Carta de um pai de família ao doutor chefe de polícia

Lima Barreto

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Senhor doutor chefe de Polícia. Permita vossa excelência que um elho chefe de família, pai de três filhas moças e dois rapazes, se dirija a vossa excelência, no intuito de esclarecer o espírito de vossa excelência que parece só ver as coisas por uma face só.

“Moro excelentíssimo doutor, há quase trinta anos na Rua Joaquim Silva, aí nas fraldas de Santa Teresa, rua plácida, sossegada, que vossa excelência talvez não conheça como bom chefe de polícia que é do Rio de Janeiro, mas natural da Bahia.

“Não digo tal coisa para censurar vossa excelência, mas simplesmente para lembrar que os antigos chefes de polícia da minha leal e heróica cidade conheciam todos os seus meandros, becos, bibocas, etc. Os antecessores de vossa excelência, como o Vidigal, o dos granadeiros, e o Aragão, o do sino de recolher honestas, conheciam o Rio como qualquer malandro; mas, desde que inventaram a polícia científica, por sinal que fez aumentar os crimes misteriosos, desde en­tão, dizia eu, os chefes ficaram dispensados de conhecer o Rio de Janeiro, inclusive vossa excelência.

“Moro, ia dizendo, na Rua Joaquim Silva há mais de vinte anos, com minha família, em casa própria, que foi a do pai de minha mulher e é agora nossa. Confesso a vossa excelência que me casei, contando (é preciso não esquecer a mulher) com a casa, pois naquele tempo era amanuense e sem a casa não poderia constituir família. De uma casa dessas, boa, sólida, ampla, arejada, cheia de recordações de família, a gente, há de concordar vossa excelência, não se muda assim. Ela faz parte da família, se não é a própria família. vossa excelência que é lido em direito, será certamente lido em sociólogos e sabe perfeitamente que quase todos cogitam na posse normal do domicílio familiar, coisa que consegui graças à minha prudência e às economias do madeireiro português, pai da minha mulher. Não posso, nem me devo mudar, isto diante de todas as leis que não são votadas pelo congresso.

“Acontece excelência, que de uns dias a esta parte vie­ram para a minha vizinhança umas ?moças’ que não são bem parecidas com as minhas filhas nem com as primas delas. Eu conheço mal essas coisas da vida do Rio, e nem por isso quero ser chefe de polícia; e andei indagando de que pessoas se tratava e soube que eram ?meninas’, moradoras nas ruas novas, que a polícia estava tocando de lá, por causa das fa­mílias.

“Mas, doutor, eu não tenho também família? Porque é que só as famílias daquelas ruas não podem ter semelhante vizinhança e eu posso?

“Doutor: eu não tenho nenhuma ojeriza a essas ?senhoras’, embora nunca me tivesse metido nessas coisas. Casei-me cedo e tenho sempre labutado para a família, desde amanuense até agora que sou chefe de seção; mas não compreendo que a polícia e a justiça persigam certos entes por crime que não está em lei. De resto, se há crime, há pena e a pena não pode ser essa de domicílio coacto ou de interdição de residência que não estão no Código.

“A polícia na lei conhece ladrão, gatuno, cáften, assas­sino, mas não conhece semelhantes senhoras.

“Não quero discutir com vossa excelência tais coisas. Sei que vossa excelência é o doctor angelicus das escolas da Bahia; mas falo sempre como Sancho Pança e julgo como ele na ilha da Baratária.

“Se as famílias da Rua Mem de Sá, não podem ter por vizinhas tais ?meninas’, muito menos as da Rua Joaquim Silva.

“Demais, quando se fez a referida avenida, elas logo tomaram lugar. Há a favor delas o tal uti possidetis,o que não acontece com a minha triste rua. Vossa excelência deve meditar bem sobre o assunto, para não classificar as famílias da Rua Joaquim Silva abaixo das de Mem de Sá. Não há hierarquia familiar na nossa sociedade. Não é doutor? De vossa excelência etc. Augusto Soromenho Albernaz, chefe de seção da Secretaria do Fomento.

“P. S. – Quando acabava de escrever esta a vossa excelência vieram oferecer-me 500$000 de aluguel pela minha casa. Está aí em que deu o ato de vossa excelência: valo­rizou as casas da Rua Joaquim Silva e naturalmente desva­lorizou as da Avenida Mem de Sá. Não aceitei e espero que os tribunais superiores dêem a todos o direito de morar onde bem lhes parecer conveniente. O mesmo”.

Conforme o original.

Careta, Rio, 24-4-1915

 

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