Clara dos Anjos

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Lima Barreto

I

O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas;
mas gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento
que já foi muito estimado em outras épocas, não o sendo
atualmente como outrora. Os velhos do Rio de Janeiro, ainda hoje, se lembram
do famoso Calado e das suas polcas, uma das quais – "Cruzes, minha prima!"
– é uma lembrança emocionante para os cariocas que estão
a roçar pelos setenta. De uns tempos a esta parte, porém, a
flauta caiu de importância, e só um único flautista dos
nossos dias conseguiu, por instantes, reabilitar o mavioso instrumento – delícia,
que foi, dos nossos pais e avós. Quero falar do Patápio Silva.
Com a morte dele a flauta voltou a ocupar um lugar secundário como
instrumento musical, a que os doutores em música, quer executantes,
quer os críticos eruditos, não dão nenhuma importância.
Voltou a ser novamente plebeu.

Apesar disso, na sua simplicidade de nascimento, origem e condição,
Joaquim dos Anjos acreditava-se músico de certa ordem, pois, além
de tocar flauta, compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas.

Uma polca sua – "Siri sem unha" – e uma valsa – "Mágoas
do coração" – tiveram algum sucesso, a ponto de vender
ele a propriedade de cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa
de músicas e pianos da rua do Ouvidor.

O seu saber musical era fraco; adivinhava mais do que empregava noções
teóricas que tivesse estudado.

Aprendeu a "artinha" musical na terra do seu nascimento, nos arredores
de Diamantina, em cujas festas de igreja a sua flauta brilhara, e era tido
por muitos como o primeiro flautista do lugar. Embora gozando desta fama animadora,
nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais. Ficara na "artinha"
de Francisco Manuel, que sabia de cor; mas não saíra dela, para
ir além.

Pouco ambicioso em musica, ele o era também nas demais manifestações
de sua vida. Desgostoso com a existência medíocre na sua pequena
cidade natal, um belo dia, aí pelos seus vinte e dois anos, aceitara
o convite de um engenheiro inglês que, por aquelas bandas, andava, a
explorar terras e terrenos diamantíferos, Todos julgavam que o "seu"
mister andasse fazendo isso; a verdade, porém, é que o sábio
inglês fazia estudos desinteressados, Fazia puras e platônicas
pesquisas geológicas e mineralógicas. O diamante não
era o fim dos seus trabalhos; mas o povo, que teimava em ver, pelos arredores
da cidade, o ventre da terra cheio de diamantes, não podia supor que
um inglês que levava a catar pedras, pela manhã e até
à noite, tomando notas e com uns instrumentos rebarbativos, não
estivesse com tais gatimonhas a caçar diamantes. Não havia meio
do mister convencer à simplória gente do lugar que ele não
queria saber de diamantes; e dia não havia em que o súdito de
Sua Graciosa Majestade não recebesse uma proposta de venda de terrenos,
em que forçosamente havia de existir a preciosa pedra abundantemente,
por tais ou quais indícios, seguros aos olhos de "garimpeiro"
experimentado.

Logo ao chegar o geólogo, Joaquim empregou-se como seu pajem, guia,
encaixotador, servente, etc., e tanto foi obediente e serviu a contento o
sábio, que este, ao dar por terminadas as suas pesquisas, convidou-o
a vir ao Rio de Janeiro, encarregando-se de movimentar a sua pedregulhenta
ou pedregosa bagagem, até que ela fosse posta a bordo, O sábio
comprometeu-se a pagar-lhe a estadia no Rio, o que fez, até embarcar-se
para a Europa. Deu-lhe dinheiro para voltar, um chapéu de cortiça,
umas perneiras, um cachimbo e uma lata de fumo "Navy Cut"; Joaquim
já se havia habituado ao Rio de Janeiro, no mês e pouco em que
estivera aqui, a serviço do Senhor John Herbert Brown, da Real Sociedade
de Londres; e resolveu não voltar para Diamantina. Vendeu as perneiras
num belchior e o chapéu de cortiça também; e pôs-se
a fumar o saboroso fumo inglês no cachimbo que lhe fora ofertado, passeando
pelo Rio, enquanto teve dinheiro. Quando acabou, procurou conhecidos que já
tinha; e, em breve, entrou para o serviço de empregado de escritório
de um grande advogado, seu patrício, isto é, mineiro.

—Não te darei coisa que valha a pena – disse-lhe logo o doutor
-, mas aqui irás travando conhecimentos e podes arranjar coisa melhor
mais tarde.

Viu bem que o "doutor" lhe falava a verdade, e toda sua ambição
se cifrou em obter um pequeno emprego público que lhe desse direito
a aposentadoria e a montepio, para a família que ia fundar. Conseguira,
ao fim de dois anos de trabalho, aquele de carteiro, havia bem quatro lustros,
com o qual estava muito contente e satisfeito da vida, tanto mais que merecera
sucessivas promoções.

Casara meses depois de nomeado; e, tendo morrido sua mãe, em Diamantina,
como filho único, herdara-lhe a casa e umas poucas terras em Inhaí,
uma freguesia daquela cidade mineira. Vendeu a modesta herança e tratou
de adquirir aquela casita nos subúrbios em que ainda morava e era dele.
O seu preço fora módico, mas, mesmo assim, o dinheiro da herança
não chegara, e pagou o resto em prestações. Agora, porém,
e mesmo há vários anos, estava em plena posse do seu "buraco",
como ele chamava a sua humilde casucha. Era simples. Tinha dois quartos; um
que dava para a sala de visitas e outro para a sala de jantar, aquele ficava
à direita e este à esquerda de quem entrava nela. À de
visitas, seguia-se imediatamente a sala de jantar. Correspondendo a pouco
mais de um terço da largura total da casa, havia, nos fundos, um puxadito,
onde estavam a cozinha e uma despensa minúscula. Comunicava-se esse
puxadito com a sala de jantar por uma porta; e a despensa, à esquerda,
apertava o puxado, a jeito de um curto corredor, até à cozinha,
que se alargava em toda a largura dele. A porta que o ligava à sala
de jantar ficava bem junto daquela, por onde se ia dessa sala para o quintal.
Era assim o plano da propriedade de Joaquim dos Anjos.

Fora do corpo da casa, existia um barracão para banheiro, tanque,
etc., e o quintal era de superfície razoável, onde cresciam
goiabeiras, dois pés ou três de laranjeiras, um de limão
galego, mamoeiros e um grande tamarineiro copado, bem aos fundos.

A rua em que estava situada a sua casa desenvolvia-se no plano e, quando
chovia, encharcava e ficava que nem um pântano; entretanto, era povoada
e se fazia caminho obrigado das margens da Central para a longínqua
e habitada freguesia de Inhaúma. Carroções, carros, autocaminhões
que, quase diariamente, andam por aquelas bandas a suprir os retalhistas de
gêneros que os atacadistas lhes fornecem, percorriam-na do começo
ao fim, indicando que tal via pública devia merecer mais atenção
da edilidade.

Era uma rua sossegada e toda ela, ou quase toda, edificada ao gosto antigo
do subúrbio, ao gosto do chalet. Estava povoada e edificada quase inteiramente,
de um lado e de outro. Dela, descortinava-se um lindo panorama de montanhas
de cores cambiantes, conforme fosse a hora do dia e o estado da atmosfera.
Ficavam-lhe muito distantes, mas pareciam cercá-la, e ela, a rua, ser
o eixo daquele redondel de montes, em que, pelo dia em fora, pareciam ser
iluminados por projeções luminosas, revestindo-se de toda a
gama do verde, de tons azuis; e, pelo crepúsculo, ficavam cobertos
de ouro e púrpura.

Além dos clássicos chalets suburbanos, encontravam-se outros
tipos de casas. Algumas relativamente recentes, uns certos requififes e galanteios
modernos, para lhes encobrir a estreiteza dos cômodos e justificar o
exagero dos aluguéis. Havia, porém, uma casa digna de ser vista.
Erguia-se quase ao centro de uma grande chácara e era a característica
das casas das velhas chácaras dos outros tempos; longa fachada, pouco
fundo, teto acaçapado, forrada de azulejos até a metade do pé-direito,
Um tanto feia, é verdade, que ela era, sem garridice; mas casando-se
perfeitamente com as mangueiras, com as robustas jaqueiras e os coqueiros
petulantes e com todas aquelas grandes e pequenas árvores avelhantadas,
que, talvez, os que as plantaram não as tivessem visto frutificar.
Por entre elas, onde se podiam ver vestígios do antigo jardim, havia
estatuetas de louça portuguesa, com letreiros azuis. Uma era a "Primavera";
outra era a "Aurora", quase todas, porém, estavam mutiladas;
umas, num braço; outras não tinham cabeça, e ainda outras
jaziam no chão, derrubadas dos seus toscos suportes.

Os muros que cercavam a casa, a razoável distância, e mesmo
aquele em que se apoiava o gradil de ferro da frente do imóvel, estavam
cobertos de hera, que os envolvia em todo ou em parte, não como um
sudário, mas como um severo, cerimonioso e vivo manto de outras épocas
e de outras gentes, a provocar saudades e evocações, animando
a ruína. Hoje, é raro ver-se, no Rio de Janeiro, um muro coberto
de hera; entretanto, há trinta anos, nas Laranjeiras, na rua Conde
de Bonfim, no Rio Comprido, no Andaraí, no Engenho Novo, enfim, em
todos os bairros que foram antigamente estações de repouso e
prazer, encontravam-se, a cada passo, longos muros cobertos de hera, exalando
melancolia e sugerindo recordações.

Joaquim dos Anjos ainda conhecera a "chácara" habitada pelos
proprietários respectivos; mas, ultimamente, eles se tinham retirado
para fora e alugado aos "bíblias", Os seus cânticos,
aos sábados (era o seu dia da semana de descanso sagrado, entoados
quase de hora em hora, enchiam a redondeza e punham na sua audiência
uma soturna sombra de misticismo. O povo não os via com hostilidade,
mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas dos arredores freqüentavam-nos,
já por encontrar nisso um sinal de superioridade intelectual sobre
os seus iguais, já por procurarem, em outra casa religiosa que não
a tradicional, lenitivo para suas pobres almas alanceadas, além das
dores que seguem toda e qualquer existência humana.

Alguns, entre os quais o João Pintor, justificavam freqüentar
os "bíblias", porque estes – dizia ele – não eram
como os padres, que, para tudo, querem dinheiro.

Esse João Pintor trabalhava nas oficinas do Engenho de Dentro, no
oficio de que proviera o seu apelido. Era um preto retinto, grossos lábios,
malares proeminentes, testa curta, dentes muito bons e muito claros, longos
braços, manoplas enormes, longas pernas e uns tais pés, que
não havia calçado, nas sapatarias, que coubessem neles. Mandava-os
fazer de encomenda; mas assim mesmo, mal os punha hoje, no dia seguinte tinha
que os retalhar a navalha, se queria dar alguns passos e manquejar menos até
o "Mafuá".

Dizia o "Turuna", adepto do padre Sodré, capelão
do Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, que João Pintor se
metera com os "bíblias", porque estes lhe haviam dado um
quarto, na chácara, para ele morar de graça, com certas obrigações
pequenas a cumprir. João Pintor contestava com veemência; o certo,
porém, é que ele morava na "chácara".

Chefiava os protestantes um americano, Mr. Quick Shays, homem tenaz e cheio
de uma eloqüência bíblica, que devia ser magnífica
em inglês; mas que, no seu duvidoso português, se tornava simplesmente
pitoresca. Era Shays Quick ou Quick Shays daquela raça curiosa de yankees
fundadores de novas seitas cristãs. De quando em quando, um cidadão
protestante dessa raça que deseja a felicidade de nós outros,
na terra e no céu, à luz de uma sua interpretação
de um ou mais versículos da Bíblia, funda uma novíssima
seita, põe-se a propagá-la e logo encontra dedicados adeptos,
os quais não sabem muito bem por que foram para tal novíssima
religiãozinha e qual a diferença que há entre esta e
a de que vieram.

Lá, na sua terra, como aqui, esses pequenos luteros fazem prosélitos;
lá, mais do que aqui. Mr. Shays obtinha, nas vizinhanças do
carteiro Joaquim dos Anjos, não prosélitos, mas muitos ouvintes,
dos quais uma quinta parte afinal se convertia. Quando se tratava de iniciar
uma turma, os noviços dormiam em barracas de campanha, erguidas ao
redor da casa, nos vãos existentes entre as velhas árvores da
chácara, maltratada e desprezada.

As cerimônias preparatórias à iniciação,
na religião de Mr. Quick Shays, duravam uma semana, farta de jejuns
e cânticos religiosos, cheios de unção e apelos contrictos
a Deus, Nosso Pai; e a velha propriedade de recreio, com as barracas militares
e salmodias continuas, adquiria um aspecto esquisito e imprevisto, o de convento
ao ar livre, mascarado por uma rebarbativa carranca de acampamento guerreiro.
Dir-se-ia um destacamento de uma ordem de cavalaria monástico-guerreira
que se preparava para combater o turco ou o mouro infiel, na Palestina ou
em Marrocos.

Da redondeza, não eram muitos os adeptos ortodoxos à doutrinação
religiosa de Mr. Shays; entretanto, além das espécies que já
foram aludidas, havia as daqueles que assistiam às suas prédicas,
por mera curiosidade ou para deliciar-se com a oratória do pastor americano.
O templo estava sempre cheio, nos seus dias solenes.

Os freqüentadores dessa ou daquela natureza lá iam sem nenhuma
repugnância, pois é próprio do nosso pequeno povo fazer
uma extravagante amálgama de religiões e crenças de toda
a sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes e momentâneas
agruras de sua existência. Se se trata de afastar atrasos de vida, apela
para a feitiçaria; se se trata de curar uma moléstia tenaz e
renitente, procura o espírita; mas não falem à nossa
gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico,
porque não há, dentre ela, quem não se zangue: "Está
doido! Meu filho ficar pagão! Deus me defenda!

Joaquim dos Anjos não freqüentava Mr. Shays nem o reverendo padre
Sodré, do Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, pois, apesar
de ter nascido numa cidade embalsamada de incenso e plena de ecos sonoros
de litanias e o continuo repicar de sinos festivos, não era animado
de grande fervor religioso. Sua mulher, Dona Engrácia, porém,
o era em extremo, embora fosse pouco à igreja, devido às suas
obrigações caseiras. Ambos, porém, estavam de acordo
num ponto religioso católico-romano: batizar quanto antes os filhos,
na Igreja Católica Apostólica Romana. Foi assim que procederam,
não só com a Clara, o único filho sobrevivente, como
com os demais, que haviam morrido.

Eram casados há quase vinte anos, e esta Clara, sua filha, sendo o
segundo filho do casal, orçava pelos seus dezessete anos.

Era tratada pelos pais com muito desvelo, recato e carinho; e, a não
ser com a mãe ou pai, só saia com Dona Margarida, uma viúva
muito séria, que morava nas vizinhanças e ensinava a Clara bordados
e costuras.

No mais, isto era raro e só acontecia aos domingos, Clara deixava,
às vezes, a casa paterna, para ir ao cinema do Méier ou Engenho
de Dentro, quando a sua professora de costuras se prestava a acompanhá-la,
porque Joaquim não se prestava, pois não gostava de sair aos
domingos, dia escolhido a fim de se entregar ao seu prazer predileto de jogar
o solo com os companheiros habituais; e sua mulher não só não
gostava de sair aos domingos, como em outro dia da semana qualquer. Era sedentária
e caseira.

Os companheiros habituais do solo com Joaquim eram quase sempre estes dois:
o Senhor Antônio da Silva Marramaque, seu compadre, pois era padrinho
de sua filha única; e o Senhor Eduardo Lafões. Não variavam.
Todos os domingos, ai pelas nove horas, lá batiam à porteira
da casa do "postal"; não entravam no corpo da habitação
e, pelo corredor que mediava entre ela e a vizinha, dirigiam-se ao grande
tamarineiro, aos fundos do quintal, debaixo do qual estava armada a mesa,
com os seus tentos, vermelhos e pupilas negras, de grão de aroeira,
o seu baralho, os seus pires, um cálice e um litro de parati, ao centro,
muito pimpão e arrogante, impondo um cínico desafio às
conveniências protocolares.

Joaquim dos Anjos já esperava, lendo o jornal de sua predileção.
Mal chegavam, trocavam algumas palavras, sentavam-se, "molhavam a palavra",
no litro de cachaça, e punham-se a jogar. Ficha a vintém.

Horas e horas, esperando o "ajantarado", que quase sempre ia para
a mesa à hora do jantar habitual, deixavam-se ficar jogando, bebericando
aguardente, sem dar uma vista d"olhos sobre as montanhas circundantes,
nuas e pedroucentas, que recortavam o alto horizonte.

De quando em quando, mas sem grandes espaços, Joaquim gritava para
a cozinha:

—Clara! Engrácia! Café!

De lá, respondiam, com algum amuo na voz:

—Já vai!

É que as duas mulheres, para preparar o café, tinham que retirar,
de um dos dois fogareiros de carvão vegetal, uma panela do "ajantarado"
que aprontavam, a fim de aquecer o café reclamado; e isto lhes atrasava
o jantar.

Enquanto esperavam o café, os três suspendiam o jogo e conversavam
um pouco. Marramaque era e sempre havia sido mais ou menos político,
a seu modo.

Embora atualmente fosse um simples contínuo de ministério,
em que não fazia o serviço respectivo, nem outro qualquer, devido
a seu estado de invalidez, de semi-aleijado e semi-paralítico do lado
esquerdo, tinha, entretanto, pertencido a uma modesta roda de boêmios
literatos e poetas, na qual, a par da poesia e de coisas de literatura, se
discutia muita política, hábito que lhe ficou. Quando veio a
revolta de 93, a roda se dissolveu. Uns foram acompanhar o Almirante Custódio;
e outros, o Marechal Floriano. Marramaque foi um destes e até obteve
as honras de alferes do Exército. Por ai é que teve a primeira
congestão, isto é, nos fins do governo do marechal, em 94.

A sua roda não tinha ninguém de destaque, mas alguns eram estimáveis.
Mesmo alguns de rodas mais cotadas procuravam a dele.

Quando narrava episódios dessa parte de sua vida, tinha grande garbo
e orgulho em dizer que havia conhecido Paula Nei e se dava com Luís
Murat. Não mentia, enquanto não confessasse a todos em que qualidade
fizera parte do grupo literário. Os que o conheciam, daquela época,
não ocultavam o título com que partilhava a honra de ser membro
de um cenáculo poético. Tendo tentado versejar, o seu bom senso
e a integridade de seu caráter fizeram-lhe ver logo que não
dava para a coisa. Abandonou e cultivou as charadas, os logogrifos, etc. Ficou
sendo um hábil charadista e, como tal, figurava quase sempre como redator
ou colaborador dos jornais, que os seus companheiros e amigos de boêmia
literária, poetas e literatos, improvisavam do pé para a mão,
quase sempre sem dinheiro para um terno novo. Envelhecendo e ficando semi-inutilizado,
depois de dois ataques de apoplexia, foi obrigado a aceitar aquele humilde
lugar de contínuo, para ter com que viver. Os seus méritos e
saber, porém, não estavam muito acima do cargo. Aprendera muita
coisa de ouvido e, de ouvido, falava de muitas delas. Tivera, em moço,
uma boa convivência. Estava ai o segredo de sua ilustração.
Marramaque, apesar de tudo, do seu estado de saúde, da sua dificuldade
de locomover-se, não deixava a mania inócua da política
e ia votar, com risco de se ver envolvido num barulho de sufrágio universal,
puxado a navalha, rabo-de-arraia, cabeçadas, tiros de revólver
e outras eloqüentes manifestações eleitorais, das quais,
em razão do seu precário estado de pernas, não poderia
fugir com segurança e a necessária rapidez.

Tendo vivido em rodas de gente fina – como já vimos -, e não
pela fortuna, mas pela educação e instrução; tendo
sonhado outro destino que não o que tivera; acrescendo a tudo isto
o seu aleijamento – Marramaque era naturalmente azedo e oposicionista, Naquele
domingo, ele o tirara para falar mal do doutor Saulo de Clapin.

—Vocês vão ver: o Clapin está aí, está
morto na política, Teve o topete de ir contra a corrente popular, espetou-se.
Quem ganhou foi o barbudo Melo Brandão, esse judeu mestiçado.
É um safadão, mas é mestre na política.

Joaquim se interessava mediocremente por essa história de política:
mas Lafões tinha as suas paixões no negócio e acudiu:

—Qual o quê! Então você pensa, Marramaque, que um
homem inteligente, tão superior, como o doutor Clapin, vai se deixar
embrulhar por um trapaceiro de atas e coisas piores como o Melo Brandão!
Qual o quê! Demais, o operariado…

—O que é que ele tem feito pelo operariado? – pergunta Marramaque.

—Muito.

Lafões não era operário, como se poderia pensar. Era
guarda das obras públicas. Português de nascimento, viera menino
para o Brasil, isto há mais de quarenta anos; entrara muito cedo para
a repartição de águas da cidade, chamara a atenção
dos seus superiores pelo rigor de sua conduta; e, aos poucos, fizeram-no chegar
a seu generalato de guarda de encanamentos e de torneiras que vazassem nos
tanques de lavagem das casas particulares. Vivia muito contente com a sua
posição, a sua portaria de nomeação, a sua carta
de naturalização, e, talvez, não estivesse tanto, se
tivesse enriquecido de centenas de contos de réis. Assim tudo fazia
crer, pois era de ver a importância ingênua do campônio
que se faz qualquer coisa do Estado, e a solenidade de maneiras com que ele
atravessava aquelas virtuais ruas dos subúrbios.

Trazia sempre a farda de cáqui e o boné com as iniciais da
repartição; um chapéu-de-sol de cabo, que, quando não
o trazia aberto, a protegê-lo contra os raios do sol, manejava como
a bengala de um vigário de aldeia portuguesa, furando o chão
e levantando-o, para pousá-lo de novo, à medida que executava
as suas longas passadas.

Lafões respondeu assim a Marramaque:

—Muito. Em todas as comissões por que o doutor Clapin tem passado,
sempre procura dar trabalho ao maior número de operários.

—Grande serviço! Arrebenta as verbas; no fim de dois ou três
meses, despede mais da metade… Isto não se chama proteger; chama-se
engazopar.

—Seja, mas ele ainda faz isso, e os outros? Não fazem nada.
De resto, é um homem democrata. Desde muito que se bate pela igualdade
entre os servidores da nação. Não quer distinção
entre funcionários públicos e jornaleiros. Quem serve à
nação, seja em que serviço for, é funcionário
público.

—Honrarias! Isto não enche barriga! Por que ele não trabalha
para diminuir a carestia da vida e dos aluguéis de casa?

—Homessa, Marramaque! Você não leu o projeto dele sobre
construção de casas para famílias pobres e modestas?
Você não leu, Joaquim?

O carteiro, que vinha ouvindo a conversa sem dar opinião, à
interpelação de Lafões, interveio:

—Li, de fato; mas li também que ele havia aumentado os aluguéis
de suas casas, que são inúmeras, de quarenta por cento.

—É isto! – acudiu com pressa Marramaque. – Clapin é muito
generoso com o dinheiro dos outros, do Estado. Com o dele, é de uma
sovinice de judeu e de uma ganância de agiota. Jesuíta!

Felizmente Clara chegava com o café. A conversa apaixonada cessava,
e os dois convivas de Joaquim recebiam os cumprimentos da menina:

—A bênção, meu padrinho; bom dia, seu Lafões.

Eles respondiam e punham-se a pilheriar com Clara.

Dizia Marramaque:

—Então, minha afilhada, quando se casa?

—Nem penso nisso – respondia ela, fazendo um trejeito faceiro.

—Qual! – observa Lafões. – A menina já tem algum de olho.
Olhe, no dia dos seus anos… É verdade, Joaquim: uma coisa.

O carteiro descansou a xícara e perguntou:

—O que é?

—Queria pedir a você autorização para cá
trazer, no dia dos anos, aqui da menina, um mestre do violão e da modinha.

Clara não se conteve e perguntou apressada:

—Quem é?

Lafões respondeu:

—É o Cassi. A menina…

O guarda das obras públicas não pôde acabar a frase.
Marramaque interrompeu-o furioso:

—Você dá-se com semelhante pústula? É um
sujeito que não pode entrar em casa de família. Na minha, pelo
menos…

—Por quê? – indagou o dono da casa.

—Eu direi, daqui a pouco; eu direi por quê – fez Marramaque transtornado.

Acabaram de tomar café. Clara afastou-se com a bandeja e as xícaras,
cheia de uma forte, tenaz e malsã curiosidade:

—Quem seria esse Cassi?

II

Quem seria esse Cassi? Quem era Cassi?

Cassi Jones de Azevedo era filho legítimo de Manuel Borges de Azevedo
e Salustiana Baeta de Azevedo. O Jones é que ninguém sabia onde
ele o fora buscar, mas usava-o, desde os vinte e um anos, talvez, conforme
explicavam alguns, por achar bonito o apelido inglês. O certo, porém,
não era isso. A mãe, nas suas crises de vaidade, dizia-se descendente
de um fantástico Lord Jones, que fora cônsul da Inglaterra, em
Santa Catarina; e o filho julgou de bom gosto britanizar a firma com o nome
do seu problemático e fidalgo avô.

Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante,
de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como consumado "modinhoso",
além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente
ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão,
nem outro qualquer traço de capadócio, Vestia-se seriamente,
segundo as modas da rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé
suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros, que
teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo "Brandão",
das margens da Central, que lhe talhava as roupas. A única pelintragem,
adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado
de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente
ao meio – a famosa "pastinha". Não usava topete, nem bigode.
O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos
por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as damas com o seu
irresistível violão.

Era bem misterioso esse seu violão; era bem um elixir ou talismã
de amor. Fosse ele ou fosse o violão, fossem ambos conjuntamente, o
certo é que, no seu ativo, o Senhor Cassi Jones, de tão pouca
idade, relativamente, contava perto de dez defloramentos e a sedução
de muito maior número de senhoras casadas.

Todas essas proezas eram quase sempre seguidas de escândalo, nos jornais,
nas delegacias, nas pretorias; mas ele, pela boca dos seus advogados, injuriando
as suas vitimas, empregando os mais ignóbeis meios da prova de sua
inocência, no ato incriminado, conseguia livrar-se do casamento forçado
ou de alguns anos na correção.

Quando a polícia ou os responsáveis pelas vítimas, pais,
irmãos, tutores, punham-se em campo para processá-lo convenientemente,
ele corria à mãe, Dona Salustiana, chorando e jurando a sua
inocência, asseverando que a tal fulana – qualquer das vítimas
– já estava perdida, por esse ou por aquele; que fora uma cilada que
lhe armaram, para encobrir um mal feito por outrem, e por o saberem de boa
família, etc., etc.

Em geral, as moças que ele desonrava eram de humilde condição
e de todas as cores. Não escolhia. A questão é que não
houvesse ninguém, na parentela delas, capaz de vencer a influência
do pai, mediante solicitações maternas.

A mãe recebia-lhe a confissão, mas não acreditava; entretanto,
como tinha as suas presunções fidalgas, repugnava-lhe ver o
filho casado com uma criada preta, ou com uma pobre mulata costureira, ou
com uma moça branca lavadeira e analfabeta.

Graças a esses seus preconceitos de fidalguia e alta estirpe, não
trepidava em ir empenhar-se com o marido, a fim de livrar o filho da cadeia
ou do casamento pela policia.

—Mas é a sexta moça, Salustiana!

—Qual o quê! Calunia-se muito…

—Qual calúnia, qual nada! Este rapaz é um perverso, é
sem-vergonha. Eu sei o nome das outras. Olhe: a Inês, aquela crioulinha
que foi nossa copeira e criada por nós; a Luísa, que era empregada
do doutor Camacho; a Santinha, que ajudava a mãe a costurar para fora
e morava na rua Valentim; a Bernarda, que trabalhava no "Joie de Vivre"…

—Mas tudo isso já passou, Maneco. Você quer que o seu
filho vá para a cadeia? Porque, casar com essas biraias, ele não
se casa. Eu não quero.

—Era preferível que ele fosse para a cadeia, ao menos não
estava desmoralizando todo o dia a casa.

—Pois você faça o que quiser. Se você não
der os passos, eu dou. Vou procurar o meu irmão, o doutor Baeta Picanço
– rematava a mulher com orgulho.

O pai desse Cassi era verdadeiramente um homem sério, Estreito de
idéias, familiarizado no emprego público, que, há cerca
de trinta anos, exercia, ele tinha profundos sentimentos morais, que lhe guiavam
a conduta no seu comércio com os filhos. Nunca fora afetuoso: evitava
até todas as exibições e exageros sentimentais; era,
porém, capaz de estimá-los profundamente, amá-los, sem
abdicar, entretanto, do dever paterno de julgá-los lucidamente e puni-los
consoante a natureza das suas respectivas faltas.

Era homem de pouca altura, trazia a cabeça sempre erguida, testa reta
e alta, queixo forte e largo, olhar firme, debaixo do seu pince-nez de aros
de ouro. Conquanto alguma coisa obeso, era deveras um velho simpático
e respeitável; e, apesar da sua imponência de antigo burocrata,
dos seus modos um tanto ríspidos e secos, todos o estimavam na proporção
em que seu filho era desprezado e odiado. Tinham até pena dele, confrontando
a severidade de sua vida com a crapulice de Cassi.

Sua mulher não era lá muito querida, nem prezada. Tinha fumaças
de grande dama, de ser muito superior às pessoas de sua vizinhança
e mesmo às dos seus conhecimentos. O seu orgulho provinha de duas fontes:
a primeira, por ter um irmão médico do Exército, com
o posto de capitão; e a segunda, por ter andado no Colégio das
Irmãs de Caridade.

Quando se lhe perguntava – seu pai, o que era? – Dona Salustiana respondia:
era do Exército; e torcia a conversa. Não era seu pai exatamente
do Exército. Fora simplesmente escriturário do Arsenal de Guerra.
Com muito sacrifício e graças a uma pequena fortuna que lhe
viera ter por acaso às mãos, pudera educar melhorzinho os dois
únicos filhos que tivera.

A vaidade de Dona Salustiana não deixava que ela confessasse isso;
e tanto era contagioso esse seu sentimento, no que tocava a seu pai, que as
suas duas filhas, Catarina e Irene, sempre se referiam ao avô, como
se fosse de verdade um general do Paraguai. Eram menos vaidosas do que a mãe;
mas muito mais ambiciosas, em matéria de casamento. Dona Salustiana
casara-se com o Manuel, quando este ainda era praticante e revia provas, à
noite, nos jornais, para acudir às despesas da casa. Catarina e Irene
sonhavam casar com doutores, bem empregados ou ricos, porque elas se julgavam
prestes a se "formar", a primeira em música e piano, pelo
trampolineiro Instituto Nacional de Música; e a segunda, pela indigesta
Escola Normal desta Capital.

Escusado é dizer que ambas tinham um grande desprezo pelo irmão,
não só pela baixeza de sua conduta moral – o que era merecido
– mas, também, pela sua ignorância cavalar e absoluta falta de
maneiras e modos educados.

Em começo, o pai consentia, apesar de tudo, que Cassi, o ínclito
Cassi, tomasse parte na mesa familiar. Ninguém lhe dirigia a palavra,
a não ser a mãe, As moças conversavam com o pai ou com
a mãe, ou entre si; e, se ele se animava a dizer qualquer coisa, o
velho Manuel olhava-o severamente e as filhas calavam-se.

Houve um acontecimento doloroso, provocado pela perversidade de Cassi, que
fez o pai tomar a deliberação extrema de expulsá-lo de
casa e da mesa doméstica. Não foi expulso de todo, devido à
intervenção de Dona Salustiana; mas o foi em meio.

Entre as relações de suas irmãs, havia uma moça
muito pobre, que morava na redondeza. Sua mãe era viúva de um
capitão do Exército, e ela, a Nair, era filha única.
Com auxílio de alguns parentes, a viúva ia encaminhando a filha,
nos estudos próprios de seu sexo. Ela tinha tendência para música
e procurou aproximar-se de Catarina, para explicar-lhe a matéria. Contava
dezoito anos, muito risonha, de um amorenado sombrio, cabelos muito negros,
pequenina e viva, com os seus olhinhos irrequietos e luminosos.

Cassi a viu e logo a teve como boa presa, apesar de não ser totalmente
sem apoio. Quis entabular namoro, na própria casa do pai, quando Nair
vinha receber lições da irmã dele. Esta, porém,
percebendo a manobra, proibiu-lhe, sob ameaça de contar ao pai, que
ele viesse à sala, quando estivesse dando lição a Nair.
O nome do pai apavorava Cassi, não que o estimasse e, por isso, o respeitasse
deveras; mas porque "o velho", severo como era, bem podia pô-lo
de vez na rua. Se isso viesse a acontecer, não teria para onde ir,
e o pouco que ganhava, no jogo, em brigas de galos e em comissões de
agente de empréstimos, etc., seria absorvido para a casa e comida,
pouco ou quase nada sobrando para roupas, sapatos e gravatas. Ele, sem isto
tudo, estava perdido. Adeus amor! Se o quisesse, tinha que pagar…

Considerando tal hipótese, não relutou em obedecer à
irmã; mas começou a cercar Nair "por fora". Quando
ela ia sair, precedia-a, ficava na porta da padaria, cumprimentava. Afinal,
pôde conversar e declarar-se com a fatídica carta, que era a
reprodução de um modelo que lhe dera um companheiro de malandragem,
o Ataliba do Timbó, o qual, por sua vez, tinha obtido de um poeta "porrista"
que morava na Piedade. Esse poeta, a quem o "intruso" Ataliba qualificava
tão superiormente e de tal maneira, era o célebre Leonardo Flores,
que o Brasil todo conhece e viveu uma vida pura, inteiramente de sonhos.

Enfim, a pequena Nair, inexperiente, em plena crise de confusos sentimentos,
sem ninguém que lhe pudesse orientar, acreditou nas lábias de
Cassi e deu o passo errado. A mãe veio a descobrir-lhe a falta, que
se denunciava pelo estado do seu ventre. Correu ao Senhor Manuel, que não
estava. Falou a Dona Salustiana e esta, empertigando-se toda, disse secamente:

—Minha senhora, eu não posso fazer nada. Meu filho é
maior.

—Mas, se a senhora o aconselhasse como mãe que é, e de
filhas, talvez obtivesse alguma coisa. Tenha piedade de mim e da minha, minha
senhora.

E pôs-se a chorar e a soluçar.

Dona Salustiana respondeu amuada, sem demonstrar o mínimo enternecimento
por aquela dor inqualificável:

—Não posso fazer nada, no caso, minha senhora. Já lhe
disse. A senhora recorra à justiça, à polícia,
se quiser. É o único remédio.

A mãe de Nair acalmou-se um pouco e observou:

—Era o que eu queria evitar. Será uma vergonha para mim e para
a senhora e família.

—Nós nada temos com o que Cassi faz. Se fosse nossa filha…

Não acabou a indireta injuriosa; levantou-se e estendeu a mão
à desolada mãe, como que a despedindo.

A viúva saiu cabisbaixa; e, dali, foi à audiência do
delegado distrital e expôs tudo. O delegado disse-lhe:

—Apesar de estar ainda não há seis meses neste distrito,
sei bem quem é esse patife de Cassi. O meu maior desejo era embrulhá-lo
num bom e sólido processo; mas não posso, no seu caso. A senhora
não é miserável, possui as suas pensões de montepio
e meio soldo; e eu só posso tomar a iniciativa do processo quando a
vítima é filha de pais miseráveis, sem recursos.

—Mas, não há remédio, doutor?

—Só a senhora constituindo advogado.

—Ah! Meu Deus! Onde vou buscar dinheiro para isso? Minha filha, desgraçada,
meu Deus!

E pôs-se a chorar copiosamente. Quando serenou, o delegado mandou que
um empregado da delegacia acompanhasse a senhora até em casa e ficou
a pensar nas baixezas, nas dores, nas misérias que as casas encobrem
e que, todo o dia, descobria, por dever de ofício.

No dia seguinte, a mãe de Nair suicidava-se com lisol. Os jornais
esgravataram o acontecimento e contaram as causas do suicídio com todos
os pormenores. Manuel de Azevedo, o pai de Cassi, quando leu no trem o jornal,
saltou na primeira estação, voltou e entrou pela casa adentro
que nem um furacão, transtornado de fisionomia, com rictus de ódio
que o fazia outro homem muito diferente daquele reservado, bondoso e simpático
burocrata que era.

—Quedê ele?

—Quem? – perguntou-lhe a mulher.

—Ele, esse Cassi – fez ele com os punhos cerrados, a errar o olhar
desvairado, pelos quatro cantos da sala.

—Mas que há, homem? – fez a mulher assustada.

—Lê isto.

Deu-lhe o jornal, apontando o local do suicídio.

—Mas que culpa tem…

Não acabou a frase, Dona Salustiana; o marido logo a interrompeu:

—Culpa! Esse biltre sem senso moral algum; esse assassino, esse desgraçado
que leva a corromper todas as moças e senhoras que lhe passam debaixo
dos olhos, não o quero mais aqui, não o quero mais na minha
mesa. Diga-lhe isto, Salustiana; diga-lhe isto, enquanto não o mato.

As filhas tinham chegado e adivinharam a causa daquela explosão de
ódio e raiva, coisa rara no pai. Procuraram acalmá-lo:

—Sossegue, papai; sossegue.

Catarina, que passara os olhos pelo jornal, muito sofreu com a desonra de
Nair. Lamentou sinceramente o trágico desfecho da mãe da sua
discípula gratuita; e assim falou ao pai:

—Olhe, papai; eu me sinto em alguma coisa culpada, porque trouxe Nair
para aqui, a fim de estudar música comigo.

Depois de uma pausa acrescentou:

—Que se há de fazer? É a fatalidade.

—Não o quero mais aqui – repetiu o chefe da família.

Os jornais não se deixaram ficar na simples noticia do suicídio.
Revolveram a vida de Cassi; contaram-lhe as proezas; e ele, a conselho de
sua mãe, foi passar uns tempos na casa do tio, o doutor, que tinha
uma fazendola em Guaratiba. Pela narração dos quotidianos, pôde-se
organizar toda a rede de insídias, de cavilosas mentiras, de falsas
promessas, com que ele tinha cercado a pobre e ingênua vítima,
cuja desonra determinou o suicídio da mãe. Ele, como de hábito,
não falava de seus namoros a ninguém, muito menos a seu pai
e a sua mãe; entretanto, para ganhar a confiança da pobre menina,
dizia na carta que dissera à mãe que muito a amava ou textualmente:
"confessei a mamãe que lhe amava loucamente" e avisavalhe:
"privino-lhe que não ligues ao que lhe disserem, por isso peço-te
que preze bem o meu sofrimento"; e, assim nessa ortografia e nessa sintaxe,
acabava: "Pense bem e veja se estás resolvida a fazer o que dissestes
na tua cartinha", etc. Confessava-se um infeliz "que tanto lhe adora"
e lamentava não ser correspondido.

Em outra, mostrava-se interessado pela saúde de Nair; e, depois de
dar instruções como devia deixar a janela para que ele a pulasse,
contava: "tão depressa soube que estavas de cama fui ao doutor
R. S. saber o que você tinha, ele disse-me que você tinha feito
a loucura de molhar os pés na água fria" etc., etc. Nessa
altura, entrava em detalhes secretos da vida feminina e aduzia: "foi
uma grande tristeza em saber que o doutor R. S. sabe de teus particulares
moral" (sic).

No fim da missiva, ou quase, dizia: "enfim que eu devo fazer se você
não quer ser inteiramente minha como eu sou teu."

Não se demorou muito na casa do tio. O doutor, orgulho de sua irmã
Salustiana e protetor sempre por ela posto em foco para as despudoradas aventuras
do sobrinho, desconfiando que este tramava uma das suas, nos arredores do
seu sítio, sem mais detença, embarcou-o para a casa da irmã,
mãe de Cassi, dizendo-lhe que ficasse com o filho, porque sobrinho
como aquele, ele, doutor Baeta Picanço, desejava nunca tê-lo
em casa.

Não foi logo diretamente para a casa paterna, que era numa das primeiras
estações de quem vem da Central. Ficou pelo Engenho de Dentro,
de onde mandou, por Ataliba do Timbó, um bilhete à mãe,
pedindo instruções. A mãe respondeu-lhe que viesse para
casa; mas evitasse, por todos os meios, encontrar-se com o pai. Tinha ela
arranjado as coisas, e ele teria sempre onde comer e dormir.

Foi-lhe reservado o porão, na parte dos fundos, e a chácara,
como recreio, onde raramente o pai ia. Jantava, almoçava e tomava café,
no compartimento do porão onde morava. Logo na primeira manhã
que despertou no seu humilhante aposento familiar, pensou logo em ir ver as
suas gaiolas de galos de briga – o bicho mais hediondo, mais antipático,
mais repugnantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Estavam
em ordem; sua mãe cuidara deles, como lhe pedira.

Galos de briga eram a força de suas indústrias e do seu comércio
equívocos. Às vezes, ganhava bom dinheiro nas apostas de rinhadeiro,
o que vinha ressarcir os prejuízos que, porventura, anteriormente houvesse
tido nos dados; e, assim, conseguia meios para saldar o alfaiate ou comprar
sapatos catitas e gravatas vistosas. Com os galos, fazia todas as operações
possíveis, a fim de ganhar dinheiro; barganhava-os, com "volta",
vendia-os, chocava as galinhas, para venda dos frangos a criar e educar, presenteava
pessoas importantes, das quais supusesse, algum dia, precisar do auxilio e
préstimos delas, contra a polícia e a justiça.

Incapaz de um trabalho continuado, causava pasmo vê-lo cuidar todas
as manhãs daqueles horripilantes galináceos, das ninhadas, às
quais dava milho moído, triguilho, examinando os pintainhos, um por
um, a ver se tinham bouba ou gosma.

Fosse se deitar a que hora fosse, pela manhã lá estava ele
atrapalhado com os galos malaios e a sua descendência de frangos e pintos.

Nunca suportara um emprego, e a deficiência de sua instrução
impedia-o que obtivesse um de acordo com as pretensões de muita coisa
que herdara da mãe; além disso, devido à sua educação
solta, era incapaz para o trabalho assíduo, seguido, incapacidade que,
agora, roçava pela moléstia. A mórbida ternura da mãe
por ele, a que não eram estranhas as suas vaidades pessoais, junto
à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram de Cassi
o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É
um tipo bem brasileiro.

Se já era egoísta, triplicou de egoísmo. Na vida, ele
só via o seu prazer, se esse prazer era o mais imediato possível.
Nenhuma consideração de amizade, de respeito pela dor dos outros,
pela desgraça dos semelhantes, de ditame moral o detinha, quando procurava
uma satisfação qualquer. Só se detinha diante da força,
da decisão de um revólver empunhado com decisão. Então,
sim…

Algumas boas lhe aconteceram. Tinha ele notado que uma moçoila com
livros e attirail de normalista, na viagem de trem, o olhava muito.

Marcou-lhe a fisionomia e, ao dia seguinte, à mesma hora, pôs-se,
na estação, à espera dela; não veio. Esperou outro
trem, não veio. Assim, esperou diversos. No outro dia, após
esse, foi mais feliz; ela veio. Procurou lugar conveniente e pôs-se
a fazer trejeitos. A moça não lhe deu importância, Durante
dias, insistiu. Um belo dia, ele vai muito calmo, à cata da ingrata,
quando ela apareceu acompanhada de um rapaz, que, pela intimidade com que
a tratava e pela idade que revelava à primeira vista, parecia ser irmão
ou marido da moça. Habituado a lidar com parentes dessa natureza, mas
fracos, não se intimidou. Os dois no banco, ao lado dele, seguem viagem,
palestrando calmamente. Cassi os olha insistentemente. Chegam à Central,
e o rapaz despede-se da moça, que segue para a sua escola. Volta-se
o cavalheiro e procura com o olhar o Senhor Cassi.

—É o senhor?

Cassi Jones responde:

—Sou eu.

—Desejava muito falar-lhe. Vamos à confeitaria; é coisa
particular, e nós lá estaremos à vontade tomando um vermouth.

Cassi fica com a pulga atrás da orelha e acompanha o desconhecido,
que, com ar risonho e caminhando, vai dizendo:

—O senhor talvez não me conheça. Porém eu, meu
caro senhor, o conheço muito bem. Nos subúrbios, todos conhecem
as suas habilidades, Senhor Cassi Jones; e, embora esteja lá morando
há pouco, já tive notícias do seu valimento.

Cassi assustava-se com a calma do rapaz e pôs-se a medir-lhe os músculos.
Não trouxera a navalha, porque tinha medo de ser preso, por causa do
negócio da Nair e do suicídio da mãe dela; e armado…
Mediu a musculatura do desconhecido. Era antes fraco do que forte, mas parecia
disposto. Chegaram à confeitaria e sentaram-se. O caixeiro serviu vermouth;
e, quando iam em meio, o outro disse ex-abrupto para Cassi:

—O senhor sabe quem é aquela moça que vinha a meu lado?

Colhido de surpresa, não pôde tergiversar e disse prontamente:

—Não sei absolutamente.

—É minha irmã – afirmou o desconhecido.

— Também não sabia – respondeu docilmente o terrível
Cassi,

— Não podia saber naturalmente – justificou o rapaz. – Saio
cedo de casa para o escritório e volto tarde, pois janto e almoço
na cidade. Agora, eu chamei o senhor para lhe dizer uma coisa: se o senhor
continua a perseguir minha irmã, meto-lhe cinco tiros na cabeça.

Ao dizer isto, foi tirando dos bolsos de dentro do paletó um magnífico
Smith & Wesson, muito reluzente e com um luxuoso cabo de madrepérola.

Cassi redobrou o esforço para não denunciar o susto e, simulando
calma, disse:

— Mas, meu caro senhor, creio que nunca faltei com o respeito devido
à senhora sua irmã.

— É verdade; mas é preciso deixar de persegui-la – confirmou
o outro e logo acrescentou, como que dando por acabada a entrevista:

— Quer tomar alguma coisa mais?

— Não; muito obrigado.

Despediram-se, sem se apertarem as mãos; e Cassi foi para a sua roda
de Ataliba do Timbó, Zezé Mateus, Franco Sousa e Arnaldo.

Um deles perguntou-lhe:

— O que queria aquele sujeito contigo?

— Nada. É meu vizinho e, sabendo que sou morador antigo, pediu-me
que lhe arranjasse um cavalo para vender, que ele me dava uma comissão.

Cassi era assim e assim mantinha a sua fama de valente. Não julguem
que tinha estima e amizade por esses rapazes que andavam sempre com ele. Ele
não os amava, como não amava ninguém e com ninguém
simpatizava. Era uma coorte digna dele, que o iludia do vácuo feito
em torno dele, por todos os rapazes daquelas bandas.

Ataliba do Timbó era um mulato claro, faceiro, bem apessoado, mas
antipático pela sua falsa arrogância e fatuidade. Havia sido
operário em uma oficina do Estado. Meteu-se com Cassi e, aos poucos,
abandonou o emprego, abandonou a mãe, de quem era único arrimo,
e quis imitar o mestre até o fim. Foi infeliz. Arranjou uma complicação
policial e matrimonial de donzelas, nas quais Cassi era useiro e vezeiro,
e saiu-se mal. Obrigaram-no a casar; mas teve a hombridade de ficar com a
mulher, embora, resignadamente, ela sofresse toda a espécie de privações,
no horrível subúrbio de Dona Clara, enquanto ele andava sempre
muito suburbanamente e tivesse vários uniformes de football.

Tirava proventos do jogo de dados ou campista, e também do football,
em que era considerado bom jogador – "plêiel", como dizem
lá.

De vários clubes, havia sido expulso ou se havia demitido voluntariamente,
porque os companheiros suspeitavam-no ser peitado pelos adversários,
para facilitar estes fazer pontos. Ultimamente, era agente de jogo de bicho,
e sua mulher viera gozar de mais algum conforto.

Pobre Ernestina! Era tão alegre, tão tagarela, era moça,
e bonitinha, na sua fisionomia miúda e na sua tez pardo-clara, um tanto
baça, é verdade, mas não a ponto de enfeá-la,
quando conheceu Ataliba; e hoje? Estava escanzelada, cheia de filhos, a trair
sofrimentos de toda a espécie, sempre mal calçada, quando, nos
tempos de solteira, o seu luxo eram os sapatos! Quem te viu e quem te vê!

Zezé Mateus era um verdadeiro imbecil. Não ligava duas idéias;
não guardava coisa alguma dos acontecimentos que assistia. A sua única
mania era beber e dizer-se valente. Topava todos os ofícios; capinava,
vendia peixe e verdura, com cesto à cabeça; era servente de
pedreiro, apanhava e vendia passarinhos, como criança; e tinha outras
habilidades desse jaez.

Era branco, com uma fisionomia empastada, cheia de rugas precoces, sem dentes,
todo ele mole, bambo. A sua testa era deprimida, e era longo e estreito o
seu crânio, do feitio daqueles a que o povo chama "cabeça
de mamão-macho".

Totalmente inofensivo, quase inválido pela sua imbecilidade nativa
e pela bebida, uma família a quem ele prestava pequenos serviços
– ir às compras, ao açougue, lavar a casa – dava-lhe um barracão
na chácara, onde dormia, e comida, se estivesse presente às
refeições. Encontrava-se nessa ruína humana o melhor
da turma e o único que não tinha maldade no coração.
Era um ex-homem e mais nada.

O Franco Sousa, este, era um malandro mais apurado, que, uma vez ou outra,
aderia ao grupo de Cassi. Intitulava-se advogado e vivia de embrulhar os crédulos
clientes que lhe caíam nas mãos. Todos sabiam que ele não
tratava de coisa alguma, pois não podia absolutamente tratar, já
por não saber coisa alguma das tricas forenses, já por não
ser, de verdade, advogado. Assim mesmo, sempre apareciam ingênuos roceiros,
simplórias viúvas, que, no pressuposto de que os seus serviços,
na justiça, sobre a demarcação de terras litigiosas ou
despejos de inquilinos relapsos, fossem mais baratos, procuravam-no. Ele recebia
os adiantamentos e, em seguida, mais algum dinheiro, conforme a ingenuidade
e a falta de experiência do cliente, e não fazia nada. Entretanto,
vivia muito decentemente com a mulher, filhos e filhas. Cassi não lhe
pisava em casa, e, aos poucos, foi se afastando do violeiro, a conselho da
mulher, que zelava extremamente pela reputação das filhas, que
se faziam moças.

O último dos asseclas do modinheiro era um tal Arnaldo, Arnaldo tout
court. Nele, talvez, houvesse tipo mais nojento do que mesmo em Cassi. A sua
profissão consistia em furtar, no trem, chapéus-de-sol, bengalas,
embrulhos dos passageiros que estivessem a dormitar ou distraídos.
De tarde, ele fazia a especialidade dos embrulhos; e, à noite, às
vezes, a altas horas, postava-se na beira da plataforma de estação
pouco freqüentada e, quando o trem tornava movimento e impulso, arrebatava
rapidamente os chapéus dos passageiros, através da portinhola,
principalmente se de palha e novos. Vendia-os, no dia seguinte, como vendia
os chapéus-de-sol, as bengalas e o conteúdo dos embrulhos, se
fosse de coisa vendável; roupas de lã ou branca, livros, louça,
talheres, etc.

Se fossem, porém, doces, frutas, queijos, biscoitos, grãos,
ele levava para a casa e contava à mulher que só arranjara dinheiro
para comprar aquelas guloseimas para as crianças. Usava dos mais imprevistos
estratagemas, para não pagar a casa de sua moradia. Numa, tendo ficado
a dever oito meses, apresentando-se-lhe o cobrador com os recibos, pediu-os
para examiná-los e ficou com eles, alegando que ia consultar pessoa
competente em matéria de selo, porquanto as estampilhas não
lhe pareciam legais. Nunca mais os devolveu; e, apesar de todas as ameaças,
ainda ficou morando na casa quatro meses. Os seus vizinhos contavam que ele
tinha também o hábito de arrebatar as notas do Tesouro das mãos
das crianças, quando as encontrava sós também a caminho
das vendas, onde iam fazer compras para as casas paternas, levando-as à
mostra, na imprevidência natural de crianças.

Inútil é repetir que Cassi não tinha nenhuma espécie
de amizade por esses rapazes, não pela baixeza de caráter e
de moral deles, no que ele sobrelevava a todos; mas pela razão muito
simples de que a sua natureza moral e sentimental era sáfara e estéril.
A seus pais e às suas irmãs, não o prendia nenhuma dose
de afeição, por mais pequena que fosse. Mesmo com sua mãe,
que o tinha retirado muitas vezes dos xadrezes policiais, em vésperas
de seguir para a detenção, ele só tinha manifestações
de ternura, quando estava às voltas com a polícia ou com os
juizes. O seu fundo e os seus princípios explicavam de algum modo essa
sua aridez moral e sentimental.

A sua educação e instrução foram deveras descuradas.
Primeiro nascido do casal, quando as exigências da manutenção
da família obrigavam seu pai a trabalhar dia e noite, não pôde
este, pois poucas horas passava em casa, vigiá-las convenientemente.
Rebelde, desde tenra idade, a doçura para com ele, por parte de sua
mãe, e os prejuízos dela impediram-na que o corrigisse convenientemente,
assiduamente, no tempo próprio. Não ia ao colégio; fazia
"gazeta", correndo pelas matas das cercanias da residência
dos pais, então em Itapiru, com outros garotos. O que faziam, pode-se
bem adivinhar; mas a mãe fingia não perceber, passava a mão
pela cabeça do filho querido, nada dizia ao pai, que quase mourejava
durante as vinte e quatro horas do dia. Cresceu assim, sem nenhuma força
moral que o comprimisse; e o pai seria a única.

Ao melhorarem as suas condições financeiras, com uma promoção
a propósito e a compra daquela casa, na estação do Rocha,
com o produto de uma herança que tocara à mulher, Manuel de
Azevedo veio encontrar, aos treze anos, o filho completamente viciado, fumando
às escâncaras, mal lendo, aos gaguejos, e escrevendo ainda muito
pior. Pô-lo nos "Salesianos"" de Niterói, As informações
semanais eram péssimas; e, ao fim de três ou quatro meses de
colégio, não sabemos que torpeza cometeu no colégio que,
uma bela tarde, acompanhado de um padre magro, com uma cortante figura angulosa
de asceta, veio a ser entregue Cassi ao pai, em casa. Falou-lhe o reverendo
em particular, e Manuel de Azevedo, quase chorando, despediu-se do reverendo,
que insistia nas desculpas, e respondendo deste único feitio ao eclesiástico:

—Os senhores têm razão, muita razão. Eu é
que me sinto infeliz por ter um filho bastante mau e vicioso com tão
pouca idade. Que castigo, meu Deus!

A mulher quis saber o motivo da expulsão, mas a dignidade e a vergonha
de pai fizeram que nem mesmo à sua mulher ele o dissesse.

Propôs, dias depois, à sua esposa, que pusesse o rapazola a
aprender um ofício, a fim de discipliná-lo. Dona Salustiana
revoltou-se e esbravejou:

—Meu filho aprender um ofício, ser operário! Qual! Ele
é sobrinho de um doutor e neto de um homem que prestou muitos serviços
ao país.

Sempre lembrado dos seus duros começos em que ela muito o ajudara
e o animara, Manuel tinha, pela mulher, uma grande e sincera afeição,
evitando o quanto possível contrariá-la, e, por isso, não
teimou dessa feita. Meses depois, porém, logo que chegou em casa, a
mulher e as filhas, chorando, pedem que vá soltar Cassi, que estava
preso em uma delegacia. O menino já roçava pelos dezesseis anos
e mostrava-se assim precoce na carreira de falcatruas. Havia sido preso, pelo
respectivo vigia, no interior de uma casa vazia, quando procurava arrancar
encanamento de chumbo para vender.

O pai, então, voltou à idéia de pô-lo em uma oficina,
a ver se o trabalho manual, já pelo cansaço, já pela
convivência com pessoas honestas e de trabalho, desviava-o do mau caminho
que ele estava iniciando. A mãe acedeu com grande repugnância,
e ele foi ser aprendiz de tipógrafo.

No fim de um mês, porém, era despedido, porque, tendo ido receber
uma conta de cartões de visitas, uns cinco mil-réis ou pouco
mais do que isso, voltara sem dinheiro, dizendo que o tinha perdido. Revistado
convenientemente, foi-lhe o dinheiro encontrado quase intacto entre a botina
e a meia.

A fascinação pelo dinheiro e sua absorção nele
eram o seu fraco. Queria-o; mas sem trabalho e para ele só. As menores
dívidas que fazia, não pagava; não oferecia nada a ninguém.
Houve quem o conhecendo e sabendo dessa sua sovinice doentia explicasse os
seus desvirginamentos seguidos e as suas constantes seduções
a raparigas casadas, como sendo a resultante da aridez de dinheiro, que o
encaminhava a amores gratuitos; e de uma atividade sexual levada ao extremo,
que a sua estupidez explicava.

Seja devido a esta ou aquela causa, a este ou aquele motivo, o certo e que
nele não havia nevrose ou qualquer psicopatia que fosse. Não
cedia a impulsos de doença; fazia tudo muito calculadamente e com todo
o vagar. Muito estúpido para tudo o mais, entretanto, ele traçava
os planos de sedução e desonra com a habilidade consumada dos
scrocs de outras naturezas. Tudo ele delineava lucidamente e previamente removia
os obstáculos que antevia.

Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia detestavelmente cartas
langorosas, fingia sofrer, empregava, enfim, todo o arsenal do amor antigo,
que impressiona tanto a fraqueza de coração das pobres moças
daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência
e a reduzida instrução concentram a esperança de felicidade
num Amor, num grande e eterno Amor, na Paixão correspondida.

Sem ser psicólogo nem coisa parecida, inconscientemente, Cassi Jones
sabia aproveitar o terreno propício desse mórbido estado d"alma
de suas vítimas, para consumar os seus horripilantes e covardes crimes;
e, quase sempre, o violão e a modinha eram seus cúmplices…

III

Marramaque, apesar de sua instrução defeituosa, senão
rudimentar, tinha vivido em roda de pessoas de instrução desenvolvida
e educação, e convivido em todas as camadas. Era de uma cidadezinha
do Estado do Rio, nas proximidades da Corte, como se dizia então. Feito
os seus estudos primários, os pais empregaram-no num armazém
da cidade. Estávamos em plena escravatura, se bem que nos fins, mas
a antiga Província do Rio de Janeiro era próspera e rica, com
as suas rumorosas fazendas de café, que a escravaria negra povoava
e penava sob os açoites e no suplício do tronco.

O armazém em que Marramaque era empregado havia de tudo: ferragens,
roupas feitas, isto é, camisas, calças, ceroulas grosseiras,
para trabalhadores; armas, louças, etc., etc. Comprava diretamente
nos atacadistas da Corte; além disso, o seu proprietário era
intermediário entre os pequenos lavradores e as grandes casas da Capital
do Império, isto é, comprava as mercadorias àqueles,
por conta destas, com o que ganhava comissão.

Marramaque era contemplativo e melancólico, e vivia, debruçado
ao balcão do armazém, ouvindo os tropeiros e peões contar
histórias de todo o gênero: façanhas de valentia, maus
encontros pelos caminhos desertos, proezas de desafio à viola e de
amor roceiro.

No gênio, não saía ao pai, que era um minhoto ativo,
trabalhador, reservado e econômico. Em poucos anos de Brasil, conseguiu
ajuntar dinheiro, comprar um sítio em que cultivava os chamados "gêneros
de pequena lavoura", aipim, batata-doce, abóboras, tomates, quiabos,
laranja, caju e melancia, dando-lhe esta última cultura, pelos fins
do ano e começo do seguinte, lucros razoáveis. Com o correr
do tempo, comprara um bote; e, duas vezes por semana, acompanhado de um companheiro
a quem pagava, trazia ele mesmo os produtos de sua lavoura, navegando por
um pequeno rio, mais ou menos canalizado, atravessando a Guanabara até
o Mercado. Vinha com o "terral" e voltava com a "viração".

O filho não seria capaz dessas proezas; mas, como sua mãe,
que, embora quase branca, tinha ainda evidentes traços de índio,
seria capaz de cantar o dia inteiro modinhas lânguidas e melancólicas.

Havia, quando rapazola, muitas névoas na sua alma, um diluído
desejo de vazar suas mágoas e os sonhos, no papel, em verso ou fosse
como fosse; e um forte sentimento de justiça. O espectro da escravidão,
com todo o seu cortejo de infâmias, causava-lhe secretas revoltas.

Certo dia, um viajante, que pousara no armazém, deixara, por esquecimento,
na mesa do quarto em que fora hospedado, um volume das Primaveras, de Casimiro
de Abreu.

Ele nunca havia lido versos seguidamente. Nos jornais que lhe caíam
à mão, mesmo nos retalhos deles e em páginas soltas de
revistas que vinham parar ao armazém para embrulho, é que lera
alguns. Dessa forma, encontrando, no seu natural melancólico, cheio
de uma doce tristeza e de um obscuro sentimento da mesquinhez do seu destino,
terreno propício, o livro de Casimiro de Abreu caiu-lhe n’alma como
uma revelação de novas terras e novos céus. Chorou e
sonhou com os doridos queixumes do sabiá de São João
da Barra e não deixou de notar que, entre ele e o poeta das Primaveras,
havia a semelhança de começarem ambos sendo caixeiros de uma
casa de negócio da roça. Cristalizada a emoção
profunda que lhe causara a leitura dos versos do gaturamo fluminense, Marramaque
resolveu agir, isto é, instruir-se, educar-se e… fazer versos também.
Para isso, precisava sair dali, ir para a Corte.

De quando em quando, pousavam no armazém, onde dormia também,
caixeiros-viajantes de grandes casas da Corte que tinham negócios com
o Senhor Vicente Aires, patrão de Marramaque. O seu natural bom, prestativo,
a sua irradiação simpática, provinda dos seus sonhos
vagos e amontoados, faziam-no estimado deles todos. Havia um, entretanto,
que ele estimava mais. Era um rapaz português, o Senhor Mendonça,
Henrique de Mendonça Souto. Em tudo, ele era o contrário do
pobre Marramaque. Era alegre, folgazão, palrador, bebia o seu bocado;
mas sempre honesto, leal e franco.

Certa noite, estando ele hospedado nos fundos do armazém do Senhor
Vicente Aires, de volta de uma partida de "manilha", na casa do
sacristão da Matriz, o alegre "cometa" veio a encontrar o
caixeiro Marramaque lendo o volume de Casimiro de Abreu. Era alta noite, passava
da meia: e, como o caixeiro tinha que se erguer às cinco da manhã,
para abrir o armazém e atender a tropeiros e viajantes em preparativos
de partida, tal fato causou pasmo a "Seu" Mendonça:

– Ainda lês, menino! E não te lembras que, daqui a pouco, deves
estar de pé, filho de Deus!

– Esperava o senhor.

– E mais esta! Então tu pensas que eu mesmo não sabia despir-me
e meter-me à cama? Que lês?

– Primaveras, de Casimiro de Abreu.

O caixeiro-viajante acabou de vestir-se e deitou-se. Depois de cobrir- se,
perguntou a Marramaque:

– Tu gostas de versos, rapaz?

Hesitou em responder, mas Mendonça fez rispidamente:

– Dize lá, rapaz; porque nisto não vai crime algum. Está
a ver-se, rapaz! Dize!

– Gosto, sim senhor – fez o caixeiro timidamente.

– Pois deves ir para o Rio – acudiu Mendonça com pressa – estudar
e… quem sabe lá?

– Se eu arranjasse um emprego na Corte…

Mendonça pensou um pouco e disse:

– Na casa, não te serve. Há muito serviço e tu não
te acostumas… És aprendiz de poeta, tens inclinação
para essas coisas de versos e te aborrecias. O que te serve, era trabalhar
numa farmácia. Fala a teu pai que eu te arranjo a coisa. Escrevo-te
logo que chegar ao Rio.

Mendonça cumpriu a palavra, e o pai consentiu que ele viesse para
o Rio. Marramaque foi trabalhar numa farmácia; e, à noite, ia
completando a sua instrução, conforme podia, nas instituições
filantrópicas de instrução que existiam no tempo.

Logo, tratou de fazer versos; e, certa vez, foi surpreendido por um dos habitués
da farmácia, compondo uma poesia. As farmácias, naquele tempo,
eram o lugar de encontro de pessoas graves e sisudas da vizinhança,
que, à tarde, após o jantar, iam a elas espairecer e conversar.
Quem surpreendeu o jovem Marramaque, fazendo versos, foi o Senhor José
Brito Condeixa, segundo oficial da Secretaria de Estrangeiros, poeta também,
mas, de uns tempos para cá, somente festivo e comemorativo. Além
de publicar, nos dias de gala, sonetos e outras espécies de poesias
alusivas à festa, não se esquecia nunca de comemorar as datas
domésticas da família imperial, em versos de um lavor chinês.
Esperava o hábito da Rosa; mas, só veio a ter no fim do Império,
quando retirou da Imprensa Nacional o terceiro volume da Sinópsis da
Legislação Nacional, na parte que se refere ao Ministério
de Estrangeiros.

Lendo os versos do adolescente, Brito Condeixa gostou e jurou que havia de
proteger o caixeirozinho. Falou ao patrão, e ele foi se empregar numa
papelaria-livraria, na rua da Quitanda. Freqüentada por poetas e literatos
que ensaiavam os primeiros passos, nos últimos quinze anos do Império,
com eles se relacionou e sempre era escolhido para secretário, gerente,
tesoureiro, de suas efêmeras publicações. Deixou o emprego
da papelaria, sem zanga; e atirou-se às refregas e às decepções
da pequena imprensa, com ardor e entusiasmo, sangue republicano e abolicionista,
sobretudo abolicionista.

Esse jornalismo contrário e efêmero pouco ou quase nada lhe
dava para a sua manutenção. Vivia uma vida de privações
e necessidades prementes. Sem deixar os companheiros poetas, escritores, parodistas,
artistas, ele se improvisou guarda-livros ambulante, fazendo escritas aqui
e ali, com o que ganhava para ter casa, comida, roupa e até, às
vezes, socorrer os camaradas. Manteve-se sempre absolutamente solteiro.

Guardava, da sua vida de acólito da boêmia literária,
recordações muito vivas, que gostava de contar, ensopando-as
de comovida saudade. Anedotas deste, casos com aquele, expedientes daquele
outro, ele narrava com chiste e firmeza de lembrança; mas, ao que parece,
a figura de seu tempo que mais o impressionou foi a de um pequeno poeta, que
nunca teve seu quarto de hora de celebridade e hoje está totalmente
esquecido. A respeito dele, Marramaque se referia com o sentimento profundo
de quem se lembra de um irmão muito amado:

—Ah! O Aquiles! Que alma! Que poeta! O senhor – dirigindo ao interlocutor
ocasional – não o conheceu?

—Não; não me recordo.

—Nem de nome? Ele deixou obras.

O outro com quem conversava, por delicadeza, respondia:

—De nome, pois não, pois não!

—Que alma era esse Aquiles Varejão! Morreu há pouco tempo,
em 94 ou 95; e, se não me falha a memória, na Santa Casa. Morreu
na maior miséria; entretanto, tudo o que ganhava – ele era tipógrafo
– estava sempre disposto a distribuir com os amigos. Não pude ir vê-lo…
Tinha tido o primeiro ataque e estava em tratamento. Lembro-me, porém,
do seu último soneto que a Gazeta publicou. Que lindeza! Aquilo era
um poeta que não forçava, nem tinha compasso e régua.
Ouça só!

E, com uma voz difícil, devido à semiparalisia da parte esquerda
da boca, esbugalhando os olhos, devido ao esforço para pronunciar bem
as palavras, recitava:

Prostrado nesta enxerga, sinto a vida
Ir, pouco e pouco, procurando o nada;
Pra mim não há mais sol de madrugada,
Mas sim tremor da luz amortecida.

Prazeres, onde estais? Longa avenida
De amores, que trilhei nesta jornada?
Tudo acabou. E justa esta pousada,
Antes que dobre o sino da partida.

Feliz quem tem família! Tem carinho
De mãe, de esposa, e, em derredor do leito,
Não sofre o horror de achar-se tão sozinho.

Porém ao meu destino estou sujeito;
Devo, batendo as asas, sem ter ninho,
Buscar, quem sabe? um mundo mais perfeito?

O Marramaque, quase sempre, acabava de recitar os versos do amigo com os
olhos úmidos; e o ouvinte, não só peia dor demonstrada
pelo declamador, mas também pelo tom elegíaco do soneto, comovia-se
também e, antes de qualquer pergunta, comentava:

—É bonito! É mesmo lindo.

Marramaque, poeta raté, tinha uma grande virtude, como tal: não
denegrir os companheiros que subitam nem os que ganharam celebridade. A todos
gabava, sem que, por isso, não lhes notasse as falhas de caráter.

Tendo vivido assim, em vários e diferentes meios, ganhando experiência
e conhecimento dos homens e das coisas da vida, estava apto para julgar bem
quem era Cassi Jones. Demais, devido à sua convivência com literatos,
poetas e escritores, adquirira o hábito tirânico de ler diariamente
todos os jornais que apanhava na repartição, e não fazia
lá outra coisa, devido a seu estado de saúde.

De quando em quando, ele encontrava noticias mais que escabrosas, às
vezes sangrentas mesmo, em que estava envolvido o nome do famigerado violeiro.
De umas delas, ele se lembrava perfeitamente, porque lhe havia causado, na
sua alma retardada de idealista e sonhador, de poeta que quis ser amoroso
e cavalheiresco, a maior revolta e um movimento de nojo irreprimível.
Joaquim dos Anjos não estava a par dela, pois não tinha hábito
de ler jornais e pouco tagarelava com as pessoas de suas bandas suburbanas.
Marramaque apoiou-se em contador e por alto.

Num dos subúrbios, na proximidade da casa de Cassi, veio a residir
um casal. A mulher era moça, fruída de carnes, alta, louçã,
grandes olhos negros, um tipo do Sul, ao que parece do Rio Grande. O marido,
que era oficial de Marinha, maquinista, era amorenado tirando a mulato, baixo,
sempre triste, curvado e pensativo. Apesar da diferença de gênios,
que se percebia, e de idade, que estava à mostra, pareciam viver bem.
Quase sempre saíam à tarde, iam a festas, a teatros; aos domingos,
procuravam visitar os arrabaldes pitorescos e voltavam à noite. Tomavam
comida fora e só tinham uma rapariguita preta, de uns dezesseis anos,
para os serviços leves da casa. Não se sabe como, Cassi conseguiu
conhecer a gaúcha e seduzi-la. Mal o marido saía, ele se metia
em casa da moça com violão e tudo. A vizinhança murmurava
contra aquela pouca-vergonha. Fosse de que fonte fosse, o marido veio a saber
e um dia, de revólver em punho, furioso, fora de si, louco, totalmente
louco, penetrava na casa e alvejou a mulher com dois tiros de revólver,
de cujos ferimentos veio a morrer horas depois. Após ter alvejado mortalmente
a mulher, correu em perseguição de Cassi, que, descalço,
de calças e em mangas de camisa, saltava cercas e muros, para se pôr
fora do alcance do marido indignado.

Entregando-se à prisão, o oficial maquinista contou toda a
sua desdita e o causador dela. O delegado mandou procurar Cassi e conseguiu
pilhá-lo à noite, Os agentes deram uma batida nos matos, e o
galã fugitivo foi preso e recolhido à enxovia.

Por ocasião dessa prisão foi que ele veio a conhecer Lafões.
Tinha este sido detido e recolhido ao xadrez, por ter feito um distúrbio,
num botequim, onde tomara uma carraspana, em comemoração ao
ter acertado uma centena no bicho. Quando Cassi foi recolhido, já Lafões
estava no xadrez, havia quatro horas.

Cassi, que fugira do revólver do oficial, sem paletó e sem
colete, em cujas algibeiras estava o seu dinheiro, não pudera comprar
cigarros; mas Lafões os tinha, O profissional da sedução
pediu-lhe um, que lhe foi dado, Disse, então, para Lafões:

—Vou te soltar, meu velho. Tu és uma bela alma.

—Por que vosmecê está preso, meu caro senhor?

Cassi respondeu com muita calma e indiferença, como se tratasse de
um acontecimento vulgar:

—Por nada. Coisas de mulheres, meu velho. É o meu fraco.

Pela grade do xadrez, dirigiu-se a um soldado, a quem conhecia, e falou-lhe
baixo qualquer coisa. Em breve, foi a praça substituída por
outra. Vendo isso Cassi, disse para o velho Lafões:

—Estás aqui, estás na rua. Mandei o soldado falar ao
meu chefe político: e ele vai interessar-se para seres solto,

—E vosmecê?

—Não te importes comigo. Tenho que depor…

Na verdade, Lafões foi solto; não houve, porém, qualquer
intervenção do chefe político de Cassi. Libertou-o o
próprio comissário que o prendera e o conhecia como homem morigerado
e qualificado.

Entretanto, o guarda das obras públicas sempre supôs que a sua
libertação tivesse sido obra de Cassi, por isso lhe era grato
e o defendia com todo o ardor.

Lafões era um homem simplório, que só tinha agudeza
de sentidos para o dinheiro que vencia. Vivendo sempre em círculos
limitados, habituado a ver o valor dos homens nas roupas e no parentesco,
ele não podia conceber que torvo indivíduo era o tal Cassi;
que alma suja e má era a dele, para se interessar generosamente por
alguém.

Muito diferente do guarda era Marramaque, cujo âmbito de vida sempre
fora mais amplo e mais variado. Abraçava um maior horizonte de existência
humana…

Quando aquele lembrou que se convidasse o celebrizado violeiro, o contínuo
viu logo os perigos que a presença do profissional da desonra das famílias
podia trazer à paz e ao sossego que reinavam na casa de Joaquim dos
Anjos.

Além de compadre, Marramaque era profundamente amigo do carteiro,
que o auxiliava nos seus transes de toda a ordem: um pouco, originados pelos
hábitos boêmios que, de todo, não perdera; um pouco, pela
exigüidade de seus vencimentos, com os quais sustentava uma irmã
viúva e dois filhos dela, ainda menores, com os quais morava, nas proximidades
de Joaquim. Na sua vida, tão agitada e tão variada, ele sempre
observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do
nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que
se têm as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas;
e tudo e todos pareciam condenar os seus
esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral
e social.

Se assim acontecia com as honestas, como não pensaria sobre o mesmo
tema um malandro, um valdevinos, um inconsciente, um vagabundo cínico,
como ele sabia ser o tal Cassi?

Durante o jantar, ainda se falou muito a respeito, mas com as reservas que
a assistência de uma moça pedia fossem tomadas.

– Vamos experimentar, meu caro Marramaque. "Ele" sabe com quem
se mete…

– Eu cá, por mim, nada tenho a dizer dele. Sempre me tratou muito
bem e sou-lhe grato.

– É que você, Lafões, não lê os jornais.

– Qual jornais! Qual nada! Tudo que lá vem neles é mentira.

Clara ouvia esse diálogo com muita atenção e forte
curiosidade. Num dado momento, não se conteve e perguntou:

– O que é que esse Cassi faz, padrinho?

A mãe acudiu ríspida, dizendo:

– Não é de tua conta, bisbilhoteira!

A única filha do carteiro, Clara, fora criada com o recato e os mimos
que, na sua condição, talvez lhe fossem prejudiciais. Puxava
a ambos os pais. O carteiro era pardo-claro, mas com cabelo ruim, como se
diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso.

Na tez, a filha tirava ao pai; e no cabelo, à mãe.

Joaquim era alto, bem alto, acima da média, ombros quadrados e rija
musculatura; a mãe, não sendo muito baixa, escapava à
média da altura de nossas mulheres em geral. Tinha ela uma fisionomia
medida, de traços breves, mas regular; o que não acontecia com
o marido, que era possuidor de um grosso nariz, quase chato, e malares salientes.
A filha, a Clara, havia ficado em tudo entre os dois; média deles,
dos seus pais, era bem exatamente a filha de ambos.

Habituada às musicatas do pai e dos amigos, crescera cheia de vapores
de modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre e de
cor com os dengues e o simplório sentimentalismo amoroso dos descantes
e cantarolas populares.

Raramente saía, a não ser para ir bem perto, à casa
de Dona Margarida, aprender a bordar e a costurar, ou com esta ir ao cinema
e a compras de fazendas e calçado. A casa dessa senhora ficava a quatro
passos de distância da do carteiro. Apesar de ser uso, nos subúrbios,
irem as senhoras e moças às vendas fazer compras, Dona Engrácia,
sua mãe, nunca consentiu que ela o fizesse, embora de sua casa se avistasse
tudo o que se passava, no armazém do "Seu" Nascimento, fornecedor
da família

Essa clausura mais alanceava sua alma para sonhos vagos, cuja expansão
ela encontrava nas modinhas e em certas poesias populares.

Com esse estado de espírito, o seu anseio era que o pai consentisse
na visita do famoso violeiro, cuja má fama ela não conhecia
nem suspeitava, devido ao cerco desvelado que a mãe lhe punha à
vida; entretanto, supunha que ele tirava do violão sons mágicos
e cantava coisas celestiais. Joaquim dos Anjos, afinal, tendo o assentimento
da mulher e também curioso de conhecer as habilidades de Cassi, no
violão e na trova popular, consentiu que Lafões o trouxesse
em sua casa, no dia do aniversário de Clara. Viria aquela vez e não
viria mais… Lafões acolheu a resposta com viva alegria e tratou de
entender-se com o tocador malafamado. Fez. Quando os seus companheiros de
vagabundagem souberam, comentaram cinicamente o convite:

– Conheço bem esse carteiro. Ele não trabalha aqui; mas na
cidade, na zona dos bancos.

Deve ter dinheiro. Tem um pancadão de filha, meu Deus! Que torrão
de açúcar!

– Então estás feito, hein, Cassi? – fez alvarmente Zezé
Mateus, àquela tendenciosa observação de Ataliba do Timbó.

Cassi, o mestre suburbano do violão, o dedo da modinha, fingiu-se
aborrecido e retrucou com fingido desgosto:

– Vocês mesmo é que me desacreditam. Dizem coisas que não
fiz e não faço, e todo mundo me enche de desprezo, senão
de ódio. Não sou essas coisas que dizem de mim.

Timbó teve vontade de rir à vontade, mas, embora mais forte
do que Cassi, tinha este sobre ele um ascendente moral que não se explicava.
Zezé Mateus, porém, com o seu peculiar meio-riso de imbecil,
fez:

– Estou brincando, meu "nego". Sou teu amigo – tu sabes.

Eles conversavam sempre de pé, parados pelas esquinas. Raramente,
sentavam-se a uma mesa de café. Aquela intempestiva observação
do Ataliba, seguida do comentário de Zezé Mateus, arrefecera
a palestra da sociedade. Despediram-se, e cada um foi para o seu lado. Cassi,
que fingira aborrecer-se com a tendenciosa notícia de Timbó
e o comentário de Zezé, ficou, ao contrário, muito contente
com ela. Tinha resolvido não ir à tal festa; mas, pelo que
informara Ataliba, talvez não tivesse nada a perder. Experimentaria.
Mordeu os lábios e seguiu para o clube, com a consciência leve
e o coração alegre…

IV

Veio o dia da festa; a pequena casa regurgitava; e – coisa curiosa – havia
mais convidados de idade meã que moças e rapazes. Isto se explicava
pela estreiteza de relações de Clara e dos seus pais, devido
à vida que levavam. Entre as moças, havia duas ou três
colegas de Clara, a filha de Lafões, uma sobrinha solteirona, Hermengarda,
de Dona Engrácia, e poucas mais. Entre os rapazes, havia dois jovens
colegas de Joaquim, Sabino e Honório; um irmão de Hermengarda
e um afilhado de Lafões, que era vigia do cais do porto. Em compensação,
as senhoras, mães de família, eram inúmeras. Destacava-se
muito Dona Margarida Weber Pestana, pelo seu ar varonil, tendo sempre
ao lado o filho único, de quatorze anos, fardado com uma fardeta de
colegial. Tinha, essa senhora, um temperamento de heroína doméstica.
Viera muito cedo para o Brasil, com o pai, que era alemão; ela, porém,
havia nascido em Riga, russa portanto, como sua mãe o era. Antes dos
dezesseis anos, ficara órfã de mãe. Seu pai emigrara
para o Brasil, contratado a trabalhar no acabamento das obras da Candelária.
Era estucador, marmorista, um pouco escultor; enfim, um operário fino,
para essas obras especiais de revestimento e decoração interna
de edifícios suntuosos.

Bem cedo, mostrou ela inclinação por um tipógrafo que
comia na "pensão" que havia montado, na Rua da Alfândega,
e dirigia ativamente. Casaram-se, e ele morreu dois anos depois, após
o casamento, de tuberculose pulmonar, deixando-lhe o filho, o Ezequiel, que
não a largava. Ano e meio depois, morreu-lhe o pai, de febre amarela.
Continuou com a "pensão"; mas bem cedo vendeu-a e comprou
uma casita nos subúrbios, aquela em que morava, quase junto de Joaquim.
Costurava para fora, bordava, criava galinhas, patos e perus, e mantinha-se
serenamente honesta. O Senhor Ataliba do Timbó deu em certa ocasião
em persegui-la com ditinhos de amor chulo. Certo
dia, ela não teve dúvidas: meteu-lhe o guarda-chuva com vigor.
À noite, no intuito de defender as suas galinhas da sanha dos ladrões,
de quando em quando, abria um postigo, que abrira na janela da cozinha, e
fazia fogo de revólver. Era respeitada pela sua coragem, pela sua bondade
e pelo rigor de sua viuvez. O Ezequiel, seu filho, puxara muito ao pai, Florêncio
Pestana, que era mulato, mas tinha os olhos glaucos, translúcidos,
de sua mãe meio eslava, meio alemã, olhos tão estranhos
– olhos tão estranhos a nós e, sobretudo, ao sangue dominante
no pequeno.

Afora Dona Margarida Pestana, notava-se Dona Laurentina Jácome, uma
velha, sempre metida com rezas e padres, pensionista do ex-Imperador e empregada
numa capelinha da vizinhança, de cuja limpeza era encarregada, inclusive
da lavagem das toalhas dos altares. Não podia conversar outra coisa
que não fossem acontecimentos eclesiásticos e, quase sempre,
os de sua igreja:

– A senhora não sabe, Dona Engrácia, de uma coisa?

– O que é? – O Padre Santos, este mês, disse mais de vinte missas
e só recebeu cinco. Pobre Padre Santos! É mesmo um santo!

E contraía a fisionomia enrugada e, erguendo-a um pouco, apertava
as mãos ao jeito de quem reza.

Além desta, havia uma digna de nota: era Dona Vicência. Morava
na vizinhança também e vivia de deitar cartas e cortar "coisas-feitas".
O seu procedimento era inatacável e exercia a sua profissão
de cartomante com toda a seriedade e convicção.

Havia outras sem nada de notável, como entre os cavalheiros só
havia um que se destacava. Convém não esquecer que Lafões
e Marramaque lá estavam a postos. O cavalheiro digno de nota era um
preto baixo, um tanto corcunda, com o ombro direito levantado, uma enorme
cabeça, uma testa proeminente e abaulada, a face estreitante até
acabar num queixo formando, queixo e face, um V monstruoso, na parte anterior
da cabeça; e, na posterior, no occipital desmedido, acaba o seu perfil
monstruoso. Chamava-se Praxedes Maria dos Santos; mas gostava de ser tratado
por doutor Praxedes.

A monstruosidade de sua cabeça o pusera a perder. Por tê-la
assim, julgou-se uma inteligência, um grande advogado, e pôs a
freqüentar cartórios, servindo de testemunha, quando era preciso,
indo comprar estampilhas, etc., etc.

Com o tempo, tomou algumas luzes e atirou-se a tratar de papéis de
casamento e organizou uma biblioteca particular de manuais jurídicos,
de índices de legislação, etc., etc. Vestia-se sempre
de fraque, botinas de verniz ou gaspeadas, e não dispensava a pasta
indicadora de homens de leis. Quando foi moda ser de rolo, ele a usou assim;
quando veio a moda de ser em saco, como a trazem agora os advogados, ele comprou
uma luxuosa de marroquim com fechos de prata.

Não falava senão em leis e decretos: "porque – dizia ele
– a Lei 1857, de 14 de outubro de 1879, diz que a mulher casada, no regime
do casamento, não pode dispor dos seus bens, ter dinheiro em bancos,
na Caixa Econômica; entretanto, o Decreto 4572, de 24 de julho de 1899,
determina…"

Afora o seu amor a esse embrulho legislativo, gostava de versos; mas não
de modinha. Era este o cavalheiro mais notável que havia vindo ao baile
de anos de Clara. É que até àquele momento, com grande
desgosto para as moças, o trovador Cassi não havia ainda aparecido.
Clara não ocultava o seu desapontamento; e uma de suas colegas lhe
dizia em confidência:

– Clara, toma cuidado. Este homem não presta.

A moça não respondia, encaminhava-se para a sala de jantar,
a fim de disfarçar a emoção, simulando ir beber água.

Clara estava bem vestidinha. Era inteiramente de crepom o seu vestido, com
guarnição de renda de indústria caseira, mas bonita e
bem trabalhada; o pescoço saía-lhe nu e a gola do casaco terminava
numa pala debruada de rendas. Calçava sapatos de verniz e meias. Nas
orelhas tinha grandes africanas e penteara-se de bandós, rematando
o penteado para trás, na altura do pescoço, um coque, fixado
por um grande pente de tartaruga ou coisa parecida.

Quando ela foi beber água, seguiu-lhe a sua amiga Etelvina, uma crioulinha
espevitada, sua antiga colega do colégio. Vestia-se esta com um mau
gosto de aborrecer. Todo o vestido era azulceleste, com rendas pretas; os
sapatos amarelos e as meias cor de abóbora. Ao redor da cabeça,
dividindo a testa ao meio, uma fita vermelha, de um vermelho muito berrante.
Os gregos chamavam este adorno feminino de stephané; e, ao que parece,
as portadoras não eram lá tidas como virtuosas.

Essa Etelvina era a primeira dançarina do baile, não tinha
até ali perdido uma contradança. A orquestra era composta de
flauta, cavaquinho e violão – um "terno", como denominam
os seresteiros.
O baile ia adiantado, quando a filha de Lafões veio correndo do portão
do mimoseado jardim que enfrentava a casa, anunciando alegre:

– Ê vem aí, "Seu" Cassi.

Entrou. Houve um estremecimento que percorreu os convivas, como um choque
elétrico. Todas as moças, das mais diferentes cores, que, ali,
a pobreza e a humildade de condição esbatiam e harmonizavam,
logo o admiraram na sua insignificância geral, tão poderosa é
a fascinação da perversidade nas cabeças femininas. Nem
César Bórgia, entrando mascarado, num baile à fantasia,
dado por seu pai, Alexandre VI, no Vaticano, causaria tanta emoção.
Se não disseram: "É César! É César!"
– codilharam: "É ele! É ele!"

Os rapazes, porém, não ficaram contentes, pressentindo essa
satisfação das damas; e, entre eles, puseram-se a contar a biografia
escabrosa do modinheiro.

Apresentado, por Lafões, aos donos da casa, e à filha, ninguém
lhe notou o olhar guloso de grosseiro sibarita sexual que deitou para os seios
empinados de Clara.

O baile continuou animado; Cassi, porém, não dançava
e foi reforçar o terno de cavaquinho, flauta e violão, com o
seu instrumento.

Dona Margarida, com o seu porte severo, olhava as damas, sentada ao sofá
austríaco, tendo ao lado o filho. A polca era a dança preferida,
e todos quase a dançavam com requebros próprios de samba. Os
convidados que não dançavam se haviam espalhado por várias
partes da casa. Joaquim, Lafões e Marramaque ouviam o doutor Praxedes
explicar o que era um habeas corpus preventivo.

– Exemplifico – dizia o doutor Praxedes, erguendo a mão direita catedraticamente,
com o indicador apontado para o teto. – É uma medida perfeitamente
jurídica de profilática, porque…

Nisto acode o "doutor" Meneses, um velho hidrópico, com
a mania de saber todas as ciências, vivendo na maior miséria,
apesar de exercer clandestinamente a profissão de dentista.

– Doutor Praxedes – acudia o doutor Meneses – não julgo a comparação
própria. Cada ciência tem seu campo próprio…

A discussão tomava vulto e Joaquim se levantou. Sempre que ele fazia
isto, Meneses seguia com os olhos o carteiro, a ver se ele ia até a
cozinha mandar pôr a ceia. O sábio dentista viera à última
hora, na esperança que a houvesse. Não lograra dinheiro para
tomar um caldo. Joaquim, porém, aborrecido com a discussão,
fora simplesmente até à sala de visitas convidar:

– Quem quiser tomar alguma coisa, comer biscoitos, é só vir
cá dentro. Não façam cerimônia.

Toda a vez que o anfitrião dizia isso, Meneses comia duas empadas
e quatro sandwiches e bebia uma boa "talagada" de parati.

O dono da casa convidava Cassi especialmente; mas este não bebia,
não gostava. Não era esse o seu prazer…

De uma feita, indo à sala, Joaquim convidou-o:

– Por que não canta, "Seu" Cassi?

Até ali, não se falara nisso, e, repinicando as cordas do violão,
não deixava o famoso mestre violeiro de devorar sorrateiramente com
o olhar lascivo os bamboleios de quadris de Clara, quando dançava.

Ninguém se atrevia a convidá-lo; todos esperavam que o dono
da casa o fizesse. Feito o convite, ele respondeu cheio de uma cerimônia
afetada:

– Estou sem voz: esfalfei-me muito ontem, no baile do doutor Raposo e…
Vendo que seu pai o havia convidado, Clara animou-se:

– Por que não canta, "Seu" Cassi? Dizem que o senhor canta
tão bem…

Esse – "tão bem" – foi alongado maciamente. Cassi concertou,
com apurada pelintragem e com ambas as mãos, a pastinha oleosa; limpou,
em seguida, os dedos no lenço e respondeu dengoso:

– Qual, minha senhora! São bondades dos camaradas…

Clara insistiu:

– Cante, "Seu" Cassi! Vá!

Ele, então, torcendo a cabeça para o lado esquerdo, cuja mão
espalmada abria para o alto, e fingindo constrangimento, respondeu:

– Já que a senhora manda, vou cantar.

Marramaque, que tinha ouvido tudo, ficou espantado com o desembaraço
da afilhada. Diabo! fez ele de si para si. O violeiro, com todo o dengue,
agarrou o violão, fez estalar as cordas e avisou:

— Vou cantar uma modinha velha, mas muito gentil e literária — "Na
Roça".

Muitos circunstantes ficaram desapontados, porque já a conheciam;
mas outros gostavam muito da modinha e aprovaram a escolha.

Cassi começou:

“Mostraram-me um dia
Na roça dançando
Mestiça formosa
De olhar azougado…”

Isto tudo era dito quase aos poucos, sem modulação alguma,
enquanto o violão repinicava as mesmas notas, numa indigência
musical, numa monotonia de sons, que dava sono. Quando chegava ao estribilho:

“Sorria a mulata
Por quem o feitor
Diziam que andava
Perdido de amor.”

Por aí ele empregava o seu tic invencível de tocador de violão
e cantor de modinha. Cantando, revirava os olhos e como que os deixava morrer.
O Cardeal de Retz diz, nas suas famosas Memórias, que Mme. de Montayon,
ou uma outra qualquer duquesa, ficava mais bela quando os seus olhos morriam.
Cassi talvez ficasse mais, se ele tivesse alguma beleza; entretanto, esse
seu tic impressionava as damas.

Clara, que sempre a modinha a transfigurava, levando-a a regiões de
perpétua felicidade, de amor, de satisfação, de alegria,
a ponto de quase ela suspender, quando as ouvia, a vida de relação,
ficar num êxtase místico, absorvida totalmente nas palavras sonoras
da trova, impressionou-se profundamente com aquele jogo de olhar, com que
Cassi comentava os versos da modinha. Ele sofria, por força, senão
não punha tanta expressão de mágoa, quando cantava –
pensava ela.

Tão embevecida estava, tão longe pairava o seu pensamento que,
quando Cassi acabou, se esqueceu de aplaudir o troveiro que, para o seu rudimentar
gosto, lhe tinha proporcionado tão forte prazer artístico.

Comentava-se ainda a execução do maestro Cassi; e ele ao lado
percebia os gabos e críticas. Por esse tempo, como uma aparição
em alçapão de mágica, surgiu repentinamente, no centro
da sala, o "doutor" Praxedes, célebre advogado nos auditórios
suburbanos. Iniciou:

– Minhas senhoras e meus senhores. Peço-lhes a devida vênia,
para recitar uma mimosa poesia de um nosso patrício. É uma obra-prima
de chiquismo e de moralidade. O seu autor é o Major Urbano Duarte,
que morreu, se não me falha a memória, general-de-brigada. Vou
recitá-la, se me permitem. Chama-se "A Lágrima".

Dizendo isto, o seu todo grotesco ainda mais grotesco ficava, com a gesticulação
desordenada dos braços, que rodavam, duros e hirtos, em torno dos ombros,
de cima para baixo. Pareciam asas de um antigo moinho de vento. Começou
gritando a primeira estrofe e já se babando pelos cantos dos seus lábios
violáceos:

“Cismava à beira-mar, a linda Marieta,
Seguindo tristemente o sulco do vapor,
O qual, fugindo além, sumiu-se no horizonte,
Levando a longe terra o seu primeiro amor.”

O seu gritar, o seu babujar, o seu gesticular foram crescendo. Quando chegou
ao primeiro terceto do soneto, quase não tinha mais voz. Da assistência,
apossara-se uma louca vontade de rir; muitos se contiveram; outros, porém,
se retiraram para gargalhar longe. O doutor Praxedes nada via e continuava
impertérrito; afinal acabou:

“Depois, quando o luar banhando a natureza
Em pálidos clarões de luz misteriosa,
Eu vi no arrebentar do mar embravecido
A lágrima a boiar na pétala de rosa.”

Ao terminar, recebeu palmas, e, sentando-se, cansado de tão estúrdio
esforço muscular, ainda disse:

– Essa lágrima é a da Marieta de que "o verso" fala
no começo. É preciso que os senhores e as senhoras não
se esqueçam desse pormenor.

Marramaque, que até ali, sem ser notado, seguira a insistência
com que o trovador Cassi olhava Clara, resolveu pregar-lhe uma peça.
Apoiado na sua bengala amiga, com a perna esquerda encolhida, devido aos ataques,
e o respectivo braço fixado em ângulo reto, conseqüência
também dos ataques – encaminhou-se para o centro da sala, capengando,
a fim de recitar, por sua vez. A parte esquerda da boca era defeituosa também,
e isso provocava-lhe muito esforço para pronunciar bem as palavras.

Não atendeu a nenhuma consideração e pôs-se em
pé para recitar.

Assim é que ia fazer; deu o título da poesia – "Persistência"
– e começou naturalmente, como quem já soubera recitar com relativa
perfeição, quando estava são. Recitando, olhava sempre
para Cassi, que, calado, numa reserva de moço bem-comportado, ficara
de pé, encostado ao vão da janela de frente.

Marramaque atacou os versos, saltitando na sala:

“Se às vezes contigo esbarro
e grito, esperneio e berro,
que me traz de há muito zarro
a paixão que aqui encerro,

Tu foges. E a ti me agarro,
cismando: (e nisto não erro)
Se eu tenho uma alma de barro,
tu mostras que a tens de ferro.

E se nada mais espirro
é porque, então, se não corro,
a coisa já cheira a esturro.

Que queres? Eu próprio embirro
com este amor por que morro,
mas é que sou muito burro.”

O final causou uma franca hilaridade na assistência, e até Clara
riu- se a perder; mas ninguém perguntou quem era o autor; e, se lhe
perguntassem, Marramaque não lhe sabia o nome. Era a poesia sem assinatura,
num jornal antigo, gostara dela e a decorara. O povo é avesso a guardar
os nomes dos autores, mesmo os dos romances, folhetins que custam dias e dias
de leitura. A obra é tudo, para o pequeno povo; o autor, nada.

Cassi, que, logo, antipatizara com Marramaque, percebeu que a coisa era com
ele. Perceberia outro mais burro do que o gabado artista da modinha, tanto
era a teimosia com que o velho aleijado o olhava. Cassi pensou, de si para
si: "Este pobre-diabo me paga.”

O que espantava, na ação de Marramaque, era a sua coragem.
Ele, semi-aleijado, velho, pobre, lançava um solene desafio àquele
valdevinos forte, são, habituado a rolos e rixas.

Cassi não se demorou mais por muito tempo. Pediu o chapéu,
despediu-se dos donos da casa e da filha destes, fez um cumprimento em roda
e, quando deu com o rosto de Marramaque, com os olhos estranhamente fixos
nele, a boca semi-aberta, o braço esquerdo fixado em ângulo reto,
pela moléstia, arrastou-se. Parecia uma aparição… Deixara
de ser o contínuo aleijado que ele antes tinha visto; era outra coisa,
mais do que o simples Marramaque, que o espantava e o fazia tremer.

Com a atitude desassombrada daquele velho aleijado em face dele e que havia
adivinhado, não sabia ele como, os seus maus propósitos em relação
à Clara, Cassi sentiu, apesar do seu quase congênito embotamento
moral, que havia na vida, ou, por outra, nas relações entre
os homens, um guia silencioso e secreto, que pesava os nossos atos e pedia,
para dar- lhes apoio e encaminhar-nos para uma paz interior e um contentamento
conosco mesmos, o emprego, em todas as nossas ações, do Justo,
do Leal, do Verdadeiro e do Generoso; e esse guia – ele via agora com o caso
de Marramaque – dava forças aos fracos, coragem aos tímidos
e uma seráfica e íntima satisfação,
quando cumpríamos o nosso dever com honra e dignidade. Esse guia era
a Consciência.

Confusamente, ele pensou isso; mas, ao passar o terror, o pavor, que lhe
causara o olhar fixo, vitrificado, sobrenatural do velho Marramaque; olhar
que o fizera um instante voltar-se para dentro de si mesmo e examinar-se –
tornou com pressa ao que era e, fazendo um desdenhoso – ora! – , repetiu de
si para si a ameaça que já fizera: "Aquele boneco de engonço
me paga.”

Depois da saída de Cassi, ainda se bailou até os primeiros
albores da aurora. Meneses, que tinha cochilado bastante, pôde, afinal,
pela madrugada, comer um pouco de galinha assada e porco, que havia sobrado
do jantar; mas não encetou discussão mais alguma com o doutor
Praxedes; mesmo porque este já se havia despedido, por ter de comparecer
muito cedo à audiência de um pretor, a fim de inquirir testemunhas
num feito importante em que funcionava como advogado.

Quando todos se foram e Clara recolheu-se a seu quarto, que dava para a sala
de jantar, Joaquim e a mulher ficaram nela, comendo ainda alguma coisa que
sobrara. Foi então que Engrácia disse para o marido:

– Tudo foi muito bem. Todos se portaram decentemente, com respeito; mas
uma coisa não quero mais.

– O que é?

– É que esse Cassi venha mais aqui. Dona Margarida me disse que ele
é, é um devasso.

Você não vê como ele canta indecentemente, revirando os
olhos… Não o quero mais aqui; se ele vier…

– Não é preciso você se zangar, Engrácia; não
gostei também dele e não porá mais os pés na minha
casa.

Clara, que, deitada, no quarto, havia ouvido toda a conversa, pôs-
se, em silêncio, a chorar.

V

Quem conhecesse intimamente Engrácia, havia de ficar espantado com
a atitude decisiva que tomou em relação à visita de Cassi.
O seu temperamento era completamente inerte, passivo. Muito boa, muito honesta,
ativa no desempenho dos trabalhos domésticos; entretanto, era incapaz
de tomar uma iniciativa em qualquer emergência. Entregava tudo ao marido,
que, a bem dizer, era quem dirigia a casa. Rol de compras a fazer na venda
do "Seu" Nascimento, diariamente, e também o de legumes e
verduras, quem os organizava era o marido, especificando tudo por escrito
e deixando o dinheiro para o quitandeiro, todas as manhãs, quando ia
para o trabalho. De caminho,
deixava a lista de gêneros no "Seu" Nascimento, onde pagava
tudo por mês.

Qualquer acontecimento inesperado que lhe surgisse no lar, punha-a tonta
e desvairada. Quando ainda tinham a velha preta Babá, que a criara
na casa dos seus protetores e antigos senhores de sua avó, talvez um
deles, pai dela, ficou Engrácia quase doida, ao ser a velha Babá
acometida de um ataque súbito. Não sabia o que fazer. Foi preciso
que Dona Margarida interviesse, mandasse chamar o médico, fizesse aviar
a receita, tomasse, enfim, as providências que o caso exigia. A velha
morreu daí a pouco, de embolia cerebral. Muito Engrácia sofreu
com essa morte, pois, não tendo conhecido sua mãe, que lhe morrera
aos sete anos, fora Babá que a criara. Os seus
protetores tinham sido abastados; eram descendentes de um alferes de milícias,
que tinha terras, para as bandas de São Gonçalo, em Cubandê.
Pouco depois da Maioridade, com a morte do chefe da casa, filhos e filhas
se transportaram para a Corte, procurando aqueles empregaram-se nas repartições
do governo. Um dos irmãos já habitava a capital do Império
e era cirurgião do Exército, tendo chegado a cirurgião-mor,
gozando de grande fama. Para a cidade não trouxeram nenhum escravo.
Venderam a maioria e os de estimação libertaram. Com eles, só
vieram os libertos que eram como da família. Pelo tempo do nascimento
de Engrácia, havia poucos deles e delas em casa. Só a Babá,
sua mãe e um preto ainda estavam sob o teto patriarcal dos Teles de
Carvalho.

Engrácia foi criada com mimo de filha, como os outros rapazes e raparigas,
filhos de antigos escravos, nascidos em casa dos Teles.

Por isso, corria, de boca em boca, serem filhos dos varões da casa.
O cochicho não era destituído de fundamento, naquela família,
composta de irmãs e irmãos, ainda abastada, que se comprazia,
tanto uns como as outras, em tratar filialmente aquela espécie de ingênuos,
que viam a luz do dia, pela primeira vez, em sua casa. As senhoras, então,
eram de uma meiguice de verdadeiras mães.

Engrácia recebeu boa instrução, para a sua condição
e sexo; mas, logo que se casou – como em geral acontece com as nossas moças
-, tratou de esquecer o que tinha estudado. O seu consórcio com Joaquim,
ela o efetuara na idade de dezoito anos.

Fosse a educação mimosa que recebera, fosse uma fatalidade
de sua compleição individual, o certo é que, a não
ser para os serviços domésticos, Engrácia evitava todo
o esforço de qualquer natureza.

Não saía quase. Era regra que só o fizesse duas vezes
por ano: no dia 15 de agosto, em que subia o outeiro da Glória, a fim
de deixar uma espórtula à Nossa Senhora de sua íntima
devoção; e, no dia de Nossa Senhora da Conceição,
em que se confessava. Levava sempre a filha e não a largava de a vigiar.
Tinha um enorme temor que sua filha errasse, se perdesse… A não ser
com ela, Clara, muito a contragosto da mãe, saía de casa para
ir ao cinema, no Méier e Engenho de Dentro, e outras vezes – poucas
– para fazer compras nas lojas de fazendas, de sapatos e outras congêneres,
acreditadas nos subúrbios.

Essa reclusão e, mais do que isso, a constante vigilância com
que sua mãe seguia os seus passos, longe de fazê-la fugir aos
perigos a que estava exposta a sua honestidade de donzela, já pela

sua condição, já pela sua cor, fustigava-lhe a curiosidade
em descobrir a razão do procedimento de sua mãe.

Clara via todas as moças saírem com seus pais, com suas mães,
com suas amigas, passearem e divertirem-se, por que seria então que
ela não o podia fazer?

A pergunta ficava sempre sem resposta, porque não havia meio, naquele
isolamento em que vivia, de tudo e de todos, de encontrar a que cabia.

Engrácia, cujos cuidados maternos eram louváveis e meritórios,
era incapaz do que é verdadeiramente educação. Ela não
sabia apontar, comentar exemplos e fatos, que iluminassem a consciência
da filha e reforçassem-lhe o caráter, de forma que ela mesma
pudesse resistir aos perigos que corria.

A mulher de Joaquim dos Anjos tinha a superstição dos processos
mecânicos, daí o seu proceder monástico em relação
à Clara.

Enganava-se com a eficiência dela; porque, reclusa, sem convivência,
sem relações, a filha não podia adquirir uma pequena
experiência da vida e notícia das abjeções de que
está cheia, como também a sua pequenina alma de mulher, por
demais comprimida, havia de se extravasar em sonhos, em sonhos de amor, de
um amor extra-real, com estranhas reações físicas e psíquicas.

Acresce, ainda, que era geral em sua casa o gosto de modinhas. Sua mãe
gostava, seu pai e seu padrinho também. Quase sempre havia sessões
de modinhas e violão na sua residência. Esse gosto é contagioso
e encontrava, no estado sentimental e moral de Clara, terreno propício
para propagar-se. As modinhas falam muito de amor, algumas delas são
lúbricas até; e ela, aos poucos, foi organizando uma teoria
do amor, com os descantes do pai e de seus amigos. O amor tudo pode, para
ele não há obstáculos de raça, de fortuna, de
condição; ele vence, com ou sem pretor, zomba da Igreja e da
Fortuna, e o estado amoroso é a maior delícia da nossa existência,
que se deve
procurar gozá-lo e sofrê-lo, seja como for. O martírio
até dá-lhe mais requinte…

As emolientes modinhas e as suas adequadas reações mentais
ao áspero proceder da mãe tiraram-lhe muito da firmeza de caráter
e de vontade que podia ter, tornando-a uma alma amolecida, capaz de render-se
às lábias de um qualquer perverso, mais ou menos ousado, farsante
e ignorante, que tivesse a animá-lo o conceito que os bordelengos fazem
das raparigas de sua cor. Cassi era dessa laia: entretanto, Clara, na sua
justificável ignorância do mecanismo da nossa vida social, julgava
que seus pais eram com ele injustos e grosseiros.

Depois do baile de seu aniversário, quinze ou vinte dias depois, num
domingo, Cassi bateu à porta da casa de seus pais. Engrácia
estava justamente arrumando a sala de visitas; recebeu-o com visível
desgosto e gritou para a cozinha, onde estava Clara:

– Chama teu pai, que está aí "Seu" Cassi.

A moça ia aproximar-se para falar ao modinheiro, quando a mãe
lhe disse rapidamente:

– Vá chamar seu pai! Ande!

Joaquim não custou a vir; e, após os cumprimentos, dirigiu-se
ao rapaz:

– Que é que manda nesta casa, meu caro senhor?

– Nada. Fui visitar um amigo e, passando pela sua porta, resolvi cumprimentá-lo.

– Muito obrigado. A partida de solo está fervendo e eu não
me posso demorar.

Cassi olhou um instante, com seu olhar mau, o velho mulato; mas a nada se
atreveu. Estiveram calados dois ou três minutos um diante do outro,
até que o famoso violeiro tomou o alvitre de despedir-se. Clara veio
saber da cena, pela narração que seu pai fez à sua mãe,
e ficou aborrecida, cheia de desgostos com eles e com a situação
em que estava, imposta por eles, para o seu sofrimento.

Avaliou em algum ressaibo de revolta o procedimento dos pais. O que queriam
fazer dela? Deixá-la ficar para "tia" ou fazê-la freira?
E ela precisava casar-se? Era evidente; sua mãe e seu pai tinham, pela
força das coisas, que morrer antes dela; e, então, ela ficaria
pelo mundo desamparada? Cochichavam que Cassi era isto e era aquilo. Dona
Margarida e o padrinho eram os que mais mal falavam dele: que era um devasso,
um malvado, um desencaminhador de donzelas e senhoras casadas. Como ele poderia
ser tanta coisa ruim, se freqüentava casas de doutores, de coronéis,
de políticos? Naturalmente havia nisso muita inveja dos méritos
do rapaz, em que ela não via senão delicadeza e modéstia
e, também, os suspiros e os dengues de violeiro consumado.

Uma dúvida lhe veio; ele era branco; e ela, mulata. Mas que tinha
isso? Havia tantos casos… Lembra-se de alguns… E ela estava tão
convencida de haver uma paixão sincera no valdevinos, que, ao fazer
esse inquérito, já recolhida, ofegava, suspirava, chorava; e
os seus seios duros quase estouravam de virgindade e ansiedade de amar.

De resto, era preciso libertar-se, passear, conhecer a cidade, teatros, cinemas…
Ela não conhecia nada disso. Até ir de um pulo à venda
do "Seu" Nascimento não tinha licença. Um dia, por
inadvertência, faltou sal para preparar o jantar; pois, nem mesmo assim,
teve licença de ir à venda, e sua mãe não foi,
para não deixá-la só. Tiveram que esperar uma hora, até
que o caixeiro passasse. Entretanto, o armazém do "Seu" Nascimento
não era mal freqüentado, e todos que lá paravam eram pessoas
de certa consideração e sem pecha alguma. Esta última
observação de Clara era inteiramente verdadeira.

Mesmo a Rosalina, mais conhecida pelo apelido pejorativo de Mme. Bacamarte,
apesar da vida má e desgraçada que levava, no armazém
se portava com todo o rigor. Era verdadeiramente infeliz, essa rapariga. Seduzida
em tenra idade, a polícia obrigou o sedutor a casar-se com ela. Nos
três primeiros anos, as coisas correram mais ou menos naturalmente.
Ao fim deles, devido a reveses, o marido começou a embirrar com ela,
a atribuir-lhe toda a sua desgraça, a espancá-la, mas dando
alguma coisa com que ela se sustentasse e aos filhos. Já bebia, o marido
dela; e, por esse tempo, fazia-o sem método nem medida. Bebia a mais
não poder, em casa, nos botequins, em toda
a parte. Faltava à oficina para beber. Rosalina "pegou" o
vício do marido e, do pouco dinheiro que ele lhe dava ou com o seu
trabalho obtinha, comprava parati. O marido devia seis meses de casa – um
modesto barracão de madeira, com uma sala, um quarto e um pequeno adendo
para a cozinha. O senhorio perseguia-o; ele fugia e deixava com a mulher o
encargo de explicar os atrasos. Um belo dia, ela vê entrar o proprietário
com dois homens. Nada dizem. Encostam sua escada no telhado e destelham a
choupana. Deixou tudo o que tinha na mão dos desalmados. Pede a uma
vizinha que fique com um filho; e uma outra, que fique com o mais moço,
e correu a atirar-se
debaixo do primeiro trem que passou. Sofreu escoriações e fraturas
em um braço e uma perna; mas os médicos da Santa Casa conseguiram
salvá-la. Saiu renovada, e o seu rostinho de mulatinha sapeca tinha
recuperado um pouco o viço e a petulância que devia ter pela
puberdade.

Os filhos, a mãe – uma pobre lavadeira – os tinha recolhido; e o marido
nunca mais o vira. Em começo, portou-se bem; mas bem depressa foi correndo
de mão em mão, até que as moléstias venéreas
a tomaram de todo, obrigando-a a visitas constantes à Santa Casa, para
levar injeções e sofrer operações. Proibida de
beber, não obedecia à prescrição médica.
Quando não tinha dinheiro, obtido de que maneira fosse, esperava pacientemente
que as suas galinhas ou as de sua mãe, com quem morava, "pusessem",
e logo corria à venda a trocá-los, por duzentos ou trezentos
réis de parati.

Ela, porém, não fazia "ponto" no armazém do
"Seu" Nascimento. Educado e criado na roça, tendo negociado
no interior do Estado do Rio, onde ainda tinha fazenda, ele gostava que pessoas
de certa ordem fossem ao seu negócio ler os jornais e conversar – hábito
do interior, como todos sabemos. A sua venda tinha até aqueles tradicionais
tamboretes de abrir e fechar das antigas vendas e ainda são conservados
nos armazéns roceiros. Demais, a sua casa de negócio ficava
num lugar pitoresco, calmo, pouco transitado, diante das velhas árvores
da chácara de Mr. Quick Shays e olhando para uns cumes caprichosos
de montanhas distantes. Compravam muitas pessoas, para as
quais tinha freguesia certa.

Um deles era o Alípio, um tipo curioso de rapaz que, conquanto pobre
e ter amor à cachaça, não deixava de ser delicado e conveniente
de maneiras, gestos e palavras. Tinha um aspecto de galo de briga; entretanto,
estava longe de possuir a ferocidade repugnante desses galos malaios de rinhadeiro,
não possuindo – convém saber-se – nenhuma. Sem ser instruído,
não era ignorante; mas era inteligente e curioso de invenções
e aperfeiçoamentos mecânicos.

O velho Valentim era um outro freqüentador da venda, muito curioso e
pitoresco. Português, com muito mais de sessenta anos, não deixava
de trabalhar, chovesse ou fizesse sol. Era chacareiro e, devido talvez ao
ofício, que ele o devia exercer há bem perto de quarenta anos,
tinha o corpo curvado de modo interessante. Não se sabia se era para
trás ou para diante; fazia uma espécie de S, em que faltassem
as extremidades.

Contava longos "casos" que não se acabam mais, especialmente
o João de Calais – como ele pronunciava -, pontilhando a sua longa
e enfadonha narração, com rifões portugueses de uma graça

saborosa e uma filosofia saloia. Era o que se aproveitava da sua conversa.

Aparecia, também, em certas ocasiões, o Leonardo Flores, poeta,
um verdadeiro poeta, que tivera o seu momento de celebridade no Brasil inteiro
e cuja influência havia sido grande na geração de poetas
que se lhe seguiram. Naquela época, porém, devido ao álcool
e desgostos íntimos, nos quais predominava a loucura irremediável
de um irmão, não era mais que uma triste ruína de homem,
amnésico, semi-imbecilizado, a ponto de não poder seguir o fio
da mais simples conversa. Havia publicado cerca de dez volumes, dez sucessos,
com os quais todos ganharam dinheiro, menos ele, tanto assim que, muito pobremente,
ele, mulher e filhos agora viviam com o produto de uma mesquinha aposentadoria
sua, do governo federal.

Raro era sair, porque a mulher punha todo o esforço em que ele o não
fizesse. Mandava buscar parati, comprava-lhe os jornais de sua estimação,
a fim de que ele permanecesse em casa. Às mais das vezes, ele obedecia;
mas, em algumas raras, recalcitrava, saía, com quinhentos réis
em cobre, na algibeira, bebia aqui, ali, dormia debaixo das árvores
das estradas e ruas pouco freqüentadas, e, mesmo, quando o delírio
alcoólico o tornava forte, despia-se todo e gritava heroicamente numa
doentia e vaidosa manifestação de personalidade:

– Eu sou Leonardo Flores.

O povo sabia vagamente que ele tinha celebridade. Chamava-o – o poeta. No
começo, caçoava com ele, mas ao saber de sua reputação,
deram em cercá-lo de uma piedosa curiosidade.

– Um homem desses acabar assim – que castigo! – dizia um.

– É "cosa" feita! Foi inveja da "inteligença"
dele! – dizia uma preta velha -. Gentes da nossa "cô" não
pode "tê inteligença"! Chega logo os "marvado"
e lá vai reza e "fêtiço", "pa perdê"
o homem – rematava a preta velha

Aparecia um circunstante mais prático na sua piedade, vestia novamente
o poeta e levava-o para a casa.

Era justamente a ele, Leonardo Flores, que o doutor Meneses procurava, quando,
naquela manhã de dia santo e não feriado, entrou na venda de
"Seu" Nascimento, mancando, devido à inchação
das pernas, e com as suas barbas brancas, abundantes, mas não cerradas,
aparadas e tratadas à imitação do nosso último
Imperador.

O doutor Meneses galgou a soleira da porta com esforço; parou um instante,
logo que se viu no interior da venda, pôs as mãos nas cadeiras
e respirou com força.

Após os cumprimentos, perguntou:

– O Flores não tem aparecido?

– Há muito tempo que não vem aqui – fez o "Seu" Nascimento
do interior do balcão.

– Fui à casa dele, e disse-me a mulher que havia saído…
Preciso tanto dele…

Ao dizer isto, sentava-se no tamborete que o caixeiro lhe abrira e o pusera
onde ele estava, o dentista.

Descansou mais um pouco, sorveu mais uma forte dose de ar e, dirigindo-se
ao Alípio, perguntou:

– Como vai você, Alípio?

Só estavam na venda Alípio e o velho Valentim, este em pé,
encostado ao umbral de uma porta lateral; e aquele, sentado, lendo um jornal.

Alípio respondeu:

– Vou bem; não tão bem como o senhor, que anda agora em companhia
de "almofadinhas" artistas.

– Como? – fez espantado o dentista particular.

– É o que dizem. Corre aqui que o senhor está toda a noite
com o mestre-violeiro Cassi e vários companheiros, num botequim do
Engenho Novo.

– É verdade. São todos rapazes decentes, que…

– Então, o Cassi, este é de colete?

– Dizem – interveio "Seu" Nascimento – que esse rapaz…

– É um bandido – acudiu Alípio. – Ele merecia mais do que
cadeia; merecia ser queimado vivo. Tem desgraçado mais de dez moças
e não sei quantas senhoras casadas.

– Isto é calúnia! – protestou Meneses.

– Fala-se muito por aí…

– Que o quê! Os processos têm corrido, os jornais têm publicado,
e ele arranja meios e modos para livrar-se das penalidades e lançar
na desgraça moças e senhoras – confirmou Alípio.

– Como ele consegue isso? – indagou "Seu" Nascimento.

– No começo, com a proteção do pai. Ao fim do segundo
ou terceiro caso que veio a público, o pai não lhe falou mais
e nunca mais se interessou pela sua liberdade. Sucederam-se outros, e, graças
à intervenção da mãe junto a um irmão,
médico do Exército, ele pôde arranjar rábulas sem
escrúpulos, que, pelos meios mais nojentos, conseguiram retirá-lo
das grades da detenção. Caluniava as vítimas com justificações
em que eram testemunhas Timbó, Arnaldo e outros tais. Contou-me a Vicência

– o senhor não a conhece, "Seu" Nascimento? – perguntou
Alípio.

– Quem é? – perguntou por sua vez o taberneiro.

– É aquela crioula velha que vem aqui, às vezes, fazer compras,
para a casa do Major Carvalho. Ela foi empregada na casa do pai de Cassi muito
tempo. Um dia – ela não sabe bem por quê – o pai expulsou-o de
casa. A mãe mandou-o para a casa do irmão em Guaratiba. Lá,
ele fez ou pretendeu fazer uma das suas, mas o tio não esteve pelos
autos; despachou-o para a irmã. A muito custo, a mãe conseguiu
que ficasse num porão dos fundos, que mal tem a altura dele. Nesse
"socavão" é que ele mora e come. Nunca sobe nas dependências
superiores da casa, com medo do pai. Se, por acaso, este tiver notícia
dessa sua ousadia, põe-no definitivamente na rua.

– Que diz a isso, doutor Meneses? – chasqueou Nascimento.

– Não sei, porque pouco me preocupo com a vida dos outros – tergiversou
Meneses.

– Não é da vida dos outros – fez impetuosamente Alípio;
– é com a vida de um pirata como Cassi, que não respeita família,
nem amizades, nem a miséria, nem a pobreza, para fazer das suas porcarias.
É por isso que eu…
"Seu" Nascimento interveio suasoriamente e pediu calma. Era um homem
alto, claro, um tanto obeso, tipo do antigo agricultor patriarcal, das nossas
velhas fazendas. Ele assim disse:

– Não é necessário indignar-se, Alípio, fique
calmo. O monstro não tem mais protetores, como você já
disse.

– Tem, "Seu" Nascimento – afirmou Alípio. – Ele é
esperto, "é manata escovado".

– Quem é, Alípio? – perguntou Nascimento, indo servir de açúcar
a um pequeno.

Os fregueses continuavam a chegar; em geral, eram crianças e mulheres.
As suas compras eram pobres: dois tostões disso, quatrocentos réis
daquilo – compras de gente pobre, em que raramente se via nelas incluído
meio quilo de carne-seca ou um de feijão. Tudo não excedia a
tostões. Mesmo atendendo aos fregueses, sozinho, pois os caixeiros
tinham ido correr a clientela fixa do armazém, "Seu" Nascimento
não perdia o fio da conversa, e ela continuava naturalmente.

Alípio, habituado a isso, não suspendeu a narração
e deu a resposta pedida.

– O protetor dele, agora, é um tal Capitão Barcelos, chefe
político na estação de***. Tem influência e foi
por saber disso que Cassi aderiu a ele. Já nessa última eleição
para uma vaga de intendente, ele funcionou com o seu rancho ao lado de Barcelos.
Não houve desordens, porque não apareceu outro candidato; mas
ele queria fazer uma para ganhar prestígio. Assim e aos poucos, vai
ganhando a confiança de Barcelos, a ponto do Freitas, que é
o subcabo deste, sentir-se magoado e preterido.

– Quem é esse Barcelos? – fez Nascimento.

– É um português, já com os seus cinqüenta anos,
bom, bom mesmo; mas, tendo ido para a detenção, pronunciado
que estava devido a uns tiros que dera em um sujeito, por lhe ter insultado
a mulher, produzindo no meliante ferimentos graves, isto há vinte anos,
ganhou lá o gosto pela política e lá aprendeu as primeiras
noções dessa difícil ciência. Foi na detenção
que…

– Ué! – exclamou Nascimento.

– Também você, Alípio… – fez duvidoso Meneses.

Alípio continuou:

– Lá, ele encontrou um político daqui da Capital, que estava
na chácara, a responder processo, como mandante de um assassínio.
O homem aproximou-se de Barcelos, e puseram-se a conversar. Não estavam
no cubículo; estavam na enfermaria, ou na sala livre, ou em outro compartimento
especial. Barcelos narrou sua vida, que, apesar daquele transtorno, não
corria mal. Tinha uma venda em ***; vendia a dinheiro e a crédito,
para o operariado das fábricas lá existentes; mas era feliz,
pois, apesar de fazer muitos fiados, quase não os perdia. Era até
estimado, pelo seu gênio folgazão e prestativo. O político,
que tinha um chefete adversário, naquela estação, viu
bem como, para desbancá-lo, podia aproveitar os serviços de
Barcelos. “Você por que não se mete na política?”,
disse ele um dia. O vendeiro de *** respondeu: “Mas não sou brasileiro,
doutor.” O seu alto companheiro de cárcere retrucou-lhe: “Eu
faço você brasileiro naturalizado, capitão da Guarda Nacional,
e você, nas eleições, trabalha para mim e os meus. Trate
logo de alistar o maior número de fregueses que você puder.”
Barcelos assentiu, trabalhou sempre para o tal político, por intermédio
do qual arranjou melhoramentos para o lugarejo, valorizando as suas terras
e prédios.

– Valeu a pena ir para a detenção!

– É verdade, “Seu” Nascimento. Daí, data a pouca
prosperidade de Barcelos, que possui perto de duzentos contos, em casas, terrenos
e apólices, afora o giro do negócio.

– Você, Alípio, se diz anarquista; mas o que você é,
é romancista. Isto é um romance – comentou Meneses.

– Qual, doutor! O senhor é que não sabe como as coisas se
fazem. Eu sei. O senhor, por exemplo, não sabe que Timbó levou
uma surra de uma senhora que mora aqui perto? – Não sei – respondeu
Meneses.

Quase ao mesmo tempo, Nascimento perguntava:

– Quem é Timbó?

– É um mulatinho faceiro, jogador de football e companheiro de Cassi,
testemunha sempre escolhida para depor em seu favor, caluniando as vítimas,
nos seus imundos processos.

– Foi ele quem levou a surra? – indagou Nascimento.

– Sim; ele, na estação de Todos os Santos, após uma
perseguição ignóbil a Dona Margarida …

– Que Dona Margarida? A do 74? – falou com surpresa Nascimento.

– Essa mesma. Deu-lhe de rijo com o guarda-chuva; e, quando ele a quis desarmar,
apareceu um cabra morrudo, que o pôs, pelas orelhas, para fora da plataforma,
donde saiu debaixo de vaia.

Dos companheiros de Cassi, o único perdoável &eacuteeacute; o Zezé
Mateus. Este não mexe com moça alguma, com família de
ninguém, não joga, não faz desordem. Quer beber e bebe
à sua custa, porque, quando quer trabalhar, abandona a tudo e salda
as suas dívidas. Os mais são uns piratas! Alípio calou-se,
e os seus interlocutores não aventaram nenhuma observação,
a não ser o velho Valetim, que havia ouvido toda a conversa, encostado
ao portal de pedra, fumando displicentemente o seu cigarro São Lourenço.
Ele perguntou, cheio da ingenuidade do campônio que fica sempre na primeira
aventura, das preferidas por Cassi:

– Mas, "Seu" Alípio, o senhor acredita que haja gente tão
malvada, como esse Cassi?

– Há, e não pouca. Sei de tudo que contei de fonte limpa.
É a pura verdade.

O doutor Meneses tinha ficado aborrecido com o tom da conversa. Tinha ido
à venda, procurar Leonardo Flores, para um negócio particular;
e encontrara o Alípio a par das suas relações com Cassi
e inteirado da vida deste. Diabo! Estaria se comprometendo? Havia já
tomado quatro copitos de parati; mas, quando se despediu, tomou um grande.
Caminhando pôs- se a pensar:

– Que devia fazer?

Pegou diversas hipóteses e concluiu:

– Ir até ao fim.

A coisa não oferecia nenhum perigo para ele…

Isso não o contentou de todo. Procurou distrair-se.

VI

A recepção que tivera Cassi, na sua segunda visita, seca, hostil,
quase sendo despedido à soleira da porta, ao contrário da primeira
vez que fora à casa de Joaquim dos Anjos, fizera-o meditar e açulara-lhe
o desejo de remover todos os obstáculos que se opunham à sua
aproximação de Clara. Por exclusão, ele só viu
duas pessoas capazes de lhe estarem atrasando seu "trabalho", começado
com tanta rapidez e sem esforço. Quem eram? Só podiam ser Dona
Margarida, por causa do "negócio" do Timbó; e o tal
aleijado, que lhe lançara a indireta, em verso, de chamá-lo
de burro.

Se na sedução, propriamente, ele não empregava absolutamente
força, no que era o contrário dos conquistadores suburbanos,
a ponto dos jornais noticiarem, de quando em quando, o desespero das vítimas
que se fazem assassinas, para se defenderem de tão torpes sujeitos;
Cassi, entretanto, quando no decorrer de suas conquistas, encontrava obstáculos,
fosse mesmo da parte do próprio irmão da vítima em alvo,
logo procurava empregar violência, para arredá-lo.

É bem de ver que ele sabia com quem se metia; mas, no caso, tratando-se
de um quase inválido, a força a empregar seria mínima;
e, no que toca a Dona Margarida, ele saberia enganá-la e embaí-la.

A sua força de valente e navalhista era mais fama do que realidade;
mas tinha fama, e muitos se intimidavam. Dava-lhe isso um ascendente sobre
os que, de boa-fé e honestamente, podiam prevenir as moças que
ele cobiçava, não as prevenindo, não as avisando, não
o desmascarando totalmente. Cheios de temor, deixavam o caminho franco ao
modinheiro.

A tal respeito, com o seu cinismo de sedutor de quinta ordem, tinha uma oportuna
teoria, condensada numa sentença: "Não se pode contrariar
dois corações que se amam com sincera paixão."

Colocando ao lado dessa teoria, bem sua, a consideração de
que não empregava violência nem ato de força de qualquer
natureza, ele, na sua singular moral de amoroso-modinheiro, não se
sentia absolutamente criminoso, por ter até ali seduzido cerca de dez
donzelas e muito maior número de senhoras casadas. Os suicídios,
os assassínios, o povoamento de bordéis de todo o gênero,
que os seus torpes atos provocaram, no seu parecer, eram acontecimentos estranhos
à sua ação e se haviam de dar de qualquer forma. Disso,
ele não tinha culpa.

Para certificar-se quem era que, na casa do "carteiro", fermentava
o seu descrédito, Cassi resolveu ir sondar Lafões, em sua casa.

Lafões morava bem próximo do reservatório do Engenho
de Dentro. Uma tarde, Cassi tomou o bonde de Piedade, que, para ir a essa
estação, logo após o Méier, se interna para os
lados da serra, toma ruas despovoadas e, por fim, a do Engenho de Dentro.
O caminho era então pitoresco, não só pelos restos de
capoeira grossa que ainda havia, mas também pelas casas roceiras de
varanda e pequenas janelas de outros tempos. Caminho de "tropa",
talvez, os engenheiros da Light só se deram ao trabalho de fazer sumários
nivelamentos. Os altos e baixos, os atoleiros e atascadeiros, consolidados
com gravetos e varreduras de capinas, transformaram o caminho do bonde, naquele
trecho, numa montanha-russa, com a lembrança, de um lado e outro, do
espetáculo do que seriam ou do que são os caminhos do nosso
interior, pelos quais nos chegam os cereais e a carne que comemos.

Às vezes, o bonde cruzava com uma tropa de carvoeiros de Jacarepaguá,
da Serra do Mateus e outras localidades ainda com florestas aproveitáveis;
e tínhamos uma imagem mais viva. Os tropeiros eram gente de sangue
muito mesclado, ossudos, jarretes nervosos e finos, pés espalmados,
às vezes de feições regulares, mas sempre cobertos de
barbas maltratadas e de uma insondável tristeza. Não eram só
homens feitos; havia crianças também, a guiar os burros em fila.

Quando o bonde apontava a sacolejar as suas ferragens, estourando que nem
um besouro, avisando-os da sua presença próxima com o zunido
contínuo do tímpano, ou, senão, com um apito, ao grito
de locomotiva, aqueles homens, vivendo tão perto da terra e da natureza
espontânea, não deixavam de se assustar e tomar precauções,
para sua segurança e dos seus pacientes animalejos. Encostavam bem
a tropa a uma ribanceira lateral da rua, quando na encosta; ou afastavam-se
para o lado, se havia terreno baldio e sem cerca, quando ela era planície;
e ficavam pasmos, diante daquele monstro zunidor que se movia por intermédio
de um grosso fio de arame. Os burros, quer num, quer noutro caso, permaneciam
indiferentes e punham-se a roer a erva escassa do campo ou a pastar a folhagem
que lhes dava sombra e crescia no alto da chanfradura do corte.

Chegou Cassi Jones à casa de Lafões quase à noite. Era
uma pequena casa, mas bem tratada e limpa. O pequeno jardim na frente merecia
cuidados e, no quintal, aos fundos, cresciam couves e repolhos, a dar saudades
de um bom caldo à portuguesa.

Lafões, por aquelas horas, após o jantar, tinha por hábito
pôr-se em camisa de meia, tamancos e calça, e completar a leitura
do jornal que iniciara pela manhã. Sentava-se a uma cadeira de balanço,
austríaca, que a punha bem junto à janela, tendo, à esquerda,
uma cadeira, em que repousavam o isqueiro (não usava fósforos)
e os cigarros "Fuzileiros".

Estava assim, naquela postura, e enrolava melhor um cigarro pacientemente,
quando lhe bateram no portão de ripas de madeira. Ergueu um tanto o
busto e, pondo um pouco a cabeça à mostra, quase rente ao peitoril
da janela, perguntou:

– Quem é?

Reconheceu logo:

– É o Senhor Cassi.

Ergueu-se e foi ao encontro dele, abrindo a porta de entrada. Tomou- lhe
o chapéu pelintra, a bengala ultra-aperfeiçoada e foi dizendo
prazenteiramente:

– Por aqui? Sente-se, ora esta! Seja bem-vindo!

O rapaz sentou-se, respondendo:

– Muito obrigado, meu caro "Seu" Lafões.

– Por que não aparece mais vezes, Senhor Cassi? – continuou Lafões
com amizade.

– Não tenho tido tempo. Nos dias da semana, são os negócios;
nos domingos, não dou para os convites. Eu vinha aqui…

– Para quê, Senhor Cassi?

– Pedir-lhe uma informação.

– Qual é, Senhor Cassi?

– Disseram-me que, no seu escritório, o inspetor está admitindo
escreventes, para não sei que serviço extraordinário.
O senhor não podia saber se isto é verdade?

– Pois não. Indago ao Braga, que é contínuo, vivo que
nem azougue, e sabe de tudo que lá se passa – explicou Lafões.

– Quando posso vir buscar a resposta?

– Olhe, Senhor Cassi: amanhã, à tarde, não, porque
tenho que ir à sessão da minha sociedade; mas, se tem pressa,
pode vir depois de amanhã, logo pelas sete ou oito horas.

– Bem – fez Cassi, simulando contentamento. – Desde já agradecido.
Como vão sua senhora e seus filhos?

– Bem. A mulher saiu mais o mais moço; foram a não sei que
ladainha por aí. É um inferno! Estes padres têm invadido
estes subúrbios com mais rapidez que os "turcos" de prestações.
É dinheiro para esse santo, é dinheiro para as obras da igreja…
Não posso mais! Edméia, porém, está lá
no fundo do quintal. Quer tomar café, Senhor Cassi?

– É incômodo… Se a sua senhora estivesse, sim; mas…

– Não há incômodo algum. Edméia o aquece no espírito…
Só se o Senhor Cassi não gosta aquecido?

– Gosto.

– Pois bem, vamos a ele – e gritou pela filha, com possante voz de homem
são – Edméia! Edméia!

Não tardou em aparecer a filha. Era uma gentil menina de doze anos,
risonha, com uma fisionomia redonda de traços firmes e finos, cabelos
tirando para o louro, cortados à inglesa. Entrando, exclamou logo:

– Oh! Estava aqui “Seu” Cassi. Que surpresa! Não sabia…

Falou ao rapaz e este lhe disse a esmo:

– Há muito que não a via.

– É verdade, desde o dia de anos de Clarinha… Tem ido lá?

– Não tenho podido.

– Por quê? Parece que lá não gostam do senhor… Principalmente
aquele "pé-pé"…

– Menina – ralhou-lhe o pai. – Não te metas a intrigar os outros…
Vá aquecer o café e trazenos duas xícaras. Vá.

Saindo a menina, Cassi julgou de bom alvitre, para preencher o fim verdadeiro
de sua visita, dizer:

– Podem não gostar de mim. Mas a implicância é sem motivo.
Nunca…

– Ora, Senhor Cassi, o senhor vai dar ouvido a crianças. Elas não
sabem o que dizem.

– Agora, meu caro “Seu” Lafões, eu notei no dia da festa
que o compadre do Senhor Joaquim dos Anjos não me tragava – disse Cassi.

– Isto se explica. Ele foi ou é poeta e tem em conta de coisa nenhuma
os cantadores de modinhas. Lá na minha terra, os poetas dos fidalgos
e das fidalgas não tragam os fadistas do campo, aos quais chamam de
rústicos e outras coisas piores. Em cada ofício, há sempre
disso. O senhor não vê como os cocheiros desprezam os barbeiros?
Cocheiro que não presta é barbeiro. Marramaque, velho, doente,
não sabe disfarçar o seu mau juízo pelos que apreciam
o violão e o tocam, cantando modinhas.

– Mas… o "Seu" Joaquim?

– É que eles são compadres e amigos, meu caro Senhor Cassi.
Está explicado.

Vieram as xícaras de café e a conversa tomou outro rumo. Falaram
sobre as festas próximas do centenário da Independência,
sobre a crise financeira, mas Cassi em nada disso pensava. Pensava em Marramaque,
o audacioso aleijado, que queria se intrometer no seu amor por Clara. Pagaria
bem caro. Despediu-se em breve e, lentamente, deixou-se ir a pé subúrbios
abaixo. Eram estranhos aquele ódio e aquela obstinação.
Cassi não era absolutamente, nem mesmo de forma elementar, um amoroso.
A atração por uma qualquer mulher não lhe desdobrava
em sentimentos outros, às vezes contraditórios, em sonhos, em
anseios e depressões desta ou daquela natureza. O
seu sentimento ficava reduzido ao mais simples elemento do Amor – a posse.
Obtida esta, bem cedo se enfarava, desprezava a vítima, com a qual
não sentia ter mais nenhuma ligação especial; e procurava
outra.

A sua instrução era mais que rudimentar; mas, assim mesmo,
talvez devido a uma necessidade íntima de desculpar-se, gostava de
ler versos líricos, principalmente os de amor. Não lia jornais,
nem coisa alguma; mas, num retalho apanhado aqui, num almanaque acolá,
num livro que lhe ia ter às mãos, sem saber como, conseguia
ler alguns e os entender pela metade. Deles, desses sonetos e mais poesias
que, por acaso, iam parar em seu poder, ele concluía, com a sua estupidez
congênita, com a sua perversidade inata, que tinha o direito de fazer
o que fazia, porque os poetas proclamam o dever de amar e dão ao Amor
todos os direitos, e estava acima de tudo a
Paixão. Vê-se bem que ele não sentia nada do que, poetas
medíocres que o guiavam nas suas torpezas, falavam; e, sem querer apelar
para grandes ou pequenos poetas, percebia-se perfeitamente que nele não
havia Amor de nenhuma natureza e em nenhum grau. Era concupiscência
aliada à sórdida economia, com uma falta de senso moral digna
de um criminoso nato – o que havia nele.

O verdadeiro estado amoroso supõe um estado de semiloucura correspondente,
de obsessão, determinando uma desordem emocional que vai da mais intensa
alegria até à mais cruciante dor, que dá entusiasmo e
abatimento, que encoraja e entibia; que faz esperar e desesperar, isto tudo,
quase a um tempo, sem que a causa mude de qualquer forma.

Em Cassi, nunca se dava disso. Escolhida a vítima de sua concupiscência,
se, de antemão, já não as sabia, procurava inteirar-se
da situação dos pais, das suas posses e das suas relações.
Em seguida, tratava de encontrar-se com ela num baile ou uma sala de festas
e impressioná-la com os seus dengues no violão. Se percebia
que tinha obtido algum sucesso, esforçava-se em reiterar os encontros
nos cinemas, nos bondes, nas estações, e, na ocasião
propícia, pespegava-lhe a carta fatal. Isto tudo era feito com muita
calma e discernimento, pacientemente, sem ser perturbado em nenhum movimento
de impaciência ou arrebatamento. Se a moça ou a senhora aceitava-lhe
os
galanteios e as cartas, ele tinha o final como certo; se não, ele não
perdia tempo, abandonava os esforços preliminares e esperava que outra
mais suasória aparecesse.

No caso de Clara, ele não estava disposto a acreditar que se houvesse
dado a primeira hipótese, porquanto lhe davam certeza disso o embevecimento
com que o ouvira cantar, na noite da festa dos anos dela, e a insistência
que mostrara em vir falar com ele, quando lhe foi à casa do pai pela
segunda e última vez. O que lhe parecia, por indícios aqui e
ali, é que alguém se havia interposto entre ele e ela, “entre
dois corações que se amam”, denunciando aos pais dela
os seus maus precedentes de conquistador contumaz, de forma a trancarem-lhe
aqueles as portas de sua casa, a ele, Cassi.

Agora mesmo, tivera a confirmação dessa suspeita com a ingênua
denúncia de Edméia, a filha de Lafões, de que Marramaque,
padrinho de Clara, não gostava dele. Era, portanto, prevenirse contra
as “intrigas” do aleijado e arredá-lo de vez. Cassi sabia
que, quase sempre, Marramaque parava na venda do “Seu” Nascimento,
quando vinha do trabalho. Lá ficava bebericando com outros, até
que o negócio se fechasse. A ele, Cassi, não convinha ir por
todos os motivos; Timbó não podia também, por ser muito
conhecido na localidade, devido à surra que levara; Zezé Mateus
era um idiota. Quem iria, então, sondar aquele terreno? O Arnaldo,
que não era conhecido no local,
nem sabidas eram as suas relações com ele. Muito a contragosto,
dirigiu-se para a casa dos pais. Não tinha dinheiro que prestasse,
para "escorvar" o jogo.

O seu "socavão" doméstico ficava bem debaixo da sala
de jantar da casa, que aí acabava o seu corpo principal. As dependências
restantes ocupavam um puxado longo. Quando ele entrou, percebeu que na sala
de jantar, além do pai, mãe e irmãs, havia alguém
que não era de hábito e dissera, ouvindo-lhe os passos:

– Há alguém aí?

– É Cassi – dissera a mãe.

– Ele não sobe aqui? – perguntou a visita.

Todos se calaram e se entreolharam, enquanto o velho Manuel de Azevedo explicava
o fato em quatro palavras:

– Você queria, Augusto, que eu, chefe de família, que prezo
a honra das filhas dos outros como a das minhas, deixasse semelhante miserável
sentar-se ao meu lado? Se não o pus de todo para a rua, foi devido
à mãe.

– Você tem razão, mano; mas tudo isto que se diz dele, pode
ser calúnia.

– É também o meu pensamento, Augusto – falou Dona Salustiana.

As moças se haviam calado por pudor, mas o velho Azevedo cortou de
vez o argumento da mulher e do irmão:

– Você não leu esses papéis escritos à máquina,
que mandaram a você, dois dias após você chegar, para o
hotel?

– Li.

– Leu as datas, a narração dos fatos, as cartas?

– Li, também, mas o tempo…

– Pois tudo é verdade; e ninguém mais do que eu, infelizmente,
pode assegurar isso. Em menos de dez anos, esse meu indigno filho fez tudo
isso. Não o posso negar em sã consciência. Se não
posso…

Ao entrar, Cassi, tendo percebido que a conversa ia versar sobre ele, colocou-se
de ouvido atento, embaixo da janela, nada perdendo e conseguindo ouvir esse
trecho em que tomava parte o seu tio Augusto, irmão de seu pai, que,
havia muito tempo, andava destacado numa alfândega do Norte. Quando
o velho Manuel de Azevedo falou em papéis escritos à máquina,
trazendo indicações de datas e a narração dos
fatos de suas complicações com a polícia e a justiça,
Cassi assustou-se. Quem estaria fazendo aquele trabalho surdo? Não
era a primeira vez que tivera notícia da existência desse caderno
misterioso e misteriosamente distribuído pelo correio. Dissera-lhe
um investigador de uma delegacia suburbana que, logo que havia mudança
de delegado ou de comissário, numa delas, o novo delegado ou o novo
comissário recebia o tal caderno. Apavoravalhe essa perseguição
nas trevas, talvez segura, que, aos poucos, o ia minando. Tão indiferente
era ele pela sorte de suas vítimas e tão estúpido se
mostrara sempre em não compreendê-las, que não podia encadear
raciocínios seguros, para ter a procedência, mais ou menos provável,
da remessa de tais cadernos.

Precisava fugir – era o que concluía; e ele se sentia ameaçado,
não por duendes, mas por alçapões, homens mascarados,
cárceres privados, suplícios, etc. – todo o arsenal do maravilhoso
das fitas de cinema.

Entretanto, queria antes resolver o caso de Clara, que, apesar de tudo, considerava
em meio. Deitou-se e dormiu regaladamente, até ao alvorecer do dia.
Logo que a luz do sol ganhou uma relativa nitidez, ele foi passar revista
nas suas gaiolas de galos de briga. Estava tudo a postos, e foi lhes dando
milho tirado de uma lata que tinha em uma das mãos, e olhando todos
aqueles bichos hediondos, com a ternura de um honesto criador, que revê
o seu trabalho nas travessas pesquisas ou na doçura de olhar de seus
cordeiros. Aos pintos, deu milho moído, triguilho, e só não
deu ovo picado porque não era dia. O seu embevecimento por aquelas
horrendas aves era sincero: elas lhe
faziam ganhar dinheiro. Olhou-as e perguntou de si para si:

– Quanto valeriam ao todo?

Alguns já lhe haviam oferecido quinhentos mil-réis e ele estava
disposto a vendê-las, por esse preço, depois que a "coisa"
estivesse acabada…

Veio tomar café no "socavão", onde a velha Romualda
lhe trazia todas as manhãs. Era velha, e a sua velhice a defendia perfeitamente
contra qualquer assalto de Cassi. Perguntou-lhe este:

– Meu tio ainda está aí?

– Quem é seu tio, nhonhô?

– Aquele moço que esteve ontem, à noite.

– Ah! Foi embora logo depois do chá.

Não trocaram mais palavras. Depois de servido o café e comido
o pão com manteiga, a velha Romualda levou a bandeja com a xícara,
e Cassi tratou de vestir-se e sair.

Quase nunca parava em casa. Temia encontrar-se com o pai, que, por isto ou
por aquilo, houvesse resolvido ficar no lar, e também por não
poder suportar o desdém de suas irmãs. A casa era-lhe mais penosa
do que os xadrezes, por onde passara dezenas de vezes.

Ia à procura de Arnaldo, que, morando na Estrada Real, vinha no bonde
de Cascadura, para tomar o trem no Méier. Arnaldo não deixava
de um só dia ir "lá embaixo". Esperava sempre fazer
um biscate e, quando não o fizesse, arranjar algum “magote”
no trem.

Não se enganara. Às nove e pouco, Arnaldo, com o seu nariz
de tromba de tapir, os seus olhos arredios e catadores, chegara; Cassi disse-lhe
que dele precisava, às cinco horas, ali; e pagoulhe o café.

– Pois não, Cassi; nas ocasiões é que se vêem
os amigos. Cá estarei.

Fazendo o sacrifício de perder uma tarde de colheita, Arnaldo chegou
na hora marcada, ao ponto ajustado.

Cassi explicou-lhe então que devia ir, naquela tarde, à venda
do Nascimento, cuja rua e cujo número lhe deu. Chegando lá,
simularia ter ido procurar por "Seu" Meneses, que ele conhecia.

– Se ele não estiver? – indagou Arnaldo.

– Você diz que fica à espera e ouve o que se conversa lá.
Nela, devem estar, entre outros, o aleijadinho que anda sempre fardado. Ele
não conhece você, como os outros, conforme espero. O que você
ouvir, guarda e me conta. Se Meneses aparecer, você diz que quero falar
com ele, negócio de interesse dele.

Cassi deu-lhe dois mil-réis e ele se pôs a caminho, mas a pé,
para poupar o tostão do bonde. Chegou à venda de "Seu"
Nascimento, teve duas decepções. Encontrara dois sujeitos, que
o conheciam perfeitamente: um era um engenheiro inglês, Mr. Persons,
de quem "abafara" uma capa de borracha, e o outro era o Alípio,
que até o sabia da roda de Cassi.

Não se deu por vencido e, atravessando por entre Alípio e o
velho Marramaque, que conversavam, foi direto ao balcão e perguntou
naturalmente:

—O senhor não conhece um velho dentista, por nome Meneses?

E acrescentou:

—Ele tem vindo aqui?

O taverneiro respondeu:

—Há dias que não – e, dirigindo-se aos circunstantes,
por sua vez indagou: – vocês têm visto o doutor Meneses?

Todos, porém, responderam: não.

Arnaldo ia dizer obrigado, para retirar-se, quando Mr. Persons perguntou-lhe:

—Sinhor, vem cá!

Arnaldo fez-se jovial.

—Oh! "Seu" mister como vai?

—Não diga "Seu" mister, é "error".
Bem… Onde está mia capa?

—Trago por esses dias, tenho me esquecido.

—Já é duas vezes que "sinhor" diz isso. Eu
precisa da capa.

—Não me esquecerei.

E saiu apressado. O negócio da capa fora simples. Persons não
viera da cidade são de seu juízo e deixara a capa descansando
no banco, ao lado, recostando-se na parede do carro. Pouco antes de certa
estação, Arnaldo sentou-se a seu lado, no intento de carregar-lhe
a capa. Ao pôr em prática o seu propósito, Persons despertou,
mas só pôde dar com o furto, quando Arnaldo ia saindo do carro.
Gritou: "minha capa". Um condutor ainda agarrou Arnaldo com a carga,
mas, quando o Persons deu com o lugar em que estavam ambos, já o auxiliar
o tinha largado e o trem se pusera em movimento. Guardara, porém, a
fisionomia do gatuno; e, vindo a encontrar-se com ele, perguntara-lhe por
essa peça de vestuário, e Arnaldo lhe dissera que a havia levado
por engano.

Ele saiu corrido de vergonha; mas, vendo que ninguém vinha até
às portas da venda, ele voltou e se pôs a ouvir o que diziam.

O mister já acabara de contar a história da capa, quando Alípio,
em tom de comentário, dissera:

—Isto que saiu daí é uma peste. Não sabia dessa
história de furtos nos trens; mas basta ele ser do bando do tal Cassi,
para não prestar.

Marramaque acudiu:

—Eu ainda não conhecia este. Vou indicá-lo ao compadre.
O tal Trembó ou Tipó, como é?

—Timbó, fez Alípio.

—O tal de Timbó já conheço e já o apontei
ao compadre. Por falar nisto, o senhor sabe, "Seu" Nascimento e
meus senhores, o que recebi, há dias, pelo correio, na secretaria?

—Não – responderam todos, por sinais ou por palavras,

—A vida desse Cassi.

—Impressa?

—Não. Copiada a máquina de escrever, com fotografias
dele, cópias de notícias dos jornais do tempo, indicação
das datas dos processos e dos juizes e delegados – tudo!

—Quem lhe mandou? – perguntou Alípio.

—Não sei. Recebi a coisa na secretaria, lá a li e dei-a
ao compadre, para se prevenir.

—Com uma boa garrucha – observou Nascimento.

—Ou revólver – obtemperou Marramaque.

Ouvindo tudo isto e percebendo que alguém se dirigia à venda,
cuja hora de fechar não tardaria, Arnaldo deixou o lugar em que estava
e correu ao encontro de Cassi, que devia estar no Engenho Novo.

Encontraram-se, e ele, no que não tinha o menor hábito, contou-lhe
toda a verdade vista e ouvida.

Cassi nem Arnaldo não eram dados à bebida; mas o momento a
pedia. Aquele convidou o seu dedicado companheiro a tomar uma garrafa de cerveja,
o que fizeram quase sem conversar.

Acabada, pagaram e levantaram-se. Arnaldo procurou o seu rumo e Cassi meteu-se
pela sombria rua do Barão de Bom Retiro.

Embora não fosse tarde, já se ouviam os tiros que os suburbanos
dão, de quando em quando, para afugentar os ladrões dos seus
galinheiros.

Um estourou bem perto dele, e Cassi, fingindo-se calmo e sem apreensões,
disse à meia voz:

—Ainda não foi desta vez.

VII

O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que
se alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba,
tendo para eixo a linha férrea da Central.

Para os lados, não se aprofunda muito, sobretudo quando encontra colinas
e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o subúrbio
continua invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e morrotes.
Passamos por um lugar que supomos deserto, e olhamos, por acaso, o fundo de
uma grota, donde brotam ainda árvores de capoeira, lá damos
com um casebre tosco, que, para ser alcançado, torna-se preciso descer
uma ladeirota quase a prumo; andamos mais e levantamos o olhar para um canto
do horizonte e lá vemos, em cima de uma elevação, um
ou mais barracões, para os quais não topamos logo da primeira
vista com a ladeira de acesso.

Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por
toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes
duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são
latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para
as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato.

Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas coroas dos morros,
que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes. Nelas,
há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie
de esgoto. Toda essa população, pobríssima, vive sob
a ameaça constante da varíola e, quando ela dá para aquelas
bandas, é um verdadeiro flagelo.

Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas muda. Não
há mais gradis de ferros, nem casas com tendências aristocráticas:
há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo
isto muito espaçado e separado; entretanto, encontram-se, por vezes,
"correres" de pequenas casas, de duas janelas e porta ao centro,
formando o que chamamos "avenida".

As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de grama
e de capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro.
De manhã até à noite, ficam povoadas de toda a espécie
de pequenos animais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos,
carneiros e porcos, sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam.

Quando chega a tardinha, de cada portão se ouve o "toque de reunir":
"Mimoso"! É um bode que a dona chama. "Sereia"!
É uma leitoa que uma criança faz entrar em casa; e assim por
diante.

Carneiros, cabritos, marrecos, galinhas, perus – tudo entra pela porta principal,
atravessa a casa toda e vai se recolher ao quintalejo aos fundos.

Se acontece faltar um dos seus "bichos", a dona da casa faz um
barulho de todos os diabos, descompõe os filhos e filhas, atribui o
furto à vizinha tal. Esta vem a saber, e eis um bate-boca formado,
que às vezes desanda em pugilato entre os maridos.

A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer
ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres.

O estado de irritabilidade, provindo das constantes dificuldades por que
passam, a incapacidade de encontrar fora de seu habitual campo de visão
motivo para explicar o seu mal-estar, fazem-nas descarregar as suas queixas,
em forma de desaforos velados, nas vizinhas com que antipatizam por lhes parecer
mais felizes. Todas elas se têm na mais alta conta, provindas da mais
alta prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma
diferença acidental de cor é causa para que possa se julgar
superior à vizinha; o fato do marido desta ganhar mais do que o daquela
é outro, Um "belchior" de mesquinharias açula-lhes
a vaidade e alimenta-lhes o despeito.

Em geral, essas brigas duram pouco. Lá vem uma moléstia num
dos pequenos desta, e logo aquela a socorre com os seus vidros de homeopatia.

Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande
parte da população da cidade, a cuja existência o governo
fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis
e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.

Nem lhes facilita a morte, isto é, o acesso aos cemitérios
locais.

Para o de Inhaúma, procurado por uma vasta zona suburbana, os caminhos
são maus, e pior do que isto: dão voltas inúteis, que
poderiam ser evitadas sem grandes despesas. Os enterros da gente mais pobre
são feitos a pé, e é fácil imaginar como chegam,
os que carregam o morto, no campo-santo municipal. Quem passa por aqueles
caminhos, quase sempre topa com um. Os de "anjos" são carregados
por moças e os destas também pelas da sua idade. Não
há, para elas, nenhuma toilette especial. Levam a mesma que para os
bailes e mafuás; e lá vão de rosa, de azul-celeste, de
branco, carregando a pobre amiga, debaixo de um sol inclemente, e respirando
uma poeira de sufocar; quando chove, ou choveu recentemente, carregam o caixão
aos saltos, para evitar atoleiros e poças d"água,

Os de adultos são carregados por adultos. Nestes, porém, há
sempre uma modificação do indumento dos que acompanham. Os cavalheiros
procuram roupas escuras, se não pretas; mas, às vezes, surge
o escândalo da sua calça branca. Vão muito pouco tristes
e, em cada venda que passam, "quebram o corpo", isto é, bebem
uma boa dose de parati. Ao chegarem ao cemitério, aquelas cabeças
não regulam bem, mas o defunto é enterrado.

Houve, porém, uma ocasião, que o corpo não chegou a
seu destino. Beberam tanto, que o esqueceram no caminho. Cada qual que saía
da venda, olhava o caixão e dizia: Eles que estão lá
dentro, que o carreguem. Chegaram ao cemitério e deram por falta do
defunto. "Mas não era você que o vinha carregando?"
– perguntava um. "Era você" – respondia o outro; e, assim,
cada um empurrava a culpa para o outro. Estavam cansadíssimos e semi-embriagados.
Resolveram alugar uma carroça e ir buscar o camarada falecido, que
já tinha duas velas piedosas a arder-lhe à cabeceira. E o pobre
homem, que devia receber dos amigos aquela tocante homenagem, dos camaradas
levarem-no a pé ao cemitério, só a recebeu a meio, pois,
o resto do caminho para a última morada, ele a fez graças aos
esforços de dois burros, que estavam habituados a puxar carga bem diferente
e muito menos respeitável.

Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono
em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã,
de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas,
sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima;
alguns, morando mais longe, em Inhaúma, em Caxambi, em Jacarepaguá,
perdem amor a alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às
estações. Esse movimento dura até às dez horas
da manhã e há toda uma população de certo ponto
da cidade no número dos que nele tomam parte. São operários,
pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias
prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta,
vive de pequenas transações, do dia a dia, em que ganham penosamente
alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes.
Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios,
enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão
se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à
procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma
coisa, para o sustento seu e dos filhos.

Nessas horas, as estações se enchem e os trens descem cheios.
Mais cheios, porém, descem os que vêm do limite do Distrito com
o Estado do Rio. Esses são os expressos. Há gente por toda a
parte. O interior dos carros está apinhado e os vãos entre eles
como que trazem quase a metade da lotação de um deles. Muitos
viajam com um pé num carro e o outro no imediato, agarrando-se com
as mãos às grades das plataformas. Outros descem para a cidade
sentados na escada de acesso para o interior do vagão; e alguns, mais
ousados, dependurados no corrimão de ferro, com um único pé
no estribo do veículo.

Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e adjacências,
só é levada a isso pela relativa modicidade do aluguel de casa.
Aquela zona não lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão
caro como no subúrbio, propriamente. Não há água,
ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal que o
governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não
há esgotos; não há médicos, não há
farmácias. Ainda dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas
construídas pela Prefeitura, que se podem considerar como tal; mas,
logo que se chega ao Estado, tudo falta, nem nada há embrionário.

O viajante que se detém um pouco a olhar aqueles campos de vegetação
rala e amarelada, aqueles morros escalavrados, cobertos de intrincados carrascais,
onde pasta um gado magro e ossudo, fica confrangido e triste. Não há
nenhuma cultura; as árvores de porte são raras; nas casas, é
raro uma laranjeira virente, nem um mamoeiro semi-espontâneo desce-lhes
à entrada.

Os córregos são em geral vales de lama pútrida, que,
quando chegam as grandes chuvas, se transformam em torrentes, a carregar os
mais nauseabundos detritos. A tabatinga impermeável, o barro compacto
e a falta d"água não permitem a existência de hortas;
e um repolho é lá mais raro que na avenida Central.

O Rio de Janeiro, que tem, na fronte, na parte anterior, um tão lindo
diadema de montanhas e árvores, não consegue fazê-lo coroa
a cingi-lo todo em roda. A parte posterior, como se vê, não chega
a ser um neobarbante que prenda dignamente o diadema que lhe cinge a testa
olímpica…

Cassi Jones, em pé, na estação do Méier, via
passar aqueles trens cheios de homens de trabalho, sem considerar que, quase
com trinta anos, até ali, na verdade, não havia nunca trabalhado.
O seu pensamento ia para outra parte.

Desde que Arnaldo lhe trouxera notícias do que ouvira na venda, ele
se sentia um pouco desanimado nos seus propósitos, em relação
à filha do carteiro. Ao mesmo tempo, porém, ele percebia que
todas aquelas precauções contra ele eram tomadas porque a rapariga
não lhe era indiferente. De modo que — concluía ele —
precisava saber ao certo os sentimentos de Clara, para então agir.
Era necessário ouvir-lhe a palavra; mas como? A ele, não convinha
rondar a casa da filha do carteiro. Era conhecido, seria denunciado ao pai,
que, naturalmente, lhe tomaria satisfações. Qualquer que fosse
o desfecho do pugilato, ele só teria a perder. A sua fama, a sua má
fama, se tinha corporificado naquele fantástico caderno que ia ter
a todas as mãos. Não era mais formada de boquejos daqui e dali,
em geral anônimos; agora, vinha documentada, com todas as indicações
e referências precisas.

Havia nele com o que se pudesse condenar um santo: e, se ele agredisse o
carteiro Joaquim, toda a simpatia iria para o pai, que defendia até
à última extremidade a honra de sua filha, e não para
ele, um contumaz e cínico sedutor. Até ali, ele contava com
a benevolência secreta de juizes e delegados, que, no íntimo,
julgavam absurdo o casamento dele com as suas vítimas, devido à
diferença de educação, de nascimento, de cor, de instrução.
Quanto à segunda e terceira causa, embora nem sempre se verificasse
a segunda, podia-se admitir; mas, quanto às duas outras considerações,
eram errôneas, porque ele era tão ignorante e tão mal-educado
como eram, em geral, as humildes raparigas que ele desgraçava irremediavelmente.

De resto, ele já não contava com proteção alguma.

No começo, foi seu pai; depois, seu tio, o capitão-médico
– ambos solicitados tenazmente por sua mãe; mas agora? Agora, ele estava
certo de que nenhum deles se abalaria e gastaria um ceitil por causa dele.
Restava o Capitão Barcelos. Neste, porém, ele não depositava
grande confiança. Fosse coisa pequena em que nada se gastasse, o capitão
mover-se-ia; no caso contrário, porém, fugiria com o corpo.
Era preciso cautela, senão…

Cassi continuou a pesar os meios que podia encontrar para entender-se com
Clara. Com Lafões, ele já não contava. Vira, na última
visita que lhe fizera, que o velho português era matreiro. Com ele,
não levaria vantagem alguma. Como havia de ser?

Dos bondes continuava a descer gente aos magotes, que se encaminhava apressadamente
para a plataforma da estrada de ferro. Alguns iam tomar um café, antes
de se encaminharem, definitivamente, para os "varais" da repartição;
outros iam até às casas de "bicho" e deixavam lá
o jogo; mas todos iam afinal trabalhar, fazer alguma coisa para ganhar dinheiro.
Só o Senhor Cassi Jones de Azevedo ficava…

—Oh! "Seu" Cassi, como vai essa força?

O menestrel suburbano da modinha lânguida e acompanhamento luxurioso
de olhares revirados voltou-se e reconheceu quem falava:

—Como vai você, Praxedes?

—Eu, "Seu" Cassi, vou bem. Mas esse negócio de foro…
Ontem, apresentei uma exceção de incompetência; pensei
que fosse julgada logo, mas o juiz transformou o julgamento em diligência…
Borrou-me a pintura… Hoje, vou ver se uns embargos meus são recebidos.
Tenho que ir lá embaixo… Às vezes, dá-se uma penada
e lá vêm vinte, trinta e mesmo cinqüenta…

Vendo que a conversa não interessava Cassi, mudou-a de sentido e perguntou:

—Tem ido à casa do carteiro, lá na rua Teresina?

—Há muito tempo que não; e você?

—Eu só fui lá a convite de um dos músicos. Não
tenho relações particulares com a família. Por falar
nisso: sabe quem saiu agora mesmo daqui?

—Não.

—O doutor Meneses, aquele velho barbado, que sabe muito – não
conhece?

Correu alguma coisa na cabeça de Cassi, que o fez perguntar com pressa,
antes de responder:

—Para onde ele foi?

—Foi para a casa do carteiro. Está tratando dos dentes da filha
e almoça quase sempre lá. Ele precisava, coitado do doutor Meneses!
– um homem ilustrado, velho, doente – quase não comia; era só
beber. Isso lhe fazia mal, estava requeimando "ele" por dentro…
Pode-se beber; mas é preciso comer – não acha?

Praxedes não deixava, durante toda a conversa, de mover com os braços,
sem medida nem compasso, e esticar a medonha cabeça, que teimava cada
vez mais em se enterrar pelos ombros adentro.

—É um achado para ele – fez Cassi, reprimindo a alegria. – Tenho
também um trabalho para o Meneses… Se você o encontrar, diga-lhe
que eu quero falar com ele.

—Não me esquecerei; mas, caso o senhor tenha pressa, pode procurá-lo
à noite, ali, no botequim do Fagundes, perto do posto de bombeiros.
Até logo, que tenho que chegar cedo à cidade!

Cassi despediu-se também e encaminhou toda a sua esperança
de entender-se diretamente com Clara, por intermédio de Meneses, Ele
sabia-o velho, alquebrado, necessitado, viciado na bebida, sem dinheiro —
seria fácil vencer as suas repugnâncias. Pela primeira vez, pensou
o modinheiro, tinha que gastar algum…

Em parte ele se enganava, porquanto, embora Meneses estivesse nas últimas
extremidades, até agora não fizera ato menos liso na sua vida.
Podia-se classificá-lo de puro, Meneses, José Castanho de Meneses,
nascera de pais portugueses, numa cidade do litoral – sul do Estado do Rio
de Janeiro. Naqueles tempos, essas cidades eram prósperas; mas, atualmente,
têm, para demonstrar a sua irremediável decadência, o fato
de não se ter notícia de haver sido construída em qualquer
delas, de quarenta anos a esta parte, uma única casa,

O pai tinha uma loja, um bazar, que ia próspero; mas, com a decadência
da localidade, de que foi um dos fatores a construção da Central,
o estabelecimento comercial foi decaindo. O pai viu-se obrigado a suprimir
despesas, uma das quais era a da educação e instrução
dos filhos. O José, que já tinha dezessete anos, veio para a
loja, os outros foram colocados aqui e ali, nas pescarias de "currais",
que o pai tinha, e na salga de peixe, levada a efeito muito rudimentarmente,
também do velho Meneses.

Aos vinte e dois anos, José, que se aborrecia com aquela vida, pôs
o pé no mundo e correu, durante uns trinta, o interior das antigas
províncias do Rio, Minas e São Paulo. Tudo ele foi; tudo sofreu,
mas sempre inquebrantavelmente honesto. Aqui, foi guarda-livros de um armazém;
numa fazenda, administrador; num vilarejo, professor das primeiras letras;
em certa idade, encontrou um boticário simpático, que se fez
seu amigo, ensinou-lhe a manipular drogas, também a obturar e limpar
dentes, e a passar pequenas receitas. Foi onde se demorou mais; mas isto se
veio a dar já no fim da sua carreira vagabunda, quando já não
podia mudar de rumo. Na vizinhança da cidade, construía-se um
depósito e modestas oficinas de pequenos reparos, para as máquinas
de um ramal férreo que lá ia ter. José, que seguia as
obras e via as máquinas, ficou assombrado com aquelas maravilhas de
caldeiras, fornalhas, bielas, manivelas, alavancas, que se coordenavam para
mover e parar aqueles hediondos monstros de ferro — as locomotivas.
Quis entrar no segredo de tudo aquilo e fazia perguntas sobre perguntas. No
começo, os operários explicavam; mas as perguntas eram tais
e tantas, que eles acabaram por se aborrecer com elas e com o velho perguntador.
Meneses não se aborreceu, pois se sentia com a vocação
de engenharia e de engenheiro. Ali, porém, não tinha onde estudar.
Convinha descer para o Rio de Janeiro, freqüentar aulas teóricas
e aperfeiçoar-se em oficinas adequadas. O dinheiro que tinha era pouco,
mas o boticão sempre dava alguma coisa, e a renda tinha aumentado,
graças à afluência de operários para acabamento
da estradinha local. Demais, também receitava. Fazia alguma coisa:
a questão era economizar. Assim fez e, durante um ano, poupou o dinheiro
necessário para ir estabelecer-se no Rio e esperar uma colocação
qualquer.

O seu amigo farmacêutico não o quis dissuadir, mas disse-lhe:

—Se você fosse mais moço, aconselharia até, porque
se projetam grandes obras, no Rio; mas, já tendo passado dos cinqüenta,
é fazer o que parecer melhor a você. Em todo o caso, vou pedir
ao Coronel Carvalho uma recomendação.

Durante esse longo lapso de tempo que vivera fora da família, recebera
vagas notícias de seus pais e irmãos. Sabia que os pais tinham
morrido e quase todos os irmãos; e que o único que lhe restava
era remador da Capitania do Porto e mantinha a irmã solteira, a única
que tivera. Moravam lá para a Saúde.

Meneses embarcou contente; ia afinal realizar a sua vocação.
Até agora, não a tinha encontrado; mas, desde que vira aquelas
máquinas e maquinismos, sentira outra coisa dentro de si. Não
deixou, entretanto, de levar a mala dos ferros de dentista e a carta de recomendação.

No dia seguinte, depois de uma noite insípida no hotel, foi, indagando
daqui, informando-se dali, até à Capitania do Porto.

Perguntou pelo remador seu irmão e, sem dificuldades, lhe informaram
que, em breve, ele viria. Não esperou muito. Um homenzarrão
forte, tostado, com um vestuário de marinheiro, chegou-se ao porteiro
e perguntou:

—Quem é que me procura?

O porteiro apontou Meneses, sentado a um banco, e disse:

—É aquele senhor ali.

O irmão não deu muitos passos em sua direção;
Meneses ergueu-se logo, correu-lhe ao encontro, perguntando:

—Você não me conhece mais?

—Não, senhor.

—Sou o seu irmão Juca.

Abraçaram-se muito, e o irmão Leopoldo foi dizer ao porteiro
quem era e o que havia.

—Há trinta anos! – exclamou o porteiro. – Você devia ser
muito criança – hein, Leopoldo?

O marinheiro respondeu:

—Devia ter cinco anos.

—É verdade – informou Meneses.

Leopoldo foi arranjar licença para acompanhar o irmão que não
via há trinta anos; e Meneses ficou a conversar com o porteiro sobre
coisas da roça.

—Ah! Então o Senhor é engenheiro?

—Sim, mas mecânico. Trabalho, porém, com o nível
e com o trânsito.

—Agora, deve haver muito trabalho para engenheiro; vão-se fazer
grandes obras… Aproveite, doutor!

—Trago aqui uma carta para o Deputado Sepúlveda. Tem influência?

—Muita! É o pensamento da política mineira… Não
lhe deixe a aba do fraque, doutor!

A conversa foi interrompida pela chegada de Leopoldo, que obtivera a licença.
Pelo caminho, porém, contou a Meneses como todos morreram; como ele
se empregara na Capitania e casara a irmã com um colega, o Pedro Rocha,
rapaz bom, bem comportado, do qual tinha um sobrinho, Edmundo, com seis anos,
e com o qual morava, na rua do Livramento.

Chegando à casa do cunhado e do irmão, a sua irmã Etelvina,
que ele deixara com sete ou oito anos, não o reconheceu; e, em breve,
tendo-lhe chegado o marido, foi uma festa de que só não participou
o sobrinho de seis anos, sempre de nariz sujo e vestes rotas, arredio e agarrado
às saias da mãe, mas sem querer tornar a bênção
ao tio.

A irmã logo convidou o irmão mais velho a ficar com eles. Havia
um barracão no quintal, que, bem reparado, podia servir para Leopoldo,
e o quarto deste ficaria para o Juca. Enquanto não estivesse em estado,
ele teria a paciência de dormir com Leopoldo. Meneses aceitou o alvitre,
dizendo:

—Se eu tenho que gastar em outra parte…

Logo foi interrompido por todos:

—Oh! Não, não Juca!

—Não é esse motivo! — fez o cunhado.

—Não seja essa a dúvida, mano Juca.

Meneses ficou muito agradecido e acrescentou:

—Mesmo porque quero que um de vocês consiga meios e modos de
falar ao doutor Sarmento Sepúlveda, na Câmara. Tenho uma carta
para ele.

O cunhado logo exclamou:

—O quê! É um bicho.

Combinado tudo isto, Meneses instalou-se na casa dos parentes, com a sua
mala e os seus ferros de dentista. Levou a carta do Coronel Carvalho ao deputado,
que o atendeu muito bem, perguntou-lhe pelas pessoas gradas do lugar onde
estivera e deu-lhe outra para o chefe da construção da avenida.
No dia seguinte, estava admitido. Ganhou dinheiro, não o guardou, mas,
se assim foi, motivo não houve em desperdício de sua parte.
O irmão em breve adoecia e morria; o cunhado seguia-se-lhe logo. Custeou
o tratamento de ambos; e, quando foi dispensado da comissão da avenida,
pouco após a morte de ambos, pouco ou nada tinha. A irmã ficara
com uma pequena pensão mensal da Caixa dos Remadores, cerca de trinta
mil-réis, e um filho; e ele, com seus ferros de dentista. É
verdade que fizera uma pequena biblioteca de engenharia mecânica: As
Grandes Invenções, de Luís Figuier; As Maravilhas da
Ciência, de Tirrandier; manuais de toda a sorte de ofícios e
recortes de jornais que tratavam de coisas científicas ou parecidas,
colados em cadernos encadernados. Dessa biblioteca, nunca se separou; e, conquanto
já bebesse, com o tempo, os desgostos e a miséria atraíram-no
mais para o álcool, e o furor de beber o tomou inteiramente. A toda
hora, naquele casebre dos subúrbios, onde morava com a irmã
e o palerma do sobrinho, ele esperava, adivinhava, construía uma catástrofe
que lhe devia cair sobre os ombros; e essa visão de uma próxima
catástrofe na sua vida entibiava-lhe o ânimo, descoroçoava-o
e pedia-lhe para afastar – a bebida. Na rua, se só, era a mesma coisa.
Só a tinha longe dos olhos, quando de súcia com outros.

Contudo, apesar das duras necessidades que curtia, com a irmã e o
filho desta, jamais ato algum de sua vida incidira na censura de sua consciência.
O pouco dinheiro que os ferros lhe davam ou os amigos, era empregado no sustento
deles, pois a casa era paga com a pensão de Etelvina, a irmã.

Cassi, para vencê-lo, para ladeá-lo, tinha imaginado o plano
de, aos poucos, pô-lo a seu dispor, prendê-lo de pés e
mãos, como se diz, sem ele perceber.

Sabendo onde encontrá-lo à noite, nessa mesma do dia em que
soube, procurou-o, Meneses estava triste a um canto, lendo um jornal, com
um cálice vazio ao lado.

O homem das modinhas chegou-se e, sem dizer palavra, foi se abancando:

—Boa noite, doutor!

—Boa noite, "Seu" Cassi – fez Meneses, erguendo a cabeça
do periódico.

—Que há de novo, por aí? Trabalha-se muito?

—Alguma coisa. Agora, as coisas me correm melhor. O Joaquim dos Anjos
deu-me os dentes da filha a tratar, e ele, embora pouco, sempre me paga pontualmente.
É um alívio!

—O doutor é um sonhador. Tem sido explorado…

—Nem tanto. Quando fiz aquele trabalho para uma de suas irmãs,
fui muito bem pago. A minha dificuldade é não ser formado; demais,
não tenho roupas… Às vezes, "Seu" Cassi, para arranjar
esses sapatos de duraque que uso, por não poder usar outros, suo sangue
e faço das tripas coração…

—Paciência, doutor. Tome alguma coisa – fez Cassi amável.

Meneses aceitou e disse amargamente:

—Estou com setenta anos e não sei o que fiz na vida.

Cassi regozijava-se, intimamente pensando: o homem está cheio de dificuldades.

—Não desanime. O Capitão Sebastião, aquele da
Prefeitura, há dias me disse que ia precisar de um dentista modesto
para consertar os dentes de um filho, que, na "muda", deixou acavalar.
É pouca coisa, mas, talvez, daí…

—Aceito tudo…

—Outra coisa, doutor Meneses.

—Que há?

—O senhor se dá muito com o Leonardo Flores, o poeta?

—Muito. Por quê?

—É que eu queria uns versos…

Meneses não escondeu o espanto, que Cassi percebeu, e, sem dissimular,
procurou explicar-se melhor:

—É coisa séria. Não há compromisso nenhum
para os senhores… Eu daria alguma coisa até!…

—É que o senhor não sabe como o Flores é orgulhoso.
Dentro daquela sujeira toda, esfarrapado, alagado de cachaça, ele é
um Deus; e não lhe toque em coisas de poesia, porque senão…

—Sei bem; mas sei também que o senhor tem grande influência
sobre ele. Veja se me arranja? Olhe, doutor, não é para afrontar;
tem aqui dez mil-réis para as primeiras despesas. Cinco são
para o senhor e cinco para ele.

—Não é preciso – disse Meneses, já um tanto convertido.

A sua miséria lhe falava. Não havia quebra de honestidade,
tanto mais que não se tratava de injúrias e insultos a ninguém.

—Não, doutor; leve, leve! Tudo deve ser pago. Não é
preciso grande coisa; bastam uns versos amorosos, mas delicados e finos, morais
– está ouvindo, doutor?

Cassi foi-se, depois que Meneses prometeu arranjar a versalhada. Já
passavam das sete horas, e, logo que o violeiro desapareceu, o dentista levantou,
foi a um ângulo do balcão e disse para o caixeiro, dando-lhe
a nota de dez mil-réis que havia recebido das mãos de Cassi:

—Paga aqueles seiscentos réis que estou devendo e me dá
mais outra "lambada".

Tomou-a e voltou a sentar-se na mesa. Comprou num jornaleiro os jornais da
noite e foi se deixando ficar, levantando-se, de quando em quando, para sorver
às escondidas um "calisto". Aí, pelas proximidades
das dez horas, sobraçando um maço de jornais, encaminhou-se
para casa, no firme intuito de dar cumprimento à promessa que fizera
a Cassi. A casa era um tanto longe, pelos bons caminhos; mas, cortando-se
caminhos desertos, subindo e descendo morros, chegava-se a ela com mais presteza.

Não hesitou e tomou os atalhos, que conhecia bem; e, quase por instinto,
os seguia até à sua residência. Ficava esta numa campina
nua; e só era cercada na frente, toscamente, e, do lado direito, graças
ao vizinho. Tinha um cajueiro mofino, que disfarçava a casinha e dava
uma escassa sombra à torneira d"água, onde a irmã
lavava roupa, de casa e de fora. De onde em onde, Meneses cismava em plantar
algumas árvores de rápido crescimento, para sombra; mas lá
vinham os cabritos da vizinhança e matavam-lhe os brotos. A muito custo,
conseguiu fazer um caramanchão tosco com que ensombrasse a sala de
jantar, onde dormia, e que se prestasse a cozinha, nos dias normais. A casa
só tinha dois aposentos iguais, que se comunicavam por uma porta. Não
fora a rua, não teria frente nem fundos, tão semelhantes eram
essas extremidades dela. A irmã habitava o aposento da frente, dividido
por uma cortina, que corria do portal da porta interior até ao da que
dava para a rua. Era de telha-vã e de chão.

Chegou em casa e comeu o feijão e arroz com pirão de fubá
de milho, que a irmã lhe guardava sempre. Fez isto à luz de
um "vagabundo", espécie de lanterna, de querosene, reduzida
aos seus últimos elementos. Bebeu dois ou três cálices
de parati, pois sempre o tinha em casa; e estirou-se num velho canapé,
com um fundo de tábuas de caixões, acolchoado com jornais. A
roupa, ele a tinha tirado com todo o cuidado e com todo o cuidado depositado
na guarda de uma cadeira de pau, a única existente na casa. A mesa
de pinho, uma carcomida velha mesa de cozinha, tomava o resto do aposento;
e, nela, roncava o palerma do sobrinho. Cobriu-se com uma manta, feita de
metades de duas outras, e dormiu serenamente.

Logo pela manhã, no dia seguinte, a irmã despertou-o assustada:

—Juca! Juca!

—Que é mulher? Não se pode dormir mais nesta casa…

Depois, mudando de tom:

—Que há, Etelvina?

—Precisamos de açúcar, café, e já devemos
ao padeiro seiscentos réis.

—Você vai até o bolso do colete e tira de lá todas
as pratas e níqueis que encontrares. Deixa só quatrocentos réis.
Julgo que deve haver uns três mil e tantos a quatro mil-réis.
Fica com tudo. Dá-me um cálice, ai!

A irmã não parecia mais moça do que ele quinze anos.
Era velha, encarquilhada, magra, quase desdentada, cabelos completamente brancos,
toda ela respirando cansaço e desânimo.

Ela chamou o filho – Edmundo! – que logo apareceu. Mole, bambo, a muito custo
aprendera a ler e a rabiscar, a esforços do tio; mas não ficava
em lugar nenhum. Tal era a sua inércia e moleza, que logo era despedido.
O seu ofício era caçar preás, rãs, para vender
aos estrangeiros da "fábrica", apanhar passarinhos e, de
onde em onde, ajudar a fazer pescarias, no porto de Inhaúma.

A mãe, com o produto de suas pobres lavagens para fora, era afinal
quem o vestia, porque ele bebia tudo o que ganhava, mas raramente tocava na
garrafa que o tio tinha em casa e não trazia bebida para casa, absolutamente.

Tendo Etelvina servido o irmão de parati, este verificou que a garrafa
continha pouco e, à nota das compras a fazer, mandou que juntasse mais
meia garrafa de aguardente. A que restava, passou-a para um vidro de farmácia.

A irmã não se conteve, que não exclamasse:

—Ah! Santo Deus! Esse parati é uma desgraça…

—Não há dúvida, mana; mas, agora, não posso
mais parar, senão morro… Olha o jornal! – gritou ele para Edmundo,

—Sim, titio – respondeu-lhe o sobrinho, do meio da rua.

Como também tivesse pressa em tomar café, Edmundo fez prestamente
as compras. A fogo de gravetos, em breve o café estava pronto. Meneses,
a irmã e o sobrinho tomaram-no em redor da mesa; ela, sentada na cadeira,
e eles, no velho canapé.

Bebericando e lendo o jornal, o velho dentista deixou-se ficar deitado. Era
dia santo, quase feriado, dia de ponto facultativo – que iria fazer? Lembrou-se
de procurar Leonardo Flores. Era a sua obrigação. Almoçaria
e iria até à casa dele. Assim fez. Encaminhou-se imediatamente
para a casa de Leonardo Flores, que não ficava muito longe, pela Estrada
Real, em cujas margens residiam ele e sua irmã Etelvina com o filho.

Em lá chegando, foi recebido pela mulher, Dona Castorina, que o fez
entrar. Estava avelhantada, gasta, já não pela idade, que não
podia ser ainda de cinqüenta anos, mas pelos trabalhos por que tinha
passado com o marido, mais do que com os próprios filhos. Nunca se
lhe ouvia um queixume, nunca articulou uma acusação contra Flores.
Sofria todos os desmandos do marido com resignação e longanimidade.
Esse seu gênio, esse seu temperamento de doçura e perdão
em face da exaltação, da exacerbação, até
quase delírio, do marido, fizera que este produzisse o que produziu.
Não fora ela, aquela pequena mulata, magra, de olhos negros e tristes,
rindo-se sempre com uma profunda expressão de melancolia; não
fora aquela humilde mulatinha, que estava ali defronte de Meneses, talvez
Flores não fizesse nada. Este sabia disso e a amava, apesar de tudo
o que pudesse depor contra eles, e ela tinha, no fundo d"alma, apesar
dos desregramentos do seu marido, um grande orgulho de sua Glória.

Dona Castorina informou-o que Leonardo havia saído, para visitar um
amigo, em companhia de um filho; e talvez passasse o dia em casa dele. Meneses
ainda conversou um pouco, tomou dois cálices de parati de Mangaratiba,
que um filho seu, auxiliar de trem, trouxera para o pai.

Na hipótese – e muito plausível, consoante o gênio de
Leonardo – de que ele houvesse parado na venda do "Seu" Nascimento,
foi até lá. Não o encontrou e saiu com a consciência
dolorida pelo que ouvira da boca de Marramaque, de Alípio e demais.

Teve remorso e vergonha do que estava fazendo? Para que iria ele, arranjando
aqueles versos, contribuir? Dirigiu-se para o Engenho de Dentro, a ver se
encontrava alguém com quem conversar e disfarçar aquele começo
de acusação, que, à sua fraqueza, se debuxava na sua
consciência. Encontrou um grupo de rapazes da estrada de ferro, que
eram sempre generosos com ele. Estavam ruidosos e contentes. Meneses sentou-se
na roda, mas não houve meio de despregar a língua.

—Que é isto, Meneses? Bebe! – fez um.

Ele bebia, mas o espinho não saía. Conversava afinal um pouco.
Num dado momento, vendo que era demais na conversa com a sua tristeza e o
seu arrependimento reprimido, despediu-se. Um lhe perguntou:

—Vais para casa? Tens dinheiro?

Ele respondeu:

—Vou já para casa; mas dinheiro não tenho.

Os rapazes fizeram-lhe um rateio, que perfez dois mil-réis; e, quando
saía, um outro, levantando os braços, de um dos quais pendia
uma antiquada bengala de cerejeira, gritou para o caixeiro:

—Antunes, dá uma garrafa de "cachaça" – "cachaça",
estás ouvindo? – "cachaça"! – dá uma garrafa
de "cachaça" para o nosso querido Meneses espantar as suas
mágoas.

Quando Meneses apareceu em casa, a irmã foi-lhe logo dizendo:

—Juca, foi bom você aparecer. Estou sem dinheiro para carvão,
farinha e querosene. O que você deu não chegou… Fui comprar
carne-seca – lá se foi todo o dinheiro.

O velho Meneses, semi-embriagado, já sem decidir perfeitamente, tirou
os cinco mil-réis que estavam escondidos na algibeira e destinados
a Flores, juntou mais dez tostões e disse para a irmã:

—Tens aí seis mil-réis até segunda-feira, Mana,
você até lá não tem direito de me pedir mais dinheiro.
Hoje é sexta-feira, temos sábado e domingo garantidos.

Bebeu um cálice do parati que trouxera, deitou-se e tentou ler os
jornais que os rapazes lhe deram; mas não pôde. O sono o tomou
até à hora do jantar. Quando abriu os olhos e se lembrou de
ter dado os cinco mil-réis, destinados a Flores, em troca de versos,
aborreceu-se um pouco; mas pensou e fez de si para si: eu me arranjo. Comeu
bem e, enquanto houve luz do sol, leu e releu os jornais que tinha; quando
veio a noite, continuou a lê-los, sempre bebericando aguardente.

No dia seguinte, logo que amanheceu, ainda não se havia feito o dia
totalmente, foi até à bica, lavou-se quase inteiramente, aproveitando
a escuridão, preparou o café, tomou uma xícara, seguida
de alguns cálices de parati, e pôs-se na rua antes das sete horas.
Era ainda cedo para ir à casa de Leonardo Flores. Foi à estação,
comprou um jornal, leu-o e seguiu para a residência do amigo. Flores
já se encontrava de pé e quase todos de casa. Recebeu-o vestido
com uma calça velha e de camisa de meia. Estava escrevendo. Ao se lhe
deparar o amigo, olhou-o muito demoradamente; e, em seguida, fazendo com os
braços um gesto perfeitamente teatral, inclinando para trás
a cabeça e estufando o peito, conforme o consagrado na ribalta para
encontros sensacionais, falou com voz cava e solene:

—Tu, Meneses! És tu, Pítias da minha alma! Notícias
há muitos sóis que não hei recebido de ti. Entra neste
solar amigo e repousa a fadiga da jornada naquela credência de Córdova
que o Abd-El-Málek, caído do Atlas, me mandou de Marrocos e
foi o último rei de Granada, Boabdil, que chorou…

—Flores, estás discursivo demais… – disse Meneses, sentado
na tal credência de Córdova, que não era nada mais do
que uma vulgar cadeira austríaca de palhinha.

—Bebe tu agora o licor de boa amizade. É produto genuíno
das minhas terras solarengas e avoengas de Mangaratiba.

Tomaram o "licor de boa amizade"; e, após, o poeta, falando
em tom natural, perguntou ao amigo:

—Como vais, Meneses?

—Assim; e tu?

—Às vezes, bem; às vezes, mal – conforme a lua. Já
tomaste café?

Embora dissesse que sim, Flores teimou em servir-lhe outra xícara,
que foi buscar à cozinha. A sala de visitas era a mesma de há
vinte anos. Tinha resistido a todas as mudanças e todas as despesas.
Um sofá austríaco, velho, esburacado; duas cadeiras de braço
da mesma marca, um trio de cadeiras de todos os feitios. Pela parede, além
de outros, um magnífico retrato a óleo de pintor, feito por
uma celebridade, quando nos seus começos. Uma velha estante de ferro
com brochuras espandongadas e uma mesa furada com toalha de aniagem, bordada
a lã de várias cores. Tinteiro, canetas e o mais para escrever,

Flores voltou com as xícaras cheias, pão e manteiga. Depositou
tudo na mesa e sentou-se. Meneses notava com admiração que o
amigo não dava nenhum sinal de desequilíbrio, nem de embriaguez,
Isso fez-lhe prazer e, pondo-se a tomar café, perguntou-lhe:

—Flores, tu ainda fazes versos?

—Bárbaro que tu és! Pois então tu podes imaginar
que eu, Leonardo Flores, deixe de fazer versos? Eu vivo de versos e no verso.
Minha cabeça é um poema, interminável, que minh"alma
ritma soberbamente. Não sei outra língua, senão a divina
das Musas… Contraria-me falar como estou falando…

Calou-se um pouco e ambos sorveram o café a grandes goles, mastigando
grandes pedaços de pão com manteiga. Flores cessou de mastigar
e perguntou:

—Por que tu me perguntaste se eu ainda fazia versos?

Ingenuamente, Meneses respondeu:

—Tinha encomenda deles a fazer-te.

—O quê? – fez indignado Flores, erguendo-se, num só e
rápido movimento, da cadeira, e deixando a xícara sobre a mesa.
– Pois tu não sabes quem sou eu, quem é Leonardo Flores? Pois
tu não sabes que a poesia para mim é a minha dor e é
a minha alegria, é a minha própria vida? Pois tu não
sabes que tenho sofrido tudo, dores, humilhações, vexames, para
atingir o meu ideal? Pois tu não sabes que abandonei todas as honrarias
da vida, não dei o conforto que minha mulher merecia, não eduquei
convenientemente meus filhos, unicamente para não desviar dos meus
propósitos artísticos? Nasci pobre, nasci mulato, tive uma instrução
rudimentar, sozinho completei-a conforme pude; dia e noite lia e relia versos
e autores; dia e noite procurava na rudeza aparente das coisas achar a ordem
oculta que as ligava, o pensamento que as unia; o perfume à cor, o
som aos anseios de mudez de minha alma; a luz à alegoria dos pássaros
pela manhã; o crepúsculo ao cicio melancólico das cigarras
— tudo isto eu fiz com sacrifícios de coisas mais proveitosas,
não pensando em fortuna, em posição, em respeitabilidade.
Humilharam-me, ridicularizaram-me, e eu, que sou homem de combate, tudo sofri
resignadamente. Meu nome afinal soou, correu todo este Brasil ingrato e mesquinho;
e eu fiquei cada vez mais pobre, a viver de uma aposentadoria miserável,
com a cabeça cheia de imagens de ouro e a alma iluminada pela luz imaterial
dos espaços celestes. O fulgor do meu ideal me cegou; a vida, quando
não me fosse traduzida em poesia, aborrecia-me. Pairei sempre no ideal;
e se este me rebaixou aos olhos dos homens, por não compreender certos
atos desarticulados da minha existência; entretanto, elevou-me aos meus
próprios, perante a minha consciência, porque cumpri o meu dever,
executei a minha missão: fui poeta! Para isto, fiz todo o sacrifício.
A Arte só ama a quem a ama inteiramente, só e unicamente; e
eu precisava amá-la, porque ela representava, não só
a minha Redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma
dor. Louco?! Haverá cabeça cujo maquinismo impunemente possa
resistir a tão inesperados embates, a tão fortes conflitos,
a colisões com o meio tão bruscas e imprevistas? Haverá?

Flores havia falado até agora de pé, no meio da sala, sublinhando
tudo com grandes e largos gestos e modulando a voz conforme a paixão
lhe tocava. Fatigou-se, calou-se um pouco, cruzou os braços adiante
do corpo, enterrou o queixo pontiagudo e barbado no peito e, assim, sempre
calado, ficou instantes a sacudir levemente a cabeça, um tanto virada
para a esquerda, olhando o amigo desoladamente. Era ele pardo-claro e cabelos
negros e lisos, com abundantes fios brancos; tinha malares salientes e a boca
bem-feita. Altura média. Diante da explosão do amigo, Meneses
não encontrou nada que dizer. Calou-se prudentemente e evitou o olhar
de Flores, onde este lhe censurava e, ao mesmo tempo, se apiedava pela incompreensão
que não podia existir num velho amigo, tal como Meneses, pela verdadeira
natureza e poder do seu estro e pelo seu ardor artístico.

Leonardo, com menos paixão e entusiasmo, continuou:

—Sim, meu velho Meneses, fui poeta, só poeta! Por isso, nada
tenho e nada me deram. Se tivesse feito alambicados jeitosos, colchas de retalhos
de sedas da China ou do Japão, talvez fosse embaixador ou ministro;
mas fiz o que a dor me imaginou e a mágoa me ditou. A saudade escreveu
e eu translado, disse Camões; e eu transladei, nos meus versos, a dor,
a mágoa, o sonho que as muitas gerações que resumo escreveram
com sangue e lágrimas, no sangue que me corre nas veias. Quem sente
isto, meu caro Meneses, pode vender versos? Dize, Meneses!

—Não. Deve sempre assiná-los.

—Pois eu não vendo, passe por que passar. Sofram, sonhem e bebam
cachaça, se o quiserem fazer. Isto não será bastante
– disse ele com melancolia – é preciso ter nascido como eu, ter perdido
todos os seus irmãos na pobreza e ter um, há vinte anos, atacado
da mais estúpida forma de loucura, para os poder fazer. Isto, porém,
ninguém pode obter por sua própria vontade. Bendito seja Deus!

Sentou-se com os olhos úmidos, tomou uma "talagada" do "Mangaratiba"
e dispôs-se a escrever, recomendando ao amigo:

—Deita-te no sofá e lê os jornais, enquanto escrevo alguma
coisa, até o "ajantarado".

Meneses assim fez. Veio a dormir e, quando despertou, ficou admirado da amplitude
da sala e ter as pernas livres. Sonhara que estava preso e acorrentado…

VIII

Um dos traços mais simpáticos do caráter de Joaquim
dos Anjos era a confiança que depositava nos outros, e a boa fé.
Ele não tinha, como diz o povo, malícia no coração.
Não era inteligente, mas também não era peco; não
era sagaz, mas também não era tolo; entretanto, não podia
desconfiar de ninguém, porque isso lhe fazia mal à consciência.
Não se diga que, às vezes, não recebesse certos conhecimentos
com reservas e cautelas; tal coisa, porém, era rara, e gracioso era
estar já prevenido de antemão com o sujeito. Em geral, fosse
quem fosse, ele acolhia com simpatia, de braços abertos. Na sua simplicidade,
a maldade, a má fé, a perversidade, a duplicidade dos homens
lhe pareciam coisas tão raras, tão difíceis de medrar
numa criatura de Deus, que só topariam com elas os que lhes andassem
à procura, para estudos e coleções.

A sua vida se havia desenvolvido até ali na maior boa fé e,
como houvesse sido feliz, no seu ponto de vista, os seus cinqüenta anos
julgavam o mundo como um reino de paz, de concórdia, de honestidade
e lealdade, apesar das notícias de jornais.

Jamais lera jornais habitualmente. Se tomava um e tentava ler qualquer coisa,
logo lhe vinha o sono. Tudo que não viesse ferir-lhe o ouvido, não
suportava e não lhe ia à inteligência. Não compreendia
um desenho, uma caricatura, por mais grosseira e elementar que fosse. Para
que pudesse receber qualquer sensação duradoura e agradável,
era-lhe preciso o "som", o "ouvido".

Música, desde que fosse aquela a que estava habituado, encantava-lhe;
canto, mesmo acima da trivial modinha, arrebatava-o; versos, quando recitados,
apreciava muito; e um grande discurso, cujos primeiros períodos ele
não seria capaz de lê-los até o fim, entusiasmava-o, fosse
qual fosse o assunto, desde que o dissesse grande orador. Era pobre de visão
e o funcionamento do seu aparelho visual era limitado às necessidades
rudimentares da vida.

Conquanto razoavelmente empregado, nunca deixara a música. Não
tocava em bandas nem em orquestra; mas tirava partes, instrumentava, compunha
de quando em quando, ganhando algum dinheiro com isso. Todas as tardes, após
o serviço, reunia-se com outros músicos militantes, bebericavam,
conversavam, falavam sobre a "Arte", as orquestras de cinemas, a
música de tal peça ou daquela outra, relembravam colegas mortos;
e, às seis horas, por aí assim, encaminhava-se para a casa,
sempre com um rolo de papel de música.

Trabalhava nas encomendas, após o jantar. Punha-se de calças
e camisa de meia, nos dias quentes, ou com um paletó velho, nos frios,
e enfronhava-se nos compassos, nos sustenidos, nos acordes, até alta
noite. Tinha ensinado à filha os rudimentos da arte musical e a caligrafia
respectiva. Não lhe ensinara um instrumento, porque só queria
piano, Flauta não era próprio, para uma moça; violino
era agourento, e o violão era desmoralizado e desmoralizava. Os outros
que o tocassem, sem música ou com ela; sua filha, não. Só
piano, mas não tinha posses para comprar um. Podia alugar, mas tinha
que pagar professora para a filha. Eram duas despesas com que não poderia
arcar. O rendimento da música não era coisa certa; e os seus
vencimentos tinham emprego obrigado no vestuário seu, da mulher e da
filha, no armazém, etc., etc.

Por isso, não levou avante os estudos musicais da filha, os quais,
por falta de convivência e tempo, não passaram da pouca coisa
que ele podia ensinar. Mesmo ela não tinha nenhum ardor musical, nem
de repetir, de reproduzir, nem de criar; aprazia-lhe ouvir, e era o bastante
para a sua natureza elementar. Nem a relativa independência que o ensino
da música e piano lhe poderia fornecer, animava-a a aperfeiçoar
os seus estudos. O seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade,
não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. Era constituir
função do pai, enquanto solteira, e do marido, quando casada.
Não imaginava as catástrofes imprevistas da vida, que nos empurram,
às vezes, para onde nunca sonhamos ter de parar. Não via que,
adquirida uma pequena profissão honesta e digna do seu sexo, auxiliaria
seus pais e seu marido, quando casada fosse. Ela tinha bem perto o exemplo
de Dona Margarida Pestana, que, enviuvando, sem ceitil, adquirira casa, fizera-se
respeitada e ia criando e educando o filho, de progresso em progresso, fazendo
tudo prever que chegaria à formatura ou a coisa parecida.

A muito custo, devido às insistências de Dona Margarida, consentira
em ajudá-la nos bordados, trabalhados para fora, com o que ia ganhando
algum dinheiro. Não que ela fosse vadia, ao contrário; mas tinha
um tolo escrúpulo de ganhar dinheiro por suas próprias mãos.
Parecia feio a uma moça ou a uma mulher.

Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes
que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A
mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer;
limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres,
passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um sonho
lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como
o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão. O mundo se
lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola,
a suspirar amor. Na sua cabeça, não entrava que a nossa vida
tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja a nossa
condição e o nosso sexo. Cada um de nós, por mais humilde
que seja, tem que meditar, durante a sua vida, sobre o angustioso mistério
da Morte, para poder responder cabalmente, se o tivermos que o fazer, sobre
o emprego que demos a nossa existência. Não havia, em Clara,
a representação, já não exata, mas aproximada,
de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se,
de reagir contra essa representação. A filha do carteiro, sem
ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não
lhe permitia meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar
ilações e conclusões. A idade, o sexo e a falsa educação
que recebera, tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade
não corrigia a sua obliquada visão da vida. Para ela, a oposição
que, em casa, se fazia a Cassi, era sem base. Ele tinha feito isto e aquilo;
mas – interrogava ela – quem diria que ele fizesse o mesmo em casa de seu
pai?

Seu pai – pensava ela – estava bem empregado, relacionado, respeitado; ele,
portanto, não seria tão tolo, que fosse desrespeitar uma família
honesta, que tinha por chefe tal homem. De resto, esses rapazes não
são culpados do que fazem; as moças são muito oferecidas…

Com raciocínios desse jaez e semelhantes, Clara, na ingenuidade de
sua idade e com as pretensões que a sua falta de contato com o mundo
e capacidade mental de observar e comparar justificavam, concluía que
Cassi era um rapaz digno e podia bem amá-la sinceramente.

O padrinho, Marramaque, parecia-lhe seu inimigo. Sempre que podia, contava
mais uma proeza, mais uma falcatrua de Cassi. Não lhe cansava o assunto.

Clara até tinha, às vezes, vontade de dizer a seu padrinho:
"Padrinho, esse Cassi deve ser muito rico, porque compra a polícia,
a justiça, para não ser preso. Olhe: se ele fosse condenado
pela metade dos crimes que o senhor lhe atribui, estaria já na cadeia,
por mais de trinta anos."

Ela se enganava, porque não conhecia a vida. Para se escapar aos crimes
de Cassi, basta um pouco de proteção e que o acusado seja bastante
cínico e ousado.

Vivia assim ansiosa e ofegante, querendo e não querendo ver o modinheiro;
ora, convencendo-se de tudo que diziam dele; ora, não acreditando e
apresentando ao seu próprio espírito dúvidas e objeções,
quando Meneses veio tratar de seus dentes, após umas fortes dores que
a prostraram de cama.

Um certo dia, o pai lhe havia dado, ao sair, pela manhã, um trabalho
de música, para copiar, de forma que, à tarde, estivesse pronto.
Não era longo, mas exigia atenção. Depois do almoço,
aí pelas onze horas, pôs-se a copiar, mas, subitamente, deu-lhe
uma dor de dentes que a fez gemer e até chorar.

Engrácia, sua mãe, correu a acudi-la. Como sempre, porém,
ficou estonteada, sem saber o que fazer, que paliativo dar; Clara, mal falando,
disse-lhe que mandasse chamar Dona Margarida.

Em vindo esta, aplicou remédios caseiros, mandou buscar malva, pela
criada que tinha em sua casa; fez Clara bochechar e foi-se para a casa tratar
dos seus bordados e costuras.

Engrácia, porém, não se acomodava, andava de um lado
para outro, impaciente que o marido chegasse. Todas as moléstias existentes,
que a natureza cria, e os médicos, por desfastio, inventam, ela supunha
poder ter sua filha.

Não havia nenhuma lucidez nos seus raciocínios, quando um acontecimento
de aparência grave lhe tocava, e pior ficava, quando se tratava da filha.

O seu amor à Clara era um sentimento doentio, absorvente e mudo. Queria
a filha sempre junto a si, mas quase não conversava com ela, não
a elucidava sobre as coisas da vida, sobre os seus deveres de mulher e de
moça. A não ser no caso de Cassi, que o seu instinto de mãe
falara mais alto do que a sua inércia natural, nunca punha em prática
uma medida eficaz que traduzisse amparo e direção de mãe
na conduta da filha. Pensava, mas não chegava ao ato.

O dia inteiro, quase, passavam as duas mulheres metidas cada uma consigo
mesma.

A mãe lavava a roupa no tanque, ao lado da casa; e a filha se encarregava
dos arranjos domésticos. A cozinha era feita por ambas ou só
por Clara, quando não tinha músicas do pai a copiar ou sua mãe
tinha muita roupa na lavagem.

Joaquim, o Quincas, como o chamava a mulher, saía, nas primeiras horas
da manhã, passava pela venda, fazia as encomendas, tomava um "calisto"
e conversava um pouco com o "Seu" Nascimento.

—Não acredito que "ele" venha, nem também que
o outro se repimpe no Catete.

—Seria bom para o senhor… – dizia Nascimento.

—O quê? Nem o conheço… Qual! Nada tenho com um nem com
outro…

—Mas é seu patrício…

—Como o senhor é, como o outro é também. Somos
todos brasileiros… Eu, "Seu" Nascimento, só cuido da mulher
e da filha e, um pouco, da música.

—Por falar em música: que tal aquele Cassi?

—Quer que lhe diga uma coisa? Como músico, não vale nada.
Dá cada cincada…

—Mas tem fama…

—A fama dele vem do dengoso, do meloso que ele põe no cantar,
chegando a ser até uma indecência. Ele canta que parece estar
num café-concerto, no meio de mulheres de vida airada…

—Por aí, apreciam-no muito…

—São essas meninas bobas, que não têm quem lhes
abra os olhos… Olhe, "Seu" Nascimento, na minha casa ele não
me põe mais os pés.

—Marramaque, seu compadre, já me tinha dito isto e…

—O compadre exagera muito. O compadre tem o seu ponto de honra de poeta…
O senhor sabe; ele já figurou, escreveu em jornais e revistas, teve
roda e convivência de certa ordem, não pode admitir que um quase
analfabeto, como Cassi, tenha fama de artista… A culpa não é
deste; é do nosso meio, que não tem instrução
nem preparo.

—"Seu" Joaquim, o senhor já viu o caderno que mandaram
a seu compadre sobre o tal Cassi?

—Já.

—Que pensa daquilo tudo?

—Se é verdade, ele merece a forca.

—Pois dizem que é. O senhor não sabe quem é a
tia Vicência, que mora por aqui, na rua da Redenção?

—Não.

—Conheço-a eu. Ela é pessoa da casa de Cassi e diz que
tudo aquilo é verdade. Conta até mais detalhes.

—E quem é que espalha o tal caderno?

—É um oficial do Exército, homem preparado, parece que
engenheiro, cuja mulher atual é aquela moça que Cassi desonrou,
e a mãe matou-se por isso, há cinco anos.

—Quem lhe disse isso?

—Vicência. Ela conhece não só a família
do violeiro, como muitas das vítimas. Diz que o marido dessa moça
só não lhe dá cabo do canastro, para não fazer
escândalo; mas, na primeira em que se meter, toma a peito a causa da
vítima, seja quem for.

Joaquim dos Anjos ouviu isso, calou-se um pouco e, sem nada responder, recomendou:

—Não se esqueça de mandar, principalmente a lenha, que
é precisa para o almoço. Estou na hora… Até logo!

Saiu, pensando nesse tal Cassi, que, por mais que quisesse esquecê-lo,
sempre estava presente à sua memória, sempre estavam a relembrá-lo,
como se fosse uma grande coisa, um homem notável e de posição.
Que é que queriam dizer com isso? Preveni-lo? O carteiro sorriu intimamente:
"Ele não ousará"! E pensou na sua garrucha de dois
canos, com as quais se viaja em Minas, presente ainda do inglês, seu
primeiro patrão.

Homem forte, leal, direito, Joaquim tanto tinha nos outros como em si uma
confiança ilimitada. Não desconfiava, nem admitia que se desconfiasse;
mas esse tal Cassi…

Estendia essa sua confiança à sua mulher, no que tinha razão;
mas não à filha, como fazia, porque, no tocante a esta, precisava
contar com a crise da idade, a estreiteza de sua educação doméstica
e a atmosfera de corrupção com que o meio a envolvia, admitindo
tacitamente que ela estava fadada ao destino das "outras". Joaquim
dos Anjos não tinha capacidade intelectual para tanto…

Cessou de pensar em Cassi e pôs-se a cogitar no trabalho, nas gratificações
e nos aumentos. Chegou à repartição, assinou o ponto,
cumprimentou os colegas e chefes; e, à hora certa, tomou a correspondência
a distribuir e lá correu para escritórios, casas de comércio,
entregando cartas e pacotes.

Vinha tudo isto com nomes arrevesados: franceses, ingleses, alemães,
italianos, etc.; mas, como eram sempre os mesmos, acabara decorando-os e pronunciando-os
mais ou menos corretamente. Gostava de lidar com aqueles homens louros, rubicundos,
robustos, de olhos cor do mar, entre os quais ele não distinguia os
chefes e os subalternos. Quando havia brasileiros, no meio deles, logo adivinhava
que não eram chefes. Almoçava frugalmente e até às
cinco executava o serviço, isto é, as várias distribuições
de correspondência.

Terminado o trabalho, procurava os seus colegas de arte e, aí pelas
cinco, cinco e meia, metia-se no trem para a casa.

Naquele dia, conforme o seu costume, preencheu-o todo assim, sem nenhuma
discrepância ou variante, como se obedecesse a um programa. Quando chegou
em casa, já se fazia escuro, e os lampiões da iluminação
pública estavam acesos e prontos a suceder, consoante o seu poder,
à soberba luz do sol, que ia morrendo, num crepúsculo cambiante
e lento, por detrás das montanhas, que se destacavam num fundo de prata,
de ouro e de púrpura, na parte do horizonte em que ele se escondia.

Veio-lhe abrir a porta a mulher, que, antes de mais nada, lhe foi dizendo:

—Ah! Quincas! Você não sabe como me vi atrapalhada, hoje,
aqui… Se não fosse Dona Margarida…

—Mas o que houve, Engrácia?

—Clara ficou doente de repente, pôs-se a gemer, e eu, sem ninguém,
não sabia o que fazer. Felizmente, gritei por Dona Margarida, que acudiu.

—Que é que ela teve, mulher?

—Dentes, Quincas; mas uma dor muito forte.

—Ora, você mesmo! Você é uma pamonha. Então
dor de dentes é moléstia que assuste ninguém?

—É que você não viu.

—Vamos ver o que há?

Dirigiu-se para o quarto da filha, que tinha o queixo amarrado num lenço
dobrado, e perguntou:

—Que houve, Clarinha?

—Nada. Tenho aqui um dente furado, que me dói de quando em quando.
Hoje doeu-me mais fortemente, gemi e tive que me deitar. Felizmente o remédio
que Dona Margarida me deu, fez passar a dor, mas tenho o queixo inchado…

—Não é nada?

—Penso que sim – disse Clara, e acrescentou: – olhe, papai, não
pude passar a limpo a música.

—Não faz mal, eu mesmo passo.

Depois ajuntou, voltando-se para a mulher:

—É preciso levar essa menina ao dentista, Engrácia, enquanto
está no começo.

—Dentistas! Deus me livre!

—Por quê, mulher de Deus?

—Porque é casa de perdição, Quincas.

—Qual perdição, qual nada. Perde-se quem quer ou quem
já está perdido.

—Você que a leve, Quincas. Não posso sair todo o dia…
Você sabe que não posso andar muito…

—Eu não posso, pois tenho de ir para o serviço.

Pôs-se a pensar, olhando a filha deitada, com os doces olhos a interrogar
o pai, quando lhe surgiu um pensamento:

— Vou chamar o Meneses. Ele não é formado, mas tem prática
e pode certamente fazer o que se trata. Que acha, Engrácia?

— Acho bom, se ele vier em casa.

— Ele virá, pela manhã. Almoçará com vocês
e dar-lhe-ei alguma coisa.

— Você quer, Clara? — perguntou o pai.

— Aceito e acho bom. Não é preciso sair e mamãe
não se incomoda.

Foi assim que Meneses entrou a tratar dos dentes de Clara, fato de que tão
oportunamente Cassi tivera notícias pelo doutor Praxedes, no Méier.
Para o velho doutor Meneses foi uma salvação, porquanto, embora
trabalhasse, não era pago ou o era mal e irregularmente. Com o carteiro,
as coisas se passavam de outra forma; e, além disso, almoçaria
todo o dia — vantagem que não era de desprezar.

Sabendo que Meneses estava todos os dias com Clara, Cassi, que havia resolvido
pôr cerco à rapariga, tratou de aproveitar o estado de miséria,
de abatimento moral em que estava o velho dentista, para realizar os seus
inconfessáveis fins. Encomendou-lhe aqueles versos que deviam ser feitos
por Flores e deu-lhe dinheiro, já prevendo que Meneses gastá-lo-ia
e não obteria os versos. Tudo isto aconteceu; mas Meneses, quando,
no dia seguinte, se lembrou da recusa de Flores e de ter gasto o dinheiro,
não achou outro alvitre senão ele mesmo fazer os versos. Ficou
o dia inteiro a martelar, a riscar, a emendar e, ao fim do domingo, tinha
feito algumas quadras com mais ou menos sentido. Nunca, a bem dizer, fizera
versos: mas, tendo corrido montes e vales, lidara com poetas e tinha o ouvido
educado. De resto, escolhera o metro popular, a quadra de sete sílabas;
e tanto fez que, pela tardinha, a poesia estava pronta, e o pobre velho ficou
muito contente consigo mesmo, como se tivesse feito obra de vulto. Bebeu bastante
e dormiu satisfeito. Havia cumprido a sua palavra de qualquer forma. Se os
versos não eram de Leonardo Flores, eram dele. Não seriam tão
bons; mas, pelo menos, desculpariam o gasto dos cinco mil-réis, que
lhe remordia a consciência.

Na segunda-feira, à noite, depois de ter andado por toda a parte,
com a sua velha mala de ferros de cirurgião-dentista, Meneses foi se
postar no botequim do Fagundes. Sentou-se, como de hábito, na última
mesa, aos fundos, encostada à parede, com um jornal debaixo dos olhos
e um cálice de parati na frente. Ele bebia aos goles, à vista
de todos, sem vexame algum. Fazia-lhe mal, como mal faz a todo mundo; mas
era solicitado a beber para se atordoar, para não se recordar, para
não estar só com o seu passado, para afugentar o terror que
a vida lhe inspirava, na miséria, quase indigência em que se
achava, naquela idade avançada de mais de setenta anos, alquebrado,
doente, sem uma amizade forte, sem um parente que o amparasse, sem uma pensão
qualquer.

Cassi foi encontrá-lo engolfado na leitura do jornal:

—Pensei – disse ao sentar-se – que o doutor se havia esquecido.

Meneses, descansando o modesto pince-nez em cima da mesa, onde já
havia posto o jornal, respondeu:

—Qual o quê! Sou homem de palavra… Demais, o senhor me havia
dado o dinheiro, e, assim, o trato ficava mais sagrado.

Cassi tinha uma grande dificuldade em ser amável, tornar a entonação
de voz conveniente, adaptar o olhar a ela, ajeitar adrede os músculos
da face…

Não era capaz disso quando sincero, que fará quando falso!
Todo ele era rude, metálico, grosseiro e áspero. Enfim, fez
o que pôde e disse:

—Por isso, não, doutor! Eu não me lembrava de tal fato!
Aquilo foi para uns beberiques… Arranjou?

—Arranjei; mas não com o Leonardo.

—Ele não quis ou…

—Não; estava bom. Como já lhe disse em certa ocasião,
Flores é por demais orgulhoso, quando se trata de versos dele; e, ao
falar-lhe no "negócio", deitou-me um discurso enorme, dizendo
que era isto e aquilo, tinha feito tais e quais coisas e, por fim, que não
vendia versos.

—Nem dados?

—Não lhe propus; mas estou certo que não daria. Pelo
que disse, os versos que lhe saíam da cachola eram dele e só
dele.

—E com quem arranjou?

—Fi-los, eu mesmo, Não serão…

—Vamos ver, doutor.

Meneses puxou, de dentro da algibeira do interior do fraque cinzento, um
volumoso embrulho de papéis sebosos, procurou o que continha os versos,
pôs o pince-nez e disse:

—Vou lê-los, para o senhor compreender melhor. A minha letra
é muito ruim.

—Leia, doutor.

Meneses concertou os óculos, experimentou uma melhor posição
para receber a luz e começou:

A minha Querida pena

Nas grades de uma prisão,

Mas o Amor lhe ordena

Sossego no coração.

O velho dentista ambulante, afinal, acabou e olhou interrogativamente o menestrel.
Tinha este tomado um ar grotesco de entendido e olhava vago, simulando que
ajustava pensamentos. Após ter Meneses perguntado o que achava dos
versos, o manhoso violeiro disse:

—Não era bem isto que eu queria. Os versos, porém, não
estão maus, antes são bons. Serve até para modinha…
O doutor não sabe quem faça música para modinhas?

—Conheço o Joaquim dos Anjos.

—Ah! É verdade! Como há de ser? – perguntou Cassi, simulando
embaraço.

—O senhor não se dá com ele?

—Dou-me; mas não tenho muita intimidade. Se fosse por intermédio
da filha? Por que o doutor não pede?

—Posso pedir a ela; mas o padrinho – não sei por quê –
não gosta do senhor. Se ele sabe…

Meneses arrependeu-se de ter avançado tanto, mas a sua vontade já
era tão fraca que não soube, nem procurou meios e modos de fugir
às conseqüências de sua confidência. Cassi aproveitou-se
das aberturas do velho e disse:

—Sei; mas escrevo uma carta à Dona Clara a fim de que ela evite
a má vontade do padrinho e que se saiba ser a modinha…

Meneses não pôde reprimir um movimento de espanto.

—Não tenha susto, doutor; absolutamente não malicie no
que vou fazer. A carta será lida pelo senhor.

Meneses ficou mais seguro de si e continuou a beber com vontade, enquanto
Cassi contava-lhe os seus ganhos extraordinários no cangueiro, jogo
suburbano.

—Olhe, doutor – rematou ele -, quando precisar de algum, é só
pedir.

O dentista já estava muito adiantado na embriaguez; e, ao ouvir aquilo,
olhou, desejoso e mendicante, para o violeiro, que se apressou em ir ao seu
encontro:

—Quanto precisa, doutor?

—Dois mil-réis, só.

—Não – disse Cassi, tirando um maço de notas da carteira
-, leve cinco; e não se esqueça de estar aqui, amanhã,
às sete horas. Preciso da música para breve.

Meneses foi para a casa, sem pensar no que havia prometido; e, como guiado
por instinto, subiu e desceu morros, tomou atalhos e acabou se deitando muito
naturalmente no seu miserável canapé. Não quis comer;
a embriaguez lhe havia tomado inteiramente. Despertou, no dia seguinte, sem
saber o que tinha feito, nas últimas horas em que estivera fora. Lembrava-se
vagamente que parara no botequim habitual. Tendo saído para fora de
casa, a fim de lavar o rosto e satisfazer as exigências do organismo,
quando voltou, já encontrou sua irmã de pé a lhe dizer,
como quase todas as manhãs:

—Não temos nada em casa, Juca.

Meneses não sabia se tinha ou deixava de ter dinheiro. Por desencargo
de consciência, foi esgravatar as algibeiras. Encontrou um níquel
de cruzado e pensou: "Bem! Para o café e o açúcar,
já temos". Continuou a procurar, achou, dobradinha, no fundo de
um bolso, uma nota de cinco mil-réis. Espantou-se. Quem lha teria dado?
Cogitou, forçou a memória, enquanto a irmã resmungava:

—Juca, você não ouviu o que eu disse?

—Ouvi; espera, que estou procurando o "cobre".

Tanto forçou a memória, tanto combinou as vagas recordações,
que toda a sua entrevista com Cassi foi recordada. Teve vontade de rasgar
a nota, de dizer que não faria o prometido; mas já estava sem
força moral, temia tudo, temia o menor sopro, o mais inocente farfalhar
de uma árvore. Toda a criação estava contra ele, conjugava-se
para perdê-lo – que podia fazer contra tudo e contra todos? E a miséria?
E a fome? Se se revoltasse, que seria dele, sem futuro, sem emprego, sem amigos,
sem parentes, doente? Era bem triste o seu destino… Onde estava a sua mecânica?
Onde estava a sua engenharia? Amontoara livros e notas pueris, e nada fizera.
Levara bem cinqüenta anos, isto é, desde que saíra da casa
dos pais, a viver uma vida vagabunda de ciganos, sem nunca se entregar seriamente
a uma única profissão, experimentando hoje esta, amanhã
aquela. De que lhe valera isto? De nada. Estava ali, no fim da vida, obrigado
a prestar-se a papéis que, aos dezesseis anos, talvez não se
sujeitasse, para disfarçadamente esmolar o que comer com os seus parentes.
Teve vontade de chorar, mas a irmã gritou-lhe do quintal:

—Achaste o dinheiro?

—Achei.

Respondeu assim, numa palavra, e deitou bem meio copo da aguardente, que
sorveu toda quase de um só trago.

Meneses pensou ainda nos seus setenta anos desamparados, estéreis,
e teve infinita dor de si mesmo, da miséria do seu fim. Que resolver
sobre o caso de Cassi e da carta? Sacudiu os ombros e pensou de si para si:
Que hei de fazer? As coisas me levaram a isso e…

Cassi veio ao botequim, munido da carta, que leu, conforme prometera a Meneses.
Desgostoso, com aquele mau travo na consciência, o pobre dentista ambulante
procurava, durante o dia, beber a mais não poder. Tinha chegado cedo
em casa de Joaquim e, tendo-o ainda encontrado, pedira-lhe dinheiro. Almoçou,
saiu e foi bebendo daí em diante em todo o botequim por que passava.
Ao chegar à casa do Fagundes, tinha lá uma carta de um cliente.
Abriu-a; mandava-lhe dez mil-réis, por conta de cinqüenta que
lhe devia. Deu cinco mil-réis ao caixeiro, para guardar, e foi para
a cidade. Aí não teve medida. Todos lhe pagavam, de forma que,
ao se encontrar com o Cassi, não dava mostras, mas estava completamente
sem discernimento.

O violeiro leu o que quis, fechou a carta e deu-a ao pobre velho. A sua resolução
já estava tomada. Havia forçosamente de se entregar à
sorte, aos caprichos da corrente da miséria, de dor, de humilhação
que o arrastava. Ela o havia levado até ali; era inútil resistir.
Entregou a carta a Clara. No dia seguinte, recebeu a resposta. Entregou-a
a Cassi. Assim, durante um mês e tanto, ele foi o intermediário
da correspondência dos dois. Já não tinha um movimento
de revolta; resignara-se àquele ignóbil papel como a uma fatalidade
que o destino lhe impusesse. Contra a força não há resistência,
pensou ele; o mais sábio era submeter-se. Não esperava mais
que Cassi lhe oferecesse dinheiro, pedia-o. No começo, o violeiro foi
satisfazendo inteiramente os pedidos; depois, fazia-o pela metade; por fim,
dizia que não tinha dinheiro e não lhe dava nada.

Meneses, porém, continuava passivamente a desempenhar o seu indigno
papel. Se não o achava decente, conformava-se diante da sua atroz e
irremediável miséria. Não se julgava mais um homem…

Clara recebia aquelas cartas com uma emoção de quem recebe
mensagens divinas. Entretanto, eram pessimamente escritas, a ponto de não
serem, às vezes, entendidas, tão caprichosa era a ortografia
delas. A filha do carteiro não via nada disso; esquecera-se até
das más ausências que faziam do namorado. Para ela, ele era o
modelo do cavalheirismo e da lealdade. Estava sempre a sonhar com ele, com
aquele Cassi da viola, Passava da alegria para o choro. A mãe notava-lhe
essas alternativas de humor e fazia-lhe perguntas. Ela as respondia, malcriadamente,
desabridamente. Relaxava o serviço ou não o fazia. Quase sempre,
esquecia-se disso ou daquilo. Engrácia comunicou isto tudo ao marido.
Joaquim disse então:

—É verdade, Engrácia. Essa menina tem alguma coisa…
Antigamente, as suas cópias de música eram limpas e certas;
agora, não. Vêm cheias de raspagens, erradas, borradas… Que
terá ela? Vou levá-la a um médico – que achas?

—Talvez faça bem.

Daí a dias, Joaquim faltou à repartição e levou
a filha ao doutor. Este a examinou e disse ao pai:

—Sua filha nada tem. São coisas da idade e do sexo… De distrações,
passeios, convivência – é o que ela precisa… Em todo o caso
vou receitar…

Joaquim fez a necessária comunicação à mulher,
que ficou de se entender com Dona Margarida, para fazer-se acompanhar da filha,
sempre que tivesse de sair, ir a lojas, etc. Ele mesmo, Joaquim, levou-a no
próximo domingo, a passear em Niterói.

O mar não fez bem à menina. Se a sua alma estava cheia de vago
e de impalpável, com a vista do mar ficou absorta no infinito, no ilimitado
do Universo.

De volta, chorou toda a noite sem saber por quê. Amanheceu de olheiras
roxas, corpo mole, aborrecida de tudo e de todos. A vida lhe sabia a amargo.
Ela não via como se a podia adoçar. Ao mesmo tempo, lembrava-se
de Cassi e enchia-se de esperanças. Saiu com Dona Margarida. A alemã,
muito mais sagaz que seus pais, adivinhou o seu mal e pô-la em confissão
com habilidade. Tanto fez, que Clara lhe disse francamente a origem dos seus
males.

—Mas este sujeito é um tipo indigno.

—Não, para mim. Estou crente que…

—Dizem tão mal dele…

—É porque ele se deixou apanhar, enquanto outros há por
aí que… Ele confessa que está arrependido do que fez, e agora
quer se empregar e casar-se comigo.

Dona Margarida olhou firmemente para a moça, cravou bem os seus olhos
perquiridores nos da rapariga; e fez de si para si:

—Será possível?

Apressou-se a contar a confissão de Clara à mãe. Engrácia
odiava Cassi. Se, algum dia, tinha tido um sentimento forte, era esse de ódio
ao violeiro. Não sabia bem como justificá-lo; mas tinha-lhe
uma raiva, uma gana de morte. Quando Dona Margarida lhe narrou a confidência
da filha, ela teve uma crise surda de rancor. Já não era só
contra ele, mas contra a filha, que ela criara com tantos carinhos, tantos
cuidados, para, afinal, vir a se "embeiçar"" por aquele
borra-botas, amaldiçoado por todos, até pelo próprio
pai. Serenou e tomou a resolução de contar o fato, por sua vez,
a Joaquim, antes que aquele perverso de modinheiro não lhes pespegasse
alguma das dele.

Joaquim recebeu a notícia sem demonstrar espanto. Não gostava
também de Cassi. Era, para ele, homem morigerado e trabalhador, um
capadócio, um desclassificado, réu de policia, muitas vezes,
de quem tanto mal se dizia; mas, se ele quisesse casar com a filha, apesar
de todos os seus maus precedentes, não se oporia. Iria falar-lhe? Ou
chamá-lo-ia em casa? Não seria melhor esperar?

Pensou e tomou o alvitre de pedir a opinião do compadre Marramaque.
O antigo contínuo tinha um grande ascendente moral e intelectual sobre
o ânimo do carteiro, que o obedecia cegamente. Tratou, portanto, de
pedir-lhe conselho.

Naquele domingo, a partida de solo tinha se adiantado pela noite afora. Deviam
ser onze horas quando resolveram a "dar com o basta". Jogavam na
sala de jantar, onde se encontravam, além dele, Joaquim, Marramaque,
Lafões e Dona Engrácia também. Clara já se recolhera
ao quarto. Parecendo-lhe que a filha dormia, Joaquim resolveu decidir a coisa.
Expôs primeiramente o estado nervoso da filha, os passos que tinha dado
para tratá-la e chegou ao ponto agudo da questão. Por aí,
Marramaque ergueu-se furioso:

—Pois, então, você, compadre, quer meter semelhante pústula
dentro de sua casa? Você não sabe quem é este Cassi? Se
o pai não quer saber dele, é porque boa coisa ele não
é. Ele não só desonra a família dos outros, como
envergonha a própria. As irmãs, que são moças
distintas, já podiam estar bem casadas; mas ninguém quer ser
cunhado de Cassi. Ele se diz sempre correspondido, que se quer casar, etc.,
para dar o bote. Quando fica satisfeito, escorrega pelas malhas da justiça
e da polícia, e ri-se das pobrezinhas que atirou à desgraça.
Você não vê que, se ele se quisesse casar, não escolheria
Clara, uma mulatinha pobre, filha de um simples carteiro? Sou teu amigo, Joaquim…

—É o que eu penso também – fez Dona Engrácia.
– Ele pode achar muitas em melhores condições…

Clara, que ouvia tudo, chorando em silêncio, quis protestar e citar
exemplos em contrário, que conhecia, mas se conteve.

Joaquim, que escutara calado a fala apaixonada do compadre, observou:

—Acho que você tem razão; mas, qual o remédio?

—É continuar… Como é que minha afilhada recebeu recados
dele, comadre? – perguntou Marramaque a Dona Engrácia.

—Ela diz que foi uma amiga que lhe trouxe – respondeu a mulher do carteiro.

—Fresca amiga! – comentou rindo-se Marramaque. – O que há a
fazer, Joaquim, é continuar no que está e fazer que ele saiba
que você não vê com bons olhos a insistência dele
junto à filha.

—Se ele teimar? – perguntou Engrácia.

—Publica-se nos jornais aquele folheto que recebi, vai-se à
policia, desmoraliza-se o tipo de uma vez; e ele que faça o que quiser.

Todos calaram-se. Lafões não precisou fazer isto, porque se
havia mantido até então calado. O carteiro voltou-se para ele
e perguntou-lhe:

—Que diz a isto, Lafões?

—Isso… isso é matéria delicada. Não sou da família
e, por isso, não me julgo com o direito…

—Eu também não sou – acudiu Marramaque. – Estou só
dando com franqueza uma opinião que me pediram; mas certo de que, Joaquim,
se você permitir que esse tal sujeito entre aqui, eu, apesar do muito
que devo a você, não ponho mais os meus pés na sua casa.

Levantou-se, tomou a bengala e saiu mergulhado na treva da noite, que estava
bem escura, quase sem estrelas, caminhando devagar, no seu passo de capenga,
até à sua modesta casa, onde chegou sem temor e tranqüilo
de consciência.

Clara não pôde conciliar o sono. As idéias mais absurdas
lhe passavam pela cabeça. Pensou em fugir, em ir ter com Cassi, em
matar-se… Enchia-se de raiva contra o padrinho. Por fim, resolveu relatar,
por carta, tudo o que se passou ao namorado. Saiu do quarto, logo que percebeu
que o pai já tinha ido para a repartição; tomou naturalmente
a bênção à mãe, lavou-se e serviu-se do
café matinal. Como não tivessem vindo as "compras",
disse à mãe que ia copiar música, enquanto as esperava.
Era um pretexto. O que ela escreveu, foi uma longa carta, narrando o que ouvira
naquela noite a respeito dela e dele. Antes de Meneses começar a cuidar
dos dentes, ela lhe fizera entrega da missiva, que o pobre velho, cheio de
amargura, logo meteu na algibeira. Para que viver tanto? – pensou ele, limpando
os ferros numa toalha de alvura imaculada.

Inteirado do que acontecera, vendo os seus planos fracassarem por causa daquele
"João Minhoca" e, ainda mais, com a ameaça de ver
toda a sua escandalosa vida publicada nos jornais – Cassi encheu-se de fúria
má e, na maior fúria, tomou a firme resolução
de remover aquele trambolho de "aleijado", que estava sempre estragando
os seus planos, com os quais até já tinha gasto bastante dinheiro.
Não subiam as despesas a mais de cinqüenta mil-réis…

O seu furor foi grande; tanto que, ao ler, em voz baixa, a carta, ao lado
de Meneses, no botequim, este lhe notou a profunda alteração
de fisionomia que, subitamente, a leitura lhe havia produzido. Os seus olhos
chamejavam, os dentes estavam rilhados e toda a sua natureza baixa, feroz
e grosseira se revelava, num ríctus horrível.

Pagou alguma coisa que beber a Meneses e despediu-se, sem dizer mais nada.

Meneses continuou a sorver os seus consoladores "calistos" e a
perguntar de si para si:

—Que há? Que haverá? Que haveria?

O que havia, era simples: Cassi premeditava simplesmente, friamente, cruelmente,
o assassinato de Marramaque. Quando ele falou a respeito a Arnaldo, limitou-se
a dizer: "Vamos dar-lhe uma surra." "Por quê?" perguntou
o outro, Ele respondeu: "Esse velho está abusando de ser aleijado,
para me insultar. Merece uma surra". Não iam sová-lo, sabiam
os dois desalmados; iam matá-lo…

Era sábado, dia em que Marramaque se demorava mais na venda do "Seu"
Nascimento. Chovia e a noite viera logo fechada e escura. Grossas nuvens negras
pairavam baixo. As luzernas de gás, tangidas pelo vento, mal iluminavam
aquelas torvas ruas dos subúrbios, cheias de árvores aos lados
e moitas intrincadas de arbustos. Marramaque, vindo da repartição,
deixara-se ficar até às oito, na venda. Por essa hora, despediu-se
e tomou o caminho de casa. Para se ir ter a ela, por ali, preconiza-se, entre
outras, uma rua já quase completamente edificada, que terminava numa
ladeira deserta. De um lado, o esquerdo, havia um terreno baldio, cheio de
moitas altas; do direito, grandes árvores dos fundos de uma chácara,
cuja frente era na rua paralela. Além de deserto, esse trecho era por
demais sombrio, sobretudo em noites como aquela.

Marramaque, debaixo de chuviscos teimosos, embrulhado numa capa de borracha,
subiu a ladeira, para depois descer o barranco e, finalmente, chegar à
casa. Quando estava no alto da pequena elevação, dois sujeitos
tomaram-lhe a frente e disseram-lhe: "Capenga, você vai apanhar,
para não se meter onde não é chamado". Não
teve tempo de dizer coisa alguma. Os dois descarregaram-lhe os cacetes em
cima, pela cabeça, por todo o corpo; e o pobre Marramaque, logo à
primeira paulada, caiu sobre um lado, arfando, mas já sem fala. Malharam-no
ainda com toda a força e raiva, sem dó nem piedade; e fugiram,
quando lhes pareceu momento azado.

No dia seguinte, ao passarem os primeiros transeuntes, ele estava morto.
E, assim, morreu o pobre e corajoso Antônio da Silva Marramaque, que,
aos dezoito anos, no fundo de um "armazém" da roça,
sonhara as glórias de Casimiro de Abreu e acabara contínuo de
secretaria, e assassinado, devido à grandeza do seu caráter
e à sua coragem moral. Não fez versos ou os fez maus; mas, ao
seu jeito, foi um herói e um poeta… Que Deus o recompense!

IX

Um crime, revestido das circunstâncias misteriosas e da atrocidade
de que se revestiu o assassinato de Marramaque, faz sempre trabalhar todas
as imaginações de uma cidade. Um homicídio banal em que
se conheceu a causa, o autor, capturado ou não, e outros pormenores,
deixa de oferecer interesse, para ser um acontecimento banal da vida urbana,
fatal a ela, como os nascimentos, os desastres e os enterros; mas o assassinato
de um pobre velho, aleijado, inofensivo, pobre, a pauladas, faz parecer a
toda a gente que há, soltos e esbarrando conosco nas ruas, nas praças,
nos bondes, nas lojas, nos trens, matadores, que só o são por
prazer de matar, sem nenhum interesse e sem nenhuma causa. Então, todos
acrescentam, aos inúmeros e insidiosos inimigos que tem a nossa vida,
mais este do assassínio por divertimento, por passatempo, por esporte.

Um ou muitos, seja em que número forem, é sempre uma ameaça
que paira sobre cada um de nós, zombando da mais ostensiva pobreza
e não tendo em consideração a pacatez mais pusilânime.

Marramaque não era rico nem andava com jóias, sendo certo que
não podia trazer consigo muito dinheiro. O móvel do crime, portanto,
não seria o roubo. Ao contrário, o exame minucioso nos bolsos
das vestes, com que fora encontrado o seu cadáver, não denunciou
nenhuma tentativa de saque. O pouco dinheiro que tinha – três mil e
tanto – estava intacto; uma carteira, encontrada numa das algibeiras interiores
do dólmã, continha unicamente papéis. Quando foi assassinado,
vestia a farda de contínuo: dólmã azul-marinho e calças
da mesma cor. Tinha, por baixo do dólmã, um comum colete preto,
onde trazia um relógio de prata, preso numa antiga corrente de ouro,
feita de diversos trancelins de ouro, reunidos por argolas também desse
metal, com um remate, em forma de estribo, cujo pedal era uma pedra negra.
Pois bem: nem mesmo esta peça, de algum valor, foi-lhe roubada. Posta
de lado a hipótese de roubo, qual poderia ter sido o móvel do
crime? Amores, conquistas? O estado de saúde, a sua semi-invalidez
logo afastavam tal hipótese. Política, questões de família
– nada disso explicava o crime. Só na perversidade, na vontade de matar,
por parte de alguém extremamente mau e sedento de sangue, encontrar-se-ia
a causa. Seria isso? – perguntavam todos.

A noticia do crime logo se espalhou pelo subúrbio inteiro, apesar
de ser domingo o dia em que foi descoberto. A deformidade de Marramaque fazia-o
notado e conhecido, de forma que, por toda a parte, se comentava o assassínio.
A polícia tomou as providências de hábito; mas só
iniciou as pesquisas no dia seguinte. Todos que estiveram na venda foram ouvidos;
mas pouco, nada adiantaram. Nem o podiam fazer. Marramaque, em lá chegando,
a chuva tinha cessado. Era sábado, e todos os habitués do armazém
do "Seu" Nascimento lá estavam, inclusive Meneses, que se
mostrava palrador e prazenteiro. Discutia-se despreocupadamente, e até
Meneses causou grande hilaridade, quando explicou a sua teoria transcendente
sobre o "ovo de Colombo". No correr da discussão, alguém
dissera:

—Isto é ovo de Colombo,

Parece que foi Marramaque a dizer, e Alípio aproveitou o ensejo, para
perguntar:

— Que diabo quer dizer esta história de "ovo de Colombo",
na qual todo o mundo fala e não sei o que é?

Entre os circunstantes estava o Senhor Monção, caixeiro-vendedor
da grande casa de cereais Belmiro, Bernardes & Cia., que tinha suas luzes
e gostava de palestrar, para descansar da afanosa lida de estar a "tocar
realejo" aos varejistas, oferecendo-lhes feijão, arroz, milho,
e por bom preço.

Era um moço português, simpático, de bom porte e bem-educado.
Tinha grande liberdade na roda e não houve nenhum espanto quando interveio:

— Pois não sabes, Alípio, o que é o "ovo
de Colombo"?

— Não, "Seu" Mindela.

— É simples, No meio dos sábios espanhóis, depois
da primeira viagem à América, Colombo, vendo o seu trabalho
criticado e tido como fácil pelos sabichões de Castela, desafiou-os
a pôr um ovo em pé.

— Eles puseram? — perguntou Alípio,

Meneses apressou-se:

— Não puseram; mas Colombo pôs.

— Como? — indagou Alípio.

Meneses explicou, tomando a palavra de Mindela, com todo o seu açodamento
de sábio:

— Colombo, dando um movimento de rotação conveniente
e um de translação adequado, dissolveu a gema do centro do ovo,
para a base, trazendo, para a parte inferior do ovo, o centro de gravidade,
de forma que o pôde pôr em pé.

Todos se entreolharam e viram o absurdo da explicação de Meneses.
Ninguém se animava a contestar, mas Marramaque, tomando a dianteira
de Mindela, que ia falar, saltou logo, em tom de gracejo:

— Qual, "Seu" Meneses! Esta história de translação,
de rotação, de centro de gravidade, é bobagem; o que…

— Bobagem, Marramaque? Isto é mecânica transcendente,
como é a questão do gato cair sempre sobre as patas, atirado
que seja, do alto para baixo, em qualquer posição.

Marramaque foi-lhe ao encontro, sem pestanejar:

— Nós não temos nada com gato. Ovo se parece tanto com
gato como um espeto. Bolas, "Seu" Meneses!

Todos os circunstantes riram-se a mais não poder; Meneses pôs-se
a cofiar a longa e abundante barba branca, lamentando-se da sua derrota em
mecânica e tudo. De repente, cobrou coragem e desafiou o contínuo:

—Quero ver, Marramaque, como é que você explica ter Colombo
posto o ovo em pé?

—Muito simplesmente, Meneses. Vou contar a história como a li:
"Num banquete, procuravam os nobres de Espanha rebaixar o mérito
da descoberta de Colombo, e dizia um: "As Índias já lá
estavam e, se o senhor não as descobrisse, qualquer um outro as descobriria".
Colombo, sem responder, pediu um ovo; trouxeram-lhe e ele desafiou a que alguém
o pusesse de pé, "Impossível!" – bradaram. Então,
o navegador tomou o ovo, bateu com ele, quebrando ligeiramente a mais rombuda
das extremidades, e fê-lo ficar de pé. "Ora, isto também
eu faria!…" – replicaram. "Sim, depois que me viram fazer. É
simples, mas é preciso pensar no caso, e achar o meio". Está
ai como foi a coisa. Não tem nada de gravidade, nem de rotação,
nem de translação, nem de constelação, nem de
repulsão — nada tem em "ão", Meneses!

De novo a gargalhada foi geral e prolongada; e Meneses, muito encafifado,
limitou-se a dizer:

—Isto não é científico; é uma explicação
jocosa de anedota de almanaque. Podia demonstrar a minha interpretação
com o auxílio do cálculo, mas não é conveniente
aqui… fica para outra ocasião.

Assim, sem outra preocupação, naquela tarde tempestuosa, conversaram
na venda, enquanto Marramaque estivera e mesmo depois da sua saída.
É óbvio que nenhuma das pessoas que lá estavam poderia
adivinhar o que lhe ia acontecer pelo caminho. Chuviscava teimosamente, mas
não havia o que se chama de chuva torrencial, quando o pobre continuo
se despediu. É verdade que a noite estava pavorosa de escuridão,
e ameaçadoras nuvens pairavam baixo, ainda mais carregando de treva
a atmosfera e ofuscando os lampiões, cuja luz oscilava sob o açoite
de um vento constante e cortante. Não se via, como é costume
dizer-se, um palmo diante do nariz. À polícia, pareceu que aquele
misterioso assassínio, sem causa presumível, nascera de um segredo
que só ele, Marramaque, podia revelar e, talvez, os seus papéis
íntimos o revelassem. Resolveram, então, as autoridades perquiri-los,
à cata de uma pista.

Morava Marramaque com uma tia materna, pouco mais moça que ele, tendo
dois filhos homens, de doze e dez anos. Após ter enviuvado na roça,
com alguma coisa, tomou o alvitre de comprar aquela casa e convidar o sobrinho,
para lhe fazer companhia e encaminhar a educação e a instrução
dos filhos, e ajudá-la também,

A sua casa era inteiramente o contrário da de Meneses. Estava sempre
limpa, móveis em ordem, completamente cercada, o jardinzinho da frente
bem tratado. Helena, a tia de Marramaque, era muito metódica e econômica,
de forma que a vida doméstica do sobrinho era regular e plácida.
Ela costurava para os arsenais do governo e, com o que Marramaque lhe dava
dos seus exíguos vencimentos, a vida deles corria sem contratempos.
Não eram difíceis as suas comunicações com as
estações da Central, quando feitas pelo bonde de Inhaúma,
que passava na esquina; e, se o continuo, na noite fatídica do assassínio,
tomava aqueles atalhos e subidas, sempre que passava pela venda do Nascimento
ou ia à casa do Joaquim, procurava aquele caminho mais curto. Helena
vivia para os filhos; raras vezes, a não ser para regularizar as suas
costuras, saia, indo uma ou outra vez à casa do carteiro, onde se aborrecia
com o gênio taciturno de Engrácia. Foi ela quem assistiu desenterrar,
do fundo de baús e gavetas, as recordações do seu pobre
sobrinho.

As autoridades policiais pediram delicadamente autorização;
e o delegado em pessoa foi examinar os papéis do infeliz contínuo.
Não encontrou coisa de valia. Havia no seu arquivo cartas de família,
bilhetes de amigos, rascunhos de versos, entre os quais um de Raul Braga,
de quem Marramaque fora amigo, e o célebre caderno sobre Cassi, que
o delegado tinha também um exemplar. A não ser esses papéis
sem importância, encontraram um caderno de versos, pronto a ir para
o prelo, de autoria de Marramaque, intitulado – Boninas e Sensitivas – versos
ingênuos de um homem bom e honesto que não é poeta. Deram
também com um retrato de mulher feita, numa pose popular, com o braço
esquerdo descansando sobre uma coluna e tendo um leque enorme, pendente do
direito, caindo ao longo do corpo. Era uma mulher bonita, de trinta anos,
sadia e forte. Nas costas havia esta dedicatória: "Ao meu Antônio,
a Eponina. 25-12-92". Mais abaixo, com letra de Marramaque, existiam
estas observações: "Amor tudo vence; não pode vencer
as obrigações de lealdade que devem sempre existir nas amizades
perfeitas. Adeus!"

Quem seria? Os policiais indagaram; mas Dona Helena não lhes pôde
explicar. Naquela data, ela nem casada era ainda; seu sobrinho já tinha
vindo para o Rio. Quem seria?

Enfim, nada encontraram, e o crime foi sendo esquecido. Só duas pessoas
podiam pôr as autoridades na pista verdadeira; eram Clara e Meneses.

Clara, logo que soube do assassínio do padrinho, ficou fora de si.
Lembrou-se das ameaças veladas que Cassi fazia ao padrinho, nas cartas
que lhe escrevia; lembrou-se também da carta em que ela narrava ao
namorado a atitude de Marramaque, quando o pai falou ao compadre na necessidade
de ter um franco entendimento com o violeiro. Por aí e por outras pequenas
circunstâncias, atribuía a Cassi o assassinato do padrinho e
como que se julgava também sua cúmplice. Veio-lhe um medo daquele
cantador meloso, dengoso, apesar de seu mau olhar de folhas-de-flandres; e,
num relâmpago, viu bem quanto de fingido e falso podiam conter as suas
cartas ternas e cheias de protestos de boas intenções e de amor
sincero e honesto.

Imediatamente, porém, explicou esse seu ato de desvario criminoso
como um esporádico ato de loucura, provocado pelo amor que tinha a
ela. Era um obstáculo e.. Agradava-lhe a interpretação.
Não tardariam, entretanto, a se explicar de viva voz, porque ela havia
consentido afinal em conversar com ele na grade de casa, depois que seus pais
se recolhessem. Então, nessa ocasião, ela avaliaria o grau de
certeza de suas suspeitas. Meneses tinha levado uma carta dela nesse sentido;
mas, tendo ficado atrapalhada por sentir a aproximação da mãe,
não pôde, Clara, fechar a missiva convenientemente. Aberta, a
moça, para não ser pilhada, passou-a precipitadamente ao velho,
que assim a guardou jubilosamente. Quando se lhe ofereceu momento azado, leu-a.

Como toda a mulher sem instrução, Clara pegou na pena e não
tinha vontade de a largar. Contava detalhes, repisava juras e pedia juramentos.
Um destes era o de que ele a respeitaria sempre; e, se não fizesse
isso, romperia as relações com ele. Estava disposta a esperá-lo,
às dez horas, na grade, daí a oito dias, e isso o fazia, porque
"Seu" Meneses tinha dado o serviço dos dentes por terminado.

De fato, Meneses, aborrecido com aquele negócio de cartas e com o
desdém com que Cassi o tratava, ademais da ignóbil farsa que
se prestava, resolveu dar por findo o trabalho. A leitura da carta não
lhe causou nenhuma estranheza; ele já esperava por este fim. Estava
forrado de uma indiferença de vencido. Sentiu-se de mãos e pés
atados, para ter qualquer movimento de censura ou de conselho. É que
ainda não lhe tinha chegado aos ouvidos a notícia do bárbaro
assassínio de Marramaque. Quando, porém, veio a saber, teve
uma forte vergonha do seu procedimento, da sua covardia. Compreendeu que aquelas
meias-palavras de Cassi sobre Marramaque, aquele ríctus horrendo que
vira certa vez, ao se falar do contínuo, lhe desfigurar a face, eram
os pródromos do assassínio do bondoso velho que o violeiro premeditava.
O infeliz Meneses passou o dia todo e a noite inteira voltado para dentro
de si mesmo. Não sabia mais chorar, mas o seu remorso era intenso.
Ele se julgava também cúmplice daquele desalmado. Por que calara
o que sabia? Por que se acovardara a ponto de servir de medianeiro? Oh! Ele
não era mais homem, não tinha mais dignidade!

Cassi, entretanto, não demonstrou o menor abalo. Leu as notícias
dos jornais, as objurgatórias contra os assassinos de que estavam cheios;
ouviu as maldições de todos, nos cafés, nos bondes, em
todas as conversas e por toda a parte; mas nenhum arrependimento sentia. Só
lhe faltava o orgulho íntimo de ter efetuado tão rara proeza,
para ser completa a sua inumanidade e o seu abjeto sossego íntimo.
Não tinha orgulho, mas havia nele como que alívio de se ver
livre daquela espécie de duende, de fantasma, que vivia a persegui-lo.

Com Arnaldo, já não acontecia o mesmo. Passado o fato, com
a leitura dos jornais, com as censuras amargas que via em todas as bocas,
até nas daqueles afeitos ao crime, o sócio de Cassi, se não
viu remorsos, começou a ter susto. Não pôde reprimir o
impulso que o levou a ver o cadáver. Estavam os restos de Marramaque
quase tal e qual como foram encontrados. Os médicos ainda não
haviam praticado a autópsia. A cabeça partida, os olhos fora
das órbitas, todo o rosto coberto de uma lama sangrenta, o braço
semiparalítico, partido, as roupas, ensopadas de lama e sangue… Era
horrível! No necrotério, acotovelava-se uma multidão,
e todos, em voz baixa, cobriam de baldões, de injúrias, de pragas,
os malvados que tinham levado a efeito tão estranho e inconcebível
crime… Um crioulo, muito negro, forte, com grandes "peitorais"
salientes, dizia bem alto do lado de fora:

—Eu não sou santo… Já fiz das minhas… Conheço
a "chacára"; mas Deus me castigue, me ponha um raio em cima,
e faça apodrecer em vida, se eu fosse capaz de fazer tão porco
"trabalho"… Os que o fizeram, nem esfolados vivos pagariam…
Para que mataram esse pobre velho?

Arnaldo voltou do depósito fúnebre apreensivo. Não havia
nele, a bem dizer, arrependimento. O que ele sentia era medo de ser descoberto,
de pegar cadeia trinta anos a fio, porque não podia ser mais. Chegou
aos subúrbios apavorado; e, quando topou com Cassi, disse, com olhar
desvairado:

—Chi, Cassi! O "homem" estava horrível…

O violeiro virou-se para ele, olhou-o firme com seu olhar fosco e falou-lhe
com energia e fogo nos olhos:

—Cala-te, miserável! Queres pôr tudo a perder…

Conquanto temesse as fúrias do seu companheiro e cúmplice,
não lhe passava o terror de ser descoberto pela polícia. Deu
em beber; Cassi vigiava-o com medo que ele "desse com a língua
nos dentes". Não o deixava só, quando estava em "rodas".

Nos botequins, não entrava um freguês, que Arnaldo não
examinasse meticulosamente, cautelosamente, com o rabo dos olhos. Às
vezes, não se continha e apontava:

—Cassi, aquele é agente do décimo oitavo…

O modinheiro, em voz baixa, mas com autoridade, repreendia-o:

—Estás doido! Queres nos pôr no "x", pelo resto
da vida.

No começo, Cassi teve medo que a embriaguez o fizesse denunciá-los;
mas, bem cedo, percebeu que a sua bebedeira tomava uma feição
choramingas, efusiva, dava para abraçar todos e, com voz de mágoa
íntima, repetia de onde em onde, sem nada entender do que se dizia
ao redor: "Eu não sou mau…" "Eu sou um bom rapaz…"
"Nunca fiz mal a ninguém", etc.

Então, Zezé Mateus, também já muito bêbedo,
derreado completamente na cadeira, com os olhos divergentes e vidrados, babando-se
todo e gaguejando, retrucava: "Meu querido Arn… ar… ar… Arnaldo,
você é uma… pomba sem… sem fel". Em seguida, depois
de limpar a baba com o lenço: "Quem foi que… que disse que…
você é… é mau?" E acrescentava: "Traga…
Traga este su… su… sujeito aqui que… que eu parto a cara dele".

Arnaldo, por aí, levantava-se comovido e abraçava Zezé
Mateus, que se mantinha na cadeira, e, com dificuldade, erguia os braços,
a fim de cingir o camarada.

Repetiam daí a pouco a cena, com pequenas variantes, debaixo dos motejos
forçados de Cassi, a quem tais espetáculos não deixavam
de fazer mal. Os outros companheiros riam-se a bom rir, sem nada suspeitar.

Entretanto, o violeiro não se fiava muito que Arnaldo sempre procedesse
assim. A embriaguez – ele sabia – é caprichosa, ora dá para
isto, ora dá para aquilo, podia aparecer qualquer coisa a respeito
do crime e era preciso que ele, Cassi, tomasse as suas precauções.
A entrevista com Clara estava marcada para o fim da semana. Tinha de ir; tinha
que dar fim "naquilo", que tanto trabalho lhe dera e estava dando.
Antes de tudo, porém, era preciso estar preparado para o que desse
e viesse. Não contava mais com a proteção; Barcelos não
valia nada e só prestava pequenos serviços em vésperas
de eleição. Quando elas estavam distantes, fiava com má
cara um cálice de cachaça… Era preciso ter tudo pronto para
fugir do Rio de Janeiro, ao primeiro sinal de alarme, tanto mais que sabia,
por indiscrições de Meneses, que as ouvira na venda do "Seu"
Nascimento, que o marido de Nair – aquela moça que ele desencaminhara
e a mãe, por isso, se suicidara – estava disposto a persegui-lo, como
já o perseguia, com os famosos cadernos, mas mais eficazmente, desde
que se metesse em "alguma". Considerou bem que as coisas agora seriam
mais difíceis; e as pedras que semeara no caminho, começavam
a erguer-se para lapidá-lo.

Tomou a extrema resolução de vender os galos de briga. O dinheiro
que apurasse, depositaria na Caixa Econômica, para tê-lo sempre
à mão, quando fosse necessário fugir. A mãe, vendo
carroças chegarem à porta e as gaiolas e capoeiras saírem,
a fim de tomarem lugar nos transportes, foi indagar-lhe o que havia:

—Nada, mamãe. Vou para fora, trabalhar…

—Para onde, Cassi?

—Vou para Mato Grosso, empregar-me na construção de uma
estrada de ferro.

—Como trabalhador de picareta, meu filho?

—Não, mamãe, vou ser chefe de turma e praticar nos instrumentos,
até conseguir ser seccionista.

Dona Salustiana assim mesmo não ficou contente. Ela conhecia a ignorância
do filho, a sua inferioridade mental e a sua incapacidade para aplicar-se
a alguma coisa que demandasse o menor esforço intelectual; viu bem,
portanto, que, numa construção de estrada de ferro, ele só
podia ser simples trabalhador braçal, pegar na foice e roçar,
no machado e derrubar, na picareta e cavar, mais nada! Voltou chorando para
onde estavam as filhas:

—Você não sabe, Catarina? Você não sabe,
Irene, de uma coisa? Ai! Meu Deus!

—Que é, mamãe? – perguntou Catarina.

—Que há, mamãe? – indagou Irene.

—Minhas filhas, vocês não sabem que desgraça para
a família, Cassi…

—Que houve? – assustou-se Catarina.

—Cassi está doido e quer nos envergonhar a todos nós,
o meu avô que foi cônsul da Inglaterra… Ah! Se ele ressuscitasse
– que vexame não passaria!

—Que é que Cassi vai fazer? – fez Irene com calma.

—Vai ser trabalhador de enxada, numa estrada de ferro de Mato Grosso.

Irene, que era severa e nunca perdoaria ao irmão as maliciosas perguntas
que as colegas da escola lhe faziam, vexando-a bastante, quando acontecia
aparecer o nome dele nos jornais, nas suas habituais cavalarias – observou:

—Que tem isso, mamãe! Ele tem saúde, ao invés
de andar por ai a fazer das suas, a nos envergonhar por toda a parte, é
melhor que ele trabalhe para ver se toma caminho.

Dona Salustiana olhou espantada para a filha e disse cheia de mágoa:

—É que você não é mãe; mas, em breve,
você será, então…

Catarina obtemperou:

—Mamãe, eu não acho motivo para lástima. O que
é de todo reprovável, é que ele leve toda a vida a que
está levando… O melhor é aventurar…

O pai veio a saber da resolução do filho, sobre quem não
punha os olhos, havia dois anos. Não conteve a sua alegria e exclamou:

—Que se vá! Que vá para o diabo! Já é tempo!

Depois acrescentou:

—Vocês vão ver que ele fez uma das suas; vai fugir e deixar-nos
vexados, senão atrapalhados. Seja tudo pelo amor de Deus! Que se vá
e nos deixe em paz.

Vendidos os galos, galinhas, frangos e pintos, apurou quinhentos mil-réis,
que se dispôs a depositar na Caixa Econômica, logo no dia seguinte
ao do recebimento.

Nesse dia, despertou cedo, banhou-se cuidadosamente, escolheu bem a roupa
branca, viu bem se a meia não estava furada, escovou o terno cintado
e cuidadosamente, meteu mão à obra de vestir-se com apuro, para
vir à "cidade". Raramente, vinha ao centro. Quando muito,
descia até o campo de Sant"Ana e daí não passava.
Não gostava mesmo do centro. Implicava com aqueles elegantes que se
postavam nas esquinas e nas calçadas. Achava-os ridículos, exibindo
luxo de bengalas, anéis e pulseiras de relógio. É verdade,
pensava consigo, que ele usava tudo aquilo; mas era com modéstia, não
se exibia. Recordava que não tinha poses, mas, mesmo que as tivesse,
não se daria a tal ridículo… Essa sua filosofia sobre a elegância,
de elegante suburbano, ele aplicava às moças. Quanto dengue!
Para que aqueles passos estudados? Aqueles modos de dizer adeus?

Achava tudo ridículo, exagerado, copiado, mas não sabia bem
de que modelo. O que, de fato, sentia não era isso que expunha aos
amigos ou às belezas suburbanas que, porventura, requestasse. O que
ele sentia diante daquilo tudo, daquelas maneiras, daqueles ademanes, daquelas
conversas que não entendia, era a sua ignorância, a sua grosseria
nativa, a sua falta de educação e de gosto. O seu &oacoacute;dio,
então, ia forte para os poetas e jornalistas, sobretudo, para estes.
Não perdoava as descalçadeiras, os deboches que lhe passavam,
quando tinham de denunciar alguma das suas ignóbeis proezas. Uns sujos!
– dizia – ; uns malandros! – continuava – que querem ditar moral. O seu primeiro
ímpeto, quando lia notícias a seu respeito, era atirar-se contra
um deles, naturalmente o que lhe parecesse mais fraco; e desancá-lo
de pancadas. Sustinha, porém, o ímpeto, porque sabia, se tal
fizesse, estaria perdido. A guerra seria sem tréguas, e "novos
e velhos" da sua interminável conta sairiam à luz. Secretamente,
tinha um respeito pela cidade, respeito de suburbano genuíno que ele
era, mal-educado, bronco e analfabeto.

Mal tomou o café matinal, concertou ainda a gravata e pôs-se
na rua. Era cedo, mas temia pelo dinheiro que tinha na algibeira. Não
queria que ninguém soubesse da existência de avultada quantia
em seu poder e, muito menos, que premeditava fugir. Embarcou no primeiro trem;
e, esgueirando-se pela Central, conseguiu não encontrar conhecido que
lhe fizesse perguntas indiscretas.

Cassi Jones, sem mais percalços, se viu lançado em pleno Campo
de Sant"Ana, no meio da multidão que jorrava das portas da Central,
cheia da honesta pressa de quem vai trabalhar. A sua sensação
era que estava numa cidade estranha. No subúrbio, tinha os seus ódios
e os seus amores; no subúrbio tinha os seus companheiros, e a sua fama
de violeiro percorria todo ele, e, em qualquer parte, era apontado; no subúrbio,
enfim, ele tinha personalidade, era bem Cassi Jones de Azevedo; mas, ali,
sobretudo do Campo de Sant"Ana para baixo, o que era ele? Não
era nada. Onde acabavam os trilhos da Central, acabava a sua fama e o seu
valimento; a sua fanfarronice evaporava-se, e representava-se a si mesmo como
esmagado por aqueles "caras" todos, que nem olhavam. Fosse no Riachuelo,
fosse na Piedade, fosse em Rio das Pedras, sempre encontrava um conhecido,
pelo menos, simplesmente de vista; mas, no meio da cidade, se topava com uma
cara já vista, num grupo da rua do Ouvidor ou da Avenida, era de um
suburbano que não lhe merecia nenhuma importância. Como é
que ali, naquelas ruas elegantes, tal tipo, tão mal vestido, era festejado,
enquanto ele, Cassi, passava despercebido? Atinava com a resposta, mas não
queria responder a si mesmo. Mal a formulava, apressava-se em pensar noutra
coisa.

Na "cidade", como se diz, ele percebia toda a sua inferioridade
de inteligência, de educação; a sua rusticidade, diante
daqueles rapazes a conversar sobre coisas de que ele não entendia e
a trocar pilhérias; em face da sofreguidão com que liam os placards
dos jornais, tratando de assuntos cuja importância ele não avaliava,
Cassi vexava-se de não suportar a leitura; comparando o desembaraço
com que os fregueses pediam bebidas variadas e esquisitas, lembrava-se que
nem mesmo o nome delas sabia pronunciar; olhando aquelas senhoras e moças
que lhe pareciam rainhas e princesas, tal e qual o bárbaro que viu,
no Senado de Roma, só reis, sentia-se humilde; enfim, todo aquele conjunto
de coisas finas, atitudes apuradas, de hábitos de polidez e urbanidade,
de franqueza no gastar, reduziam-lhe a personalidade de medíocre suburbano,
de vagabundo doméstico, a quase coisa alguma.

Saltando na Central, não procurou bonde. Engolfou-se num filete de
multidão que se alastrava em direitura à Prefeitura e marchou
a pé até o "centro". Desde o largo do Rossio, foi
parando diante das montras. Demorava-se a ver jóias através
de fortes vidros que as protegiam contra a cobiça alheia. Mirava anéis
e relógios, braceletes e brincos, mais àqueles do que a estes,
porquanto não lhe brotava no coração nenhuma necessidade
de dar presentes às amadas. Tão caros, não valia a pena!…
Uma bengala de junco, esquinada, com castão de ouro, tentou-o. Os quinhentos
mil-réis que tinha na algibeira murmuraram-lhe alguma coisa ao ouvido.
Prontamente repudia a tentação; precisava estar seguro…

Entrou pela rua Sete de Setembro e, daí em diante, foi admirando as
roupas feitas – por toda a longa fachada do Parc Royal, foi parando diante
das vitrines, onde havia roupas e outras peças de vestuário,
para homens. Viu fraques, viu suspensórios, viu ligas, viu colarinhos,
viu camisas… Que coisas lindas!

Tomou a rua do Ouvidor e foi descendo, sempre parando em frente das casas
que tinham artigos para homens. Por desfastio, desviou-se a olhar as vitrines
de uma livraria. Olhou-lhe também o interior. Livros de alto a baixo.
Para que tantos livros? Aquilo tudo só seria para fazer doidos. Ele
tinha livros, na verdade; mas eram alguns, livros de amor… Que livros, meu
Deus! Teve vontade de tomar café; hesitou um pouco! Mas, afinal, animou-se.
Estava quase na hora. A Caixa Econômica não tardaria em abrir-se.
Lá chegando, teve que aguardar a abertura da porta. Já havia
gente à espera. Olhou-a de relance. Fisionomias diferentes de trato
e de cor: velhas de mantilha, moças de peito deprimido, barbudos portugueses
de duros trabalhos, rostos de caixeiros, de condutores de bonde, de garçons
de hotel e de botequim, mãos queimadas de cozinheiras de todas as cores,
dedos engelhados de humildes lavadeiras – todo um mundo de gente pobre ia
ali depositar as economias que tanto lhes devia ter custado a realizar, ou
retirá-las, para acorrer a qualquer drama das suas necessitadas vidas.
Aborreceu-se com aquele contato…

Penetrando no saguão, pôs-se a ler os cartazes onde estavam
as disposições legais que interessavam ao público. Diabo!
A providência não lhe servia… Para confirmar, dirigiu-se a
um empregado num guichet, que tinha ao alto este letreiro: "Informações".
Não lhe servia absolutamente. Para retirar mais de duzentos mil-réis,
tinha que avisar previamente. Não; não depositaria. O dinheiro
devia estar sempre ao alcance da mão… Saiu e, a fim de não
ser visto por algum conhecido, procurou alcançar o largo de São
Francisco, atravessando aqueles velhos becos imundos que se originam da rua
da Misericórdia e vão morrer na rua Dom Manuel e largo do Moura.
Penetrou naquela vetusta parte da cidade, hoje povoada de lôbregas hospedarias,
mas que já passou por sua época de relativo realce e brilho.
Os botequins e tascas estavam povoados do que há de mais sórdido
na nossa população. Aqueles becos escuros, guarnecidos, de um
e outro lado, por altos sobrados, de cujas janelas pendiam peças de
roupa a enxugar, mal varridos, pouco transitados, formavam uma estranha cidade
a parte, onde se iam refugiar homens e mulheres que haviam caído na
mais baixa degradação e jaziam no último degrau da sociedade.
Escondiam, na sombra daquelas betesgas coloniais, nas alcovas sem luz daqueles
sobrados, nos fundos caliginosos das sórdidas tavernas daquele tristonho
quarteirão, a sua miséria, o seu opróbrio, a sua infinita
infelicidade de deserdados de tudo deste mundo. Entre os homens, porém,
ainda havia alguns com ocupação definida; marítimos,
carregadores, soldados; mas as mulheres que ali se viam, haviam caído
irremissivelmente na última degradação. Sujas, cabelos
por pentear, descalças, umas, de chinelos e tamancos, outras. Todas
metiam mais pena que desejo. Como em toda e qualquer seção da
nossa sociedade, aquele agrupamento de miseráveis era bem um índice
dela. Havia negras, brancas, mulatas, caboclas, todas niveladas pelo mesmo
relaxamento e pelo seu triste fado.

Cassi Jones ia atravessando aquele bairro singular e escuro, quando, do fundo
de uma tasca, lhe gritaram:

—Olá! Olá! "Seu" Cassi! Ó "Seu"
Cassi!

Insensivelmente, ele parou, para verificar quem o chamava. De dentro da taverna,
com passo apressado, veio ao seu encontro uma negra suja, carapinha desgrenhada,
com um caco de pente atravessado no alto da cabeça, calçando
umas remendadas chinelas de tapete. Estava meio embriagada. Cassi espantou-se
com aquele conhecimento; fazendo um ar de contrariedade, perguntou amuado:

—Que é que você quer?

A negra, bamboleando, pôs as mãos nas cadeiras e fez com olhar
de desafio:

—Então, você não me conhece mais, "seu canaia"?
Então você não "si" lembra da Inês, aquela
crioulinha que sua mãe criou e você…

Lembrou-se, então, Cassi, de quem se tratava. Era a sua primeira vítima,
que sua mãe, sem nenhuma consideração, tinha expulsado
de casa em adiantado estado de gravidez. Reconhecendo-a e se lembrando disso,
Cassi quis fugir. A rapariga pegou-o pelo braço:

—Não fuja, não, "seu" patife! Você tem
que "ouvi" uma "pouca" mas de "sustança".

A esse tempo, já os freqüentadores habituais do lugar tinham
acorrido das tascas e hospedarias e formavam roda, em torno dos dois. Havia
homens e mulheres, que perguntavam:

—O que há, Inês?

—O que te fez esse moço?

Cassi estava atarantado no meio daquelas caras antipáticas de sujeitos
afeitos a brigas e assassinatos. Quis falar:

—Eu não conheço essa mulher. Juro…

—"Muié", não! — fez a tal Inês,
gingando. — Quando você "mi" fazia "festa",
"mi" beijava e "mi" abraçava, eu não era
"muié", era outra coisa, seu "cosa" ruim!

Um negro esguio, de olhar afoito, com um ar decidido de capoeira, interveio:

—Mas, Inês, quem é afinal esse moço?

—É o "home qui mi" fez mal; que "mi" desonrou,
"mi pois" nesta "disgraça".

—Eu! — exclamou Cassi.

—Sim! Você "memo", "seu" caradura! "Mi
alembro" bem… Foi até no quarto de sua mãe… Estava
arrumando a casa.

Uma outra mulher, mas esta branca, com uns lindos cabelos castanhos, em que
se viam lêndeas, comentou:

—É sempre assim. Esses "nhonhôs gostosos" desgraçam
a gente, deixam a gente com o filho e vão-se. A mulher que se fomente…
Malvados!

Cassi ouvia tudo isso sem saber que alvitre tornar. Estava amarelo e olhava,
por baixo das pálpebras, todas as faces daquele ajuntamento. Esperava
a policia, um socorro qualquer. A preta continuava:

—Você sabe onde "tá" teu "fio"? "Tá"
na detenção, fique você sabendo, "Si" meteu
com ladrão, é "pivete" e foi "pra chac"ra".
Eis aí que você fez, "seu marvado", "home mardiçoado".
Pior do que você só aquela galinha-d"angola de "tua"
mãe, "seu" sem-vergonha!

Cassi fez um movimento de repulsa e que a rapariga não perdeu.

—"Oie" — disse ela, para os circunstantes — ;
ele diz que não é o tal. Agora "memo se acusou-se",
quando chamei a ratazana da mãe dele de galinha-d"angola… É
uma "marvada", essa mãe dele — uma "véia"
cheia de "imposão" de inglês. Inglês, que inglês….

Soltou uma inconveniência, acompanhada de um gesto despudorado, provocando
uma gargalhada gerai. Cassi continuava mudo, transido de medo; e a pobre desclassificada
emendava:

—"Tu" é "mao" mas tua mãe é
pior. Quando ela descobriu "qui" eu "tava" com "fio"
na barriga, "mi pois" pela porta afora, sem pena, sem dó
"di" eu não "tê pronde í". E o "fio"
era neto dela e ela "mi" tinha criado… Vim da roça… Ah!
Meu Deus! Se não fosse uma amiga, tinha posto o "fio" fora,
na rua, que era serviço… Deus perdoe a "tua" mãe
o que "mi" fez "í" a meu "fio", "fio"
deste "qui taí", também, Deus lhe perdoe!

E a pobre negra abaixou-se para apanhar a barra da saia enlameada, a fim
de enxugar as lágrimas com que chorava o seu triste destino, talvez
mais que o dela, o do seu miserável filho, que, antes dos dez anos,
já travara conhecimento com a Casa de Detenção…

Graças à intervenção do dono da tasca, que tinha
com o guarda de ronda o compromisso de manter a ordem no "reduto",
o ajuntamento se desfez, e Cassi pôde continuar seu caminho, Por despedida,
porém, ainda levou uma surriada das mulheres, que o descompunham em
baixo calão, enquanto Inês imprecava:

—"Marvado"! Desgraçado! Caradura! Hás de "mi
pagá", "seu canaia"!

Logo que se viu livre do perigo, Cassi respirou, compôs a fisionomia,
apalpou o dinheiro na algibeira e fez de si para si:

—Acontece cada uma! Para que havia de dar esta negra… Felizmente,
foi em lugar que ninguém me conhece; se fosse em outro qualquer – que
escândalo! Os jornais noticiariam e… Não passo mais por ali
e ela que fosse para o diabo! … Fico com o dinheiro em casa.

Nenhum pensamento lhe atravessou a cabeça, considerando que um seu
filho, o primeiro, já conhecia a detenção…

X

Clara dos Anjos, meio debruçada na janela do seu quarto, olhava as
árvores imotas, mergulhadas na sombra da noite, e contemplava o céu
profundamente estrelado. Esperava.

Fazia uma linda noite sem luar; era silenciosa e augusta. As árvores
erguiam-se hirtas e se recortavam na sombra, como desenhadas. Nem uma aragem
corria; mas estava fresco. Não se ouvia a mínima bulha natural.
Nem o estridular de um grilo; nem o piar de uma coruja. A noite quieta e misteriosa
parecia aguardar quem a interrogasse e fosse buscar no seu sossego paz para
o coração.

Clara contemplava o céu negro, picado de estrelas, que palpitavam.
A treva não era total, por causa da poeira luminosa que peneirava das
alturas. Ela, daquela janela, que dava para os fundos de sua casa, abrangia
uma grande parte da abóbada celeste. Não conhecia o nome daquelas
jóias do céu, das quais só distinguia o Cruzeiro do Sul.
Correu com o pensamento errante toda a extensão da parte do céu
que avistava. Voltou ao Cruzeiro, em cujas proximidades, pela primeira vez,
reparou que havia uma mancha negra, de um negro profundo e homogêneo
de carvão vegetal. Perguntou de si para si:

—Então, no céu, também se encontram manchas?

Essa descoberta, ela a combinou com o transe por que passara. Não
lhe tardaram a vir lágrimas; e, suspirando, pensou de si para si:

—Que será de mim, meu Deus?

Se "ele" a abandonasse, ela estava completamente desmoralizada,
sem esperança de remissão, de salvação, de resgate…
Moça, na flor da idade, cheia de vida, seria como aquele céu
belo, sedutoramente iluminado pelas estrelas, que também tinha ao lado
de tanta beleza, de tanta luz, de não sabia que sublime poesia, aquela
mancha negra como carvão. Cassi a teria de fato abandonado? Ela não
podia crer, embora há quase dez dias não a viesse ver. Se ele
a abandonasse – o que seria dela? Veio-lhe então perguntar a si mesma
como se entregou. Como foi que ela se deixou perder definitivamente?

Clara não podia bem apanhar todas as fases dessa queda; ela se lembrava
de poucas e sem nitidez apreciável. Tudo foi num galope para a desgraça…
Em começo, a primeira impressão simpática, os gemidos
do violão, os seus repinicados, seguidos dos requebros dos olhares
do tocador, que os exagerava e punha neles não sei que chama estranha,
doce e, ao mesmo tempo, quente. Impressionara-se muito com isso, tão
preparada já estava para os efeitos do instrumento. Depois, aquela
oposição de todos, aquele falar continuo nele, para dizer mal,
tanto da parte do padrinho, como da parte da mãe e de Dona Margarida.
Essa insistência em denegri-lo fizeram que ela representasse, dentro
de si mesma, Cassi, como um homem excepcional, que causava inveja a todos,
pelas suas qualidades de bravura, pela sua habilidade no canto e na viola.
Não acreditava no que diziam dele… Pareceu-lhe, na primeira vez que
o viu, tão modesto, tão reservado de modas, tão delicado,
que não podia ser o que diziam. Quando conversou com ele, meses depois,
pela primeira vez, no gradil de sua casa, mais esse retrato se firmou; as
suas conversas eram tão inocentes e honestas, falando sempre em empregar-se
e casar-se com ela; removendo as objeções e dúvidas que
ela punha quanto à viabilidade do casamento deles, com segurança
e franqueza; contrapondo, para mostrar a sua possibilidade, à cor dela,
além da grande paixão que nutria, a sua pobreza, a oposição
dos pais, a sua falta de posição, de saber – o que não
permitia a ele aspirar a grandes casamentos vistosos, com mulher mais bem-educada
do que ele, mais instruída…

O seu ideal era Clara, pobre, meiga, simples, modesta, boa dona-decasa, econômica
que seria, para o pouco que ele poderia vir a ganhar…

De dia para dia, ele ganhava mais fortemente a confiança da rapariga.
Ela se convencia e sonhava a toda hora com aquela "casa branca da serra",
onde iria aninhar o seu amor por Cassi. Indagava, em todas as entrevistas,
dos passos que ele dava para obter emprego, colocação; e ele,
com blandícia, com afagos, dizia-lhe com açúcar nas palavras:

—Sossega, filhinha querida! Roma não se fez num dia… É
preciso esperar… Falei ao doutor Brotero, que me deu uma recomendação
para o Senador Carvalhais. Procurei este e ele me disse que, para o cais do
Porto, não podia arranjar… Tinha pedido muito e muito; estava "queimado",
como se diz.

Ouvindo tudo isto, Clara sentia-se desfazer, ao calor, à meiguice,
ao entono amoroso daquela voz. Era mesmo um bom, um sincero, um namorado,
mais que isto, um noivo – esse Cassi.

—Por que você não me "pede" a papai? – perguntou-lhe
um dia.

Cassi, sem hesitação, com o mais convincente tom de franqueza,
respondeu:

—Não posso ainda, meu bem. Seus pais… É verdade que
seu padrinho não existe mais…

A estas palavras, Clara estremeceu e olhou-o medrosa; ele, porém,
não percebeu o movimento da rapariga, como ainda não tinha notado
as suspeitas que ela tinha, de quando em quando, da intervenção
dele no assassinato do padrinho. No começo, Clara quase ficara certa
de que ele estava metido no crime; mas, quando, daí a dias, conversou
com ele, fosse a emoção da primeira entrevista, fosse a ternura
com que a cobria e se expandia por ele todo, ela afastou a convicção
e perdeu o terror que ele começara a lhe inspirar. A sua débil
inteligência, a sua falta de experiência e conhecimento da vida,
aliado tudo isto à forte inclinação que tinha e não
sopitava pelo violeiro, agiram sobre a sua consciência, de forma a inocentar,
a seus olhos, o tocador de violão, no caso da morte misteriosa do padrinho.
Entretanto, de quando em quando, lá lhe vinha uma suspeita, mas ele
era tão bom…

Cassi, sem hesitação, respondeu-lhe à pergunta, no mais
persuasivo tom de franqueza:

—Não posso ainda, meu bem. Seus pais… É verdade que
seu padrinho não existe mais; mas Dona Engrácia não me
suporta. Além disso, essa Dona Margarida também não me
traga… Que estranho o que se passou com ela e Timbó…

—Você por que anda com ele, Cassi?

—Que hei de fazer? Ele não me faz e não me fez mal; procura-me
e não posso correr com ele. É por isso.

—Mas é só por isso que você não me pede?
Por causa da implicância que têm com você? Por isso só,
não!

—Não é só por isso. É porque estou ainda
desempregado. Se eu estivesse empregado, desarmava todos; e – fique você
certa – logo que me empregue, peço-te em casamento.

Recordando-se disso, Clara, mais uma vez, contemplou o céu profusamente
estrelado; mas, logo, deu com a mancha de alcatrão e ficou triste.

Rememorando conversas e fatos, ela punha todo o esforço em analisar
o sentimento, sem compreender o ato seu que permitiu Cassi penetrar no seu
quarto, alta noite, sob o pretexto de que precisava se abrigar da chuva torrencial
prestes a cair. Ela não sabia decompô-lo, não sabia compreendê-lo.
Lembrando-se, parecia-lhe que, no momento, lhe dera não sei que torpor
de vontade, de ânimo, como que ela deixou de ser ela mesma, para ser
uma coisa, uma boneca nas mãos dele, Cerrou-se-lhe uma neblina nos
olhos, veio-lhe um esquecimento de tudo, agruparam-se-lhe as lembranças
e as recordações e toda ela se sentiu sair fora de si, ficar
mais leve, aligeirada não sabia de quê; e, insensivelmente, sem
brutalidade, nem violência de espécie alguma, ele a tomou para
si, tomou a sua única riqueza, perdendo-a para toda a vida e vexando-a,
dai em diante, perante todos, sem esperança de reabilitação.

Pôs-se a chorar silenciosamente. No seio da noite, um apito de locomotiva
ecoou como um gemido; as árvores como que estremeceram; por sobre um
capinzal próximo, um pirilampo emitia a sua luz de prata azulada; por
cima da casa, morcegos silenciosos esvoaçavam; ao longe, as montanhas
tinham aspectos sinistros, de gigantes negros que montavam sentinela; tudo
era silêncio, e, em vão, ela apurava o ouvido e reforçava
o seu poder de visão, para ver se daquele mistério todo saía
qualquer resposta sobre o seu destino — ou se via o caminho para a sua
salvação…

Olhou ainda o céu, recamado de estrelas, que não se cansavam
de brilhar. Procurou o Cruzeiro, rogou um instante a Deus que a perdoasse
e a salvasse. Andou com o olhar no céu, um pouco além; lá
estava a indelével mancha de carvão…

"Ele" não vinha; os galos começavam a cantar. Fechou
a janela chorando e chorando foi se deitar. Custou a conciliar o sono; e a
visão ameaçadora da descoberta, por parte dos seus, da sua falta,
passou-lhe pelos olhos e aterrou-a como um duende, um fantasma.

Em casa e fora, ainda ninguém suspeitava. Os sintomas de gravidez,
por ora, não se faziam sentir. É verdade que tinha náuseas,
enjôos, sem causa nem motivo; mas ela dissimulava-os tão bem,
que sua mãe nada percebia.

Dona Engrácia mesmo era de seu natural pouco sagaz e tinha grande
confiança na vigilância que exercia sobre a filha. Joaquim, nos
dias úteis, mal via a filha, pela manhã, ao sair, e à
noite, quando voltava do serviço.

A morte desgraçada do seu compadre Marramaque o fizera triste, verdadeiramente
triste e acabrunhado. A sua amizade era velha, e ele devia favores inolvidáveis
ao pobre contínuo. Fora ele quem aperfeiçoara o pouco que ele,
Joaquim, sabia, para ser carteiro. Devia-lhe esse serviço espontâneo.
Mais de uma vez, arranjara-lhe recomendações para promoções,
de modo que o que era, devia de alguma sorte a Marramaque. As partidas de
solo, aos domingos, não se realizavam mais. Lafões tinha sido
transferido para os mananciais. O sagaz minhoto farejava que aquele negócio
de Cassi desandaria em desgraça. Ele não a podia impedir, mas
não a queria assistir, tanto mais que se sentia arrependido de ter
apresentado o modinheiro em casa do carteiro. Enganou-o, o malandro! Fizera-o
de boa fé…

O único que aparecia ainda, era Meneses. Estava, porém, amalucado,
monomaníaco. Fugia de todas as conversas e teimava em expor o seu sistema
de carro motor, sem rodas, absolutamente sem rodas. Uma grande descoberta!
— arrematava ele.

—A roda, meu caro Joaquim, é um atraso das nossas máquinas.
No seu acionamento, devido ao atrito dos eixos nos mancais e outros meios
de transmissão da força, perde-se muito do efeito útil
desta, proveniente das resistências passivas. Se nós, para nos
movermos; se um cavalo, um elefante e todos os animais empregassem rodas para
se deslocarem de um ponto para outro, a força que despenderiam seria
muitas vezes maior do que a de que efetivamente dispõem. Suprimo as
rodas da minha "Andotiva" (é assim que o meu aparelho se
chama) e imito o meio de locomover-se dos animais terrestres. Tenho hesitado
entre os reptis e os mamíferos; mas vou tornar por modelo estes. Com
juntas, jogos combinados de cadeias de distensão e contração,
como as nossas cadeiras de molas, obterei uma máquina que, com o mesmo
custo de força e combustível que uma locomotiva comum, produzirá
o dobro do rendimento útil que esta produz.

Joaquim, ouvindo tudo isto, bocejava; Meneses, inteiramente engolfado no
seu sonho mecânico, não percebia que estava enfadando o amigo.
Falava, falava sobre a sua sonhada – "Andotiva" – e bebia parati.

Às vezes, jantava com o carteiro e família; mas, na mesa, pouco
se dirigia à Clara. Tinha medo que, conversando, traísse o segredo
que existia entre ambos.

O velho dentista, mesmo, havia deixado de ver Cassi, e este, por sua vez,
evitava-o, temendo que Meneses percebesse os seus propósitos de fuga
e contasse a todos, levantando suspeitas em Clara.

Outras vezes, o velho dentista ia procurar Leonardo Flores, para conversar
e mesmo jantar com ele. Flores não passava verdadeiramente necessidade.
Com a sua aposentadoria e o auxilio que os filhos lhe prestavam, sempre tinha
o que comer sem se queixar da fome.

A sua casa, graças à dedicação da mulher, vivia
em ordem. Ele não se intrometia em nada da economia do lar. Os seus
próprios vencimentos de aposentado, ele ia recebê-los, ou ela,
e os entregava intactos. Roupa, jornais, fumo, parati – tudo ela comprava
e lhe dava. Em começo, a boa da Dona Castorina quis ver se suprimia
a cachaça; mas viu que era pior. Ele caía num abatimento, numa
apatia de coisa morta. Resolveu fazer mais este sacrifício ao seu triste
casamento: dar cachaça ao marido, Quando ele queria sair, ela lhe dava
níqueis para a sua predileta bebida.

As visitas de Meneses eram particularmente agradáveis à mulher
de Flores, porque não só distraía o marido, como lhe
tirava a vontade de sair.

Flores tinha épocas em que não se movia de casa, senão
a muito custo, para ir ao Tesouro receber a sua pensão; mas tinha outra
em que se lhe tomava inteiramente o delírio ambulatório. Dona
Castorina, embora compreendendo que o marido não podia ficar sempre
retido em casa, procurava evitar que ele saísse, devido aos desatinos
que praticava. Lá vinha, porém, um dia que…

Quando Meneses ia, aos domingos, procurá-lo, Flores recebia-o com
um grandiloqüente palavreado heráldico e fidalgo; mas ele dizia
com grande melancolia, com uma mágoa que bem sabia não ter remédio:

—Só tu me procuras, Meneses! Os outros me abandonaram… Ah!
A Poesia! Ela me tem dado bons momentos, mas me fez ir longe demais no meu
grande serviço…

Punham-se a bebericar e, quando já estavam um tanto "esquentados",
cada um dava para a sua mania. Meneses explicava a mecânica sutil da
sua "Andotiva"; e Leonardo Flores recitava o seu último soneto,
que, embora desconexo, ainda tinha música, uma imponderável
nostalgia de coisas entrevistas em sonho, uma obsessão de perfume,
que constituíam os característicos de sua poética.

De repente, Meneses punha-se a roncar no sofá, e Leonardo, saindo
do seu mundo sonoro de versos e rimas, punha-se de pé e, contemplando
o camarada, com os braços cruzados, limitava-se a dizer:

—Imbecil! Dorme imbecil! Filisteu! Burguês!

E voltava a fazer versos, a que era como que forçado até à
hora do jantar. Por essa ocasião, despertava Meneses aos berros e debaixo
de descomposturas e injúrias poéticas.

O jantar, conforme o hábito das nossas pequenas famílias, nos
domingos, era posto à mesa, mais cedo, constituindo o que se chama
o "ajantarado". Assim se usava na casa de Flores; mas, em geral,
era servido tarde, quase à hora do jantar habitual. A refeição
não corria alegre. Meneses tinha a sua mania; Flores a dele; e ambos,
durante ela, entregavam-se às suas extravagâncias, falando de
coisas que os outros não entendiam. Meneses era calmo; mas o seu amigo
comia fazendo esgares, soltando rugidos, cofiando a barba, ainda negra, que
terminava num cavaignac pontiagudo.

Dona Castorina, a mulher de Flores, de vez em vez, repreendia-o como a um
filho menor:

—Come com modos, Flores! Você parece uma criança.

Raramente acontecia estar presente um dos filhos. Andavam pelo football e
a mãe lhes reservava o jantar. Se acontecia o contrário, o rebento
do poeta olhava o pai sem nenhuma expressão, sem ânimo de aconselhá-lo
e sem insensibilidade para rir. A loucura de Flores era curiosa. Não
só ela se manifestava com intermitências de grandes intervalos,
como também as havia num curto espaço de um dia. O álcool
tinha contribuído para ela; mas, sem ele, a sua alienação
mental ter-se-ia manifestado, cedo ou tarde. Todos os que o conheceram moço,
sabiam-no de sobra possuidor de diátese da loucura. Os seus tics, os
seus caprichos, a sua exaltação e outros sintomas confusamente
percebidos levavam os seus íntimos a temerem sempre pela sua integridade
mental. A tudo isso, ele juntava, ainda por cima, álcoois fortes, que
sempre tomou; whisky, genebra, gim, rum, parati – para se compreender a natureza
da insânia de Flores.

Certa vez, após o jantar, tomando café no jardinzinho de sua
casa, que ele mesmo cuidava com rara dedicação, de surpreender
no seu estado – Leonardo olhou o céu e gritou para Meneses, descansando
a xícara sobre uma cadeira ao lado:

—Meneses! Vê só tu como esta tarde está linda!
Não é só o ouro e a púrpura do crepúsculo
que vêm; não é só o azul-ferrete dos morros que,
com o aproximar-se a noite, se vai enegrecendo aos poucos… Há mais,
caro Meneses; há verde no céu, um verde imaterial que não
é o do mar, que não é o das árvores, que não
é o da esmeralda, que não é o dos olhos de Minerva –
é um verde celestial, diferente de todos aqueles que nós habitualmente
vemos… Vamos sair, vamos gozar a natureza!

—Deixa-te disso, Flores. Daqui mesmo, nós vemos…

—Idiota! Não és um artista… Se não me acompanhas,
saio só!…

Dona Castorina interveio naturalmente:

—Para que vais sair, Leonardo? Estás tão bem aqui com
o "Seu" Meneses… Precisas de repouso, descanso…

—Mulher! Sabes quem eu sou? – fez Flores, com o seu modo habitual de
cruzar os braços e enterrar o queixo no peito, quando falava com solenidade.

—Sei muito bem. És Leonardo Flores, meu marido – respondeu-lhe
a mulher, sorrindo.

—Não sou só isso. Sou mais! – insistiu Flores, carrancudo.

—O que és, então? – perguntou-lhe Dona Castorina.

—Sou um poeta!

Dizendo isto, entrou pela sala adentro e encaminhou-se para o quarto e dormir.

—Onde vais? – indagou-lhe a mulher.

—Vou me vestir; quero ver este crepúsculo de pedraria, de metais
caros, de sonhos e de quimeras. Sou um poeta, mulher!

Dona Castorina já sabia que, quando lhe dava essa fúria de
sair, era pior contrariá-lo. Nada disse ao marido e foi pedir a Meneses
que o acompanhasse. O velho dentista não se sentia bem; o seu desejo
era descansar; mas, à vista do pedido de Dona Castorina, não
teve outro remédio senão acompanhar o camarada. Andaram a pé
por toda a parte, bebendo sempre onde encontravam lugar propício; Meneses,
arrastando o passo; e Flores, dilatando as narinas, fazendo horríveis
contrações com o rosto, alisando o cavaignac e dizendo:

—Que beleza! Que beleza! Quero respirar, cheirar, absorver todo o perfume
desse divino crepúsculo… Não fora a natureza, os céus,
os pássaros, as águas múrmuras, como poderíamos
viver?

Depois de uma pausa, acrescentou desolado:

—A vida é tão banal, tão chata… Nós somos
também natureza; mas do que nos vale isto? Há os burgueses e
os regulamentos que nos abafam…

Já tinha anoitecido de todo. Leonardo Flores não dava mostras
de querer voltar para casa; Meneses arrastava o passo a muito custo. Iam atravessando
um trecho deserto de rua, quando o velho dentista disse para o amigo:

—Leonardo, estou com as pernas que não posso. Vamos descansar
um pouco.

—Onde?

—Sentados na relva, um pouco longe da estrada, ali, atrás daquela
moita… Estou que não posso, meu caro.

Os dois abandonaram o caminho público e procuraram a tal moita. Meneses,
com muita dificuldade, sentou-se; mas Leonardo foi logo se deitando. Tinham
bebido muito, e a embriaguez lhes chegava. Leonardo ainda pôde dizer,
olhando as estrelas que começavam a brilhar:

—Como é belo o céu! Lá não haverá
por certo ministros, nem congresso, nem presidentes… Que bom será!

O dentista não se demorou muito tempo sentado; deitou-se logo; e Leonardo,
mal dissera aquelas palavras, ferrou no sono. Dormiram afinal, na relva, com
os olhos voltados para o céu estrelado…

XI

Leonardo, já dia adiantado, veio a despertar naquele capinzal, atordoado,
zonzo; e, ao dar com Meneses ao lado, procurou acordá-lo. Foi em vão;
o velho estava morto. Um colapso cardíaco o tinha levado. Percebendo
que o amigo tinha morrido, Leonardo ergueu-se, tirou-lhe o chapéu de
perto da cabeça, pôs-lhe o rosto bem à mostra, com as
suas brancas barbas veneráveis, e começou a exclamar:

—Sol! Sol glorioso das auroras e das ressurreições! Sol
divino que conténs todos nós, homens e plantas, bestas e gênios,
insetos e vampiros, lesmas e belezas! Sol que tudo fecundas e transformas!
Vem tu — ó Sol! — beijar esta augusta cabeça de
imperador (apontava para Meneses hirto) que vai para sempre mergulhar na treva
e só te verá de novo, quando for árvore, quando for arbusto,
quando for pássaro e quando de novo voltar a ser homem. Beija-o ainda
mais uma vez! Beija-o, porque ele te amou e muitas vezes voou para os espaços
sidéreos, desejoso de ver o teu fulgor e morrer por tê-lo visto.

Não dera fé, Leonardo, que alguns transeuntes haviam parado,
para ouvir as suas palavras e ver os seus estranhos trejeitos. Os mais curiosos
se aproximaram e deram com aquele estranho e bizarro espetáculo de
um homem, que parecia louco ou bêbedo, a pronunciar coisas incompreensíveis
e a gesticular, diante de um pobre velho morto. Chamaram a polícia;
e lá foi Leonardo, gesticulando e falando só, para a delegacia.
Meneses tomou o caminho do necrotério, após fotografias e outras
precauções policiais.

O primeiro movimento do policial que recebeu Leonardo, foi removê-lo
incontinenti para o hospício ou lugar equivalente. Na verdade, o poeta
não dizia coisa com coisa; nem mesmo quem era, informava. Muitos o
conheciam de vista, mas, para essas pessoas, era simplesmente – "o poeta",
Em chegando Praxedes, as coisas mudaram. Tinha ele o hábito de ir de
manhã às delegacias, ver se pegava algum biscate, alguma coisa.
Indo, naquele dia, topou com Leonardo lá e soube que um velho, que
bebia muito e costumava estar com ele, havia sido encontrado morto junto a
Flores e fora removido para a morgue. Viu logo que se tratava de Meneses.
Muito prestável, obsequioso de gênio, Praxedes, para quem a polícia
não tinha segredos, informou ao comissário quem era Leonardo
e quem era Meneses. A autoridade policial encarregou-o de prevenir os parentes
e amigos de ambos do que havia acontecido. Praxedes correu à casa de
Joaquim dos Anjos, para desobrigar-se da missão. Foi recebido pela
mulher e a filha.

—Quincas não está ai – disse-lhe Dona Engrácia.
– Ele saiu cedo…

—O senhor pode telefonar para a Repartição dos Correios
– lembrou Clara.

—Lembrei-me disso, mas não sabia a seção.

A filha disse-lhe e o doutor Praxedes, muito diplomaticamente, ergueu-se
todo e, ao despedir-se das senhoras, desculpou-se:

—Vossas Excelências hão de me perdoar. Não podia
deixar de vir até aqui. Sabia de dois amigos íntimos do doutor
Meneses; um era o Senhor Cassi, mas este está fora…

Clara espantou-se:

—Está fora!

—Ué, Clara! – fez Dona Engrácia, – Que espanto!

—Não, porque ainda há dias "Seu" Meneses disse
a papai que estivera com ele – fez Clara disfarçando.

—Deve ser há algum tempo, minha senhora – aventou Praxedes,
com toda a delicadeza de voz; – porque há bem quinze dias que embarcou
para São Paulo, em Cascadura. Eu até me despedi dele…

Praxedes saía e Clara, logo que pôde, correu ao quarto para
chorar. Estava irremediavelmente perdida; ele a abandonava de vez. Como havia
de ser? Como havia de esconder a gravidez, que se ia mostrando aos poucos?
Que fariam dela os seus pais? Era atroz o seu destino!

Todas essas perguntas, ela formulava e não lhes dava resposta. Cassi
partira, fugira… Agora, é que percebia bem quem era o tal Cassi.
O que os outros diziam dele era a pura verdade. A inocência dela, a
sua simplicidade de vida, a sua boa fé, e o seu ardor juvenil tinham-na
completamente cegado. Era mesmo o que diziam… Por que a escolhera? Porque
era pobre e, além de pobre, mulata. Seu desgraçado padrinho
tinha razão… Fora Cassi quem o matara.

Ele contava, já não se dirá com o apoio, mas com a indiferença
de todos pela sorte de uma pobre rapariga como ela. Devia ser assim, era a
regra. Nessa indiferença, nessa frouxidão de persegui-lo, de
castigá-lo convenientemente, é que ele adquiria coragem para
fazer o que fazia. Além de tudo, era covarde. Não cedia ao impulso
do seu desejo, de seu capricho, por uma moça qualquer. Catava com cuidado
as vítimas entre as pobres raparigas que pouco ou nenhum mal lhe poderiam
fazer, não só no que toca à ação das autoridades,
como da dos pais e responsáveis.

Estava ai o seu forte; o mais eram acessórios de modinhas, de tocatas
de violão, de cartas, de suspiros – todo um arsenal de simulação
amorosa, que ele, sem caráter e, por demais, cínico, sabia empregar,
como ninguém.

Que havia de ser dela, agora, desonrada, vexada diante de todos, com aquela
nódoa indelével na vida?

Sentia-se só, isolada, única na vida. Seus pais não
a olhariam mais como a olhavam; seus conhecidos, quando soubessem, escarneceriam
dela; e não haveria devasso por aí que a não perseguisse,
na persuasão de que quem faz um cesto, faz um cento. Exposta a tudo,
desconsiderada por todos, a sua vontade era de fugir, esconder-se. Mas, para
onde? Com a sua inexperiência, com a sua mocidade, com a sua pobreza,
ela iria atirar-se à voracidade sexual de uma porção
de Cassis ou piores que ele, para acabar como aquela pobre rapariga, a quem
chamavam de Mme. Bacamarte, suja, bebendo parati e roída por toda a
sorte de moléstias vergonhosas.

Pensou em morrer; pensou em se matar; mas, por fim, chorou e rogou a Nossa
Senhora que lhe desse coragem. Se pudesse esconder?… – acudiu-lhe repentinamente
este pensamento. Se pudesse "desfazê-lo"? Seria um crime,
havia perigo de sua vida; mas era bom tentar. Quem lhe ensinaria o remédio?
Correu o rol de suas poucas amigas; e só encontrou uma: Dona Margarida.

Nisto, sua mãe gritou-lhe do fundo da casa:

—Clara, estás dormindo? Olha que estão batendo na porta.

—Já vou, mamãe.

Era o estafeta dos telégrafos, que trazia um despacho do pai, comunicando
que, devido a ter de fazer o enterro de Meneses, chegaria mais tarde, mas
viria jantar.

Ela e a mãe não esperaram; jantaram antes. Clara, muito preocupada
com o "remédio" que ia ver se Dona Margarida lhe arranjava;
e Dona Engrácia, aborrecida com a morte de Meneses.

—Pobre Meneses! – dizia ela. – Morrer assim, no mato! Por que ele não
foi pra casa? Era bem velho, não era, Clara?

—Devia ter mais de setenta anos.

—Isto não quer dizer nada. Há quem dure mais… Você
tem reparado, Clara, que, de uns tempos para cá, está nos acontecendo
uma porção de coisas más?

—Nem tantas! Duas só: a morte do padrinho e…

—Você acha pouco e, ainda por cima, da forma que elas nos chegam!
Deus nos proteja! Tenho para mim que alguma está para nos acontecer".

—Qual, mamãe! Tudo isto é doloroso, mas são fatos
que se dão…

—Felizmente, esse azar de Cassi se foi. Que vá pro diabo que
o carregue!

Clara teve vontade de chorar; mas conteve-se. Estava resolvida: amanhã,
pediria um "abortivo" a Dona Margarida.

Joaquim dos Anjos chegou e narrou tudo o que acontecera com Meneses e Leonardo,
Aquele, por não ter ninguém que lhe fizesse o enterro, ele o
fizera; e Leonardo, logo que foi afastada a hipótese de crime e ficou
sabido o seu estado mental, entregaram-no à mulher. Ao chegar em casa,
acompanhado de Dona Castorina, foi que Flores caiu em si e teve consciência
perfeita do fim do amigo. Estava lúcido, bom; estava o verdadeiro Leonardo,
que chorou o falecimento do camarada, sem mescla de delírio, pressentindo
que, nele, havia aviso do seu próximo fim.

Engrácia ouviu a narração de Quincas e, ingenuamente,
perguntou-lhe:

—Esse Leonardo é mesmo homem de inteligência, Quincas?

—É, Engrácia. Por quê?

—Por que ele então bebe tanto?

—Quem sabe lá? Vício, hábito, capricho da sua
natureza, desgostos, ninguém sabe! – observou o marido.

—Eu vejo tanto doutor por aí que não bebe.

—Você pensa que todo doutor é inteligente, Engrácia?

—Pensei.

Clara ficou admirada de que a opinião da mãe não fosse
exata. Ela também, muito popular e estreita de idéia, admitia
que toda a espécie de doutor fosse de sábios e inteligentes.

Joaquim, dizendo-se cansado, fora logo deitar-se; e, em seguida, a sua mulher
e filha.

Em breve, tudo era silêncio na casa e na rua. Clara não esperava
mais, com a janela semi-aberta, a visita do sedutor. Havia se fatigado de
aguardá-lo muitas noites seguidas; e, agora então, depois da
informação de Praxedes, tinha perdido toda a esperança.
Ele fugira, e ela ficara com o filho a gerar-se no ventre, para a sua vergonha
e para tortura de seus pais. Imediatamente, o seu pensamento se encaminhou
para o "remédio" que devia "desmanchá-lo",
antes que lhe descobrissem a falta. Tinha medo e tinha remorsos. Tinha medo
de morrer e tinha remorsos de "assassinar" assim, friamente, um
inocente. Mas… era preciso. Pôs-se a examinar o que lhe podia responder
Dona Margarida. Pesou os prós e os contras; analisou bem o caráter
da amiga russa-alemã; e, na calma do quarto, percebeu bem que não
lhe daria nem indicaria o "remédio" criminoso. Margarida
era uma mulher séria, rigorosa de vontade, visceralmente honesta, corajosa,
e não haveria rogos nem choro que a fizessem contribuir para um crime
de qualquer natureza. Então, como havia de ser? Examinou a lista das
conhecidas, a ver se encontrava uma que lhe prestasse esse "serviço"…
Não encontrou, e também eram tão poucas… Se tivesse
dinheiro, com auxilio de Mme. Bacamarte… Acudiu-lhe então uma idéia.
Ela ajudava Dona Margarida nos bordados e nas costuras, com o que já
ganhava algum dinheiro. Não tinha nada a haver da amiga; mas bem lhe
podia pedir emprestado, sob qualquer pretexto, uns vinte ou trinta mil-réis
e pagá-los com trabalho. Qual seria o pretexto? Pensou, combinou mentiras;
e, afinal, encontrou-o. Diria que era para comprar um presente destinado à
mãe, cujo aniversário natalício estava a chegar. Sorriu
de contentamento, quando organizou toda aquela mentiralhada. Julgava-se salva;
mas, com o que ela não contava, era com a sagacidade da alemã.

Dona Margarida era mulher alta, forte, carnuda, com uma grande cabeça
de traços enérgicos, olhos azuis e cabelos castanhos tirando
para louro. Toda a sua vida era marcada pelo heroísmo e pela bondade.
Embora nascida em outros climas e cercada de outra gente, o seu inconsciente
misticismo humanitário, herança dos avós maternos, que
andavam sempre às voltas com a polícia dos czares, fê-la
logo se identificar com a estranha gente que aqui veio encontrar. Aprendeu-lhe
a linguagem, com seus vícios e idiotismos, tomou-lhe os hábitos,
apreciou-lhe as comidas, mas sem perder nada da tenacidade, do esprit de suite,
da decidida coragem da sua origem. Gostava muito da família do carteiro;
mas, no seu íntimo, julgava-os dóceis demais, como que passivos,
mal armados para a luta entre os maus e contra as insídias da vida.

Quando Clara lhe falou no empréstimo ou adiantamento, ela se espantou.
Nunca a filha do "correio" lhe havia feito semelhante pedido – o
que queria dizer aquilo? Não respondeu logo à solicitação
e encarou firmemente, com o seu olhar translúcido e, no momento, duro,
a filha do carteiro; e, por sua vez, indagou:

—Para que você quer esse dinheiro, Clarinha?

A moça, não podendo suportar a mirada da alemã, abaixara
os olhos; e, com voz sumida, explicou o suposto destino que ia dar à
quantia pedida. Dona Margarida não acreditou; e, continuando com o
olhar a sondar inquisitorialmente Clara, observou com energia maternal:

—Clara, você não fala a verdade; você está
escondendo alguma coisa.

A moça quis negar; mas Dona Margarida, pressentindo que ela ocultava
alguma coisa de grave, cercou-a de perguntas; e Clara não teve outro
remédio senão confessar tudo. Ela chorou, mas Dona Margarida,
sem se deixar comover, durante toda a confissão, mais arrancada aos
poucos do que mesmo narrada espontaneamente, foi pensando como agir. Encheu-se,
Dona Margarida, de uma infinita pena daquela desgraçada rapariga, dos
seus pais, e mais profunda se tornava a pena, quando antevia o horrível
destino da pobre Clara; entretanto, não deu qualquer demonstração
do que lhe ia n"alma.

Num dado momento, sem dar-lhe a mínima explicação, Dona
Margarida ergueu-se e, dirigindo-se a Clara, ordenou imperiosamente:

—Vamos falar à sua mãe.

A filha do carteiro, sem fazer a mínima objeção, obedeceu.
Ao chegar à casa de Joaquim, Dona Engrácia estava no interior,
inocentemente entregue aos seus afazeres domésticos. Entretanto, Dona
Margarida chamou de parte a mãe de Clara e começou a narrar-lhe
o que havia acontecido com a filha. Dona Engrácia não se pôde
conter. Logo que compreendeu a gravidade do fato, pôs-se a chorar copiosamente,
a lastimar-se, a soluçar, dizendo entre um acesso de choro e outro:

—Mas, Clara!… Clara, minha filha!… Meu Deus, meu Deus!

A filha aproximou-se chorando; ajoelhou-se, ajuntou as mãos, em postura
de oração, aos pés da mãe e, soluçando,
repetiu:

—"Me perdoe", mamãe! "Me perdoe", pelo amor
de Deus!

Dona Margarida, de pé, nada dizia e olhava com profunda e desmedida
tristeza, que não se adivinhava na sua calma e na segurança
do seu olhar, aquele quadro desolador do enxovalhamento de um pobre lar honesto.

Afinal, quando lhe pareceu que ambas estavam mais calmas, interveio:

—Você sabe, Clara, onde mora a família desse sujeito?

Clara, ainda soluçando, respondeu:

—Sei.

Dona Engrácia indagou:

—Para quê?

Dona Margarida explicou que, antes de qualquer procedimento e mesmo de comunicar
o fato a "Seu" Joaquim, era conveniente entender-se com a família
de Cassi. Ela, Dona Margarida, iria imediatamente à casa dele, acompanhada
de Clara. Mãe e filha concordaram; e Clara vestiu-se.

A residência dos pais de Cassi ficava num subúrbio tido como
elegante, porque lá também há estas distinções.
Certas estações são assim consideradas, e certas partes
de determinadas estações gozam, às vezes, dessa consideração,
embora em si não o sejam. O Méier, por exemplo, em si mesmo
não é tido como chique; mas a Boca do Mato é ou foi;
Cascadura não goza de grande reputação de fidalguia,
nem de outra qualquer prosápia distinta; mas Jacarepaguá, a
que ele serve, desfruta da mais subida consideração.

A casa da família do famoso violeiro não ficava nas ruas fronteiras
à gare da Central; mas, numa transversal, cuidada, limpa e calçada
a paralelepípedos. Nos subúrbios, há disso: ao lado de
uma rua, quase oculta em seu cerrado matagal, topa-se uma catita, de ar urbano
inteiramente. Indaga-se por que tal via pública mereceu tantos cuidados
da edilidade, e os historiógrafos locais explicam: é porque
nela, há anos, morou o deputado tal ou o ministro sicrano ou o intendente
fulano.

Tinha boa aparência a residência da família do Senhor
Azevedo; mas quem a observasse com cuidado, concluiria que a parte imponente
dela, a parte da cimalha, sacadas gradeadas e compoteiras ao alto, era nova.
De fato, quando o pai de Cassi a comprou, a casa era um simples e modesto
chalet, mas, com o tempo, e com ser sua vagarosa, mas segura, prosperidade,
pôde ir, também devagar, aumentando o imóvel, dando um
aspecto de boa burguesia remediada. Na frente, não era alto; o terreno,
porém, inclinava-se rapidamente para os fundos, de forma que, nessa
parte, havia um porão razoável, onde, ultimamente, habitava
Cassi. O puxado, na traseira da casa, também tinha porão, porém,
com maus quartos, que eram ocupados pelas galinhas do filho e por coisas velhas
ou sem préstimo, que a família refugava, sem querer pôr
fora de todo.

Dona Margarida tocou a campainha com decisão e subiu a pequena escada
que dava acesso à casa. Disse à criada que desejava falar à
dona da casa. Dona Salustiana, que esperava tudo, menos aquela visita portadora
de semelhante mensagem, não tardou em mandar entrar as duas mulheres.
Ambas estavam bem vestidas e nada denunciava o que as trazia ali. Só
Clara tinha os olhos vermelhos de chorar, mas passava despercebido, Chegou
Dona Salustiana e cumprimentou-as com grandes mostras de si mesma. Dona Margarida,
sem hesitação, contou o que havia. A mãe de Cassi, depois
de ouvi-la, pensou um pouco e disse com ar um tanto irônico:

—Que é que a senhora quer que eu faça?

Até ali, Clara não dissera palavra; e Dona Salustiana, mesmo
antes de saber que aquela moça era mais uma vítima da libidinagem
do filho, quase não a olhava; e, se o fazia, era com evidente desdém.
A moça foi notando isso e encheu-se de raiva, de rancor por aquela
humilhação por que passava, além de tudo que sofria e
havia ainda de sofrer.

Ao ouvir a pergunta de Dona Salustiana, não se pôde conter e
respondeu como fora de si:

—Que se case comigo.

Dona Salustiana ficou lívida; a intervenção da mulatinha
a exasperou. Olhou-a cheia de malvadez e indignação, demorando
o olhar propositadamente. Por fim, expectorou:

—Que é que você diz, sua negra?

Dona Margarida, não dando tempo a que Clara repelisse o insulto, imediatamente,
erguendo a voz, falou com energia sobranceira:

—Clara tem razão. O que ela pede é justo; e fique a senhora
sabendo que nós aqui estamos para pedir justiça e não
para ouvir desaforos.

Dona Salustiana voltou-se para Dona Margarida e perguntou, pronunciando,
devagar, as palavras, como para se dar importância:

—Quem é a senhora, para falar alto em minha casa?

Dona Margarida não se intimidou:

—Sou eu mesma, minha senhora; que, quando se decide a fazer uma coisa
de justo, nada a atemoriza.

Foi calmamente que Dona Margarida falou; e, à vista dessa atitude,
Dona Salustiana resolveu mudar de tática. Gritou para as filhas:

—Catarina! Irene! Venham cá que esta mulher está me insultando.

As moças acudiram e, contemplando o ar enérgico da teuto-eslava
e a figura lastimosa de Clara, compreenderam que Cassi estava no meio. Acalmaram
a mãe e indagaram do sucedido; Dona Margarida explicou; mas, quando
se falou em casamento de Cassi, Dona Salustiana prorrompeu:

—Ora, vejam vocês, só! É possível? É
possível admitir-se meu filho casado com esta…

As filhas intervieram:

—Que é isto, mamãe?

A velha continuou:

—Casado com gente dessa laia… Qual!… Que diria meu avô, Lord
Jones, que foi cônsul da Inglaterra em Santa Catarina – que diria ele,
se visse tal vergonha? Qual!

Parou um pouco de falar; e, após instantes, aduziu:

—Engraçado, essas sujeitas! Queixam-se de que abusaram delas…
É sempre a mesma cantiga… Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça,
as ameaça com faca e revólver? Não. A culpa é
delas, só delas…

Dona Margarida ia perguntar: "Que decide, então?" – quando
se ouviram passos na escada. Era o dono da casa. Entrando e deparando-se-lhe
aquele quadro, suspendeu os passos e parou no meio da sala.

Olhou tudo e todos e perguntou:

—Que há?

"Papai" – ia dizendo uma das filhas; – mas sabendo, por aí,
quem era aquele homem, Clara correu para ele, ajoelhou-se e implorou:

—Tenha pena de mim, "Seu" Azevedo! Tenha pena de uma infeliz!
Seu filho me desgraçou!

O velho Azevedo descansou os embrulhos, levantou a moça, fê-la
sentar-se; e ele, sentando-se por sua vez, pôs-se a olhar, cheio de
pena, o dorido rosto da rapariga. Todos os olhos se fixaram nele; ninguém
respirava. Afinal, Azevedo falou:

—Minha filha, eu não te posso fazer nada. Não tenho nenhuma
espécie de autoridade sobre "ele"… Já o amaldiçoei…
Demais, "ele" fugiu e eu já esperava que essa fuga fosse
para esconder mais alguma das suas ignóbeis perversidades… Tu, minha
filha, te ajoelhaste diante de mim ainda agora. Era eu que devia ajoelhar-me
diante de ti, para te pedir perdão por ter dado vida a esse bandido
– que é o meu filho… Eu, como pai, não o perdôo; mas
peço que Deus me perdoe o crime de ser pai de tão horrível
homem… Minha filha, tem dó de mim, deste pobre velho, deste amargurado
pai, que há dez anos sofre as ignomínias que meu filho espalha
por aí, mais do que ele… Não te posso fazer nada… Perdoa-me,
minha filha! Cria teu filho e me procura se…

Não acabou a frase. A voz sumiu-se; ele descaiu o corpo sobre a cadeira
e os olhos se foram tornando inchados.

As filhas acudiram, a mulher também; e uma daquelas, chorando, pediu
à Clara e à Dona Margarida:

—É favor, minhas senhoras; retirem-se, sim?

Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela dolorosa cena que tinha presenciado
e no vexame que sofrera. Agora é que tinha a noção exata
da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente
nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz,
para se convencer de que ela não era uma moça como as outras;
era muito menos no conceito de todos. Bem fazia adivinhar isso, seu padrinho!
Coitado!…

A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era
errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade
de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com
exemplos, claramente… O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens e
mulheres… Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos
os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça…
Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como
às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade,
como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassis
e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele
modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia
inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com
que elas o admitiam…

Chegaram em casa; Joaquim ainda não tinha vindo. Dona Margarida relatou
a entrevista, por entre o choro e os soluços da filha e da mãe.

Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou
muito fortemente sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero:

—Mamãe! Mamãe!

—Que é minha filha?

—Nós não somos nada nesta vida.

Todos os Santos (Rio de Janeiro), dezembro de 1921 – janeiro de 1922

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