.

Naquele momento, aos últimos raios da lua que desaparecia no horizonte,
distingui um rosto que não era o do meu criado.

– Ned! – exclamei.

– Em pessoa, professor.

– Você também foi atirado ao mar? – Fui. Mas tive mais sorte
do que o senhor, porque quase imediatamente encontrei um escolho flutuante
e me agarrei nele.

– Um escolho? – Ou, para dizer melhor, agarrei-me ao nosso narval. – Ao
monstro? – Nele mesmo. Agora sei por que o meu arpão não conseguiu
furar-lhe a pele. É que este animal, Sr. Aronnax, é feito de
chapa de aço.

Subi de imediato ao ponto mais elevado do objeto semi-submerso que nos servia
de refúgio. Bati-lhe com o pé. Tratava-se evidentemente de um
corpo duro, impenetrável, e não da substância mole característica
dos mamíferos marinhos. O dorso escuro que nos suportava era liso e
polido. Ao ser tocado produzia um som metálico. Não podia haver
mais dúvida. O animal, o monstro, o fenômeno que tinha intrigado
todo o mundo científico, agitado e transtornado a imaginação
dos marinheiros dos dois hemisférios, era algo ainda mais espantoso,
porque tinha sido feito pela mão do homem.

A descoberta da existência do ser mais fabuloso e mais mitológico,
não teria surpreendido mais a minha inteligência. Que venha do
Criador tudo o que é prodigioso, espera-se. Mas encontrar de repente,
diante dos nossos olhos, o impossível realizado misteriosamente pelo
homem, confunde as idéias. E no entanto era verdade. Encontrávamo-nos
estendidos sobre o dorso de uma espécie de submarino, com a forma,
tanto quanto pude perceber, de um imenso peixe. A opinião de Ned a
respeito dele era certa. Conselho e eu fomos obrigados a concordar com ele
que o “animal” era feito de chapa de aço.

– Mas então – disse eu – este aparelho deve encerrar um mecanismo
de locomoção e uma tripulação para manobrá-lo.

– Evidentemente – respondeu o arpoador – embora haja mais ou menos três
horas que estou aqui e ainda não vi sinal de vida nele.

– Ainda não se moveu? – Não, Sr. Aronnax. Deixa-se embalar
ao sabor das ondas, mas não se move.

– No entanto, sabemos que ele é dotado de grande velocidade. Ora,
como é preciso um motor para produzir tal velocidade e um maquinista
para o dirigir, concluo que estamos salvos.

– Hum! – fez Ned Land com certa reserva.

Naquele momento, e como que para dar razão aos meus argumentos, produziu-se
um turbilhão na ré do estranho aparelho, cujo propulsor era
evidentemente uma hélice, e ele se pôs em movimento. Só
tivemos tempo de nos agarrarmos à parte superior que submergiu cerca
de oitenta centímetros. Felizmente a sua velocidade não era
excessiva.

– Enquanto navegar à superfície, tudo vai bem – falou Ned
Landa- Mas se resolver a mergulhar, a minha pele não vale um centavo.

Era pois urgente que nos comunicássemos com quem quer que estivesse
no interior daquela máquina. Procurei uma abertura na superfície,
mas as linhas das cavilhas, solidamente achatadas na junção
das folhas, eram contínuas e uniformes.

Por outro lado, a lua desapareceu naquele momento, deixando-nos na mais
completa escuridão. Tínhamos de esperar pelo nascer do dia para
tentarmos entrar naquele barco submarino.

Por volta das quatro horas da madrugada a velocidade do aparelho aumentou.
A muito custo resistimos àquele vertiginoso andamento, pois as ondas
batiam-nos em cheio. Ned encontrou uma grande argola fixa na parte superior
do casco e nos agarramos a ela.

Enfim o dia rompeu. Fomos envolvidos pelas brumas matinais, que não
tardaram a dissipar-se. Preparava-me para proceder a um exame atento do casco,
que formava na parte superior uma espécie de plataforma horizontal,
quando o senti submergindo.

– Com mil diabos! – gritou Ned Land, batendo com o pé no casco. –
Abram, seus marinheiros pouco hospitaleiros! Porém era difícil
que o ouvissem no meio dos ruídos produzidos pelo barulho da hélice.
Felizmente o movimento de imersão parou. De repente ouvimos o som de
manuseamento de ferros no interior do barco. Abriu-se uma chapa. e surgiu
um homem que desapareceu imediatamente, assim que nos viu. Instantes depois,
apareceram oito robustos marinheiros, com os rostos cobertos, que nos levaram
para o interior da sua formidável máquina.

Capitulo VIII

A ação deles a nosso respeito, foi brutal e rápida.
Nem eu e nem meus companheiros tivemos tempo de ver o que estava se passando.
Ao ser introduzido naquela prisão flutuante, senti um calafrio percorrer-me
todo o corpo. Quem seria aquela gente? Sem dúvida seriam piratas de
unir nova espécie, que exploravam os mares à sua maneira.

Assim que a estreita abertura se fechou atrás de nós, ficamos
envolvidos pela mais profunda escuridão. Os meus olhos habituados à
claridade exterior, nada conseguiam distinguir. Senti os meus pés nus
descerem os degraus de uma escada de ferro. Ned Land e Conselho seguiam-me,
seguros pelos homens estranhos. No fundo da escada abriu-se uma porta que
se fechou imediatamente após sermos empurrados através dela.

Estávamos prisioneiros. Onde? Não podíamos nem imaginar.
Tudo era escuro, mas de um escuro tão absoluto que, passados alguns
minutos, os meus olhos ainda não tinham vislumbrado nenhum desses raios
intermitentes que flutuam nas noites mais profundas. Ned Land começou
a ficar afobado e passou a dizer impropérios contra os nossos carcereiros.

– Não se exalte, Ned – aconselhei-o. – Pode agravar a nossa situação
com esses excessos inúteis. Devem estar nos ouvindo. Tentemos saber
onde estamos.

Comecei a tatear a minha volta. Dei alguns passos e esbarrei no que me pareceu
ser uma parede de ferro feita de grandes chapas cavilhadas.

Ao me virar bati numa mesa de madeira, junto da qual se encontravam alguns
bancos alinhados. O soalho da nossa sala estava coberto por uma esteira que
abafava o ruído dos passos. As paredes nuas não revelavam o
mínimo vestígio de porta ou de janela.

Conselho, fazendo uma meia-volta em sentido inverso, foi juntar-se a mim
e nos reunimos no meio daquela cabina que devia ter uns seis metros de comprimento
por três de largura. Quanto à sua altura, embora fosse um homem
alto, Ned Land não conseguiu alcançar-lhe o teto.

Decorrida meia hora sem que a situação se alterasse, passamos
de repente da mais profunda escuridão para a claridade mais intensa.
A nossa prisão foi subitamente iluminada e ficou tão claro o
ambiente que quase não pude suportar-lhe o brilho. Pela intensidade
de sua claridade reconheci a luz elétrica que produzia à volta
do submarino aquele deslumbrante fenômeno de fosforescência. Depois
de ter cerrado as pálpebras involuntariamente, quando as abri de novo
vi que a luz provinha de uma espécie de globo despolido preso na parte
superior da sala.

Pouco tempo depois que a luz foi acesa escutamos um ruído de ferrolhos,
a porta abriu-se e apareceram dois homens. Um deles era um indivíduo
comum. Quanto ao outro merece uma descrição mais pormenorizada.

Reconhecia-se facilmente as suas qualidades dominantes confiança
em si próprio, porque a cabeça se erguia com nobreza sobre o
arco formado pela linha dos seus ombros e o olhos negros refletiam segurança;
era um homem calmo, pois a sua pele, mais pálida do que corada, deixava
transparecer a tranqüilidade do sangue; era um indivíduo enérgico
e demonstrava isso pela rápida contração dos músculos
superciliares; e, finalmente, era um ser corajoso, porque a sua respiração
profunda denotava grande expansão vital.

Acrescentarei que aquele homem era arrogante, que o seu olhar firme e calmo
parecia refletir os mais altos pensamentos e que de todo este conjunto, da
homogeneidade das expressões, dos gestos do corpo e do rosto, ressaltava
uma indiscutível franqueza. Senti-me “involuntariamente”
tranqüilo e antevi algo de bom em sua presença.

Quanto a sua idade eu não poderia dizer se tinha trinta e cinco ou
cinqüenta anos. Sua estatura era alta, testa ampla, nariz aquilino, a
boca nitidamente desenhada, os dentes magníficos, as mãos finas
e alongadas.

Sem pronunciar uma palavra, ele nos examinou atentamente. Depois, virando-se
para o seu companheiro, conversaram numa língua que eu não consegui
reconhecer. O outro falou apenas duas ou três palavras e limitou-se
mais a concordar com acenos de cabeça sobre o que ouvia.

A seguir, aquele que era indubitavelmente o chefe, pareceu interrogarme
diretamente com os olhos, sem uma única palavra.

Falei-lhe em francês, dizendo-lhe que não entendia a língua
em que tinham conversado. Tive a impressão de que ele não me
compreendera e a situação tornou-se bastante embaraçosa.
Depois Ned Land falou com ele em inglês e Conselho mostrou o seu conhecimento
de alemão, falando-lhe nessa língua. Por último, numa
desesperada tentativa de me fazer entender, tentei expressar-me em latim.
Em nenhuma dessas línguas conseguimos nos comunicar com os dois desconhecidos.

Quando desistimos de dialogar com eles, por termos esgotados os nossos recursos
lingüísticos, os dois homens trocaram algumas palavras na sua
incompreensível língua e retiraram-se sem sequer nos dirigir
um gesto tranqüilizador.

Discutíamos a nossa situação, quando a porta foi novamente
aberta e entrou um criado de bordo. Trazia-nos casacos e calças feitos
de um tecido cuja natureza desconhecíamos. Apressamo-nos em vestir
aquelas roupas, lembrando-nos de que toda roupa serve aos nus. Enquanto nos
vestíamos, o rapaz tinha posto a mesa para três pessoas.

Os pratos, cobertos com as respectivas tampas de prata, foram simetricamente
colocados sobre a toalha. Tomamos lugar à mesa. Entre as iguarias que
nos foram servidas, reconheci diversos peixes requintadamente cozidos, mas
quanto aos outros pratos, aliás excelentes, não fiquei sabendo
do que se tratava. Todos os utensílios de que nos servimos tinham uma
letra encimada por uma divisa “Mobilis in Mobili N”. (Móvel
em elemento móvel.) Esta divisa aplicava- se com justeza aquele barco
submarino. A letra “N” seria certamente a inicial do nome da enigmática
personagem que comandava o navio.

Satisfeita a nossa fome, a necessidade de dormir se fez imediata, como reação
natural depois da infindável noite em que tínhamos lutado contra
a morte. Pouco depois, os três, dormíamos profundamente.

Capítulo IX

Ignoro qual foi a duração do nosso sono, mas deve ter sido
longo, pois ao acordarmos nos sentimos completamente recuperados das fadigas.

Fui o primeiro a despertar. Assim que me levantei daquele leito um pouco
duro, senti o cérebro desanuviado, o espírito livre e tentei
reavaliar a fossa situação, enquanto fazia um exame da cela.

O monstro de aço acabava de emergir para respirar, como as baleias.

Logo que oxigenei os pulmões com o ar puro, procurei descobrir o
condutor que fazia chegar até nós aquela corrente benfazeja
e não tardei a encontrá-lo. Por cima da porta havia um orifício
de ventilação que deixava passar uma coluna de ar fresco, renovando
assim a atmosfera saturada da cela.

Estava eu nessas cogitações, quando Ned e Conselho acordaram,
quase ao mesmo tempo, sob o efeito daquele ar revigorante.

– O senhor dormiu bem? – perguntou-me Conselho.

– Muito bem, meu rapaz – respondi. – E você, mestre Land? – indaguei
ao canadense.

– Dormi profundamente, professor.

– Aconteceu o mesmo comigo – disse Conselho. A seguir me perguntou: – O
que acha da nossa situação, professor? – Penso que o acaso nos
revelou um importante segredo. Ora, se a tripulação deste navio
submarino tem interesse em mantê-lo ignoto, e se esse interesse for
para eles mais importante do que três vidas humanas, acho que a nossa
existência está comprometida. Em caso contrário, na primeira
ocasião, o monstro que nos engoliu há de devolver-nos ao mundo
habitado pelos nossos semelhantes.

– A menos que nos incluam na tripulação e nos mantenham aqui
– sugeriu o meu criado.

– E aqui ficaremos até o dia em que uma fragata mais rápida
ou mais hábil do que a “Abraham Lincoln”, apodere-se deste
ninho de piratas, fazendo-os respirar pela última vez nas vergas dos
mastros.

– Bem pensado, mestre Land – repliquei. – Mas, que eu saiba, ainda não
nos foi feita nenhuma proposta, e portanto é inútil discutir
o que devemos fazer. Vamos aguardar e reagir diante de circunstâncias
concretas.

De qualquer maneira, não creio que tenhamos condições
de exigir muita coisa.

Os sinais de inconformismo eram fáceis de se perceber no canadense.
Isso me deixava bastante preocupado. Eu mesmo estava incomodado com o nosso
abandono naquela cela e nem podia calcular quanto tempo poderíamos
ficar detidos nela. As esperanças que eu tinha alimentado depois que
o comandante do submarino estivera conosco, desvaneciam- se pouco a pouco.
A doçura do olhar daquele homem, a expressão generosa do seu
rosto, a nobreza do seu porte, tudo isso desaparecia da minha lembrança,
e eu via aquela personagem enigmática como ela devia ser, necessariamente
impiedosa e cruel. Sentia-o desumano, incapaz de qualquer sentimento de piedade,
inimigo implacável dos seus semelhantes aos quais devia consagrar eterno
ódio.

Naquele momento, ouvimos um ruído no exterior e escutamos passos
que se aproximavam no chão metálico.

Os ferrolhos foram corridos, a porta foi aberta e o mesmo empregado que
nos servira a comida entrou. Antes que eu tivesse tempo de impedir, o canadense
precipitou-se sobre ele, derrubou-o e começou a estrangulá-lo.
Conselho tentava retirar a vítima já meio inanimada das mãos
do arpoador, e eu ia juntar meus esforços ao dele quando, subitamente,
fui surpreendido ao ouvir uma advertência falada em excelente francês:
– Acalme-se, mestre Land. E o senhor professor, queira escutar-me.

Capítulo X

Era o comandante do submarino quem falava.

Ao ouvir aquelas palavras, Ned Land levantou-se de repente, libertando a
sua vítima. A um sinal do amo, pois fora ele quem as pronunciara, o
rapaz saiu cambaleando. Conselho e eu, quedos e mudos, aguardávamos
receosos a seqüência da cena.

O comandante, apoiado no canto da mesa, de braços. cruzados, observava-nos
com muita atenção. Hesitaria em falar? Estaria arrependido das
palavras que pronunciara .. . . em francês? Passados alguns instantes
de silêncio, que nenhum de nós pensou em quebrar, ele começou
a falar com voz calma e penetrante – Meus senhores, falo corretamente francês,
inglês, alemão e latim.

Poderia ter respondido em minha primeira visita às palavras de vocês.

No entanto quis conhecê-los primeiro para depois refletir sobre a
atitude que tomaria a seu respeito. Os três disseram as mesmas coisas
e me forneceram as suas identidades. Sei agora que o acaso trouxe ao meu barco
o senhor Pierre Aronnax, professor de História Natural do Museu de
Paris e encarregado de uma missão científica no estrangeiro;
Conselho é o seu criado e Ned Land, canadense e arpoador da fragata
“Abraham Lincoln”, da marinha dos Estados Unidos da América.

Inclinei-me em sinal de concordância.

Ele realmente entendera tudo que faláramos. Continuou o seu discurso
após uma breve pausa: – O senhor deve pensar que tardei em voltar à
presença de vocês – dirigiu-se diretamente a mim. – i; que, conhecidas
as suas identidades, eu quis pensar maduramente sobre o destino que lhes daria.
Hesitei muito. As mais desagradáveis circunstâncias colocaram
vocês na presença de um homem que rompeu com a humanidade. Enfim,
devo dizer que vocês vieram perturbar a minha solitária existência…

– Involuntariamente – disse eu.

– Involuntariamente? – repetiu o desconhecido, elevando um pouco a voz.
– Foi involuntariamente que a “Abraham Lincoln” andou me perseguindo
por todos os mares? Foi involuntariamente que vocês embarcaram nessa
fragata? Foi involuntariamente que dispararam aquelas balas contra o meu barco?
Foi involuntariamente que Ned Land me atingiu com o seu arpão? Percebi
nas palavras dele uma irritação mal contida. Mas eu tinha uma
resposta natural para as suas recriminações e dei-a.

– O senhor certamente ignora as discussões que houve na América
e na Europa por sua causa. Desconhece que diversos acidentes provocados pelos
choques com o seu submarino alvoroçaram a opinião pública
dos dois continentes. Não sabe as numerosas hipóteses com as
quais se tentou esclarecer o inexplicável fenômeno de que o senhor
é o único a ter o segredo. Saiba porém que ao persegui-lo
até o Pacífico, a “Abraham Lincoln” julgava caçar
um poderoso monstro marinho de cuja presença era preciso livrar o oceano.

Um leve sorriso aflorou aos lábios do comandante e ele disse num
tom mais calmo: – Sr. Aronnax, ousa afirmar que a sua fragata não teria
igualmente perseguido e bombardeado um submarino ou um monstro? Esta pergunta
embaraçou-me, pois eu tinha a certeza de que o Comandante Farragut
não teria hesitado, pois considerava o seu dever destruir quer um barco
como aquele quer um narval gigante. Diante do meu silêncio, ele falou:
– Compreende portanto que tenho todo o direito de considerá-los como
inimigos.

Propositadamente ainda deixei de responder, pois de nada serve discutir
uma proposição quando a força pode destruir os melhores
argumentos que se tem.

– Hesitei muito tempo – continuou o comandante. – Nada me obrigava a lhes
dar hospitalidade. Se ia desembaraçar-me de vocês, não
tinha qualquer interesse em voltar a vê-los. Era só mandar levá-los
para a plataforma do meu barco, mergulhar e esquecer que tinham existido.

Não era esse o meu direito? – Talvez fosse o direito de um selvagem
– respondi – mas não o de um homem civilizado.

– Sr. Aronnax – replicou ele com vivacidade. – Não sou aquilo a que
chama um homem civilizado! Rompi com toda á sociedade por motivos que
só eu posso apreciar. Portanto, não obedeço as suas regras
e convido-o a que nunca as evoque em minha presença! Estas palavras
foram ditas pausadamente. Um raio de cólera e de desprezo iluminou
os seus olhos e eu adivinhei em sua vida um passado extraordinário.
Não só se tinha colocado à margem das leis humanas, como
se tornara independente, livre na mais rigorosa acepção da palavra,
fora de qualquer ataque. Quem ousaria persegui-lo até o fundo dos mares?
Que navio resistiria ao choque de seu barco submarino? Que casco, por mais
espesso que fosse, suportaria os golpes do seu esporão? Nenhum homem
lhe podia pedir contas dos seus atos. Deus, se é que acreditava nele
e a sua consciência, se a tivesse, eram os únicos juizes de que
poderia depender.

Após um longo silêncio, o comandante continuou a falar: – Portanto,
hesitei muito, mas pensei que o meu interesse podia se harmonizar com aquela
piedade natural a que todo homem tem direito.

Continuarão a bordo, já que a fatalidade os colocou aqui.
Serão livres, mas em troca dessa liberdade, aliás relativa,
exijo uma única condição.

A promessa de que irão cumpri-la é suficiente para mim.

– A sua condição é daquelas que um homem honesto pode
aceitar, comandante? – perguntei-lhe.

– É. Aqui está ela: é possível que alguns acontecimentos
imprevistos me obriguem a fechá-los nos seus camarotes durante algumas
horas ou dias, segundo os casos. Desejando nunca usar a força, espero
de vocês a mais completa obediência. Ao agir assim, isento-os
de toda a responsabilidade, liberto-os completamente de quaisquer comprometimentos
com os meus atos. Aceitam esta condição? Portanto, passavam-se
a bordo coisas mais ou menos. estranhas, que não deviam ser presenciadas
por pessoas que não estivessem à margem da sociedade. Entre
as surpresas que o futuro me reservava esta seria certamente das maiores.

– Aceitamos – respondi. – Posso lhe fazer uma única pergunta? – Pode
falar.

– O que devemos entender quando disse que gozaríamos de liberdade
a bordo? – Liberdade de ir e vir, de observar, de ver tudo o que se passa,
exceto em algumas raras ocasiões.

As palavras dele deixavam bem claro que não poderíamos fazer
qualquer tentativa de fuga. Isso poderia se tornar possível para nós
quando o submarino se aproximasse de alguma costa.

– Essa liberdade não é suficiente para nós, comandante
– falei-lhe, usando a franqueza que julgava lhe dever.

– No entanto, tem de chegar – respondeu-me.

– Como? Então devemos renunciar para sempre a rever a nossa pátria,
os amigos, os parentes? – Sim, professor. Mas renunciar a retomar o jugo insuportável
da terra, que os homens têm como liberdade, talvez não seja tão
penoso como julga.

– Não pode ser – manifestou-se Ned Land. – Não posso dar a
minha palavra de que não tentarei fugir.

– Não lhe peço a sua palavra, Sr. Land – falou o comandante,
friamente.

– O senhor abusa da sua situação em relação
à nossa – disse eu, um pouco exaltado. – Isso é crueldade.

– Não, senhor! É clemência. São meus prisioneiros
de guerra. Conservo- lhes as vidas quando podia mergulhá-los nas profundezas
do oceano.

Os senhores atacaram-me! Vieram desvendar um segredo que nenhum homem no
mundo deveria conhecer. O segredo de toda a minha existência! Julgam
que vou deixá-los regressar a essa terra que nunca deverá me
conhecer? Nunca! Se os mantenho aqui, não é por vocês,
é por mim.

Estas palavras revelavam da parte do comandante uma decisão contra
a qual nenhum argumento seria eficaz.

– Então, Sr. comandante, dá-nos pura e simplesmente a escolher
entre a vida de cativos ou a morte? – Exatamente.

– Meus amigos – virei-me para os meus companheiros – a uma afirmação
assim não posso contra- argumentar. Mas nenhuma palavra nos obriga
perante o comandante.

– Nenhuma – confirmou ele. Depois, com uma voz mais suave, falou: – Agora,
permitam-me concluir aquilo que queria dizer. Já o conheço,
professor Aronnax. O senhor, mais do que os seus companheiros, não
terá muito de que se queixar do acaso que o liga ao meu destino.

Encontrará entre os livros que uso para os meus estudos favoritos
a obra que publicou sobre os grandes fundos marinhos. Já a li muitas
vezes. Levou a sua obra tão longe quanto a ciência terrestre
lhe permitiu.

Mas não sabe tudo, não viu tudo. Deixe-me portanto dizer-lhe,
professor, que não lamentará o tempo que passar a bordo do meu
navio. Vai viajar pelo país das maravilhas desconhecidas. A surpresa
e a estupefação serão, talvez, o seu habitual estado
de espírito. Não se aborrecerá facilmente com o espetáculo
que nunca deixará de se oferecer aos seus olhos. Pretendo rever numa
nova viagem pelo mundo submarino, quem sabe talvez a última, tudo o
que pude estudar no fundo desses mares tantas vezes percorridos, e o senhor
será o meu companheiro de estudos. A partir de hoje, entra num novo
elemento e verá o que nenhum homem jamais viu, porque eu e os meus
homens não contamos. O nosso planeta, graças a mim, vai revelar-lhe
os seus últimos segredos.

Não posso negar que essas palavras do comandante produziram em mim
um grande efeito. Estava dominado pelo meu ponto fraco e esquecia, por um
instante, que a contemplação daquelas coisas sublimes não
valia a perda da liberdade. Aliás, eu contava com o futuro para resolver
essa importante questão, por isso contentei-me em responder : – Sr.
comandante, se o senhor rompeu com a humanidade, não posso crer que
tenha renegado todos os sentimentos humanos. Somos náufragos caridosamente
recolhidos e não o esqueceremos. Quanto a mim, não nego que
o interesse da ciência poderia me absorver até ao desprezo pela
liberdade, pois o que me promete seria mais do que compensador.

Pensei que o comandante iria me estender a sua mão para celebrar
o nosso tratado, mas ele não o fez, o que eu lamentei.

– Uma última pergunta – falei, no momento em que aquele enigmático
homem parecia querer retirar-se.

– Fale, professor.

– Por qual nome devemos tratá-lo? – Para os senhores sou o Capitão
Nemo. Os senhores são considera dos passageiros do “Nautilus”.
E agora, Sr. Aronnax, o nosso almoço está pronto. Apenas o senhor
queira seguir-me.

– As suas ordens, senhor.

Segui o Capitão Nemo e assim que passei pela porta da cela encontreime
numa espécie de corredor iluminado eletricamente. Após um percurso
de cerca de dez metros, abriu-se uma segunda porta. Acompanhei- o e entramos
numa sala de jantar decorada e mobiliada com austeridade. No meio dela encontrava-se
uma mesa ricamente servida.

O Capitão Nemo indicou-me o lugar que devia ocupar.

– Instale-se, professor, e sirva-se à vontade.

A refeição era composta por pratos de origem marinha e de
outras iguarias cuja natureza e origem eu ignorava completamente. Eram todos
bons, embora tivessem um sabor estranho. No entanto, habituei-me com facilidade
a ele.

Para não fazermos toda a refeição em silêncio,
provoquei-o com o seu assunto predileto – O capitão ama o mar – falei-lhe.

– Sim, amo-o. O mar é tudo. Cobre sete décimos do globo terrestre.
O seu hálito é são e puro. É um imenso deserto
onde o homem nunca está só. O mar é o veículo
de uma existência sobrenatural e prodigiosa. É movimento e amor.
É o infinito vivo, como afirmou um dos seus poetas.

Nele reina a suprema tranqüilidade. O mar não pertence aos déspotas.

Ah! o senhor professor deveria viver no seio dos mares! Só aí
há independência. Aí não reconheço amos!
Sou livre! Ele estava empolgado. Depois, acalmou-se e a sua fisionomia retomou
a habitual frieza. Finalmente disse-me: – Agora, professor, se desejar visitar
o “Nautilus”, estou ao seu dispor.

Capítulo XI

O Capitão Nemo levantou-se e eu o segui.

Levou-me a visitar a sua fabulosa biblioteca. Em número de volumes
era bem superior à que eu tinha em Paris e talvez o fosse também
no conteúdo dos seus livros. Mostrou-me demoradamente sua coleção
da fauna marinha, em uma enorme sala construída especialmente para
esse fim. Era estupenda. Nenhum museu da Europa tinha uma coleção
de espécimes marinhos igual à dele.

A certa altura de nosso passeio, eu disse a ele: – Mas se esgoto a minha
admiração por tudo de extraordinário que tem me mostrado,
Capitão Nemo, que me restará para o navio que encerra todas
essas maravilhas? Não posso penetrar nos segredos que lhe pertencem,
mas confesso que este “Nautilus”, a força motriz que tem
dentro de si, as máquinas que lhe permitem navegar, o agente poderoso
que o anima, tudo isso excita muito mais a minha curiosidade. Vejo suspensos
nessas paredes por onde temos passado, instrumentos cuja utilização
me é desconhecida. Posso perguntar-lhe para que…

– Sr. Aronnax – interrompeu-me ele. – Disse-lhe que seria livre a bordo
do meu navio e, por conseqüência, nenhuma parte do “Nautilus”
lhe está vedada. Pode visitar o navio pormenorizadamente, e eu terei
muito gosto em ser o seu guia.

– Não sei como lhe agradecer, mas não quero abusar de sua
paciência.

Gostava apenas de saber para que servem esses instrumentos.

– Tenho outros iguais em meu quarto e é lá que terei muito
gosto em lhe explicar a sua utilização. Mas antes venha visitar
o camarote que lhe está destinado.

Conduziu-me para a proa, onde encontrei não um camarote mas um elegante
quarto com uma cama, uma cômoda e outros móveis.

– O seu quarto é contíguo ao meu – disse-me ele, abrindo uma
porta – e o meu dá para o salão que acabamos de deixar.

Convidou-me e eu entrei no seu quarto. Tinha um aspecto severo, quase ascético.
Uma cama de ferro, uma mesa de trabalho, alguns móveis, tudo simples,
nada confortável. Apenas o estritamente necessário.

– Queira sentar-se – disse-me.

Capítulo XIII

Aqui estão – começou a falar, apontando para os instrumentos
suspensos nas paredes do quarto – os aparelhos necessários à
navegação do “Nautilus”. Tanto aqui como no salão
tenho-os sempre diante dos olhos, e indicam-me a minha posição
e direção exatas no oceano.

Alguns lhe são familiares, tais como o termômetro, que dá
a temperatura interior do barco; o barômetro, que mede a pressão
atmosférica e prevê as mudanças de tempo; o higrômetro,
que mede a umidade do ar; o stormglass, cuja mistura, quando se decompõe,
anuncia tempestade; a bússola que dirige a rota; o sextante, que pela
altura do sol me informa da latitude; os cronômetros, que me permitem
calcular a longitude; e, finalmente, estes óculos de alcance para dia
e noite, que servem para perscrutar o horizonte .quando subo à superfície.

– São os instrumentos comuns do navegador e conheço o seu
uso – disse-lhe eu. – Mas estes outros aqui certamente respondem às
exigências especiais do “Nautilus”. Este quadrante com um
ponteiro móvel não é um manômetro? – Na verdade,
é um manômetro que posto em contato com a água indica
a pressão exterior, fornecendo-me ao mesmo tempo a profundidade em
que está o submarino.

– E estas sondas? – São termométricas e indicam a temperatura
das diversas camadas de água que vamos atravessando. – E estes outros
instrumentos aqui, cuja utilidade nem posso prever qual seja? – Devo lhe dar
uma explicação, professor – disse o Capitão Nemo. – Queira
ter a bondade de me escutar.

Manteve-se em silêncio alguns instantes e prosseguiu – Existe um agente
poderoso, obediente, rápido, manobrável para todos os fins,
que é rei e senhor a bordo do meu submarino. Tudo é feito por
ele. Ilumina, aquece, é a alma de todos os aparelhos: a eletricidade.

Sem ela eu nada teria conseguido.

– A eletricidade? – perguntei, surpreso.

– Sim, professor.

— No entanto, capitão, o seu barco possui uma extrema rapidez
de movimentos que dificilmente se explica pela eletricidade. Pelo que sei,
a sua força dinâmica permanece até hoje muito restrita,
e só produziu forças reduzidas.

– A minha eletricidade, professor, não é a mesma do resto
do mundo.

Mas a este respeito não posso lhe dizer mais nada. Basta saber que
o mar me fornece os meios de produzir a minha eletricidade.

Desconversou o assunto, que me interessava profundamente, e passou a me
mostrar outros instrumentos e a explicá-los.

– Repare neste relógio, professor. É elétrico e trabalha
com uma regularidade que desafia os melhores cronômetros. Está
dividido em vinte e quatro horas, como os relógios italianos, porque
para mim não existe nem dia e nem noite, nem sol e nem lua, mas apenas
esta luz artificial que arrasto até o fundo dos mares. Veja, neste
momento são dez horas da manhã.

– Perfeitamente.

– Repare nesta outra aplicação da eletricidade: este quadrante
serve para indicar a velocidade do “Nautilus”. Neste momento estamos
nos movendo a quinze milhas por hora.

– É maravilhoso – observei – e vejo que descobriu como utilizar este
agente, que num futuro próximo substituirá o vento, a água
e até o vapor. – Se quiser me acompanhar, visitaremos agora a ré
do “Nautilus”.

Saiu e eu o segui através dos corredores. Chegamos ao centro do navio
onde havia uma espécie de poço, que se abria entre dois tabiques
estanques. Uma escada de ferro presa na parede conduzia à sua extremidade
superior. Perguntei ao capitão para que servia aquela escada.

– Vai dar ao bote – informou-me.

– Como? Tem um bote? – indaguei, surpreso.

– Sem dúvida. Uma excelente embarcação ligeira, insubmersível,
que serve para passear e pescar.

Passamos à casa das máquinas. Profusamente iluminada, devia
medir pelo menos vinte metros de comprimento, e estava dividida em duas partes:
a primeira encerrava os elementos que produziam a eletricidade e a segunda
os mecanismos que transmitiam o movimento à hélice.

Como eu já esperava, demoramo-nos muito pouco ali.

Sempre conversando, eu me lembrei de um assunto que gostaria de ver esclarecido.

– A propósito, capitão, o choque do “Nautilus”
com o “Escócia” teve muita repercussão. Foi um encontro
ocasional? – Puramente ocasional, professor. Eu navegava a dois metros abaixo
do nível do mar quando se produziu o choque. Aliás, eu pude
verificar que esse navio não sofreu danos graves.

– De fato, não. Mas quanto ao choque com a “Abraham Lincoln”?
– A fragata estava me atacando, professor. Tive de me defender. No entanto,
limitei-me a deixá-la em condições de não continuar
o ataque.

Não terá problema em reparar as suas avarias em qualquer porto.

– Ah! – exclamei com convicção – o seu “Nautilus”
é realmente um barco maravilhoso.

– Sim, professor – confirmou ele, emocionado. – Amo-o como se fosse carne
da minha carne! Se tudo é perigo a bordo de qualquer navio sujeito
aos caprichos do oceano, se sobre o mar a primeira coisa que nos vem é
a sensação do abismo, como tão bem disse o holandês
Jansen, por baixo e a bordo do “Nautilus”, o coração
do homem fiada tem a recear. Não há que temer um rombo, porque
o duplo casco deste navio tem a rigidez do ferro; não há o perigo
do carvão se esgotar, porque a eletricidade é o seu agente mecânico;
não receia tempestades, porque a alguns metros de profundidade reina
a mais absoluta tranqüilidade.

Aqui tem, professor, o navio por excelência.

O Capitão Nemo falava com irresistível eloqüência.
O fogo do seu olhar e a paixão dos seus gestos transfiguravam-no. Sim,
ele gostava do navio como um pai gosta do filho.

Nesse momento, acudiu-me uma pergunta, talvez indiscreta, que não
pude deixar de fazer.

engenheiro, Capitão Nemo? – Sim, professor. Estudei em Londres, Paris
e Nova Iorque no tempo em que era habitante dos continentes da terra.

Capítulo XIII

O oceano Pacífico estende-se de norte a sul, entre os dois círculos
polares, e a leste e oeste, entre a Ásia e a América, numa extensão
de cento e quarenta e cinco graus de longitude. É o mais tranqüilo
dos mares, com correntes largas e lentas, marés fracas e chuvas abundantes.

Era este o oceano que o destino me levava a percorrer nas mais estranhas
condições.

– Vamos determinar exatamente a nossa posição, professor –
disse-me o Capitão Nemo – e fixarmos o ponto de partida desta viagem.
São onze horas e quarenta e cinco minutos. Vou manobrar para emergir.

Ele premiu três vezes uma campainha elétrica e as bombas começaram
a expulsar a água dos reservatórios; o ponteiro do manômetro
assinalou, pela pressão, o movimento ascensional do “Nautilus”
e depois parou.

– Chegamos – disse o capitão.

Dirigi-me à escada central que conduzia à plataforma. Subi
os degraus de metal e pelos alçapões abertos cheguei à
parte superior do submarino.

Munido do seu sextante o Capitão Nemo mediu a altura do sol, que
lhe devia fornecer a latitude. Esperou alguns minutos para que o astro chegasse
à linha do horizonte. Enquanto procedia a estas observações,
nem um só músculo mexia em seu corpo, e o instrumento não
estaria mais imóvel se fosse seguro por uma mão de mármore.

– É meio-dia – falou comigo. – Quando quiser…

Lancei um último olhar àquele mar amarelado, próximo
de terras japonesas, e desci ao salão.

Ali, o capitão calculou cronometricamente a longitude, que verificou
com observações procedentes dos ângulos solares. Depois
disse-me: – Sr. Aronnax, encontramo-nos a cento e trinta e sete graus e quinze
minutos de longitude oeste. . .

– De que meridiano? – perguntei vivamente, esperando que a sua resposta
talvez me indicasse a sua nacionalidade.

– Professor – respondeu-me – tenho cronômetros regulados pelos meridianos
de Paris, de Greenwich, e de Washington. Em sua honra, vou servir-me do de
Paris.

Esta resposta nada me revelou. Fiz um aceno com a cabeça e o capitão
continuou: – Trinta e sete graus e quinze minutos de longitude a oeste do
meridiano de Paris e trinta graus e sete minutos de latitude norte, isto é,
estamos a cerca de trezentas milhas das costas do Japão. Hoje, dia
8 de novembro ao meio-dia, iniciamos a nossa viagem de exploração
submarina.

Que Deus nos proteja – falei.

– Agora, professor, peço-lhe licença para me retirar.

Cumprimentou-me e saiu. Fiquei só, absorto em meus pensamentos dirigidos
para aquele estranho comandante. Descobriria um dia a que país pertencia
aquele homem que se gabava de não pertencer a pais nenhum? Aquele ódio
que ele votava à humanidade, aquele ódio que talvez procurasse
uma vingança, quem o teria provocado? Seria ele um desses sábios
desconhecidos, um desses gênios “aos quais se fez uma ofensa”?
Absorto em meus pensamentos, só me dei conta da entrada de meus dois
companheiros quando Ned Land começou a me interrogar sobre a minha
entrevista com o Capitão Nemo. Ele queria saber se eu tinha descoberto
quem era o capitão, de onde vinha, para onde ia, para que profundezas
nos arrastava.

Contei-lhe tudo o que eu sabia, ou antes, tudo o que não sabia. Por
minha vez perguntei-lhe o que tinha podido observar.

– Nada. Não vi nada – respondeu-me. – Nem sequer vi a tripulação
do navio. Será que também é elétrica? – Elétrica?
– Estou tentado a pensar que sim. Mas o senhor não faz nem uma idéia
de quantos homens há a bordo? Dez, cinqüenta, cem? – Não
lhe sei informar, Land. Aliás, você deve abandonar, de momento,
a idéia de se apoderar do “Nautilus” e fugir. Este navio
é uma obraprima da indústria moderna e eu lamentaria perder
a oportunidade de observá-lo à vontade. Muita gente aceitaria
a situação em que nos encontramos só para poder passear
no meio dessas maravilhas. Assim, mantenha-se calmo e tentemos ver o que se
passa à nossa volta.

Capítulo XIV

No dia seguinte, 9 de novembro, só acordei após doze longas
horas de sono. Conselho, segundo era seu hábito, foi saber como eu
havia passado a noite e perguntar se eu precisava de alguma coisa. Tinha deixado
o canadense ainda a dormir.

Depois de vestido, eu me dirigi ao salão onde pensava encontrar o
Capitão Nemo. Estava deserto. Passei à sala do, museu da fauna
submarina e me entreti apreciando aqueles tesouros encerrados em vitrinas.

Passou-se o dia inteiro sem que eu tivesse a honra de receber a visita do
Capitão Nemo. Pude verificar que a rota do “Nautilus” continuava
a mesma e que navegávamos a uma velocidade de doze milhas por hora,
a uma profundidade entre cinqüenta e sessenta metros.

No dia seguinte, 10 de novembro, verificou-se a mesma ausência, a
mesma solidão. Não vi ninguém da tripulação.
Ned Land e Conselho passaram a maior parte do dia comigo, igualmente surpreendidos
com a ausência do capitão.

Contudo, gozávamos de inteira liberdade e tínhamos alimentos
com abundância. O nosso hospedeiro cumpria a sua promessa. Nesse dia
iniciei o diário dessas aventuras, o que me permite contá-las
com a maior exatidão. Fato curioso: eu fazia minhas anotações
num papel fabricado com sargaço marinho.

No dia 11 de novembro, de manhã, o ar fresco que invadiu o interior
do “Nautilus” fez-me saber que tínhamos subido à
superfície. Dirigi-me para a escada central e subi à plataforma.
Eram seis horas. O tempo estava nublado, o mar cinzento, mas calmo e quase
sem ondulação. Eu admirava aquele radioso nascer do sol quando
senti alguém subindo a escada para a plataforma. Preparei-me para cumprimentar
o Capitão Nemo, mas em vez dele apareceu o imediato. Percorreu a plataforma
parecendo não se aperceber da minha presença. Perscrutou todos
os pontos do horizonte com extrema atenção e depois se dirigiu
para o alçapão pronunciando uma frase que guardei, porque ele
a repetia todas as manhãs em que me encontrava na plataforma: “Nautron
respoc loni virch”. Pronunciadas estas palavras ele descia. Eu não
sabia o significado delas.

Passaram-se mais cinco dias sem que a situação se alterasse.
O capitão não aparecia e todas as manhãs quando eu subia
à plataforma ouvia a mesma frase pronunciada pelo imediato.

No dia 16 de novembro, ao entrar no meu quarto com Ned Land e Conselho,
encontrei sobre a mesa um bilhete do Capitão Nemo. Convi dava-me e
aos meus companheiros para que o acompanhássemos em uma caçada
às florestas da ilha Crespo.

– Uma caçada! – admirou-se Ned Land. – Então o capitão
tenciona ir à terra – acrescentou.

– Parece-me que sim – disse eu, relendo o convite.

– Temos de aceitar o convite dele – falou o canadense. – Uma vez em terra
firme decidiremos o que vamos fazer. Por outro lado, não me importava
nada de comer um pedaço de carne fresca.

Decidimos que aceitaríamos o convite do capitão. Ned Land
e Conselho se retiraram e o criado de bordo apareceu logo para me servir o
jantar. Deitei-me mais cedo naquela noite e adormeci um pouco preocupado com
Ned Land e a caçada para a qual fôramos convidados.

No dia seguinte, 17 de novembro, ao despertar senti que o “Nautilus”
estava absolutamente imóvel. Vesti-me apressadamente e me encaminhei
para o grande salão. O capitão encontrava-se a minha espera.

Cumprimentou-me e me perguntou se o acompanharíamos na caçada.

Respondi afirmativamente, esperando que ele me dissesse alguma coisa sobre
o seu sumiço dos últimos dias. Mas ele não fez referência
a isso e eu me abstive de lhe fazer qualquer pergunta sobre o assunto.

Contudo, lembrando-me de que o convite dele se referia a uma caçada
“nas minhas florestas da ilha Crespo”, perguntei lhe: – Como é
possível que possua florestas na ilha Crespo, capitão, se afirma
ter cortado todos os seus contatos com a terra? – As florestas que possuo,
professor, não exigem do sol nem a sua luz, nem o seu calor. Não
são freqüentadas nem por leões, nem por tigres, nem por
panteras. Só eu as conheço, só existem para mim. Não
são florestas terrestres, mas submarinas.

– Florestas submarinas! – Exatamente, professor.

– E quer levar-me para caçar nelas? – De espingarda na mão
e a pé seco, professor.

Olhei o comandante do “Nautilus” com um ar que nada tinha de
lisonjeiro para ele. “Decididamente está louco”, pensei.
“Deve ter tido um ataque de loucura o que explica o seu desaparecimento
nos últimos oito dias. É uma pena! Eu o preferia estranho, como
sempre me parecera, a louco como me parece agora”, raciocinei, enquanto
ele me olhava com um leve sorriso.

– Por convidá-lo a ir caçar comigo nas minhas florestas da
ilha Crespo, professor – disse-me ele – julgou que eu estaria em contradição
com as minhas convicções. Quando lhe informei que se tratava
de florestas submarinas, passou a pensar que estou louco.

– Mas, capitão, creia que…

– Escute-me primeiro e verá se pode me acusar de contradição
ou de loucura. Sabe tão bem quanto eu que o homem pode viver debaixo
da água desde que leve consigo uma provisão de ar respirável.

– Sei. Usando escafandros.

– Exatamente. Mas, nas condições em que os conhece na terra
esses aparelhos são muito imperfeitos ainda e dependem do fornecimento
de ar através de um tubo apropriado que os liga à superfície.
Esse sistema tolhe a liberdade do homem sob a água porque ele está
preso à terra.

Se tivéssemos que ficar ligados por esse cordão umbilical
ao “Nautilus”, não poderíamos ir longe.

– E qual é a maneira de se ficar livre e poder ir longe? – Utilizando
um aparelho Rouquayrol-Denayrouze, inventado por dois franceses, mas que aperfeiçoei
para meu uso. O meu aparelho é composto por um reservatório
de espessa chapa de ferro, dentro do qual armazeno o ar a uma pressão
de cinqüenta atmosferas. Este reservatório é fixo às
costas por meio de correias, como a mochila de um soldado.

Como eu tenho de suportar enormes pressões no fundo dos mares, tive
de proteger a cabeça, como os escafandristas, dentro de uma esfera
de cobre, e é a essa esfera que vão dar os dois tubos para inspiração
e expiração.

– Perfeitamente, capitão. Mas o ar que transporta consigo deve esgotar-
se rapidamente.

– Sem dúvida; mas as bombas do “Nautilus” me permitem
armazena-lo a uma pressão considerável. Nessas condições,
o reservatório do aparelho pode fornecer ar respirável durante
nove ou dez horas.

– Não tenho mais objeções – falei-lhe. – Gostaria apenas
de lhe fazer mais uma pergunta: como ilumina o caminho no fundo do oceano?
– Com o aparelho Ruhmkorff que levo preso à cintura. É composto
por uma pilha de Bunzen, que ativo com sódio e consigo uma luz esbranquiçada
e contínua.

– A todas as minhas objeções o senhor dá respostas
tão concludentes que não ouso duvidar, capitão. No entanto
ainda preciso de esclarecimentos sobre as espingardas que usa nessas caçadas.

– Está evidente que não se trata de uma arma que usa a pólvora.
As minhas espingardas funcionam com ar comprimida, que as bombas do “Nautilus”
me fornecem abundantemente.

– Mas esse ar deve gastar-se depressa.

verdade. Mas tenho o reservatório Rouquayrol que pode, se necessário,
fornecê-lo. Só preciso de uma torneira auxiliar. Aliás,
o senhor terá ocasião de verificar que nessas caçadas
submarinas se gasta pouco ar e poucas balas.

– Não discuto mais, capitão. Só me resta pegar na espingarda
e acompanha- lo. Para onde o senhor for irei também.

O Capitão Nemo conduziu-me para a proa do “Nautilus”.
Passando pelo camarote de Ned Land e Conselho, chamei-os e eles nos seguiram.

Chegamos a um compartimento situado a bombordo, perto da casa das máquinas,
no qual devíamos vestir as nossas roupas de passeio submarino.

Capítulo XV

Esse compartimento era o arsenal e o vestiário do “Nautilus”.
Havia pelo menos uma dúzia de escafandros suspensos na parede. Ao vê-los,
Ned Land manifestou sua má vontade em vestir semelhante objeto.

– Mas, meu caro Ned – disse eu – vamos caçar em florestas submarinas!
– Não me meto dentro de uma coisa dessas, a não ser que me obriguem
– declarou ele, peremptório.

– Ninguém o forçará, mestre Ned – falou o capitão.

– Quanto a mim, sigo o professor por toda a parte – disse Conselho, o meu
fiel criado.

O capitão chamou dois de seus homens e eles nos ajudaram a vestir
aquelas pesadas roupas impermeáveis, feitas de borracha sem costura
e preparadas para resistir a altas pressões.

O Capitão Nemo, um dos seus homens – uma espécie de Hércules
que devia ter uma força prodigiosa – Conselho e eu, vestimos rapidamente
os nossos escafandros. Apenas faltava metermos as cabeças nas esferas
metálicas. Antes de proceder a esta operação, pedi ao
capitão para examinar as espingardas que nos estavam destinadas. Um
dos tripulantes apresentou-me uma delas.

– Capitão Nemo, esta arma é perfeita e de manejo fácil.
Estou ansioso para experimentá-la. Como vamos até o fundo do
mar? – Neste momento, professor, o “Nautilus” está encalhado
e por isso só nos resta partir.

Com a lanterna Ruhmkorff à cintura e a espingarda na mão,
eu estava pronto para o passeio. Mas, aprisionado dentro daquelas roupas pesadas
e colado ao chão pelos sapatos de chumbo, julguei ser impossível
dar um passo. Contudo, esta dificuldade já devia estar prevista, porque
senti que me empurravam para um pequeno compartimento, próximo ao vestiário,
no qual fui seguido pelos meus companheiros.

Ouvi uma porta munida de obturadores fechar-se atrás de nós
e fomos envolvidos por uma profunda obscuridade.

Passados alguns minutos, ouvi um forte silvo, ao mesmo tempo que sentia
uma impressão de frio subir-me dos pés ao peito. Era evidente
que, por meio de uma torneira, tinham dado entrada à água que
invadia o compartimento. Uma segunda porta existente no costado do “Nautilus”
abriu-se então e vimos uma certa claridade. Após um instante,
pisávamos o fundo do mar.

O Capitão Nemo ia à frente, enquanto o seu companheiro nos
seguia a alguns passos de distância. Conselho e eu íamos muito
perto um do outro, como se fosse possível qualquer conversa através
de nossas carapaças metálicas. A luz do sol iluminava as águas
até dez metros de profundidade e surpreendia-me com a sua intensidade.
Os raios solares atravessavam com facilidade aquela massa líquida,
atenuando-lhe a coloração.

Começamos a andar sobre uma areia fina, uniforme, sem rugosidade.

Aquele tapete extraordinário, verdadeiro refletor, reproduzia os
raios solares resultando disso uma intensa reverberação que
penetrava todas as moléculas líquidas. Mesmo para mim que estava
presenciando o fenômeno, era incrível que a uma profundidade
de dez metros, podia ver tão bem como em pleno dia.

Fomos avançando por uma vasta planície que parecia não
ter limites. Eu afastava com a mão as cortinas líquidas, que
se tornavam a fechar atrás de mim, e o vestígio dos meus passos
logo desaparecia sob a pressão da água. Em breve algumas silhuetas
de objetos, que eu mal distinguia à distância, foram tomando
forma.

Eram então dez horas da manhã. Os raios solares batiam na
superfície das águas formando um ângulo bastante oblíquo.
Ao contato da sua.

luz, decomposta pela refração como através de um prisma,
flores, rochedos, plantas, conchas, pólipos, matizavam-se com as sete
cores do espectro solar. Era algo maravilhoso, uma festa para os olhos. Eu
sentia verdadeira mágoa por esmagar sob os pés os belos espécimes
de moluscos que juncavam o solo. Os pentes concêntricos, os martelos,
as donácias, verdadeiras conchas saltitantes, os troques, os capacetesvermelhos,
os estrombos asa-de-anjo, as afilas, e tantos outros exemplares daquele mar
inesgotável. Mas era preciso avançar.

Tínhamos deixado o “Nautilus” há cerca de hora
e meia. Era perto do meio-dia, fato de que me apercebi pela perpendicularidade
dos raios solares, que já não se refratavam. A magia das cores
desapareceu pouco a pouco, e as tonalidades de esmeralda e de safira dissiparam-se
do nosso horizonte. Avançávamos a passo regular, que se ouvia
com surpreendente nitidez.

Naquele ponto, o solo começou a inclinar-se numa encosta pronunciada.

A luz tomou uma cor uniforme. Atingimos uma profundidade de cem metros,
suportando então uma pressão de dez atmosferas. Porém,
o meu escafandro estava concebido de tal forma que eu não sentia esta
pressão, mas apenas uma certa dificuldade em mexer as articulações
dos dedos, o que também não tardou a desaparecer. Quanto à
fadiga, natural por aquele passeio de duas horas, dentro de uma roupa a que
não estava habituado, era nula. Os meus movimentos, ajudados pela água,
processavam-se com espantosa – facilidade.

Chegando à profundidade de trezentos pés, ainda via os raios
solares, embora já muito fracos. Ao brilho intenso tinha sucedido um
crepúsculo avermelhado, meio termo entre o dia e a noite. No entanto,
ainda víamos o suficiente para caminharmos, e não se tornou
necessário acendermos os aparelhos Ruhmkorff. Nessa altura, o Capitão
Nemo parou. Esperou que eu chegasse junto dele. Com o dedo apontou-me umas
massas obscuras que se avistavam a pouca distância. “É
a floresta da ilha Crespo”, pensei. E não me enganava.

Capítulo XVI

Chegávamos enfim à floresta, sem. dúvida uma das mais
belas do imenso domínio do Capitão Nemo. Ele a considerava sua
e julgava ter sobre ela os mesmos direitos que tinham os homens primitivos
na, alvorada da humanidade. Aliás, quem lhe disputaria aquela propriedade
submarina? Que outro pioneiro mais ousado, viria, de machado na mão,
cortar-lhe a mata? Aquela floresta era composta por grandes plantas arborescentes,
e assim que penetramos debaixo das suas ramagens, os meus olhos sentiram-se
atraídos pela estranha disposição dos ramos, a qual nunca
tinha visto até então nas florestas da superfície terrestre.

Nenhuma erva das que atapetavam o solo, nenhum ramo dos arbustos se enroscava
ou se estendia num plano horizontal: todos subiam para a superfície
do mar. Não havia um filamento, uma fita, por mais delgada que fosse,
que não se mantivesse direita como se fosse um fio de ferro.

Notei também que todos os espécimes do reino vegetal: estavam
presos ao solo apenas por uma ligação superficial. Desprovidos
de raízes, indiferentes ao corpo sólido, areia, concha ou pedra,
que as suportava apenas lhe pediam apoio e não vitalidade. Essas plantas
provêm de si mesmas e o princípio de sua existência está
na água, que as sustenta e alimenta.

Por volta de uma hora o Capitão Nemo fez sinal para que parássemos.

Por mim, fiquei muito satisfeito, e estendemo-nos debaixo de uma árvore,
cujos longos e estreitos ramos se erguiam como flechas. Depois de quatro horas
a andar, surpreendi-me por não sentir fome. Não sabia como explicar
aquela disposição do estômago, mas em contrapartida, sentia
uma irresistível vontade de dormir, como acontece a todos os mergulhadores.
Portanto, os olhos não tardaram a fechar-se por trás do espesso
vidro e mergulhei numa sonolência invencível, que até
então tinha sido combatida pela marcha. O Capitão Nemo e o seu
robusto companheiro, estendidos naquele líquido cristalino, também
se entregaram ao sono.

Não posso precisar por quanto tempo permaneci naquela letargia, mas
quando acordei pareceu-me que o sol se punha no horizonte. O capitão
já se erguera, e eu começava a desentorpecer os membros quando
uma inesperada aparição me fez levantar bruscamente.

A alguns passos de distância, uma monstruosa aranha do mar, com um
metro de altura, olhava-me com os seus olhos vesgos, prestes a atirar se sobre
mim. Embora o meu escafandro fosse suficientemente espesso para me defender
contra as mordeduras da aranha não pude evitar um movimento de horror.
O Capitão Nemo apontou ao seu companheiro o hediondo animal, que foi
imediatamente abatido com uma coronhada. Vi as horríveis patas do monstro
contorcerem-se em convulsões terríveis.

Esse episódio levou-me a pensar que outros animais ainda mais temíveis
habitavam aquelas profundidades e que o meu escafandro não me protegeria
contra os seus ataques. Até então ainda não me ocorrera
tal idéia e decidi ter mais cuidado.

Por volta das quatro horas, aquela maravilhosa excursão chegou ao
seu termo. Erguia-se diante de nós uma muralha de rochas soberbas,
blocos gigantescos, enorme falésia de granito com grutas obscuras,
mas sem nenhum caminho praticável. Eram as escarpas da ilha Crespo.
Era a terra.

O capitão parou de repente. Com um gesto indicou-nos que fizéssemos
o mesmo. Ali acabavam-se os seus domínios e ele não queria ultrapassá-los.
Para diante era aquela porção do globo terrestre que ele não
queria tornar a pisar.

De regresso ao “Nautilus” andávamos calmamente quando
vi o Capitão Nemo apontar a arma e seguir um vulto móvel que
se insinuava entre os arbustos. A bala partiu, ouvi um fraco silvo e um animal
foi cair fulminado a alguns passos de nós. Era uma magnífica
lontra do mar, o único quadrúpede exclusivamente marinho. O
companheiro do capitão apanhou o animal, colocou-o sobre os ombros
e continuamos a caminhar.

Durante duas horas atravessamos, ora planícies arenosas ora pradarias
de sargaço, muito difíceis de se caminhar nelas. Francamente
eu já não agüentava mais, quando avistei uma luz fraca
a cerca de, meia milha, rompendo a obscuridade das águas. Era o farol
do “Nautilus”. Fiquei realmente satisfeito com a proximidade do
descanso.

Eu tinha ficado uns vinte passos para trás, quando vi o Capitão
Nemo retroceder em minha direção. Com a sua mão vigorosa
atirou-me ao chão, enquanto o seu companheiro fazia o mesmo ao meu
criado. A princípio eu não soube o que pensar daquele ataque
brusco, mas fiquei mais tranqüilo ao ver que o capitão se deitava
a meu lado e permanecia imóvel. Estávamos estendidos no solo
e abrigados por uma moita de sargaços, quando ao levantar a cabeça
vi duas enormes massas que passavam ruidosamente, lançando clarões
fosforescentes.

O sangue gelou-se-me nas veias ao reconhecer os enormes esqualos que nos
ameaçavam. Era um casal de “tintoreas”, terríveis
tubarões, com uma cauda comprida, olhar vítreo, que expelem
uma matéria fosforescente por uns orifícios que possuem à
volta do focinho. Animais monstruosos, que podem triturar um homem com os
seus maxilares de ferro.

Felizmente esses vorazes animais têm uma visão muito débil,
e passaram por nós sem nos ver, roçando-nos com as suas barbatanas
negras.

Pudemos escapar como que por milagre àquele grande perigo, certamente
maior do que o que existe num encontro com um tigre das florestas terrestres.

Três minutos depois, orientados pelo foco elétrico, estávamos
entrando no “Nautilus”.

Capítulo XVII

Na manhã seguinte, dia 18 de novembro, já refeito das fadigas
da véspera, subi à plataforma no momento em que o imediato pronunciava
a sua frase quotidiana. Veio-me então a idéia de que ele devia
estar informando sobre o estado do mar e que as suas palavras significariam:
“Nada à vista!” Eu admirava o magnífico aspecto
do oceano, quando o Capitão Nemo apareceu. Tive a impressão
de que ele não se apercebeu da minha presença e iniciou uma
série de observações técnicas. Terminado o trabalho,
foi encostar-se ao farol e o seu olhar perdeu-se no horizonte.

Entretanto, uns vinte marinheiros do “Nautilus”, todos eles
homens vigorosos e bem constituídos, tinham subido à plataforma
para puxar as redes lançadas durante a noite. Percebi que os homens
eram oriundos de nações diferentes, embora o tipo europeu fosse
comum a todos.

Reconheci irlandeses, franceses, alguns escandinavos e um grego. Aliás,
esses homens eram muito sóbrios de palavras, e só utilizavam
entre si aquele estranho idioma, cuja origem eu nem suspeitava. Assim, tive
de renunciar ao meu desejo de interrogá-los.

As redes foram içadas para bordo. Calculei que tinham trazido mais
de mil libras de peixes. Terminada a pesca e renovada a provisão de
ar, pensei que o “Nautilus” iria continuar a sua excursão
submarina e me preparava para descer ao meu quarto quando, virando-se para
mim, o Capitão Nemo disse: – Veja este oceano, professor. Não
é dotado de uma vida real? Não tem as suas iras e ternuras?
Ontem adormeceu como nós, e agora desperta após uma noite de
calma.

Nem bom-dia, nem boa-noite! Parecia que aquele estranho personagem reatava
comigo uma conversa suspensa poucos minutos antes. Ele continuou falando:
– Repare: desperta com as carícias do sol. Vai reviver a sua existência
diurna. É um estudo interessante seguir o funcionamento do seu organismo.

Possui pulso, artérias, espasmos e dou razão ao sábio
Maury, que descobriu no mar uma circulação tão real como
a circulação sangüínea nos animais.

Era evidente que o Capitão Nemo não esperava qualquer resposta
minha, e pareceu-me inútil pronunciar as habituais banalidades. Após
uma breve pausa, ele continuou : – Os sais encontram-se em quantidade considerável
no mar. Se extraíssem todos os sais que o mar contém em suspensão,
obteríamos uma massa de quatro e meio milhões de léguas
cúbicas. Essa massa, espalhada no globo terrestre, formaria uma camada
com mais de dez metros de altura. E não pense que a presença
desses sais se deve a um capricho da natureza. Não! Tornam as águas
marinhas menos evaporáveis e impedem o vento de lhes roubar uma quantidade
demasiado grande de vapores que, ao se liquefazerem, submergiriam as zonas
temperadas.

Papel importante e imenso, papel moderador na economia geral do globo terrestre.

Ao falar desse modo, o Capitão Nemo transfigurava-se, o que provocava
em mim uma extraordinária emoção.

– Aqui – continuou ele – existe a verdadeira vida. Imagine a fundação
de cidades aquáticas, de aglomerados de casas submarinas que, como
o “Nautilus”, subissem todas as manhãs à superfície
dos mares para respirar. Cidades livres, cidades independentes! E daí,
talvez algum tirano…

O Capitão Nemo disse essas últimas palavras e fez um gesto
violento.

Depois, como que para afastar algum pensamento funesto, perguntoume: – O
professor sabe qual é a profundidade média dos oceanos? – Sei
apenas o que as últimas sondagens nos revelaram. Se não me engano,
verificou-se uma profundidade média de oito mil e duzentos metros no
Atlântico Norte e de dois mil e quinhentos metros no Mediterrâneo.

As sondagens mais importantes foram feitas no Atlântico Sul, perto
do trigésimo quinto grau, e deram: doze mil metros, quatorze mil e
noventa “e um metros e quinze mil cento e quarenta e nove metros.

Resumindo, calcula-se que se o fundo do mar fosse uniforme teria uma profundidade
média de cerca de sete quilômetros.

– Espero mostrar-lhe algo melhor do que isso – disse-me o capitão.
– Quanto à profundidade média desta zona do Pacífico,
digo-lhe que é de apenas quatro mil metros.

Dito isto, dirigiu-se para o alçapão e desapareceu pela escada.
Eu o segui e fui para o salão. A hélice pôs-se imediatamente
em movimento e o navio atingiu uma velocidade de vinte milhas por hora.

Nos dias e semanas que se seguiram, eu o vi muito raramente. O imediato
fazia o ponto de nossa posição todos os dias e o assinalava
no mapa. Assim eu podia seguir a rota do “Nautilus”.

Conselho e Land passavam muitas horas comigo. Conselho tinha contado ao
amigo as maravilhas do nosso passeio e o canadense lamentava não nos
ter acompanhado. Para consolo dele, todos os dias, durante algumas horas,
abriam-se os painéis do salão e os nossos olhos nunca se cansavam
de apreciar os mistérios do mundo submarino.

No dia 26 de novembro, às três horas da manhã, o “Nautilus”
chegou ao Trópico de Câncer, a cento e setenta e dois graus de
longitude. A 27, passou pelas ilhas Sandwich, onde o ilustre Capitão
Cook encontrou a morte no dia 14 de fevereiro de 1779. Tínhamos então
percorrido quatro mil oitocentas e sessenta léguas desde a partida.

De manhã, quando subi à plataforma, avistei, a duas milhas
para sotavento, o Havaí, a maior das sete ilhas que formam o arquipélago
do mesmo nome. A direção do “Nautilus” mantinha-se
para sueste. Passou o Equador no dia 1.° de dezembro, a 142° de longitude,
e no dia 4 do mesmo mês, após uma rápida travessia que
decorreu sem qualquer incidente, avistamos o grupo das ilhas Marquesas- Distingui
a três milhas, a 800 57′ de latitude sul e 1390 32′ de longitude oeste,
a ponta Martin, de NoukaHiva, a ilha principal deste grupo, que pertence à
França. Vi apenas as montanhas cobertas de arvoredo, que se desenhavam
no horizonte, porque o Capitão Nemo não gostava de se aproximar
de terra.

Após ter deixado essas ilhas paradisíacas, protegidas pela
bandeira francesa, o “Nautilus” percorreu, do dia 4 ao dia 11
de dezembro, cerca de duas mil milhas. Passei o dia 11 de dezembro a ler no
grande salão. Ned Land e Conselho observavam as águas luminosas
através dos painéis entreabertos’ O “Nautilus”
mantinha-se agora imóvel. Com os reservatórios cheios, conservava-se
a uma profundidade de mil metros, região pouco habitada, onde os peixes
de grande porte apareciam de vez em quando.

Eu lia o encantador livro de Jean Macé “Les Serviteurs de 1’estomac”,
saboreando as suas engenhosas lições, quando Conselho me interrompeu:
– Queira desculpar-me, professor, mas venha ver isso aqui.

Levantei-me, aproximei-me do vidro e olhei pelo painel.

Iluminada pela luz elétrica, uma enorme massa escura e imóvel
mantinha- se suspensa no meio das águas. Observei-a atentamente, tentando
reconhecer a natureza do gigantesco cetáceo. Mas de repente um pensamento
atravessou-me o espírito.

– É um navio! – exclamei.

– Sim – confirmou o canadense. – Um navio que naufragou.

Tínhamos diante de nós um navio, cujos cabos cortados pendiam
ainda das respectivas cadeias. O casco parecia estar em bom estado e o naufrágio
devia ter ocorrido poucas horas antes. Três pedaços de mastros,
cortados dois pés acima do convés, indicavam que o navio se
vira forçado a sacrificar a mastreação. Mas, adernando
de flanco, tinhase enchido de água e afundara, inclinado para bombordo.
Triste espetáculo, ver aquela carcaça perdida nas águas.
Ainda mais triste era ver os cadáveres no convés, amarrados
por cordas. Vi quatro homens, um dos quais se mantinha de pé, preso
ao leme, e uma mulher meio saída pela clarabóia do tombadilho,
segurando uma criança nos braços. Era uma mulher jovem, pois
pude ver-lhe claramente as feições iluminadas pelo farol do
“Nautilus”. Num esforço supremo, ela tinha erguido o filho
acima da cabeça, pobre criatura cujos bracinhos se agarravam ao pescoço
da mãe. A postura dos quatro marinheiros era assustadora, contorcendo-se
em movimentos convulsivos, fazendo um derradeiro esforço para se libertarem
das cordas que os prendiam ao navio. Só, mais calmo, o rosto grave
e sério, cabelos grisalhos colados à testa e as mãos
crispadas no leme, o timoneiro parecia ainda conduzir o seu navio naufragado
através das profundezas do oceano.

Que espetáculo! Ficamos mudos, com os corações a palpitarem
diante daquele naufrágio recente, e por assim dizer fotografado nos
seus momentos derradeiros. Via já avançar, com os olhos inflamados,
enormes esqualos, atraídos por aquelas iscas de carne humana.

Entretanto, o “Nautilus”, dando uma volta ao navio submerso,
permitiu me ler-lhe na ré: “Flórida, Sunderland”.

Capítulo XVIII

Esse horroroso espetáculo inaugurou a série de catástrofes
marítimas que o “Nautilus” iria encontrar em sua rota.
Desde que navegávamos por mares freqüentados, víamos muitas
vezes cascos naufragados que acabavam por apodrecer entre suas águas.
A maior profundidade víamos canhões, balas, âncoras, correntes
e mil outros objetos de ferro sendo devorados pela ferrugem.

Entretanto, sempre conduzidos pelo “Nautilus”, onde vivíamos
isolados, avistamos, no dia 11 de dezembro, o Arquipélago Pomotu, antigo
“grupo perigoso” de Bougainville. Esse arquipélago cobre
uma superfície de trezentas e setenta léguas quadradas e é
formado por sessenta grupos de ilhas, entre as quais se destaca o grupo Gambier,
ao qual a França impôs o seu protetorado. Um crescimento lento
mas contínuo dessas ilhas coralíneas, há de um dia ligá-las
entre si. Depois, esta ilha irá unir-se aos arquipélagos vizinhos,
e surgirá um quinto continente que se estenderá desde a Nova
Zelândia e a Nova Caledônia até as ilhas Marquesas.

No dia em que expus esta minha teoria ao Capitão Nemo, ele me respondeu,
friamente: – Não é de novos continentes que a terra precisa,
professor, mas de novos homens! A 15 de dezembro deixamos para leste o encantador
Arquipélago da Sociedade e a graciosa Taiti, rainha do Pacifico. De
manhã avistei, a algumas milhas a sotavento, os cumes elevados desta
ilha. As suas águas forneceram para a mesa de bordo excelentes peixes,
tais como cavalas, bonitos, albacoras e algumas variedades de uma serpente
do mar chamada “munérophis”.

O “Nautilus” já havia navegado oito mil e cem milhas.
Nove mil setecentas e vinte milhas era o total percorrido quando passou entre
o Arquipélago Tonga-Tabu, onde pereceram as equipagens do “Argo”,
do “Port-au-Prince” e do “Dulce of Portland”, e o
Arquipélago dos Navegadores, onde foi morto o Capitão Langle,
amigo de La Pérouse.

A seguir passou perto do Arquipélago Viti, onde os indígenas
chacinaram os marinheiros do “Union” e o Capitão Bureau,
de Nantes, comandante do “Aimable Joséphine”.

Esse arquipélago prolonga-se por uma extensão de cem léguas,
de norte para o sul, e de noventa léguas de leste para oeste, e está
compreendido entre 6° e 2° de latitude sul e 174° e 179° de
longitude oeste. É composto por um certo número de ilhas, ilhotas
e escolhos, entre os quais sé salientam as ilhas Viti-Levu, Vanua-Levu
e Kandubon.

Foi Tasman quem descobriu o arquipélago, em 1643, o mesmo ano em
que Torricelli inventava o barômetro e Luís XIV subia ao trono
da França. Qual desses acontecimentos foi mais útil à
humanidade? Vieram a seguir: Cook, em 1714, d’Entrecasteaux, em 1793,
e finalmente Dumont d’Urville, em 1827, que decifrou todo o caos geográfico
do arquipélago. O “Nautilus” aproximou-se da Baía
de Wailea, cenário das terríveis aventuras do Capitão
Dillon, o primeiro homem que conseguiu esclarecer o mistério do naufrágio
de La Pérouse.

No dia 25 de dezembro, navegava o “Nautilus” no meio do arquipélago
das Novas Hébridas, que Queirós descobriu em 1606, que Bougainville
explorou em 1768 e ao qual Cook deu, em 1773, o nome atual.

Era dia de Natal. Ned Land lamentou que não se celebrasse, a bordo
do “Nautilus”, o Christmas, verdadeira festa de família
pela qual os protestantes têm muito respeito.

Há oito dias eu não via o Capitão Nemo. No dia 27 pela
manhã ele entrou no grande salão, sempre com o ar de um homem
que nos deixou há cinco minutos. Eu estava entretido em seguir no planisfério
a rota do “Nautilus”. Ele se aproximou, indicou um ponto no mapa
e pronunciou uma única palavra – Vanikoro.

Era uma palavra mágica. Era o nome das ilhotas onde haviam naufragado
os navios de La Pérouse. Levantei-me interessado e perguntei – O “Nautilus”
ruma para Vanikoro? – Exatamente – informou-me o capitão.

– E poderei visitar as célebres ilhas onde se despedaçaram
o “Bússola” e o “Astrolábio”? – Se assim
o desejar, professor.

– Falta-nos muito para chegarmos lá? – Estamos em Vanikoro! Seguido
pelo Capitão Nemo, subi à plataforma de onde perscrutei avidamente
o horizonte. Bem próximo de mim, o capitão me perguntou o que
eu sabia sobre o naufrágio de La Pérouse.

– O que toda a gente sabe – respondi.

– E pode dizer-me o que toda a gente sabe? – perguntou-me, num tom irônico.

– Com todo o prazer, capitão.

Contei-lhe então o que os últimos trabalhos de Dumont d’Urville
tinham revelado.

Em 1785, La Pérouse e o seu imediato, o Capitão De Langle,
receberam ordens de Luís XVI para efetuarem uma viagem de circunavegação.

Partiram nas corvetas “Bússola” e “Astrolábio”,
que nunca mais regressaram. Em 1791, o governo francês, justamente alarmado
com o destino dos dois navios, armou duas grandes embarcações,
a “Recherche” e a “Espérance”, que zarparam
de Brest a 28 de setembro, sob o comando de d’Entrecasteaux. Dois meses
depois, sabia-se, pelas declarações de um tal Bowen, comandante
da “Albermale”, que haviam sido avistados destroços de
navios naufragados junto das costas da Nova Geórgia.

Mas d’Entrecasteaux, ignorando essas informações, muito
imprecisas aliás, dirigiu-se para as ilhas do Almirantado, apontadas
como sendo o local do naufrágio de La Pérouse num relatório
do Capitão Hunter.

As suas buscas foram infrutíferas. A “Espérance”
e a “Recherche” passaram ao largo de Vanikoro, sem se deterem.
Em suma, a missão foi um completo malogro, tendo além disso
custado a vida a d’Entrecasteaux, a dois dos seus imediatos, assim como
a vários membros da tripulação.

Foi um velho lobo-do-mar, o Capitão Dillon, o primeiro a encontrar
vestígios indiscutíveis dos naufragados. A 15 de maio de 1824,
o seu navio, o “Saint-Patrick”, passou perto da ilha Tikopia,
uma das Novas Hébridas. Ali foi abordado por um indígena numa
piroga, que lhe vendeu um punho de espada, de prata, que tinha sinais de caracteres
gravados com buril. O indígena informou ainda que seis anos antes,
durante uma sua estada em Vanikoro, tinha visto dois europeus que pertenciam
a navios naufragados há muitos anos nos recifes da ilha.

Dillon calculou que se trataria dos navios de La Pérouse, cujo desaparecimento
emocionara o mundo. Quis ir a Vanikoro onde, segundo o indígena, encontraria
numerosos destroços do naufrágio. Mas os ventos e as correntes
não permitiram que ele chegasse à ilha.

Dillon regressou então a Calcutá onde conseguiu interessar
pela sua descoberta a Sociedade Asiática e a Companhia das índias.
Foi posto à sua disposição um navio ao qual deram também
o nome de “Recherche”, e ele partiu no dia 23 de janeiro de 1827,
levando consigo um agente francês.

O navio, depois de ter tocado em vários pontos do Pacífico,
lançou âncora diante de Vanikoro em 7 de julho de 1827, no mesmo
porto de Vanu onde se encontrava o “Nautilus” naquele momento.

Ali ele recolheu numerosos restos do naufrágio: utensílios
de ferro, âncoras, estropos de roldanas, uma bala de dezoito milímetros,
instrumentos de astronomia já estragados, uma sineta de bronze com
a inscrição “Bazin fez”, marca da fundição
do Arsenal de Brest por volta de 1785. Não restavam, portanto, dúvidas.

Dillon permaneceu no local do sinistro até o mês de outubro,
a fim de completar as suas investigações. Depois deixou Vanikoro
e se dirigiu para a Nova Zelândia. Fundeou em Calcutá a 7 de
abril de 1828 e voltou a França, onde foi calorosamente acolhido por
Carlos X.

Contudo, por essa altura, Dumont d’Urville, que desconhecia as investigações
de Dillon e os seus resultados, tinha já partido para procurar em outras
paragens o local do naufrágio. Com efeito, soubera-se por um baleeiro
que algumas medalhas e uma truz de São Luís foram vistas com
os indígenas da Luisiana e da Nova Caledônia.

Dumont d’Urville, que comandava o “Astrolábio”,
fez-se ao mar. Dois meses depois de Dillon ter deixado Vanikoro, ele fundeava
diante de Hobart Town, onde teve conhecimento dos resultados obtidos por Dillon.
Ainda nessa cidade ele foi informado de que um tal James Hobbs, imediato do
“Union”, de Calcutá, ao pisar terra numa ilha situada a
8° 18′ de latitude sul e 156° 30′ de longitude leste, tinha visto
barras de ferro e tecidos vermelhos nas mãos dos indígenas.

Dumont d’Urville, bastante perplexo e não sabendo se devia
acreditar nessas histórias divulgadas por jornais pouco dignos de confiança,
decidiu seguir as pegadas de Dillon.

A 10 de fevereiro de 1828, chegava o “Astrolábio” a Tikopia.
Ele tomou por guia e intérprete um desertor que havia se fixado naquela
ilha, navegou para Vanikoro, que avistou a 12 de fevereiro, transpôs
os seus recifes e só no dia 20 fundeou no porto de Vanu.

No dia 23, seus oficiais deram uma volta à ilha e recolheram alguns
destroços sem importância. Os indígenas, com evasivas,
recusaram-se a conduzi-los ao local do sinistro. Esta conduta, que se lhes
afigurou muito suspeita, levou-os a pensar que os naturais da ilha teriam
maltratado os náufragos. De fato eles pareciam recear que Dumont d’Urville
tivesse ido à ilha para vingar La Pérouse e os seus infelizes
companheiros.

Nó entanto, a 26, os indígenas, convencidos com presentes
e entendendo que nada tinham a recear, levaram o imediato Jacquinot ao local
do naufrágio. Ali, a três ou quatro braças de profundidade,
entre os recifes Pacu e Vanu, jaziam âncoras, canhões, barras
de ferro e de chumbo. Com muito custo a chalupa e a baleeira do “Astrolábio”
chegaram ao local, e os marinheiros conseguiram retirar das águas uma
âncora pesando mil e oitocentas libras, um canhão de ferro fundido,
uma barra de chumbo e duas peças de cobre.

Interrogando os indígenas, Dumont d’Urville conseguiu saber
que La Pérouse, depois de ter perdido os seus dois navios nos rochedos
da ilha, havia construído uma embarcação menor, que por
sua vez afundaria…

Em que local? Ninguém sabia.

O comandante do “Astrolábio” mandou erigir um monumento
à memória do célebre navegador e dos seus companheiros.
Era uma simples pirâmide quadrangular, apoiada numa base de corais,
desprovida de qualquer coisa que pudesse suscitar a cobiça dos indígenas.

Tencionava Dumont d’Urville fazer-se ao mar imediatamente, mas a sua
tripulação estava minada pelas febres muito comuns naquelas
costas.

Ele próprio foi atacado por elas e só pôde levantar
âncora no dia 17 de março. Nesse meio tempo o governo francês,
receando que Dumont d’Urville não estivesse sabendo das pesquisas
de Dillon, enviara a Vanikoro a corveta “Bayonnaise”, comandada
por Legoarant de Tromelin. A “Bayonnaise fundeou diante de Vanikoro
alguns meses após a partida do “Astrolábio” e não
encontrou qualquer documento novo. Pôde verificar que os indígenas
haviam respeitado o monumento de La Pérouse.

Terminei nesse ponto o resumo do relato que fiz ao Capitão Nemo.

Sem me dizer uma palavra ele me fez um sinal para acompanhá-lo até
o salão. O “Nautilus” mergulhou alguns metros e os painéis
se abriram.

Precipitei-me para o vidro e avistei alguns destroços. Cabos de ferro,
âncoras, canhões, balas, uma guarnição de cabrestante,
uma roda de proa e outros objetos provenientes de navios naufragados, cobertos
de plantas marinhas.

Enquanto eu observava esses destroços, o Capitão Nemo disse-me:
– O Comandante La Pérouse partiu no dia 7 de dezembro de 1785 com os
seus navios “Bússola” e “Astrolábio”.
Fundeou primeiro em Botany Bay, visitou o Arquipélago dos Amigos e
a Nova Caledônia. Dirigiu-se para Santa Cruz e aportou em Namuka, uma
das ilhas do grupo Havaí. Depois os seus navios chegaram aos recifes
desconhecidos de Vanikoro. O “Bússola”, que navegava à
frente, encalhou na costa meridional, o mesmo acontecendo ao “Astrolábio”,
que fora em socorro dele. O primeiro desfez-se quase imediatamente, mas o
segundo, encalhado a sotavento, resistiu alguns dias. Os indígenas
deram bom acolhimento aos náufragos e eles se instalaram na ilha, tendo
construído uma embarcação bem pequena com o que puderam
aproveitar dos dois navios. Alguns marinheiros decidiram volurftariamente
ficar na ilha, enquanto os outros, fracos e doentes, partiram com La Pérouse.
Dirigiram- se para as ilhas Salomão e pereceram na costa ocidental
da ilha principal do grupo, entre os Cabos Decepção e Satisfação!
– Como sabe de tudo isso? – indaguei.

– Através do que encontrei no local desse último naufrágio.

O Capitão Nemo mostrou-me uma caixa de latão com as armas
da França gravadas, já corroída pelas águas do
mar. Abriu-a e vi um maço de papéis amarelados mas ainda legíveis.
Eram as instruções do próprio Ministro da Marinha ao
Comandante La Pérouse, com anotações do punho de Luís
XVI.

– É uma bela morte para um marinheiro!’- disse o Capitão
Nemo. – É um túmulo tranqüilo este, feito de corais. Deus
queira que tanto eu como os meus companheiros nunca tenhamos outro! Durante
a noite de 27 para 28 de dezembro, o “Nautilus” deixou a região
de Vanikoro a grande velocidade. Tomou a direção sudoeste e
em três dias percorreu as setecentas e cinqüenta léguas
que separam o grupo Lã Pérouse da ponta sueste da Papuásia.

No dia 1.0 de janeiro de 1868, Conselho foi ao meu encontro na plataforma.

– Dá-me licença para lhe desejar um bom Ano Novo, senhor?
– perguntou- me, com a gentileza que o caracterizava.

– Aceito e agradeço os seus votos, meu amigo. É como se estivéssemos
em Paris, no meu gabinete do Jardim Botânico. Apenas lhe pergunto o
que você entende por “um bom Ano Novo” nas circunstâncias
em que nos encontramos. Será um ano que porá fim à nossa
clausura ou um ano que verá continuar esta estranha viagem? – Para
lhe ser franco, senhor, não sei o que responder – disse-me Conselho.
– É verdade que temos visto coisas curiosíssimas e nesses dois
meses não tivemos tempo para nos aborrecermos. A última maravilha
é sempre mais surpreendente do que a anterior e se esta progressão
continuar, eu não sei onde chegaremos. Na minha opinião, em
nenhuma outra época teremos outra oportunidade como esta.

– Nunca, Conselho.

– Além disso, o senhor Nemo vem cumprindo à risca a promessa
que nos fez. Não tem nos incomodado de modo algum.

– Tem razão. Gozamos de inteira liberdade aqui.

– Penso, portanto, que não desagradará ao senhor se eu disser
que um bom ano será aquele que nos permitir ver tudo…

– Tudo? Isso talvez leve muito tempo. Entre vocês, como Ned Land está
reagindo a essa situação? – As idéias dele são
exatamente opostas às minhas, senhor. Ned é um espírito
positivo e um estômago imperioso. Observar os peixes e comêlos
não é suficiente para ele. A falta de vinho, pão e carne
é demais para um digno saxão, familiarizado com bifes e habituado
a beber gim ou “brandy”.

– Pela minha parte, isso não me atormenta, Conselho. Adaptei-me muito
bem ao regime de bordo.

– Eu também – disse-me ele. – Será por isso que eu penso tanto
em ficar, como Ned Land em fugir. Portanto, se o ano que começa não
for bom para mim, sê-lo-á para ele e vice-versa. Assim, sempre
haverá alguém satisfeito. Para concluir, o que eu realmente
desejo é que aconteça o que mais agradar ao senhor.

– Obrigado, meu amigo. Peço-lhe apenas que aguarde para outra ocasião
a troca dos presentes, e que agora a substituamos por um bom aperto de mão.
No momento é a única coisa que tenho.

– O senhor nunca foi tão generoso – respondeu ele, com rara felicidade.

No dia 2 de janeiro havíamos percorrido onze mil trezentas e quarenta
milhas, desde a nossa partida dos mares do Japão. Diante do esporão
do “Nautilus” estendiam-se as perigosas paragens do mar de Coral,
na costa nordeste da Austrália. A 4 de janeiro avistamos as costas
da Papuásia. Nessa altura o Capitão Nemo me informou de sua
intenção de chegar ao Oceano Indico através do Estreito
de Torres. Falei sobre isso a Ned Land e ele ficou satisfeito. Aquela rota
nos aproximava dos mares europeus.

O Estreito de Torres é considerado perigoso, tanto pelos escolhos
que o semeiam como pelos terríveis selvagens que habitam as suas margens.

Separa da Nova Holanda a grande ilha da Papuásia, também chamada
de Nova Guiné.

O “Nautilus” chegou à entrada do estreito mais perigoso
de todas as rotas marítimas conhecidas, uma passagem da qual se afastam
até os navegadores mais corajosos, estreito que Luís Paz de
Torres atravessou vindo dos mares do sul para a Malásia, e no qual,
em 1840, as corvetas de Dumont d’Urville quase se perderam. O próprio
“Nautilus”, superior a todos os perigos do mar, iria ter problemas
com aqueles recifes coralíneos.

O Estreito de Torres tem cerca de trinta e quatro léguas de largura,
mas está obstruído por numerosas ilhas, ilhotas, escolhos, que
tornam a navegação quase impraticável através
dele. O Capitão Nemo tomou todas as precauções para atravessá-lo.
O “Nautilus”, navegando á superfície, avançava
a uma velocidade moderada. A sua hélice, como a cauda de um cetáceo,
agitava as águas com lentidão.

Aproveitando essa calma, eu e meus companheiros fomos para a plataforma.
Diante de nós elevava-se a caixa do timoneiro. Era o próprio
Capitão Nemo quem se encontrava a dirigir o seu barco. O mar encrespava-se
ondulando ao nosso redor.

Eram três horas da tarde. Eu conversava com Ned Land sobre o local
perigoso que estávamos atravessando. De repente fui derrubado por um
choque. O “Nautilus” acabava de bater num escolho e se imobilizara,
ligeiramente inclinado para bombordo. Quando me levantei, vi o Capitão
Nemo e o seu imediato examinando o estado do navio e trocando algumas palavras
em seu idioma incompreensível. Tínhamos encalhado num desses
mares em que as marés são fracas, circunstância desfavorável
para o desencalhe do barco.

No entanto, o “Nautilus” não havia sofrido qualquer dano.
O grande risco era de que ele ficasse preso para sempre naqueles escolhos.
Eu pensava nessa desagradável possibilidade, quando o capitão,
frio e calmo, sempre senhor de si, parecendo não estar contrariado
e nem sequer emocionado, aproximou-se de mim e disse : – Um simples incidente.

– Mas que talvez o force a pisar a terra de que fugiu! – atrevi-me a falar.

Ele me olhou sem demonstrar a mínima irritação e fez
um gesto negativo, no qual se via a sua determinação de nunca
tornar a pôr os pés num continente. Então disse: – A nossa
viagem mal começou, Sr. Aronnax. Não desejo privar-me tão
depressa do prazer de sua companhia.

– No entanto, capitão – repliquei, ignorando o tom irônico
da frase dele – o “Nautilus” encalhou na maré alta. Ora,
as marés são fracas no Pacífico e como não pode
tirar o lastro do seu barco, não sei como poderá desencalhá-lo.

– As marés não são fortes no Pacífico, professor.
Mas no Estreito de Torres verifica-se uma diferença de um metro e meio
entre o nível das águas nas marés alta e baixa. Hoje
é dia 4 de janeiro e dentro de cinco dias teremos lua cheia. Muito
me surpreenderia se esse bondoso satélite não levantasse suficientemente
as águas, prestando-me um serviço que só a ele quero
ficar a dever.

Dito isso, chamou o seu imediato e desceram para o interior do submarino.

– Então? – perguntou-me Ned Land, aproximando-se.

– Esperaremos tranqüilamente pela maré do dia 9. Segundo o Capitão
Nemo, a lua fará o favor de nos fazer flutuar de novo.

– O senhor pode acreditar em mim: este monte de ferro não tornará
a navegar nem em cima e nem debaixo das águas. Agora só serve
para a sucata – vaticinou ele. – Portanto, acho que chegou o momento de deixarmos
a companhia do Capitão Nemo.

– Eu não penso como você, meu caro Ned. Dentro de quatro dias
saberemos como agem as marés do Pacifico neste estreito. Aliás,
a idéia de fugirmos poderia ser oportuna se estivéssemos à
vista das costas da Inglaterra ou da Provença, mas nas costas da Papuásia…

– Mas pelo menos não poderíamos ir à terra, já
que vamos ficar parados aqui todos esses dias? – perguntou Ned e acrescentou:
– Ali está uma ilha onde há árvores e animais terrestres
que forneceriam bons bifes e boas costeletas, nas quais eu daria umas dentadas
com imensa satisfação.

– Quanto a isso eu tenho a mesma opinião de Ned Land, professor –
disse Conselho. – O senhor poderia conseguir que o Capitão Nemo nos
mandasse levar a terra, pelo menos para não perdermos o hábito
de pisar as partes sólidas do nosso planeta.

– Posso experimentar – concordei – mas estou certo de que ele se recusará.

– Pelo menos ficaremos informados sobre a amabilidade do capitão
– ponderou o meu criado.

Para minha grande surpresa, o Capitão Nemo concedeu a autorização
sem qualquer dificuldade, sem mesmo ter exigido a promessa de voltarmos para
bordo.

O bote foi posto à nossa disposição para a manhã
seguinte. Não procurei saber se o Capitão Nemo nos acompanharia.
No dia seguinte, 5 de janeiro, a pequena embarcação foi retirada
do seu lugar e lançada ao mar por apenas dois homens da tripulação.
Os remos estavam no seu lugar, e só nos restava entrarmos nela. Ainda
me surpreendendo, o capitão não nos impôs nenhum tripulante.
Ned Land governaria sozinho a embarcação. A terra encontrava-se
a menos de duas milhas e para ele seria uma brincadeira conduzir o bote entre
aqueles recifes tão perigosos para os grandes navios.

As oito horas, armados com machados e espingardas, deixamos o “Nautilus”.
O mar estava bastante calmo. Uma brisa ligeira soprava da terra. Conselho
e eu remávamos vigorosamente, enquanto Ned governava o bote pelas estreitas
passagens que as rochas deixavam entre si.

O canadense não podia conter a, sua alegria. Parecia um prisioneiro
fugido da prisão e nem sequer pensava que teríamos de voltar
ao submarino. Estava realmente vibrando com o acontecimento.

– Carne! – repetia ele sem cessar. – Vamos comer carne! Pena não
haver pão. Um bom pedaço de carne fresca, grelhada sobre umas
brasas… O que me diz disso, Conselho? – Que você está me deixando
com água na boca, seu glutão.

– Resta-nos saber – achei bom preveni-los para uma decepção
– se esta floresta tem caça e se ela não será de tamanho
tal que possa caçar o caçador.

– Não importa, Sr. Aronnax – retrucou Ned Land. – Comerei tigre,
isso mesmo, lombo de tigre, se não houver outro quadrúpede na
ilha.

– O amigo Ned é inquietante! – comentou, rindo, Conselho.

– Seja o que for, todo animal de quatro patas sem penas ou de duas patas
com penas, será cumprimentado com um tiro meu – jactou-se o canadense.

– Bom! – exclamei. – Aí temos promessas imprudentes, mestre Land.

– Não tenha medo, Sr. Aronnax e reme com força. Dentro de
vinte minutos estarei lhe oferecendo um prato de verdadeira carne, feito por
mim com todo capricho.

As oito e meia, o bote do “Nautilus” foi encalhar suavemente
no areal, depois de ter ultrapassado o anel de coral que rodeava a ilha.

Capítulo XX

Fiquei vivamente impressionado ao pisarmos em terra. Ned Land experimentava
o solo com os pés, como se estivesse praticando um ato para tomar posse
dele. No entanto, havia apenas dois meses que, segundo a expressão
do Capitão Nemo, éramos “passageiros” do “Nautilus”.
Na verdade, éramos prisioneiros dele.

Caminhamos para o interior da ilha. Depois de atravessarmos uma mata pouco
densa, encontramo-nos numa planície cheia de arbustos. Vi então
elevarem-se nos ares magníficas aves. O vôo ondulado, a graça
das curvas aéreas e o brilho das cores atraíam e deliciavam
o olhar.

Não tive dificuldade em reconhecê-las.

– Aves-do-paraíso! – exclamei.

– Ordem dos pássaros, seção dos clistómoros
– disse Conselho.

– Família dos pardais? – perguntou Ned Land.

– Não creio, mestre Land – falei-lhe. – Mesmo assim, conto com a
sua destreza para apanhar um desses encantadores produtos da natureza tropical.
Eu gostaria muito de ter um deles.

– Vou tentar, professor. No entanto, o senhor sabe que estou mais habituado
a manejar o arpão do que a espingarda.

Os malaios, que fazem grande comércio destas aves com os chineses,
dispõem de diversos meios para as apanhar, mas nós não
tínhamos recursos para pô-los em prática.

Por volta. das onze horas da manhã, já tínhamos chegado
ao primeiro plano das montanhas que formavam o centro da ilha. Para decepção
de todos nós, mas principalmente de Ned Land, ainda não havíamos
caçado coisa alguma. A promessa dele já havia falhado. A fome
apertava.

Tínhamos nos fiado no produto da caça, mas ela não
aparecera.

Felizmente, para sua grande surpresa, o meu criado assegurou-nos o almoço.
Matou um pombo manso e um trocaz. Rapidamente depenados e espetados num pau,
foram assados numa fogueira. Devorados até os ossos, nós os
achamos excelentes. A noz-moscada de que costumam alimentar-se essas aves
dá-lhes um sabor delicioso à carne.

– E agora, Ned, o que lhe falta? – perguntei ao canadense, ao terminarmos
o repasto.

– Um quadrúpede, Sr. Aronnax. Esses pombos não passam de acepipes,
de guloseimas. Enquanto não matar um animal que nos brinde com costeletas,
não me senti- rei satisfeito.

– Nem eu, se não apanhar uma ave-do-para&iacutiacute;so – falei.

– Continuemos .portanto a caça – propôs Conselho – mas em direção
ao mar. Chegamos às primeiras montanhas e acho que é melhor
voltarmos à região das florestas.

Era uma proposta sensata e foi seguida. Após uma hora de marcha chegamos
a uma floresta de salgueiros. Algumas serpentes inofensivas fugiam à
nossa aproximação. As aves-do-paraíso desapareciam assim
que nos viam e eu já me desiludia de apanhar uma delas quando Conselho,
que ia à frente, abaixou-se de repente, soltou um grito de triunfo
e correu para mim trazendo na mão uma delas.

– Você deu um golpe de mestre, Conselho! – elogiei-o, realmente admirado.
– Apanhar uma ave-do-paraíso viva, à mão, não
é façanha para qualquer um.

– Se o senhor a examinar de perto, verá que não tive grande
mérito, professor – disse-me ele. A seguir, explicou o pouco valor
de feito, em seu próprio julgamento: – Esta ave está. bêbada
pela noz-moscada que devorava quando a peguei. Veja, amigo Ned, veja o resultado
da intemperança! – Com mil diabos! – retrucou o canadense. – Há
dois meses que nem cheiro gim! Entretanto, eu examinava a ave constatando
que meu criado não se enganara. Ela estava realmente embriagada com
o suco capitoso da fruta e completamente incapaz de voar. Pertencia à
mais bela das oito espécies encontradas na Papuásia e nas ilhas
vizinhas. Tratava-se de uma ave-do-paraíso “grande esmeralda”,
uma das mais raras. Eu desejava ardentemente levar o soberbo espécime
para o oferecer ao Jardim Botânico, que não possuía nenhum
exemplar vivo dessas aves.

No entanto, se o meu desejo estava satisfeito com a captura da ave, o do
canadense continuava desatendido. Felizmente, por volta das duas horas, Ned
Land conseguiu abater um belo porco selvagem, ao qual os naturais da região
chamam de bari-utang. O animal veio mesmo a calhar para nos fornecer verdadeira
carne de quadrúpede. O arpoador não cabia em si de vaidoso,
já que o porco caíra fulminado com o primeiro disparo que ele
fizera. Teríamos costeletas na refeição da noite.

Estávamos muito satisfeitos com os resultados de nossa caçada.
O alegre canadense propunha-se a regressar no dia seguinte àquela ilha
encantada que ele pretendia despovoar de todos os quadrúpedes comestíveis.
Mas não contava com o que estava para acontecer.

As seis horas da tarde, nós estávamos na praia, próximos
ao bote. O “Nautilus”, semelhante a um grande escolho, emergia
das águas a duas milhas de distância.

Ned Land, sem mais delongas, ocupou-se da importante tarefa de fazer o jantar.
As costeletas do bari-utang, assando-se nas brasas exalavam um cheiro delicioso
que perfumava a atmosfera. Degustávamos antecipadamente o prazer de
um excelente jantar.

– E se não voltássemos esta noite ao “Nautilus?”
-lembrou Conselho, numa perigosa proposta.

– E se nunca mais voltássemos? – Ned Land fez justamente a pergunta
que eu esperava ouvir dele.

Naquele momento, uma pedra caiu aos nossos pés, interrompendo a proposta
do canadense.

As pedras não caem assim do céu! – disse Conselho.

Uma segunda pedra, cuidadosamente arredondada, que tirou da mão de
Conselho um pedaço de carne, assustou-nos.

Levantamo-nos os três, de espingardas em punho, prontos para responder
a qualquer ataque.

– Serão macacos? – perguntou Ned Land.

– Mais ou menos – respondeu Conselho. – São selvagens.

– Corramos para o bote! – apressei-os, dirigindo-me para o mar.

De fato, era forçoso que fugíssemos, porque uns vinte indígenas,
armados de arcos e fundas, surgiam na orla de uma mata à direita de
onde estávamos, a cerca de cem passos. Aproximavam-se sem correr, mas
demonstrando hostilidade, atirando suas pedras e flechas contra nós.

Chegamos em dois minutos à beira do mar. Carregar o bote com as nossas
provisões da caçada, empurrá-lo para a água è
montar os remos, foi uma questão de segundos. Ainda não tínhamos
avançado dez metros e já uma centena de selvagens, gritando
e gesticulando, entrava na água.

Vinte minutos depois estávamos chegando a bordo do “Nautilus”.
Os alçapões estavam abertos e penetramos nele. Fui diretamente
ao salão de onde saíam alguns acordes de órgão.
Encontrei o Capitão Nemo curvado sobre ele e mergulhado num verdadeiro
êxtase musical. Precisei de chamá-lo duas vezes, para que me
desse atenção.

– Ah! É o professor – falou, voltando-se para mim. – Então
fez boa caçada? – Sim, capitão, mas infelizmente trouxemos um
bando de bípedes cuja presença me parece muito inquietante.

– Selvagens – adivinhou ele e comentou num tom irônico. – O senhor
admira-se de ter encontrado selvagens nesta região? Onde é que
não há selvagens, professor? Aliás, os daqui serão
piores do que aqueles que o senhor não considera como tais? – Mas,
capitão…

– Eu pelo menos os tenho encontrado em todos os lugares.

– Pois bem, não vou discutir o seu ponto de vista. Mas se não
quer receber os selvagens daqui, a bordo do “Nautilus”, acho que
deve tomar algumas precauções.

– Tranqüilize-se, professor, não há motivo para preocupações.

– Mas são numerosos, capitão. Há uma centena deles
vindo para cá.

– Sr. Aronnax – disse ele, voltando sua atenção para o teclado
do órgão – mesmo que todos os indígenas da Papuásia
se tivessem reunido na praia, o “Nautilus” nada teria a recear
dos seus ataques.

Os dedos do capitão começaram então a percorrer o teclado.
Notei que ele tocava apenas nas teclas pretas, o que dava à música
um colorido essencialmente escocês. Não tardou a esquecer a minha
presença e a mergulhar num devaneio que eu não quis perturbar.

Subi à plataforma. Já era noite, porque naquela latitude o
sol se põe rapidamente e sem crepúsculo. Eu mal distinguia a
ilha, mas as numero sas fogueiras acesas na praia indicavam que os indígenas
não a tinham abandonado. Permaneci um longo tempo atento a qualquer
movimentação deles. Por volta da meia-noite, vendo que tudo
continuava tranqüilo, voltei para o meu quarto e dormi sem maiores preocupações.

As oito horas da manhã seguinte, subi à plataforma. Os indígenas
continuavam na praia, mas em número bem superior aos que eu vira na
véspera. Agora seriam uns quinhentos ou seiscentos. Aproveitando a
maré baixa alguns deles tinham avançado pelos corais e estavam
a menos de quatrocentos metros do submarino. Eu podia vê-los muito bem.
Eram papuas, de porte atlético, homens de uma bela raça, de
testa alta, nariz grosso mas não achatado e dentes brancos. Em geral,
andavam nus. Notei a presença de algumas mulheres, vestidas com uma
verdadeira saia de ervas presa na cintura cobrindo até os joelhos.

Quase todos os homens estavam armados de arcos, flechas e portavam escudos.
Traziam ao ombro uma espécie de rede que continha as pedras arredondadas
que atiram certeiramente com as fundas.

Um dos chefes, bastante próximo do “Nautilus”, observava-o
com atenção. Devia ser um “mado” de alta estirpe,
porque trazia uma esteira de folhas de bananeira, recortada nas pontas e pintada
com diversas cores. Eu poderia facilmente abatê-lo com um tiro, mas
pensei que seria melhor aguardar demonstrações mais hostis da
parte deles. Entre europeus e selvagens, convém que os europeus não
ataquem primeiro.

Durante todo o tempo que durou a maré baixa, os indígenas
rondaram perto do “Nautilus”, mas não se mostraram agressivos.
Eu os ouvia dizendo seguidamente a palavra “assai”, e pelos seus
gestos compreendi que me convidavam para ir a terra, convite que não
aceitei. As onze horas da manhã, quando as cristas dos corais começaram
a desaparecer sob as águas da maré que subia, eles voltaram
para a terra.

Não tendo nada de melhor para fazer, chamei Conselho e pedi a ele
que me trouxesse uma rede pequena, dessas utilizadas para apanhar ostras.
Ele a trouxe logo e ficou ao meu lado, ajudando-me a puxar a rede que sempre
vinha carregada com conchas comuns, ostras perlíferas e algumas tartarugas
pequenas. Sempre observando o que apanhávamos, eu encontrei uma concha
que me chamou a atenção porque a sua. espira em vez de estar
enrolada da direita para a esquerda, estava enrolada da esquerda para a direita.
Uma concha canhota.

Eu estava observando o meu precioso achado quando uma pedra atirada desastradamente
por um indígena quebrou-a na mão de meu criado que a segurava
naquele momento. Soltei uma exclamação de aborrecimento. Aquela
concha era realmente um belo objeto.

Conselho pegou a espingarda e fez pontaria em um selvagem que balançava
a sua funda a uma distância de dez metros de nós. Tentei impedi-lo
de disparar, mas o tiro saiu e a bala foi quebrar a pulseira de amuletos que
pendia do braço do indígena.

– Foi aquele canibal que começou o ataque, senhor! – desculpou-se
ele, quando reprovei o seu ato.

A situação alterou-se em poucos instantes. Cerca de vinte
pirogas cheias de indígenas se dirigiram para o “Nautilus”.

– Vou prevenir o Capitão Nemo – falei e desci rapidamente pelo alçapão.

Uma chuva de flechas começara a cair na plataforma do barco.

Fui encontrar o capitão no seu quarto e lhe expus a situação.

Ele me ouviu tranqüilamente e depois disse: – Então só
temos que fechar os alçapões.

– Precisamente, capitão. As pirogas dos indígenas estão
a cercar-nos.

Dentro de alguns minutos seremos assaltados por algumas dezenas de selvagens.

– Não corremos tal risco, professor – sossegou-me o capitão.

Apertou um botão em sua mesa, aguardou um momento e me disse – Pronto,
professor. O bote está guardado e os alçapões estão
fechados.

O senhor certamente não receia que esses cavalheiros derrubem as
muralhas. que as balas da sua fragata não conseguiram penetrar.

– Não, capitão, mas existe ainda um perigo.

– Qual? A amanhã por esta hora, será preciso reabrir os alçapões
para renovar o ar do “Nautilus”. Se nessa ocasião os papuas
ainda estiverem na nossa plataforma, não vejo como os impedirá
de entrarem a bordo.

Como são algumas centenas. . . – Pois bem, que entrem. Não
vejo motivo algum para impedi-los. No fundo, esses papuas são uns pobres-diabos,
e não desejo que a minha estada na ilha Gueboroar fique assinalada
pela morte de algum desses infelizes. Amanhã – acrescentou ele, após
uma pequena pausa – às duas horas e quarenta minutos da tarde, o “Nautilus”
flutuará e deixará, sem qualquer avaria, o Estreito de Torres.

Ditas estas palavras, o Capitão Nemo inclinou-se ligeiramente, indicando
que a nossa entrevista havia terminado.

No dia seguinte trabalhei em minhas anotações até as
onze horas. Não percebi nenhum movimento a bordo que significasse qualquer
preparação para uma partida na parte da tarde. Aguardei mais
algum tempo e depois me dirigi para o salão. O relógio marcava
duas horas e meia.

Dentro de dez minutos a maré atingiria o máximo de sua altura
e, se o Capitão Nemo não tivesse feito uma promessa vã,
o “Nautilus” flutuaria imediatamente para partirmos.

Não tardei a perceber alguns estremecimentos de :bom augúrio
no casco do navio e ouvi rangerem as asperezas calcárias do fundo coralígeno
nas chapas de ferro.

As duas horas e trinta e cinco minutos, o Capitão Nemo apareceu no
salão e me disse: – Vamos partir. Já dei ordens para que os
alçapões sejam abertos.

– E os papuas? Não vão entrar no “Nautilus”, capitão?
– Sr. Aronnax – respondeu-me ele, tranqüilamente – não se entra
à vontade pelos alçapões do meu barco, mesmo quando estão
abertos.

Olhei para ele, sem esconder a minha incredulidade.

– Venha comigo, professor, venha ver pessoalmente.

Acompanhei-o para a escada central onde Ned Land e Conselho, muito intrigados,
observavam alguns homens da tripulação que abriam os alçapões,
enquanto se ouviam no exterior os gritos ameaçadores dos papuas. Os
postigos foram descidos exteriormente e apareceram vinte caras horríveis.
Mas o primeiro indígena que pegou no corrimão da escada foi
projetado para trás, eu não sabia por que força invisível,
e pôs-se em fuga, dando gritos de terror e enormes saltos. Seguiram-se
lhe dez companheiros, que tiveram a mesma sorte.

Conselho estava extasiado. Ned Land, levado pelo seu instinto violento,
precipitou-se para a escada. Assim que tocou no corrimão caiu também.

– Com mil diabos! Estou fulminado! A exclamação do canadense
explicava tudo. Aquilo não era um corrimão comum, mas um cabo
de metal carregado de eletricidade. Quem lhe tocasse receberia um choque que
seria mortal, se o Capitão Nemo tivesse lançado nele uma corrente
de maior potência.

Os papuas, apavorados, tinham se retirado, enquanto nós ríamos
e consolávamos o infeliz Ned Land, que continuava praguejando como
um possesso. Sua ousadia fora bem castigada.

Logo depois, levantado pelas últimas ondas da maré cheia,
o submarino deixava o leito de coral, exatamente na hora prevista pelo capitão.
A hélice virava as águas com majestosa lentidão e a sua
velocidade foi aumentando pouco a pouco. O “Nautilus”, navegando
à superfície, deixou as perigosas paragens do Estreito de Torres,
são e salvo.

Capítulo XXII

Navegamos para oeste. No dia 11 de janeiro dobramos o Cabo Wessel, que forma
a extremidade do Golfo da Carpentária. Os recifes ainda eram numerosos,
mas mais espalhados e assinalados na carta com bastante precisão. O
“Nautilus” evitou os escolhos de Money a bombordo e os recifes
de Vitória a estibordo.

A 13 de janeiro, o Capitão Nemo avisou-me que estávamos no
Mar de Timor e à vista da ilha do mesmo nome. Esta ilha, cuja superfície
é de mil seiscentos e vinte e cinco léguas quadradas, é
governada por rajás, príncipes que se dizem filhos de crocodilos,
o que . para eles significa que são descendentes da mais nobre origem
a que um ser humano pode aspirar. Os seus escamosos antepassados enchem os
rios da ilha e são objeto de uma veneração especial.
São protegidos, mimados, adorados, e alimentados com jovens virgens,
em ocasiões especiais. Desgraçado do estrangeiro que puser as
mãos num desses animais, como é o caso desses enormes lagartos
sagrados.

Passamos ao largo dessa ilha. A 18 de janeiro, ó “Nautilus”
estava a 1050 de longitude e 150 de latitude meridional. O tempo era ameaçador
e o mar agitado. O vento soprava forte de leste. Havia alguns dias que o barômetro
estava descendo, anunciando para breve uma luta dos elementos.

Subi para a plataforma no momento em que o imediato procedia às medições
dos ângulos solares. Esperei que ele, segundo o seu costume, pronunciasse
a frase quotidiana, mas naquele dia ela foi substituída por uma outra
não menos incompreensível. Quase imediatamente vi surgir o Capitão
Nemo perscrutando o horizonte com o óculo de longo alcance.

Percebi que ele fixava um ponto determinado, permanecendo imóvel
durante alguns minutos. Depois baixou o óculo e trocou uma dezena de
palavras com o imediato, que estava visivelmente emocionado. O capitão
mantinha-se frio e parecia fazer certas perguntas que o seu auxiliar respondia
com afirmativas formais.

Enquanto eles conversavam, eu olhei diversas vezes na direção
em que o capitão tinha olhado e não vi coisa alguma. O céu
e a água confundiam- se na linha do horizonte com uma perfeita nitidez.

Entretanto, o Capitão Nemo andava de um extremo ao outro da plataforma,
parecendo ignorar a minha presença ali. O seu passo era seguro, mas
menos regular do que o habitual. As vezes parava, cruzava os braços
e observava o mar.

O imediato tornara a pegar no óculo e olhava obstinadamente o horizonte,
de um lado para o outro, batendo com o pé, contrastando com o capitão
pelo seu evidente nervosismo. Em dado momento, ele chamou de novo a atenção
do seu superior para o horizonte. O Capitão Nemo parou o seu passeio
e dirigiu o óculo para o ponto indicado. Observou por um longo tempo
na mesma direção. Intrigado para saber o que estava acontecendo
naquele ponto longínquo, que prendia tanto a atenção
deles, desci ao salão e peguei um excelente óculo de longo alcance
que costumava utilizar. Apoiando-o na caixa do farol, saliente na frente da
plataforma, preparava-me para ver toda a linha do céu e do mar. Ainda
não tinha posto o óculo em posição e ele me foi
arrancado das mãos.

Voltei-me e vi o Capitão Nemo diante de mim, chamando-me logo a atenção
a sua fisionomia alterada. As sobrancelhas franzidas, os olhos brilhantes,
o corpo tenso, todo o seu aspecto era o de um homem enraivecido. O meu óculo
caíra de suas mãos e ele parecia nem ter notado isso. Seria
eu a causa de toda aquela ira? Por fim o Capitão Nemo recuperou a calma.
O seu rosto readquiriu o aspecto habitual. Dirigiu algumas palavras ao seu
imediato e depois voltou-se para mim e disse: – Sr. Aronnax – sua voz tinha
um tom imperioso – exijo-lhe o cumprimento de um dos compromissos que assumiu
comigo.

– De que se trata, capitão? – O senhor e os seus companheiros vão
se recolher voluntariamente à cela e ficarão trancados lá
até que eu ache conveniente devolvê-los à liberdade.

– É o senhor quem manda – falei, olhando-o fixamente. – Posso lhe
fazer uma pergunta? – Nenhuma.

Diante desta resposta só me restava obedecer. Desci à cabina
ocupada por Ned Land e Conselho e informei-os da determinação.
Quatro homens da tripulação esperavam à porta e não
houve tempo para as explicações que o canadense queria. Voltamos
à cela onde tínhamos passado a nossa primeira noite a bordo
do “Nautilus”. Depois que ficamos sozinhos contei-lhes o que tinha
se passado na plataforma do barco. Aliás, eu não tinha muita
coisa para informar a eles.

Entretanto, mergulhei num abismo de reflexões e a estranha fisionomia
do Capitão Nemo não me saía do pensamento. Mas eu era
incapaz de juntar duas idéias lógicas e perdia-me nas mais absurdas
hipóteses até que Ned Land me tirou daquela tensão.

– Serviram-nos o almoço, professor – anunciou-me ele.

Acabado o almoço, cada um de nós se recostou para o seu lado.
Meus companheiros dormiram logo. Eu pensava sobre o que teria provocado neles
aquele desejo imperioso de dormir, quando senti o meu cérebro invadido
por forte torpor. Era evidente que haviam misturado substâncias soporíferas
na comida que nos serviram. Tentei resistir ao sono mas não consegui.

Capítulo XXIII

No dia, seguinte acordei com a cabeça estranhamente aliviada. Para
minha grande surpresa, encontrava-me rio meu quarto. Certamente os meus companheiros
também tinham sido levados para a sua cabina enquanto dormiam. O que
teria se passado durante aquela noite? Para desvendar esse mistério
eu só podia contar com o acaso do futuro.

Saí do quarto, passei pelos corredores, subi a escada central e vi
que os alçapões, fechados na véspera, estavam abertos.
Subi à plataforma e encontrei Ned Land e Conselho. Como eu, nada tinham
visto, nada sabiam.

Quanto ao “Nautilus”, tranqüilo e misterioso corne sempre,
navegava à superfície a uma velocidade moderada. Nada parecia
ter mudado a bordo. Resolvi voltar ao meu quarto para continuar as minhas
anotações sobre aquela incrível viagem submarina.

Por volta das duas horas encontrava-me no salão quando o capitão
abriu a porta e entrou. Cumprimentamo-nos. Reparei que ele tinha o rosto fatigado
e a sua fisionomia exprimia uma profunda tristeza. Quando falou comigo foi
para me perguntar se eu era médico. Diante de minha resposta afirmativa,
ele me disse que um de seus homens estava doente. Perguntou-me se eu estaria
disposto a tratar dele e, novamente, a minha resposta foi afirmativa. O Capitão
Nemo me conduziu imediatamente à ré do navio onde ficava o alojamento
da tripulação. O homem não estava apenas doente, estava
gravemente ferido e não demoraria a morrer.

Depois de examiná-lo demoradamente, eu disse ao capitão: –
Não há nada que eu possa fazer. Este homem morrerá dentro
de duas horas.

A mão do capitão crispou-se e algumas lágrimas caíram-lhe
dos olhos que eu julgava incapazes de chorar.

– Pode retirar-se, Sr. Aronnax – disse-me ele.

Na manhã seguinte subi à plataforma e encontrei o capitão
lá. Assim que me viu chegar, ele veio falar comigo.

– Deseja fazer hoje uma excursão submarina, professor? – perguntoume.

Notei que ele continuava triste.

– Com os meus companheiros? – indaguei.

– Se eles quiserem.

– Estamos às suas ordens, capitão.

– Então chame os seus amigos e vão vestir os escafandros.

Sobre o moribundo ou o morto, ele manteve silêncio total.

As oito e meia da manhã estávamos prontos para o novo passeio.

Dessa vez, Ned Land não pôs nenhum obstáculo para vestir
o escafandro e nos acompanhar. O Capitão Nemo chegou seguido de .doze
dos seus homens, a porta dupla foi aberta, eles saíram e nós
os seguimos a pé a uma profundidade de dez metros, sobre a terra firme
onde repousava o “Nautilus”. Eu gostaria de poder entender as
reações que se desenhavam na fisionomia do canadense.

Depois de andarmos por um longo tempo, chegamos ao início de uma
floresta petrificada, com longas veredas de arquitetura fantasista. O Capitão
Nemo seguiu por uma obscura galeria cuja suave inclinação nos
conduziu a uma profundidade de cerca de trezentos metros. Mas ali não
existiam mais os arbustos isolados, nem a modesta mata de baixa altura que
vínhamos encontrando. Era a floresta imensa, as grandes vegetações
minerais, as enormes árvores petrificadas, reunidas por elegantes grinaldas,
lianas do mar, cheias de tonalidades e reflexos.

Passamos livremente sob as suas altas copas perdidas na escuridão
das águas, enquanto os nossos pés pisavam um fofo tapete semeado
de jóias deslumbrantes. Um mundo realmente fantástico.

O Capitão Nemo parou no centro de uma grande clareira, rodeada de
altas árvores. Os seus homens formaram um semicírculo em volta
dele.

Observando com mais atenção verifiquei que quatro deles transportavam
aos ombros um objeto de forma oblonga.

Ned Land e Conselho estavam perto de mim. Ao ver tudo aquilo, deduzi que
iríamos presenciar uma cena estranha. Olhando o solo, verifiquei que
em certos pontos podiam-se notar pequenas elevações dispostas
com uma regularidade que traía a mão do homem. No meio da clareira,
sobre um pedestal de rochas toscamente amontoadas, erguia-se uma cruz de coral
estendendo os seus longos braços que se diriam feitos de sangue petrificado.

A um sinal do Capitão Nemo um dos seus homens avançou e, a
alguns passos da cruz, começou a escavar um buraco com uma picareta
que tirou do cinto. Então compreendi tudo! Aquela clareira era um cemitério.

O objeto oblongo que os homens carregavam nos ombros era o seu companheiro
falecido conforme eu previra.

O Capitão Nemo e os seus homens iam enterrar o companheiro naquela
morada comum, no fundo do oceano inacessível! Eu mal podia acreditar
no que os meus olhos viam. Mas o trabalho prosseguiu, a cova foi aberta e
os portadores do corpo se aproximaram e o deitaram no seu úmido túmulo.
O Capitão Nemo, de braços cruzados sobre o peito, acompanhado
de todos os amigos do falecido, se ajoelhou em oração. Eu e
meus dois companheiros inclinamos as nossas cabeças.

Depois o capitão e seus homens se levantaram e, aproximando-se mais
do túmulo, cada um deles dobrou um joelho e estendeu a mão num
último adeus sem palavras. Sempre guiado pelo Capitão Nemo,
o cortejo fúnebre retornou ao “Nautilus”.

Assim que despi o escafandro e subi à coberta, o capitão foi
falar comigo. Antes que me dissesse qualquer coisa eu lhe falei: – Confirmando
a minha previsão, o homem morreu durante a noite.

– Sim, Sr. Aronnax – confirmou ele.

– E agora repousa junto dos companheiros no cemitério de coral.

– É exato, professor. É ali o nosso agradável cemitério
. . .

– Onde os seus mortos podem repousar tranqüilos, fora do alcance dos
tubarões! – Sim, dos tubarões e dos homens – respondeu-me em
tom grave.

Segunda Parte

O FUNDO DO MAR – Capítulo I

Aqui começa a segunda parte dessa viagem submarina. A primeira terminou
com a comovente cena do cemitério de coral, que deixou no meu espírito
a mais profunda emoção. Assim, no seio do mar imenso, decorria
a vida do Capitão Nemo e aí ele ficaria até a morte,
já que tinha preparado o seu túmulo no mais impenetrável
dos seus abismos, onde nenhum dos monstros do oceano poderia ir perturbar
o último sono do comandante e dos tripulantes do “Nautilus”,
esses amigos unidos uns aos outros tanto na vida como na morte. “Nenhum
homem também”, acrescentara o capitão, iria perturbar-lhes
o sono eterno. Sempre a mesma desconfiança, feroz e implacável,
para com as sociedades humanas.

Quanto a mim, no que dizia respeito ao Capitão Nemo já não
me contentava com as hipóteses que satisfaziam Conselho. Para ele,
o capitão era um gênio incompreendido que, farto das decepções
da terra, tinha se refugiado naquele meio inacessível onde os seus
instintos atuavam livremente. Todavia, na minha opinião, essa hipótese
explicava apenas uma das facetas do Capitão Nemo.

Efetivamente, o mistério da noite durante a qual ele havia nos metido
na prisão e nos narcotizado, a sua atitude violenta ao me tirar o óculo
das mãos, o ferimento mortal daquele homem, tudo isso ultrapassava
o natural. Para mim o Capitão Nemo não se contentava apenas
em fugir dos homens. O seu formidável submarino servia não somente
aos seus anseios de liberdade, mas também para exercer quaisquer terríveis
represálias.

Felizmente nada nos ligava a ele. Nem sequer éramos prisioneiros
sob palavra. Não nos unia qualquer compromisso de honra. Não
passávamos de cativos, de prisioneiros disfarçados sob o nome
de hóspedes por uma simples amabilidade. No entanto, Ned Land ainda
não renunciara à esperança de recuperar a liberdade,
e não deixaria de aproveitar a primeira oportunidade que lhe surgisse.
Certamente que eu faria o mesmo, mas seria com certa saudade da generosidade
do capitão.

Afinal, aquele homem deveria ser odiado ou admirado? Era ele uma vítima
ou um carrasco? Para ser franco, eu gostaria de, antes de abandonar para sempre
o navio, completar a volta ao mundo submarino, cujo início tinha sido
maravilhoso. Eu gostava de ver o que nenhum homem ainda vira, mesmo tendo
de pagar com a vida essa insaciável necessidade de aprender.

No dia 21 de janeiro de 1868, o imediato foi medir a altura do sol. Subi
à plataforma, acendi um cigarro e segui a operação. Parecia-me
evidente que aquele homem não compreendia o francês, porque várias
vezes fiz reflexões em voz alta, que certamente teriam provocado nele
qual quer sinal de atenção se as compreendesse.

Quando o “Nautilus” se preparou para retomar a sua marcha submarina,
desci ao salão. Os alçapões foram fechados e rumamos
diretamente para o oeste. Sulcávamos então as águas do
Oceano Índico, vasta planície líquida com quinhentos
e cinqüenta milhões de hectares, cujas águas são
tão transparentes que chegam a provocar vertigens em quem se debruça
sobre a sua superfície. O “Nautilus” navegava a uma profundidade
média de cem a duzentos metros. E foi assim durante vários dias.
Para qualquer outra pessoa que não sentisse o meu imenso amor pelo
mar, as horas teriam certamente parecido longas e monótonas.

Mas os passeios quotidianos pela plataforma, onde me refazia com o ar vivificante
do oceano, o espetáculo das águas através dos vidros
do salão, a leitura dos livros da biblioteca e a redação
das minhas memórias ocupavam-me o tempo todo, não me deixando
um momento sequer de descanso ou mesmo de tédio.

No dia 24 pela manhã, avistamos a ilha Keeling, de origem madrepórica,
ornada de magníficos coqueiros, que foi visitada por Darwin e pelo
Capitão Fitz-Roy. O “Nautilus” passou a pouca distância
dessa ilha deserta. As redes apanharam curiosas conchas em suas imediações.
Em breve a ilha Keeling desaparecia no horizonte. Seguimos para noroeste,
em direção ao extremo da península indiana.

– Terras de gente civilizada – disse-me Ned Land naquele dia. – São
melhores do que as ilhas da Papuásia onde há mais selvagens
do que cabritos. Na índia, professor, há estradas, estradas
de ferro, cidades inglesas, francesas e hindus. Não se anda cinco milhas
sem se encontrar um compatriota. Não será ocasião de
abandonarmos as delicadezas com o Capitão Nemo? – Não, Ned –
respondi-lhe num tom resoluto. – Deixemos correr, como dizem os marinheiros.
O “Nautilus” está se aproximando de continentes habitados
e talvez tome o rumo da Europa. Uma vez chegados aos nossos mares, veremos
o que a prudência nos aconselha a fazer. Aliás, acho que o Capitão
Nemo não nos autorizará a ir caçar nas costas de Malabar
ou de Choromândel, como nas florestas da Nova Guiné. – E não
podemos ir sem a autorização dele? Não respondi ao canadense,
porque não queria discutir. No fundo, eu desejava esgotar até
o fim os acasos do destino que me tinham lançado para bordo do “Nautilus”.

Depois de passarmos pela ilha Keeling, a nossa velocidade diminuiu.

Por outro lado, navegamos várias vezes a grandes profundidades.

Foram muito utilizados os planos inclinados. Alavancas internas podiam colocar
o barco obliquamente na linha de flutuação. Navegávamos
assim dois ou três quilômetros, mas sem nunca tocar o fundo do
Indico.

A 25 de janeiro, com o mar completamente deserto, o “Nautilus”
passou o dia na superfície, batendo as ondas com a sua poderosa hélice
e fazendo-as saltar a grande altura. Nessas condições, como
seria possível não o tomar por um cetáceo gigantesco?
Três quartos do dia passei-os na plataforma olhando o mar. Nada no horizonte,
a não ser, por volta das quatro horas da tarde, um vapor que seguia
para oeste. A sua mastreação foi visível por um instante.
Semi-submerso, o “Nautilus” não seria visível para
a tripulação dele.

As cinco da tarde, antes do rápido crepúsculo que liga o dia
e a noite nas zonas tropicais, eu e Conselho assistimos maravilhados a um
belo espetáculo.

Tratava-se de um curioso animal cujo encontro, segundo os Antigos, augurava
boa sorte. Aristóteles, Ateneu, Plínio e Opiano tinham-lhe estudado
os gostos e esgotado toda a poética dos sábios da Grécia
e da Itália com ele. Chamaram-lhe “nautilus” e “pompylius”,
mas a ciência moderna não ratificou esses nomes e o molusco em
causa denomina-se hoje argonauta.

Ora, era precisamente um cardume de argonautas que viajava então
à supefície do oceano. Conseguimos contar várias centenas,
pertencentes à espécie dos argonautas tuberculares, característicos
dos mares da índia.

– O argonauta pode deixar a sua concha, mas nunca o faz – disse eu a Conselho.

– É como o Capitão Nemo – respondeu ele, judiciosamente. –
Por isso devia ter chamado ao seu navio o “Argonauta”.

Durante cerca de uma hora o “Nautilus” flutuou no meio daqueles
milhares de moluscos. Depois, não sei o que lhes deu. Como que obedecendo
a um sinal convencionado, todas as velas foram subitamente arriadas, os tentáculos
dobrados, os corpos contraídos, as conchas fechadas alterando o seu
centro de gravidade e toda a flotilha desapareceu sob as águas. Foi
instantâneo e nunca uma esquadra manobrou com Tanta precisão.

Naquele momento a noite caiu de repente, e as ondas se alongaram sobre o
costado do “Nautilus”.

No dia seguinte, 26 de janeiro, passamos o Equador no meridiano oitenta
e dois e entramos no hemisfério boreal. Durante esse dia fomos escoltados
por um enorme cardume de esqualos, terríveis animais que pululam naqueles
mares,. tornando-os perigosos. Esses poderosos predadores precipitaram-se
várias vezes contra o vidro do salão, com uma violência
pouco tranqüilizadora. Ned Land já não se controlava.

Queria subir à superfície e arpoar os monstros, sobretudo
alguns esqualos-lixas, cujas goelas estão cheias de dentes dispostos
em mosaico, e os grandes esqualos-tigres, com cinco metros de comprimento,
que o provocavam com uma certa insistência. Porém, aumentando
a velocidade, o “Nautilus” não tardou em deixar para trás
os mais velozes desses tubarões.

A 27 de janeiro, à entrada do vasto golfo de Bengala deparou-se-nos
um espetáculo bem sinistro: cadáveres que flutuavam à
superfície das águas. Eram os mortos das cidades indianas, arrastados
pelo Ganges até o alto mar. Os abutres, únicos coveiros daquela
região, não tinham conseguido devorar todos eles. Os esqualos
terminariam a macabra tarefa.

Por volta das sete horas da noite, o “Nautilus” semi-submerso
navegava num mar de leite. A perder de vista, a brancura das águas
era um fenômeno que intrigava o meu criado.

– O senhor poderá me dizer qual a causa disso, professor? – Perfeitamente,
meu rapaz. Essa coloração de leite é causada por miríades
de pequenos vermes luminosos, de aspecto gelatinoso e incolor, com a espessura
de um cabelo e cujo comprimento não ultrapassa um quinto de milímetro.
Aderem uns aos outros numa extensão que pode chegar a várias
léguas..

– Várias léguas! – admirou-se Conselho.

– Exatamente. Por favor, não tente calcular o número deles.

Não sei se Conselho teve em conta a minha recomendação,
mas pareceu- me vê-lo mergulhado em reflexões profundas.

Capítulo II

A 28 de fevereiro, ao meio-dia, quando o .”Nautilus” subiu à
superfície, a 9° 4′ de latitude norte, encontrava-se à vista
de uma terra que lhe ficava a oito milhas para oeste. Observei primeiro um
aglomerado de montanhas com cerca de dois mil pés de altura, cujas
formas eram caprichosas. Quando foi feito o levantamento de nossa posição
na carta., vi que estávamos à vista da ilha de Ceilão,
essa pérola que pende do lóbulo inferior da península
indiana.

O Capitão Nemo e o imediato apareceram naquele momento. O primeiro
deu uma olhadela ao mapa e, virando-se para mim, disse – A ilha de Ceilão
é célebre pela pesca de pérolas. O senhor gostaria de
visitar um desses locais de pesca? – Com o maior prazer, capitão.

– Pois bem. É muito fácil. Só que veremos os locais
mas não os pescadores, pois a exploração anual ainda
não começou. Vou dar ordem para rumar ao Golfo de Manaar onde
chegaremos à noite.

O imediato saiu assim que o capitão lhe disse algumas palavras. O
“Nautilus” não tardou a submergir e o manômetro indicou
que ele se encontrava a uma profundidade de trinta pés.

– Sr. Professor – disse-me então o Capitão Nemo – pescam-se
pérolas no golfo de Bengala, no mar das Índias, nos mares da
China e do Japão, nos do sul da América, nos golfos do Panamá
e da Califórnia, mas é em Ceilão que essa. pesca é
mais frutífera. Porém, chegamos demasiado cedo, pois os pescadores
só se reúnem no mês de março no Golfo de Manaar.
Durante trinta dias os seus trezentos barcos sé entregam à lucrativa
exploração dos tesouros do mar. Cada embarcação
tem dez remadores e dez pescadores. Estes, divididos em dois grupos, mergulham
alternadamente, descendo a uma profundidade média de doze metros. Para
o mergulho são auxiliados por uma pesada pedra que seguram entre os
pés e que está presa ao barco por uma corda.

– Até hoje ainda usam esse método primitivo? – Ainda – informou-me
o capitão – embora essas ostreiras pertençam ao povo mais engenhoso
do globo, os ingleses, que as adquiriram pelo Tratado de Amiens, em 1802.

– Um escafandro semelhante aos que o senhor tem seria muito útil
nessas operações – comentei, para ver a reação
dele.

– De fato seriam. Esses pobres pescadores não podem permanecer por
muito tempo debaixo da água. O inglês Percival, que esteve por
aqui, falou de um indígena que conseguia ficar cinco minutos sem vir
à superfície, mas isso é pouco crível. Sei de
alguns pescadores que agüentam até cinqüenta e sete segundos.
Outros, mais hábeis, ficam submersos até oitenta e sete segundos.
Mas são raros e quando voltam a bordo põem sangue pelo nariz
e pelos ouvidos. Penso que o tempo médio que eles podem agüentar
é de trinta segundos, durante os quais se apressam em recolher para
dentro de um saco todas as ostras perlíferas que vão arrancando.
Geralmente esses pescadores morrem novos. A vista vailhes enfraquecendo, aparecem-lhes
úlceras nos olhos e feridas no corpo. Muitas vezes são fulminados
por apoplexia no fundo do mar, ou devorados por tubarões.

– É na verdade uma triste profissão que apenas serve para
satisfação de caprichos – externei meu ponto de vista. – Mas
diga-me, capitão, que quantidade de ostras pode pescar um barco em
um dia de trabalho com os homens que o senhor mencionou? – Cerca de quarenta
e cinco mil. Dizem que em 1814 o governo inglês, com esses pescadores
a trabalharem por sua conta durante vinte dias, arrecadou setenta e seis milhões
de ostras.

– E esses homens são bem pagos? – Não. Recebem uma remuneração
insignificante.

– Essa exploração do homem pelo homem é odiosa, Capitão
Nemo.

Ele não quis comentar a minha observação.

– Pois bem, professor, visitaremos amanhã o banco de ostras de Manaar.
Pode acontecer que encontremos algum pescador mais apressado e o senhor poderá
vê-lo em atividade.

– Combinado, capitão.

– A propósito, Sr. Aronnax, tem medo de tubarões? – Confesso
que ainda não estou muito familiarizado com esse gênero de peixes
– falei, depois de uma breve reflexão.

– Nós já estamos habituados a eles – disse o capitão
– e com o tempo o senhor também se acostumará. De qualquer modo
iremos armados e pelo caminho poderemos talvez caçar um desses exemplares.
É uma caçada bem interessante.

Dito isso, o Capitão Nemo saiu do salão.

Ficando sozinho, comecei a pensar. Se alguém fosse convidado para
caçar ursos nas montanhas da Suíça, diria: “Muito
bem! Amanhã vou caçar ursos”; se se convidasse um amigo
para ir caçar leões nas planícies do Atlas ou tigres
nas selvas indianas, ele certamente diria: “Ah! Até que enfim
parece que vou caçar tigres ou leões”; mas se uma pessoa
fosse convidada para caçar tubarões, no seu elemento natural,
tenho certeza de que ela pediria algum tempo para refletir antes de aceitar
o convite.

No meu caso particular, passei a mão pela fronte onde encontrei algumas
gotas de suor frio.

“Tenho de refletir enquanto é tempo”, monologuei. “Caçar
lontras nas florestas submarinas, como fizemos na ilha Crespo, ainda vá.
Mas andar pelo fundo dos mares quando se tem quase a certeza de encontrar
esqualos, já é outra coisa! Sei muito bem que em certas regiões
das ilhas Andamans, os negros não hesitam em atacar o tubarão
com um punhal numa das mãos e uma lança na outra, mas sei também
que muitos dos que enfrentam esses formidáveis animais não regressam
com vida. Além disso eu não sou negro e, mesmo que o fosse,
acho que uma ligeira hesitação não seria despropositada.”
Continuando em minhas reflexões eu me lembrei de que certamente meu
criado Conselho não haveria de querer ir. Assim eu teria uma desculpa
para não acompanhar o capitão. Quanto a Ned Land, confesso que
já não estava tão seguro de sua sensatez. Um perigo,
por maior que fosse, sempre atraía a sua natureza combativa.

Retomei a minha leitura, mas folheava o livro maquinalmente. Via nas entrelinhas
mandíbulas terrivelmente abertas.

Naquele momento, Conselho e o canadense entraram no salão com ares
tranqüilos e até alegres. Não sabiam o que os esperava.

– O Capitão Nemo, diabos o levem, acabou de nos fazer uma proposta
muito amável – disse-me Ned Land.

– Ah! – disse eu – já sabem…

– Com licença do senhor – foi a vez do meu criado – o comandante
do “Nautilus” nos convidou para visitarmos os magníficos
campos de pescas de ostras do Ceilão. Fê-lo em termos urbanos
e portou-se como um verdadeiro cavalheiro. Informou-nos ainda de que o senhor
irá também.

– Não lhes disse mais nada? – Mais nada – respondeu o canadense –
a não ser que já lhe tinha falado desse passeio.

– É verdade. Ele não lhes falou de…

– De mais nada, professor.

– Vejo que você faz questão de ir, mestre Land.

– Sim, é exato. Estou muito curioso.

– Talvez haja algum perigo – falei, num tom insinuante.

– Perigo em uma simples excursão a um banco de ostras! – replicou
Ned Land.

Decididamente o Capitão Nemo julgara desnecessário mencionar
a caçada de tubarões aos meus companheiros. Eu os olhava comovido,
como se já lhes faltasse algum membro do corpo. Deveria preveni-los?
Sem dúvida, mas eu não sabia como começar.

– O senhor – Conselho começou a falar – não se importaria
de me dar alguns esclarecimentos acerca da pesca das pérolas? – Acerca
da pesca em si, ou sobre os incidentes que…

– Sobre a pesca – interveio o canadense. – Antes de pisar o terreno é
bom conhecê-lo.

– Sentem-se, meus amigos.

Ned e Conselho sentaram-se no divã e o canadense me perguntou – O
que é uma pérola? – Meu caro Ned – comecei – para o poeta, a
pérola é uma lágrima do mar; para os orientais, é
uma gota de orvalho solidificada; para as senhoras, é uma jóia
de forma oval, de brilho hialino, de matéria nacarada, que usam no
dedo, ao pescoço ou nas orelhas; para o químico, é um
composto de fosfato e de carbonato de cal com um pouco de gelatina de mistura.
Finalmente, para o naturalista, é uma simples secreção
doentia do órgão que produz o nácar em alguns moluscos.

– Uma ostra pode conter várias pérolas? – indagou Conselho.

– Pode. Há algumas “pintadinas” que são um verdadeiro
cofre. Alguém disse, mas eu duvido, que certa ostra continha nada mais
nada menos do que cento e cinqüenta tubarões.

– Cento e cinqüenta tubarões! – exclamou Ned Land, escandalizado.

– Ah! Eu disse tubarões? Queria dizer cento e cinqüenta pérolas.
“Tubarões” não faria sentido.

– O preço das pérolas varia com o tamanho? – perguntou Conselho.

– Não só com o tamanho, mas também com a forma. Varia
ainda pela “água”, isto é, a cor; pelo “oriente”,
ou seja pelo brilho e tonalidade que as tornam tão agradáveis
à vista. As mais belas são chamadas pérolas virgens e
se formam isoladamente no tecido do molusco. São brancas, freqüentemente
opacas, outras vezes de uma transparência opalina e de forma esférica
ou periforme. As esféricas são usadas para pulseiras; as periformes
para pingentes. As mais preciosas são vendidas unitariamente e guardadas
como jóias. As outras, que aderem à concha da ostra e que são
mais irregulares são vendidas a peso. Finalmente, numa ordem inferior,
classificam-se as pérolas pequenas, conhecidas pela designação
de sementes. Servem especialmente para ornamentar os paramentos dos religiosos.

– Mas há pérolas célebres que custaram fortunas – disse
Conselho.

– Há sim. Dizem que César ofereceu a Servília uma pérola
cujo valor se calcula em vinte mil dos nossos francos.

– Já ouvi contar – disse o canadense – que certa dama antiga bebia
pérolas no vinagre.

– Cleópatra – mencionou o meu criado.

– Não deveria ter um gosto bom – comentou Land.

– Certamente que não – concordou Conselho. – Mas um cálice
de vinagre que custa quinze mil francos…

– Lamento não ter me casado com essa tal dama – disse o canadense,
fazendo um gesto pouco tranqüilizador.

– Ned Land marido de Cleópatra! – chasqueou Conselho.

– Pois saiba que já estive para me casar, Conselho – o canadense
falou sério – e não tive culpa se não deu certo. Até
tinha comprado um colar de pérolas para Kat Tender, a minha noiva que
acabou por se casar com outro. O colar não me custou mais de um dólar
e meio, mas posso garantir-lhe, professor, que as pérolas eram bem
grandes.

– Meu caro Ned – expliquei, rindo – eram pérolas artificiais. São
simples pedaços de vidro cheios com essência do Oriente.

– Talvez tenha sido por isso que Kat Tender casou-se com outro – disse Ned
Land, filosoficamente.

– Falando de pérolas de alto valor, penso que ninguém jamais
possuiu uma superior à do Capitão Nemo.

– Aquela? – perguntou Conselho, apontando para a magnífica jóia
encerrada numa vitrina.

– Deve valer dois milhões de francos e ao capitão só
deve ter custado o trabalho de a apanhar. – Talvez amanhã durante o
nosso passeio encontremos uma igual – disse Ned Land.

– Para que nos serviriam dois milhões de francos a bordo do “Nautilus”?
– perguntou Conselho.

– A bordo, nada – respondeu Ned Land – mas em algum outro lugar poderiam
ser muito úteis para nós.

– Mestre Land tem razão – falei. – Se alguma vez chegarmos à
Europa ou à América, uma pérola de alguns milhões
dará uma grande autenticidade e ao mesmo tempo um grande valor ao relato
de nossas aventuras.

Seria formidável se isso acontecesse.

– Também acho – disse o canadense.

– Mas – perguntou Conselho, que nunca se esquecia do lado instrutivo das
coisas – a pesca da pérola é perigosa? – Não – respondi
– sobretudo se se tomam certas precauções.

– Quais são os riscos dessa profissão? – perguntou Ned
Land. – Engolir água salgada? – Mais ou menos, Ned. A propósito
– disse eu, tentando imitar o tom, indiferente do Capitão Nemo : –
Vocês têm medo de tubarões? – Eu! Um arpoador de profissão?
– estranhou Ned Land a minha pergunta, como se ela o tivesse ofendido.

– Até brinco com eles! – Não se trata de pescá-los
pelos meios convencionais que você conhece, Land – expliquei-lhe.

– Então, trata-se de – Sim, precisamente.

– Na água? – Na água! – Se for com um bom arpão…
O senhor sabe, esses tubarões são animais limitados. Têm
de se virar de costas para atacar.

Ned Land tinha uma maneira especial de pronunciar a palavra “atacar”,
que me causava calafrios.

– E você, Conselho, o que pensa dos esqualos? – perguntei. – Eu vou
ser franco com o senhor …

“Ainda bem!”, pensei satisfeito.

– Se o senhor vai enfrentar os tubarões, não vejo por que
motivo o seu fiel criado não há de enfrentá-los também.

Anoiteceu. Deitei-me mas dormi muito mal. Os esqualos desempenharam um papel
importante nos meus sonhos. Estive analisando a etimologia da palavra requin
(esqualo) , que vem do latim requiem! No dia seguinte às quatro horas
da manhã fui acordado pelo rapaz de bordo, que o capitão tinha
posto especialmente a meu serviço. Levantei- me rapidamente, vesti-me
e passei ao salão, onde o capitão já me aguardava.

– Está pronto para partir, Sr. Aronnax? – Sim.

– Siga-me, por favor.

– E os meus companheiros, capitão? – Já foram prevenidos e
estão a nossa espera.

– Não vamos vestir os escafandros? – perguntei.

– Mais tarde. Não deixei que o “Nautilus” se aproximasse
demasiadamente da costa e estamos muito afastados do banco de pérolas.
Mandei preparar o bote que nos levará até lá, poupando-nos
um longo trajeto a pé. Levaremos as nossas roupas de mergulhar e as
vestiremos quando chegarmos a Manaar, no momento de iniciarmos a exploração
submarina.

Quando chegamos à escada central a caminho da plataforma, Ned e Conselho
já estavam a nossa espera, encantados com os momentos de prazer que
se avizinhavam. Cinco marinheiros do “Nautilus”, de remos a postos,
esperavam-nos no bote.

O Capitão Nemo, Conselho, Ned Land e eu tomamos lugar à ré
da embarcação. O timoneiro pôs-se ao leme, os seus quatro
companheiros pegaram nos remos, soltaram-se as amarras e afastamo-nos do submarino.

Mantinhamo-nos em silêncio. Em que estaria pensando o Capitão
Nemo? Talvez naquela terra que se aproximava e que ele achava demasiado perto,
ao contrário do canadense a quem ela parecia muito longe. Quanto a
Conselho estava ali como um simples curioso.

As seis horas, amanheceu subitamente. Os raios solares romperam as nuvens
amontoadas no horizonte do lado ocidental e o astro radioso elevou-se rapidamente.

Vi a terra com nitidez, com algumas árvores espalhadas aqui e ali.
O bote avançou para a ilha Manaar, que se situava para o sul. O Capitão
Nemo tinha se levantado do banco e observava o mar. A um sinal seu foi lançada
a âncora e a corrente mal deslizou porque o fundo ficava a pouco mais
de um metro, formando naquele local um dos mais altos pontos do banco de ostras.
O bote virou imediatamente sobre a âncora, impelido pela maré
vazante que empurrava para o largo.

– Chegamos, Sr. Aronnax – disse o Capitão Nemo. – Vê esta baía
estreita? É aqui que dentro de um mês se reunirão os numerosos
barcos de pesca e são estas as águas que os mergulhadores irão
sondar, audaciosamente. Por sorte, esta baía está naturalmente
disposta para este gênero de pesca. Ela está abrigada dos ventos
mais fortes e aqui o mar nunca é bravo, circunstância essa que
favorece muito o trabalho dos pescadores. Vamos agora vestir os escafandros
– ordenou.

Com os olhos fitos naquelas águas suspeitas e sem dizer nada, comecei
a vestir a minha pesada roupa de mar, ajudado pelos marinheiros do bote. O
Capitão Nemo e meus dois companheiros vestiram-se também.

Nenhum dos tripulantes do “Nautilus” iria conosco.

Pouco depois estávamos metidos até o pescoço no vestuário
de borracha e com os aparelhos de ar presos às costas por meio de suspensórios.

Quanto aos aparelhos “Ruhmkorff” não os vi. Antes de
meter a cabeça dentro do capacete de cobre, perguntei por eles ao capitão.

– Não vamos precisar deles, Sr. Aronnax – informou-me. – Não
desceremos a grandes profundidades e os raios solares serão suficientes
para nos iluminar o caminho. Aliás não é prudente transportar
uma lanterna elétrica nestas águas, pois o seu brilho poderia
atrair inopinadamente algum perigoso habitante delas.

Quando o capitão pronunciou essas palavras, virei-me para falar com
Conselho e Ned Land, mas os meus dois amigos já haviam enfiado as cabeças
na cápsula de metal e não podiam ouvir e nem falar.

Faltava-me fazer uma última pergunta ao Capitão Nemo – E as
nossas espingardas, capitão? – Para que espingardas? Então os
montanheses não atacam os ursos de punhal na mão? O aço
é mais seguro do que o chumbo. Aqui tem uma afiada lâmina. Ponha-a
em sua cintura e partamos.

Olhei novamente para os meus companheiros. Estavam armados como nós,
mas Ned Land empunhava também o enorme arpão que tinha posto
no barco antes de deixar o “Nautilus”.

Deixei que me colocassem a pesada esfera de cobre na cabeça e os
nossos reservatórios de ar foram imediatamente postos a funcionar.

Descemos para um fundo de areia fina a metro e meio de profundidade.

O capitão fez-nos sinal para que o seguíssemos e tomou por
um declive pouco acentuado. Em breve desaparecíamos sob as águas.

Então as idéias que me obcecavam desapareceram e eu me senti
espantosamente calmo. A facilidade com que me movimentava aumentou-me a disposição
e a beleza do espetáculo conquistou-me por completo.

O sol iluminava suficientemente as águas, tornando visíveis
os mais diminutos objetos. Após dez minutos de marcha nós nos
encontrávamos a cinco metros de profundidade e o fundo começava
a ficar plano.

A nossa passagem, como bandos de marcejas num pântano, levantavam-
se cardumes de peixes. Reconheci o javanês, verdadeira serpente com
cerca de um metro de comprimento, ventre lívido, facilmente confundível
com o congro se não fossem as suas riscas douradas laterais.

A progressiva ascensão do sol iluminava cada vez mais as águas.
O solo ia mudando à proporção que andávamos. A
areia fina sucedia-se uma verdadeira calçada de calhaus rolados, revestidos
por um tapete de moluscos e zoófitos. Foi então que vi exemplares
de um caranguejo enorme, classificado por Darwin, ao qual a natureza deu o
instinto e a força necessária para se alimentar da noz do coco.
Esse caranguejo trepa nos coqueiros da beira-mar, faz cair os cocos quebrando-os
na queda. Depois ele os abre com as suas poderosas pinças e come a
noz.

Sob as águas claras eles corriam com grande agilidade, enquanto as
tartarugas que habitam as costas de Malabar se deslocavam lentamente entre
as rochas.

Por volta das sete horas chegamos finalmente ao banco onde as ostras perlíferas
se reproduziam aos milhões. O Capitão Nemo apontou-me aquele
amontoado prodigioso de “pintadinas” e compreendi que aquela mina
era verdadeiramente inesgotável, porque a força criadora da
natureza é superior ao instinto de destruição do homem.

Ned Land apressou-se a encher uma rede que levava, com os mais belos desses
moluscos.

Contudo, não podíamos parar. Tínhamos de seguir o capitão
que parecia dirigir-se para um ponto determinado. O solo subia sensivelmente
e por vezes, se eu levantasse o braço ultrapassaria a superfície
das águas. Depois o nível do banco descia caprichosamente. Algumas
vezes contornamos rochedos de formas piramidais. Das suas sombrias anfratuosidades
grandes crustáceos apoiados nas compridas patas, como máquinas
de guerra, olhavam-nos fixamente.

Em certo ponto surgiu diante de nós uma enorme gruta, escavada num
pitoresco conjunto de rochedos cobertos de todas as algas da flora submarina.
A principio a gruta pareceu-me extremamente escura. Os raios solares pareciam
difundir-se por gradações sucessivas e a sua vaga transparência
não passava de luz filtrada.

O Capitão Nemo entrou nela e nós o acompanhamos. Os meus olhos
se acostumaram rapidamente àquelas trevas relativas e distingui os
assentos da abóbada, de contornos caprichosos, suportada por pilares
naturais assentes numa base granítica, como pesadas colunas de arquitetura
toscana. Por que nos conduziria o nosso incompreensível guia ao fundo
daquela gruta? Depois de termos descido uma vertente bastante acentuada, os
nossos pés pisaram o fundo de uma espécie de poço circular
onde o capitão se deteve e apontou para um objeto que eu não
tinha notado. Era uma ostra de dimensões extraordinárias. Aproximei-me
daquele gigantesco molusco. Estava preso a uma mesa de granito e ali se desenvolvia
isoladamente nas águas calmas da gruta. Calculei o peso daquela ostra
em cerca de trezentos quilos, tendo um recheio de quinze quilos. Era evidente
que o Capitão Nemo já conhecia a existência dela.

Não era a primeira vez que ele a visitava. Enganei-me ao pensar que,
conduzindo-nos àquele local, o capitão pretendesse apenas nos
mostrar uma curiosidade natural. Ele tinha um interesse especial em verificar
o estado da ostra.

As duas valvas do molusco estavam entreabertas. O capitão aproximou-
se e introduziu o punhal entre as conchas para impedi-las de se fecharem.
Depois levantou a túnica membranosa e franjada das bordas que formava
a cobertura do animal. Entre as pregas foliáceas, vi uma pérola
solta cujo tamanho era igual ao de uma noz de coqueiro. A sua forma globulosa,
a sua perfeita limpidez e o seu oriente admirável faziam dela uma jóia
de preço incalculável. Levado pela curiosidade estendi a mão-
para pegá-la, tocá-la, calcular-lhe o peso. Mas o capitão
não permitiu. Fez-me um sinal negativo e retirou o punhal com um movimento
rápido deixando que as valvas se fechassem.

Compreendi então qual era a intenção dele. Ao deixar
a pérola escondida debaixo da cobertura da ostra, ele queria que ela
crescesse ainda mais. Ano após ano a secreção do molusco
acrescentaria novas camadas concêntricas ao seu tesouro. Só ele
conhecia a gruta onde “amadurecia” aquele admirável fruto
do mar. Ele a criava para um dia levá-la para o seu museu.

Talvez tivesse sido ele próprio, seguindo o exemplo dos chineses
e dos indianos, a determinar a produção daquela pérola,
introduzindo numa prega do molusco um pedaço de vidro ou de metal que,
pouco a pouco, foi se cobrindo de matéria nacarada. Comparando aquela
pérola com as que eu conhecia, calculei o seu valor em dez milhões
de francos. Ela representava uma soberba curiosidade natural e não
uma jóia de luxo, pois não existiam orelhas femininas que pudessem
usá-la.

A visita à opulenta pérola estava terminada. O Capitão
Nemo deixou a gruta e voltamos ao banco das “pintadinas”, no meio
daquelas águas claras ainda não perturbadas pelo trabalho dos
mergulhadores.

Avançávamos separadamente, como se estivéssemos passeando
em uma avenida de nossas cidades, cada um de nós parando ou caminhando
segundo a sua vontade. Eu já não receava nenhum dos perigos
que a minha imaginação tinha exagerado tão ridiculamente.
O fundo ia se aproximando da superfície e a minha cabeça saiu
à tona do mar. Conselho aproximou-se de mim e me fez um sinal amistoso
com os olhos.

Aquele planalto elevado media apenas alguns metros e logo voltamos a ser
cobertos pelas águas.

Dez minutos depois o capitão parou de repente. Ordenou-nos com um
gesto que nos escondêssemos, junto com ele, no fundo de uma grande cavidade.
Apontou para uma direção na massa líquida e eu olhei
atentamente para o ponto que ele indicava.

A cinco metros de nós apareceu uma sombra que desceu até o
solo. A inquietante idéia dos tubarões atravessou-me o espírito,
mas não havia razão para o meu temor. A sombra não era
de nenhum dos monstros que eu tanto temia.

Era um homem, um pescador, um pobre-diabo que fora ceifar antes da época
da colheita, certamente premido por alguma dificuldade imprevista.

Não tardei a distinguir a quilha do seu barco fundeado a alguns pés
acima de nossas cabeças. Ele mergulhava e subia sem parar. Prestei
atenção no uso da pedra nos pés, para mergulhar mais
rapidamente, que ele punha em prática exatamente como o capitão
me explicara.

Aquela pedra era toda a sua ferramenta. Chegado ao fundo, a cerca de cinco
metros de profundidade, ajoelhava-se e enchia um saco com ostras apanhadas
ao acaso. Subia a seguir, esvaziava o saco no bote, tornava a colocar a pedra
nos pés e recomeçava a operação que não
durava mais de trinta segundos.

O mergulhador não nos via observando a sua penosa faina, porque nos
ocultávamos à sombra de um rochedo. Aliás, ele nunca
poderia supor que homens como ele estivessem a espreitá-lo debaixo
da água, não perdendo um único pormenor da sua pesca.
Várias vezes ele mergulhou e tornou a subir recolhendo não mais
de uma dezena de ostras em cada mergulho. Tinha de arrancá-las do banco
a que estavam presas, com grande esforço. Quantas daquelas “pintadinas”
não tinham as pérolas pelas quais ele arriscava a sua vida?
Eli o observava como muita atenção. Movimentava-se regularmente
e durante cerca de meia hora nenhum perigo o ameaçou. De repente, no
momento em que ele estava ajoelhado eu o vi fazer um gesto de terror, levantar-se
e empreender a volta à superfície. Compreendi o seu pavor quando
vi uma sombra gigantesca aparecer por cima dele. Um tubarão enorme
avançara em diagonal, de olhos em brasa e mandíbulas abertas.

Fiquei horrorizado, incapaz de fazer um movimento.

O voraz animal, com um vigoroso golpe de barbatanas, lançou-se sobre
o indiano que se atirou para um lado, livrando-se da dentada do monstro mas
não da pancada de sua potente cauda. Atingido no peito, ele perdeu
os sentidos e voltou ao fundo do mar.

Toda essa cena durou apenas alguns segundos. O tubarão voltou ao
ataque virando-se de costas, preparado para cortar o pescador pelo meio. Percebi
o Capitão Nemo, que estava junto de mim, levantar-se com uma rapidez
incrível. De punhal na mão caminhou na direção
do monstro, pronto para um combate corpo a corpo.

O esqualo, no momento em que ia avançar sobre o indiano desfalecido,
notou o seu novo adversário. Voltou-se de barriga e se dirigiu ao encontro
dele. Dobrado sobre si mesmo, demonstrando um admirável sangue-frio,
o Capitão Nemo esperou o ataque da fera. Quando esta se precipitou
para ele, o capitão evitou o choque atirando-se para o lado com prodigiosa
agilidade e deu a primeira punhalada no ventre do animal. Desencadeou-se então
uma luta terrível.

O sangue jorrava dos ferimentos do tubarão. O mar tingiu-se de vermelho
e eu mal podia ver através daquele líquido opaco. Agarrado a
uma das barbatanas do furioso esqualo, com uma coragem que não estava
muito longe da loucura, o Capitão Nemo continuava a lutar e enchia
de punhaladas o ventre do inimigo, sem contudo conseguir desferir-lhe o golpe
decisivo atingindo-lhe o coração. Ao debater-se, o esqualo agitava
as águas e os redemoinhos que provocava quase me derrubavam.

Eu sentia a necessidade de ir em socorro do capitão, mas confesso
que o medo me paralisava os movimentos. De olhos esgazeados eu via as fases
da luta se modificando em frações de segundos. De repente o
capitão caiu derrubado por aquela massa enorme, viva e enlouquecida
pela dor. Tanto quanto o homem, a fera precisava de matar o seu inimigo, para
continuar vivendo. Vi as mandíbulas do tubarão se abrirem desmedidamente,
e ia cerrando os olhos para não vê-las se fecharem sobre o corpo
do Capitão Nemo quando Ned Land atacou com o seu arpão. Cravou-o
certeiramente no coração do monstro! As águas ficaram
impregnadas de uma massa de sangue e agitaram-se mais revoltas com os movimentos
do esqualo. Era o estertor da fera vencida pelo homem.

Ned Land salvara a vida do Capitão Nemo. Escapando sem ferimentos
ele se dirigiu imediatamente para o pescador, cortou a corda que o ligava
à pedra, pegou-o nos braços e subiu com ele para a superfície.

Nós o seguimos e chegamos ao bote do indiano depois de termos sido
milagrosamente salvos.

O primeiro cuidado do Capitão Nemo foi reanimar o pescador. Eu duvidava
de que o conseguisse, não porque ele estivera submerso por um tempo
excessivo, mas porque a pancada da cauda do tubarão o teria atingido
mortalmente.

Porém, com as vigorosas massagens de Conselho e do capitão,
vi que o afogado ia aos poucos recuperando os sentidos. Abriu os olhos. Qual
não terá sido o seu espanto, o seu medo até, ao ver as
quatro grandes cabeças de cobre que se debruçavam sobre ele!
O que terá pensado quando o Capitão Nemo tirou do bolso um saquinho
cheio de pérolas e o colocou em suas mãos? Notei que ele tremia
ao aceitar a magnífica esmola do homem das águas. Os seus olhos
espantados indicavam claramente o seu temor diante dos seres estranhos aos
quais devia, ao mesmo tempo, a vida e a fortuna.

A um sinal do capitão retornamos ao banco de ostras. Seguimos o caminho
já percorrido e após meia hora de marcha chegamos ao bote do
“Nautilus”. Uma vez a bordo, ajudados pelos marinheiros, nos desembaraçamos
das nossas estranhas indumentárias.

As primeiras palavras do Capitão Nemo foram para o canadense.

– Obrigado, mestre Land – disse ele, com simplicidade.

– Eu estava em dívida com o senhor, capitão.

Os lábios do Capitão Nemo se distenderam num sorriso pálido
e foi tudo que se falaram sobre o fato.

– Para o “Nautilus” – ordenou o capitão.

As oito e meia estávamos a bordo do submarino.

Refletindo sobre os incidentes de nossa excursão ao banco de ostras,
duas observações surgiram inevitavelmente em minhas conclusões.
Uma delas dizia respeito à audácia do Capitão Nemo. Eu
mal podia acreditar que um ser humano fosse dotado de tanta coragem. A outra
fora a dedicação que demonstrara por um homem, por um representante
da raça de que ele fugia. Aquele estranho Capitão Nemo ainda
não conseguira matar completamente dentro de si os seus bons sentimentos.

Quando lhe fiz notar isso, respondeu-me um pouco comovido – Esse indiano,
professor, é um habitante de regiões oprimidas e eu sou e sempre
serei dessas regiões.

Capítulo IV

Durante o dia 29 de janeiro, a ilha de Ceilão desapareceu no horizonte.

Navegando à velocidade de vinte milhas por hora, o “Nautilus”
penetrou no labirinto de canais que separa as Maldivas, das Laquedivas.

Passou ao largo da ilha Kittan, terra de origem madrepórica descoberta
por Vasco da Gama em 1499 e uma das principais ilhas do Arquipélago
das Laquedivas.

No dia seguinte, 30 de janeiro, quando o submarino subiu à superfície
não havia nenhuma terra à vista. Ele seguia a rota nor-noroeste
e se dirigia para o Mar de Omã, encravado entre a Arábia e a
península da índia, onde desemboca o Golfo Pérsico.

Para onde estaria nos conduzindo o Capitão Nemo? Eu o ignorava por
completo. Quando Ned Land me perguntou para onde íamos, não
tive uma resposta para dar a ele.

– Vamos pára onde a fantasia do Capitão Nemo quiser – foi
o que pude responder.

– Essa fantasia não o levará longe – respondeu Ned Land. –
O Golfo Pérsico não tem saída e se lá entrarmos
não tardaremos a voltar para trás.

– Pois bem, mestre Land, voltaremos. Se depois do Golfo Pérsico o
capitão quiser visitar o Mar Vermelho, o Estreito de Bab-el-Mandeb
continua lá para nos dar passagem.

– Não sou eu que vou querer ensiná-lo alguma coisa, professor.
Mas o Mar Vermelho está tão fechado como o golfo, uma vez que
o Istmo de Suez ainda não foi aberto. Mesmo que estivesse pronta essa
passagem, um navio. misterioso como o nosso não se arriscaria naqueles
canais cheios de comportas. Portanto, o Mar Vermelho não será
o caminho que nos conduzirá à Europa.

– Eu não disse que íamos a caminho da Europa.

– O que acha então? – Acho que – disse eu – depois de ter visitado
essas curiosas regiões da Arábia e do Egito, o “Nautilus”
tornará a descer o Oceano indico, talvez através do Canal de
Moçambique, talvez ao largo das Mascarenhas, de forma a chegar ao Cabo
da Boa Esperança.

– E uma vez chegados ao Cabo da Boa Esperança? – perguntou o canadense,
com teimosa insistência.

– Uma vez chegados lá, penetraremos no Atlântico, que ainda
não conhecemos. Meu amigo Ned, não me diga que não está
gostando de nossa viagem submarina! Aborrece-se com o espetáculo incessantemente
variado das maravilhas que temos visto? Quanto a mim, confesso que veria com
grande tristeza acabar esta viagem.

– Mas, Sr. Aronnax, parece ter esquecido que há três meses
estamos prisioneiros a bordo deste barco! – Possivelmente, Ned. Tenho encontrado
suficientes motivos para não contar nem horas e nem dias.

– A que conclusão vamos chegar, professor? – A conclusão virá
no tempo devido. Vamos esperá-la. Aliás, nada podemos fazer
e por isso discutimos inutilmente. Se você vier me dizer que surgiu
uma possibilidade de evasão poderemos discuti-la, mas não temos
nada assim em vista. Para lhe falar francamente, acho que o Capitão
Nemo nunca se aventurará nos mares europeus.

Essa minha conversa com Ned Land dá bem uma idéia de como
eu estava fanatizado pelo “Nautilus” e de quanto me sentia solidário
com o seu comandante. Quanto ao canadense, ele terminou o nosso diálogo
com algumas palavras praticamente monologadas: – Tudo isso pode ser muito
bonito e bom, mas na minha opinião, onde há obrigação
não pode haver prazer.

Saiu em seguida, deixando-me sozinho.

Durante quatro dias, até 3 de fevereiro, o “Nautilus”
esteve no Mar de Omã, navegando a diversas velocidades e profundidades.
Parecia navegar ao acaso, como se hesitasse na rota a seguir. Mas nunca ultrapassou
o Trópico de Câncer.

Ao deixarmos esse mar avistamos de passagem a cidade, de Mascate, a mais
importante daquela região. Admirei-lhe o aspecto estranho no meio dos
rochedos negros que a rodeiam e sobre os quais se destacam as casas e os fortes
pintados de branco. Distingui as abóbadas arredondadas de suas mesquitas,
as agulhas elegantes dos seus minaretes, os seus frescos e verdejantes terraços.
Mas tudo não passou de uma rápida visão e o “Nautilus”
não demorou a mergulhar novamente nas águas sombrias.

Depois, a uma distância de seis milhas percorreu as costas arábicas
de Mahrah e Hadramaut, com as suas linhas onduladas de montanhas. A 5 de fevereiro
entramos finalmente no Golfo de Adem, verdadeiro funil metido no Estreito
de Bab-el-Mandeb, onde entram as águas indicas do Mar Vermelho.

A 6 de fevereiro, o submarino vagava à vista de Adem, empoleirada
num promontório e ligada ao continente por um estreito istmo, uma espécie
de Gibraltar inacessível, cujas fortificações foram reconstruídas
pelos ingleses depois de o terem dominado em 1839. Distingui os minaretes
octogonais dessa cidade que foi outrora o entreposto mais rico e com mais
comércio da costa, segundo o historiador Edrisi.

No dia seguinte de fevereiro, entramos no Estreito de Bab-el-Mandeb cujo
nome na língua árabe quer dizer “a porta das lágrimas”.
Esse canal tem apenas vinte milhas de largura e dois quilômetros de
comprimento.

O “Nautilus”, navegando a toda velocidade, atravessou-o em uma
hora, mantendo-se sempre submerso. A passagem era cruzada por muitos vapores
ingleses e franceses das linhas de Suez a Bombaim, a Calcutá, a Melbourne,
a Bourbon, e a Maurícia. Logicamente o nosso submarino não poderia
se arriscar na superfície daquelas águas.

Finalmente ao meio-dia sulcávamos as águas do Mar Vermelho,
esse célebre lago de tradições bíblicas, que as
chuvas nunca refrescam, que não é regado por nenhum rio importante,
que uma evaporação excessiva absorve todos os anos uma camada
líquida com um metro e meio de altura! Nem sequer tentei compreender
o capricho que levara o Capitão Nemo até ali. Fosse ele qual
fosse, eu o aprovei sem reservas.

A 8 de fevereiro, desde as primeiras horas do dia, avistamos Moca, cidade
em ruínas, cujas muralhas não mais resistiriam ao simples troar
de um canhão. Outrora ela fora um centro importante, com vários
mercados públicos, vinte e seis mesquitas e uma muralha de três
quilômetros de comprimento com quatorze fortes.

Depois o “Nautilus” aproximou-se das margens africanas onde
a profundidade do mar é maior. Ali podíamos admirar, através
dos painéis abertos, os belos corais e as vastas extensões de
rochedos revestidos de uma esplêndida cobertura de algas. Que espetáculo
indescritível e que variedade de locais e paisagens deslumbrantes se
descortina nas ilhotas vulcânicas que confinam na costa líbia!
A 9 de fevereiro o “Nautilus” navegava na parte mais larga do
Mar Vermelho, a que fica compreendida entre Suakin na costa oeste e Quonfodah
na costa leste. Nesse dia às doze horas o Capitão Nemo subiu
à plataforma onde eu me encontrava. Prometi a mim mesmo não
o deixar descer sem sondá-lo sobre os seus projetos futuros. Assim
que me viu ele se dirigiu para mim e me ofereceu um cigarro.

– Observou bem as maravilhas do Mar Vermelho, professor? – perguntou- me,
com um semblante alegre.

– Sim, capitão. Vi coisas notáveis. O “Nautilus”
presta-se maravilhosamente bem para essas observações. É
sem dúvida um barco inteligente! Estou encantado.

– É um barco inteligente, audacioso e invulnerável, professor.
Não receia nem as terríveis tempestades, nem as correntes, nem
os escolhos do Mar Vermelho.

– De fato, capitão, este mar é citado entre os mais perigosos
do globo.

Na antigüidade a sua fama era horrível.

– Exatamente, professor. Os historiadores gregos e latinos nunca falam bem
dele. Estrabão afirma que ele é particularmente perigoso na
época dos ventos etésios e na estação das chuvas.
O árabe Edrisi, que o chama de Golfo de Colzum, conta que numerosos
navios encalhavam nos seus bancos de areia e que ninguém se arriscava
a navegar nele à noite. Era, ainda segundo Edrisi, um mar sujeito a
terríveis furacões, semeado de ilhas inóspitas e “não
oferece nada de bom”, nem nas suas profundezas nem à superfície.

– Vê-se bem que esses historiadores não viajaram a bordo do
“Nautilus” – falei, certo de que o capitão ficaria satisfeito.

– É verdade – concordou ele sorrindo. – Quanto a viajar em barcos
iguais ao meu, os homens de hoje não estão mais adiantados do
que os antigos. Foram precisos muitos séculos para que se descobrisse
a força mecânica do vapor. Quem sabe se de hoje a cem anos se
verá um segundo “Nautilus”? O progresso é quase
sempre lento, Sr. Aronnax.

– De fato, capitão, o seu barco está avançado um século
ou talvez mais em relação à sua época. Que infelicidade
que este segredo deva morrer com o seu inventor! O Capitão Nemo não
me respondeu. Percebi que minha observação não tinha
sido feliz, mas o nosso diálogo me interessava. Para retomá-lo,
lhe fiz uma pergunta que sabia ser do seu agrado.

– Pode me informar sobre a origem do nome deste mar, capitão? – Existem
numerosas explicações sobre o assunto. Quer saber a opinião
de um cronista do século XIV? – Com todo o gosto.

– Esse fantasista pretende que o nome lhe foi dado depois da passagem dos
israelitas, quando o faraó e o seu povo teriam perecido nas águas
que se fecharam a uma ordem de Moisés: “Devido a este milagre
tornou-se o mar vermelho e não sabendo como nomeá-lo, Mar Vermelho
lhe chamaram.” – Explicação de poeta, Capitão Nemo,
com a qual não me contento.

Gostaria de saber a sua opinião pessoal.

– Pois, Sr. Aronnax, na minha opinião deve-se ver neste nome uma
tradução da palavra hebraica “edrom”. Se os antigos
lhe deram esse nome foi por causa da cor característica de suas águas.

– Mas até agora só vi águas límpidas, sem qualquer
coloração especial.

Observei isso, premeditadamente.

– Sem dúvida. Mas avançando para o extremo do golfo o senhor
irá notar essa aparência peculiar. Lembro-me de ter visto a Baía
de Tor completamente vermelha, igual a um lago de sangue.

– E o senhor atribui essa cor à presença de alguma alga? –
Sim. Trata-se de uma matéria mucilaginosa purpúrea produzida
por plântulas conhecidas pelo nome de “trichodesmies”.

– Já que me falou da passagem dos israelitas e da catástrofe
sofrida pelos egípcios, gostaria de saber se encontrou sob as águas
algum vestígio desse grande acontecimento histórico.

– Não, e por um bom motivo.

– Qual? – É que o local exato onde Moisés passou com o seu
povo está hoje completamente atulhado de areia, de tal forma que os
camelos o atravessam sem quase molhar as patas. O “Nautilus” não
poderia lá chegar. – E o local exato… ? – perguntei.

– Fica situado um pouco acima de Suez, no braço que outrora formava
um profundo estuário, quando o Mar Vermelho se estendia até
os lagos salgados. Se a passagem foi milagrosa ou não, não posso
afirmar, mas que os israelitas lá passaram para chegar à Terra
Prometida e que os egípcios lá pereceram não tenho dúvidas.
Penso que escavações feitas no local revelariam grande quantidade
de armas de origem egípcia.

– Temos de esperar que os arqueólogos façam essas escavações.
Isso acontecerá mais cedo ou mais tarde, quando se estabelecerem cidades
novas na região, depois de aberto o Canal de Suez. Aliás, lembro-me
de dizer que esse canal será completamente inútil para um barco
como o seu, capitão.

– Será útil ao mundo inteiro, professor. Os povos antigos
já tinham compreendido que seria útil para os seus negócios
estabelecer uma comunicação entre o Mar Vermelho e o Mediterrâneo,
mas nunca imaginaram cavar um canal direto entre os dois mares e escolheram
o Nilo como ligação intermediária. O precário
canal que ligava o Nilo ao Mar Vermelho acabou-se antes do ano mil da nossa
era.

– O que os povos antigos não ousaram empreender, a junção
entre os dois mares, que encurtará em nove mil quilômetros o
caminho de Cádis à índia, foi feito por Lesseps e dentro
de pouco tempo transformará a África numa enorme ilha.

– Sim, professor. O senhor tem o direito de se sentir orgulhoso do seu compatriota.
É um homem que honra a sua pátria. Começou, como tantos
outros, por ter contrariedades e ouvir recusas, mas acabou por triunfar porque
tem gênio e vontade. Honra portanto a Lesseps! – Sim, honra seja feita
a esse grande cidadão – falei, surpreendido com o entusiasmo do capitão.

– Infelizmente não posso conduzi-lo através do Canal de Suez,
mas poderá ver Port Said depois de amanhã, quando entrarmos
no Mediterrâneo.

– No Mediterrâneo! – exclamei.

– Sim, professor. Isso o surpreende? – O que me surpreende é estarmos
lá depois de amanhã, embora já esteja me acostumando
a não me surpreender com coisa alguma desde que estou a bordo do “Nautilus”.

– Então, qual é a surpresa? – É a velocidade fantástica
que o senhor terá de imprimir ao seu barco para chegarmos ao Mediterrâneo
em apenas dois dias. Terá que contornar a Africa e dobrar o Cabo da
Boa Esperança! – E quem lhe disse que faremos a volta à África?
Quem lhe falou em dobrarmos o Cabo da Boa Esperança? – A não
ser que o “Nautilus” navegue em terra firme e passe por cima do
istmo…

– Ou por baixo, Sr. Aronnax.

– Por baixo? – Sem dúvida – respondeu-me tranqüilamente o capitão.
– Há muito tempo que a natureza fez sob esta língua de terra
o que os homens fazem agora por cima. Existe uma passagem subterrânea
à qual dei o nome de Túnel Árabe. Começa por baixo
de Suez e acaba no Golfo de Pelusa.

– E foi por acaso que descobriu essa passagem? – perguntei, cada vez mais
surpreendido.

– Foi o acaso e também o raciocínio, professor. Diria até
que foi mais o raciocínio do que o acaso.

– Estou a ouvi-lo, capitão, mas os meus ouvidos continuam a duvidar
do que ouvem.

– Foi um simples raciocínio de naturalista que me levou à
descoberta dessa passagem que só eu conheço. Notei que no Mar
Vermelho e no Mediterrâneo existem certos peixes de espécies
absolutamente idênticas.

Ciente disso, interroguei-me se não existiria comunicação
entre os dois mares. Se existisse, a corrente subterrânea tinha forçosamente
de correr do Mar Vermelho para o Mediterrâneo, devido à diferença
de níveis. Assim, pesquei numerosos peixes nas margens do Suez, pus-lhes
anilhas nas caudas e lancei-os de novo ao mar. Alguns meses mais tarde, nas
costas da Síria apanhei alguns peixes com os meus anéis. A comunicação
entre os dois mares estava portanto provada. Procurei-a com o “Nautilus”
e a descobri. Aventurei-me por ela e deu certo. Aliás, em pouco tempo
o senhor estará passando pelo meu Túnel Árabe.

Capítulo V

Naquele mesmo dia contei a Conselho e a Ned Land a parte de minha conversa
com o Capitão Nemo que interessava diretamente a eles.

Quando lhes disse que dentro de dois dias estaríamos em pleno Mediterrâneo,
Conselho aplaudiu e o canadense encolheu os ombros.

– Um túnel submarino! Uma comunicação entre os dois
mares! Quem é que já ouviu falar disso? – perguntou ele, incrédulo.

– Meu caro Ned – disse-lhe Conselho – já tinha ouvido falar do “Nautilus”?
Não. No entanto ele existe. Não encolha os ombros com tanta
facilidade e não recuse as coisas por nunca ter ouvido falar delas.

– Veremos – retrucou Ned Land, abanando a cabeça. – Afinal de contas
eu espero que essa passagem exista mesmo e que o capitão nos leve realmente
para o Mediterrâneo.

Desinteressei-me de que a nossa conversa continuasse.

No dia seguinte, 10 de fevereiro, avistamos alguns navios e o “Nautilus”
retomou a sua navegação submarina. Ao meio-dia o mar estava
deserto e ele subiu à superfície.

Acompanhado por Ned Land e Conselho subi para a plataforma. Para leste,
a costa mostrava-se como uma massa diluída num nevoeiro úmido.
Apoiados no casco do bote conversávamos sobre diversos assuntos, quando
Ned Land apontou para um ponto no mar e disse : – Há qualquer coisa
ali, professor.

– Não vejo nada, Ned. Mas reconheço que não tenho a
sua visão. – Olhe bem para ali, para estibordo, finais ou menos à
altura do farol.

Não vê uma massa que parece mexer-se? – De fato – falei, após
uma observação mais atenta. – Vejo um corpo escuro à
superfície das águas.

– Há baleias no Mar Vermelho? – perguntou meu criado.

– As vezes se encontram algumas – respondi.

– Não se trata de uma baleia – afirmou Ned Land. – As baleias e eu
somos velhos conhecidos e eu não me enganaria com o seu aspecto.

– O “Nautilus” está se dirigindo para o local – disse
Conselho. – Não tardaremos a saber do que se trata.

Dentro de pouco tempo o tal objeto escuro estava apenas a uma milha de distância.
Parecia um grande escolho encalhado em pleno mar.

– Move-se e mergulha – falou Ned Land. – Com mil diabos! Que animal será
aquele? Não tem a cauda bifurcada como as baleias ou os cachalotes…

– Bom, agora está de costas, tem o peito para o ar! – É uma
sereia! – gritou Conselho. – Uma verdadeira sereia, com a sua licença.

Esse nome deu-me a pista e descobri que o animal pertencia a essa ordem
de seres marinhos, cuja lenda fez das sereias metade mulheres metade peixes.

– Não é uma sereia, Conselho, mas é um ser curioso
de que restam apenas alguns exemplares no Mar Vermelho. É um dugongo.

Entretanto Ned Land continuava a olhar o animal, como o caçador olha
a sua caça. Sua mão parecia pronta para arpoar.

Naquele momento o Capitão Nemo apareceu na plataforma e viu o dugongo.
Viu também a atitude de Ned Land e disse a ele – Se estivesse com um
arpão na mão, mestre Land, ele estaria a queimá-la, não
éacute; verdade? – Acertou, capitão.

– Gostaria de retomar por um dia a sua profissão de pescador e acrescentar
esse cetáceo à lista daqueles que já matou? – Gostaria
muito, senhor. – Pois bem, pode tentar. Só que o aconselho a não
falhar com esse animal.

– O dugongo é perigoso quando atacado? – perguntei ao capitão.

– Sim. Costuma virar-se contra os seus perseguidores e afundar-lhes a embarcação.
Mas para mestre Land ele não constituirá perigo. Já notei
que o nosso amigo tem o olhar pronto e o braço seguro.

O capitão nos deixou e deu algumas ordens a seus homens. No mesmo
instante um deles trouxe um arpão e uma linha semelhante aos que são
utilizados pelos pescadores de baleias. O bote foi retirado e lançado
ao mar. Seis remadores tomaram seus lugares e o timoneiro pegou no leme. Ned,
Conselho e eu sentamo-nos à ré.

– Não vem conosco, capitão? – perguntei-lhe.

– Não, professor, mas, mesmo assim, lhes desejo uma boa caçada.

O bote desatracou e impelido pelos seis remos dirigiu-se rapidamente para
o dugongo que flutuava a cerca de duas milhas do “Nautilus”.

Chegados a algumas braças do cetáceo, abrandamos a marcha
e os remos mergulharam sem ruído nas águas tranqüilas.
Ned Land, de arpão na mão, levantou-se e foi para a proa. O
arpão que serve para matar as baleias está geralmente ligado
a uma longa corda que se desenrola rapidamente, quando o animal ferido se
afasta. Mas aqui a corda não media mais do que uma dezena de braças
e a sua extremidade estava presa a um pequeno barril flutuante que nos indicaria
a marcha do dugongo sob as águas.

Tinha-me levantado e observava cuidadosamente o adversário do canadense.
O corpo oblongo terminava por uma cauda muito alongada e as barbatanas laterais
por verdadeiros dedos. Tinha o maxilar superior armado com dois longos e pontiagudos
dentes. Aquele era de grandes proporções, ultrapassando os sete
metros de comprimento. Não se mexia e parecia dormir à superfície
das águas, circunstância que tornava a sua captura mais fácil.

O bote aproximou-se prudentemente até três braças do
animal e os remos foram suspensos nos descansos. Ned Land, com o corpo ligeiramente
projetado para trás, brandia o arpão com mão experiente.
Naquele momento ouviu-se um. silvo e o dugongo desapareceu. O arpão,
lançado com toda a força, sem dúvida tinha acertado no
alvo.

– Com mil diabos! – exclamou o canadense, furioso. – Falhei! – Não
– disse eu. – O animal está ferido porque há sangue nas águas,
mas o arpão não ficou preso ao corpo dele.

– O meu arpão! – gritou Ned Land.

Os marinheiros recomeçaram a remar e o timoneiro dirigiu o bote para
o barril flutuante. Recuperado o arpão, começou a perseguição
ao animal ferido. De vez em quando ele subia à superfície para
respirar. O ferimento não o enfraquecera porque avançava com
extrema rapidez de um ponto para outro. A embarcação, manobrada
por braços vigorosos, voava no seu encalço. Por várias
vezes se aproximou dele até poucas braças de distância
e o canadense preparava-se para arpoar mas o dugongo desaparecia, mergulhando
subitamente.

Estivemos a persegui-lo durante uma hora e eu já começava
a crer que seria muito difícil apanhá-lo, quando o animal foi
acometido por uma infeliz idéia de vingança. Voltou-se para
o bote, disposto a atacar. Ned Land entendeu a intenção dele
e gritou para os homens dos remos que ficassem atentos.

Chegando a uns seis metros da nossa embarcação, o dugongo
parou e aspirou bruscamente o ar com suas enormes narinas. Depois, com todas
as suas forças precipitou-se em nossa direção. O timoneiro
não pôde evitar o choque. Contudo ele foi extremamente hábil
e fomos abalroados de lado livrando-nos de que o bote se virasse.

Ned Land, agarrado à roda de proa, enchia de arpoadelas o corpo do
gigantesco animal. Com os dentes cravados na armadura do bote, a fera o levantava
fora da água e o sacudia tentando desmantelá-lo.

Caímos uns sobre os outros, e não sei como teria acabado aquela
aventura se o canadense, sempre encarniçado contra o animal, não
tivesse conseguido atingi-lo no coração.

O dugongo desapareceu arrastando consigo o arpão, mas o barril não
– demorou a voltar à superfície e instantes depois apareceu
o corpo do animal, de barriga para cima. O bote aproximou-se dele, passou-lhe
um reboque e dirigiu-se para o “Nautilus”.

No dia seguinte, 11 de fevereiro, o submarino navegava com velocidade moderada.
Quase se podia dizer que vagava ao sabor do vento. Observei que as águas
do Mar Vermelho se tornavam menos salgadas à medida que nos aproximávamos
de Suez. Por volta das cinco horas da tarde avistamos para o norte o Cabo
Rãs Mohammed que forma a extremidade da Arábia Pétrea,
compreendida entre o Golfo de Suez e o Golfo de Akaba.

O “Nautilus” penetrou no Estreito de Jubal que conduz ao Golfo
de Suez. Distingui perfeitamente uma alta montanha, dominante entre os dois
golfos e o Rãs Mohammed. Era o monte Horeb, esse Sinai no cimo do qual
Moisés viu Deus e que a imaginação popular vê sempre
rodeado de clarões.

As seis horas, o “Nautilus”, ora emergindo ora submergindo,
passava ao largo de Tor, situada ao fundo de uma baía cujas águas
pareciam tingidas de vermelho. Depois anoiteceu no meio de um pesado silêncio,
por vezes interrompido pelo grito de algum pelicano, pelo ruído das
águas ou pelo apito longínquo de um vapor cortando as águas
do golfo com as suas hélices.

Das oito às nove, o “Nautilus” manteve-se submerso a
alguns metros de profundidade. Segundo os meus cálculos, devíamos
estar bem perto de Suez. Através dos painéis do salão
eu vi fundos de rochedos nitidamente iluminados pela nossa luz elétrica.
Parecia-me que o estreito se apertava cada vez mais.

As nove e um quarto o barco subiu à superfície e eu fui para
a plataforma.

Na sombra consegui distinguir uma luz pálida, meio descolorada pela
bruma, que brilhava a uma milha de distância. Virei-me e vi o Capitão
Nemo ao meu lado.

– É o farol flutuante de Suez – informou-me ele. – Agora falta muito
pouco para chegarmos à entrada do túnel…

– A entrada não deve ser de fácil acesso…

– De fato não é, professor. Costumo ir ao leme para dirigir
a manobra. Agora vamos descer porque o “Nautilus” vai submergir
e só voltará à superfície depois de ter passado
o Túnel árabe.

Eu o segui e o alçapão fechou-se atrás de nós.
Os reservatórios se encheram de água e o submarino imergiu uma
dezena de metros.

– Gostaria de me acompanhar até a cabina de pilotagem, professor?
– perguntou-me o capitão.

– Nem ousava pedir-lhe – respondi.

– Venha – chamou-me. – Assim poderá observar tudo que há para
ver desta navegação subterrânea e ao mesmo tempo submarina.

Conduziu-me para a escada central. A meio dela ele abriu uma porta e seguimos
pelos corredores superiores até a cabina do piloto, que se elevava
na extremidade da plataforma.

Era um recinto com seis pés de lado, semelhante às cabinas
dos barcos a vapor que navegam nó Mississipi e no Hudson. No meio tinha
uma roda de leme colocada verticalmente, à qual estavam presos os cabos
que corriam até a ré do “Nautilus”. Quatro vigias
de vidro, abertas nas paredes da cabina, permitiam ao homem do leme olhar
em todas as direções.

A cabina era um tanto escura, mas habituei-me rapidamente à semiobscuridade
e vi o piloto, um homem vigoroso; com as mãos apoiadas no leme. No
exterior o mar aparecia vivamente iluminado pelo farol que brilhava na parte
de trás da cabina, na outra extremidade da plataforma.

– Agora procuremos a passagem – disse o capitão.

A cabina do timoneiro estava ligada à casa das máquinas por
fios elétricos e dali o Capitão Nemo podia comunicar-se com
os homens que estavam lá. Ele apertou um botão de metal e a
velocidade da hélice diminuiu imediatamente.

Observei em silêncio a alta muralha ao lado da qual estávamos
a passar naquele momento. Nós a seguimos durante uma hora, apenas a
alguns metros de distância. O Capitão Nemo não tirava
os olhos da bússola suspensa na cabina. Com um gesto simples o timoneiro
modificava a cada momento a direção do barco.

Eu me colocara na vigia de bombordo e apreciava as magníficas construções
de corais, algas e crustáceos que agitavam as suas compridas patas
estendendo-as para fora das anfratuosidades das rochas.

A dez horas e um quarto o capitão tomou o leme. Uma grande galeria,
escura e profunda, abria-se diante de nós e o “Nautilus”
corajosamente penetrou nela. Ouvi um ruído estranho. Eram as águas
do Mar Vermelho que a vertente do túnel precipitava no Mediterrâneo.
O submarino seguia a corrente, rápido como uma flecha, apesar dos esforços
das máquinas para frearem a sua velocidade.

Nas muralhas estreitas da passagem eu via apenas riscas brilhantes, linhas
retas, sulcos de fogo traçados pela velocidade sob o brilho da iluminação
elétrica. Meu coração acelerou e eu tive de comprimi-lo
com a mão.

As dez horas e trinta e cinco minutos, o Capitão Nemo abandonou o
leme, virou-se para mim e falou – Estamos no Mediterrâneo! Em menos
de vinte minutos o “Nautilus”, impelido pela corrente, havia chegado
ao Istmo de Suez.

Capítulo VI

No dia seguinte, 12 de fevereiro, pela manhã, o “Nautilus”
subiu à superfície. Corri para a plataforma. Para o sul, a três
milhas de distância, desenhava-se a vaga silhueta de Pelusa. Uma corrente
nos tinha levado de um mar para o outro, mas aquele túnel fácil
para descer, seria impossível de subir.

Mais ou menos às sete horas, Ned Land e Conselho foram ao meu encontro.
Os dois tinham dormido tranqüilamente a noite inteira e não sabiam
da proeza do “Nautilus”.

– E então, professor, onde está esse Mediterrâneo ao
qual chegaríamos em dois dias? – perguntou-me o canadense em tom crítico.

– Estamos navegando nele, amigo Ned . . .

– Como nele? Foi esta noite? – Sim. Exatamente esta noite. Em poucos minutos
passamos o istmo intransponível.

– Não acredito! – teimou ele.

– Pois faz mal, mestre Land. Olhe para aquela costa baixa que se arredonda
para o sul. É a costa do Egito.

– Não queira me fazer de tolo, professor! – Se o Sr. Aronnax diz
que aquela é a costa egípcia, temos de acreditar, Land – disse
Conselho.

– Aliás, o Capitão Nemo teve a gentileza de me convidar para
ficar com ele na cabina de pilotagem durante a travessia do túnel.
Ele próprio dirigiu o submarino através da passagem.

– Ouviu isso, Ned? – perguntou-lhe Conselho, em tom de censura.

– Aliás, Ned – acrescentei – você tem boa vista e pode ver
os molhes de Port Said.

Ele olhou com atenção e se convenceu de que minha informação
era válida. Sorriu inexpressivamente e disse: – Na verdade o senhor
tem razão, professor. Esse Capitão Nemo é um grande mestre
dos mares. Estamos realmente no Mediterrâneo. Já que é
assim, podemos falar dos nossos assuntos. Conversaremos em voz baixa para
que ninguém nos ouça.

Eu sabia a que “nossos assuntos” ele se referia. O tema não
me agradava mas achei que seria melhor ouvi-lo, já que ele fazia questão
disso.

Sentamo-nos perto do farol, onde estávamos mais abrigados dos salpicos
das ondas e onde havia menor possibilidade de sermos ouvidos por algum dos
homens da tripulação.

– Estamos prontos para ouvi-lo, Ned. O que tem para nos dizer? – O que tenho
para dizer é muito simples – respondeu ele. – Estamos na Europa e eu
proponho que ajamos, antes que os, caprichos do Capitão Nemo nos levem
para os mares polares ou para a Oceania.

Preparemo-nos para abandonar o “Nautilus”. Confesso que esse
tipo de conversa com Ned Land sempre me deixava deprimido. Eu não queria
de maneira alguma servir de entrave à liberdade de meus companheiros.
Ao mesmo tempo não sentia nenhum desejo de deixar o Capitão
Nemo. Graças a ele e ao seu navio, eu ia completando os meus estudos
submarinos e refazia o meu livro sobre essa matéria, em condições
realmente excepcionais. Teria eu outra ocasião como aquela para observar
as maravilhas dos oceanos? Certamente que não. Eu não podia
aceitar a idéia de abandonar o “Nautilus” antes do término
da viagem que o capitão se dispusera a fazer comigo. Não me
importavam as condições pessoais em que ela estava sendo feita.

– Responda-me francamente, Ned – falei, depois de uma pausa para refletir.
– Você se aborrece a bordo? Lamenta que o destino o tenha posto nas
mãos do Capitão Nemo? Ele pensou durante alguns instantes, cruzou
os braços e me respondeu com a franqueza que lhe pedi.

– Francamente não vejo razão para me lamentar desta viagem
submarina.

Ficarei contente por tê-la feito. Veja que estou falando como se ela
já tivesse terminado, professor. Ou terminando. É isso que eu
quero e é nisso que eu penso.

– A nossa viagem não está terminando, Ned. Mas um dia ela
terá que acabar.

– Onde e quando? – Onde? Não sei. Quando? Não posso dizer.
Acho que acabará quando esses mares já não tiverem mais
nada para nos ensinar. Tudo o que começou tem forçosamente de
acabar.

– Penso como o senhor – disse Conselho. – E possível que depois de
termos percorrido todos os mares do globo, o Capitão Nemo simplesmente
nos deixe livres no porto que escolhermos.

– Não partilho de sua opinião, Conselho – surpreendi o meu
criado. – Conhecemos os segredos do “Nautilus” e acho que o Capitão
Nemo não se resignará a vê-los divulgados por nós.
Portanto não creio que nos porá em liberdade da maneira que
você supõe.

– Mas então o que espera o senhor? – argüiu-me o canadense.
– Que surjam oportunidades de escaparmos de hoje a seis meses, digamos. Então
nós as aproveitaremos.

– Ora essa, professor! – exclamou Ned Land. – Pode me dizer onde estaremos
de hoje a seis meses? – Talvez aqui, talvez na China. Sabe que o “Nautilus”
anda depressa.

Atravessa os oceanos como uma andorinha atravessa os ares. Não receia
os mares freqüentados. Quem nos diz que ele não visitará
as costas da França, da Inglaterra ou da América, onde será
muito mais vantajoso tentarmos uma fuga? – Os seus argumentos não me
convencem, Sr. Aronnax – retrucou Ned Land. – O senhor fala sobre o futuro:
estaremos aqui, estaremos ali.

Mas eu falo do presente. Estamos aqui e devemos aproveitar a ocasião.

A lógica dele era irrefutável sob o seu ponto de vista. Dificilmente
eu arranjaria argumentos para convencê-lo a esperar a ocasião
que atendia aos meus interesses.

– Vejamos, professor – continuou ele, insistente. – Se o Capitão
Nemo lhe oferecesse a liberdade hoje mesmo, aceitaria? – Não sei –
respondi, com honestidade.

– E se ele lhe dissesse que essa oferta nunca mais se repetiria? Não
respondi. Ele se voltou para o meu criado: – Qual é a opinião
do amigo Conselho sobre o assunto? – O amigo Conselho não tem opinião.
Está absolutamente desinteressado do assunto. Tal como o seu amo, tal
como o camarada Ned, ele também é solteiro. Não o esperam
nem mulher, nem pais e nem filhos.

Está a serviço do Sr. Professor e fala como ele. Embora o
lamente, não se pode contar com o amigo Conselho para fazer uma maioria.
Para decidir esse assunto só há duas pessoas aqui. O meu amo
de um lado e Ned Land do outro. Era só o que eu tinha a dizer.

Não pude deixar de sorrir com a inteligente saída de meu criado,
embora ele estivesse anulando totalmente a sua personalidade.

– Então, professor – disse Ned Land. – Uma vez que Conselho não
existe, vamos discutir nós dois. Falei e o senhor ouviu. Qual é
a sua resposta? Ele me apertou e eu tinha de lhe responder. As evasivas sempre
me repugnaram.

– Amigo Ned, vou lhe dar a minha resposta. Você tem razão e
os meus argumentos são fracos diante dos seus. Mas não devemos
contar com a boa vontade do Capitão Nemo. A prudência mais elementar
não permite que ele nos ponha em liberdade. Por outro lado, essa mesma
prudência nos manda aproveitar a primeira ocasião que surgir
para deixarmos o “Nautilus”.

– Até agora falou sensatamente, Sr. Aronnax – elogiou ele.

– Mas é necessário que a ocasião seja absolutamente
certa, Ned. É preciso que a nossa primeira tentativa de fuga não
falhe. Se isso acontecer o Capitão Nemo não nos perdoará
e jamais teremos outra oportunidade para deixar este navio.

– Isso tudo é verdade, senhor. Mas aplica-se a qualquer tentativa
de fuga que fizermos, quer tenha lugar hoje ou daqui a dois anos. Portanto,
a questão continua a ser: devemos ou não aproveitar uma ocasião
favorável para tentarmos a fuga? – Ainda quero preveni-lo de que o
Capitão Nemo sabe que não renunciamos à esperança
de recuperar a nossa liberdade. Ele estará sempre alerta, especialmente
nos mares à vista de costas européias.

– Sou da mesma opinião – manifestou-se Conselho.

– Veremos – disse Ned Land, com ar bastante determinado.

– E agora, mestre Land – falei para encerrar o assunto – fiquemos por aqui
e nem mais uma palavra sobre isso. No dia em que estiver pronto para a tentativa,
avise-nos e seremos seus companheiros.

Essa nossa conversa viria a ter graves conseqüências.

No dia seguinte, 14 de fevereiro, aconteceu um fato que me pareceu muito
importante. Como sempre fazia quando o submarino navegava submerso, eu ficava
de olhos pregados nos painéis do grande salão, olhando as maravilhas
da fauna marítima e fazendo minhas anotações.

Nesse dia eu fui surpreendido por uma aparição realmente inesperada
no painel.

No meio das águas apareceu um homem, um mergulhador, tendo à
cintura uma bolsa de couro. Não era um corpo abandonado nas águas.

Estava vivo e nadava com braçadas vigorosas, desaparecendo de vez
em quando, possivelmente para ir à superfície respirar e voltando
a aparecer no vidro do painel.

Virei-me para o Capitão Nemo e lhe disse: – Um homem, capitão,
ali no painel! Deve ser um náufrago.

Ele não me respondeu coisa alguma e veio encostar-se ao vidro. O
homem o viu e se aproximou do painel. Para minha grande surpresa os dois se
cumprimentaram com acenos de mão. O homem subiu imediatamente à
superfície e não apareceu mais.

– Não fique preocupado, professor – disse-me o capitão. –
É Nicolas, do Cabo Matapão, alcunhado de “Peixe”.
É um mergulhador arrojado e a água é o seu elemento.

Enquanto eu o olhava admirado, sem saber o que dizer, o capitão dirigiu-se
para um móvel colocado perto do painel esquerdo do salão.

Junto do móvel eu vi um cofre guarnecido com aros de ferro. Sem se
preocupar com a minha presença, ele abriu o móvel e o seu conteúdo
me deixou estupefato. Estava cheio de lingotes de ouro. O Capitão Nemo
foi pegando-os um a um e arrumando-os metodicamente no cofre, até enchê-lo
completamente. Calculei que seriam uns mil quilos de ouro. O cofre foi hermeticamente
fechado e o capitão escreveu um endereço em sua tampa com caracteres
que deveriam pertencer ao grego moderno.

Feito isso ele apertou um botão sob o painel e apareceram alguns
homens que, com bastante dificuldade, levaram o cofre para fora do salão.
Depois eu ouvi que o içavam por meio de roldanas pela escada de ferro.

Naquele momento o capitão virou-se para mim e disse: – Estava falando,
professor…

– Eu não disse nada, capitão.

– Então, se me dá licença, desejo-lhe boa-noite.

E dito isto deixou o salão.

Fui para o meu quarto mas não consegui dormir. Haveria alguma relação
entre o aparecimento do mergulhador e o cofre cheio de ouro. O caso me intrigava
seriamente. Pouco depois percebi que o “Nautilus” deixava as camadas
inferiores e subia à superfície. A seguir eu ouvi ruído
de passos na plataforma e percebi que soltavam o bote e o lançavam
ao mar. Duas horas mais. tarde eu ainda estava acordado quando escutei o movimento
do retorno do bote para o seu lugar. O “Nautilus” mergulhou de
novo nas águas do Mediterrâneo.

Os milhões tinham sido levados ao seu destinatário. Quem seria
ele? Quando contei aos meus companheiros o que havia presenciado eles ficaram
tão surpreendidos quanto eu.

No dia seguinte deixamos a bacia que fica entre Rodes e Alexandria.

Passando ao largo de Cérigo, o “Nautilus” abandonou o
arquipélago grego, depois de ter dobrado o Cabo Matapão.

Capítulo VII

0 Mediterrâneo, o mar azul por excelência, o “grande mar”
dos Hebreus, o “mar” dos Gregos, o mare nostrum dos Romanos, orlado
de laranjeiras, de aloés, de cactos, de pinheiros bravos, envolto no
perfume dos mirtos, enquadrado por rudes montanhas, saturado de um ar puro
e transparente, mas incessantemente trabalhado pelos fogos terrestres, é
um campo de batalha onde Netuno e Plutão ainda disputam o domínio
do mundo. É ali, nas suas praias e nas suas águas, diz Michelet,
que o homem se recompõe num dos melhores climas da terra.

Contudo, por mais belo que seja, apenas pude dar uma rápida olhada
naquela bacia, cuja superfície cobre dois milhões de quilômetros
quadrados.

Os conhecimentos pessoais do Capitão Nemo fizeram-me certa falta.
Ele não me apareceu durante toda a travessia do Mediterrâneo,
feita a grande velocidade. Calculo em seiscentas léguas a distância
que o “Nautilus” percorreu sob as águas desse mar e a viagem
foi concluída em quarenta e oito horas.

Partindo na manhã do dia 16 de fevereiro das regiões da Grécia,
na madrugada do dia 18 alcançávamos o Estreito de Gibraltar.

Foi evidente para mim que o Mediterrâneo, encerrado no meio das terras
a que ele queria fugir, não agradava ao Capitão Nemo. As suas
águas e os seus ventos traziam-lhe muitas recordações
e, provavelmente, muitos desgostos. Ali ele não tinha aquela liberdade
de ação, aquela independência de manobras que lhe davam
os oceanos, e o seu “Nautilus” sentiu-se apertado entre as margens
da Europa e da África, tão próximas que são uma
da outra.

Assim, a nossa velocidade foi de vinte e cinco milhas por hora. Doze léguas.
Escusado será dizer que Ned Land, para seu grande pesar, teve de renunciar
aos seus planos de fuga. Aliás, o nosso navio só subia à
superfície quando era noite, para renovar suas provisões de
ar. Navegava pelas indicações da bússola.

Portanto, só vi do Mediterrâneo o que o viajante de um trem
expresso avista da paisagem que lhe foge diante dos olhos, isto é,
os horizontes longínquos e não os primeiros planos. Estes passam
velozmente.

No entanto, ele diminuiu a velocidade ao passarmos entre a Sicília
e a costa da Tunísia. Nesse espaço, apertado entre o Cabo Bom
e o Estreito de Messina, o fundo do mar sobe quase de repente. Ali formou-
se uma verdadeira crista sobre a qual não restam mais do que dezessete
metros de água, enquanto que de um lado e do outro dessa elevação
a profundidade é de cento e setenta metros. Portanto o “Nautilus”
teve que manobrar com prudência para não bater nessa verdadeira
barreira submarina.

Mostrei a Conselho, no mapa do Mediterrâneo, o lugar ocupado por esse
longo recife.

– Com sua licença – disse ele – isso é um verdadeiro istmo
que une a Europa à África.

– De fato é – apoiei a observação dele. – Essa barreira
obstrui completamente o Estreito da Líbia. As sondagens de Smith provaram
que os continentes outrora estavam unidos entre o Cabo Baco e o ,Cabo Furina.

– Acredito nisso, senhor.

– Existe uma barreira semelhante entre Gibraltar e Ceuta, que nos tempos
remotos fechava completamente o Mediterrâneo.

Conselho tinha vindo me procurar para continuarmos nossas observações
de alguns peixes do Mediterrâneo. Antes que esses assuntos o empolgassem,
chamei-o para nos pormos à espreita diante dos painéis do salão
e comecei a fazer os meus apontamentos. Justamente naquele momento, no meio
da massa de águas vivamente iluminadas por jorros de luz elétrica,
serpenteavam algumas lampreias com um metro de comprimento. Toda a nossa atenção
se concentrou nelas.

Durante a noite de 16 para 17 de fevereiro, tínhamos entrado na segunda
bacia do Mediterrâneo, onde a maior profundidade é de três
mil metros. O “Nautilus”, sob o impulso de sua hélice,
deslizando em planos inclinados, descia às camadas mais profundas do
mar.

Ali, à falta de maravilhas naturais, a massa das águas oferecia
aos meus olhos cenas comoventes e terríveis. Atravessávamos
então a zona do Mediterrâneo mais fértil em sinistros.
Da costa argelina ao litoral da Provença, quantos navios naufragados,
quantas embarcações desaparecidas! O Mediterrâneo não
passa de um lago, se comparado com as vastas extensões líquidas
do Pacífico. Mas é um lago caprichoso, de ondas inconstantes,
hoje propício e acariciador para a frágil tartana de formas
esguias e coberta corrida desfraldando ao vento sua vela latina, amanhã
enfurecido, açoitado pelos ventos, é capaz de ‘destruir
os navios mais resistentes com as suas ondas curtas, que os flagelam sem descanso.

Assim, nesse rápido passeio através das águas sombrias
daquelas profundidades, quantos destroços eu vi jazendo no fundo, uns
já envoltos por corais, outros apenas revestidos por uma camada de
ferrugem: âncoras, canhões, balas, guarnições de
ferro, pás de hélice, pedaços de máquinas, depois
cascos flutuando em várias posições.

Dos navios naufragados, uns tinham perecido por colisão, outros por
terem batido em escolhos graníticos. Vi alguns que tinham ido a pique
com a mastreação inteira e pareciam estar parados num ancoradouro
à espera do momento da partida.

Quando o “Nautilus” passava entre eles e os envolvia com os
seus raios elétricos, parecia que aqueles navios o iam saudar com as
suas bandeiras e comunicar-lhe os seus números de ordem! Havia apenas
o silêncio e a morte naquele campo das catástrofes.

Observei que à proporção em que o “Nautilus”
se aproximava de Gibraltar, mais numerosos eram esses sinistros destroços.
Onde as costas da Europa e da África mais se aproximam, os desastres
são mais freqüentes. Vi numerosas quilhas de ferro, ruínas
fantásticas de vapores, uns deitados, outros de pé, semelhantes
a formidáveis animais imobilizados na maioria das vezes.

Um desses barcos, com os flancos abertos, a chaminé quebrada, sem
rodas, com o leme separado do cadaste e ainda preso por uma cadeia de ferro
já corroída pelos sais marinhos, apresentava-se sob um aspecto
terrível! Quantas existências ceifadas no seu naufrágio,
quantas vítimas arrastadas pelas águas! Teria escapado algum
marinheiro para narrar o terrível acontecimento, ou todos teriam morrido?
Não sei por quê, lembrei-me de que aquele navio mergulhado no
mar podia ser o “Atlas”, desaparecido havia vinte anos e do qual
nunca mais se ouviu falar.

Entretanto, o “Nautilus”, indiferente e rápido, ia passando
entre as ruínas. No dia 18 de fevereiro encontrava-se à entrada
do Estreito de Gibraltar.

Poucos minutos depois estávamos no Atlântico.

Capítulo VIII

O Atlântico! Imensa extensão de água cuja superfície
cobre vinte e cinco milhões de milhas quadradas, com um comprimento
de nove mil milhas e uma largura média de duas mil e setecentas. Mar
importante, quase desconhecido na antigüidade, exceto talvez dos cartagineses,
que nas suas viagens comerciais seguiam as costas oeste da Europa e da África.
Oceano, cujas costas de sinuosidades paralelas abraçam um perímetro
imenso, alimentado pelos maiores rios do mundo: o São Lourenço,
o Mississipi, o Amazonas, o da Prata, o Orenoco, o Níger, o Senegal,
o Elba, o Loire, o Reno e muitos outros, que lhe trazem águas dos países
mais civilizados e das regiões mais selvagens do globo.

Magnífica planície líquida, incessantemente sulcada
por navios de todas as nações, abrigados sob todas as bandeiras
do mundo e que termina por essas duas pontas temidas de todos os navegadores:
o Cabo Horn e o Cabo das Tormentas.

O “Nautilus” quebrava-lhe as águas com o seu esporão,
depois de ter percorrido terça de dez mil léguas em três
meses e meio, distância superior a qualquer um dos grandes círculos
da terra. Para onde íamos e o que nos reservaria o futuro? O submarino,
passado o Estreito de Gibraltar, tinha-se feito ao largo.

Voltou à superfície das águas e, consequentemente,
voltaram os nossos passeios na plataforma.

Subi imediatamente, acompanhado por Conselho e Ned Land. A uma distância
de doze milhas avistava-se vagamente o Cabo de São Vicente, que forma
a extremidade sudoeste da Península Ibérica. Soprava um vento
forte do sul. O mar estava encapelado e fazia o “Nautilus” balançar
violentamente. Era quase impossível ficar na plataforma, incessantemente
varrida por enormes vagas. Por isso descemos depois de termos aspirado um
pouco de ar puro.

Ned Land, bastante preocupado, seguiu-me para o meu quarto, enquanto Conselho
foi diretamente para a sua cabina. A nossa rápida passagem pelo Mediterrâneo
não tinha permitido ao canadense pôr em prática os seus
planos de fuga e estava francamente desapontado.

Ele me olhou em silêncio durante algum tempo, depois que fechei a
porta e o fiz sentar-se. Adivinhei que tinha alguma coisa muito importante
para me dizer.

– Eu o compreendo, meu caro Ned – iniciei o diálogo com o intuito
de deixá-lo mais a vontade – mas você não tem de que se
censurar. Nas condições em que o “Nautilus” navegou,
pensar em fugir seria uma loucura.

Ele me ouviu e continuou calado. Os seus lábios cerrados e as sobrancelhas
franzidas eram sinal de uma violenta obsessão, de uma idéia
fixa que o atormentava.

– Não vejo por que se desesperar – continuei a falar tentando vencer
o sofrido mutismo dele. – Continuamos seguindo pela costa de Portugal e talvez
a caminho da França e da Inglaterra. Se, passando o Estreito de Gibraltal,
o “Nautilus” se tivesse feito ao largo, para o sul, se estivesse
nos levando para regiões onde não há continentes, então
eu partilharia de sua inquietação. Mas já sabemos que
o Capitão Nemo não foge dos mares civilizados. Creio que dentro
de alguns dias você encontre uma oportunidade segura para agir.

Ned Land olhou-me ainda mais fixamente, seus lábios se moveram e
ele disse com determinação: – É esta noite! Levantei-me
de repente. Confesso que não estava preparado para ouvir aquilo. Quis
dizer qualquer coisa mas não encontrei palavras para me expressar.

– Tenhamos combinado esperar por uma boa ocasião – continuou ele.
– Pois bem, professor, essa ocasião chegou. Esta noite estaremos a
algumas milhas da costa espanhola. A noite está escura e o vento sopra
do largo. Deu-me a sua palavra e eu conto com o senhor.

Continuei calado. Ele se levantou e me disse quase ao ouvido – Esta noite,
às nove horas. Conselho já está prevenido. A essa hora
o Capitão Nemo estará no seu quarto, dormindo, provavelmente.
Da tripulação, os que não estiverem também dormindo,
estarão ocupados.

Eu e Conselho iremos até a escada central e o senhor ficará
na biblioteca aguardando o nosso sinal. Os remos, o mastro e as velas estão
dentro do bote. Até logo, professor.

– O mar me parece muito agitado – consegui falar.

– De fato está – disse ele – mas temos de nos arriscar. A liberdade
tem o seu preço. O bote é sólido e algumas milhas com
o vento ajudando, faz-se rapidamente. Se as circunstâncias nos favorecerem,
entre as dez e as onze horas teremos desembarcado em terra firme. Se elas
forem contra nós, estaremos mortos. Portanto demos graças a
Deus e até logo à noite.

Ele saiu e eu fiquei atordoado. Eu tinha imaginado que guando surgisse aquela
ocasião, disporia de tempo para refletir, para discutir e talvez até
para adiá-la. De repente eu não tive nada para dizer ao canadense.
Ele tinha toda a razão. Era uma ocasião e deveríamos
aproveitá-la. Podia faltar à minha palavra e assumir a responsabilidade
de comprometer o futuro dos meus companheiros no meu interesse pessoal? Naquele
momento ouviu-se um forte apito, sinal de que os reservatórios estavam
cheios. O “Nautilus” mergulhou nas águas do Atlântico.

Permaneci no meu quarto, porque queria evitar o capitão. Eu tinha
medo de me deixar trair pela emoção que me dominava. Passei
um dia penoso, entre o desejo de alcançar a liberdade e a mágoa.
de abandonar aquele maravilhoso “Nautilus”, deixando inacabados
os meus estudos submarinos. Deixar assim aquele oceano, “o meu Atlântico”,
como gostava de chamá-lo, sem ter observado suas camadas mais profundas,
sem lhe ter desvendado os mistérios, como tinha feito aos mares das
índias e no Pacífico! O meu romance caía-me das mãos
no primeiro volume, o meu sonho ia ser interrompido no melhor momento.

Passei assim algumas horas amargas, ora me vendo em terra, em segurança
com os meus companheiros, ora desejando que alguma circunstância imprevista
impedisse a realização dos projetos de Ned Land.

Fui duas vezes ao salão para consultar a bússola para verificar
a direção do “Nautilus” e assegurar-me de que estávamos
realmente nos aproximando da costa. O submarino continuava em águas
portuguesas, rumando para o norte, na direção desejada pelo
canadense. Portanto, tínhamos de aproveitar a ocasião e tentarmos
a fuga. A minha bagagem constava apenas dos meus apontamentos. Nada de coisas
pesadas.

Quanto ao Capitão Nemo, perguntava-me sobre o que pensaria ele da
nossa evasão. Que tipo de inquietações, que problemas
poderíamos causar a ele e o que faria o enérgico capitão
se a nossa tentativa fracassasse? Eu não tinha nenhuma razão
para me queixar dele. Ao contrário disso, a sua hospitalidade não
me deixava margem para censuras. Por outro lado, não tinha também
nenhum motivo para me considerar ingrato com ele: nenhum juramento e nem mesmo
uma palavra menos formal me prendia ao capitão quanto ao que íamos
fazer.

Ele contava com a força das circunstâncias e não com
a nossa palavra para nos manter junto dele. A sua confessada intenção
de nos manter eternamente á bordo do seu navio justificava todas as
nossas tentativas de fuga. Eu não o via desde a noite em que o cofre
com o ouro fora mandado para alguma parte da Europa, ou seria da África
ou até mesmo do Oriente Médio? Será que voltaria a vê-lo
antes de minha partida? Desejava vê-lo e, ao mesmo tempo, receava a
sua presença naquelas circunstâncias. Pus-me à escuta
para ver se ouvia passos no quarto dele, contíguo ao meu. Nem um ruído.
O quarto devia estar deserto. Então eu pensei se o capitão estaria
realmente a bordo.

Desde aquela noite em que o bote deixara o “Nautilus” para aquela
misteriosa entrega do ouro, as minhas idéias em relação
ao capitão haviam se modificado um pouco. Passei a supor que apesar
do que dizia, o Capitão Nemo continuava a manter algumas relações
com a terra. Ele nunca deixaria o “Nautilus”? Por vezes passava-se
uma semana inteira sem que eu o visse. Que estaria fazendo ele durante esses
dias? E quando eu poderia julgá-lo praticando algum ato de misantropia,
não estaria antes envolvido em alguma ação secreta cuja
natureza me escapava? Todas essas considerações assaltavam a
minha mente. O campo de conjeturas era infinito na situação
em que me encontrava. Sentia um mal-estar insuportável. Aquele dia
de espera me parecia infindável. As horas se passavam demasiado lentamente
para o meu estado de impaciência. Como sempre o jantar me foi servido
no quarto. Quase não comi, enfastiado de preocupações.
Saí da mesa às sete horas. Ainda faltavam cento e vinte minutos
para o momento em que deveria me juntar a Ned Land e Conselho. A minha agitação
aumentava e o meu pulso estava alterado. Não conseguia ficar quieto.
Andava de um lado para o outro na esperança de acalmar a agitação
do espírito com o movimento físico.

A idéia de sucumbir na nossa temerária empresa era a menor
de minhas preocupações. Mas ao pensar que o nosso projeto poderia
ser descoberto antes de deixarmos o “Nautilus”, ao pensar de ser
levado perante o Capitão Nemo, furioso ou, ainda pior, entristecido
com o meu procedimento, palpitava-me o coração.

Quis rever o salão pela última vez. Segui pelos corredores
e cheguei ao museu, onde tinha passado tantas horas agradáveis e úteis.
Olhei todas aquelas riquezas, todos aqueles tesouros, como um homem na véspera
de um exílio eterno, que parte para nunca mais voltar. Aquelas maravilhas
da natureza, aquelas obras-primas da arte, no meio das quais passara tantos
dias, ia abandoná-las para sempre. Desejei observar as águas
do Atlântico através dos vidros do salão, mas os painéis
estavam fechados e uma chapa de zinco separava-me daquele oceano que eu tanto
desejava conhecer melhor.

Ao percorrer o salão, cheguei à porta, existente num dos lados,
que dava para o quarto do capitão. Para minha surpresa a porta estava
entreaberta. Recuei involuntariamente. Se estivesse lá dentro, ele
poderia me ver. Escutei e não ouvi nenhum ruído. Aproximei-me
de novo e olhei. O quarto estava deserto. Empurrei a porta e entrei.

Comecei reparando em alguns quadros a óleo pendurados na parede.

Não me lembrava de tê-los visto em minha primeira visita ao
quarto dele. Eram retratos de grandes vultos da história, cujas existências
tinham decorrido numa perpétua devoção a uma grande idéia
humana Kosciusko, o herói caído ao grito de Finis Poloniase;
Botzaris, o Leônidas da Grécia moderna; O’Connell, defensor
da Irlanda; Washington, fundador da União Americana; Manin, o patriota
italiano; Lincoln, caído pela bala de um escravocrata; e finalmente
o mártir da libertação da raça negra, John Brown,
suspenso da forca, desenhado pelo terrível traço de Victor Hugo.

Que elo existiria entre aquelas almas heróicas e a alma do Capitão
Nemo? Poderia eu, a partir daqueles retratos, desvendar o mistério
da existência dele? Seria ele um campeão de povos oprimidos,
um libertador das raças escravas? Teria participado das últimas
agitações políticas ou sociais do século? Teria
sido um dos heróis da terrível guerra americana, guerra lamentável
e para sempre gloriosa? De súbito o relógio bateu oito horas.
A primeira pancada do pêndulo arrancou-me dos sonhos. Estremeci, como
se olhos invisíveis pudessem mergulhar no mais profundo dos meus pensamentos
e me precipitei para fora do quarto.

Faltando poucos minutos para as nove horas deixei o meu quarto e voltei
para o salão. Mergulhado na semiobscuridade, estava deserto.

Abri a porta que comunicava com a biblioteca. A mesma claridade insuficiente
e a mesma solidão. Fui colocar-me perto da porta que dava para a escada
central e fiquei aguardando o sinal do canadense.

Naquele momento os ruídos da hélice diminuíram sensivelmente
e depois cessaram por completo. Qual seria o motivo daquela repentina alteração
no andamento do “Nautilus”? O barco ter parado iria favorecer
ou prejudicar o plano de Ned Land? O silêncio só era quebrado
pelas batidas do meu coração.

De repente senti um leve choque. O “Nautilus” havia pousado
no fundo do oceano. A minha inquietação redobrou. O sinal do
canadense não chegava. Comecei a ter vontade de ir procurar Ned e dissuadi-lo
de qualquer tentativa de fuga naquela noite. A nossa navegação
não se efetuava em condições normais.

Naquele momento a porta do salão foi aberta e o Capitão Nemo
entrou. Viu-me e disse sem qualquer preâmbulo – Ah! É o senhor,
professor. Eu andava a sua procura. Sabe alguma coisa da história da
Espanha? Nas condições em que me encontrava, ainda que ele me
perguntasse sobre a história do meu próprio país, eu
não seria capaz de dizer uma palavra.

– Não ouviu a minha pergunta, professor? Conhece a história
da Espanha? – Muito mal – respondi.

– Então é um sábio e não sabe. Pois bem, sente-se
que vou lhe contar um episódio bastante curioso dessa história.

O capitão estendeu-se no divã enquanto eu, maquinalmente,
sentei-me junto dele, na penumbra.

– Recuaremos ao ano de 1702 – começou ele, falando com voz pausada.

– Não ignora que nessa época o rei Luís XIV julgando
que com um simples gesto poderia derrubar os Pirineus, tinha imposto o Duque
de Anjou, seu neto, aos espanhóis. Este príncipe, que reinou
mais ou menos mal sob o nome de Felipe V, teve problemas com outros países.

“As casas reais da Holanda, da Áustria e da Inglaterra fizeram
uma aliança com o objetivo de arrancarem a coroa da Espanha da cabeça
de Felipe V, a fim de dá-la a um arquiduque, ao qual chamaram prematuramente
de Carlos III.

“Embora lhe faltassem soldados e marinheiros, a Espanha teve que resistir
a essa coligação. No entanto, não lhe faltaria dinheiro
se os seus galeões carregados de ouro e prata, vindos da América,
entrassem em seus portos. Ora, no final de 1702, era esperado um fabuloso
comboio escoltado por uma frota de vinte e três navios franceses, comandados
pelo Almirante Château-Renault, porque as marinhas dos dois países
em coligação percorriam então o Atlântico.

“Este comboio devia dirigir-se a Cádis. Mas o almirante, informado
de que a frota inglesa cruzava aquelas águas, resolveu rumar para um
porto francês. Os comandantes espanhóis dos navios carregados
com o ouro protestaram contra essa decisão e exigiram ser conduzidos
para um porto espanhol. Não podendo ser o de Cádis, resolveram
seguir para a Baía de Vigo, situada na costa noroeste da Espanha e
que não estava bloqueada pela esquadra inglesa. O Almirante Château-Renault
teve a fraqueza de aceitar essa imposição e os galeões
rumaram para Vigo.

Essa baía forma um ancoradouro aberto, difícil de ser defendido.

Portanto, era necessário descarregar rapidamente os galeões
antes da chegada da frota inimiga. O tempo teria sido suficiente para esse
desembarque se não tivesse surgido uma rivalidade.

“Está seguindo o desenrolar dos fatos, professor? – perguntou-me
o Capitão Nemo.

– Perfeitamente, capitão – respondi, não conseguindo adivinhar
com que propósito estava ele me contando aquela história.

– Então eu continuo. Eis o que se passou: os comerciantes de Cádis
tinham um privilégio segundo o qual deviam receber todas as mercadorias
vindas das índias Ocidentais. Ora, desembarcar os lingotes de ouro
dos galeões, no porto de Vigo, era ir contra esse direito. Queixaram-se
portanto, e obtiveram do fraco Felipe V que o comboio, sem proceder à
descarga, permanecesse seqüestrado no ancoradouro de Vigo até
o momento em que as frotas inimigas se afastassem.

“Enquanto se tomava essa decisão, no dia 22 de outubro de 1702,
os navios ingleses chegaram à Baía de Vigo. O Almirante Château-Renault,
apesar da inferioridade de suas forças, bateu-se corajosamente. Mas
quando viu que as riquezas dos galeões iam cair nas mãos dos
inimigos, incendiou e afundou os seus navios com todo o tesouro.” O
Capitão Nemo fez uma pausa. Eu ainda não havia percebido qual
o interesse que a história dele poderia ter para mim. Mas eu não
poderia mostrar-me descortês com ele. Por isso perguntei-lhe : – E depois,
capitão? – Depois, Sr. Aronnax, estamos na Baía de Vigo e compete-lhe
desvendar- lhe os mistérios.

Levantou-se e me pediu que o seguisse. Eu tivera tempo de me controlar e
podia acompanhá-lo. O salão estava na penumbra, mas através
dos vidros transparentes brilhavam as águas do mar. Olhei.

A volta do “Nautilus”, num raio de meia milha, as águas
apareciam impregnadas de luz elétrica. O fundo arenoso era nítido
e claro. Alguns tripulantes, envergando escafandros, ocupavam-se em desentulhar
tonéis meio apodrecidos, caixas estragadas, no meio de destroços
ainda enegrecidos. Das caixas e dos tonéis escapavam-se lingotes de
ouro e prata, cascatas de piastras e de jóias. A areia estava juncada
dessas preciosidades. Carregados com esse rico espólio, os homens voltavam
ao “Nautilus” onde deixavam o seu rico fardo e retornavam à
sua pesca de ouro e prata.

Então eu compreendi o episódio que o capitão me contara.
Era ali o teatro da batalha de 22 de julho de 1702.

Ali mesmo se tinham afundado os galeões carregados com o ouro para
o governo espanhol. E era também ali que o Capitão Nemo ia buscar
os milhões de que necessitava para os seus misteriosos empreendimentos.

Havia sido para ele, e só para ele que a América entregara
os seus preciosos metais. Ele o herdeiro direto e único dos tesouros
arrancados aos Nicas e a todos os povos derrotados por Fernando Cortez – Sabia
que o mar continha tantas riquezas, professor? – perguntou-me ele, sorrindo.

– Sabia – respondi-lhe – que se calcula em dois milhões de toneladas
a prata que se encontra em suspensão nas suas águas.

– Não duvido. Mas para extrair essa prata as despesas seriam superiores
aos resultados obtidos. Aqui só tenho de apanhar o que os homens perderam
em suas aventuras. Além desse, sei de mil outros teatros de naufrágios,
cujos locais estão todos assinalados em meus mapas. Compreende agora
por que sou tão rico? – Compreendo, capitão. Permita-me no entanto
dizer-lhe que ao explorar precisamente a Baía de Vigo, adiantou-se
aos trabalhos de uma companhia legalmente constituída para esse fim.

– Que companhia? – Uma sociedade que recebeu do governo espanhol o privilégio
de procurar os galeões desaparecidos. Os acionistas esperam alcançar
um enorme lucro, porque se calcula em quinhentos milhões o valor das
riquezas perdidas aqui.

– Quinhentos milhões! – exclamou o capitão. – Poderiam estar
aqui, professor, mas já não estão mais.

r Estou vendo que não. Portanto, avisar esses acionistas seria um
ato de caridade. O que os jogadores lamentam, acima de tudo, não é
tanto a perda de dinheiro, mas a morte de suas loucas esperanças. No
entanto, lamento-os menos do que a milhares de infelizes aos quais tantas
riquezas poderiam ser de grande valia, enquanto agora serão estéreis
para sempre.

Foi fácil perceber que eu tinha ferido o Capitão Nemo.

– Estéreis! Então o senhor julga que essas riquezas estão
perdidas porque fui eu que as apanhei? Pensa que é para mim que me
dou ao trabalho de recolher esses tesouros? Quem lhe disse que não
faço bom uso deles? Julga que ignoro que existem seres que sofrem,
raças oprimidas, miseráveis déspotas que é preciso
abater e vítimas a vingar? Ele parou e eu tive a impressão de
que se arrependera de ter falado tanto. Mas eu adivinhara. Quaisquer que fossem
os motivos que o tinham forçado a procurar a independência sob
os mares, antes de tudo ele continuava a ser um homem. O coração
palpitava-lhe ainda pelo sofrimento humano e a sua imensa caridade dirigia-se
para os indivíduos e para as raças oprimidas.

Descobri então a quem foram destinados os milhões expedidos
por ele quando o “Nautilus” navegava nas águas de Creta
revoltada.

Capítulo IX

No dia seguinte, 19 de fevereiro, vi o canadense entrar no meu quarto.

Eu já esperava a sua visita. Falei-lhe primeiro – Ontem tivemos azar,
amigo.

– Incrível, professor! O danado do capitão tinha de parar
– precisamente quando íamos fugir.

Contei a ele os incidentes da véspera e o recolhimento de mais uma
parte das riquezas dos galeões espanhóis.

– Foi apenas uma arpoadela falhada, professor- disse-me ele. – Na próxima
vez teremos mais sorte. Tentaremos esta noite mesmo…

– Qual é a direção do “Nautilus”? – perguntei.

– Não sei.

– Ao meio-dia verei isso no mapa – prometi a ele.

O canadense voltou para a sua cabina. Depois de me vestir fui ao salão.

Verifiquei que a rota do “Nautilus” era sul-sudoeste. Voltávamos
as costas à Europa. Esperei com impaciência que a nossa posição
fosse assinalada na carta. As onze e meia os reservatórios foram esvaziados
e o navio subiu para a superfície. Quando cheguei à plataforma,
Ned Land já estava lá.

Não havia terra à vista. Nada mais do que o mar imenso. Avistavam-se
algumas velas no horizonte, certamente dos navios que iam até o Cabo
de São Roque procurar ventos favoráveis para dobrar o Cabo da
Boa Esperança.

O tempo estava encoberto e começava a soprar o vento. Irado, o canadense
observava o horizonte. Esperava ainda que por trás do nevoeiro se estendesse
a tão desejada terra. Ao meio-dia o sol mostrou- se por um instante.
O imediato aproveitou a ocasião para lhe medir a altura. O mar se tornou
mais agitado, fomos obrigados a descer e os alçapões foram fechados.

Uma hora depois, quando consultei a carta, vi que a posição
do “Nautilus” era de 16° 17′ de longitude e 33° 22′ de
latitude, a cento e cinqüenta léguas de distância da costa
mais próxima. Não havia qualquer possibilidade de fuga. O canadense
ficou furioso quando o informei da nossa situação.

. Quanto a mim não fiquei muito agastado. Sentia-me aliviado do peso
que me oprimia e pude retomar com certa calma os meus trabalhos habituais.

A noite, mais ou menos às onze horas recebi a visita do Capitão
Nemo.

Ele me perguntou se me sentia fatigado e eu lhe informei que não.

– Então vou lhe propor uma curiosa excursão, professor.

– Faça o favor, capitão.

– Até agora só visitou os fundos marinhos com a luz do sol.
Gostaria de ver como são à noite? – Certamente, senhor.

– Devo preveni-lo de que o passeio será fatigante. Terá de
andar muito tempo e de escalar uma montanha para ver o que desejo lhe mostrar.

– Estou curioso, capitão.

– Então venha. Vamos vestir os escafandros.

Em poucos minutos estávamos vestidos. Colocaram-nos às costas
os reservatórios de ar abundantemente carregados, mas não me
deram a lâmpada e eu falei dessa falha ao capitão.

– De nada nos serviriam – respondeu-me.

Julguei ter ouvido mal, mas não pude repetir a minha observação
porque a cabeça dele já tinha desaparecido dentro do seu capacete
metálico.

Acabei de me arranjar e, como apetrecho que eu não havia usado ainda,
deram-me um pau ferrado. Após as manobras habituais pisamos o fundo
do Atlântico, a uma profundidade de trezentos metros.

Aproximava-se da meia-noite. As águas estavam profundamente escuras,
mas o capitão apontou-me à distância para um ponto vermelho,
uma espécie de claridade que brilhava a cerca de duas milhas do barco.

Começamos a andar na direção dela. Caminhávamos
bem próximos um do outro. O terreno plano começou a subir ligeiramente.
Dávamos largas passadas mas a nossa marcha era lenta. Os nossos pés
se enterravam numa espécie de lodo com algas, semeado de pedras lisas.

Ao avançar, eu ouvia uma espécie de crepitação
por cima de minha cabeça. Por vezes o ruído aumentava e produzia
como que um fulgor contínuo. Era a chuva que caía violentamente
na superfície das águas.

Instintivamente, pensei que ia me molhar. Não pude deixar de sorrir
com tal idéia. Para dizer a verdade, dentro do pesado escafandro não
se sente o elemento líquido e pensa-se estar no meio de uma atmosfera
um pouco mais densa do que a atmosfera terrestre.

Após meia hora de marcha o solo tornou-se pedregoso, mas nosso caminho
tornava-se cada vez mais iluminado. A luz esbranquiçada brilhava no
cimo de uma montanha com cerca de oitocentos pés de altura. Mas o que
eu via não passava de uma simples reverberação desenvolvida
pelo cristal das camadas de água. A origem daquela inexplicável
claridade encontrava-se no lado oposto da montanha.

O Capitão Nemo avançava sem hesitação no meio
dos pedregulhos que sulcavam o fundo do Atlântico. Não havia
dúvida de que conhecia o caminho e de que já o havia percorrido
algumas vezes. Eu o seguia confiantemente. Aparecia-me como um dos gênios
do mar. Andando atrás dele, eu admirava a sua elevada estatura que
se destacava no fundo luminoso. Era uma hora da manhã. Tínhamos
chegado às primeiras vertentes da montanha. Para transpô-la era
preciso nos aventurarmos pelos difíceis atalhos de uma enorme floresta.

O capitão, familiarizado com aqueles caminhos, andava sem qualquer
problema. Tínhamos chegado a uma primeira plataforma da montanha, onde
me esperavam algumas surpresas. Ali desenhavam-se pitorescas ruínas
que traíam a mão humana e não a do Criador. Eram vastas
extensões de pedras onde se distinguiam vagas formas de castelos, de
templos, revestidos por um mundo de zoófitos em flor.

Que região submersa do globo seria aquela? Quem tinha disposto aquelas
rochas e pedras como dólmens dos tempos pré-históricos?
Onde eu estava? Onde a fantasia do Capitão Nemo havia me levado? Queria
interrogá-lo, mas como não podia fazê-lo, segurei-lhe
o braço.

Ele abanou a cabeça e apontou para o cume da montanha. Pareceu-me
ouvi-lo dizer: “Venha! Continue! Não pare!” Eu o segui
num último esforço. Mais alguns minutos de penosa subida e alcancei
o pico que dominava toda aquela massa rochosa.

O meu olhar vagueou ao redor e vi um enorme espaço iluminado por
uma fulguração violenta. Aquela montanha era um vulcão.
A cinqüenta pés abaixo do pico, no meio de uma chuva de pedras
e de escórias, uma grande cratera vomitava torrentes de lava, que se
dispersavam em cascatas de fogo no seio da massa líquida. Assim situado,
aquele vulcão era como um imenso facho iluminando a planície
inferior até os limites do horizonte.

A cratera submarina lançava lavas e não chamas, porque estas
necessitariam de oxigênio e por isso não podiam existir debaixo
das águas. Mas as torrentes de lavas que têm em si próprias
o princípio de sua incandescência, podem atingir o vermelho-branco,
lutar vitoriosamente contra o, elemento líquido e vaporizar-se ao seu
contato. Rápidas correntes arrastavam todos aqueles gases em fusão
e as torrentes de lavas deslizavam até o sopé da montanha, como
as dejeções do Vesúvio sobre a Torre del Grecco.

Diante dos meus olhos, arruinada, destruída, demolida, aparecia uma
cidade com os telhados roídos, os templos desmoronados, os arcos deslocados,
as colunas caídas por terra, onde se percebiam ainda alguns traços
de arquitetura toscana. Mais ao longe os restos de um gigantesco aqueduto
e mais além a saliência de uma acrópole com as formas
flutuantes de um Partenon. Mais adiante vestígios de um cais, como
se algum antigo porto tivesse outrora abrigado navios mercantes e trirremes
de guerra. Ainda mais longe, longas linhas de muralhas arruinadas, largas
ruas desertas, uma Pompéia submersa que o Capitão Nemo ressuscitava
a minha vista.

Onde estaríamos? Emocionado, esbarrei no capitão. Por gestos
exigi que ele me desse uma explicação. Pegando em um pedaço
de rocha calcária ele se dirigiu para um granito de basalto preto e
traçou uma palavra: “ATLANTIDA”.

Um clarão atravessou-me o espírito! A Atlântida de Platão,
esse continente negado por Orígenes, Porfirio, Jamblique, D’Anville,
Malte-Brun e Humboldt, que consideravam o seu desaparecimento uma lenda.

Aceito por Possidônio, Plínio, Ammien-Marcellin, Tertuliano,
Engel, Sherer, Tournefort, Buffon, D’Avezac, estava diante dos meus
olhos, mostrando ainda os irrecusáveis testemunhos da sua catástrofe.
Era, portanto, aquela região submersa que existia fora da Europa, da
Ásia, da Líbia e para além das colunas de Hércules,
onde vivia o poderoso povo dos Talantes, contra o qual se fizeram as primeiras
guerras da antiga Grécia.

O historiador que consignou nos seus escritos os altos feitos desses tempos
heróicos foi o próprio Platão, no seu diálogo
de Tiniu e Críticas, traçado por assim dizer sob a inspiração
de Cólon o poeta e legislador. Tais eram as lembranças históricas
que a inscrição do Capitão Nemo fez surgir no meu espírito.
Portanto, conduzido pelo mais estranho destino, eu pisava uma das montanhas
daquele continente! Tocava aquelas ruínas mil vezes seculares! Caminhava
por onde tinham caminhado os contemporâneos do primeiro homem. Esmagava
com os meus pesados sapatos os esqueletos de animais dos tempos fabulosos,
que aquelas árvores, agora mineralizadas, outrora cobriram com a sua
sombra.

O Capitão Nemo, apoiado numa estela coberta de musgo, permanecia
im&ooacute;vel e como que petrificado num êxtase mudo. Pensaria ele naquelas
gerações desaparecidas, tentando descobrir o segredo do destino
humano? Seria ali que aquele estranho homem ia retemperar-se nas recordações
da história e reviver a vida antiga, ele que nada queria com a vida
moderna? Eu daria tudo que tivesse para conhecer, partilhar e compreender
os pensamentos dele.

Quando penetramos de volta no interior do “Nautilus” já
as primeiras claridades da aurora branqueavam a superfície do oceano.

Capítulo X

No dia seguinte, 20 de fevereiro, acordei muito tarde. As fadigas da noite
haviam prolongado o meu sono até as onze horas. Vesti-me rapidamente
porque tinha pressa em saber qual o rumo do “Nautilus”.

Os instrumentos do salão indicaram-me que ele continuava a navegar
para ó sul, com uma velocidade de vinte milhas por hora e a uma profundidade
de cem metros.

Esse dia passou-se sem novidades. No entanto, estive espiritualmente muito
ocupado recordando todos os meus conhecimentos sobre a história da
Atlântida. O passeio da noite anterior me deixara realmente impressionado.
Não teria sido um sonho? No dia seguinte, 21 de fevereiro, eram oito
horas da manhã quando cheguei ao salão. Olhei o manômetro.
O “Nautilus” flutuava à superfície do oceano. Dirigi-me
para o alçapão que estava aberto. Mas em vez da luz do dia que
esperava, vi-me rodeado de uma escuridão profunda.

Onde estaríamos? Ainda seria noite e eu teria me enganado? Não
sabia o que pensar, quando ouvi a voz do Capitão Nemo.

– Professor Aronnax? – Sim. Onde estamos, capitão? – Debaixo da terra,
professor.

– Debaixo da terra? Mas o “Nautilus” está flutuando?
– Como sempre, professor.

– Mas não compreendo! – Espere uns instantes. O nosso farol vai acender-se
e, se gosta de situações claras, vai ficar satisfeito.

A escuridão era tão completa que nem sequer eu via o capitão.
No entanto, olhando o zênite, exatamente por cima de minha cabeça,
pareceu-me ver uma luz vaga, uma espécie de meia-luz que enchia um
buraco circular. Naquele momento acendeu-se o farol do “Nautilus”
e o seu brilho intenso fez desvanecer num instante aquela vaga luz.

Olhei, depois de ter fechado os olhos por um instante, ofuscados pela luz
elétrica. O submarino estava imóvel. Flutuava junto de uma margem
disposta como um cais. O meio que então o suportava era um lago aprisionado
dentro de um círculo de muralhas que media duas milhas de diâmetro.
O seu nível, indicado pelo manômetro, só podia ser o nível
exterior, porque existia necessariamente uma comunicação entre
o lago e o mar. As altas muralhas, inclinadas para a base, arredondavam-se
em abóbada e pareciam um enorme funil invertido, cuja altura era de
uns quinhentos a seiscentos metros. No cume abria-se um orifício circular
por onde eu tinha notado aquela fraca claridade; sem dúvida devida
aos raios solares.

Antes de examinar atentamente as disposições interiores daquela
enorme caverna e de procurar saber se seria obra da natureza ou do homem,
perguntei ao capitão: – Onde estamos? – No centro de um vulcão
extinto. Um vulcão cujo interior foi invadido pelo mar, depois de uma
convulsão do solo. Enquanto o senhor estava dormindo, o “Nautilus”
penetrou nesta lagoa através de um canal natural, aberto a dez metros
abaixo da superfície do oceano. É aqui o seu porto de abrigo.
Um porto seguro, cômodo, secreto, abrigado de todos os ventos.

– Não resta dúvida que está em segurança aqui,
capitão. Quem se lembrará de procurá-lo no centro de
um vulcão. Quem poderia fazê-lo? Mas não é uma
abertura o que vejo no cimo da caverna? – Sim, é uma cratera. Outrora
cheia de lava, de vapores e de chamas, hoje ela dá passagem ao ar vivificante
que respiramos aqui.

– Que montanha vulcânica é esta? – Pertence a uma das numerosas
ilhas que povoam este mar. Simples escolho para os navios, é para nós
uma imensa caverna. Eu a descobri por acaso e foi uma descoberta muito útil.

– Está em segurança neste lago e só o senhor pode visitar
estas águas.

Mas para que serve este refúgio? O “Nautilus” precisa
de um porto? – Não, professor, mas precisa de eletricidade para se
mover. Precisa de elementos para produzir essa eletricidade. De sódio,
para alimentar esses elementos, de carvão para fazer o sódio
e de minas que produzam esse carvão. Ora, precisamente aqui, o mar
cobre florestas inteiras há milhares de anos. Hoje mineralizadas e
transformadas em hulha,, essas florestas são uma mina inesgotável
para mim.

Agradeci ao capitão as suas informações e fui procurar
os meus companheiros que ainda não tinham saído de sua cabina.
Convidei-os para que me acompanhassem à plataforma, sem lhes dizer
onde nos encontrávamos.

Conselho, que não se surpreendia com coisa alguma deste mundo, olhou-me
como se fosse uma coisa natural acordar debaixo de uma montanha. Ned Land
fez algumas perguntas, mas na verdade só se preocupou em saber se a
caverna tinha alguma saída. Não tinha.

Depois do almoço descemos na margem do lago.

– Íeis-nos mais uma vez em terra – disse Conselho.

– Não chamo a isto terra – falou o canadense. – Aliás, não
estamos por cima, mas por baixo.

– Estamos dentro da montanha – manifestei-me, prevenindo uma possível
discussão entre os dois.

A natureza vulcânica daquela enorme cavidade era visível por
toda parte. Chamei a atenção de meus companheiros para isso.

– Imaginam o que deveria ser este funil quando as lavas incandescentes subiam
até o orifício da montanha, como a matéria em fusão
dentro de um forno? – Imagino perfeitamente – respondeu Conselho. – Mas por
que será que o grande fundador suspendeu o seu trabalho e como foi
que a fornalha se encheu de água? – Provavelmente porque alguma convulsão
da natureza produziu sob a superfície do oceano a abertura que serviu
de passagem ao “Nautilus”.

Então as águas do Atlântico invadiram o interior da
montanha. Houve uma luta terrível entre os dois elementos, que terminou
com a vitória de Netuno. Desde então passaram-se muitos séculos
e o vulcão submerso transformou-se numa pacífica gruta.

Passamos a tarde inteira passeando pela gruta e Ned Land verificou pessoalmente
que nenhum ser humano poderia subir ou descer pela cratera do vulcão.
Depois regressamos para bordo. A tripulação acabava de embarcar
as provisões de sódio e o “Nautilus” estava pronto
para partir a qualquer momento.

No entanto o Capitão Nemo não dava a ordem nesse sentido.
Queria esperar pela noite e sair secretamente pela passagem submarina? Deveria
ser justamente isso, porque na manhã seguinte o submarino navegava
ao largo e a alguns metros abaixo das ondas do Atlântico.

Capítulo XI

A rota do “Nautilus” não tinha sido modificada. Toda a
esperança de voltarmos aos mares europeus deveria ser esquecida. O
capitão Nemo rumava para o sul. Para onde estaria ele nos conduzindo?
Eu não ousava imaginar.

Naquele dia o submarino atravessou uma estranha parte do Oceano Atlântico.
Ninguém ignora a existência de uma grande corrente de água
quente, denominada Gulf Stream. Depois de sair dos canais da Flórida,
ela se dirige para Spitzberg. Porém, antes de penetrar no Golfo do
México a corrente se divide em dois braços. O principal deles
se dirige para as costas da Irlanda e da Noruega, enquanto 0 outro segue para
o sul em direção aos Açores. Depois de banhar as costas
africanas ele descreve uma oval alongada e volta em direção
as Antilhas.

Ora, esse segundo braço, que mais se parece com um colar, cerca com
os seus anéis de água quente aquela parte do oceano, fria, tranqüila
e imóvel, a que se chama de Mar dos Sargaços. Verdadeiro lago
em pleno Atlântico, as águas da grande corrente demoram três
anos para rodeá-lo.

O Mar dos Sargaços cobre toda a parte submersa da Atlântida.
Há quem admita que as numerosas ervas de que está semeado são
arrancadas às pradarias deste antigo continente. No entanto é
mais provável que essas ervas sejam levadas à região
pela Gulf Stream, que as tira das costas da América e da Europa. Foi
essa uma das razões que levou Colombo a acreditar na existência
de um novo mundo.

Quando os marinheiros desse intrépido navegador chegaram ao Mar dos
Sargaços, navegaram com muita dificuldade no meio daquelas ervas e
precisaram de três longas semanas para atravessá-lo.

Era essa a zona que o “Nautilus” percorrera naquele dia. Um
verdadeiro prado, um. tapete de algas e uvas dos trópicos, tão
espesso e compacto que a hélice girava com dificuldade.

Todo o dia 22 de fevereiro foi passado no Mar dos Sargaços. No dia
seguinte o mar havia retomado o seu aspecto habitual. Nos dias que se seguiram,
navegando sempre pelo meio do Atlântico, o “Nautilus” avançava
a uma velocidade constante de cem léguas em cada vinte e quatro horas.
Era evidente que o Capitão Nemo queria cumprir o seu programa de viagem.
Eu não duvidava que, dobrado o Cabo Horn, ele voltasse aos mares austrais
do Pacífico.

Portanto, Ned Land tivera razão para recear. Nesses mares imensos,
sem ilhas, não era possível tentar uma fuga. Por outro lado,
não tínhamos meios de nos opormos aos desígnios do capitão.
A única coisa a fazer era obedecer. Mas aquilo que não se podia
alcançar pela força e pela manha, também não se
devia tentar obter por persuasão. Terminada aquela viagem, talvez o
capitão consentisse em nos dar a liberdade sob juramento de nunca revelarmos
a sua existência. Juramento de honra que faríamos. Eu tinha de
conversar sobre isso com ele.

Desde o início, o Capitão Nemo havia declarado, de uma maneira
formal, que o segredo da sua vida exigia a nossa prisão perpétua
a bordo do “Nautilus”. Éramos seus prisioneiros há
quatro meses e o meu silêncio sobre esse assunto não deixava
de ser uma concordância tácita com essa situação.
Eu sempre pensava que uma discussão do problema tivesse como resultado
fazê-lo ficar em permanente estado de alerta contra nós. Isso
poderia prejudicar o aproveitamento, com sucesso, de alguma oportunidade de
fuga que tivéssemos. Em suma, embora eu não fosse pessimista
compreendia que as possibilidades de voltarmos ao convívio de nossos
conhecidos e parentes diminuíam de dia para dia, à medida que
o Capitão Nemo corria como um temerário o Atlântico Sul.

De 23 de fevereiro a 12 de março não houve qualquer incidente
digno de nota e eu raras vezes vi o capitão. As vezes ouvia ressoar
os sons melancólicos do seu órgão que tocava com muito
sentimento, sempre à noite, no meio da maior obscuridade, quando o
“Nautilus” adormecia nos desertos do oceano.

Durante essa parte da viagem navegamos dias inteiros à superfície.
O mar parecia abandonado. Apenas alguns barcos a vela, com carga para a índia,
se dirigiam para o Cabo da Boa Esperança. Um dia fomos perseguidos
pelas lanchas de um baleeiro, que sem dúvida nos tomara por uma enorme
baleia de alto valor. O Capitão Nemo não quis que os pescadores
perdessem tempo e trabalho e pôs um ponto final na caçada, mergulhando
nas águas.

Nessa região encontramos grandes cães-do-mar, que são
peixes extremamente vorazes. Não se deve acreditar nas histórias
dos pescadores, mas aqui vai o que contam. Encontrarem no corpo de um desses
animais uma cabeça de búfalo e uma vitela inteira. Em um outro
deles foram achados dois atuns e um marinheiro fardado. Num terceiro, um soldado
com o sabre e, finalmente, num quarto, um cavalo com o seu cavaleiro. São
histórias que eu ouvi contar e passo à frente sem qualquer responsabilidade
quanto à sua veracidade.

Até o dia 13 de março a nossa navegação continuou
nessas condições.

Nesse dia o “Nautilus” fez algumas experiências de sondagem
que me interessaram muito. Tínhamos percorrido até essa data
cerca de treze mil léguas, desde a nossa partida dos mares do Pacífico.
O ponto nos indicava 45° 37′ de latitude sul e 37° 53′ de longitude
oeste. Estávamos na zona onde o Capitão Denham do “Herald”
lançara quatorze mil metros de sonda para encontrar o fundo. Também
ali, o Tenente Parker da fragata americana “Congress” não
tinha atingido o fundo submarino a quinze mil cento e quarenta metros.

O Capitão Nemo resolveu descer com o seu “Nautilus” para
as maiores profundidades com o fim de verificar essas diferentes sondagens.

Preparei-me para registrar todos os dados da experiência. Os painéis
do salão foram abertos e começaram as manobras para atingir
as camadas mais profundas.

O capitão e eu ficamos no salão seguindo a agulha do manômetro
que rodava com rapidez. Não tardamos em ultrapassar a zona habitável,
onde vive a maioria dos peixes. Perguntei ao Capitão Nemo se tinha
observado peixes a maiores profundidades.

– Peixes? Raramente. No estado atual dessa ciência especializada,
o que se sabe sobre o assunto? – perguntou-me ele.

– Sabe-se que à medida que se desce para as camadas inferiores do
oceano, a vida vegetal desaparece mais depressa do que a animal.

Sabe-se que onde ainda se encontram seres animados em grandes profundidades,
a vegetação aquática não existe mais. Sabe-se
que as camalhas e as ostras vivem a mais de dois mil metros da superfície
das águas e que Mac Clintock, o herói dos mares polares, retirou
uma estrela viva, de uma profundidade de dois mil e quinhentos metros.

Sabe-se ainda que a tripulação do “bull-dog”,
da Marinha Real Inglesa, pescou uma estrela-do-mar a mais de uma légua
de profundidade. Mas talvez o senhor me diga que afinal de contas não
se sabe nada.

– Não, professor, eu não seria tão indelicado. De qualquer
forma, como o senhor explica que possa haver vida a tais profundidades? –
Explico-o por duas razões. Primeiro porque as correntes verticais determinadas
pelas diferenças de salinidade e densidade das águas produzem
um movimento que é suficiente para manter a vida rudimentar das estrelas-do-mar.

– Precisamente – concordou ele.

– Depois, porque se o oxigênio é a base da vida, sabe-se que
a quantidade de oxigênio dissolvido na água do mar aumenta com
a profundidade, em vez de diminuir e que a pressão das camadas baixas
contribui para o comprimir.

– Parabéns, professor. Sabe-se muito, porque tudo o que disse é
verdade. Acrescentarei que a bexiga natatória desses peixes contém
mais azoto do que oxigênio, quando são pescados à superfície
das águas e mais oxigênio do que azoto, quando são tirados
das grandes profundidades. Isso confirma a sua teoria. Mas continuemos as
nossas observações.

Olhei para o manômetro que já indicava uma profundidade de
seis mil metros. Havia uma hora que estávamos descendo. As águas
desertas eram admiravelmente transparentes e de uma diafaneidade difícil
de descrever. Uma hora mais tarde estávamos a treze mil metros e ainda
não se avistava o fundo do oceano.

No entanto, a quatorze mil metros distingui picos escuros que surgiam no
meio das águas. Mas esses cumes poderiam pertencer a montanhas com
a altura do Himalaia ou do Monte Branco, ou ainda mais altas, continuando
incalculável a profundidade do fundo.

O “Nautilus” continuou a descer, apesar das altas pressões
que sofria.

Sentia-se que o metal tremia nas juntas, as barras se arqueavam, os tabiques
gemiam, os vidros do salão pareciam estalar sob a pressão das
águas. E este sólido aparelho teria certamente cedido, se não
fosse tão resistente como uma rocha.

Tínhamos atingido uma profundidade de dezesseis mil metros e o casco
do “Nautilus” suportava uma pressão de mil e seiscentas
atmosferas, isto é, mil e seiscentos quilos por cada centímetro
quadrado de sua superfície.

– Extraordinário, capitão! – manifestei-me realmente emocionado.
– Percorrer essas regiões profundas onde o homem nunca chegou! Veja,
capitão, veja essas magníficas rochas, essas grutas desabitadas,
esses últimos receptáculos do globo, onde a vida já não
é possível! Que sítios desconhecidos! Pena que não
possamos conservar alguma recordação desses lugares.

– Gostaria de levar algo mais do que uma recordação, professor?
– O senhor…

– Não se assuste. Estou querendo lhe dizer que nada há mais
fácil do que tirar uma fotografia dessa região.

Uma máquina fotográfica foi trazida para o salão. Através
dos painéis abertos, com a iluminação elétrica,
a claridade era perfeita. A máquina focalizou o fundo do oceano e o
fotografou.

O Capitão Nemo, acabada essa operação, disse-me: –
Subamos, professor. Não devemos expor o “Nautilus” a semelhantes
pressões por muito tempo seguido.

Capítulo XII

Durante a noite de 13 para 14 de março, o “Nautilus” retomou
a sua rota para o sul. Eu supunha que perto do Cabo Horn ele rumaria para
oeste, a fim de chegar aos mares do Pacífico e concluir a sua volta
ao mundo. Porém não foi isso que aconteceu e o submarino continuou
navegando em direção às regiões austrais. Aonde
iria? Ao pólo? Aquilo era insensato. Eu começava a acreditar
que as temeridades do Capitão Nemo iam justificando as apreensões
de Ned Land.

Havia algum tempo que o canadense não me falava dos seus projetos
de fuga. Tornara-se menos comunicativo, quase silencioso. Eu percebia o quanto
aquele prolongado aprisionamento lhe custava. Sentia a sua cólera se
acumulando. Quando encontrava o capitão, seus olhos se incendiavam
e eu receava que a sua natural violência o levasse a uma atitude extrema.

Naquele dia, 14 de março, Conselho e ele vieram ao meu quarto.

Perguntei-lhes a razão da visita.

– Vim lhe fazer uma pergunta, professor – falou Ned Land e foi dizendo:
– Quantos homens julga que há a bordo do “Nautilus”? Tenho
a impressão de que este barco não precisa de uma grande tripulação.

– Acredito que não, Ned – respondi. – Uma dezena de homens deve ser
suficiente para manobrá-lo. Mas se você está pretendendo
apoderar-se do “Nautilus”, não tente isso, meu amigo. Há
pelo menos vinte e cinco homens a bordo.

– Um número muito grande para nós três – murmurou Conselho.

– Portanto, meu caro Ned, só posso lhe aconselhar a ter paciência.
O plano da fuga é melhor.

– Mais do que paciência, precisa ter resignação, Ned
– acrescentou Conselho. – Afinal de contas o Capitão Nemo não
pode navegar eternamente para o sul. Vai ter de parar nem que seja diante
dos bancos de gelo e regressará a mares mais civilizados. Então
poderá retomar os seus projetos de fuga.

O canadense saiu sem dizer nada.

– Se o senhor me permitir gostaria de fazer uma observação
– disse-me Conselho. – O pobre Ned pensa em tudo o que não pode ter.
Lembrase de todas as coisas da sua vida passada. As recordações
o perseguem e ele sofre. Temos de compreendê-lo. Afinal, o que ele pode
fazer aqui? Nada. Não é um sábio como o senhor e não
tem o mesmo interesse que nós temos pelas coisas admiráveis
do mar. Ele daria tudo para poder entrar em uma das tabernas de sua terra.

Conselho tinha razão. A monotonia de bordo devia parecer insuportável
ao canadense habituado a uma vida livre e ativa. Por outro lado, os acontecimentos
que poderiam interessá-lo eram raros. No entanto, naquele dia, um incidente
veio recordar a Ned Land os seus dias de arpoador. Por volta das onze horas
da manhã, encontrando-se à superfície do oceano, o “Nautilus”
penetrou num cardume de baleias.

Sem dúvida foi ele que primeiro avistou uma baleia no horizonte.
Olhei atentamente quando Ned chamou minha atenção e vi o dorso
negro elevar-se e abaixar-se alternadamente, a cinco milhas do submarino.

– Se eu estivesse a bordo de um baleeiro, esse seria um encontro que me
daria muito prazer – disse Ned Land. – Aquele é um animal de grande
porte. Veja a força com que projeta colunas de água e de vapor!
Com mil diabos! Por que tenho que estar preso a este pedaço de ferro?
A baleia continuava a aproximar-se do “Nautilus” e Ned Land não
tirava os olhos dela. De repente ele exclamou – Não é apenas
uma baleia, professor! São dez, vinte, é um cardume inteiro!
E eu não posso fazer nada! – lamentou-se.

– Por que você não pede ao Capitão Nemo uma autorização
para caçá-las? – perguntou Conselho.

O canadense desceu a escada para falar com o capitão. Alguns minutos
depois apareceram os dois na plataforma.

O Capitão Nemo observou os cetáceos, que se encontravam a
uma milha do “Nautilus” e comentou – São baleias austrais.
Fariam a fortuna de uma frota de baleeiros. O cardume é bem grande.

– Eu poderia caçá-las, Sr. Capitão – disse o canadense
– pelo menos para não esquecer o meu antigo mister de arpoador? – Não
precisamos de óleo de baleia a bordo, mestre Ned. Caçar apenas
para destruir? – perguntou o capitão.

– No Mar Vermelho o senhor autorizou a caça ao dugongo – argumentou
Ned Land.

– Foi diferente. Tratava-se de arranjar carne fresca para a minha tripulação.

Agora, seria matar por matar. Sei que esse é um privilégio
reservado ao homem, mas eu não admito esses passatempos assassinos.
Ao destruir a baleia austral e as outras, seres inofensivos e bons, os homens
de sua profissão, mestre Land, cometem uma ação lamentável.
Foi assim que já despovoaram toda a Baía de Baffin e fizeram
desaparecer toda uma população de animais úteis. Deixe
em paz as baleias.

Dar semelhantes razões e conselhos a um arpoador era perder tempo.

Ned Land olhava para o capitão sem compreender o que ele queria dizer.
Depois assobiou o seu Yankee Doodle, meteu as mãos nos bolsos e virou-nos
as costas.

Entretanto o Capitão Nemo observava o cardume de cetáceos
e acabou por me dizer: – Sem contar o homem, a baleia tem muitos inimigos
naturais, professor.

Essas que estamos vendo, dentro de pouco tempo vão ter que enfrentar
um deles. O senhor. está vendo, a oito milhas para sotavento, aqueles
pontos negros em movimento? – Sim, capitão.

– São cachalotes, animais terríveis que já tenho encontrado
em cardumes de duzentos e trezentos. Esses sim, cruéis e prejudiciais,
devem ser exterminados.

O canadense virou-se ao ouvir essas palavras.

– Então, capitão, ainda há tempo. No interesse das
baleias. . . – falei com ele, olhando para Ned Land.

– É inútil nos expormos, professor. O “Nautilus”
dispersará os cachalotes. Está armado com um esporão
de aço que vale muito mais do que o arpão de mestre Land.

O canadense encolheu os ombros. Atacar cetáceos com um esporão!
Onde já se tinha visto aquilo? – Espere, Sr. Aronnax – disse o capitão,
depois de ter refletido por um momento. – Faremos uma caçada que ainda
não conhece. Nada de piedade para esses ferozes cetáceos. Só
têm bocas e dentes.

Bocas e dentes. Não se poderia descrever melhor o cachalote macrocéfalo,
cujo comprimento ultrapassa por vezes os vinte e cinco metros. A enorme cabeça
desse cetáceo ocupa cerca de um terço do seu corpo. Mais bem
armado do que a baleia, cuja mandíbula superior tem apenas barbas,
ele é munido de vinte e cinco grandes dentes de vinte centímetros
de comprimento, cilíndricos e cônicos na extremidade e pesando
duas libras cada um.

Entretanto o monstruoso cardume de cachalotes se aproximava. Eles tinham
visto as baleias e se preparavam para atacá-las. Podia-se prever a
vitória dos cachalotes, não apenas porque são mais bem
armados para o ataque, como também porque podem permanecer mais tempo
do que elas debaixo da água sem ir à superfície para
respirar.

Estava na hora do “Nautilus” ir em socorro das baleias. Ele
navegava submerso. Conselho, Ned e eu sentamo-nos diante dos painéis
no salão. O Capitão Nemo foi para junto do timoneiro a fim de
manobrar o seu barco como se fosse uma máquina de destruição.

O combate entre os cachalotes e as baleias já havia começado
quando o “Nautilus” chegou. O capitão manobrou de modo
a dividir o cardume dos macrocéfalos. A princípio eles não
ligaram ao novo monstro que aparecia no campo de batalha. Em breve sentiriam
os seus golpes.

Que luta! O próprio Ned Land ficou entusiasmado e acabou batendo
palmas diante do painel. O “Nautilus” era um arpão formidável
brandido pela mão do seu capitão. Lançava-se contra aquelas
massas carnudas e atravessava-as de lado a lado, deixando à sua passagem
os animais partidos pelo meio. Não sentia os formidáveis golpes
das caudas dos cetáceos, nem os seus choques. Exterminado um cachalote
corria para outro, dava meia volta, ia para a frente e para trás, obediente
ao leme, mergulhando quando o cetáceo fugia para as camadas inferiores,
subindo à superfície quando o animal fugia para lá, sempre
atingindo-os, rasgando e matando sem parar.

Prolongou-se por cerca de uma hora essa homérica chacina. Finalmente
os que restavam dos cachalotes fugiram do campo de batalha. As águas
se tornaram tranqüilas. Voltamos à superfície. O alçapão
foi aberto e nós corremos pára a plataforma. O mar estava coberto
de cadáveres mutilados. Uma forte explosão não teria
destruído com mais violência aquelas massas carnudas. Flutuávamos
no meio de corpos gigantescos, azulados no dorso e esbranquiçados no
ventre, cobertos de enormes protuberâncias. As águas estavam
manchadas de vermelho numa superfície de várias milhas e o “Nautilus”
navegava no meio de um mar de sangue.

O Capitão Nemo juntou-se a nós na plataforma.

– E então, mestre Land? – Foi um espetáculo terrível,
capitão – respondeu o canadense. Seu entusiasmo já havia se
arrefecido. – Assisti a uma verdadeira carnificina.

Mas eu não sou carniceiro, senhor. Sou arpoador.

– Foi uma chacina de animais prejudiciais – retrucou o capitão. –
O meu barco não é o cutelo de um carniceiro.

– Gosto mais do meu arpão – declarou o canadense.

– Cada um com a sua arma – ao dizer isso o Capitão Nemo olhava fixamente
para Ned Land.

Receei que o arpoador se deixasse dominar pela violência. Isso poderia
ter conseqüências desastrosas para nós. Mas a sua cólera
foi desviada ao avistar uma baleia a que o “Nautilus” acostava
naquele momento.

Aquela não tinha conseguido escapar aos dentes dos cachalotes.

A partir desse dia, comecei a notar que as intenções de Ned
Lana em relação ao Capitão Nemo tornavam-se cada vez
piores, dando-me motivos para ficar seriamente preocupado. Resolvi vigiar
de perto as reações e os gestos do canadense.

Capítulo XIII

O “Nautilus” retomara a sua imperturbável rota para o
sul. Seguia o qüinquagésimo meridiano com uma velocidade considerável.
Queria chegar ao pólo? Todas as tentativas já feitas para atingir
esse ponto do globo terrestre tinham falhado.

A 14 de março avistei gelos flutuantes. O submarino ‘ mantinha-se
à superfície do oceano. Ned Land já tinha pescado nos
mares árticos e estava familiarizado com o espetáculo dos icebergs.
Eu e Conselho os víamos pela primeira vez.

No horizonte sul estendia-se uma faixa branca de aspecto deslumbrante.

Os baleeiros ingleses deram-lhe o nome de ice-blinck. Por mais espessas
que sejam, as nuvens não conseguem escurecê-la. Essa faixa branca
anuncia a presença do banco de gelo.

A 15 de março passamos a latitude das ilhas New Shetland e das Orkney
do Sul. O capitão me informou que ali tinham vivido numerosas tribos
de focas. Os baleeiros ingleses e americanos, na sua fúria destruidora,
chacinando adultos e fêmeas grávidas, tinham deixado atrás
de si o silêncio da morte onde antes existia a animação
e a vida.

A 16 de março, por volta das oito horas da manhã, o “Nautilus”
seguindo o qüinquagésimo quinto meridiano, cortou o círculo
polar antártico.

O gelo nos rodeava por todos os lados. No entanto, o Capitão Nemo
avançava sempre.

– Quando tiver o caminho barrado terá de parar – disse-me Conselho,
quando cogitávamos sobre até onde o capitão pretendia
ir.

Finalmente, a 18 de março, o “Nautilus” ficou definitivamente
preso no gelo. Estávamos no meio de uma interminável e imóvel
barreira formada por montanhas de gelo ligadas entre si.

– O banco de gelo – informou-me Ned Land. – Professor, se o capitão
tentar ir mais longe. . .

– O que acontecerá? – Será um homem morto. Ele é um
homem poderoso mas, com mil diabos, não é mais poderoso do que
a natureza. Onde ela pôs os seus limites é preciso que todos
os respeitem.

– Acho que você está certo, Land, mas eu gostaria de saber
o que há por trás desse banco de gelo. Não há
nada de mais irritante do que um muro.

– O senhor tem razão – disse Conselho. – Os muros foram inventados
para estimular os sábios.

– Todos nós sabemos o que há por trás desse banco de
gelo – falou Ned Land. – Só há mais gelo.

– Você tem certeza disso, Ned, mas eu não tenho. Por isso eu
gostaria de ir lá ver – disse eu.

– Pois é melhor renunciar ao seu desejo, professor. Chegamos ao banco
de gelo, o que já é muito e não iremos mais longe. Daqui
o “Nautilus” terá que rumar para o norte, para a região
dos homens honestos.

Teremos de retroceder, Sr. Aronnax, queira ou não o Capitão
Nemo.

De fato, apesar dos seus esforços, apesar dos seus poderosos meios
para quebrar os gelos, o “Nautilus” estava reduzido à imobilidade.

Normalmente, quem não pode avançar, pode voltar atrás.
Mas na situação em que se encontrava o nosso submarino, recuar
era tão impossível como avançar, porque as passagens
tinham se fechado atrás de nós e o “Nautilus”, quase
imóvel, não tardaria a ficar bloqueado.

Isso aconteceu com extraordinária rapidez. O gelo foi-se formando
nos seus flancos e o imobilizou completamente. Comecei a achar que a conduta
do Capitão Nemo era mais do que imprudente.

Ele estava na plataforma observando a situação. Aproximei-me
dele e comentei – Penso que estamos presos, capitão.

– Por que pensa isso, Sr. Aronnax? – Porque não podemos andar nem
para frente nem para trás. Para os lados também não podemos
ir. Julgo que essa situação caracteriza bem o que eu chamo de
“presos’”.

– Na sua opinião o “Nautilus” não vai conseguir
se libertar de onde estamos? – Dificilmente, capitão. – O senhor continua
o mesmo homem incrédulo, professor – disse ele, sem disfarçar
o tom irônico. – Só vê impedimentos e obstáculos.
Afirmo- lhe que o meu barco não apenas se libertará daqui, mas
ainda irá muito mais longe.

– Mais longe para o sul? – Irá ao pólo, professor.

Diante da minha expressão de espanto e incredulidade, ele reafirmou
sua certeza no que havia dito.

– Sim, professor. Iremos ao pólo antártico, a esse ponto desconhecido
onde se cruzam todos os meridianos do globo. Sabe quê eu faço
do “Nautilus”_ o que eu quero.

Sim! Eu sabia. Sabia que o Capitão Nemo era audacioso até
a temeridade.

Mas vencer os obstáculos que povoam o Pólo Sul, mais inacessível
do que o Pólo Norte, era uma empresa completamente insensata.

Então eu tive uma idéia. Não se daria o caso do capitão
já ter estado ali antes? Talvez já tivesse ido ao pólo!
Foi isso que perguntei a ele.

– Não, professor. Eu ainda não descobri o Pólo Sul.
Haveremos de fazê-lo juntos. Onde os outros falharam, nós não
falharemos. Nunca conduzi o “Nautilus” tão longe nos mares
austrais, mas afirmo-lhe que ele ainda irá mais longe.

– Quero acreditá-lo, capitão – falei, num tom um pouco irônico.
– Acredito-o! Vamos para a frente e não haverá obstáculos
para nós.

Quebremos esse banco de gelo! Façamo-lo saltar e, se ele resistir,
daremos asas ao “Nautilus” para que possa passar por cima dele!
– Não por cima, professor, por baixo – disse ele.

Uma súbita revelação dos projetos do Capitão
Nemo iluminou minha mente. As maravilhosas qualidades do seu barco iam servi-lo
mais uma vez naquela empresa sobre-humana.

– Por baixo, capitão! – exclamei. – É isso mesmo. Iremos por
baixo – concordei com ele, sem qualquer ironia.

– Vejo que começamos a nos entender, professor. Já está
a antever o êxito da tentativa que vamos fazer. O que é impraticável
com um navio comum torna-se fácil para o “Nautilus”. Essas
montanhas de gelo não ultrapassam uma altura de cem metros acima da
superfície do mar.

Abaixo dela não terão mais de trezentos. Ora, o que são
trezentos metros para o meu barco mergulhar? – Nada, capitão. A única
dificuldade que me ocorre será permanecermos vários dias debaixo
da água sem renovar a nossa provisão de ar.

– Isso não será problema – sossegou-me ele. – O “Nautilus”
tem vastos reservatórios que encheremos e nos fornecerão todo
o oxigênio de que necessitamos. Mas, não querendo que me considere
um temerário, professor, vou-lhe dizer qual é o meu receio.

Olhei para ele e esperei curioso que me dissesse o que temia.

– Existindo um mar no Pólo Sul, temo que ele esteja totalmente bloqueado
por grandes camadas de gelo que nos impeçam de subir à superfície.

Se isso acontecer eu ficarei muito decepcionado.

– Pode acontecer que encontremos mar livre no Pólo Sul, tal como
acontece no Pólo Norte, capitão – falei entusiasmado. – Os pólos
do frio e os pólos da terra não se confundem nem no hemisfério
austral nem no hemisfério boreal. Até prova em contrário
devemos imaginar ou um continente ou um mar livre de gelos nesses dois pontos
do globo.

– Também penso assim, professor. Vamos tentar averiguar isso com
os nossos próprios olhos.

A um sinal dele o imediato apareceu. Os dois conversaram na sua incompreensível
linguagem e desceram juntos para o interior do barco.

Quando anunciei aos meus companheiros a nossa intenção de
irmos até o Pólo Sul, Conselho ficou impassível. Disse
apenas um “como o senhor quiser” e não fez nenhum comentário.
Quanto a Ned Land, encolheu os ombros e fez um gesto significativo de sua
impotência para nos impedir de cometermos aquela loucura.

– O senhor e o Capitão Nemo estão se tornando dignos de piedade
– falou com uma seriedade que não deixava dúvidas de sua total
condenação ao nosso projeto.

– Nós iremos ao pólo, Land – reafirmei, convicto.

– É possível. Mas não regressarão! Saiu para
o seu camarote depois de dizer a Conselho que- ia se retirar para não
falar nenhuma inconveniência mais grave.

Os preparativos para a audaciosa tentativa começaram. As potentes
bombas do “Nautilus” armazenaram o ar nos reservatórios.
As quatro horas da tarde, o Capitão Nemo me avisou de que os alçapões
iam ser fechados. Lancei um último olhar ao espesso banco de gelo que
íamos vencer. O tempo estava claro, a atmosfera pura e o termômetro
marcava doze graus abaixo de zero. Não era uma temperatura insuportável.

Um dezena de tripulantes subiu ao flanco do barco armados de picaretas e
quebraram o gelo em redor da quilha, libertando-a. Foi uma operação
rápida. O gelo ali era recente e ainda estava delgado. Descemos todos
para o interior, os reservatórios de água foram cheios e o “Nautilus”
não tardou a submergir.

A cerca de trezentos metros de profundidade, tal como o Capitão Nemo
havia previsto, navegávamos sob a superfície inferior do banco
de gelo. Mas o submarino desceu ainda mais, atingindo uma profundidade de
oitocentos metros.

Durante uma parte da noite, a novidade da situação manteve-nos
junto do painel do salão. O mar iluminava-se sob a irradiação
elétrica do farol, mas estava deserto, pois os peixes não habitam
em águas cobertas.

No dia seguinte, 19 de março, retomei o meu lugar no salão.
A nossa velocidade era moderada. O “Nautilus” começava
a voltar à superfície, mas prudentemente, esvaziando sem pressa
os reservatórios.

Meu coração acelerou as batidas. Iríamos emergir e
encontrar a atmosfera livre do pólo? Ainda não. O “Nautilus”
bateu no fundo do banco de gelo, ainda muito espesso, a julgar pelo ruído
abafado que se produziu.

Durante todo o dia, sempre mais à frente, o submarino repetiu as
tentativas de ir à superfície e continuou a se chocar contra
o teto de gelo que nos cobria.

Eram oito horas da noite. Sentia-me muito nervoso e fui me deitar mais cedo.
Dormi mal naquela noite. Era constantemente assaltado ora pela esperança,
ora pelo desespero. Levantei-me várias vezes. As experiências
do “Nautilus” continuavam. Por volta das três horas da madrugada,
observei que a superfície inferior do banco de gelo se encontrava apenas
a cinqüenta metros de profundidade.

Não voltei para o meu quarto. Os meus olhos se fixaram no manômetro.
Continuávamos a subir seguindo por uma diagonal. O banco de gelo baixava
por cima e por baixo em rampas alongadas.

Adelgaçava-se de milha para milha.

Finalmente, às seis horas da manhã do memorável dia
19 de março, a porta do salão foi aberta e o Capitão
Nemo anunciou – Mar livre!

Capítulo XIV

Precipitei-me para a plataforma. Sim! Era mar livre. Excetuando alguns pedaços
de gelo dispersos, icebergs imóveis, avistava-se um extenso mar, tuna
infinidade de aves nos ares e milhares de peixes nas águas. O termômetro
marcava três graus centígrados abaixo de zero. Era como uma primavera
relativa fechada atrás do banco de gelo, cujas massas longínquas
se elevavam no horizonte norte.

– Estamos no pólo? – perguntei ao capitão, emocionado.

– Não tenho certeza – respondeu-me. – Ao meio-dia faremos o ponto.

– O senhor acha que o sol se mostrará através da bruma? –
Por pouco tempo que apareça será o suficiente.

A dez milhas do “Nautilus”, para o sul, elevava-se uma ilha
solitária, a uma altura de duzentos metros. Navegávamos para
ela, mas prudentemente, porque aquele mar poderia estar semeado de escolhos.

Uma hora depois chegávamos à ilha e duas horas mais tarde
tínhamos completado uma volta em redor dela. Media quatro a cinco milhas
de circunferência e um estreito canal separava-a de tuna extensão
de terra considerável, talvez um continente. A existência desta
terra parecia dar razão às teorias de Maury. O engenhoso americano
afirmara que entre o Pólo Sul e o sexagésimo paralelo, o mar
estaria coberto de gelos flutuantes de enormes dimensões, que não
se encontram iguais no Atlântico Norte. Desse fato concluiu que o círculo
antártico encerraria terras consideráveis, uma vez que os icebergs
não podem se formar em pleno mar, mas apenas junto das costas. Segundo
os seus cálculos, a massa de gelo que envolve o pólo austral
forma uma calota cuja largura deve atingir quatro mil quilômetros.

No entanto o “Nautilus”, temendo encalhar, tinha parado a três
braças de uma praia dominada por um montão de rochas. O bote
foi lançado ao mar. O capitão, dois tripulantes levando os instrumentos,
Conselho e eu embarcamos nele. Eram dez horas da manhã. Eu não
tinha visto Ned Land. Certamente ele não quereria sofrer uma crítica
minha, já que havíamos chegado ao Pólo Sul e com todas
as possibilidades de regresso sem problemas.

Algumas remadas levaram o bote até a praia. No momento em que Conselho
ia saltar para a terra, agarrei-o e lhe disse – Cabe ao Capitão Nemo
a honra de ser o primeiro de nós a pisar esta terra – falei e fiz um
gesto de cortesia ao capitão, indicando-lhe a ilha.

– Obrigado, professor – disse ele. – Se não hesito em aceitar a sua
gentileza é porque até hoje nenhum ser humano pisou a terra
deste Pólo Sul. Tenho o privilégio de fazê-lo.

Dito isto, saltou ligeiro para a areia. Dominava-o uma estranha emoção.

Subiu a uma rocha que terminava a pique por um promontório e ali,
de braços cruzados, olhar ardente, imóvel e mudo, parecia tomar
posse daquelas regiões austrais. Passados cinco minutos naquele êxtase,
voltou-se para nós e falou: – Quando quiser, Sr. Aronnax.

Desembarquei seguido de Conselho.

Começamos a andar pela ilha. O solo, numa grande extensão,
apresentava um tufo de cor avermelhada, como se fosse feito de tijolo moído,
coberto por escórias, correntes de lavas e pedra-pomes. Era impossível
negar a sua origem vulcânica. A vegetação daquele continente
desolado me pareceu extremamente reduzida.

No entanto, a vida nos ares era superabundante. Milhares de aves de espécies
variadas esvoaçavam acima de nossas cabeças, ensurdecendo- nos
com seus gritos. Algumas pousavam nas rochas vendo-nos passar, sem mostrar
qualquer receio. Pingüins ágeis e rápidos dentro da água,
caminhavam lentamente na terra. Soltavam terríveis gritos e formavam
numerosas assembléias, sóbrios nos gestos mas pródigos
nos clamores.

Mas a bruma não se levantava e às onze horas o sol continuava
encoberto.

A sua ausência inquietava-nos. Sem ele não seria possível
fazermos observações. Como determinar então se realmente
tínhamos atingido o pólo? Aproximei-me do Capitão Nemo
que estava encostado em um rochedo olhando para o céu. Pareceu-me contrariado
e impaciente. Não podia fazer nada. Homem audaz e poderoso ele não
imperava no sol tal como o fazia no mar.

Chegou ao meio-dia sem que o astro-rei aparecesse por um só instante.

Era até possível se reconhecer o lugar que ele ocupava por
trás da cortina de nuvens.

– Fica para amanhã – disse-me o capitão.

Voltamos ao “Nautilus”.

No dia seguinte, 20 de março, o frio era intenso. O nevoeiro começou
a dissipar-se e ficamos esperançosos de que o sol aparecesse para fazermos
as nossas observações.

Como o capitão ainda não tinha aparecido, eu e Conselho pegamos
o bote e fomos para a terra. Dirigimo-nos diretamente para a praia do que
julgamos ser o continente. Milhares de aves, como encontráramos na
pequena ilha, animavam aquela parte do continente polar, mas a partilhavam
com enormes rebanhos de mamíferos marinhos, os quais nos olhavam calmamente.
Eram focas de várias espécies, umas estendidas no solo, outras
deitadas em pedaços de gelo à deriva, e muitas outras saindo
ou entrando nas águas do mar. Não fugiam à nossa aproximação,
demonstrando que não nos receavam. Calculei que ali havia uma quantidade
delas suficiente para abastecer algumas centenas de navios.

– Ainda bem que Ned Land não nos acompanhou – disse Conselho.

– Por que você diz isso? – Ele haveria de querer exterminá-las
todas – indicou com o olhar as milhares de focas.

= Todas, é exagero, meu caro. Na verdade eu creio que não
conseguiríamos impedir que o nosso amigo canadense arpoasse algumas
delas.

Isso não agradaria nem um pouco ao Capitão Nemo.

– Como posso classificar esses animais, professor? – perguntou-me Conselho.
Eu já esperava essa pergunta.

– São focas e morsas. Esses nomes lhe bastam.

– De fato, professor. São dois gêneros que pertencem à
família dos pinípedes, ordem dos carnívoros, grupo dos
ungüiculados, subclasse dos monodelfininos, classe dos mamíferos,
ramo dos vertebrados.

Eu invejava a incrível memória do meu criado.

– Muito bem, Conselho. Mas esses dois gêneros, focas e morsas, dividem-se
em espécies e, se não me engano, teremos oportunidade de observá-las
aqui. Vamos.

Eram oito horas da manhã. Restavam-nos quatro até o momento
em que o sol poderia ser utilmente observado. Dirigimo-nos para uma vasta
baía que era recortada na falésia granítica da margem.

Ali, a perder de vista, as terras e os pedaços de gelo estavam cobertos
de mamíferos marinhos e, involuntariamente, procurei o velho Proteu,
o pastor mitológico dos imensos rebanhos de Netuno. Eram principalmente
focas, que formavam grupos distintos, machos e fêmeas, o pai vigiando
a sua família, a mãe aleitando os filhos, alguns jovens já
fortes dando alguns passos, emancipando-se.

Repousando em terra, esses animais assumiam atitudes extremamente graciosas.
Por isso, os Antigos, ao observarem o seu olhar doce e expressivo, que a mais
suave e bela mulher não poderia suplantar, reparando as suas poses
encantadoras e poetizando-as a sua maneira, metamorfosearam os machos em tritões
e as fêmeas em sereias.

Nenhum mamífero, excetuando-se o homem, tem matéria cerebral
mais rica do que a das focas. Em conseqüência disso, elas são
facilmente educáveis, deixam-se domesticar quase sem trabalho e eu
penso, como alguns naturalistas, que elas, convenientemente ensinadas, poderiam
prestar grandes serviços como cães de caça marítima.

Aproximamo-nos, a seguir, de alguns elefantes-marinhos.

– Esses animais não são perigosos? – perguntou-me Conselho.

– Não. A não ser que sejam atacados. Mesmo a foca, quando
precisa defender o filho, é de um furor terrível.

– Está no seu direito – ponderou o meu criado.

– Penso assim também – apoiei o que ele acabara de dizer.

Depois de ter examinado essa colônia de focas resolvi voltar ao submarino.

Eram onze horas. O Capitão Nemo deveria querer vir à terra
para observar o sol. Tivemos apenas o tempo suficiente para levar o bote até
o barco. O capitão saltou para dentro dele com os instrumentos e voltamos
novamente para a terra.

Mas parecia uma fatalidade. Chegou o meio-dia e, como na véspera,
o sol não apareceu. Não se podiam fazer as observações.
Se no dia seguinte acontecesse a mesma coisa, teríamos de renunciar
definitivamente a tomar o ponto. Sem isso não poderíamos afirmar
com absoluta certeza se estávamos realmente no Pólo Sul.

Estávamos a 20 de março. No dia seguinte, 21, dia do Equinócio,
não contando com a refração, o sol desapareceria no horizonte
por seis meses e com o seu desaparecimento começaria a longa noite
polar.

Foi exatamente isso que eu disse ao Capitão Nemo.

– Tem razão, Sr. Aronnax. Se amanhã eu não obtiver
a altura do sol, antes de seis meses não poderei consegui-la. Mas se
os acasos da navegação me trouxeram a esses mares, foi porque
a 21 de março eu poderei fazer o ponto, com facilidade, ao meio-dia.

Preferi não fazer nenhum comentário à observação
dele.

No dia seguinte, às cinco horas da manhã, eu subi para a plataforma
e o Capitão Nemo já estava .lá.

– O tempo vai se desanuviando aos poucos – disse-me ele. – Tenho esperanças.
Depois do almoço iremos para a terra, a fim de escolhermos um ponto
de observação.

Deixei-o e fui procurar Ned Land. Eu queria que ele nos acompanhasse.

O obstinado canadense recusou-se ao meu convite. Sua taciturnidade aumentava
a cada dia.

Terminado o almoço fomos para a terra. O “Nautilus” avançara
mais quatro milhas durante a noite, estando então ao largo, a uma légua
da costa. O bote nos deixou na praia. O céu clareava. As nuvens deslocavam-
se para o sul. As brumas abandonavam a superfície. das águas
frias. O Capitão Nemo dirigiu-se para um pico que fazia frente para
o mar e tinha uma altura aproximada de quatrocentos metros. Eu e Conselho
o acompanhamos.

Gastamos duas horas para chegar ao cimo dele. Lá no alto o capitão
mediu a altura da montanha, pois tinha de contar com ela para as suas observações.

As onze horas e quarenta e cinco minutos, o sol, visto então apenas
por refração, mostrou-se como um disco de ouro e espalhou os
seus últimos raios sobre aquele mar nunca navegado. O momento era muito
solene para nós.

Munido de um óculo de retículos, o qual, por meio de um espelho
corrigia a refração, o Capitão Nemo observou o astro
que pouco a pouco desaparecia no horizonte, seguindo uma longa diagonal. Eu
segurava o cronômetro e o meu coração estava acelerado.
Se o desaparecimento do sol coincidisse com o meio-dia do cronômetro,
estávamos mesmo no pólo.

– Meio-dia! – exclamei.

– O Pólo Sul – falou o Capitão Nemo, com voz grave, passando-me
para a mão o óculo que mostrava o astro precisamente cortado
em duas metades iguais pelo horizonte. Vi os seus últimos raios coroarem
o pico onde estávamos e as sombras subirem pouco a pouco pelas suas
vertentes.

Naquele momento, o Capitão Nemo, apoiando a mão no meu ombro,
disse-me – Sr. Aronnax: em 1600, o holandês Ghéritk, arrastado
por correntes e tempestades, atingiu sessenta e quatro graus de latitude sul
e descobriu as ilhas New Shetland. Em 1773, a 17 de janeiro, o ilustre Cook,
seguindo o trigésimo oitavo meridiano, atingiu 71° 15′ de latitude.
Em 1820; o americano Morrel, cujos relatos são duvidosos, chegando
ao quadragésimo segundo meridiano, descobriu o mar livre a 70°
14′ de latitude. Em 1825, o inglês Powell não conseguiu ultrapassar
o sexagésimo segundo grau. No mesmo ano, um simples pescador de focas,
o inglês Weddel, chegou a 720 14′ de latitude no trigésimo quinto
meridiano e a 74° 15′ no trigésimo sexto. Em 1829, o inglês
Foster, comandante do “Chanticleer”, tomava posse do continente
antártico a 63° 26′ de latitude e 66° 26′ de longitude. Em
1831, no dia 1.° de fevereiro, o inglês Biscoae descobria a terra
de Enderby a 68° 50′, de latitude; a 5 de fevereiro de 1832, a terra de
Adelaide, a 670 de latitude, e a 21 de fevereiro a terra de Graham, a 64°
45′ de latitude. Em 1838, o francês Dumond d’Urville, detido pelo
banco de gelo a 620 57′ de latitude, descobria a terra de Luís Felipe;
dois anos depois, em outra viagem ao sul, a 21 de janeiro atingia a 660 30′
a terra de Adélia e, oito dias depois, a 64° 40′ a Costa Clarie.
Em 1838, o inglês Wiles progredia até o sexagésimo nono
paralelo, no centésimo meridiano. Em 1839, o inglês Balleny descobria
a terra Sabrina, no limite do círculo polar.

Finalmente, em 1842, a 12 de janeiro, o inglês James Ross, comandando
o “Erebus” e o “Terror”, encontrava a 76° 56′
de latitude e 17° 7′ de longitude leste, a terra Vitória; a 23
do mesmo mês, chegava ao septuagésimo quarto paralelo, o ponto
mais avançado até então atingido; a 27 estava a 76°
8′; a 28 a 77° 32′; a 2 de fevereiro, a 78° 4′ e, em 1842 regressava
ao septuagésimo primeiro grau, que não conseguiu ultrapassar.
Pois bem! Eu, Capitão Nemo, a 21 de março de 1868, cheguei ao
Pólo Sul, aos noventa graus, e tomo posse desta zona do globo terrestre,
equivalente à sexta parte dos continentes conhecidos.

– Em nome de quem, capitão? – Em meu nome, senhor professor!

Dito isto, o Capitão Nemo desfraldou uma bandeira negra com um N gravado
no tecido. Depois, virando-se para o sol, cujos últimos raios brilhavam
no horizonte, falou: – Adeus, sol! Desaparece, astro radioso! Esconda-se nesse
mar livre e deixe uma noite de seis meses estender as suas sombras sobre o
meu novo domínio!

Capítulo XV

No dia seguinte, 22 de março, às seis horas da manhã,
começamos os preparativos para a partida. Os últimos raios do
crepúsculo misturavam-se com a noite. O frio era intenso. As constelações
resplandeciam com surpreendente intensidade. No zênite brilhava o admirável
Cruzeiro do Sul, a Estrela Polar das regiões antárticas.

O termômetro marcava doze graus abaixo de zero e quando o vento soprava
sentia-se picadas dolorosas. Os pedaços de gelo multiplicavam- se na
água. O mar tendia a gelar. Evidentemente a bacia natural, gelada durante
os seis meses de inverno, seria inacessível.‘ Os reservatórios
de água haviam sido cheios e o “Nautilus” imergia lentamente.
Parou a uma profundidade de trezentos metros. Avançou para o norte
com uma velocidade de quinze milhas por hora. A tardinha já navegava
sob a imensa carapaça do banco de gelo. Por prudência os painéis
do salão tinham sido fechados para evitar possíveis choques
dos vidros com algum bloco de gelo solto. Como não tinha nada para
fazer no salão fui me deitar.

As três horas da madrugada fui acordado por um choque violento.

Levantei-me da cama e me pus à escuta no meio da obscuridade, quando
fui bruscamente precipitado para o meio do quarto. O “Nautilus”
adernava depois do choque. Amparei-me às paredes e arrastei-me pelos
corredores até o salão. Conselho e Ned Land já estavam
lá comentando o acontecimento, mas tão ignorantes como eu do
que realmente acontecera e qual era a situação do submarino.

Estávamos há vinte minutos tentando escutar os mínimos
ruídos no interior do “Nautilus”, quando o Capitão
Nemo entrou. O seu rosto habitualmente impassível revelava uma certa
preocupação. Observou em silêncio a bússola e o
manômetro e foi pôr o dedo num ponto do planisfério, na
parte que representava os mares austrais.

Eu não quis interromper os estudos que ele fazia nos aparelhos. Passado
um momento, quando se virou para mim, eu lhe dirigi a palavra utilizando uma
expressão de que ele havia se servido quando encalhamos no Estreito
de Torres: – Um incidente, capitão? – Não, professor, desta
vez é um acidente.

– Grave? – Talvez. Mas não há perigo imediato. O “Nautilus”
encalhou devido a um capricho da natureza e não à imperícia
dos meus homens. Não foi cometido um único erro nas nossas manobras.
Pode-se desafiar as leis humanas, mas não se pode resistir às
leis da natureza.

Sobre o acidente, a resposta dele não nos esclareceu nada.

– Pode me dizer qual a causa do acidente, capitão? – Um enorme bloco
de gelo, uma montanha inteira, virou-se. Quando os icebergs são minados
na base por. águas mais quentes ou por repetidos choques, o seu centro
de gravidade sobe. Então, viram-se ao contrário.

Foi o que aconteceu. Um desses blocos ao virar-se bateu no meu barco que
flutuava sob as águas. Depois, deslizando-lhe por baixo do casco e
elevando-o com força irresistível, arrastou-o para camadas menos
densas, onde se encontra deitado de flanco.

– As providências…

– Já estão sendo tomadas, professor. Os reservatórios
estão sendo esvaziados e o senhor pode ouvir as bombas funcionando.
O ponteiro do manômetro indica que o “Nautilus” está
a subir, mas o bloco de gelo sobe também. Até que um obstáculo
de qualquer ordem detenha a ascensão dele a nossa situação
não se alterará.

O capitão não tirava os olhos do manômetro. De repente
sentimos um movimento do casco e o submarino começou a se endireitar.
Ninguém falava. Com os corações apertados, observávamos,
sentíamos os movimentos do navio. O chão tornava-se horizontal
debaixo dos nossos pés. Passaram-se dez minutos. O “Nautilus”
voltara à sua posição normal.

– Flutuaremos, capitão? – perguntei.

– Certamente que sim, uma vez que os reservatórios ainda não
estão vazios. Logo que estejam, levarão o “Nautilus”
à superfície do mar.

O capitão saiu. Logo depois o submarino começou a flutuar.
Mas a uma distância de dez metros em seu redor, elevava-se uma resplandecente
muralha de gelo. Por cima e por baixo a mesma muralha. Ele estava prisioneiro
num verdadeiro túnel de gelo, com cerca de vinte metros de largura
e cheio de uma água tranqüila.

De repente, como se tivesse encontrado uma saída, o “Nautilus”
adquiriu velocidade. Os painéis do salão foram fechados. Eram
então cinco horas da manhã. Naquele momento sentimos um novo
choque na proa do submarino. Percebi que seu esporão havia batido de
encontro a um bloco de gelo. Calculei que o avanço para a frente não
deveria ser impossível. Contrariando a minha expectativa, o “Nautilus”
iniciou um movimento de retrocesso muito pronunciado.

– Voltamos para trás? – perguntou Conselho.

– Sim. Este lado do túnel não deve ter saída – respondi.

– E depois?…

– Depois a manobra é muito simples. Voltamos pelo mesmo caminho e
saímos pela abertura sul. É tudo! Ao falar assim, eu quis dar
a impressão de estar mais tranqüilo do que realmente estava. Entretanto,
o movimento de retrocesso do barco acelerava-se e, avançando a contra-hélice,
movia-se velozmente.

– Será um atraso – disse Ned Land.

– Que interessam umas horas a mais ou a menos, desde que se saia – falei,
um tanto rispidamente.

– Sim, desde que se saia – repetiu ele.

Passaram-se algumas horas. Eu observava constantemente os instrumentos suspensos
na parede do salão. O manômetro indicava que o “Nautilus”
se mantinha a uma profundidade .constante de trezentos metros e a bússola
marcava para o sul. Sua velocidade era de vinte milhas horárias, realmente
excessiva num espaço tão apertado. Mas o capitão sabia
que tinha de andar depressa e que na nossa situação os minutos
valiam séculos.

As oito horas ocorreu um segundo choque, dessa vez na ré. Empalideci.

Os meus companheiros tinham se aproximado e eu peguei na mão de Conselho.
O silêncio exprimia melhor a nossa angústia.

O capitão apareceu naquele momento e eu me dirigi a ele – O caminho
está obstruído para o sul? – Sim, professor. Ao virar-se, o
iceberg vedou-nos todas as saídas.

– Estamos bloqueados? – Sim.

Capítulo XVI

À volta do “Nautilus” e por cima e por baixo havia uma
intransponível muralha de gelo. Estávamos prisioneiros do banco
de gelo. Ned Land bateu com sua robusta mão numa mesa. Conselho permanecia
calado.

Eu olhava ,para o capitão: seu rosto retomara a habitual impassibilidade.

Tinha cruzado os braços e refletia. O “Nautilus” estava
imóvel e nenhum de nós tinha qualquer idéia salvadora.

Então o capitão rompeu o silêncio e disse: – Meus senhores,
nas condições em que nos encontramos, há duas maneiras
de morrermos.

Personagem inexplicável, sua voz soou calma e ele parecia um professor
de matemática fazendo uma demonstração.

– A primeira é morrermos esmagados, a segunda é morrermos
asfixiados.

Não falo da possibilidade de morrermos de fome, porque as provisões
do “Nautilus” certamente durarão mais do que nós.

Preocupemo-nos portanto com as hipóteses de esmagamento e asfixia.

– Quanto à asfixia – disse eu – não é muito de recear
porque os nossos reservatórios estão cheios de ar.

– É verdade. Chegam para mais dois dias – falou o capitão.
– Ora, estamos há trinta e seis horas debaixo da água e a pesada
atmosfera do “Nautilus” pede para ser renovada. Dentro de quarenta
e oito horas a nossa reserva de ar estará esgotada. Entretanto, vamos
tentar perfurar a muralha que nos rodeia. A sonda nos indicará o lado
melhor para a nossa tentativa. Vou encalhar o “Nautilus” no banco
inferior e os meus homens, envergando escafandros, atacarão o iceberg
pela sua parede menos espessa.

– Pode-se abrir os painéis, capitão? – perguntei.

– Não há inconveniente porque estamos parados.

Ele saiu em seguida. Logo depois o “Nautilus” desceu lentamente
e foi parar no banco de gelo a uma profundidade de trezentos e cinqüenta
metros.

– Meus amigos – falei com meus dois companheiros – a situação
é grave, mas conto com a coragem e a energia de vocês.

– Não será num momento como esse que irei aborrecê-lo
com as minhas recriminações, professor – disse o canadense.
– Estou pronto a fazer tudo o que for necessário para a salvação
de todos.

Fiquei comovido e apertei a mão dele. Ofereceu-se para trabalhar
com os homens do capitão ajudando a furar a parede de gelo. Sua oferta
foi aceita e ele me pareceu bastante satisfeito com isso.

Eu e Conselho voltamos para o salão, cujos painéis já
estavam abertos.

Examinei as camadas ambientes que suportavam o submarino. Passados alguns
instantes, vimos doze homens da tripulação pisar o banco de
gelo, entre os quais se contava Ned Land, reconhecível pela sua elevada
estatura. O Capitão Nemo estava junto com eles.

Antes de começar a escavar as muralhas, ele fez as sondagens para
assegurar a – boa direção dos trabalhos. Depois de várias
experiências com as compridas sondas, ele se decidiu pela superfície
inferior que nos separava da água apenas dez metros, pela sua verificação.
O trabalho começou imediatamente, conduzido com infatigável
obstinação.

Após duas horas de enérgico trabalho, Ned Land e seus companheiros
foram substituídos por outra turma, da qual eu e Conselho fazíamos
parte. Quando após duas horas de trabalho voltei a bordo para comer
e descansar, achei uma grande diferença entre o ar puro que me fornecia
o aparelho Rouquayrol e a atmosfera do “Nautilus” já carregada
de gás carbônico. Pelo rendimento de nosso trabalho conjunto
durante quatro horas, eu fiz um cálculo de que levaríamos mais
cinco noites e quatro dias para levarmos a bom termo a nossa tarefa.

– Cinco noites e quatro dias e só temos ar para dois dias nos reservatórios
– falei aos meus companheiros.

– Sem contar – replicou Ned – que uma vez libertos desta prisão continuaremos
prisioneiros do banco de gelo e sem comunicação possível
com a atmosfera.

Com todas essas reflexões pessimistas, mas absolutamente razoáveis,
o trabalho continuou em ritmo acelerado. No entanto, eu já havia notado
e falado só com o Capitão Nemo, que as paredes do fosso que
estávamos abrindo, iam se fechando. No dia 26 de março retomei
o meu trabalho de mineiro, escavando com disposição. Logo que
comecei a trabalhar percebi que as paredes laterais e a superfície
inferior do banco de gelo se engrossavam sensivelmente. Era visível
que se uniriam antes do “Nautilus” poder se safar. A picareta
quase me fugiu das mãos.

Parecia-me que estava entre as terríveis mandíbulas de um
monstro e elas se fechavam inexoravelmente.

Naquele momento, o Capitão Nemo passou junto de mim. Toquei-lhe a
mão e apontei para as paredes de nossa prisão. Ele me fez sinal
para segui-lo. Regressamos a bordo e, tirado o escafandro, acompanhei-o até
o salão.

– Sr. Aronnax, temos de tentar qualquer meio heróico, ou seremos esmagados
por esta água que se solidifica como cimento! – Estou de acordo, capitão.
Mas o que havemos de fazer? Ele começou a refletir, silencioso e imóvel.
Eu notava quando uma idéia lhe surgia no espírito. Logo depois
percebia que ele a afastava. Respondia negativamente a si mesmo. Finalmente
ele falou: – Água a ferver! – Água a ferver? – exclamei.

– Sim, professor. Estamos fechados num espaço relativamente pequeno.

Talvez jatos de água fervendo constantemente injetados pelas nossas
bombas, elevem a temperatura do meio e atrasem a congelação.

– É preciso tentar – concordei resolutamente.

– Pois tentemos, professor.

O termômetro marcava sete graus no exterior. O capitão me chamou
.para a cozinha, onde funcionavam enormes aparelhos de destilação,
os quais forneciam água potável por evaporação.
Encheram-se de água e todo o calor elétrico das pilhas foi lançado
através de serpentinas banhadas pelo líquido. Em poucos minutos
a água atingiu cem graus e foi lançada para as bombas, enquanto
nova água a substituía e assim sucessivamente. O calor desenvolvido
pelas pilhas era tal que a água fria aspirada do mar, apenas atravessava
os aparelhos, já chegava fervendo nas bombas.

A injeção começou e três horas depois o termômetro
marcava uma temperatura exterior de seis graus abaixo de zero. Tínhamos
ganho um grau. Duas horas mais tarde o termômetro marcava apenas quatro
graus.

– Conseguiremos – eu disse ao capitão.

– Penso que sim. Não seremos esmagados. Agora só temos que
recear a asfixia.

No dia seguinte, 27 de março, já tinham sido escavados seis
metros.

Faltavam quatro. Eram mais quarenta e oito horas de trabalho. O ar já
não podia ser renovado no interior do “Nautilus”. O trabalho
prosseguia com vigor. Faltavam apenas dois metros para chegarmos ao mar livre.

Mas os reservatórios estavam quase vazios de ar.

Quando terminei o meu turno de trabalho e voltei para bordo, quase sufoquei.
Aquela foi uma noite horrível e eu não saberia descrevê-la.

No dia seguinte minha respiração era abafada. As dores de
cabeça juntavam-se terríveis vertigens que faziam de mim um
ébrio. Os meus companheiros sentiam os mesmos sintomas. Alguns tripulantes
agonizavam.

Naquele dia, o sexto do nosso aprisionamento, o Capitão Nemo, achando
que a picareta era muito lenta, resolveu esmagar a camada de gelo que ainda
nos separava da camada líquida. Aquele homem tinha conservado o sangue-frio
e a energia. Com a sua força moral, ele dominava as dores físicas.
Pensava, combinava, agia.

A uma ordem sua, o navio foi elevado. Uma vez a flutuar, foi manobrado de
forma a ficar por cima do imenso fosso desenhado segundo a sua linha de flutuação.
Então toda a tripulação entrou a bordo e a dupla porta
de comunicação foi fechada. O “Nautilus” repousava
agora na camada de gelo que não tinha mais de um metro de espessura
e que a sonda tinha furado em mais de mil locais.

As torneiras dos reservatórios foram abertas, permitindo a entrada
de cem metros cúbicos de água, aumentando em cem mil quilos
o peso do submarino. Esperávamos, escutávamos, esquecendo o
nosso sofrimento.

Era a nossa última oportunidade de salvação.

Apesar do latejar da minha cabeça, ouvi distintamente ruídos
debaixo do casco do “Nautilus”. Ocorreu um desnivelamento. O gelo
quebrouse com um estalido semelhante ao do papel ao ser rasgado, e o submarino
desceu.

– Passamos! – murmurou Conselho ao meu ouvido. Levado pela sua enorme sobrecarga,
o “Nautilus” desceu como se tivesse caído no vazio. Então
foi transmitida toda a força às bombas e elas começaram
a expelir a água dos reservatórios. Após alguns minutos
a nossa queda foi suspensa e o manômetro começou a marcar um
movimento ascensional.

A hélice, trabalhando a toda velocidade, fazia estremecer o casco
por inteiro e nos levava para o norte.

Mas quanto tempo duraria a navegação sob o banco de gelo? Prostrado
num divã da biblioteca, eu me sentia sufocar. Já não
via e nem ouvia.

A noção de tempo tinha desaparecido do meu espírito.
Não sei dizer quantas horas passei assim, mas tive consciência
do começo de minha agonia. Eu ia morrer…

De repente recuperei os sentidos. O ar me enchia os pulmões. Teríamos
subido à superfície? Teríamos ultrapassado o banco de
gelo? Não.

Eram os meus dois grandes amigos, Ned Land e Conselho que se sacrificavam
para me salvar. Alguns átomos de ar restavam ainda no fundo de um aparelho
e, em vez de o respirarem, eles os davam para mim. Enquanto sufocavam, davam-me
vida gota a gota! Olhei para o relógio. Eram onze horas da manhã.
Devíamos estar a 28 de março. O “Nautilus” avançava
à fantástica velocidade de quarenta milhas por hora. O manômetro
me indicou que estávamos apenas a uns seis metros da superfície.
Uma simples camada de gelo nos separava da atmosfera. Não seria possível
quebra-la? O “Nautilus” ia tentar.

Senti que ele era colocado em posição oblíqua, baixando
a ré e levantando o esporão. Impelido pela sua poderosa hélice,
atacou o banco de gelo de baixo para cima. Foi quebrando-o pouco a pouco.
Recuava e tornava a se precipitar contra o campo de gelo, desmoronando-o.

Finalmente, num esforço supremo, lançou-se contra a superfície
gelada e esmagou-a com seu peso.

O alçapão foi aberto e o ar penetrou em todos os seus compartimentos.

Capítulo XVII

Ignoro como eu fui parar na plataforma. Talvez o canadense tivesse me levado.
Mas eu respirava e absorvia o ar vivificante do mar. – Ah! – dizia-me Conselho.
– O oxigênio é tão bom! O senhor não tenha receio
de respirar. Há que chegue para todos.

Quanto a Ned Land, não falava mas abria a boca de tal maneira que
assustaria um tubarão. E que poderosas inspirações! O
canadense arfava como um fogão em plena combustão.

Recuperei imediatamente as forças e, quando olhei à minha
volta, vi que estávamos sós na plataforma. Nenhum dos homens
da tripulação e nem o Capitão Nemo. Os estranhos marinheiros
do “Nautilus” contentavamse com o ar que circulava no interior.

As primeiras palavras que pronunciei foram de agradecimento e gratidão
para meus dois companheiros.

– Bom, professor, não se fala mais nisso – disse-me Ned Land. – Não
temos nenhum mérito pelo que fizemos. Foi uma questão de aritmética.

A sua existência valia mais do que a nossa e portanto era preciso
conservá-la.

– Não, Ned, não valia e nem vale mais. Ninguém é
superior a homens generosos como vocês..

Ficamos calados por um momento e depois eu disse: – Meus amigos, estamos
ligados uns aos outros para sempre. Vocês têm sobre mim os direitos…

– Dos quais abusarei – interrompeu-me o canadense.

– Como? – perguntou Conselho.

– Abusarei do direito de levá-lo comigo quando deixar este infernal
“Nautilus” – respondeu Ned Land.

– De fato – disse Conselho – vamos no bom caminho.

– Sim – acrescentei – vamos para o lado do sol e aqui o sol significa norte.

– Sem dúvida – concordou Ned Land – mas resta saber se navegamos
para o Pacifico ou para o Atlântico.

Para os mares freqüentados ou os desertos.

Tínhamos que pensar nisso.

O “Nautilus” avançava rapidamente. O círculo polar
foi ultrapassado, assim como o cabo que fica no Promontório de Horn.
Estávamos na extremidade do Continente americano no dia 31 de março
às sete horas da noite.

Olhando as anotações do imediato na carta de navegação,
eu podia determinar a direção exata do “Nautilus”.
Ora, naquela tarde ficou evidenciado, para minha grande satisfação,
que voltávamos para o norte pela rota do Atlântico.

Comuniquei essa minha observação aos meus companheiros.

– Boa notícia – disse Ned Land. – Mas para onde vai o “Nautilus”?
– Não sei, meu caro.

– Ele não nos diz nada – falou Conselho, referindo-se ao capitão
– mas eu só posso dizer que é um grande homem esse Capitão
Nemo. Não lamentaremos por tê-lo conhecido.

– Sobretudo quando o tivermos deixado – retrucou Ned Land.

No dia seguinte, 1.° de abril, quando o “Nautilus” subiu
à superfície das águas, alguns minutos antes do meio-dia,
avistamos uma costa a oeste.

Era a Terra do Fogo, à qual os primeiros navegadores deram este nome
ao verem os numerosos focos de fumo que se elevavam das cabanas dos indígenas.
A costa parece baixa mas ao longe elevam-se altas montanhas. Julguei até
ter visto o Monte Sarmiento, com dois mil e setenta metros acima do nível
do mar, bloco piramidal de xisto, de cume aguçado, o qual segundo informação
de Ned Land estando enevoado ou limpo anuncia o mau ou o bom tempo.

A noite o “Nautilus” aproximou-se do Arquipélago das
Maloínas. A profundidade do mar era pouca. Pensei então que
aquelas duas ilhas, rodeadas por numerosas ilhotas, faziam outrora parte das
terras de Magalhães. As Maloínas foram descobertas provavelmente
pelo célebre John Davis, que lhes pôs o nome de Davis-Southern-Islands.
No princípio do século XVIII, foram chamadas de Maloínas
pelos pescadores de Saint-Malo e, finalmente, por Falklands pelos ingleses.,
Quando as Maloínas desapareceram no horizonte, o “Nautilus”
submergiu entre vinte e vinte e cinco metros e seguiu a costa americana. O
Capitão Nemo estava sumido.

A 3 de abril, ora submerso ora à superfície, navegamos na
região da Patagônia. O “Nautilus” passou pelo grande
estuário formado pela desembocadura do Rio da Prata e a 4 de abril
estávamos em frente ao Uruguai, a cinqüenta milhas ao largo. A
sua direção se mantinha para o norte, seguindo as longas sinuosidades
da América Meridional. Já tínhamos então percorrido
dezesseis mil milhas desde o nosso embarque, nos mares do Japão.

Por volta das onze horas da manhã passamos o Trópico de Capricórnio
no meridiano 37 e navegamos ao largo do Cabo Frio. O Capitão Nemo,
para grande aborrecimento de Ned Land, não gostava das costas habitadas
do Brasil, pois passou por elas com grande velocidade.

Essa rapidez manteve-se durante vários dias. A 9 de abril, à
noite, avistamos a ponta mais oriental da América do Sul, que forma
o Cabo São Roque. No dia 11 de abril o “Nautilus” subiu
para a superfície e a terra reapareceu à vista do Rio Amazonas,
vasto estuário cuja caudal é tão considerável
que tira o sal ao mar numa extensão de várias léguas.

Tínhamos passado o Equador. A vinte milhas para oeste ficavam as
Guianas, terras francesas, onde facilmente encontraríamos refúgio.
Mas o vento soprava forte e as vagas, furiosas, não permitiam que um
frágil bote as enfrentasse. Ned Land deve ter compreendido isso, pois
não me falou em evasão. Por meu lado não fiz qualquer
alusão ao assunto, porque não queria levá-lo a uma tentativa
infalivelmente condenada ao malogro.

No dia 12 de abril, o “Nautilus” aproximou-se da costa, junto
da embocadura do Maroni. A finalidade, que não tardamos a descobrir,
foi a pesca para reabastecer de carne as despensas do navio.

Capítulo XVIII

Durante alguns dias, o “Nautilus” manteve-se sempre afastado
da costa americana. Era evidente que não queria freqüentar as
águas do Golfo do México ou do Mar das Antilhas. A 16 de abril
avistamos a Martinica e Guadalupe, a uma distância de cerca de trinta
milhas. Por instantes eu pude ver os seus gumes aguçados.

O canadense, que contava com uma oportunidade de pôr em prática
o seu plano de fuga nas águas do golfo, quer tentando alcançar
terra, quer acostando-se a um dos numerosos navios que navegam entre as ilhas,
ficou muito desapontado. A fuga teria sido praticável se ele conseguisse
se apossar do bote, sem que o capitão notasse. Mas em pleno oceano
isso nunca teria sido possível.

Tivemos uma reunião sobre o assunto. Há seis meses que éramos
prisioneiros a bordo do “Nautilus”. Já tínhamos
percorrido dezessete mil milhas e, como dizia Ned Land, nada levava a crer
que aquilo tivesse um fim. Ele resolveu me fazer uma proposta com a qual eu
não contava. Eu deveria fazer uma pergunta categórica ao Capitão
Nemo sobre as reais intenções dele a nosso respeito. Seria propósito
dele manter-nos para sempre a bordo do “Nautilus”? Na minha opinião
isso não daria bom resultado. Só devíamos contar conosco.
Aliás, há algum tempo o capitão estava cada vez mais
sombrio, mais retirado, menos sociável. Parecia evitar-me. Eu raramente
o encontrava. Antes ele gostava de me explicar as maravilhas submarinas, mas
agora abandonara-me aos meus estudos e não comparecia ao salão.

Que mudança teria se operado nele? Qual o motivo dela? Não
tinha nada a censurar-me. Talvez a nossa presença a bordo o incomodasse.

De qualquer maneira eu não acreditava que ele nos daria a liberdade.

Portanto pedi a Ned Land que me desse tempo para refletir. Aquela pergunta
poderia levantar suspeitas no espírito do capitão, tornar a
nossa situação penosa e prejudicar nossas possibilidades de
fuga.

Excetuando-se a dura provação do bloco de gelo no Pólo
Sul, nós passávamos sempre muito bem. A alimentação
sadia, a atmosfera salubre, a regularidade da existência e a uniformidade
da temperatura, tudo isso nos mantinha com ótima saúde. Para
um homem que não lamentava as recordações de terra, para
um Capitão Nemo, que se sentia em casa, que ia onde queria, que por
meios misteriosos para os outros, mas claros para ele, avançava para
um alvo, era fácil compreender aquela existência.

– Mas nós não tínhamos rompido com a humanidade. Quanto
a mim particularmente, eu não queria que os meus estudos, tão
curiosos e inovadores desaparecessem comigo. Eu tinha agora o direito e as
condições de escrever o verdadeiro livro do mar, e queria que
mais cedo ou mais tarde esse livro fosse publicado. Ali mesmo naquelas águas
das Antilhas, a dez metros de profundidade, através dos painéis
abertos, eu podia ver interessantíssimos exemplares da fauna submarina.
Aos poucos o “Nautilus” foi mergulhando nas camadas mais profundas.
Os seus planos inclinados levaram-no a profundidades de até dois e
três mil metros. Então a vida animal tinha por únicos
representantes as estrelas-do-mar, mexilhões e outros moluscos litorais.

A 20 de abril subimos a uma altura média de mil e quinhentos metros.

A terra mais próxima era então o Arquipélago das Lucaias,
espalhadas como um monte de pedras na superfície das águas.
Ali, elevavam-se altas falésias submarinas, muralhas a pique feitas
de blocos desgastados, dispostas em grandes camadas, entre as quais se viam
enormes buracos negros que os nossos raios elétricos não conseguiam
iluminar até o fundo.

Essas rochas estavam cobertas de grandes ervas, de laminárias e bodelhas
gigantes. Uma verdadeira latada de hidrofitas, digna do mundo dos Titãs.
Eram cerca de onze horas, quando Ned Land me chamou a atenção
para um formidável turbilhão produzido entre as algas.

– São autênticas cavernas de polvos e não me admiraria
nada se víssemos alguns desses monstros.

– Como? – perguntou Conselho. – Calmares, simples calmares da classe dos
cefalópodes? – Não – respondi – polvos de grandes dimensões.
Mas o nosso amigo Ned deve ter se enganado, porque não vejo nada. –
Lamento muito – disse Conselho. – Gostaria de ver um desses polvos de que
tanto ouvi falar, e que podemarrastar navios para os fundos dos abismos. A
esses animais chamam “krak . . . “ – Krak chega – disse ironicamente
o canadense.

– Krakens – retorquiu Conselho, acabando a palavra sem se preocupar com
– a brincadeira do companheiro.

– Nunca me farão acreditar que esses animais existem.

– Por que não? – perguntou Conselho. – Acreditamos no narval.

– E erramos, Conselho.

– Sem dúvida. Mas tem gente que ainda acredita.

– É provável. Quanto a mim só acreditarei na existência
desses monstros quando os dissecar com as minhas com próprias mãos.

– E o senhor acredita nos polvos gigantescos? – Quem alguma vez acreditou?
– exclamou o canadense.

– Muita gente, amigo Ned – falei. – Pescadores certamente que não.

Talvez sábios acreditem.- Mas eu afirmo que me lembro perfeitamente
de ter visto – disse Conselho com o ar mais sério que se poderia desejar
– uma grande embarcação arrastada pelos tentáculos de
um cefalópode.

– Viu isso? – perguntou o canadense.

– Sim, Ned.

– Com os seus próprios olhos? – Com os meus próprios olhos.

– E onde, se não se importa? – Em Saint-Malo – respondeu Conselho,
imperturbável.

– No porto? – perguntou Ned Land, irônico.

– Não. Numa igreja! – informou Conselho.

– Numa igreja! – exclamou o canadense.

– Sim, meu amigo. Era um quadro que representava o polvo em questão,
arrastando o navio.

– Ah! – Ned Land começou a rir. – Isso tem muita graça.

– De fato ele tem razão – disse eu. – Já ouvi falar desse
quadro, mas o animal que representa foi tirado de uma lenda e vocês
sabem o crédito que se deve dar a lendas, em matéria de história
natural. Aliás, quando se trata de monstros a imaginação
não tem limites. Não só se afirma que esses polvos podem
arrastar navios, como também um certo Olaus Magnus fala de um cefalópode
com uma milha de comprimento, mais parecido com uma ilha do que com um animal.
Conta-se também que o bispo de Nidros construiu um dia um altar sobre
um enorme rochedo. Acabada a missa, o rochedo pôs-se em movimento e
voltou ao mar. Era um polvo.

– É tudo? – perguntou o canadense.

– Não. Um outro bispo, Pontoppidan de Berghem, fala igualmente de
um polvo sobre o qual podia manobrar um regimento de cavalaria.

– Interessantes esses bispos de antigamente! – disse Ned Land.

– Finalmente, os naturalistas antigos citam monstros de goelas que se assemelhavam
a um golfo e que eram demasiado grandes para passar no Estreito de Gibraltar.

– Ainda bem! – comentou o canadense.

– Mas em todos esses relatos não há nada de verdade? – perguntou
o meu criado.

– Nada, meus amigos. Nada desde que se ultrapasse o limite do verossímil
para chegar à fábula e à lenda.

Porém, a imaginação dos narradores necessita, senão
de uma causa, pelo menos de um pretexto. Não se pode negar que existem
polvos e calmares de grande envergadura, embora inferior à dos cetáceos.

Aristóteles confirmou á existência de um calmar com
cinco côvados, ou seja, três metros e dez centímetros.
Os museus de Trieste e de Montpellier conservam polvos embalsamados que medem
dois metros.

Aliás, segundo os cálculos dos naturalistas, um desses animais
com apenas seis pés de comprimento teria tentáculos de vinte
e sete pés, o que chega para o transformar num monstro enorme.

– E ainda se pescam polvos assim? – perguntou o canadense.

– Se não se pescam, pelo menos são vistos pelos pescadores.
Um dos meus amigos, o Capitão Paul Bos, do “Havre”, afirmou-me
várias vezes que tinha encontrado um desses monstros de tamanho colossal
nos mares da índia. Mas o fato mais surpreendente, e que não
me permite continuar a negar a existência desses animais gigantescos,
passou-se há alguns anos, em 1861.

– Como foi? – perguntou Ned Land.

– Em 1861, a nordeste de Tenerife, mais ou menos na latitude onde nos encontramos
neste momento, a tripulação do navio “Alecton” avistou
um monstruoso calmar que nadava naquelas águas. O Comandante Bouger
aproximou-se e atacou-o com arpões e balas, sem qualquer êxito,
porque os arpões lhes trespassavam as carnes moles como uma geléia
sem consistência. Após algumas tentativas infrutíferas,
a tripulação conseguiu passar um nó corredio à
volta do corpo do molusco. O nó deslizou até as barbatanas caudais
e parou. Tentaram então içar o monstro para bordo, mas o seu
peso era tal que, devido à tração da corda, se separou
da causa e desapareceu nas águas, sem ela.

– Aí está qualquer coisa concreta – disse Ned Land.

– Um fato indiscutível, meu caro Ned. Por isso foi proposto que se
desse a esse polvo o nome de “calmar de Bouger”.

– Talvez medisse seis metros – disse Conselho, postado junto ao painel e
examinando de novo as anfratuosidades da falésia.

– Precisamente – confirmei.

– A cabeça seria coroada por oito tentáculos que se agitavam
na água como um ninho de serpentes? – continuou Conselho.

– Precisamente – tornei a confirmar.

– Os olhos, colocados à flor da pele, teriam um desenvolvimento considerável.

– Sim, Conselho.

– E a boca seria um verdadeiro bico de papagaio, mas um bico formidável.

– De fato era assim – concordei.

– Pois bem, com licença do senhor – Conselho falou tranqüilamente
– se não é o calmar de Bouger, está ali pelo menos um
dos seus irmãos – disse e apontou para o mar.

Olhei para o meu criado e Ned Land correu para o painel. – Que animal horrendo!
– exclamou.

Olhei também e não pude reprimir um movimento de repulsa.
Diante dos meus olhos, agitava-se um monstro horrível, digno de figurar
nas lendas teratológicas.

Era um calmar de dimensões colossais, com oito metros de comprimento.

Avançava com grande velocidade em direção ao “Nautilus”,
que fixava com os seus enormes olhos verde-mar. Os seus oito braços,
ou antes os seus oito pés, implantados na cabeça, o que valeu
a esses animais o nome de cefalópodes, tinham um desenvolvimento duplo
do corpo e contorciam-se como as cabeleiras das Fúrias. Viam-se distintamente
as duzentas e cinqüenta ventosas dispostas nas faces internas dos tentáculos,
sob a forma de cápsulas semi-esféricas. Por vezes as ventosas
colavam-se aos vidros do painel. A boca do monstro, um bico córneo
semelhante ao bico de papagaio, abria-se e fechava-se verticalmente.

A língua, substância córnea, armada com várias
fiadas de dentes agudos, saía trêmula daquela verdadeira guilhotina.
Que fantasia da natureza! Um molusco com bico de ave! O corpo, fusiforme e
bojudo no meio, formava uma massa carnuda que devia pesar de vinte a vinte
e cinco mil quilos. A sua cor inconstante mudava com extrema rapidez, segundo
a irritação do animal, passando sucessivamente do cinzentolívido
ao castanho-amarelado.

O que estaria irritando o molusco? Certamente a presença do “Nautilus”,
maior do que ele e sobre o qual os seus braços e dentes não
tinham qualquer poder. E no entanto, que monstros formidáveis são
esses polvos, que vitalidade o Criador deu a eles, que vigor nos movimentos,
uma vez que têm dois corações.

O acaso nos tinha posto na presença do calmar e eu não queria
perder a ocasião de estudar cuidadosamente aquele exemplar dos cefalópodes.

Dominei o horror que me inspirava o seu aspecto e, pegando em um lápis,
comecei a desenhá-lo.

– Talvez seja o mesmo do “Alecton” – disse Conselho.

– Não – respondeu o canadense. – O do “Alecton” havia
perdido a cauda. – Isso não seria uma razão – disse eu. – Os
braços e a cauda desses animais renovam-se por reintegração.
Em sete anos a cauda do calmar de Bouger teria tido tempo de crescer.

– De qualquer maneira, se não é este, talvez seja algum daqueles
– acrescentou o meu criado.

De fato, outros polvos apareciam no painel a estibordo. Contei sete que
faziam um cortejo ao “Nautilus” e cujos bicos se faziam ouvir
quando batiam no casco do navio.

Continuei o meu trabalho. Os monstros mantinham-se nas nossas águas
com tal precisão que pareciam imóveis e teria sido possível
decalcá-los do vidro. Aliás estávamos navegando a uma
velocidade bem moderada.

De repente o “Nautilus” parou e toda a sua estrutura tremeu
devido a um choque.

– Teríamos encalhado? – perguntei.

– Se foi o caso, safamo-nos – disse Ned Land – porque continuamos a flutuar.

Não havia dúvida de que o barco flutuava, mas não avançava.
As pás da hélice já não se viravam nas águas.

Passou um minuto e o Capitão Nemo, seguido pelo imediato, entrou
no salão.

Havia algum tempo que eu não o via. Pareceu-me taciturno. Sem falar,
talvez sem nos ver, chegou junto ao painel, observou os polvos e disse algumas
palavras ao imediato. Este saiu.

Os painéis foram fechados e o teto se iluminou. Falei com o capitão,
sem ligar para o ar fechadão dele.

– Curiosa coleção de polvos – fingi o tom indiferente de um
amador diante de um vidro de aquário.

– De fato, professor, e vamos combatê-los corpo a corpo.

Olhei o capitão julgando ter ouvido mal.

– Corpo a corpo? – perguntei.

– Sim. A hélice parou. Penso que as mandíbulas córneas
de um desses calmares danificaram uma de suas pás. Isso nos impede
de avançarmos.

– E o que vai fazer? – Subir à superfície e exterminar toda
essa bicharada.

– Tarefa difícil. ‘ – De fato ela não é fácil.
As balas elétricas são impotentes contra as suas carnes moles,
onde não encontram resistência suficiente para rebentarem. Mas
vamos atacá-los a machadadas.

– E às arpoadelas – disse o canadense – se não recusar a minha
ajuda.

– Aceito-a, mestre Land.

– Nós os acompanharemos – disse eu, seguindo o Capitão Nemo
que se dirigiu para a escada central.

Ali, uma dezena de homens, armados com machados de abordagem, estavam prontos
para o ataque. Conselho e eu pegamos em dois machados e Ned Land num arpão.

O “Nautilus” tinha então subido à superfície
das águas. Um dos marinheiros, colocado nos últimos degraus
da escada, tirou as cavilhas do alçapão que saltou imediatamente
com grande violência, evidentemente puxado pela ventosa de um tentáculo
do polvo.

No mesmo instante, um desses longos braços deslizou. como uma serpente
pela abertura e vinte outros agitaram-se por cima dela. Com uma machadada
o capitão cortou o formidável tentáculo, que rolou pela
escada. No momento em que nos preparávamos para sair para a plataforma,
dois outros braços, vibrando no ar, abateram-se sobre o marinheiro
colocado à frente do capitão, elevando-o com uma violência
irresistível.

O Capitão Nemo soltou um grito e precipitou-se para o exterior. Nós
corremos atrás dele.

Que cena! O infeliz, apanhado pelos tentáculos e preso nas ventosas,
estava sendo agitado no ar ao capricho daquela enorme tromba. Agonizava, sufocava
e gritava por socorro. Aquelas palavras pronunciadas em francês causaram-me
profunda impressão. Enquanto eu viver, ouvirei aquele apelo desesperado.

O infeliz estava perdido. Quem conseguiria arrancá-lo ao poderoso
abraço? Entretanto o Capitão Nemo tinha-se precipitado sobre
o polvo e, com mais uma machadada, havia-lhe cortado outro tentáculo.
O imediato lutava com fúria contra outros monstros que trepavam pelos
flancos do “Nautilus”. A tripulação batia-se a golpes
de machado, enquanto o canadense, Conselho e eu enterrávamos as nossas
armas naquelas massas carnudas. Um violento cheiro a almíscar invadiu
a atmosfera. Era horrível.

Por um instante julguei que o infeliz apanhado pelo polvo seria arrancado
àquele terrível abraço, porque dos seus oito tentáculos
o animal já só tinha um, que brandia a sua vítima como
se fosse uma pena. Mas no momento em que o capitão e o imediato avançaram
para ele, o monstro lançou uma coluna de líquido negro, segregado
por uma bolsa situada no seu abdômen. Ficamos cegos. Quando a nuvem
se dissipou, o calmar havia desaparecido e com ele o meu infeliz compatriota.

Que fúria nos impeliu então contra aqueles monstros! Dez ou
doze polvos tinham invadido a plataforma do barco. Rolávamos no meio
daqueles braços de serpentes que tingiam a plataforma e as águas
de tinta negra. Parecia que os viscosos tentáculos renasciam como as
cabeças da hidra. O arpão de Ned Land, de cada golpe, mergulhava
nos olhos dos calmares e vazava-os. Mas o meu audacioso companheiro foi de
repente apanhado pelos tentáculos de um monstro.

O meu coração quase rebentou de emoção e terror.
O formidável bico do calmar estava aberto para Ned Land. O infeliz
ia ser partido em dois. Lancei-me em seu socorro, mas o Capitão Nemo
foi mais rápido do que eu. O seu machado desapareceu entre as duas
enormes mandíbulas e, milagrosamente salvo, o canadense levantou-se
e espetou o arpão todo até o triplo coração do
polvo.

– Estava em divida para com o senhor – disse o capitão.

Ned inclinou-se e ficou calado.

O combate tinha durado um quarto de hora. Os monstros vencidos, mutilados
e moribundos, deixaram-nos finalmente e desapareceram nas águas.

O Capitão Nemo, imóvel junto ao farol, olhava o mar que tinha
engolido um dos seus companheiros, e grossas lágrimas rolaram-lhe pelas
faces.

Capítulo XIX

Nenhum de nós poderá jamais esquecer essa terrível cena.
Eu a escrevi sob a pressão de uma violenta emoção. Depois
li o relato a Conselho e Ned Land. Eles o acharam exato nos fatos, mas insuficiente
nos efeitos.

Para pintar semelhantes quadros seria necessária a pena do mais ilustre
dos nossos poetas, o autor de Travailleurs de la Mer.

Eu disse que o Capitão Nemo chorava ao olhar as águas. A sua
dor foi imensa. Era o segundo companheiro que ele perdia desde a nossa chegada
a bordo. E que morte o homem tivera! Aquele amigo esmagado, sufocado, despedaçado
pelos poderosos tentáculos de um polvo, devorado pelas suas mandíbulas
de ferro, não iria repousar com os companheiros nas pacíficas
águas do cemitério de coral.

Para mim, no meio da luta, fora aquele grito de desespero que me cortara
o coração. O pobre francês, esquecendo a sua língua
convencional, recorrera à sua língua natal para um supremo grito
de apelo! Entre a tripulação do “Nautilus”, associado
de corpo e alma ao Capitão Nemo, fugindo como ele do contato dos homens,
eu tinha um compatriota.

Seria o único a representar a França naquela misteriosa associação,
evidentemente constituída por indivíduos de nacionalidades diferentes?
Era ainda um dos problemas insolúveis que constantemente me assaltava
o espírito.

O Capitão Nemo entrou para o seu quarto e eu não o vi durante
algum tempo. Como deveria estar triste, desesperado, indeciso, a julgar pelo
navio de que era a alma e que recebia todas as suas atenções.
O “Nautilus” deixara de ter uma direção determinada.
Ia e vinha, flutuando como um cadáver á deriva. A hélice
tinha sido reparada, mas ele quase não a usava. Navegava ao acaso.
Não conseguia afastar-se do teatro da sua última luta, do mar
que havia devorado um dos seus.

Passaram-se dez dias. Só no dia 1.° de maio o “Nautilus”
tomou decididamente a direção norte, depois de ter avistado
as Lucaias, à entrada do Canal das Baamas. Seguíamos então
a corrente do maior rio do mar, que tem as suas margens, os seus peixes e
as suas temperaturas próprias. 1; a Gulf Stream.

Na verdade é um rio que corre no meio do Atlântico, livremente,
e cujas águas não se misturam com as do oceano. É um
rio salgado, mais salgado do que o mar ambiente. O volume invariável
das suas águas é mais considerável do que o de todos
os rios do globo.

A verdadeira origem da Gulf Stream, reconhecida pelo Capitão Maury,
o seu ponto de partida, fica situado no Golfo da Gasconha, onde as águas,
ainda de fraca temperatura e cor, começam a formar-se. Desce para o
sul ao longo da África Equatorial, aquece as águas da zona tórrida,
atravessa o Atlântico, atinge o Cabo de São Roque na costa brasileira
e bifurca-se em dois ramos, um dos quais vai ainda saturar-se de moléculas
quentes no Mar das Antilhas. Então, a Gulf Stream, encarregada de restabelecer
o equilíbrio entre as temperaturas e de misturar as águas dos
trópicos com as águas boreais, começa o seu papel de
moderador. .

Aquecida ao máximo no Golfo do México, sobe para o norte ao
longo da costa americana, avança até a Terra Nova, desvia-se
sob a pressão da corrente fria do Estreito de Davis, retoma o caminho
do oceano, seguindo sobre um dos grandes círculos do globo a linha
loxodrômica, divide-se em dois braços no quadragésimo
terceiro grau, um dos quais, ajudado pela monção do nordeste,
regressa ao Golfo da Gasconha, depois de ter aquecido as costas da Irlanda
e da Noruega, ultrapassa Spitzberg, onde a sua temperatura desce a quatro
graus, e vai formar o mar livre do pólo.

Era neste rio do oceano que o submarino “Nautilus” navegava.

A saída do Canal das Baamas, quatorze léguas ao largo e a
trezentos e cinqüenta metros de profundidade, a Gulf Stream tem uma velocidade

de cerca de oito quilômetros por hora. Esta rapidez decresce regularmente
à medida em que avança para o norte, e é de desejar que
esta regularidade se mantenha, porque se a sua velocidade e direção
se modificarem, o5 climas europeus serão submetidos a perturbações
cujas conseqüências são inteiramente imprevisíveis.

Por volta do meio-dia encontrava-me na plataforma com o meu criado.

Dei-lhe a conhecer todas as particularidades da Gulf Stream e, terminada
a minha explicação, convidei-o a enfiar a mão na água.

Conselho obedeceu e ficou. admirado de não sentir quer uma sensação
de calor, quer de frio.

– Isso acontece porque a temperatura das águas da Gulf Stream, ao
saírem do Golfo do México, pouco difere da do corpo humano.
Essa corrente é um vasto calorífero, que dá às
costas da Europa o aspecto eternamente verdejante. E, a se acreditar em Maury,
o calor desta corrente, totalmente utilizado, seria suficiente para manter
em fusão um rio de ferro fundido tão grande como o Amazonas
ou o Missoüri.

A corrente é tão distinta do mar ambiente que as suas águas
comprimidas irrompem sobre o oceano, operando-se um desnivelamento entre elas
e as águas frias. Escuras e muito ricas em matérias salinas,
riscam com o seu azul puro as águas verdes que as cercam. E tal a nitidez
da sua linha de demarcação que o “Nautilus”, perto
das Carolinas, enquanto a hélice ainda agitava as águas do oceano,
já o esporão cortava as águas da Gulf Stream.

Esta corrente arrastava todo um mundo de seres vivos. Os argonautas tão
comuns no Mediterrâneo navegavam nele em grupos numerosos.

Entre os cartilaginosos os mais notáveis eram as raias, cuja cauda
muito solta formava quase um terço do corpo, e que pareciam enormes
losângulos com vinte e cinco pés de comprimento; depois, pequenos
esqualos com um metro de comprimento, de cabeça grande, focinho curto
e arredondado, dentes pontiagudos dispostos em várias fileiras e cujo
corpo parecia coberto de escamas.

Entre os peixes ósseos, vi labros cinzentos, comuns desses mares;
spares sinagros, cuja íris brilhava como uma chama; sciènes,
com um metro de comprimento e grandes goelas cheias de pequenos dentes; centronotos
negros, de que já falei; corifemos azuis, ornados de ouro e prata;
papagaios, verdadeiros arco-íris do oceano e que podem rivalizar em
cores com as mais belas aves dos trópicos; blêmios de cabeça
triangular; rombos azulados, desprovidos de escamas; batracóides, cobertos
com uma transversal amarela parecendo um T grego; cardumes de gobiões
salpicados de manchas amarelas; dipterodontes, de cabeça prateada e
cauda amarela; diversas espécies de salmões, mugilomoros de
belo porte, com um brilho suave, que Lacèpede consagrou à amável
companheira de sua vida, e finalmente um belo peixe, o cavaleiro americano,
que decorado com todas as ordens e enfeitado com todas as fitas, freqüenta
as costas dessa grande nação onde as fitas e as ordens são
pouco estimadas.

Acrescentarei que durante a noite, as águas fosforescentes da Gulf
Stream rivalizaram com o brilho elétrico do nosso farol, sobretudo
nos momentos de tempestade que nos ameaçavam freqüentemente.

A 8 de maio estávamos ainda à vista do Cabo Hatteras, ao largo
da Carolina do Norte. A largura da Gulf Stream é ali de setenta e cinco
milhas e a sua profundidade de duzentos e dez metros.

O “Nautilus” continuava a errar à aventura. Toda a vigilância
parecia ter sido abandonada a bordo. Pensei que naquelas condições
uma evasão poderia ter êxito. As costas habitadas ofereciam fáceis
refúgios. O mar era constantemente sulcado por numerosos vapores que
fazem serviço entre Nova Iorque ou Boston e o Golfo do México,
e noite e dia percorrem com suas pequenas escunas carregadas a costa americana.

Havia assim boas possibilidades de sermos recolhidos. Era, portanto, uma
ocasião favorável, apesar das trinta milhas que separavam o
“Nautilus” das costas mais próximas.

No entanto, uma circunstância inesperada veio contrariar completamente
os planos do canadense. O tempo estava ruim. Atravessávamos as regiões
onde as tempestades são freqüentes, na zona das trombasd’água
e dos ciclones, precisamente originados pela Gulf Stream.

Enfrentar um mar muitas vezes agitado num frágil bote era correr
para uma morte certa. O próprio Ned Land concordou comigo. Assim, refreou-se,
tomado de uma furiosa nostalgia.

– Professor – disse-me o canadense – isto tem que acabar. O seu capitão
afasta-se das terras e se dirige para o norte. Mas eu fiquei farto do Pólo
Sul e não seguirei com ele para o Pólo Norte.

– Que havemos de fazer, se é impossível fugir agora? – Volto
à minha idéia de que temos de falar com o capitão. Não
disse nada quando estávamos nos mares do seu país, mas eu quero
falar, agora que estamos nas águas do meu. Quando eu penso que dentro
de alguns dias o “Nautilus” se encontrará ao largo da Nova
Escócia e que ali, em direção à Terra Nova se
abre uma grande baía, que nessa baía deságua o São
Lourenço e que o São – Lourenço é o meu rio, o
rio de Quebek, a minha terra natal, quando eu penso nisso a ira sobe-me à
cabeça e meus cabelos se eriçam. Prefiro atirar-me na água
a continuar aqui. Isto me sufoca! Era evidente que o canadense havia chegado
ao fim da paciência. A sua natureza vigorosa não podia acomodar-se
àquela clausura prolongada.

A sua fisionomia alterava-se de dia para dia e o seu caráter tornava-se
cada vez mais sombrio. Tinham-se passado quase sete meses sem que tivéssemos
notícias da terra. Além disso, o isolamento do Capitão
Nemo, a modificação do seu humor, sobretudo depois do combate
com os polvos, a sua taciturnidade, tudo me fazia ver as coisas de modo diferente.
Eu já não mais sentia o entusiasmo dos primeiros dias. Era preciso
ser um flamengo como Conselho para aceitar aquela situação,
no meio reservado aos cetáceos e outros habitantes do mar. Se o pobre
rapaz em vez de pulmões tivesse guelras, creio que seria um peixe de
grande classe.

– Então, professor? – insistiu Ned Land numa decisão minha,
sobre a sua proposta de irmos falar ao capitão.

– Você quer que eu pergunte ao Capitão Nemo quais são
as intenções dele a nosso respeito? – Quero. Apesar de nós
já sabermos quais são, ditas por ele mesmo? – Sim. Desejo ouvi-las
uma última vez. Fale apenas no meu nome se isso lhe parecer melhor.

– Mas raramente o vejo agora.

– Mais uma razão para ir vê-lo.

– Vou fazer a ele a pergunta que você quer, Ned.

– Quando? – Quando encontra-lo.

– O senhor quer que eu mesmo fale com ele? – Não, deixe-me tratar
do assunto. Amanhã…

– Hoje – disse Ned Land.

– Seja. Hoje falo com ele – prometi ao canadense. Eu não podia deixar
que ele fosse pessoalmente conversar com o capitão sobre um assunto
tão melindroso.

Fiquei só. Decidida a questão, resolvi acabar com ela imediatamente.

Gosto mais das coisas feitas do que das que estão por fazer.

Entrei no meu quarto e ouvi passos no do Capitão Nemo. Não
podia deixar passar aquela ocasião para falar com ele. Bati na porta
e ele não atendeu. Bati uma segunda vez e rodei o trinco. A porta abriu-se.

Penetrei no quarto dele. O capitão estava curvado sobre a mesa de
trabalho e não tinha me ouvido. Resolvido a não deixar o quarto
sem falar com ele, aproximei-me. Ele levantou a cabeça bruscamente,
franziu o sobrolho e me perguntou num tom bastante rude – O senhor aqui! Que
deseja? – Falar-lhe, capitão.

– Não vê que estou ocupado, que estou trabalhando? Quero ter
para mim a liberdade que lhe dou de não ser incomodado.

A recepção era pouco encorajadora, mas eu estava decidido
a ouvir tudo, para poder falar depois tudo o que desejasse.

– Tenho que falar de um assunto urgente.

– Que assunto? – notei um tom de ironia na voz dele. – Fez alguma descoberta
que me escapou? O mar lhe revelou mais algum dos seus grandes segredos? Estávamos
muito longe do assunto que me interessava. Antes que eu pudesse responder
às perguntas dele, o capitão me mostrou um manuscrito aberto
sobre a sua mesa e me disse num tom mais grave – Aqui tem, professor, um manuscrito
em várias línguas. Contém o resumo dos meus estudos do
mar e, se Deus quiser, não morrerá comigo. Este manuscrito,
assinado por mim e completado com a história de minha vida, será
fechado dentro de um pequeno aparelho insubmergível. O último
sobrevivente a bordo do “Nautilus” jogará ao mar esse aparelho
que irá para onde as águas o levarem.

A sua história escrita por ele mesmo! A assinatura do manuscrito
deveria ser com o seu nome verdadeiro! O seu segredo seria alguma vez desvendado?
Porém, naquele momento, a comunicação dele só
serviu para me dar ensejo de falar do meu assunto.

– Capitão, compreendo o motivo pelo qual vai agir assim. Os resultados
de seus estudos não podem desaparecer. Mas o meio que vai utilizar
para transmiti-los aos homens que lucrarão com eles, parece-me primitivo.

Quem sabe para onde os ventos conduzirão o aparelho e em que mãos
ele irá cair? Não haverá um meio melhor? Talvez o senhor
mesmo ou um dos seus…

– Nunca! – ele cortou energicamente a minha frase.

– Mas eu e os meus companheiros estamos dispostos a guardar o manuscrito,
se o senhor nos der a liberdade.

– A liberdade! – Levantou-se ele, repetindo a palavra.

– Sim, capitão. Foi sobre esse assunto que vim lhe falar. Há
sete meses que estamos a bordo e eu agora lhe pergunto, no meu nome e nos
nomes de meus companheiros, se tenciona manter-nos presos aqui por muito mais
tempo.

– Sr. Aronnax, a minha resposta é a mesma que o senhor ouviu há
sete meses: quem entra no “Nautilus” nunca mais sairá vivo
dele.

– É a escravatura que nos impõe? – Dê-lhe o nome que
quiser.

– Em toda parte o escravo conserva o direito de recuperar a liberdade! Quaisquer
que sejam os meios que se lhe ofereçam, pode julgá-los bons.

– Quem está lhes negando esse direito? – perguntou-me ele. – Exigi
dos senhores algum juramento? Ele me olhava de braços cruzados.

– Capitão Nemo. Voltar uma segunda vez à questão, não
seria do seu e nem do meu agrado. Mas uma vez que ela foi levantada, quero
discutila até uma solução final. Repito-lhe que não
se trata apenas da minha pessoa. Para mim o estudo é um refúgio,
uma diversão suficiente, um passatempo, uma paixão que consegue
me fazer esquecer de tudo.

Como o senhor, sou um homem para viver ignorado, obscuro, na frágil
esperança de legar um dia ao futuro os resultados do meu trabalho,
através de um aparelho hipotético confiado à água
e aos ventos. Numa palavra, eu posso admirar o senhor, posso segui-lo com
prazer num papel que compreendo sob certos aspectos, mas há ainda alguns
pontos da sua vida que me fazem antevê-la cheia de complicações
e mistérios, dos quais eu e meus companheiros não participamos.
E mesmo quando os nossos corações bateram por sua causa, comovidos
por algumas das dores que o atingiram ou impressionados pelos seus atos de
gênio e coragem, tivemos de nos reprimir e não manifestar o testemunho
de nossa simpatia, que faz nascer a contemplação do que é
belo, quer venha do amigo ou do inimigo. Pois bem. É esse sentimento
de estranheza a tudo que o toca que faz da nossa situação algo
de inaceitável, de impossível até para ruim, quanto mais
para Ned Land.

Qualquer homem, só por ser homem, merece que pensem nele. Já
pensou o que o amor pela liberdade, o ódio pela escravatura, podem
fazer nascer de planos de vingança numa natureza como a do canadense?
O que ele podia pensar, tentar…? Calei-me. Ele me olhava absolutamente impassível.

– Ned Land pode pensar, pode tentar tudo o que quiser. Que me importa! Não
fui eu que o procurei. Não é por meu prazer que o tenho a bordo.
Quanto ao senhor, é daqueles que conseguem compreender tudo, até
o silêncio. Mais nada tenho a dizer, professor. Que a primeira vez que
veio me falar desse assunto seja também a última, porque da
próxima nem sequer o escutarei.

Retirei-me. A partir daquele dia a nossa situação tornou-se
pior. Contei aos meus companheiros toda a conversa que tivera com o capitão.

– Sabemos agora – disse Ned Land – que nada temos a esperar desse homem.
O “Nautilus” aproxima-se de Long Island. Fugiremos, faça
o tempo que fizer.

O céu tornava-se cada vez mais ameaçador, manifestando sinais
de tempestade. A atmosfera tornava-se esbranquiçada e leitosa. Aos
cirros de feixes soltos sucediam-se no horizonte camadas de nimbos e cúmulos.

Outras nuvens baixas desapareciam rapidamente. O mar engrossava e a ondulação
aumentava. As aves desapareciam, com exceção dos sataniclos,
amigos das tempestades. O barômetro baixava sensivelmente e indicava
a existência no ar de grande tensão de vapores. A mistura do
“stormglass” decompunha-se sob a influência da eletricidade
que saturava a atmosfera. A luta entre os elementos estava próxima.

A tempestade rebentou a 18 de maio, precisamente quando o “Nautilus”
se encontrava ao largo de Long Island, a algumas milhas de Nova Iorque. Posso
descrever essa luta dos elementos porque, em vez de lhe fugir para as profundezas
do mar, o Capitão Nemo, por um inexplicável capricho, preferiu
enfrentar a tempestade à superfície.

O vento soprava de sudoeste, primeiro com uma velocidade de quinze metros
por segundo e depois, cerca de oito horas da noite, com uma velocidade de
vinte e cinco metros.

O Capitão Nemo, inabalável sob as rajadas, tinha tomado lugar
na plataforma, amarrado pela cintura para resistir melhor às monstruosas
vagas. Também subi à plataforma e, igualmente amarrado, partilhei
a minha admiração entre a tempestade e aquele homem incomparável
que a enfrentava desassombradamente.

Ó mar encapelado era varrido por grandes massas de nuvens que batiam
nas ondas. Eu não via nenhuma dessas ondas intermediárias que
se formam no fundo das grandes cavidades. Nada, a não ser longas ondulações
fuliginosas, cuja crista não rebenta, de tal modo são compactas.

A sua altura aumentava. Excitavam-se mutuamente. O “Nautilus”,
ora de lado, ora reto como um mastro, rolava e balouçava terrivelmente.
Por volta das cinco horas, caiu uma chuva torrencial que não acalmou
nem o vento e nem o mar. A tempestade desencadeou-se com uma velocidade de
quarenta e cinco metros por segundo, ou seja, quase quarenta léguas
por hora. O seu poder seria suficiente para arrancar casas, para rebentar
grades de ferro e deslocar canhões. E no entanto, o “Nautilus”,
no meio da tormenta, justificava bem as palavras do seu sábio construtor:
“Não há casco bem construído que não possa
desafiar o mar”.

Ele não era uma rocha resistente que as ondas teriam demolido. Era
um fuso de aço, obediente e móvel, sem mastreação,
que desafiava a fúria da natureza.

Entretanto, eu examinava atentamente as vagas que mediam até quinze
metros de altura por um comprimento de cento e trinta a cento e setenta metros,
sendo a sua velocidade de propagação de quinze metros por segundo.
Metade da do vento. O seu volume e potência cresciam com a profundidade
das águas. Compreendi então o papel das ondas que aprisionam
o ar nos seus flancos e o levam para o fundo dos mares aos quais dão
vida, dando-lhes oxigênio. A sua força de pressão, segundo
se calcula, pode elevar-se até três mil quilos por pé
quadrado da superfície que contra-atacam. Foram ondas como aquelas
que, nas Hébridas, deslocaram um bloco que pesava oitenta e quatro
mil libras. Foram elas que na tempestade de 23 de dezembro de 1864, depois
de terem derrubado uma parte da cidade de Yeddo, no Japão, foram, com
uma velocidade de setecentos quilômetros por hora, assolar no mesmo
dia as costas da América do Norte.

A intensidade da tempestade cresceu com a noite. O barômetro, como
em 1860, na Reunião, durante um ciclone, desceu a setecentos e dez
milímetros. Ao fim do dia vi passar no horizonte um grande navio que
lutava com muito esforço, capeando a pouco vapor para se manter sobre
as vagas. Devia ser um dos vapores das linhas de Nova Iorque a Liverpool ou
ao Havre. Não tardou a desaparecer nas sombras da noite.

As dez horas o céu estava em fogo. A atmosfera foi cortada por raios
violentos. Eu não conseguia suportar-lhes o brilho, enquanto o Capitão
Nemo, olhando-os bem de frente, parecia aspirar neles a alma da tempestade.
Um ruído terrível enchia os ares, ruído complexo, feito
dos gemidos das ondas esmagadas, dos uivos do vento e dos trovões.
O vento soprava de todos os pontos do horizonte e o ciclone, partindo do leste,
chegava ali, passando pelo norte, o oeste e o sul, no sentido inverso das
tempestades giratórias do hemisfério austral.

Ah! A Gulf Stream justificava bem o nome de rainha das tempestades.

Era ela que criava esses terríveis ciclones devido à diferença
de temperatura das camadas de ar sobrepostas às suas correntes.

À chuva sucedera uma bateria de fogos. As gotas de água transformavam-
se em cristais fulminantes. Dir-se-ia que o Capitão Nemo, procurando
uma morte digna dele, tentava ser fulminado. Num terrível movimento
o “Nautilus” ergueu nos ares o seu esporão de ferro, como
a haste de um pára-raios, e eu vi saírem faíscas.

Completamente esgotado, rastejei até o alçapão e fui
para o interior do barco. A tempestade atingia então a sua máxima
intensidade. Era impossível estar-se de pé dentro do “Nautilus”.

O Capitão Nemo entrou por volta da meia-noite. Ouvi os reservatórios
encherem-se de água e pouco a pouco o submarino submergiu.

Através dos painéis do salão vi grandes peixes assustados,
que passavam como fantasmas nas águas em fogo. Alguns eu vi sendo fulminados
e tive medo.

O “Nautilus” continuava a descer. Pensei que encontraria a calma
a uma profundidade de quinze metros. Mas não encontrou. As camadas
superiores estavam demasiado agitadas. Foi preciso que ele fosse procurar
repouso a cinqüenta metros nas entranhas do mar.

A essa profundidade, que silêncio, que tranqüilidade, que lugar
pacífico! Quem diria que uma terrível tempestade rugia à
superfície daquele mesmo oceano?

Capítulo XX

Em conseqüência dessa tempestade, tínhamos sido arrastados
para leste e todas as nossas esperanças de uma evasão para a
região de Nova Iorque ou de São Lourenço desvaneceram-se.
O pobre Ned, desesperado, isolou-se como o Capitão Nemo. Eu e Conselho
nunca mais nos separamos. Precisávamos de nos amparar mutuamente.

Aos poucos o barco foi pendendo para o nordeste. Durante alguns dias errou
ora à superfície ora submerso, muitas vezes perdido no meio
das brumas tão temidas, pelos navegadores. Elas são devidas
principalmente à fusão dos gelos, que provocam grande umidade
na atmosfera.

Quantos navios perdidos nestas paragens, quando tentavam avistar os faróis
incertos da costa! Quantos sinistros devidos a esses nevoeiros cerrados! Quantos
choques com escolhos, cuja ressaca é abafada pelo barulho do vento!
Quantas colisões entre navios, apesar dos faróis de sinalização,
apesar dos avisos das suas sirenas e sinos de alarme! Por isso, o fundo desses
mares oferecia o aspecto de um campo de batalha onde ainda jaziam todos esses
vencidos do oceano; uns velhos e já em ruínas, outros recentes
e refletindo os raios do nosso farol nas ferragens e quilhas de cobre. Entre
eles, quantos navios completamente perdidos, com as suas tripulações,
o seu mundo de emigrantes, naqueles pontos perigosos assinalados nas estatísticas.
O Cabo Race, a ilha Saint-Paul, o Estreito de BelleIle, o estuário
do São Lourenço! E desde há poucos anos, quantas vitimas
fornecidas aos fúnebres anais pelas linhas da Royal-Mail, da Inmann,
de Montreal: o “Solway”, o “Isis”, o “Paramatta”,
o “Hungarian”, o “Canadian”, o “Anglo-Saxon”,
o “Humboldt”, o “United States”, todos afundados a
pique; o “Artic”, o “Lyonnais”, afundados por abalroamentos;
e o “President”, o “Pacific”, o “City-of-Glasgow”
desaparecidos por causas desconhecidas, sombrios destroços no meio
dos quais o “Nautilus” navegava como se passasse os mortos em
revista. A 15 de maio, encontrávamo-nos na extremidade meridional do
banco da Terra Nova, o qual é um produto de aluviões marinhos,
um amontoado considerável de detritos orgânicos, transportados
quer do Equador pela corrente da Gulf Stream, quer do pólo boreal pela
contracorrente de água fria que passa ao longo da costa americana.
Também ali se amontoam os blocos errantes produzidos pelo degelo. A
profundidade das águas não é considerável no banco
da Terra Nova, apenas algumas centenas de braças. Mas, para o sul,
abre-se subitamente uma depressão profunda, um buraco com três
mil metros, onde se alarga a Gulf Stream, espalhando as suas águas,
perdendo velocidade e temperatura, mas transformando-se num mar.

Na região da Terra Nova encontramos os cardumes de bacalhaus.

Pode-se dizer que os bacalhaus são peixes de uma montanha submarina.

Quando o “Nautilus” abriu passagem através das suas falanges
cerradas, Conselho não pôde deixar de observar: – Mas isto são
bacalhaus? Eu pensava que eram chatos como os linguados.

São até bem redondinhos! – Ingênuo! – exclamei. – Os
bacalhaus só são chatos no merceeiro, que os vende abertos e
secos. Mas na água são peixes fusiformes como os robalos e perfeitamente
aptos para nadar.

– Acredito – respondeu Conselho. – Que nuvem deles! Que formigueiro! – Sim,
meu amigo. E muitos mais existiriam se não fossem os seus inimigos:
os rainúnculos e os homens. Sabe quantos ovos se contaram numa única
fêmea? – Talvez uns quinhentos mil – respondeu Conselho.

– Onze milhões, meu amigo.

– Onze milhões! Só acreditava se os tivesse contado.

– Pode contá-los, mas seria mais rápido se me acreditasse.
Aliás, é aos milhões que franceses, ingleses, americanos,
dinamarqueses e noruegueses pescam os bacalhaus. São consumidos em
quantidades prodigiosas, e sem a ‘surpreendente fecundidade desses peixes,
os mares não tardariam a ficar despovoados da espécie. Só
na Inglaterra e na América, cinco mil navios equipados com setenta
e cinco mil marinheiros dedicam-se à pesca do bacalhau. Cada navio
pesca uma média de quarenta mil, o que perfaz um total de vinte e cinco
milhões. Nas costas da Noruega passa-se o mesmo.

– Bem, acredito no senhor. Não os contarei.

– O quê? – Os onze milhões de ovos. Porém tenho uma
observação a fazer.

– Qual? – Se todos os ovos vingassem, chegariam quatro bacalhaus para alimentar
a Inglaterra, a América e a Noruega: Enquanto percorríamos os
fundos do banco da Terra Nova, vi perfeitamente as longas linhas armadas com
duzentas iscas que cada barco lança às dezenas. Cada linha,
arrastada por uma extremidade por meio de um pequeno arpéu, era retida
à superfície por um arinque fixo a uma bóia de cortiça.
O “Nautilus” foi obrigado a navegar habilmente no meio daquela
rede submarina.

Aliás, ele não se demorou naquelas paragens freqüentadas.
Subiu até o quadragésimo segundo grau de latitude, zona de São
João da Terra Nova e de Heart’s Content, onde termina o cabo
transatlântico.

O “Nautilus”, em vez de continuar a sua rota para norte, tomou
a direção de leste, como se quisesse seguir o planalto sobre
o qual repousava o cabo telegráfico, e cujas sondagens deram o relevo
com extrema exatidão.

A 17 de maio, a cerca de quinhentas milhas de Heart’s Content e a
dois mil e oitocentos metros de profundidade, avistei o cabo jazendo no solo.
Conselho, que eu não tinha prevenido, tomou-o por uma gigantesca serpente
do mar e preparava-se para a classificar, segundo o seu método habitual.
Desenganei o meu digno companheiro e, para o consolar do desgosto, informei-o
de algumas particularidades da colocação do cabo.

O primeiro cabo foi estabelecido nos anos de 1857 e 1858, mas depois de
ter transmitido cerca de quatrocentos telegramas, deixou de funcionar.

Em 1863, os engenheiros construíram novo cabo, medindo três
mil e quatrocentos quilômetros e pesando quatro mil e quinhentas toneladas,
o qual foi embarcado no “Great-Eastern”. Esta tentativa falhou
mais uma vez.

Ora, a 25 de maio, ‘o “Nautilus”, submerso a três
mil oitocentos e trinta e seis metros de profundidade, encontrava-se precisamente
no local onde se tinha produzido a quebra que arruinou o empreendimento. Foi
a seiscentos e trinta e oito milhas da costa da Irlanda. As duas horas da
tarde, notou-se que as comunicações com a Europa se tinham interrompido.

Os eletricistas de bordo resolveram cortar o cabo antes de o repescar e,
às onze horas da noite, tinham recuperado a parte avariada.

Fizeram uma junta e uma costura e atiraram o cabo de novo à água.

Porém, alguns dias mais tarde, rompeu-se de novo e não pôde
ser recuperado das profundezas do oceano.

Os americanos não se desencorajaram. O audacioso Cyrus Field, promotor
da empresa e que nela arriscava toda a sua fortuna, fez uma nova subscrição,
que foi imediatamente coberta. Um outro cabo foi então estabelecido
em melhores condições. O feixe de fios condutores isolados num
invólucro de guta-percha estava protegido por uma cobertura de matérias
têxteis contidas dentro de uma armadura metálica.

O “Great-Eastern” fez-se novamente ao mar a 13 de julho de 1866.

A operação decorreu bem, embora tivesse acontecido um incidente.

Várias vezes, ao desenrolarem o cabo, os eletricistas verificaram
que tinham sido feitos buracos nele com intenção de lhe deteriorar
o interior.

O capitão Anderson, os oficiais e os engenheiros reuniram-se e deliberaram
o seguinte: quem quer que fosse apanhado a praticar aquele ato criminoso seria
lançado ao mar sem qualquer julgamento. Depois disso, não se
repetiu tal incidente.

A 23 de julho, o “Great-Eastern” estava apenas a oitocentos
quilômetros da Terra Nova, quando lhe telegrafaram da Irlanda a notícia
do armistício concluído entre a Prússia e a Áustria,
depois de Sadowa. A 27, avistava no meio das brumas o porto de Heart’s
Content. A empresa tinha sido concluída com êxito e, no seu primeiro
telegrama, a jovem América dirigia à velha Europa estas sábias
palavras, raramente compreendidas: “Glória a Deus nas alturas
e paz na Terra aos homens de boa vontade”.

Não se esperava conservar o cabo elétrico no seu estado primitivo,
tal como tinha saído da fábrica. Mas a longa serpente, coberta
de conchas, estava incrustada no fundo pedregoso que a protegia contra os
moluscos perfurantes. Repousava tranqüilamente, ao abrigo dos movimentos
do mar, e sob uma pressão favorável à transmissão
da corrente elétrica que passa da América à Europa em
trinta e dois centésimos de segundo. A duração deste
cabo será, sem dúvida, infinita, porque se verificou que o invólucro
de guta-percha melhora com a permanência na água.

Aliás, nesse planalto escolhido com tanta sorte, o cabo nunca imergiu
a profundidades tais que se pudesse romper. O “Nautilus” seguiu-o
até o seu fundo mais baixo, situado a quatro mil quatrocentos e trinta
metros, onde repousa sem qualquer esforço de tração.
Depois, aproximamonos do local onde tinha ocorrido o acidente de 1863.

O fundo oceânico formava então um enorme vale de cento e vinte
quilômetros, onde se poderia ter colocado o monte Branco sem que o seu
cume ultrapassasse a superfície das águas. O vale está
fechado a leste por uma muralha de dois mil metros. Chegamos a esse ponto
a 28 de maio e o “Nautilus” estava a cerca de cento e cinqüenta
quilômetros da Irlanda.

Iria o Capitão Nemo subir para aportar às Ilhas Britânicas?
Não. Para minha grande surpresa, tornou a descer para o sul, voltando
aos mares europeus. Ao contornar a ilha Esmeralda,. avistei por instantes
o Cabo Clear e o farol de Fastenet, que guia os milhares de navios saídos
de Glasgow e de Liverpool.

Uma importante questão surgiu então no meu espírito.
Ousaria o “Nautilus” atravessar o canal da Mancha? Ned Land, que
reaparecera desde que navegávamos junto à costa, não
parava de me fazer perguntas.

Como responder-lhe? O Capitão Nemo permanecia invisível.

Depois de ter deixado o canadense avistar as terras da América, iria
fazer o mesmo com as terras da França? Entretanto, o “Nautilus”
continuava a sua rota para o sul. A 30 de maio, passava à vista de
Land’s End, entre a ponta sul da Inglaterra e as Sorlingas, que deixou
para estibordo.

Se queria entrar na Mancha, teria de virar decididamente para leste e não
o fez.

Durante todo o dia de 31 de maio, o “Nautilus” descreveu no
mar uma série de círculos que me intrigaram bastante. Parecia
procurar um local difícil de encontrar. Ao meio-dia, foi o próprio
Capitão Nemo quem fez o ponto. Não me dirigiu a palavra. Pareceu-me
mais sombrio do que nunca. Que é que o entristecia assim? Seria a proximidade
das costas européias? Sentiria saudades da pátria abandonada?
Ou então seriam remorsos, mágoas? Esse pensamento ocupou-me
durante bastante tempo e tive como que um pressentimento de que o acaso em
breve trairia os segredos do capitão.

No dia seguinte, 1.° de junho, o “Nautilus” manteve-se na
mesma região. Era evidente que procurava reconhecer um ponto exato
do oceano. O Capitão Nemo foi medir a altura dó sol, como na
véspera.

O mar estava belo e o céu puro. A oito milhas para leste, um grande
navio a vapor desenhava-se na linha do horizonte. Não tinha qualquer
bandeira içada no mastro.

O capitão Nemo, alguns minutos antes do sol passar o meridiano, pegou
no sextante e observou com extrema atenção. A calma absoluta
das águas facilitava essa operação. O “Nautilus”,
imóvel, não acusava a ondulação.

Encontrava-me na plataforma, quando, terminada a observação,
o Capitão Nemo pronunciou estas palavras: – E aqui! Depois desceu pelo
alçapão. Teria visto o navio, que modificara a direção
e parecia dirigir-se para nós? Eu não sabia.

Voltei ao salão. O alçapão foi fechado e ouvi o ruído
da água entrar nos reservatórios. O “Nautilus” começou
a mergulhar, seguindo uma linha vertical, porque a sua hélice, parada,
não lhe comunicava qualquer movimento.

Minutos mais tarde, parava a uma profundidade de oitocentos e trinta e três
metros e repousava no solo.

O teto luminoso do salão apagou-se e os painéis abriram-se.
Através dos vidros vi o mar intensamente iluminado pelos raios do farol
numa distância de meia milha.

Olhei para bombordo e não vi nada a não ser a imensidão
das águas tranqüilas.

Para estibordo, no fundo, via-se uma grande saliência, que me chamou
a atenção. Dir-se-ia ruínas soterradas sob uma camada
de conchas esbranquiçadas, como se fosse um manto de neve. Ao examinar
atentamente aquela massa, julguei reconhecer as formas de um navio, sem mastros,
que devia ter afundado a proa. O sinistro parecia datar de uma época
recuada, pois aqueles destroços cobertos de calcário, já
há muitos anos jaziam no fundo do oceano.

Que navio seria aquele? Por que iria o “Nautilus” visitar-lhe
o túmulo? O seu naufrágio não teria sido de origem natural?
Não sabia o que pensar, quando ouvi o capitão dizer com voz
lenta – Outrora, esse navio chamava-se o “Marselhês”. Estava
armado com setenta e quatro canhões e foi lançado à água
em 1762. Em 1778, a 13 de outubro, comandado por La Poype-Vertrieux, batia-se
corajosamente contra o “Preston”. Em 1779, a 4 de julho, assistia,
com a esquadra do almirante D’Estaing, à tomada de Granada. Em
1781, a 5, de setembro, tomava parte no combate do Conde Grasse na baía
de Chesapeak. Em 1794, a República francesa mudou-lhe o nome. A 16
de abril do mesmo ano, juntava-se em Brest, à esquadra de Villaret-
Joyeuse, encarregada de escoltar um comboio de trigo que vinha da América,
sob o comando do Almirante Van Stabel. A 11 e 12 do “prairial”,
ano II, esta esquadra encontrava-se com navios ingleses.

Senhor professor, hoje é o dia 13 do “prairial”, 1.°
de junho de 1868.

Há precisamente setenta e , quatro anos, neste local, a 47° 24′
de latitude e 17° 28′ de longitude, este navio, após um combate
heróico, sem três mastros, água nos paióis e um
terço da tripulação fora de combate, preferiu afundar-se
com os seus trezentos e cinqüenta e seis marinheiros a render-se. Hasteando
o seu pavilhão à popa, desapareceu nas águas ao grito
de: Viva a República! — O “Vingador”! – exclamei.

– Sim, senhor professor. O “Vingador”! Um lindo nome! – murmurou
o Capitão Nemo, cruzando os braços.

Capítulo XXI

Essa maneira de dizer, o imprevisto da cena, a história do navio patriota,
a emoção com que a estranha personagem tinha pronunciado o nome
“Vingador”, cujo significado não me podia escapar, tudo
isso se reuniu para preocupar extremamente o meu espírito. O meu olhar
nunca mais deixou o capitão, que de mãos estendidas para o mar,
observava com olhar ardente os gloriosos destroços. Talvez nunca chegasse
a saber quem ele era, de onde vinha, para onde ia, mas via cada vez mais o
homem separar-se do sábio. Não era uma misantropia comum que
tinha encerrado dentro do “Nautilus” o Capitão Nemo e os
seus companheiros, mas um ódio monstruoso ou sublime que o tempo não
podia enfraquecer.

Esse ódio procuraria ainda vinganças? O futuro em breve me
diria.

Entretanto, o “Nautilus” subia lentamente à superfície
do mar e vi desaparecer pouco a pouco as formas confusas do “Vingador”.
Um ligeiro balanço indicou-me que flutuávamos à superfície.

Ouviu-se então uma detonação surda. Olhei o capitão,
que não se mexeu.

– Capitão? Deixei-o e subi à plataforma, onde Conselho e Ned
já se encontravam.

– De onde veio a detonação? – perguntei.

– Foi um tiro de canhão – respondeu Ned Land. Olhei na direção
do navio que tinha avistado. Tinha se aproximado do “Nautilus”
e via-se que forçava o vapor. Separavam-no de nós seis milhas.

– Que navio é aquele, Ned? – Pelo seu aparelho e pela altura dos
mastros, parece-me um navio de guerra. Ah, se ele pudesse acabar com esse
maldito “Nautilus”! – Meu caro Ned – respondeu Conselho. – Que
pode ele fazer ao “Nautilus”? Atacá-lo debaixo d’água?
Bombardeá-lo no fundo dos mares? – Diga-me Ned, consegue reconhecer
a nacionalidade do navio? O canadense franziu o sobrolho, baixou as pálpebras,
fixou o navio por instantes utilizando todo o poder da sua visão.

– Não, senhor – respondeu. – Não sei reconhecer a que nação
pertence.

Não tem a bandeira içada. Mas posso confirmar que se trata
de um navio de guerra, porque uma longa flâmula se desenrola na extremidade
do mastro grande.

Durante um quarto de hora, continuamos a observar o navio, que se dirigia
para nós. No entanto, não podia admitir que tivesse reconhecido
o “Nautilus” àquela distância e muito menos ainda
que soubesse que era um engenho submarino.

Dali a pouco, o canadense anunciou que o navio era um grande vaso de guerra,
com esporão. Um couraçado com duas cobertas. Um espesso fumo
negro saía de suas duas chaminés. As veias, amainadas, confundiam-
se com a linha das vergas. Não trazia pavilhão e a distância
não deixava ainda distinguir as cores da flâmula que flutuava
como uma fita estreita no cimo do seu mastro. Nós o olhávamos
avançar rapidamente para o “Nautilus”. Se o Capitão
Nemo o deixasse aproximar, teríamos a nossa oportunidade de fuga.

– Professor – disse-me Ned Land – se o navio passar por nós, mesmo
a uma milha de distância, atiro-me ao mar e peço-lhe que faça
o mesmo.

Eu o ajudarei a alcançá-lo.

Não respondi à proposta dele e continuei a observar o couraçado
que se tornava cada vez maior. Quer fosse inglês, francês, americano
ou russo, sem dúvida que nos acolheria, se o conseguíssemos
alcançar.

– Lembre-se, senhor – disse-me então Conselho – que tenho muita prática
de natação. Pode contar comigo para o rebocar até o navio
– insistiu ele em sua promessa de ajuda.

Eu ia responder, quando um vapor branco saiu da proa do navio de guerra.
No mesmo instante as águas agitadas pela queda de um corpo pesado salpicaram
a ré do “Nautilus”. Logo a seguir ouvi a detonação.

– Como? Disparam contra nós? – estranhei.

– Aí valentes! – gritou o canadense.

– Deveriam tomar-nos por náufragos agarrados a um destroço!
Entretanto as balas multiplicavam-se à nossa volta. O couraçado
encontrava- se a três milhas de distância. Ned Land, muito emocionado,
disse-me que deveríamos fazer algum sinal para o navio atacante. Sem
que eu pudesse impedi-lo, tirou o lenço e começou a acenar com
ele.

Mal tinha feito o primeiro gesto, uma mão de ferro derrubou-o.

– Miserável! – gritou o capitão. – Quer ser pregado no esporão
do “Nautilus”? Quer que eu faça isso .com você, antes
de destruir aquele navio que está me atacando? O Capitão Nemo,
terrível de se ouvir, era ainda mais terrível de se ver.

Com o rosto transtornado pela cólera, ele não falava. Rugia.
Com o corpo inclinado para a frente, apertava com a mão 0 ombro do
canadense como se fosse esmigalhá-lo. Depois, abandonando-o, virou-se
para o navio de guerra, cujas; balas continuavam a cair à volta dele
e gritou – Sabe quem eu sou, navio de uma nação maldita? Não
precisarei de ver as suas cores para saber a que país pertence! Olhe!
Vou lhe mostrar as minhas cores! Acabou de falar e desfraldou na popa da plataforma
um pavilhão negro, semelhante ao que tinha colocado no Pólo
Sul. Depois dirigiu-se a mim e falou apressado: – Desça, desça
com os seus companheiros! – Vai atacar aquele navio, capitão? – Vou
afundá-lo! – O senhor não fará tal coisa! – Farei – respondeu-me
friamente. – Não se arrogue o direito de me julgar, professor! A fatalidade
lhe mostra o que não deveria ver. Fui atacado e minha resposta será
terrível. Agora desçam! – Que navio é aquele? – insisti.

– Se não sabe, tanto melhor. Pelo menos a sua nacionalidade continuará
a ser um segredo para vocês. Desçam! – gritou irado.

Não pudemos fazer nada mais do que obedecê-lo. Mas antes de
deixar a plataforma eu ainda fiz um gesto de quem ia falar. Ele me impôs
silêncio e usou mais uma vez da palavra – Eu sou o direito, eu sou a
justiça! Sou o oprimido e ali está o opressor! Foi por causa
dele que vi morrer tudo que eu amava e venerava: pátria, mulher, filhos,
pai e mãe! Tudo o que odeio está ali. Cale-se e desça!
Depois que descemos, percebi que o Capitão Nemo iniciara as manobras
para atrair sua vítima. Tal como fizera com a fragata “Abraham
Lincoln”, ele fingia fugir para chamar o contedor à posição
que fosse melhor para o seu ataque fulminante.

Um ruído bem conhecido indicou-me que a água penetrava nos
reservatórios de bordo. Em poucos minutos o “Nautilus”
submergiu e parou poucos metros abaixo da superfície. Compreendi a
manobra, mas era impotente para evitar a destruição do navio
de guerra. O “Nautilus” não tencionava atacá-lo
na sua impenetrável couraça, mas por baixo da linha de flutuação,
onde a carapaça já não protege o casco.

Entretanto, a velocidade do submarino foi aumentada consideravelmente.

Todo o seu casco tremia. De repente e sem querer, soltei um grito.

Houve um choque relativamente ligeiro. Senti a força penetrante do
esporão de aço. Ouvi ruídos de algo que se esgarçava,
que se rasgava.

O “Nautilus”,impelido pelo seu poder de propulsão, passara
através do casco do navio, como a agulha do marinheiro através
do pano! Não pude me conter. Louco, desvairado, saí do quarto
e corri para o salão. O Capitão Nemo encontrava-se lá.
Silencioso, sombrio, implacável, olhando através do painel de
bombordo.

Uma massa enorme mergulhava nas águas. Para nada perder da agonia
de sua vítima, o submarino acompanhava-a em sua descida aos abismos.

A dez metros de distância vi o rombo no casco do couraçado,
por onde a água penetrava com o ronco do trovão. Depois vi a
linha dupla dos canhões e por fim a coberta, cheia de sombras negras
que se agitavam.

A água subia. Os infelizes agarravam-se aos cordames, trepavam aos
mastros, contorciam-se nas águas. Era um formigueiro humano surpreendido
pela invasão do mar! Paralisado, angustiado, os cabelos em pé,
os olhos desmesuradamente abertos, respiração ofegante, sem
fôlego e sem voz, eu não queria olhar e olhava sempre! Uma irresistível
atração colava-me ao vidro.

O enorme navio afundava-se lentamente. O “Nautilus” seguia-o
e espiava-lhe os movimentos. De repente ocorreu uma explosão. O ar
comprimido fez voar as cobertas do navio, como se houvesse fogo nos paióis.
O movimento das águas foi tal que desviou o “Nautilus”.

Então, o infeliz navio mergulhou mais rapidamente. Os cestos das
gáveas apareceram carregados de vítimas, depois foram as travessas
vergadas sob o peso de cachos humanos e; finalmente, o cimo do mastro principal.
A massa sombria desapareceu e com ela uma tripulação de cadáveres
arrastados por um formidável redemoinho…

Virei-me para o Capitão Nemo. Aquele terrível justiceiro,
verdadeiro arcanjo do ódio, continuava a olhar sua obra infernal. Quando
tudo acabou, ele se dirigiu para a porta do seu quarto e entrou. Eu o segui
com o meu olhar.

Por cima do painel do fundo, e por baixo dos retratos dos seus heróis,
vi o retrato de uma mulher ainda jovem e de duas crianças. O Capitão
Nemo olhou-os por instantes, estendeu-lhes os braços e, ajoelhandose,
rompeu em soluços!

Capítulo XXII

Os painéis fecharam-se sobre aquela horrível visão,
mas a luz do salão não foi acesa. No interior do “Nautilus”
reinavam as trevas e o silêncio.

O navio deixou aquele local de desolação, cem pés abaixo
da superfície das águas, com uma rapidez prodigiosa. Para onde
iria? Para o norte, para o sul? Para onde fugiria aquele homem depois de tão
terrível vingança? Voltei ao meu quarto, onde Ned e Conselho
me aguardavam em silêncio.

Senti um incontrolável horror pelo Capitão Nemo. Fosse o que
fosse que tivesse sofrido por causa dos homens, não lhe assistia o
direito de os castigar daquela forma. Tinha-me transformado senão em
cúmplice, pelo menos em testemunha das suas vinganças! Era demasiado!
As onze horas, reapareceu a luz elétrica. Passei ao salão, que
estava deserto. Consultei os diversos instrumentos e verifiquei que o “Nautilus”
fugia para o norte a uma velocidade de vinte e cinco milhas por hora, ora
à superfície, ora a trinta pés de profundidade.

Analisando a carta, vi que passávamos a largo da Mancha e nos dirigíamos
para os mares boreais quase voando sob as águas.

Aquela velocidade, ainda podia observar os esqualos de focinho comprido,
os esqualos-martelo e os cações, que freqüentam aquelas
águas; as grandes águias-do-mar; os hipocampos, semelhantes
aos cavalos do jogo de xadrez; as enguias, serpenteando como fogos de artifício;
exércitos de caranguejos, que fugiam obliquamente, cruzando as patas
sobre a carapaça, finalmente bandos de lobos-do-mar que competiam em
velocidade com o “Nautilus”. Mas estudá-los, classificá-los,
nem pensar nisso.

A noite, já tínhamos percorrido duzentas léguas do
Atlântico. Fez-se escuro e o mar foi invadido pelas trevas até
o aparecimento da lua.

Voltei ao meu quarto, mas não consegui dormir. Tive pesadelos. A
horrível cena da destruição repetia-se no meu espírito.

Quem poderia nos dizer até onde nos levava o “Nautilus”
na bacia do Atlântico Norte? Sempre a grande velocidade, sempre no meio
das brumas hiperbóreas. Teria tocado as extremidades de Sptizberg,
nas costas da Nova Zelândia? Teria percorrido os mares ignorados, o
Mar Branco, o Mar de Kara, o Golfo de Obi, o Arquipélago Larrov e as
praias desconhecidas da costa asiática? Não sabia. Já
não sabia calcular o tempo que ia passando. Os relógios de bordo
tinham sido parados.

Parecia que a noite e o dia, como nas regiões polares, não
seguiam o seu curso normal. Sentia-me arrastado para o domínio do estranho,
onde a imaginação famosa de Edgar Poe se movia tão a
vontade. A cada instante esperava ver, como o fabuloso Gordon Pym, “esse
rosto humano velado, de proporções mais avantajadas do que as
de qualquer habitante da terra, à espreita da catarata que protege
as proximidades do pólo”.

Calculo, mas talvez me engane, que aquela corrida aventurosa do “Nautilus”
se prolongou por quinze ou vinte dias e não sei por quanto tempo continuaria
se não fosse a catástrofe que lhe pôs fim. O Capitão
Nemo desaparecera. O imediato também. Não se via um único
homem da tripulação. O “Nautilus” navegava quase
sempre sob as águas.

Quando subia à superfície para renovar o ar, os alçapões
abriam-se e fechavam-se automaticamente. Já não faziam o ponto
e eu não sabia onde estávamos.

O canadense, esgotado de forças e paciência, também
deixara de aparecer. Conselho não conseguia arrancar-lhe uma palavra
e receava que, num acesso de delírio e dominado por uma terrível
nostalgia, ele se suicidasse. Vigiava-o, portanto, com toda a devoção.

Compreende-se que, nessas condições, a situação
era insustentável.

Uma manhã, não sei de que dia, em que tinha adormecido às
primeiras horas da madrugada, um sono penoso e doentio, ao acordar Ned Land
estava debruçado sobre mim, dizendo-me em voz baixa : – Vamos fugir!
Levantei-me. – Quando? – perguntei.

– Logo à noite! Toda a vigilância parece ter desaparecido a
bordo do “Nautilus”. Dir-se-ia que reina uma assombração
a bordo. Está pronto? – Sim. Onde estamos? – A vista de terra que distingui
esta manhã através das brumas, vinte milhas para leste.

– Que terras são? – Ignoro-o, mas sejam quais forem, vamos fugir
para lá.

– Sim, Ned. Fugiremos esta noite, ainda que o mar nos engula! – O mar está
mau e o vento forte, mas percorrer vinte milhas no bote do “Nautilus”
não me assusta. Transportaremos alguns víveres e algumas garrafas
de água sem que a tripulação o note.

– Segui-lo-ei.

– Se for descoberto, defendo-me e deixo que me matem.

– Morreremos juntos, amigo Ned.

Estávamos decididos a tudo. O canadense saiu. Subi à plataforma,
onde mal me mantinha de pé devido ao ímpeto das ondas. O céu
estava ameaçador, mas uma vez que estávamos à vista de
terra devíamos fugir.

Não podíamos perder um dia, uma hora. Voltei ao salão,
ao mesmo tempo receando e desejando encontrar o Capitão Nemo. Que lhe
diria? Poderia esconder-lhe o horror involuntário que me inspirava?
Não! Era melhor não me encontrar com ele! Era melhor esquecê-lo!
E no entanto! Como foi longo aquele dia, o último que passaria a bordo
do “Nautilus”! Fiquei só. Ned Land e Conselho evitavam
falar-me com receio de se traírem.

As seis horas jantei. Embora não tivesse fome, forcei a ingestão
dos alimentos para não enfraquecer.

As seis horas e meia, Ned Land entrou no quarto e me avisou – Não
nos veremos antes da partida. As dez horas a lua ainda não terá
surgido. Aproveitaremos a obscuridade. Vá ter ao bote. Conselho e eu
esperaremos lá pelo senhor.

Depois o canadense saiu, sem me ter dado tempo de lhe responder. A nossa
sorte estava decidida.

Quis verificar a direção do “Nautilus” e, por
isso fui ao salão. Avançávamos para nor-noroeste, à
grande velocidade, a cinqüenta metros de profundidade, Olhei pela última
vez aquelas maravilhas da natureza, aquelas riquezas da arte encerradas no
museu, aquela coleção sem rival, destinada a desaparecer um
dia no fundo dos mares com aqueles que as tinham reunido. Quis fixar no meu
espírito uma derradeira recordação.

Estive assim uma hora, banhado nos eflúvios do teto luminoso e passando
em revista os tesouros resplandecentes das vitrinas. Depois voltei ao meu
quarto.

Vesti roupas próprias para enfrentar o mar. Juntei os meus apontamentos
e apertei-os preciosamente contra o corpo. O coração batia-me
com força. Não conseguia dominar as pulsações.
A minha perturbação e agitação terme-iam certamente
traído aos olhos do Capitão Nemo.

Que estaria fazendo? Pus-me à escuta à porta do seu quarto.
Ouvi um ruído de passos. O Capitão Nemo estava lá dentro.
Não se tinha deitado. Pensei que ele ia aparecer e perguntar-me por
que íamos fugir! Sentia terríveis sobressaltos e a imaginação
agravava-os. Esta sensação tornou-se tão aguda que eu
me interrogava se não seria preferível entrar no quarto do capitão,
vê-lo cara a cara, e enfrentá-lo olhos nos olhos.

Era uma idéia de louco. Felizmente, contive-me e estendi-me na cama
para acalmar a agitação que me devorava. Os nervos serenaram
um pouco, mas o cérebro, superexcitado, passou em revista toda a minha
existência, a bordo do “Nautilus”, todos os incidentes felizes
e infelizes, as caças submarinas, o Estreito de Torres, os selvagens
da Papuásia, o encalhe, o cemitério de coral, a passagem de
Suez, a ilha Santoria, o mergulhador cretense, a Baía de Vigo, a Atlântida,
o banco de gelo, o Pólo Sul, a clausura nos glaciares, o combate com
os polvos, a tempestade na Gulf Stream, o “Vingador” e, finalmente,
a horrível cena do navio afundado com toda a tripulação!
Todos esses acontecimentos me passaram diante dos olhos, como cenários
de um teatro. Então, o Capitão Nemo crescia desmesuradamente
neste meio estranho. A sua figura acentuava-se e assumia proporções
sobrenaturais. Já não era um semelhante, mas um homem das águas,
um gênio dos mares.

Eram então nove horas e meia. Eu segurava a cabeça com as
duas mãos para impedir que ela rebentasse. Fechei os olhos. Não
queria pensar mais. Ainda meia hora de espera! Meia hora de um pesadelo que
quase me tornava louco! Naquele momento, ouvi os vagos acordes do órgão.
Uma melodia triste e um canto indefinido, verdadeiros queixumes de uma alma
que deseja quebrar os seus elos terrestres. Escutava com toda a atenção,
mal respirando, mergulhado como o Capitão Nemo naqueles êxtases
musicais que o transportavam para além dos limites deste mundo.

De repente, fiquei aterrorizado com um pensamento. O Capitão Nemo
tinha saído do quarto e estava no salão por onde eu tinha de
passar para fugir. Teria de o encontrar uma última vez. Talvez não
me visse! Talvez não me falasse! Um só gesto dele podia destruir-me.

Entretanto, eram quase dez horas. Chegara o momento de deixar o quarto e
juntar-me aos meus companheiros.

Não havia que hesitar, ainda que o capitão se dirigisse a
mim. Abri a porta com precaução. Pareceu-me que ao rodar nos
gonzos fazia um ruído terrível. Talvez aquele barulho só
existisse na minha imaginação! Avancei, deslizando pelos corredores
do “Nautilus”, parando a cada passo para comprimir os batimentos
do meu coração.

Cheguei à porta angular do salão, que abri com suavidade.
Estava tudo mergulhado numa profunda obscuridade e os acordes do órgão
ressoavam fracos. O Capitão Nemo estava lá, mas não me
via. Julgo até que em plena luz não me teria visto. Estava extasiado
com a música.

Arrastei-me sobre o tapete, evitando o mínimo ruído que pudesse
trair a minha presença. Demorei cinco minutos a chegar à porta
que dava para a biblioteca.

Ia abri-la, quando um suspiro do Capitão Nemo me pregou ao chão.

Percebia que se levantava. Cheguei até a vê-lo, por alguns
clarões da biblioteca iluminada que se filtravam para o salão.
Dirigiu-se para mim, de braços cruzados, silencioso, deslizando como
um espectro. Soluça va. Ouvi-o murmurar estas palavras, as últimas
que o ouvi pronunciar.

– Deus todo-poderoso! Basta! Basta! Seria a confissão do remorso
que escapava assim da consciência daquele homem? Desnorteado, precipitei-me
para a biblioteca, depois subi a escada central e, seguindo o corredor superior,
cheguei ao bote, entrando nele pela abertura que já tinha dado passagem
aos meus dois companheiros.

– Partamos! Partamos! – gritei.

– Imediatamente! – respondeu o canadense.

O orifício cavado no casco do “Nautilus” foi previamente
fechado e atarrachado por meio de uma chave inglesa de que Ned Land se tinha
munido. A abertura do bote fechou-se também e o canadense começou
a desapertar as porcas que nos prendiam ainda ao submarino.

De repente, ouviu-se um ruído no interior do navio. Eram vozes que
se respondiam. Que seria? Teriam descoberto a nossa fuga? Senti que Ned Land
me passava um punhal para a mão.

– Sim! – murmurei. – Saberemos morrer! O canadense tinha suspendido o trabalho.
Mas uma palavra vinte vezes repetida, uma palavra terrível, revelou-me
a causa daquela agitação que reinava a bordo do “Nautilus”.
Não era a nós que a tripulação se referia.

– “Maelstrom! Maelstrom”! – gritavam.

O “maelstrom”! Nome mais horrível não podia ter
sido pronunciado na situação em que nos encontrávamos.
Estávamos portanto nas perigosas paragens da costa norueguesa. O “Nautilus”
ia ser arrastado para aquele abismo no momento em que o nosso bote se ia desprender
do seu casco.

Sabe-se que, no momento do fluxo, as águas encerradas entre as ilhas
Feroe e Loffoden são precipitadas com irresistível violência,
formando um turbilhão de que nunca nenhum navio conseguiu escapar.
De todos os pontos do horizonte acorrem vagas monstruosas e formam um redemoinho
precisamente chamado “Umbigo do Oceano”, cujo poder de atração
se estende a uma distância de quinze quilômetros. São então
aspirados, não só navios como baleias e ursos brancos das regiões
boreais. Era para ali que o “Nautilus”, voluntária ou involuntariamente,
tinha sido conduzido pelo seu capitão. Descrevia uma espiral cujo raio
diminuía cada vez mais. Tal como ele, o bote, ainda preso no casco,
era levado com uma velocidade vertiginosa. Sentia-o. Experimentava aquele
estonteamento relativo que sucede a um movimento giratório demasiado
prolongado. Estávamos em pânico, completamente horrorizados,
com a respiração suspensa, paralisados, percorridos por suores
frios como os da agonia. E que barulho à nossa volta! Que rugidos,
repetidos pelo eco a uma distância de várias milhas! Que ruído
faziam as águas atiradas contra as rochas pontiagudas do fundo, onde
até os corpos mais duros se quebram, onde os troncos das árvores
se destroem e fazem “uma manta de pêlos”, segundo a expressão
norueguesa.

Que situação! Éramos furiosamente fustigados! O “Nautilus”
defendiase como um ser humano. Os seus músculos de aço estalavam.
Por vezes erguia-se e nos levava com ele.

– Temos de nos agüentar – disse Ned – e tornar a aparafusar as porcas!
Só continuando presos ao “Nautilus” poderemos ainda nos
salvar.

Mal tinha acabado de falar, ouviu-se um estalido e o bote, arrancado do
seu alvéolo, era lançado como a pedra de uma funda no meio do
turbilhão.

Bati com a cabeça num ferro e, devido ao violento choque, perdi os
sentidos.

CONCLUSÃO

Eis a conclusão desta viagem submarina. O que se passou durante aquela
noite, como o bote escapou do terrível redemoinho do “maelstrom”,
como Ned Land, Conselho e eu saímos do formidável turbilhão,
não sei. Mas quando recuperei os sentidos, estava deitado na cabana
de um pescador das ilhas de Loffoden. Os meus dois companheiros, são
e salvos, estavam junto de mim e davam-me as mãos.

Abraçamo-nos com efusão.

Naquele momento, não podíamos pensar em voltar imediatamente
à França, porque os meios de comunicação entre
a Noruega Setentrional e o sul eram raros. Fui, portanto, forçado a
esperar a passagem de um barco a vapor que faz uma carreira duas vezes por
mês do Cabo Norte.

É, portanto, no meio da boa gente que nos acolheu que revejo o relato
das minhas aventuras. É exato. Não foi omitido um único
fato, não foi exagerado um único pormenor. i; a narração
fiel desta inverossímil expedição num elemento inacessível
ao homem, mas que o progresso transformará um dia em vida livre.

Acreditar-me-ão? Não sei. Mas pouco importa. O que posso afirmar
agora é o meu direito de falar dos mares, sob os quais em menos de
dez meses, percorri vinte mil léguas numa volta ao mundo submarino
que me revelou tantas maravilhas através do Pacifico, do Indico, do
Mar Vermelho, do Mar Mediterrâneo, do Atlântico e dos mares austrais
e boreais! Que teria acontecido ao “Nautilus”? Teria resistido
às garras do “maelstrom”? Estaria o Capitão Nemo
ainda vivo? Continuaria as suas terríveis represálias sob o
oceano ou teria parado diante daquela última hecatombe? Será
que as águas transportarão um dia para a terra o manuscrito
que encerra a história da sua vida? Saberei algum dia o nome daquele
homem? Através da nacionalidade do navio desaparecido, seria possível
descobrir a nacionalidade do Capitão Nemo? Assim o espero. Espero também
que o seu potente navio tenha vencido o mar na sua fúria mais terrível
e que o “Nautilus” tenha sobrevivido onde tantos outros navios
pereceram! Se assim for, se o Capitão Nemo continua a habitar o oceano,
sua pátria adotiva, oxalá o ódio se acalme naquele coração
feroz! Que a contemplação de tantas maravilhas lhe extinga o
desejo de vingança! Que se apague o justiceiro e que o sábio
continue a pacífica exploração dos mares! Se o seu destino
é estranho, também é sublime. Não o compreendi
por mim mesmo? Não vivi dez meses dessa existência sobrenatural?
Assim, à pergunta feita há seis mil anos pelo Eclesiastes: “Quem
jamais pôde sondar as profundezas do abismo?” apenas dois homens,
entre todos, têm o direito de responder: o Capitão Nemo e eu.

FIM

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