Inteligência Invertebrada

Nelson Rodrigues

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De vez em quando entro na redação e vou dizendo, de passagem: — “Dura a nossa profissão de estilista!”. Alguns acham graça e outros amarram a cara. Todavia, se pensarmos bem, veremos que nem uns nem outros têm razão. Pergunto: — por que rir ou zangar-se com uma piada que nem piada é? Trata-se de uma verdade, nada mais que verdade. Realmente, vivemos a mais antiliterária das épocas. E mais: — não só a época é antiliterária. A própria literatura também o é.

Os idiotas da objetividade hão de rosnar: — “Que negócio é esse de literatura antiliterária?”. Parece incrível, mas aí está outra verdade límpida, exata, inapelável. Onde encontrar uma Karenina? Uma Bovary? Conhecem algum Cervantes? Um dia, Sartre esteve na África. Na volta, deu uma entrevista. Perguntou um dos rapazes da reportagem: “Que diz o senhor da literatura africana?”. Vejam a resposta do moedeiro falso: — “Toda literatura africana não vale a fome de uma criancinha negra”.

Vamos imaginar se, em vez de Sartre, fosse Flaubert. Que diria Flaubert? Para Flaubert, mil vezes mais importante do que qualquer mortalidade infantil ou adulta é uma frase bem-sucedida. Se perguntassem a Proust: — “Entre a humanidade e a literatura, quem deve morrer?”. Resposta proustiana: — “Que pereça a humanidade e viva a literatura”.

Portanto, os estilistas, se é que ainda existem, estão condenados a falar sozinhos. Por outro lado, os escritores, em sua maioria absoluta, estão degradando a inteligência em todos os países, em todos os idiomas. É meio insultante chamar um escritor de escritor. Outro dia, num sarau de escritores, chamaram um romancista de romancista. O ofendido saltou: — “Romancista é você!”.

Diz o PC russo: — “No tempo do czar, Tolstoi era o único escritor de Tula. Hoje, Tula tem para mais de 6 mil escritores”. É verdade. Cabe, todavia, um reparo: — “É que os 6 mil escritores contemporâneos não são dignos nem de amarrar os sapatos de Tolstoi”. Recentemente, descobriu-se que tínhamos uma massa de escritores. Falo das passeatas. Lembro do espantoso desfile dos Cem Mil. Eu e o Raul Brandão passamos pela Cinelândia, na hora em que se organizava a marcha. Paramos diante da seguinte tabuleta: — INTELECTUAIS.

Nada descreve o nosso deslumbrado horror. Eis o que víamos: — 30 mil sujeitos. O Raul Brandão interrogou um deles: — “Tudo aqui é intelectual?”. Resposta enfática: — “Tudo intelectual”. Voltou o Raul Brandão: — “Nelson, são todos intelectuais”. Ali, numa estimativa muito por baixo, poderíamos imaginar a presença de uns 10 mil romancistas, de 6 mil poetas, de 5 mil ensaístas etc. etc.

Uma literatura tão numerosa deu-me a vaidade de ser brasileiro. Mas nos dias que se seguiram, comecei a procurar nos jornais, revistas, livrarias um sinal correspondente a tamanha abundância numérica. Percorri, livraria por livraria, perguntando: — “Tem saído muito romance brasileiro, muita poesia brasileira, muito ensaio brasileiro?”. O balconista dizia-me com seu torpe realismo: — “Não tem saído nada”. Recuei como um agredido: — “Mas não é possível. Temos 30 mil escritores e eles não fazem nada”. Realmente, não faziam nada. A nossa literatura não escreve.

Dirão os idiotas da objetividade: — “Alguma coisa fazem”. Na Espanha, quando um sujeito é uma nulidade total, dizem: — “Faça filhos”. E, pensando bem, o sujeito assim estaria justificando o fato de ter nascido. Mas os nossos intelectuais nem isso. Ou por outra: — fazem algo, fazem pose socialista.

Daí o meu assombro quando o Jornal da Tarde faz-me três perguntas que, como escritor, devia eu responder. Se os meus companheiros me acham escritor, prestam-me uma homenagem. Mas a homenagem é, ao mesmo tempo, comprometedora. Pois uma sólida maioria de escritores nada mais faz senão degradar a inteligência. Mas vejamos a primeira pergunta: — “Como você define o estilo em literatura?”. Começam aqui as minhas dúvidas, que considero muito procedentes. Primeiro, teríamos que estabelecer se existe literatura. Outro dia um autor mineiro declarou que a literatura fora substituída pelo jornal. Dirá o meu amigo Otto Lara Resende que seu conterrâneo estava fazendo ironia. Nesse caso, ponha nas suas frases a tabuleta de IRONIA, quando for o caso, ou a tabuleta de SÉRIO, quando for outro o caso.

Afinal, respondi aos meus amigos do Jornal da Tarde, mas com sinistro constrangimento. Por que, é o que pergunto, estamos vendo o aviltamento da literatura em toda parte? Reparem como não há mais o “grande escritor”. Se compararmos o que se faz agora com o que faziam Shakespeare, Dante, Ibsen, Sófocles, vamos tremer do mais divertido horror. Qualquer um sabe que romance, poesia, teatro, cinema, pintura etc. etc. vivem da obra-prima. São as obras-primas que carregam, nas costas, todas as mediocridades, todas as falsificações, todas as ignomínias artísticas.

Vale a pena perguntar: — há quanto tempo não aparece uma obra-prima? Queremos uma Guerra e paz, um Proust do nosso tempo e, no teatro, alguém que possa ser proclamado um Shakespeare ou, menos, um Ibsen do nosso tempo. Não há nada parecido e um paralelo que se tentasse seria humilhante para todos nós. A Rússia tem uma literatura inferior à do Paraguai. Partiu de Tolstoi, Dostoievski, Gogol, Pushkin, para o zero. Poderão perguntar: — “E O don silencioso?”. Este não vale e explico: — quando veio a revolução comunista, o autor de O don silencioso era um espírito formado ainda no regime czarista. Também Gorki, inferior, bem inferior aos grandes escritores anteriores à revolução, era outro inteiramente realizado antes de 17.

Eis o que eu queria dizer: — o socialismo vermelho em lugar nenhum permite o grande artista, o grande escritor, ou um romance que tenha o rigor do ato literário puro. Pode-se dizer que, em toda parte, mesmo nos países não socialistas, a maioria dos escritores sofre, a distância, a influência totalitária. Graças ao socialismo há o que se pode chamar de “intelectual invertebrado”. Poderão objetar: — “Mas, ao menos, o proletariado ganha com isso”. Nunca. O que instala, nos países comunistas, é uma ditadura do proletariado contra o proletariado e o resto. E então estamos vendo algo inédito na história do homem: a castração espiritual de povos inteiros. É a desumanização galopante do homem. O ser humano, que tinha resistido a todas as tiranias, ainda as mais perversas, o ser humano, repito, foi transformado no anti-homern, na antipessoa.

O que se dá com Angela Davis justifica uma meditação. Com a maior isenção e objetividade, direi que se trata de uma celerada. Cúmplice de assassinos, foi absolvida na sua pátria (a justiça americana é de um obtuso antiamericanismo). Infelizmente, tomou um jato e desembarcou em Moscou. Lá, foi recebida como uma “patriota russa”. Em seguida, veio para o Chile — pobre país, em que até as grã-finas passam fome. Recebeu outro título de “patriota chilena”. É uma stalinista. Sabe que a Rússia encarcera no hospício seus intelectuais, que condena seus poetas por serem poetas. É “patriota cubana”, sabendo que, em Cuba, segundo o insuspeitíssimo Sartre, os intelectuais são esmagados, destruídos como ratos. Claro está que este final de século não admite a obra-prima e vê na literatura um ócio abjeto.

[11/10/1972]

 

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