Cartas Chilenas

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Tomás Antônio Gonzaga

CARTA lª

Em que se descreve a entrada que fez

Fanfarrão em Chile.

Amigo Doroteu, prezado amigo,

Abre os olhos, boceja, estende os braços

E limpa, das pestanas carregadas,

O pegajoso humor, que o sono ajunta.

5 — Critilo, o teu Critilo é quem te chama;

Ergue a cabeça da engomada fronha

Acorda, se ouvir queres coisas raras.

"Que coisas, ( tu dirás ), que coisas podes

Contar que valham tanto, quanto vale

10 — Dormir a noite fria em mole cama,

Quando salta a saraiva nos telhados

E quando o sudoeste e outros ventos

Movem dos troncos os frondosos ramos?"

É doce esse descanso, não te nego.

15 — Também, prezado amigo, também gosto

De estar amadornado, mal ouvindo

Das águas despenhadas brando estrondo,

E vendo, ao mesmo tempo, as vãs quimeras,

Que então me pintam os ligeiros sonhos.

20 — Mas, Doroteu, não sintas que te acorde;

Não falta tempo em que do sono gozes:

Então verás leões com pés de pato,

Verás voarem tigres e camelos,

Verás parirem homens e nadarem

25 — Os roliços penedos sobre as ondas.

Porém que têm que ver estes delírios

Co’os sucessos reais, que vou contar-te?

Acorda, Doroteu, acorda, acorda;

Critilo, o teu Critilo é quem te chama.

30 — Levanta o corpo das macias penas;

Ouvirás, Doroteu, sucessos novos,

Estranhos casos, que jamais pintaram

Na idéia do doente, ou de quem dorme

Agudas febres, desvairados sonhos

35 — Não és tu, Doroteu, aquele mesmo

Que pedes que te diga se e verdade

O que se conta dos barbados monos

Que à mesa trazem os fumantes pratos?

Não desejas saber se há grandes peixes,

40 — Que abraçando os navios com as longas,

Robustas barbatanas, os suspendem,

Inda que o vento, que d’alheta sopra,

Lhes inche os soltos, desrinzados panos ?

Não queres que te informe dos costumes.

45 — Dos incultos gentios? Não perguntas

Se entre eles há nações, que os beiços furam?

E outras que matam, com piedade falsa,

Aos pais, que afrouxam ao poder dos anos?

Pois se queres ouvir notícias velhas

50 — Dispersas por imensos alfarrábios,

Escuta a história de um moderno chefe.

Que acaba de reger a nossa Chile,

Ilustre imitador a Sancho Pança.

E quem dissera, amigo, que podia

55 — Gerar segundo Sancho a nossa Espanha!

Não penses, Doroteu, que vou contar-te

Por verdadeira história uma novela

Da classe das patranhas, que nos contam

Verbosos navegantes, que já deram

60 — Ao globo deste mundo volta inteira.

Uma velha madrasta me persiga,

Uma mulher zelosa me atormente,

E tenha um bando de gatunos filhos,

Que um chavo não me deixem, se este chefe

65 — Não fez ainda mais do que eu refiro.

Ora pois, doce amigo, vou pintá-lo

Da sorte que o topei a vez primeira;

Nem esta digressão motiva tédio

Como aquelas que são dos fins alheias,

70 — Que o gesto, mais o traje nas pessoas

Faz o mesmo que fazem os letreiros

Nas frentes enfeitadas dos livrinhos,

Que dão, do que eles tratam, boa idéia.

Tem pesado semblante, a cor é baça.

75 — O corpo de estatura um tanto esbelta

Feições compridas e olhadura feia,

Tem grossas sobrancelhas, testa curta,

Nariz direito e grande, fala pouco

Em rouco, baixo som de mau falsete

80 — Sem ser velho, já tem cabelo ruço

E cobre este defeito e fria calva

À força de polvilho, que lhe deita.

Ainda me parece que o estou vendo

No gordo rocinante escarranchado

85 — As longas calças pelo umbigo atadas,

Amarelo colete e sobre tudo

Vestida uma vermelha e justa farda

De cada bolso da fardeta, pendem

Listadas pontas de dois brancos lenços;

90 — Na cabeça vazia se atravessa

Um chapéu desmarcado, nem sei como

Sustenta o pobre só do laço o peso.

Ah ! tu, Catão severo, tu que estranhas

O rir-se um cônsul moço, que fizeras

95 — Se em Chile agora entrasses e se visses

Ser o rei dos peraltas quem governa ?

Já lá vai, Doroteu, aquela idade

Em que os próprios mancebos, que subiam

À honra do governo, aos outros davam

100 — Exemplos de modéstia, até nos trajes.

Deviam, Doroteu, morrer os povos

Apenas os maiores imitaram

Os rostos e os costumes das mulheres

Seguindo as modas e raspando as barbas.

105 — Os grandes do país, com gesto humilde

Lhe fazem, mal o encontram, seu cortejo;

Ele austero os recebe, só se digna

Afrouxar do toitiço a mola um nada,

Ou pôr nas abas do chapéu os dedos.

110 — Caminha atrás do chefe um tal Robério

Que entre os criados tem respeito de aio;

Estatura pequena, largo o rosto,

Delgadas pernas e pançudo ventre,

Sobejo de ombros, de pescoço falto;

115 — Tem de pisorga cores e conserva

As bufantes bochechas sempre inchadas.

Bem que já velho seja, inda presume

De ser aos olhos das madamas grato

E o demo lhe encaixou que tinha pernas

120 — Capazes de montar no bom ginete

Que rincha no Parnaso. Pobre tonto!

Quem te mete em camisas de onze varas!

Tu só podes cantar, em coxos versos

E ao som da má rebeca, com que atroas

125 — Os feitos do teu amo e os seus despachos.

Ao lado de Robério, vem Matúsio,

Que respira do chefe o modo e o gesto.

É peralta rapaz de tesas gâmbias,

Tem cabelo castanho e brancas faces,

130 — Tem um ar de mylord e a todos trata

Como a inúteis bichinhos; só conversa

Com o rico rendeiro, ou quem lhe conta

Das moças do país as frescas praças.

Dos bolsos da casaca dependura

135 — As pontas perfumadas dos lencinhos,

Que é sinal, ou caráter, que distingue

Aos serventes das casas dos mais homens,

Assim como as famílias se conhecem

Por herdados brasões de antigas armas.

140 — Montado em nédia mula vem um padre

Que tem de capelão as justas honras.

Formou-se em Salamanca, é homem sábio.

Já do mistério do Pilar um dia.

Um sermão recitou, que foi um pasmo.

145 — Labregão no feitio e meio idoso.

Tem olhos encovados, barba tesa,

Fechadas sobrancelhas, rosto fusco,

Cangalhas no nariz. Ah! quem dissera

Que num corpo, que tem de nabo a forma,

150 — Haviam pôr os céus tão grande caco!

O resto da família é todo o mesmo,

Escuso de pintá-lo. Tu bem sabes

Um rifão que nos diz, que dos domingos

Se tiram muito bem os dias santos.

155 — Ah! pobre Chile, que desgraça esperas!

Quanto melhor te fora se sentisses

As pragas, que no Egito se choraram,

Do que veres que sobe ao teu governo

Carrancudo casquilho, a quem rodeiam

160 — Os néscios, os marotos e os peraltas!

Seguido, pois, dos grandes entra o chefe

No nosso Santiago junto à noite.

A casa me recolho e cheio destas

Tristíssimas imagens, no discurso,

165 — Mil coisas feias, sem querer, revolvo.

Por ver se a dor divirto, vou sentar-me

Na janela da sala e ao ar levanto

Os olhos já molhados. Céus, que vejo!

Não vejo estrelas que, serenas, brilhem,

170 — Nem vejo a lua que prateia os mares:

Vejo um grande cometa, a quem os doutos

Caudato apelidaram. Este cobre

A terra toda co’ disforme rabo.

Aflito o coração no peito bate,

175 — Erriça-se o cabelo, as pernas tremem.

O sangue se congela e todo o corpo

Se cobre de suor. Tal foi o medo.

Ainda bem o acordo não restauro

Quando logo me lembra que este dia

180 — É o dia fatal, em que se entende

Que andam, no mundo, soltos, os diabos.

Não rias, Doroteu, dos meus agouros;

Os antigos romanos foram sábios,

Tiveram agoureiros: estes mesmos

185 — Muitas vezes choraram, por tomarem

Os avisos celestes como acasos.

Ajuntavam-se os grandes desta terra.

À noite, em casa do benigno chefe

Que o governo largou. Aqui, alegres,

190 — Com ele se entretinham largas horas

Depostos os melindres da grandeza,

Fazia a humanidade os seus deveres

No jogo e na conversa deleitosa.

A estas horas entra o novo chefe

195 — Na casa do recreio e, reparando

Nos membros do congresso, a testa enruga,

E vira a cara, como quem se enoja.

Porque os mais, junto dele não se assentem

Se deixa em pé ficar a noite inteira.

200 — Não se assenta, civil, da casa o dono

Não se assenta, que é mais, a ilustre esposa;

Não se assenta, também, um velho bispo

E a exemplo destes, o congresso todo.

Pensavas, Doroteu, que um peito nobre,

205 — Que teve mestres, que habitou na corte

Havia praticar ação tão feia

Na casa respeitável de um fidalgo,

Distinto pelo cargo que exercia

E, mais ainda, pelo sangue herdado?

210 — Pois inda, caro amigo, não sabias

Quanto pode a tolice e vã soberba.

Parece, Doroteu, que algumas vezes,

A sábia natureza se descuida.

Devera, doce amigo, sim, devera

215 — Regular os natais conforme os gênios.

Quem tivesse as virtudes de fidalgo,

Nascesse de fidalgo e quem tivesse

Os vícios de vilão, nascesse embora,

Se devesse nascer, de algum lacaio,

220 — Como as pombas, que geram fracas pombas,

Como os tigres, que geram tigres bravos.

Ah ! se isto, Doroteu, assim sucede

Estava o nosso chefe mesmo ao próprio

Para nascer sultão do Turco Império,

225 — Metido entre vidraças, reclinado

Em coxins de veludo e vendo as moças,

Que de todas as partes o cercavam,

Coçando-lhe umas, levemente, as pernas

E as outras abanando-o, com toalhas:

230 — Só assim, Doroteu, o nosso chefe

Ficaria de si um tanto pago.

Chegou-se o dia da funesta posse:

Mal os grandes se ajuntam, desce a escada

E, sem mover cabeça, vai meter-se

235 — Debaixo do lustroso e rico pálio.

Caminham todos juntos para o templo,

Um salmo se repete, em doce coro,

A que ele assiste, desta sorte inchado,

Entesa mais que nunca o seu pescoço.

240 — Em ar de minuete o pé concerta

E arqueia o braco esquerdo sobre a ilharga.

Eis aqui, Doroteu, o como param

Os maus comediantes, quando fingem

As pessoas dos grandes, nos teatros.

245 — Acabada a função, à casa volta;

(Os grandes o acompanham, descontentes),

Co’a mesma pompa com que foi ao templo.

Tu já viste o ministro carrancudo

A quem os tristes pretendentes cercam,

250 — Quando no régio tribunal se apeia,

Que, bem que humildes em tropel o sigam,

Não pára, não responde, não corteja ?

Tu já viste o casquilho, quando sobe

A casa em que se canta e em que se joga,

255 — Que deixa à porta as bestas e os lacaios,

Sem sequer se lembrar que venta e chove?

Pois assim nos tratou o nosso chefe:

Mal à porta chegou, de chefe antigo,

Com ele se recolhe e até ao mesmo

260 — Luzido, nobre corpo do senado

Não fala, não corteja, nem despede.

Da sorte que o lacaio a sege arruma

Por não tomar a rua às outras seges,

Assim os cidadãos o pálio encostam

265 — Ao batente da porta e, quais lacaios,

Na rua, esperam que seu amo desça,

Ou, a ele ficar, que os mande embora.

À vista desta ação indigna e feia,

Todo o congresso se confunde e pasma.

270 — Sobe às faces de alguns a cor rosada,

Perdem outros a cor das roxas faces;

Louva esta o proceder do chefe antigo,

Aquele o proceder do novo estranha,

E os que podem vencer do gênio a força

275 — Aos mais escutam, sem dizer palavra.

São estes, louco chefe, os sãos exemplos

Que, na Europa, te dão os homens grandes?

Os mesmos reis não honram aos vassalos?

Deixam de ser, por isso, uns bons monarcas?

280 — Como errado caminhas! O respeito

Por meio das virtudes se consegue

E nelas se sustenta. Nunca nasce

Do susto e do temor, que aos povos metem

injúrias, descortejos e carrancas.

285 — Findou-se, Doroteu, a longa história

Da entrada deste chefe, agora vamos,

Que e tempo, descansar um breve instante.

Nas outras contarei, prezado amigo,

Os fatos, que ele obrou no seu governo,

290 — Se acaso os justos céus quiserem dar-me.

Para tanto escrever, papel e tempo.

CARTA 2ª

Em que se mostra a piedade que Fanfarrão fingiu no princípio
do seu governo, para

chamar a si todos os negócios.

As brilhantes estrelas já caíam

E a vez terceira os galos já cantavam,

Quando, prezado amigo, punha o selo

Na volumosa carta, em que te conto

5 — Do nosso imortal chefe a grande entrada;

E refletindo, então, ser quase dia,

A despir-me começo, com tal ânsia,

Que entendo que inda estava o lacre quente

Quando eu já, sobre os membros fatigados,

10 — Cuidadoso, estendia a grosa manta.

Não cuides, Doroteu, que brandas penas

Me formam o colchão macio e fofo;

Não cuides que é de paina a minha fronha

E que tenho lençóis de fina holanda,

15 — Com largas rendas sobre os crespos folhos.

Custosos pavilhões, dourados leitos

E colchas matizadas, não se encontram

Na casa mal provida de um poeta,

Aonde, há dias que o rapaz que serve

20 — Nem na suja cozinha acende o fogo.

Mas, nesta mesma cama, tosca e dura,

Descanso mais contente, do que dorme

Aquele, que só põe o seu cuidado

Em deixar a seus filhos o tesouro

25 — Que ajunta, Doroteu, com meio avara,

Furtando ao rico e não pagando ao pobre.

Aqui. . . mas onde vou, prezado amigo?

Deixemos episódios, que não servem

E vamos prosseguindo a nossa história.

30 — Fui deitar-me ligeiro, como disse,

E mal estendo nos lençóis o corpo,

Dou um sopro na vela, os olhos fecho

E pelos dedos rezo a muitos santos,

Por ver se chega mais depressa o sono,

35 — Conselho que me deram sábias velhas

já, meu bom Doroteu, o sono vinha:

Umas vezes dormindo, ressonava,

Outras vezes, rezando, inda bulia

Com os devotos beiços, quando sinto

40 — Passar um carro, que me abala o leito.

Assustado desperto, os olhos abro

E, conhecendo a causa que me acorda,

Um tanto impaciente o corpo viro,

Fecho os olhos de novo e cruzo os braços

45 — Para ver se outra vez me torna o sono

Segunda vez o sono já tornava

Quando o estrondo percebo de outro carro;

Outra vez, Doroteu, o corpo volto,

Outra vez me agasalho, mas que importa?

50 — Já soam dos soldados grossos berros,

Já tinem as cadeias dos forçados,

Já chiam os guindastes, já me atroam

Os golpes dos machados e martelos

E, ao pé de tanta bulha, já não posso

55 — Mais esperança ter de algum sossego.

Salto fora da cama, acendo a vela,

À banca vou sentar-me exasperado,

E, por ver se entretenho as longas horas,

Aparo a minha pena, o papel dobro

60 — E com mão, que ainda treme de cansada,

Não sei, prezado amigo, o que te escrevo.

Só sei que o que te escrevo são verdades

E que vêem muito bem ao nosso caso.

Apenas, Doroteu, o nosso chefe

65 — As rédeas manejou, do seu governo,

Fingir-nos intentou que tinha uma alma

Amante da virtude. Assim foi Nero.

Governou aos romanos pelas regras

Da formosa justiça, porém logo

70 — Trocou o cetro de ouro em mão de ferro.

Manda, pois, aos ministros lhe dêem listas

De quantos presos as cadeias guardam,

Faz a muitos soltar e aos mais alenta

De vivas, bem fundadas esperanças.

75 — Estranha ao subalterno, que se arroga

O poder castigar ao delinqüente

Com troncos e galés; enfim ordena

Que aos presos, que em três dias não tiverem

Assentos declarados, se abram logo

80 — Em nome dele, chefe, os seus assentos.

Aquele, Doroteu, que não é santo,

Mas quer fingir-se santo aos outros homens

Pratica muito mais, do que pratica

Quem segue os sãos caminhos da verdade.

85 — Mal se põe nas igrejas, de joelhos,

Abre os braços em cruz, a terra beija,

Entorta o seu pescoço, fecha os olhos,

Faz que chora, suspira, fere o peito,

E executa outras muitas macaquices

90 — Estando em parte onde o mundo as veja.

Assim o nosso chefe, que procura

Mostrar-se compassivo, não descansa

Com estas poucas obras: passa a dar-nos

Da sua compaixão maiores provas.

95 — Tu sabes, Doroteu, qual seja o crime

Dos soldados, que furtam aos soldados,

E sabes muito bem que pena incorram

Aqueles que viciam ouro e prata.

Agora, Doroteu, atende o como

100 — Castiga o nosso chefe em um sujeito

Estes graves delitos, que reputa

Ainda menos do que leves faltas.

Apanha um militar aos camaradas

Do solo uma porção. Astuto e destro,

105 — Para não se sentir o grave furto,

Mistura nos embrulhos, que lhes deixa,

Igual quantia de metal diverso.

Faz-se queixa ao bom chefe deste insulto,

Sim, faz-se ao chefe queixa, mas debalde,

110 — Que este Hércules não cinge a grossa pele,

Nem traz na mão robusta a forte clava,

Para guerra fazer aos torpes Cacos.

Já leste, Doroteu, a d. Quixote ?

Pois eis aqui, amigo, o seu retrato;

115 — Mas diverso nos fins, que o doido Mancha

Forceja por vencer os maus gigantes

Que ao mundo são molestos e este chefe

Forceja por suster, no seu distrito,

Aqueles que se mostram mais velhacos.

120 — Não pune, doce amigo, como deve,

Das sacrossantas leis a grave ofensa;

Antes, benigno, manda ao bom Matúsio

Que do seu ouro próprio se ressarça

Aos aflitos roubados toda a perda.

125 — Já viste, Doroteu, igual desordem?

O dinheiro de um chefe, que a lei guarda,

Acode aos tristes órfãos e às viúvas;

Acode aos miseráveis, que padecem

Em duras, rotas camas e socorre,

130 — Para que honradas sejam, as donzelas,

Porém não paga furtos, porque fiquem

Impunes os culpados, que se devem,

Para exemplo, punir com mão severa.

Envia, Doroteu, vizinho chefe

135 — Ao nosso grande chefe outro soldado

Por vários crimes convencido e preso.

Lança-se o tal soldado, de joelhos

Aos pés do seu herói, suspira e treme,

Não nega que ferira e que matara,

140 — Mas pede que lhe valha a mão piedosa

Que tudo pode, que ele aperta e beija.

Pergunta-lhe o bom chefe se os seus crimes

Divulgados estão e o camarada,

Com semblante já leve, lhe responde

145- Que suas graves culpas foram feitas

Em sítios mui distantes desta praça.

Então, então o chefe, compassivo

Manda tirar os ferros dos seus braços

a-lhe um salvo-conduto, com que possa,

150 — Contanto que na terra não se saiba,

fazer impunemente insultos novos.

Caminha, Doroteu, à força um negro

Conforme as leis do reino bem julgado.

Tu sabes, Doroteu, que o próprio Augusto

155 — Estas fatais sentenças não revoga

Sem um justo motivo, em que se firme

o seu perdão a causa. Também sabes

Que estas mesmas mercês se não concedem

Senão por um decreto, em que se expende

160 — Que o sábio rei usou, por motu-próprio,

Do mais alto poder que tem o cetro.

Agora, Doroteu, atende e pasma:

Por um simples despacho, manda o chefe

Que o triste padecente se recolha.

165 — Assenta: vale tanto, lá na corte,

Um grande — El-Rei — impresso, quanto vale

Em Chile, um — Como pede — e o seu garrancho.

Aonde, louco chefe, aonde corres

Sem tino e sem conselho? Quem te inspira

170 — Que remitir as penas é virtude?

E, ainda a ser virtude, quem te disse

Que não é das virtudes, que só pode,

Benigna, exercitar a mão augusta?

Os chefes, bem que chefes, são vassalos

175 — E os vassalos não têm poder supremo.

O mesmo grande Jove, que modera

O mar, a terra e o céu, não pode tudo,

Que ao justo só, se estende o seu império.

O povo, Doroteu, é como as moscas

180 — Que correm ao lugar, aonde sentem

O derramado mel, é semelhante

Aos corvos e aos abutres, que se ajuntam

Nos ermos, onde fede a carne podre.

À vista, pois, dos fatos, que executa

185 — O nosso grande chefe, decisivos

Da piedade que finge, a louca gente

De toda a parte corre a ver se encontra

Algum pequeno alivio à sombra dele.

Não viste, Doroteu, quando arrebenta

190 — Ao pé de alguma ermida a fonte santa,

Que a fama logo corre e todo o povo

Concebe que ela cura as graves queixas.

Pois desta sorte entende o néscio vulgo

Que o nosso general lugar-tenente,

195 — Em todos os delitos e demandas,

Pode de absolvição lavrar sentenças.

Não há livre, não há, não há cativo

Que ao nosso Santiago não concorra.

Todos buscam ao chefe e todos querem,

200 — Para serem bem vistos, revestir-se

Do triste privilégio de mendigos.

Um as botas descalça, tira as meias

E põe no duro chão os pés mimosos;

Outro despe a casaca, mais a veste

205 — E de vários molambos mal se cobre;

Este deixa crescer a ruça barba,

Com palhas de alhos se defuma aquele;

Qual as pernas emplastra e move o corpo

Metendo nos sobacos as muletas;

210 — Qual ao torto pescoço dependura,

Despido, o braço que só cobre o lenço;

Uns, com bordão, apalpam o caminho,

Outros, um grande bando lhe apresentam

De sujas moças, a quem chamam filhas.

215 — Já foste, Doroteu, a um convento

De padres franciscanos, quando chegam

As horas de jantar ? Passaste, acaso

Por sítio em que morreu mineiro rico,

Quando da casa sai pomposo enterro?

220 — Pois eis aqui, amigo, bem pintada

A porta, mais a rua deste chefe

Nos dias de audiência. Oh! quem pudera

Nestes dias meter-se um breve instante,

A ver o que ali vai na grande sala!

225 — Escusavas de ler os entremezes

Em que os sábios poetas introduzem,

Por interlocutores, chefes asnos.

Um pede, Doroteu, que lhe dispense

Casar com uma irmã da sua amásia;

230 — Pede outro que lhe queime o mau processo,

Onde esta criminoso, por ter feito

Cumprir exatamente um seu despacho;

Diz este que os herdeiros não lhe entregam

Os bens, que lhe deixou, em testamento,

235 — Um filho de Noé; aquele ralha

Contra os mortos,juízes, que lhe deram,

Por empenhos e peitas, a sentença

Em que toda a fazenda lhe tiraram;

Um quer que o devedor lhe pague logo;

240 — Outro, para pagar, pertende espera;

Todos, enfim, concluem que não podem

Demandas conservar; por serem pobres

E grandes as despesas, que se fazem

Nas casas dos letrados e cartórios.

245 — Então o grande chefe, sem demora,

Decide os casos todos que lhe ocorrem

Ou sejam de moral, ou de direito,

Ou pertençam, também, à medicina,

Sem botar, (que ainda é mais), abaixo um livro

250 — Da sua sempre virgem livraria.

Lá vai uma sentença revogada

Que já pudera ter cabelos brancos;

Lá se manda que entreguem os ausentes

Os bens ao sucessor, que não lhes mostra

255 — Sentença que lhe julgue a grossa herança.

A muitos, de palavra, se decreta

Que em pedir os seus bens, não mais prossigam;

A outros se concedem breves horas

Para pagarem somas que não devem.

260 — Ah! tu, meu Senhor Pança, tu que foste

Da Baratária o chefe, não lavraste

Nem uma-só sentença tão discreta!

E que queres, amigo, que suceda?

Esperavas, acaso, um bom governo

265 — Do nosso Fanfarrão? Tu não o viste

Em trajes de casquilho, nessa corte ?

E pode, meu amigo, de um peralta

Formar-se, de repente, um homem sério?

Carece, Doroteu, qualquer ministro

270 — Apertados estudos, mil exames,

E pode ser o chefe onipotente

Quem não sabe escrever uma só regra

Onde, ao menos, se encontre um nome certo?

Ungiu-se, para rei do povo eleito,

275 — A Saul, o mais santo que Deus via.

Prevaricou Saul, prevaricaram,

No governo dos povos, outros justos.

E há-de bem governar remotas terras

Aquele que não deu, em toda vida

280 — Um exemplo de amor à sã virtude?

As letras, a justiça, a temperança

Não são, não são morgados que fizesse

A sábia natureza, para andarem.

Por sucessão nos filhos dos fidalgos.

285 — Do cavalo andaluz, é, sim, provável

Nascer, também, um potro de esperança,

Que tenha frente aberta, largos peitos,

Que tenha alegres olhos e compridos,

Que seja, enfim, de mãos e pés calçado;

290 — Porém de um bom ginete também pode

Um catralvo nascer, nascer um zarco.

Aquele mesmo potro, que tem todos

Os formosos sinais, que aponta o Rego,

Carece, Doroteu, correr em roda

295 — No grande picadeiro muitos meses,

Para um e outro lado, necessita

Que o destro picador lhe ponha a sela

E que, montando nele, pouco a pouco,

O faça obedecer ao leve toque

300 — Do duro cabeção, da branda rédea.

Dos mesmos, Doroteu… porém já toca.

Ao almoço a garrida da cadeia

Vou ver se dormir posso, enquanto duram

Estes breves instantes de sossego,

305 — Que, sem barriga farta e sem descanso,

Não se pode escrever tão longa história.

CARTA 3ª

Em que se contam as injustiças e violências que Fanfarrão
executou por causa de uma cadeia, a que deu princípio.

Que triste, Doroteu, se pôs a tarde!

Assopra o vento sul, e densa nuvem

Os horizontes cobre; a grossa chuva,

Caindo das biqueiras dos telhados

5 — Forma regatos, que os portais inundam.

Rompem os ares colubrinas fachas

De fogo devorante e ao longe soa,

De compridos trovões, o baixo estrondo.

Agora, Doroteu, ninguém passeia,

10 — Todos em casa estão, e todos buscam

Divertir a tristeza, que nos peitos

Infunde a tarde, mais que a noite feia.

O velho Altimidonte, certamente,

Tem postas nos narizes as cangalhas

15 — E revolvendo os grandes, grossos livros.

C’os dedos inda sujos de tabaco,

Ajunta ao mau processo muitas folhas

De vãs autoridades carregadas.

O nosso bom Dirceu, talvez que esteja.

20 — Com os pés escondidos no capacho,

Metido no capote, a ler gostoso

O seu Vergílio o seu Camões e Tasso.

O termo Floridoro, a estas horas,

No mole espreguiceiro se reclina

25 — A ver brincar, alegres, os filhinhos,

Um já montado na comprida cana

E outro pendurado no pescoço

Da mãe formosa, que risonho abraça.

O gordo Josefino está deitado,

30 — Nada lhe importa, nem do mundo sabe,

Ao som do vento, dos trovoes e chuva,

Como em noite tranqüila, dorme e ronca;

O nosso Damião, enfim, abana

Ao lento fogo com que, sábio, tira

35 — Os úteis sais da terra e o teu Critilo,

Que não encontra, aqui, com quem murmure,

Quando so murmurar lhe pede o gênio,

Pega na pena e desta sorte voa,

De cá, tão longe, a murmurar contigo.

40 — Já disse, Doroteu, que o nosso chefe,

Apenas principia a governar-nos,

Nos pertende mostrar que tem um peito

Muito mais terno e brando, do que pedem

Os severos ofícios do seu cargo.

45 — Agora, cuidarás, prezado amigo,

Que as chaves das cadeias já não abrem,

Comidas da ferrugem ? Que as algemas,

Como trastes inúteis, se furtaram?

Que o torpe executor das graves penas

50 — Liberdade ganhou ? Que já não temos

Descalços guardiães, que à fonte levem,

Metidos nas correntes, os forçados?

Assim, prezado amigo, assim devia

Em Chile acontecer, se o nosso chefe

55 — Tivesse, em governar, algum sistema.

Mas, meu bom Doroteu, os homens néscios

As folhas dos olmeiros se comparam:

São como o leve fumo, que se move

Para partes diversas, mal os ventos

60 — Começam a apontar, de partes várias.

Ora, pois, doce amigo, atende o como

No seu contrário vicio, degenera

A falsa compaixão do nosso chefe,

Qual o sereno mar, que, num instante,

65 — As ondas sobre as ondas encapela.

Pertende, Doroteu, o nosso chefe

Erguer uma cadeia majestosa,

Que possa escurecer a velha fama

Da torre de Babel e mais dos grandes,

70 — Custosos edifícios que fizeram,

Para sepulcros seus, os reis do Egito.

Talvez, prezado amigo, que imagine

Que neste monumento se conserve

Eterna, a sua glória, bem que os povos

75 — Ingratos não consagrem ricos bustos

Nem montadas estátuas ao seu nome.

Desiste, louco chefe, dessa empresa:

Um soberbo edifício levantado

Sobre ossos de inocentes, construído

80 — Com lágrimas dos pobres, nunca serve

De glória ao seu autor, mas, sim, de opróbrio.

Desenha o nosso chefe, sobre a banca,

Desta forte cadeia o grande risco,

A proporção do gênio e não das forças

85 — Da terra decadente, aonde habita.

Ora, pois, doce amigo, vou pintar-te

Ao menos o formoso frontispício.

Verás se pede máquina tamanha

Humilde povoado, aonde os grandes

90 — Moram em casas de madeira a pique.

Em cima de espaçosa escadaria

Se forma do edifício a nobre entrada

Por dois soberbos arcos dividida;

Por fora destes arcos se levantam

95 — Três jônicas colunas, que se firmam

Sobre quadradas bases e se adornam

De lindos capitéis, aonde assenta

Uma formosa, regular varanda;

Seus balaústres são das alvas pedras

100 — Que brandos ferros cortam sem trabalho.

Debaixo da cornija, ou projetura,

Estão as armas deste reino abertas

No liso centro de vistosa tarja.

Do meio desta frente sobe a torre

105 — E pegam desta frente, para os lados,

Vistosas galerias de janelas

A quem enfeitam as douradas grades.

E sabes, Doroteu, quem edifica

Esta grande cadeia? Não, não sabes.

110 — Pois ouve, que eu t’o digo: um pobre chefe

Que, na corte, habitou em umas casas

Em que já nem abriam as janelas.

E sabes para quem? Também não sabes.

Pois eu também t’o digo: para uns negros

115 — Que vivem, (quando muito), em vis cabanas,

Fugidos dos senhores, lá nos matos.

Eis aqui, Doroteu, ao que se pode

Muito bem aplicar aquela mofa

Que faz o nosso mestre, quando pinta

120 — Um monstro meio peixe e meio dama.

Na sabia proporção é que consiste

A boa perfeição das nossas obras.

Não pede, Doroteu, a pobre aldeia

Os soberbos palácios, nem a corte

125 — Pode, também, sofrer as toscas choças.

Para haver de suprir o nosso chefe

Das obras meditadas as despesas,

Consome do senado os rendimentos

E passa a maltratar ao triste povo,

130 — Com estas nunca usadas violências:

Quer cópia de forçados que trabalhem

Sem outro algum jornal, mais que o sustento

E manda a um bom cabo que lhe traga

A quantos quilombotas se apanharem

135 — Em duras gargalheiras. Voa o cabo,

Agarra a um e outro e num instante

Enche a cadeia de alentados negros.

Não se contenta o cabo com trazer-lhe

Os negros que têm culpas, prende e manda

140 — Também, nas grandes levas, os escravos

Que não têm mais delitos que fugirem

Às fomes e aos castigos, que padecem

No poder de senhores desumanos.

Ao bando dos cativos se acrescentam

145 — Muitos pretos já livres e outros homens

Da raça do país e da européia

Que, diz ao grande chefe, são vadios

Que perturbam dos povos o sossego.

Não há, meu Doroteu, quem não se molde

150 — Aos gestos e aos costumes dos maiores.

Brincando, os inocentes os imitam,

Se as tropas se exercitam, eles fingem

As hórridas batalhas. Se se fazem

Devotas procissões, também carregam

155 — Aos ombros os andores e as charolas.

Os mesmos magistrados se revestem

Do gênio e das paixões de quem governa.

Se o rei é piedoso, são benignos

Os severos ministros, se é tirano

160 — Mostram os pios corações de feras.

Por isso, Doroteu, um chefe indigno

É muito e muito mau, porque ele pode

A virtude estragar de um vasto império.

Os nossos comandantes, que conhecem

165 — A vontade do chefe, também querem

Imitar deste cabo o ardente zelo.

Enviam para as pedras os vadios

Que. na forma das ordens, mandar devem

Habitar em desterro novas terras.

170 — Ora, pois, doce amigo, já que falo

Nos nossos comandantes, será justo

Que te dê destes bichos uma idéia.

A gente, Doroteu, que não se alista

Nas tropas regulares forma corpos

175 — De bisonha ordenança. Não há terra

Sem ter um corpo destes. Os seus chefes

Ao capitão maior estão sujeitos,

E são os que se chamam comandantes,

Porque as partes comandam destes terços.

180 — Estes famosos chefes, quase sempre

Da classe dos tendeiros são tirados.

Alguns, inda depois de grandes homens,

Se lhe faltam os negros, a quem deixam

O governo das vendas, não entendem

185 — Que infamam as bengalas, quando pesam

A libra de toucinho e quando medem

O frasco de cachaça. Agora atende,

Verás que desta escória se levanta

De magistrados uma nova classe.

190 — Aos ricos taverneiros, disfarçados

Em ar de comandantes, manda o chefe

Que tratem da polícia e que não deixem

Viver, nos seus distritos, as pessoas

Que forem revoltosas. Quer que façam

195 — A todos os vadios uns sumários

E que, sem mais processos, os remetam

Para remotas partes, sem que destas

Jurídicas sentenças, se faculte

Algum recurso para mor alçada.

200 — Já viste, Doroteu, um tal desmancho?

As santas leis do reino não concedem

Ao magistrado régio, que execute,

No crime, o seu julgado e o nosso chefe

Quer que dêem as sentenças sem apelo

205 — Incultos comandantes, que nem sabem

Fazer um bom diário do que vendem!

Concedo, caro amigo, que estes homens

São uns grandes consultos, que meteram

Os corpos do direito nos seus cascos.

210 — Ainda assim pergunto: e como pode

O chefe conceder-lhes esta alçada ?

Ignora a lei do reino, que numera

Entre os direitos próprios dos augustos

A criação dos novos magistrados?

215 — O grande Salomão lamenta o povo

Que sobre o trono tem um rei menino;

Eu lamento a conquista a quem governa

Um chefe tão soberbo e tão estulto

Que, tendo já na testa brancas repas,

220 — Não sabe, ainda, que nasceu vassalo.

Os néscios comandantes e o bom cabo,

Que fez o nosso herói geral meirinho,

Remetem, nas correntes, povo imenso.

Parece, Doroteu, que temos guerras;

225 — Que, para recrutar as companhias,

De toda a parte vêm chorosas levas.

Aqui, prezado amigo, principia

Esta triste tragédia, sim, prepara,

Prepara o branco lenço, pois não podes

230 — Ouvir o resto, sem banhar o rosto

Com grossos rios de salgado pranto.

Nas levas, Doroteu, não vêm somente

Os culpados vadios; vem aquele

Que a dívida pediu ao comandante;

235 — Vem aquele, que pôs impuros olhos

Na sua mocetona e vem o pobre,

Que não quis emprestar-lhe algum negrinho,

Para lhe ir trabalhar na roça e lavra.

Estes tristes, mal chegam, são julgados

240 — Pelo benigno chefe a cem açoites.

Tu sabes, Doroteu, que as leis do reino

Só mandam que se açoitem com a sola

Aqueles agressores, que estiverem.

Nos crimes, quase iguais aos réus de morte.

245 — Tu também não ignoras que os açoites

Só se dão, por desprezo, nas espáduas,

Que açoitar, Doroteu, em outra parte

Só pertence aos senhores, quando punem

Os caseiros delitos dos escravos.

250 — Pois todo este direito se pretere:

No pelourinho a escada já se assenta,

Já se ligam dos réus os pés e os braços,

Já se descem calções e se levantam

Das imundas camisas rotas fraldas,

255 — Já pegam dois verdugos nos zorragues,

Já descarregam golpes desumanos,

Já soam os gemidos e respingam

Miúdas gotas de pisado sangue.

Uns gritam que são livres, outros clamam

260 — Que as sábias leis do rei os julgam brancos,

Este diz que não tem algum delito

Que tal rigor mereça, aquele pede

Do justo acusador, ao céu, vingança.

Não afrouxam os braços os verdugos,

265 — Mas, antes, com tais queixas, se duplica

A raiva nos tiranos, qual o fogo

.Que aos assopros dos ventos ergue a chama

Às vezes, Doroteu, se perde a conta

Dos cem açoites, que no meio estava,

270 — Mas outra nova conta se começa.

Os pobres miseráveis já nem gritam.

Cansados de gritar, apenas soltam

Alguns fracos suspiros, que enternecem.

Que é isso, Doroteu, tu já retiras

275 — Os olhos do papel? Tu já desmaias?

Já sentes as moções, que alheios males

Costumam infundir nas almas ternas?

Pois és, prezado amigo, muito fraco,

Aprende a ter o valor do nosso chefe

280 — Que à janela se pôs e a tudo assiste

Sem voltar o semblante para a ilharga.

E pode ser, amigo, que não tenha

Esforço, para ver correr o sangue,

Que em defesa do trono se derrama.

285 — Aos pobres açoitados manda o chefe

Que, presos nas correntes dos forçados,

Vão juntos trabalhar. Então se entregam

Ao famoso tenente, que os governa

Como sábio inspetor das grandes obras.

290 — Aqui, prezado amigo, principiam

Os seus duros trabalhos. Eu quisera

Contar-te o que eles sofrem, nesta carta,

Mas tu, prezado amigo, tens o peito,

Dos males que já leste, magoado,

295 — Por isto é justo que suspenda a história,

Enquanto o tempo não te cura a chaga.

CARTA 4ª

Em que se continua a mesma matéria

Maldito, Doroteu, maldito seja

O vício de um poeta, que, tomando

Entre dentes alguém, enquanto encontra

Matéria em que discorra, não descansa.

5 — Agora, Doroteu, mandou dizer-me

O nosso amigo Alceu, que me embrulhasse

No pardo casacão, ou no capote

E que, pondo o casquete na cabeça,

Fosse ao sítio Covão, jantar com ele.

10 — Eu bem sei, Doroteu, que tinha sopa

Com ave e com presunto, sei que tinha

De mamota vitela um gordo quarto,

Que tinha fricassés, que tinha massas,

Bom vinho de Canárias, finos doces

15 — E, de mimosas frutas, muitos pratos.

Porém que importa, amigo, perdi tudo

Só para te escrever mais uma carta.

Maldito, Doroteu, maldito seja

O vício de um poeta, pois o priva

20 — De encher o seu bandulho, pelo gosto

De fazer quatro versos, que bem podem

Ganhar-lhe uma maçada, que só serve

De dano ao corpo, sem proveito d’alma.

A carta, Doroteu, a longa carta

25 — Que descreve a cadeia, finaliza

No ponto de que os presos se remetem

Ao severo tenente, que preside,

Como sábio inspetor, às grandes obras.

Agora prossigamos nesta história

30 — E demos-lhe o principio, por tirarmos

Ao famoso inspetor, ao grão tenente,

Com cores delicadas, uma cópia.

É de marca maior que a mediana,

Mas não passa a gigante, tem uns ombros

35 — Que o pescoço algum tanto lhe sufocam.

O seu cachaço é gordo, o ventre inchado,

A cara circular, os olhos fundos,

De gênio soberbão, grosseiro trato,

Assopra de contínuo e fala muito.

40 — Preza-se de fidalgo e não se lembra

Que seu pai foi um pobre, que vivia

De cobrar dos contratos os dinheiros,

De que ficou devendo grandes somas,

Sinal de que ele foi um bom velhaco.

45 — O filho, Doroteu, tomou-lhe as manhas:

Era um triste pingante, que só tinha

O seu pequeno soldo, agora veio

Para inspetor das obras e já ronca,

Já empresta dinheiros, já tem casas,

50 — Já tem trastes de custo e ricos móveis,

Mas logo, Doroteu, verás o como.

Mal o duro inspetor recebe os presos

Vão todos para as obras; alguns abrem

Os fundos alicerces, outros quebram,

55 — Com ferros e com fogo, as pedras grossas.

Aqui, prezado amigo, não se atende

Às forças nem aos anos. Mão robusta

De atrevido soldado move o relho,

Que a todos, igualmente, faz ligeiros.

60 — Aqui se não concede de descanso

Aquele mesmo dia, o grande dia

Em que Deus descansou e em que nos manda

Façamos obras santas, sem que demos,

Aos jumentos e bois, algum trabalho.

65 — Tu sabes, Doroteu, que um tal serviço

Por uma civil morte se reputa.

Que peito, Doroteu, que duro peito

Não Quedeve ter um chefe, que atormenta

A tantos inocentes por capricho?

70 — Que se arrisque o vassalo na campanha,

É uma digna ação que a pátria exige,

Nem este grande risco nos estraga

O pundonor, que vale mais que a vida;

Antes nos abre as portas, para entrarmos

75 — Nos templos do heroísmo. Sim, nós temos,

Nós temos mil exemplos. Muitos, muitos

Que. há séculos, morreram pela pátria,

Na memória dos homens inda vivem.

Mas arriscar vassalos inocentes

80 — Às pedras que se soltam dos guindastes

E aos montes de piçarra que desabam

Nos fundos alicerces, sem vencerem,

Nem como jornaleiros tênue paga;

Pô-los, ainda em cima, na figura

85 — Dos indignos vassalos, que se julgam

Em pena dos delitos, como escravos,

Isto só para erguer-se uma obra grande,

Que outra, pequena, supre, é mais que injusto:

É uma das ações que só praticam

90 — Aqueles torpes monstros, que nasceram

Para serem, na terra, o mal de muitos.

Dirás tu, Doroteu, que o nosso chefe

Não quer que os inocentes se maltratem;

Que o fero comandante é quem abusa

95 — Dos poderes que tem. Prezado amigo,

Quem ama a sã verdade busca os meios

De a poder descobrir e o nosso chefe

Despreza os meios de poder achá-la.

Qu’é deles, os processos, que nos mostram

100 — A certeza dos crimes? Quais dos presos

Os libelos das culpas contestaram?

Quais foram os juízes, que inquiriram

Por parte da defesa e quais patronos

Disseram, de direito, sobre os fatos?

105 — A santa lei do reino não consente

Punir-se, Doroteu, aquele monstro

Que é réu de majestade, sem defesa.

E podem ser punidos os vassalos

Por aéreos insultos, sem se ouvirem

110 — E sem outro processo, mais que o dito

De um simples comandante, vil e néscio?

Um louco, Doroteu, faz mais, ainda,

Do que nunca fizeram os monarcas;

Faz mais que o próprio Deus, que Deus, querendo

115 — Punir, em nossos pais, a culpa grave

Primeiro lhes pediu, que lhe dissessem,

Qual foi, do seu delito, a torpe causa.

Passam, prezado amigo, de quinhentos

Os presos que se ajuntam na cadeia.

120 — Uns dormem encolhidos sobre a terra,

Mal cobertos dos trapos, que molharam

De dia, no trabalho. Os outros ficam,

Ainda, mal sentados e descansam

As pesadas cabeças sobre os braços,

125 — Em cima dos joelhos encruzados.

O calor da estação e os maus vapores

Que tantos corpos lançam, mui bem podem

Empestar, Doroteu, extensos ares.

A pálida doença aqui bafeja,

130 — Batendo brandamente as negras asas.

Aquele Doroteu, a quem penetra

Este hálito mortal, as forças perde,

Tem dores de cabeça e, num instante.

Abrasa-se em calor, de frio treme.

135 — Fazem os seus deveres os afetos

Do nosso grão tenente: amor e ódio.

Aquele que, risonho, lhe trabalha

Nas suas próprias obras, é mandado

Curar-se à Santa Casa, como pobre.

140 — Os outros são tratados como servos,

Que fogem ao trabalho dos senhores,

Para as correntes vão, arrancam pedra

E, quando algum fraqueia, o mau soldado

Dá-lhe um berro que atroa, a mão levanta

145 — E, nas costas, o relho descarrega.

Ah! tu, piedade santa, agora, agora,

Os teus ouvidos tapa e fecha os olhos?

Ou foge desta terra, aonde um Nero,

Aonde os seus sequazes, cada dia

150 — Para o pranto te dão motivos novos.

O fogo, Doroteu, que vai moendo

Depois de bem moer, a chama ateia

E a matéria consome, em breve instante.

Assim a podre febre que roía

155 — Aos míseros enfermos, pouco a pouco

Erguendo, qual o fogo, a lavareda,

À força do cansaço que resulta

Do trabalho e do sol, consome e mata.

Uns caem, com os pesos, que carregam

160 — E das obras os tiram pios braços

Dos tristes companheiros; outros ficam

Ali mesmo, nas obras, estirados.

Acodem mãos piedosas: qual trabalha

Por ver se pode abrir as grossas pegas

165 — E qual o copo d’água lhes ministra,

Que, fechados os dentes, já não bebem.

Uns as caras borrifam, outros tomam

Os débeis pulsos que, parando, fogem.

Ah! não mais compaixão! Não mais desvelo!

170 — O socorro chegou, mas foi mui tarde:

Cobrem-se os membros de um suor já frio,

Os cheios peitos, arquejando, roncam

E vertem umas lágrimas sentidas,

Que só lhes descem dos esquerdos olhos:

175 — Amarela-se a cor, baceia a vista,

O semblante se afila, o queixo afrouxa,

Os gestos e os arrancos se suspendem;

Nenhum mais bole, nenhum mais respira

Assim, meu Doroteu, sem um remédio,

180 — Sem fazerem despesas em um só caldo,

Sem sábio diretor, sem sacramentos,

Sem a vela na mão, na dura terra

Estes pobres acabam seus trabalhos.

Que esperas, duro chefe, que não contas

185 — À corte os teus triunfos! Tu não podes

Mandar alqueires dos anéis tirados

Dos dedos que cortaste nas campanhas;

Mas de algemas, de pegas e correntes,

Podes mandar à corte imensos carros.

190 — Tu podes… mas, amigo, não gastemos

Todo o tempo em contar sentidas coisas,

Façamos menos triste a nossa história;

Misturemos os casos, que magoam,

Com sucessos, que sejam menos fortes.

195 — Não bastam, Doroteu, galés imensas,

São outros mais socorros necessários

Para crescerem as soberbas obras.

Ordena o grande chefe, que os roceiros

E outros quaisquer homens, que tiverem

200 — Alguns bois de serviço, prontos mandem

Os bois e mais os negros que os governem,

Durante uma semana de trabalho.

Ordena, ainda mais, que, neste tempo,

Não recebam jornal, antes, que tragam

205 — O milho, para os bois, dos seus celeiros.

Que é isto, Doroteu, abriste a boca?

Ficaste embasbacado? Não supunhas

Que o nosso grande chefe se saísse

Com uma tão formosa providência?

210 — Nisto de economia é ele o mestre;

Está para compor uma obra, aonde

Quer o modo ensinar, de não gastarem

As tropas coisa alguma, no sustento.

Deus o deixe viver, até que chegue

215 — A pô-la, Doroteu, no mesmo estado

Em que estão os volumes, onde existem

Os despachos, que deu, no seu governo.

Ora, ouve ainda mais, atende e pasma.

Para se sustentarem os forçados

220 — Os gêneros se compram, com bilhetes

Que paga o tesoureiro, quando pode;

E sobre esta fiança inda se tomam

Por muito menos preço do que correm.

As tropas, que carregam mantimentos.

225 — Apenas descarregam, vão, de graça,

À distante caieira, com soldados

Buscar queimada pedra. Daqui nasce

Os tropeiros fugirem e chorarmos

A grande carestia do sustento.

230 — Responde, louco chefe, se tu podes

Tais violências fazer. Não era menos

Lançares sobre os povos um tributo?

Os homens que têm carros e os que vivem

De víveres venderem são, acaso,

235 — Aos mais inferiores nos direitos?

Esta cadeia é sua, porque deva

Sobre eles carregar tamanho peso?

E o povo, quando compra tudo caro,

Não paga ainda mais, do que pagara

240 — Se um módico tributo se lançasse,

À proporção dos bens de cada membro?

Amigo Doroteu, quem rege os povos

Deve ler, de contínuo, os doutos livros

E deve só tratar com sábios homens. ;

245 — Aquele que consome as largas horas

Em falar com os néscios e peraltas,

Em meter entre as pernas os perfumes,

Em concertar as pontas dos lencinhos,

Não nasceu para as coisas que são grandes,

250 — Que. nestas bagatelas, não consomem

O tempo proveitoso as nobres almas.

Quem não quer, Doroteu, mandar o carro,

Co’o famoso tenente se concerta.

Onde vai tal dinheiro ninguém sabe;

255 — Só sabemos mui bem, que o bom tenente

Sem ter outro negócio, que lhe renda,

De pingante, passou a potentado.

Sabemos também mais… porém, amigo,

O falar nestas coisas já me enfada.

260 — Omito outros sucessos, que lastimo,

E fecho, Doroteu, a minha carta,

Com um maravilhoso, estranho caso.

Distante nove léguas desta terra

Há uma grande ermida, que se chama

265 — Senhor de Matozinhos: este templo

Os devotos fiéis a si convoca

Por sua arquitetura, pelo sítio

E, ainda muito mais, pelos prodígios

Com que Deus enobrece a santa imagem.

270 — Este famoso templo tem um carro,

Comprado com esmolas, que carrega

As pedras e madeiras, que ainda faltam.

O comandante austero notifica

A veneranda imagem, na pessoa

275 — Do zeloso ermitão, para que mande

O carro, com os bois, servir nas obras

Mal lhe couber o turno da semana.

Faz-se uma petição ao nosso chefe

Em nome do Senhor, em que se alega

280 — Que o carro, que ele tem, se ocupa, ainda,

Na pia construção da sua casa;

Que ele, Cristo, não tem nenhumas rendas

Senão esmolas tênues, que só devem

Gastar-se no seu templo e no seu culto,

285 — Conforme as intenções de quem as pede.

Apenas viu o chefe o peditório,

Quis ao Cristo mandar, que lhe ajuntasse

O título que tinha, porque estava

Isento de pagar os seus impostos:

290 — Que ele sabe mui bem que o mesmo Cristo

Mandou ao velho Pedro, que pagasse

A César, os tributos, em seu nome.

E Cristo, figurado em uma imagem

Não tem mais isenções, que teve o próprio.

295 — Pegava o seu Matúsio já na pena,

Quando lembra, ao bom chefe, o que decretam

Os cânones da igreja, que concedem

Que. para se fazerem obras pias,

Até os sacros vasos se alienem.

300 — Infere daqui logo, que este carro

Não goza de isenção, porque, suposto

Se possa numerar nos bens da igreja,

Conforme as Decretais até podia,

Neste caso, vender-se, por ser obra

305 — Mais pia do que todas, a cadeia.

Lança mão ele mesmo, então, da pena

E põe na petição um — escusado —

Com uns rabiscos tais, que ninguém sabe

Ao menos conhecer-lhe uma só letra.

310 — Agora dirá tu: "meu bom Critilo,

Não se isentar a Cristo desse imposto

Foi um grande tesão, mas necessário,

Por não se abrir a porta a maus exemplos.

Antes o Santo Cristo é que devia

315 — Mandar o carro logo, como Mestre

Da sublime Virtude e, desta sorte,

Obrou o mesmo Cristo, em outro tempo,

Mandando que pagasse Pedro a César

O tributo, por ele, quando estava,

320 — Por um dos filhos ser mui bem isento.

Mas se esse Santo Cristo não podia

Por dias dispensar os bois e carro,

Porque não se valeu do tal Matúsio,

Do poeta Robério e de outros trastes,

325 — Por quem aqui se conta, que pratica

O grande Fanfarrão os seus milagres ?"

Tu instas, Doroteu, qual o mestraço

Quando, por defender a sua escola,

Arregaçando o braço, o pé batendo

330 — E enchendo as cordoveias, grita e ralha.

Mas eu, prezado amigo, com bem pouco

Te boto esse argumento todo abaixo.

Em primeiro lugar o Santo Cristo

É homem muito sério, e por ser sério,

335 — Não tem com essa gente um leve trato;

Em segundo lugar é muito pobre.

Só dá aos seus devotos indulgências

Com anos de perdão e, destas drogas,

Não fazem tais validos nenhum caso.

340 — Ora pois, louco chefe, vai seguindo

A tua pertensão, trabalha, e força

Por fazer imortal a tua fama.

Levanta um edifício em tudo grande,

Um soberbo edifício, que desperte

345 — A dura emulação na própria Roma.

Em cirna das janelas e das portas

Põe sábias inscrições, põe grandes bustos,

Que eu lhes porei, por baixo, os tristes nomes

Dos pobres inocentes, que gemeram

350 — Ao peso dos grilhões, porei os ossos

Daqueles que os seus dias acabaram,

Sem Cristo e sem remédios, no trabalho.

E nós, indigno chefe, e nós veremos

A quais destes padrões não gasta o tempo.

CARTA 5ª

Em que se contam as desordens feitas nas festas que se celebraram nos desposórios
do nosso sereníssimo infante, com a sereníssima infanta de Portugal.

Tu já tens, Doroteu, ouvido histórias

Que podem comover a triste pranto .

Os secos olhos dos cruéis Ulisses.

Agora, Doroteu, enxuga o rosto,

5 — Que eu passo a relatar-te coisas lindas.

Ouvirás uns sucessos, que te obriguem

A soltar gargalhadas descompostas.

Por mais que a boca, com a mão, apertes,

Por mais que os beiços, já convulsos, mordas,

10 — Eu creio, Doutor… Porém aonde

Me leva, tão errado, o meu discurso?

Não esperes, amigo, não esperes,

Por mais galantes casos que te conte,

Mostrar no teu semblante um ar de riso.

15 — Os grandes desconcertos, que executam

Os homens que governam, só motivam,

Na pessoa composta, horror e tédio.

Quem pode, Doroteu, zombar, contente,

Do César dos romanos, que gastava

20 — As horas, em caçar imundas moscas?

Apenas isto lemos, o discurso

Se aflige, na certeza de que um César,

De espíritos tão baixos, não podia

Obrar um fato bom, no seu governo.

25 — Não esperes, amigo, não esperes

Mostrar no teu semblante um ar de riso;

Espera, quando muito, ler meus versos,

Sem que molhe o papel amargo pranto,

Sem que rompa a leitura alguns suspiros.

30 — Chegou à nossa Chile a doce nova

De que real infante recebera,

Bem digna de seu leito, casta esposa.

Reveste-se o baxá de um gênio alegre

E, para bem fartar os seus desejos

35 — Quer que, a despesas do senado e povo,

Arda em grandes festins a terra toda.

Escreve-se ao senado extensa carta

Em ar de majestade, em frase moura,

E nela se lhe ordena, que prepare,

40 — Ao gosto das Espanhas, bravos touros;

Ordena-se, também, que, nos teatros,

Os três mais belos dramas se estropiem

Repetidos por bocas de mulatos;

Não esquecem, enfim, as cavalhadas.

45 — Só fica, Doroteu, no livre arbítrio

Dos pobres camaristas, repartirem

Bilhetes de convites, pelas damas.

Amigo Doroteu, ah! tu não podes

Pesar o desconcerto desta carta,

50 — Enquanto não souberes a lei própria

Que. aos festejos reais, prescreve a norma.

Enquanto, Doroteu, a nossa Chile

Em toda parte tinha, à flor da terra,

Extensas e abundantes minas de ouro,

55 — Enquanto os taberneiros ajuntavam

Imenso cabedal, em poucos anos,

Sem terem, nas tabernas fedorentas,

Outros mais sortimentos, que não fossem

Os queijos, a cachaça, o negro fumo

60 — E sobre as parteleiras poucos frascos,

Enquanto, enfim, as negras quitandeiras,

À custa dos amigos, sô trajavam

Vermelhas capas de galões cobertas,

De galacés e tissos ricas saias,

65 — Então, prezado amigo, em qualquer festa

Tirava, liberal, o bom senado,

Dos cofres chapeados, grossas barras.

Chegaram tais despesas à notícia

Do rei prudente, que a virtude preza.

70 — E, vendo que estas rendas se gastavam

Em touros, cavalhadas e comédias,

Aplicar-se podendo a coisas santas,

Ordena, providente, que os senados,

Nos dias em que devem mostrar gosto

75 — Pelas reais fortunas, se moderem

E só façam cantar, no templo, os hinos

Com que se dão aos céus as justas graças.

Ah ! meu bom Doroteu, que feliz fora

Esta vasta conquista, se os seus chefes

80 — Com as leis dos monarcas se ajustaram!

Mas alguns não presumem ser vassalos,

Só julgam que os decretos dos augustos

Têm força de decretos, quando ligam

Os braços dos mais homens, que eles mandam.

85 — Mas nunca quando ligam os seus braços.

Com esta sábia lei replica o corpo

Dos pobres senadores e pondera

Que o severo juiz, que as contas toma,

Lhes não há-de aprovar tão grandes gastos.

90 — Da sorte, Doroteu, que o bravo potro

Quando a sela recebe a vez primeira.

Enquanto não sacode a sela fora

E faz em dois pedaços cilha e rédea.

Mete entre os duros braços a cabeça

95 — E dá, saltando aos ares, mil corcovos.

Assim o irado chefe não atura

O freio desta lei, espuma brama,

Arrepela o cabelo, a barba torce

E, enquanto entende que o senado zela

100 — Mais as leis, que o seu gosto, não descansa

Aos tristes senadores não responde,

Mas manda-lhes dizer que, a não fazerem

Os pomposos festejos, se preparem

Para serem os guardas dos forçados,

105 — Trocando as varas em chicote e relho.

Já viste, Doroteu, que o grande chefe,

O defensor das leis, o mesmo seja

Que insulte, que ameace ao bom vassalo

Que intenta obedecer ao seu monarca ?

110 — Pois ainda, Doroteu, não viste nada.

Um monstro, um monstro destes não conhece

Que exista algum maior que, ousado, possa

Ou na terra ou no céu, tomar-lhe conta.

Infeliz, Doroteu, de quem habita

115 — Conquistas do seu dono tão remotas!

Aqui o povo geme e os seus gemidos

Não podem, Doroteu, chegar ao trono.

E se chegam, sucede quase sempre

O mesmo que sucede nas tormentas,

120 — Aonde o leve barco se sossobra

Aonde a grande nau resiste ao vento.

Que peito, Doroteu, que peito pode

Constante, persistir nos sãos projetos,

Ouvindo as ameaças do tirano

125 — E, junto já de si, o som dos ferros?

Somente, Doroteu, os homens santos

Que a sua lei defendem, vêem os potros,

Vêem cruzes, cadafalsos e cutelos

Com rosto sossegado, os outros homens

130 — Não podem, Doroteu, não podem tanto.

À força de temor o bom senado

Constância já não tem; afrouxa e cede.

Somente se disputa sobre o modo

De ajuntar-se o dinheiro, com que possa

135 — Suprir tamanho gasto o grande Alberga.

Uns dizem que, das rendas do senado,

Tiradas as despesas, nada sobra.

Os outros acrescentam, que se devem

Parcelas numerosas, impagáveis

140 — Às consternadas amas dos expostos.

Uns ralham, outros ralham, mas que importa?

Todos arbítrios dão, nenhum acerta.

Então o grande Alberga, que preside,

Vendo esta confusão, na mesma bate

145 — E, levantando a voz, pausada e forte,

A importante questão assim decide:

"Há dinheiro, senhores, há dinheiro;

Vendam-se os castiçais, tinteiro e bancos,

Venda-se o próprio pano e mesa velha,

150 — Quando isto não baste, há bom remédio,

As fazendas se tomem, não se paguem

E, para autorizardes esta indústria,

Eu vos dou, cidadãos, o meu exemplo".

Intentam replicar-lhe os camaristas,

155 — A tão baixos calotes nunca afeitos.

Mas ele, que não sofre mais instâncias,

As grossas sobrancelhas arqueando,

Desta sorte prossegue, em tom azedo:

"Se os meus santos conselhos se desprezam,

160 — Depressa vou dar parte ao nosso chefe.

Ah! pobres cidadãos, se assim o faço!

Já se me representa que vos sinto

Gemer, debaixo dos pesados ferros."

Só tu, maroto Alberga, só tu podes

165 — Desta sorte falar aos teus colegas!

Que importa que os acuses e que importa

Que os prenda, com grilhões, o duro chefe?

São ferros estes, ferros muito honrados,

Que a honra só consiste na inocência.

170 — Apenas, Doroteu, o vil Alberga

Fala em queixa fazer ao nosso chefe,

De susto os camaristas nem respiram,

Quais chorosos meninos, que emudecem

Quando as amas lhes dizem: cala, cala,

175 — Que la vem o tutu que papa a gente.

Mandam-se apregoar as grandes festas,

Acompanha ao pregão luzida tropa

De velhos senadores. Estes trajam,

Ao modo cortesão, chapéus de plumas,

180 — Capas com bandas de vistosas sedas.

Chega enfim o dia suspirado,

O dia do festejo. Todos correm

Com rostos de alegria ao santo templo.

Celebra o velho bispo a grande missa,

185 — Porém o sábio chefe não lhe assiste

Debaixo do espaldar, ao lado esquerdo:

Para a tribuna sobe e ali se assenta.

Uns dizem, Doroteu, fugiu prudente,

Por não ver assentados os padrecos

190 — Na capela maior, acima dele.

Os outros sabichões, que a causa indagam,

Discorrem que o senado lhe devia

Erguer, no presbitério, dossel branco,

Em honra dele ser Lugar Tenente.

195 — Mas eu com estes votos não concordo,

E julgo, afoito, que a razão foi esta:

Porque estando patente e tendo posto

O seu chapéu em cima da cadeira,

Pudera duvidar-se se devia

200 — O bispo ter a mitra na cabeça.

Acaba-se a função e o nosso chefe

À casa, com o bispo se recolhe.

A nobreza da terra os acompanha

Até que montam a dourada sege.

205 — Aqui, meu Doroteu, o chefe mostra

O seu desembaraço e o seu talento!

Só numa função destas se conhece

Quem tem andado terras, onde habitam,

Despidas dos abusos, sábias gentes !

210 — Vai passando por todos, sem que abaixe

A emproada cabeça, qual mandante

Que passa pelo meio das fileiras.

Chega junto da sege, à sege sobe

E da parte direita toma assento.

215 — O bispo, o velho bispo atrás caminha.

Em ar de quem se teme da desfeita.

Com passos vagarosos chega à sege.

Encaixa na estribeira o pé cansado

E duas vezes por subir forceja.

220 — Acodem alguns padres respeitosos

E, por baixo dos braços, o sustentam.

Então, com mais alento, o corpo move

Dá o terceiro arranco, o salto vence

E, sem poder soltar uma palavra,

225 — Ora vermelho ora amarelo fica,

Do nosso Fanfarrão ao lado esquerdo.

Agora dirás tu: "que bruto é esse?

Pode haver um tal homem, que se atreva

A pôr na sua sege ao seu prelado

230 — Da parte da boléia? Eu tal não creio."

Amigo Doroteu, estás mui ginja,

Já lá vão os rançosos formulários

Que guardavam à risca os nossos velhos.

Em outro tempo, amigo, os homens sérios

235 — Na rua não andavam sem florete;

Traziam cabeleira grande e branca.

Nas mãos os seus chapéus. Agora, amigo,

Os nossos próprios becas têm cabelo.

Os grandes sem florete vão à missa.

240 — Com a chibata na mão, chapéu fincado,

Na forma em que passeiam os caixeiros.

Ninguém antigamente se sentava

Senão direito e grave, nas cadeiras.

Agora as mesmas damas atravessam

245 — As pernas sobre as pernas. Noutro tempo

Ninguém se retirava dos amigos,

Sem que dissesse adeus. Agora é moda

Sairmos dos congressos em segredo.

Pois corre, Doroteu, à paridade,

250 — Que os costumes se mudam com os tempos.

Se os antigos fidalgos sempre davam

O seu direito lado a qualquer padre,

Acabou-se esta moda: o nosso chefe

Vindica os seus direitos. Vê que o bispo

255 — É um grande que foi, há pouco, frade

E não pode ombrear com quem descende

De um bravo patagão que, sem desculpa,

Lá nos tempos de Adão já era grande.

Na tarde, Doroteu, do mesmo dia

260 — Sai uma procissão, de poucos negros

E padres revestidos, só composta,

Que os brancos e os mulatos se ocupavam

Em guarnecer as ruas, pois que todos

Ocupados estão nas régias tropas.

265 — Caminha o nosso chefe, todo Adônis,

Diante da bandeira do senado;

Alguns dos rigoristas não lho aprovam,

Dizendo que devia, respeitoso,

Da maneira que sempre praticaram

270 — Os seus antecessores, ir ao lado,

Por ser esta bandeira um estandarte

Onde tremulam, do seu reino, as armas.

Mas eu não o censuro, antes lhe louvo

A prudência que teve: pois supunha

275 — Que, à vista do seu sangue e seu caráter,

Podia muito bem querer meter-se

Debaixo, Doroteu, do próprio pálio.

Que destras evoluções não fez a tropa!

Uns ficam, ao passar o sacramento,

280 — Com as suas barretinas nas cabeças,

Os outros se descobrem e ajoelham

E, enquanto não se avança o nosso chefe

Prostrados se conservam e, devotos,

Não cessam de ferir os brandos peitos.

285 — Ah! grande general! com esta tropa

Tu podes conquistar o mundo inteiro!

Foram muitos felices os Lorenas,

Os Condés, os Eugênios e outros muitos,

Em tu não floresceres nos seus tempos.

290 — Meu caro Doroteu, os sapateiros

Entendem do seu couro, os mercadores

Entendem de fazenda, os alfaiates

Entendem de vestidos, enfim todos

Podem bem entender dos seus ofícios.

295 — Porém querer o chefe que se formem

Disciplinadas tropas de tendeiros,

De moços de taberna, de rapazes

E bisonhos roceiros, é delírio,

Que o soldado não fica bom soldado

300 — Somente porque veste a curta farda,

Porque limpa as correias, tinge as botas

E, com trapos, engrossa o seu rabicho.

A negra noite em dia se converte

À força das tigelas e das tochas

305 — Que em grande cópia nas janelas ardem.

Aqui o bom Robério se distingue:

Compõe algumas quadras, que batiza

Com o distinto nome de epigramas

E pedante rendeiro as dependura

310 — Na dilatada frente, que ilumina,

Fazendo-as escrever em lindas tarjas.

Rançoso e mau poeta, não nasceste

Para cantar heróis, nem coisas grandes!

Se te queres moldar aos teus talentos,

315 — Em tosca frase do país somente

Escreve trovas, que os mulatos cantem.

Andava, Doroteu, alegre a gente

Em bandos pelas ruas. Então vejo

Ao famoso Roquério neste traje:

320 — As chinelas nos pés, descalça a perna

Um chapéu muito velho na cabeça,

E, fora dos calções, a porca fralda.

Em um roto capote mal se embrulha

E grande varapau na mão sustenta,

325 — Que mais de estorvo que de arrimo serve,

Pois a cachaça ardente, que o alegra,

Lhe tira as forças dos robustos membros

E põe-lhe peso, na cabeça leve.

Não repares, amigo, que te conte

330 — Este sucesso, que parece estranho:

Este grande Roquério é um daqueles

Que assenta, à sua mesa, o nosso chefe.

Agora, amigo, vê se esta pintura

Não pode muito bem à nossa historia,

335 — Sem violência, servir, também, de enfeite.

Fiquemos, Doroteu, aqui, por ora,

Pois, de tanto escrever, a mão já cansa.

Em outra contarei o mais, que resta

E vi no grão passeio e mais no curro,

340 — Aonde as cavalhadas se fizeram,

Aonde os maus capinhas maltrataram,

Em vez de touros, mansos bois e vacas.

CARTA 6ª

Em que se conta o resto dos festejos.

Eu ontem, Doroteu, fechei a carta

Em que te relatei da igrejája as festas .

E como trabalhava, por lembrar-me

Do resto dos festejos mal descalço

5 — Na cama, os lassos membros, me parece

Que vou entrando na formosa praça.

Não vejo, Doroteu, um curro feito

De pedaços informes de outros curros

Sim vejo o mesmo curro, que o bom chefe

10 — Riscou na seca praia, e nele vejo

As mesmas armações, as mesmas caras.

Ora vou, doce amigo, aqui pintá-lo

Na frente se levanta um camarote

Mais alto do que todos uma braça:

15 — Enfeitam seu prospecto lindas colchas

E pendentes cortinas de damasco.

À direita se assenta o nosso chefe;

Os régios magistrados não o cercam,

Nem o cerca, também, o nobre corpo.

20 — Dos velhos cidadãos, aquele mesmo

Que faz de toda a festa os grandes gastos.

Com ele só se assenta a sua corte,

Que toda se compõe de novos Martes.

Aqui alguns conheço, que inda vivem

25 — De darem o sustento, o quarto, a roupa.

E capim para a besta, a quem viaja.

Conheço, finalmente, a outros muitos

Que foram almocreves e tendeiros.

Que foram alfaiates e Fizcram.

30 — Puxando a dente o couro, bem sapatos

Agora, doce amigo, não te rias

De veres que estes são aqueles grandes

Que. em presença do chefe, encostar podem

Os queixos nos bastões das finas canas.

35 — Os postos, Doroteu, aqui se vendem,

E, como as outras drogas que se compram,

Devem daqueles ser. que mais os pagam.

No meio desta turba, veio um vulto

Que moça me parece, pelo traje.

40 — Não posso conceber o como deva

Estar uma senhora em tal palanque.

O chefe, (eu discorria), inda é solteiro,

E, quando não o fosse, a sua esposa

Não havia sentar-se com barbados.

45 — Mil coisas, Doroteu, mil coisas feias

Me sugere a malicia, e todas falsas.

Aplico mais a vista, então conheço

Que é uma muito esperta mulatinha

Que dizem filha ser do seu lacaio.

50 — Eis aqui, Doroteu, o como, às vezes

’55 — Que tudo é desta classe, e, se viveres

Ainda o hás-de ver obrar milagres.

Pegado ao camarote do bom chefe

Se vê outro palanque, igual em tudo

Aos rasos camarotes do mais povo.

60 — Aqui têm seu lugar os senadores;

Com eles se encorporam outros muitos

Que lograram de edis as grandes honras.

Nos outros adornados camarotes

Assistem as famílias mais honestas:

65 — Aqui nada se vê que seja pobre.

Recreia, Doroteu, recreia a vista

O vário dos matizes; cega os olhos

O continuo brilhar das finas pedras.

No meio de um palanque então descubro

70 — A minha, a minha Nise: está vestida

Da cor mimosa com que o céu se veste

Oh ! quanto, oh! quanto é bela! a verde olaia

Quando se cobre de cheirosas flores

A filha de Taumante, quando arqueia,

75 — No meio da tormenta, o lindo corpo;

A mesma Vênus, quando toma e embraça

O grosso escudo e lança, porque vence a

A paixão do deus Marte com mais força,

Ou, quando lacrimosa se apresenta

80 — Na sala de seu pai, para que salve

Aos seus troianos das soberbas ondas,

Não é, não é como ela tão formosa.

Qual o tenro menino, a quem se chega

Defronte do semblante a vela acesa.

85 — Umas vezes suspenso, outras risonho,

Os olhos arregala e, bem que o chamem,

A tesa vista não separa dela,

Assim eu, Doroteu, apenas vejo

A minha doce Nise, qual menino,

90 — Os olhos nela fito cheios de água,

E, por mais que me chamem, ou me abalem.

De embebido que estou, não sinto nada.

No meio, Doroteu, de tanto assombro,

Me finge a perturbada fantasia

95 — Novo sucesso, que me aflige e cansa.

Aparece, no curro passeando,

Sexagenário velho, em ar de moço:

Traja uma curta veste, calções largos

Da cor da seca rosa, a quem adorna

100 — O brilhante galão de fina prata.

Na bolsa do cabelo, que se enfeita

De duas negras plumas e de flocos,

Branquejam os vidrilhos, e no peito,

De flores se sustenta um grande molho.

105 — Traz dois anéis nos dedos e fivelas

De amarelos topázios. Não caminha

Sem que, avante, caminhe um branco pajem

Atrás da cadeirinha, e o seu moleque

Em forma de lacaio. Ah! velho tonto!

110 — Esse teu tratamento imita, imita

Ao estado que tem o rei do Congo.

Ponho os meus olhos no caduco Adônis,

Então se me afigura que ele oferta

A Nise uma das flores, e que Nise

115 — Com ar risonho, no seu peito a prega.

Aos zelos, Doroteu, ninguém resiste;

Sentem a sua força os altos deuses,

Os homens mais as feras; e, em Critilo,

Não podes esperar paixões diversas.

120 — Apenas isto veio, exasperado

Meto a mão no florete e, quando intento

O peito transpassar-lhe, então acordo

E, vendo-me às escuras sobre a cama

Conheço que isto tudo foi um sonho.

125 — Pintei-te, Doroteu. o grande curro

Da sorte que minha alma o viu sonhando:

Agora vou pintar-te os mais sucessos

Que impressos inda tenho na memória.

Ainda, Doroteu, no largo curro

130 — Caretas não brincavam, nem se viam,

Nos rasos camarotes, altas popas,

Enfeites com que brilham néscias damas

Quando já no castelo de madeira

As peças fuzilavam, sinal certo

135 — De que o nosso herói e o velho bispo

No adornado palanque se assentavam.

Agora dirás tu: "é forte pressa!

Os chefes nos teatros entram sempre

Às horas de correr-se acima o pano.

140 — Amigo Doroteu, tu nunca viste

Uma criança a quem a mãe promete

Levá-la a ver de tarde alguma festa

Que logo de manhã a mãe persegue,

Pedindo que lhe dispa os fatos velhos ?

145 — Pois eis aqui, amigo, o nosso chefe.

Não quer perder de estar casquilho e teso

No erguido camarote um breve instante.

Chegam-se, enfim, as horas do festejo;

Entra na praça a grande comitiva;

150 — Trazem os pajens as compridas lanças

De fitas adornadas, vêm à destra

Os formosos ginetes arreados,

Seguem-se os cavaleiros, que cortejam

Primeiro ao bruto chefe, logo aos outros,

155 — Dividindo as fileiras sobre os lados.

Não há quem o cortejo não receba

Em ar civil e grato; só o chefe

O corpo da cadeira não levanta,

Nem abaixa a cabeça, qual o dono

160 — Dos míseros escravos, quando juntos

A benção vão pedir-lhe, porque sejam

Ajudados de Deus no seu trabalho.

Feitas as cortesias do costume,

Os destros cavaleiros galopeiam

165 — Em círculos vistosos, pelo campo.

Logo se formam em diversos corpos,

A maneira das tropas que apresentam

Sanguinosas batalhas. Soam trompas,

Soam os atabales, os fagotes,

170 — Os clarins, os boés, e mais as flautas:

O fogoso ginete as ventas abre

E bate com as mãos na dura terra;

Os dois mantenadores já se avançam.

Aqui, prezado amigo, aqui não lutam,

175 — Como nos espetáculos romanos,

Com forçosos leões, malhados tigres,

Os homens, peito a peito e braço a braço.

Jogam-se encontroadas, e se atiram

Redondas alcancias, curtas canas.

180 — De que destro inimigo se defende

Com fazê-las no ar em dois pedaços.

Ao fogo das pistolas se desfazem

Nos postes as cabeças. Umas ficam

Dos ferros trespassados, outras voam,

185 — Sacudidas das pontas das espadas;

Airoso cavaleiro ao ombro encosta

A lança, no princípio da carreira;

No ligeiro cavalo a espora bate;

Desfaz com mão igual o ferro, e logo

190 — Que leva um argolinha, a rédea toma

E faz que o bruto pare. Doces coros

Aplaudem o sucesso, enchendo os ares

De grata melodia. Então, vaidoso,

Guiado de um padrinho, ao chefe leva

195 — O sinal da vitória, que segura

Na destra, aguda lança. O bruto chefe

Aceita a oferta em ar de majestade;

À maneira dos amos, quando tomam

As coisas que lhes dão os seus criados.

200 — Nestes e noutros brincos inocentes

Se passa, Doroteu, a alegre tarde.

Já no sereno céu resplandeciam

As brilhantes estrelas, os morcegos

E as toucadas corujas já voavam,

205 — Quando, prezado amigo, nas janelas

Do nosso Santiago se acendiam.

Em sinal de prazer, as luminárias;

Ardem, pois, nas janelas de palácio

Duas tochas de pau, e sobre a frente

210 — Da casa do Senado se levanta

Uma extensa armação, a quem enfeitam

Quatro mil tigelinhas. Meu Alberga

Aqui o prêmio tens, do teu trabalho.

Tu farás, de torcidas e de azeite,

215 — Aos tristes camaristas, contas largas;

E as arrobas de sebo, que não arde

Desfeitas em sabão, mui bem te podem

Toda a roupa lavar por muitos anos.

Nas margens, Doroteu, do sujo corgo,

220 — Que banha da cidade a longa fralda,

Ha uma curta praia, toda cheia

De já lavados seixos. Neste sitio

Um formoso passeio se prepara:

Ordena o sábio chefe que se cortem

225 — De verdes laranjeiras muitos ramos,

E manda que se enterrem nesta praia

Fingindo largas ruas. Cada tronco

Tem, debaixo das folhas, uma táboa.

Sem lavor nem pintura, que sustenta

230 — Doze tigelas do grosseiro barro.

No meio do passeio estão abertas

Duas pequenas covas, pouco fundas

Que lagos se apelidam. Sobre as bordas

Ardem mil tigelinhas e o azeite

235 — Que corre, Doroteu, dos covos cacos

Inda é mais do que são as sujas águas

Que nem os fundos cobrem destes tanques.

A tão formoso sitio tudo acode

Ou seja de um ou seja de outro sexo,

240 — Ou seja de uma ou seja de outra classe.

Aqui lascivo amante, sem rebuço

A torpe concubina oferta o braco

Ali mancebo ousado assiste e faia

A simples filha, que seus pais recatam;

245 — A ligeira mulata, em trajes de homens,

Dança o quente lundu e o vil batuque,

E, aos cantos do passeio, inda se fazem

Ações mais feias, que a modéstia oculta.

Meu caro Doroteu, meu doce amigo,

250 — Se queres que este sitio te compare

Como sério poeta, aqui tens Chipre,

Nos dias em que os povos tributavam

A deusa tutelar alegres cultos.

Se queres que o compare, como um homem

255 — Que alguma noção tem das sacras letras,

Aqui Sodoma tens e mais Gomorra.

Se queres, finalmente, que o compare

A lugar mais humilde, em tom jocoso,

Aqui, amigo, tens esse afamado

260 — Quilombo, em que viveu o pai Ambrósio.

Depõe o nosso chefe a majestade

E, por ver as madamas, rebuçado

No capote de berne; corre as ruas,

Seguido, Doroteu, das suas guardas.

265 — Depois de dar seus giros, vai sentar-se

Em um dos toscos bancos, onde tomam

Assento certas moças que puderam,

Não sei por que razão, cair-lhe em graça.

Não diz uma fineza às tais mocinhas,

270 — Pois não é, Doroteu, porque não saiba,

Que ele tem muito estudo de Florinda,

Da Roda da Fortuna e de outros livros,

Que dão aos seus leitores grande massa.

É, sim, por sustentar a gravidade

275 — Que, no público, pede o seu emprego.

Mas, para lhes mostrar o quanto as preza,

(Oh! força milagrosa do bestunto!)

Descobre esta feliz e nova traça:

Vai sentar-se na ponta do banquinho,

280 — Umas vezes suspende ao ar o corpo,

Outras vezes carrega sobre a taboa

E, desta sorte, faz que as belas mocas,

Movidas do balanço, dêem no vento

Milhares e milhares de embigadas.

285 — Chega-se, Doroteu, defronte dele

Um máscara prendado: não estima

Os discretos conceitos, nem se agrada

De ver executar vistosos passos.

Manda, sim, que arremede o nosso bispo,

290 — Que arremede, também, o modo e o gesto

De um nosso general. São estes momos

Os únicos que podem comovê-lo

No público a mostrar risonha cara.

Oh ! alma de fidalgo, oh ! chefe digno

295 — De vestir a libré de um vil lacaio!

Cresceram, doce amigo, alguns foguetes

Da noite em que o Senado fez no curro

De pólvora queimar barris imensos.

Em uma noite clara, qual o dia.

300 — Ordena que os foguetes vão aos ares.

Vai se pôr no passeio, reclinado

Sobre um monte de pedras; faz-lhe a corte

A velha poetisa, que repete

Um soneto que fez a certos males.

305 — Começam os vapores do ribeiro

A formar, sobre a terra, nuvens densas

Não se vêem, dos foguetes, os chuveiros

Não se vêem as estrelas, nem as cobras

Mas ele os deixas arder, e gasta a noite

310 — Contente com ouvir alguns estalos

E a bulha, que eles fazem, quando sobem.

Já chega, Doroteu, o novo dia

O dia em que se correm bois é vacas.

Amigo Doroteu, é tempo, é tempo

315 — De fazer-te excitar, no peito brando

Afetos de ternura, de ódio e raiva.

No dia. Doroteu, em que se devem

Correr os mansos touros, acontece

Morrer a casta esposa de um mulato,

320 — Que a vida ganha por tocar rabeca;

Dá-se parte do caso ao nosso chefe

Este, prezado amigo, não ordena

Que outro músico vá em lugar dele

A rabeca tocar no pronto carro;

325 — Ordena que ele escolha ou a cadeia

Ou ir tocar a doce rabequinha

Naquela mesma tarde, pela praia.

Que é isto, Doroteu, estás confuso?

Duvidas que isto seja ou não verdade ?

330 — Então que hás de fazer, quando me ouvires

Contar desordens, que inda são mais calvas?

Indigno, indigno chefe, as leis sagradas

Não querem se incomodem alguns dias

Os parentes chegados dos defuntos,

335 — Ainda para coisas necessárias;

E tu, cruel, violentas um marido

A deixar sobre a terra o frio corpo

Da sua terna esposa, sem que tenhas

Ao menos uma honesta e justa causa

340 — Bárbaro, tu praticas tudo junto

Quanto obraram, no mundo, os maus tiranos!

Mezêncio ajuntava os corpos vivos

Aos corpos já corruptos, e tu segues

Outros caminhos, que inda são mais novos;

345 — Separas dos defuntos os que vivem,

Não queres que os parentes sejam pios,

Dando as últimas honras aos seus mortos!

Chega-se, finalmente, a tarde alegre

Do festejo dos touros. Já no curro

350 — Aparecem os dois formosos carros.

O primeiro derrama sobre a terra,

Por bocas de serpentes escamosas,

Dois puros chorros de água; no segundo

Se levantam, alegres, doces vozes,

355 — Que vários instrumentos acompanham.

Aqui, entre os que tocam, se divisa

Um triste rosto, que se alaga em pranto.

Não sabes, Doroteu, quem este se!a ?

Pois é, prezado amigo, aquele triste

360 — Que tem a mulher morta sobre a cama.

O nosso grande chefe mal conhece

Ao pobre do viúvo, compassivo

Mete a mão no seu bolso e dele tira

Um famoso cartucho, que lhe entrega.

365 — O néscio rebequista, que a ação nota,

Um pouco suaviza a sua mágoa,

E, enquanto não recebe o tal embrulho,

Consigo assim discorre: "Que ditosa,

Que ditosa violência, que socorre,

370 — Em tal ocasião, a minha falta!

Já tenho com que pague ao meu vigário,

Já tenho com que pague a cera, a cova,

A mortalha, o caixão, e mais os padres."

Assim o bom viúvo discorria,

370 — Quando pega no embrulho, e mal o rasga,

Encontra, Doroteu, confeitos grandes,

Encontra manuscriti e rebuçados.

Que é isso, Doroteu, de novo pasmas?

De novo desconfias da verdade ?

380 — Amigo Doroteu, o nosso chefe

Estudou medicina, e como alcança

Que o chorar faz defluxo, providente

Ministra rebuçados a quem chora,

Para, com eles, acudir-lhe ao peito.

385 — Principiam os touros, e se aumentam

Do chefe as parvoíces. Manda à praça

Sem regra, sem-discurso e sem concerto.

Agora sai um touro levantado,

Que ao mau capinha, sem fugir, espera.

390 — Acena-lhe o capinha, ele recua

E atira com as mãos, ao ar, a terra.

Acena-lhe o capinha novamente,

De novo raspa o chão e logo investe

Lá vai o mau capinha pelos ares.

395 — Lá se estende na areia, e o bravo touro

Lhe dá, com o focinho, um par de tombos

Nem deixa de pisá-lo, enquanto o néscio

Não segue o meio de fingir-se morto.

Meu esperto boizinho, em paz te fica,

400 — Que o nosso chefe ordena te recolham

Sem fazeres mais sorte, e te reserva

Para ao curro saíres, quando forem

Do Senhor do Bonfim as grandes festas.

Agora sai um touro, que é prudente.

405 — Se o capinha o procura, logo foge.

Os caretas lhe dão mil apupadas

Um lhe pega no rabo, e o segurâ,

Outro intenta montá-lo, e o grande chefe

O deixa passear por largo espaço.

410 — Manda soltar-lhe os cães, manda meter-lhe

As garrochas de fogo, que primeiro

Quem rompam do ligeiro bruto

Nos destros dedos do capinha estalam.

Com estes maus festejos, que aborrecem,

415 — Se gastam muitos dias. Já o povo

Se cansa de assistir na triste praça

E, ao ver-se solitário, o bruto chefe

Nos trata por incultos, mais ingratos.

Soberbo e louco chefe, que proveito

420 — Tiraste de gastar em frias festas

Imenso cabedal, que o bom Senado

Devia consumir em coisas santas ?

Suspiram pobres amas e padecem

Crianças inocentes, e tu podes

425 — Com rosto enxuto ver tamanhos males?

Embora! sacrifica ao próprio gosto

As fortunas dos povos que governas;

Virá dia em que mão robusta e santa

Depois de castigar-nos, se condoa

430 — E lance na fogueira as varas torpes.

Então rirão aqueles que choraram,

Então talvez que chores, mas debalde.

Que suspiros e prantos nada lucram

A quem os guarda para muito tarde.

CARTA 7ª

Há tempo, Doroteu, que não prossigo

Do nosso Fanfarrão a longa história.

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Que não busque cobrí-los com tal capa,

Que inda se persuada que os maís homens

5 — Lh’os ficam respeitando, como acertos .

Enquanto ao conhecer destes despejos,

Pespega à lei a boa inteligência,

Que extensiva se chama. Sim, entende

Que aonde o rei ordena que só haja

10 — Recurso a ele mesmo, nos faculta

Recurso aos generais, pois que estes fazem,

Em tudo, e mais que em tudo, as suas vezes.

Ah! dize, meu amigo, se podia

Dar-lhe outra inteligência o mesmo Acúrsio .

15 — Esse grande doutor, que já nos finge,

Nos princípios de Roma, conhecida

A Divina Trindade, e que pondera

Que do cão, que na palha está deitado,

A velha fúria, lei se diz canina.

20 — Maldito, Doroteu, maldito seja

O pai de Fanfarrão, que deu ao mundo,

Ao mundo literário tanta perda,

Criando ao hábil filho numa corte,

Qual morgado, que habita em pobre aldeia!

25 — Ah ! se ele, doce amigo, assim discorre,

Sabendo apenas ler redonda letra,

Que abismo não seria, se soubesse

Verter o breviário em tosca prosa.

Se entrasse em Salamanca, e ali ouvisse

30 — Explicar a questão daquela escrava

Que foi manumetida em testamento,

Se três filhos parisse, e outras muitas

Que os lentes nos ensinam, desta casta !

Enquanto, Doroteu, ao outro ponto

35 — De julgar aos expulsos inocentes,

Também razão lhe dou, porque, primeiro

Se informa com aqueles, que os réus dizem

Que sabem, mais que todos, do seu caso.

Nem é de presumir que estes lhe faltem

40 — A verdade, jurando, pois têm alma.

Sê boa testemunha, meu paizinho

A quem o vulgo chama Pé-de-Pato.

Confessa se não foste o que juraste

Que deste uma denúncia e fora falsa.

45 — Indigno e bruto chefe, em que direito

Entendes que se firmam tais processos ?

Um réu, a quem condena um magistrado,

Pode mostrar o injusto da sentença

Dando umas testemunhas que juraram

50 — Sem haver citação da sua parte ?

Dando umas testemunhas inquiridas

Por juiz que não pode perguntá-las ?

E como, louco chefe, e como sabes

Que a defesa convence, se nem viste

55 — Os autos, em que a culpa está formada ?

Suponho que juraram novamente

Aqueles mesmos que as denúncias deram:

O segundo e contrário juramento

Não é que se reputa, sempre, o falso ?

60 — E quem chega a comprar um grande chefe

Não pode inda melhor comprar um negro ?

Amigo Doroteu, estes pretextos

São como as bigodeiras, que não podem

Fazer se não conheçam as pessoas,

65 — Que dançam nos teatros por dinheiro.

Não lucra, doce amigo, o nosso chefe

Somente em revogar os extermínios

Que fazem os ministros: ele mesmo

Ordena se despejem os ricaços,

70 — Ainda que estes vivam sem suspeita

Do infame contrabando. Desta sorte

Os obriga, também, a vir à tenda

Comprar, por grossas barras, seus despachos.

Todos largam, enfim, e todos entram

75 — No vedado distrito, sem que importe

Haver ou não haver de crime indicio.

Só tu, meu Josefino, sô tu ficas

No mandado desterro, por teimares

Em não querer largar, ao vil Matúsio,

80 — Uns tantos mil cruzados, que pedia.

Só tu… porem, amigo, é tempo, é tempo

De fechar esta carta, pois, ainda

Que a matéria, por nova, te deleite,

A muita difusão também enfada.

85 — Eu a pena deponho, e só te peço

Que tomes a lição, que te apresenta

O nosso Fanfarrão, no seu mulato.

Não desfaças, amigo, as ruças becas.

Vai-as distribuindo aos teus lacaios,

90 — Bem como faz o chefe às suas fardas,

Que, enquanto estes as rompem, poupam

As librés amarelas asseadas.

CARTA 8ª

Em que se trata da venda dos despachos e contratos

Os grandes, Doroteu, da nossa Espanha

Têm diversas herdades: uma delas

Dão trigo, dão centeio e dão cevada,

As outras têm cascatas e pomares,

5 — Com outras muitas peças, que só servem,

Nos calmosos verões, de algum recreio.

Assim os generais da nossa Chile

Têm diversas fazendas: numas passam

As horas de descanso, as outras geram

10 — Os milhos, os feijões e os úteis frutos

Que podem sustentar as grandes casas.

As quintas, Doroteu, que mais lhes rendem,

Abertas nunca são do torto arado.

Quer chova de contínuo, quer se gretem

15 — As terras, ao rigor do sol intenso,

Sempre geram mais frutos do que as outras,

No ano em que lhes corre, ao próprio, o tempo.

Estas quintas, amigo, não produzem

Em certas estações, produzem sempre,

20 — Que os nossos generais, tomando a foice,

Vão fazer, nas searas, a colheita.

Produzem, que inda é mais, sem que os bons chefes

Se cansem com amanhos, nem, ainda,

Com lançarem, nos sulcos, as sementes.

25 — Agora dirás tu, de assombro cheio:

"Que ditosas campinas! Dessa sorte

Só pintam os Elíseos os poetas."

Amigo Doroteu, és pouco esperto;

As fazendas que pinto não são dessas

30 — Que têm, para as culturas, largos campos

E virgens matarias, cujos troncos

Levantam, sobre as nuvens, grossos ramos.

Não são, não são fazendas onde paste

O lanudo carneiro e a gorda vaca,

35 — A vaca, que salpica as brandas ervas

Com o leite encorpado, que lhe escorre

Das lisas tetas, que no chão lhe arrastam.

Não são, enfim, herdades, onde as louras

Zunidoras abelhas de mil castas,

40 — Nos côncavos das árvores já velhas,

Que bálsamos destilam, escondidas,

Fabriquem rumas de gostosos favos.

Estas quintas são quintas só no nome,

Pois são os dois contratos, que utilizam

45 — Aos chefes, inda mais que ao próprio Estado.

Cada triênio, pois, os nossos chefes

Levantam duas quintas ou berdades,

E, quando o lavrador da terra inculta

Despende o seu dinheiro, no princípio,

50 –Fazendo levantar, de paus robustos,

As casas de vivenda e, junto delas,

Em volta de um terreiro, as vis senzalas,

Os nossos generais, pelo contrário,

Quando estas quintas fazem, logo embolsam

55 — Uma grande porção de louras barras.

A primeira fazenda, que o bom chefe

Ergueu nestas campinas, foi a grande

Herdade, que arrendou ao seu Marquésio.

As línguas depravadas espalharam

60 — Que, para o tal Marquésio entrar de posse,

Largara ao grande chefe, só de luvas,

Uns trinta mil cruzados; bagatela!

Os mesmos maldizentes acrescentam

Que o pançudo Robério fora aquele

65 — Que fez de corretor no tal contrato.

Amigo Doroteu, eu tremo e fujo

De encarregar minha alma. O bom Vergílio

Talvez, talvez que aflito se revolva,

No meio da fogueira devorante,

70 — Por dizer que adorara, ao pio Enéias,

Uma casta rainha, cujos ossos

Estavam no sepulcro, já mirrados,

Havia coisa de trezentos anos.

Eu não te afirmo, pois, que se fizesse

75 — A venda vergonhosa; só te afirmo

Que o mundo assim o julga, e que esta fama

Não deixa de firmar-se em bons indícios.

As leis do nosso reino não consentem

Que os chefes dêem contratos, contra os votos

80 — Dos retos deputados que organizam

A Junta de Fazenda, e o nosso chefe

Mandou arrematar, ao seu Marquésio,

O contrato maior, sem ter um voto

Que favorável fosse aos seus projetos.

85 — As mesmas santas leis jamais concedem

Que possa arrematar-se algum contrato

Ao rico lançador, se houver na praça

Um só competidor de mais abono;

E o nosso general mandou se desse

90 — O ramo ao lançador, que apenas tinha

Uns vinte mil cruzados, em palavra,

Deixando preterido outro sujeito

De muito mais abono, e a quem devia

Um grosso cabedal o régio erário.

95 — Mal acaba Marquésio o seu triênio,

Outro novo triênio lhe arremata,

Sem que um membro da Junta em tal convenha;

E, tendo o tal Marquésio, no contrato,

Perdido grandes somas, lhe dispensa

100 — Outras fianças dar à nova renda.

Amigo Doroteu, o nosso chefe,

Que procura tirar conveniência

Dos pequenos negócios e despachos,

Daria este contrato ao bom Marquésio,

105 — Este grande contrato, sem que houvesse,

De paga equivalente, ajuste expresso?

Amigo Doroteu, se não sou sábio,

Não sou, também, tão néscio, que nem saiba

Das premissas tirar as conseqüências.

110 — Agora dirás tu: "Se o patrimônio

De Marquésio consiste, como afirmas,

Em vinte mil cruzados, em palavra,

Como, de luvas, deu ao chefe os trinta?"

Amigo Doroteu, estou pilhado;

115 — A palavra, que sai da boca fora,

É corno a calhoada, que se atira,

Que já não tem remédio; paciência.

Eu as ervas arranco, e, desde agora,

Contigo falarei com mais cautela.

120 — Mas que vejo? Tu ris-te? Acaso pensas

Que me tens apanhado na verdade?

A mim nunca apanharam os capuchos,

Quando, no raso assento, defendia

Que a natureza não tolera o vácuo,

125 — Que os cheiros são ocultas entidades,

Com outras mil questões da mesma classe.

E tu, meu doce amigo, pertendias

Convencer-me em matéria em que dar posso

A todos, de partido a sota e o basto

130 — Desiste, Doroteu, do louco intento,

Faze uma grande cruz na lisa testa,

Dá figas ao demônio, que te atenta.

Ora ouve a solução desse argumento:

Bem que pingante seja quem remata

135 — Este grande contrato, mercadeja

Com perto de um milhão; por isso todos

lhe emprestam prontamente os seus dinheiros.

Os chefes, Doroteu, que só procuram

De barras entulhar as fortes burras,

140 — Desfrutam juntamente as mais fazendas,

Que os seus antecessores levantaram.

Nem deixam descansar as férteis terras

Enquanto não as põem em sambambaias.

Aqui agora tens, meus Silverino,

145 — O teu próprio lugar. Tu és honrado,

E prezas, como eu prezo, a sã verdade;

Por isso nos confessas que tu ganhas

A graça deste chefe, porque envias,

Pela mão de Matúsio, seu agente

150 — Em todos os trimestres, as mesadas.

Eu sei, meu Silverino, que quem vive

Na nossa infeliz Chile, não te impugna

Tão notória verdade. Porém deve

Correr estranhos climas esta história,

155 — E, como tu não vás, também, com ela,

É justo que lhe ponha algumas provas.

A sábia lei do reino quer e manda

Que os nossos devedores não se prendam.

Responde agora tu, por que motivo

160 — Concede o grande chefe que tu prendas

A quantos miseráveis te deverem?

Porque, meu Silverino? Porque largas,

Porque mandas presentes, mais dinheiro.

As mesmas leis do reino também vedam

165 — Que possa ser juiz a própria parte.

Responde agora mais, por que princípio

Consente o nosso chefe, que tu sejas

O mesmo que encorrente a quem não paga?

Porque, meu Silverino? Porque largas,

170 — Porque mandas presentes, mais dinheiro.

Os sábios generais reprimir devem

Do atrevido vassalo as insolências;

Tu metes homens livres no teu tronco,

Tu mandas castigá-los, como negros;

175 –Tu zombas da justiça, tu a prendes;

Tu passas portais ordenando

Que com certas pessoas não se entenda.

Porque, por que razão o nosso chefe

Consente que tu faças tanto insulto,

180 — Sendo um touro, que parte ao leve aceno?

Porque, meu Silverino? Porque largas

Porque mandas presentes, mais dinheiro.

A lei do teu contrato não faculta

Que possas aplicar aos teus negócios

185 — Os públicos dinheiros. Tu, com eles,

Pagaste aos teus credores grandes somas!

Ordena a sábia Junta, que dês logo

Da tua comissão estreita conta;

O chefe não assina a portaria,

190 — Não quer que se descubra a ladroeira,

Porque te favorece, ainda à custa

Dos régios interesses, quando finge

Que os zela muito mais que as próprias rendas.

Porque, meu Silverino? Porque largas,

195 — Porque mandas presentes, mais dinheiro.

Apenas apareces… Mas não posso

Só contigo gastar papel e tempo.

Eu já te deixo em paz, roubando o mundo,

E passo a relatar, ao caro amigo,

200 — Os estranhos sucessos que ainda faltam;

Nem todos lhe direi, pois são imensos.

Pretende, Doroteu, o nosso chefe

Mostrar um grande zelo nas cobranças

Do imenso cabedal que todo o povo,

205 — Aos cofres do monarca, está devendo.

Envia bons soldados às comarcas,

E manda-lhe que cobrem, ou que metam,

A quantos não pagarem, nas cadeias.

Não quero, Doroteu, lembrar-me agora

210 — Das leis do nosso augusto; estou cansado

De confrontar os fatos deste chefe

Com as disposições do são direito;

Por isso pintarei, prezado amigo,

Somente a confusão e a grã desordem

215 — Em que, a todos, nos pôs tão nova idéia.

Entraram, nas comarcas, os soldados,

E entraram a gemer os tristes povos.

Uns tiram os brinquinhos das orelhas

Das filhas e mulheres; outros vendem

220 — As escravas, já velhas, que os criaram,

Por menos duas partes do seu preço.

Aquele que não tem cativo, ou jóia,

Satisfaz com papéis, e o soldadinho

Estas dívidas cobra, mais violento

225 — Do que cobra a justiça uma parcela

Que tem executivo aparelhado,

Por sábia ordenação do nosso reino.

Por mais que o devedor exclama e grita

Que os créditos são falsos, ou que foram

230 — Há muitos anos pagos, o ministro

Da severa cobrança a nada atende;

Despeza estes embargos, bem que o triste

Proteste de os provar incontinenti.

Não se recebem só, prezado amigo,

235 — Os créditos alheios, para embolso

Das dividas fiscais. O soldadinho

Descobre um ramo, aqui, de bom comercio:

Aquele que não quer propor demandas

Promete-lhe a metade, ou mais, ainda,

240 — Das somas que lhe entrega, e ele as cobra

Fingindo que as tomou em pagamento

Das dividas do rei. Ainda passa

A mais esta desordem: faz penhoras

E manda arrematar, ao pé da igreja,

245 — As casas, os cativos, mais as roças.

Agora, Fanfarrão, agora falo

Contigo, e só contigo. Por que causa

Ordenas que se faça uma cobrança

Tão rápida e tão forte contra aqueles

250 — Que ao erário só devem tênues somas?

Não tens contratadores, que ao rei devem,

De mil cruzados centos e mais centos?

Uma só quinta parte, que estes dessem,

Não matava, do erário, o grande empenho?

255 — O pobre, porque é pobre, pague tudo,

E o rico, porque é rico, vai pagando

Sem soldados à porta, com sossego!

Não era menos torpe, e mais prudente

Que os devedores todos se igualassem?

260 — Que, sem haver respeito ao pobre ou rico,

Metessem, no erário, um tanto certo,

À proporção das somas que devessem?

Indigno, indigno chefe! Tu não buscas

O público interesse. Tu só queres

265 — Mostrar ao sábio augusto um falso zelo,

Poupando, ao mesmo tempo, os devedores,

Os grossos devedores, que repartem

Contigo os cabedais, que são do reino.

Talvez, meu Doroteu, talvez que entendas

270 — Que o nosso Fanfarrão estima e preza

Os rendeiros que devem, por sistema:

Só para ver se os ricos desta terra,

A força de favores animados,

Se esforçam a lançar nas régias rendas.

275 — Amigo Doroteu, o nosso chefe,

Se faz alguma coisa, é só movido

Da loucura, ou do sórdido interesse.

Eu vou, prezado amigo, eu vou mostrar-te

Esta santa verdade, com exemplos.

280 — Morre um contratador e se nomeia,

Para tratar dos bens, um seu parente,

Que Ribério se chama. Não te posso

Explicar o fervor com que Ribério

Demanda os devedores, vence e cobra

285 — Os cabedais dispersos desta herança.

Estava quase extinto o que devia

A fazenda do rei; então o chefe

Lhe ordena satisfaça todo o resto,

No peremptório termo que lhe assina.

290 — Exclama o bom Ribério que não pode,

Pois todo o cabedal, que tem cobrado,

Ou está, nas demandas, consumido,

Ou tem entrado, já, no régio erário.

E, para bem mostrar esta verdade,

295 — Suplica ao grande chefe, que lhe escolha

Um reto magistrado, que lhe tome,

Da sua comissão, estreita conta.

Pois isto, Doroteu, não vale nada:

Sem contas lhe tomarem, manda o chefe

300 — Que gema na cadeia, até que pague.

Já viste uma insolência semelhante?

Aos grandes devedores, não se assinam

Os termos peremptórios para a paga,

Nem vão para as cadeias, bem que comam

305 — A fazenda do rei e só Ribério,

Sendo um procurador, que nada deve,

Vai viver na prisão, por tempos largos?

Amigo Doroteu, o nosso chefe

Patrocina aos velhacos, que lhe mandam,

310 — Para que mais lhe mandem. Prende e vexa

Aos justos, que entesouram suas barras,

Para ver se, oprimidos, se resolvem

A seguir os caminhos dos que largam.

Remata-se um contrato a um sujeito,

315 — Que o pode bem pagar, por mais que perca

Pertende um fiador deste contrato

Ir tratar, no Peru, do seu comercio;

Vai licença pedir ao grande chefe,

E o chefe lha concede. Escuta agora;

320 — Ouvirás uma ação, a mais indigna

De quantas, por marotos, se fizeram:

Apenas o tal homem sai da terra,

Se despede uma esquadra de soldados

Que, mal com ele topa, lhe dá busca.

325 — As cargas se revolvem, nem lhe escapam

As grosseiras cangalhas, que se quebram.

Não acham contrabandos, porem, sempre,

Lhe tomam os dinheiros, que ele leva.

E o grande chefe ordena que se metam

330 — No régio erário todos, inda aqueles,

Que são de vários donos. Dize, amigo,

Já viste uma injustiça assim tão clara?

Aos grossos devedores não se tomam

Os seus próprios dinheiros, bem que tenham

335 — Comido os cabedais dos seus contratos

E, ao simples fiador de um rematante,

Que nada, ainda, deve, e que tem muito,

Vão-se, à força, tomar os seus dinheiros,

E os dinheiros, que é mais, de estranhas partes!

340 — Agora, Doroteu, não tens que digas,

Hás de, enfim, confessar, que o nosso chefe

Somente não oprime a quem lhe larga.

Ora, ouve as circunstancias que inda acrescem

E que inda afeiam mais o torpe caso:

345 — Espalham as más línguas, que Matúsio

Pedira ao tal sujeito lhe cornprasse,

Uns finos guardanapos e toalhas;

Que o fiador mesquinho lh’os trouxera

E, vendo que Matúsio se esquecia,

350 — Lhe chegou a pedir, sem peio, a paga.

Que o chefe, ressentido desta injúria,

Lhe mandou dar a busca por vingança,

E que até ao presente inda não consta

Que o preço da encomenda se pagasse.

355 — Que mais pode fazer o seu lacaio?

Isto não é mais feio, que despir-se

A preciosa capa ao grande Jove

E mandar-se tirar ao sábio filho,

O famoso Esculápio, as barbas de ouro?

360 — Amigo Doroteu, se acaso vires,

Na corte, algum fidalgo pobre e roto,

Dize-lhe que procure este governo;

Que, a não acreditar que há outra vida,

Com fazer quatro mimos aos rendeiros,

365 — Há de à pátria voltar, casquilho e gordo.

CARTA 9ª

Em que se contam as desordens que Fanfarrão obrou no governo das tropas.

Agora, Doroteu, agora estava

Bamboando, na rede preguiçosa

E tomando, na fina porçolana,

O mate saboroso, quando escuto

5 — De grossa artilharia o rouco estrondo.

O sangue se congela, a casa treme,

E pesada porção de estuque velho,

A violência do abalo despegada

Da barriguda esteira, faZ que eu perca

10 — A tigela esmaltada, que era a coisa

Que tinha, nesta casa, de algum preço.

Apenas torno em mim daquele susto,

Me lembra ser o dia em que o bom chefe,

Aos seus auxiliares, lições dava

15 — Da que Saxi chamou pequena guerra.

Amigo Doroteu, não sou tão néscio,

Que os avisos de Jove não conheça.

Pois não me deu a veia de poeta,

Nem me trouxe, por mares empolados,

20 — A Chile, para que, gostoso e mole,

Descanse o corpo na franjada rede.

Nasceu o sábio Homero entre os antigos,

Para o nome cantar, do grego Aquiles;

Para cantar, também, ao pio Enéias,

25 — Teve o povo romano o seu Vergílio:

Assim, para escrever os grande feitos

Que o nosso Fanfarrão obrou em Chile,

Entendo, Doroteu, que a Providência

Lançou, na culta Espannha, o teu Critilo.

30 — Ora pois, Doroteu, eu passo, eu passo

A cumprir, respeitoso, os meus deveres

E, já que o meu herói, agora, adestra

Esquadras belicosas, também, hoje,

Tomarei por empresa só mostrar-te

35 — Que ele fez, na milícia, grandes coisas.

Ha, nesta capital, um regimento

De tropa regular, a quem se daga.

Tu sabes, Doroteu, que não há corpo

Que, todo, de iguais membros se componha.

40 — Das ordens mais austeras, que fizeram

Os santos penitentes patriarcas,

Saíram, contra o trono rebelados,

Os infames Clementes, e saíram

Contra o dogma, os Calvinos e os Luteros;

45 — O mesmo Apostolado teve um Judas.

Se isto pois, Doroteu, assim sucede

Nos corpos, que se formam de escolhidos,

Que não sucederá, nos grandes corpos,

Aonde se recebam as pessoas

50 — Que timbre fazem, dos seus próprios vícios?

O meio, Doroteu, o forte meio

Que os chefes descobriram para terem

Os corpos que governam, em sossego,

Consiste em repartirem com mão reta

55 — Os prêmios e os castigos, pois que poucos

Os delitos evitam, porque prezam

A cândida virtude. Os mais dos homens

Aos vícios fogem, porque as penas temem.

Ora ouve, Doroteu, o como o chefe

60 — Os castigos reparte aos seus guerreiros.

Não há, não há distúrbio nesta terra,

De que mão militar não seja autora.

Chega, prezado amigo, a ousadia

De um indigno soldado a este excesso:

65 — Aperta, na direita, o ferro agudo

E penetra as paredes de palácio,

No meio de uma sala, aonde estavam

As duas sentinelas, que defendem,

Da casa do dossel, a nobre entrada.

70 — Aqui, meu Doroteu, aqui se chega

Ao camarada inerme e, pelas costas,

O deixa quase morto, a punhaladas.

Que esperas tu, agora, que eu te diga?

Que o militar conselho já se apressa?

75 — Que já se liga, ao poste, o delinqüente?

Que os olhos, com o lenço, já lhe cobrem?

Que a bala zunidora já lhe rompe

O peito palpitante? Que suspira?

Que lhe cai, sobre os ombros, a cabeça?

80 — Meu caro Doroteu, o nosso chefe

É muito compassivo, sim, bem pode

Oprimir os paisanos inocentes

Com pesadas cadeias, pode, ainda,

Ver o sangue esguichar das rotas costas

85 — À força dos zorragues, mas não pode

Consentir que se dê, nos seus soldados,

Por maiores insultos que cometam,

A pena inda mais leve: assim praticam

Os famosos guerreiros, que nasceram

90 — Para obrarem, no mundo, empresas grandes.

Ele, sim bem conhece que não há-de

Talar, com estas tropas, as campinas,

Que o céu lhe não concede a esperança

De entrar no templo augusto da Vitória,

95 — Coberto de poeira e negro sangue.

Mas sempre, Doroteu, as quer propicias,

Pois, inda que não cinjam as espadas,

Para cortar loureiros e carvalhos,

Que a testa lhes circulem, são aquelas

100 — Que, prontas, executam seus mandados;

São aquelas, que infundem, nestes povos,

O medo e sujeição, com que toleram

O verem em desprezo as leis sagradas.

Conhece, Doroteu, o próprio chefe,

105 — Que vai passando a muito a liberdade

Das fardas atrevidas, e, querendo

A tais desordens pôr remédio e freio,

Não manda que se cumpram as leis santas

Que, aos delitos, arbitram justas penas.

110 — Manda, sim, um cartaz, aonde inova

Que, todos os domingos, na parada,

Se leia o militar regulamento.

Indigno e bruto chefe, de que serve

Que se leiam as leis, se os malfeitores,

115 — Do que mandam, não vêem um só exemplo.

Tens visto, Doroteu, o como o chefe

Os delitos castiga; agora sabe

Da sorte que reparte, aos bons, os prêmios.

Morreu um capitão, e subiu logo,

120 — Ao posto devoluto, um bom tenente.

Porque foi, Doroteu? seria, acaso,

Por ser tenente antigo? Ou porque tinha

Com honra militado? Não, amigo,

Foi só porque largou três mil cruzados!

125 — Ah! não mudes a cor de teu semblante,

Prudente Maximino! Não, não mudes.

Que importa que comprasses a patente?

Se tu a merecias, a vileza

Da compra não te infama, sim ao chefe,

130 — Que nunca faz justiça, sem que a venda.

Reforma um capitão e, no seu posto,

Encaixa, sem vergonha, a Tomásine,

Um moço, na milícia pouco esperto,

135 — Que um ano inda não tinha de tenente.

Em que guerras andou, em que campanhas?

Quais as feridas, que no corpo mostra?

Aonde, aonde estão as diligências,

As grandes diligências arriscadas,

Que fez este mancebo, com que possa

140 — Preferir aos antigos, destros cabos?

Ah! sim, eu já me lembro! Tem serviços,

Tem famosos serviços, na verdade:

A casa deste moço, bem que pobre,

É a casa somente, aonde o chefe

145 — Entra em ar de visita, bebe e folga.

Aqui tens teu lugar, meu bom Lobésio;

Tu foste a capitão e tu passaste

Ao posto de major em breves meses.

Quais são os teus serviços? Quais? Responde.

150 — Mas não, não me respondas; eu conheço

Que és tolo, que és brejeiro e, mais, que mandas

As redradas pedrinhas. Estes dotes

Te fazem, no conceito do teu chefe,

Um digno pai da pátria, herói do reino.

155 — Também tu, ó Padela, te distingues

Na corja dos marotos. Tu conservas

De capitão o cargo, mas tu logras

O soldo de maior, e mais as honras.

Que foi que te fez digno de subires

160 — À privança do chefe? Ah! sim, eu vejo

O teu merecimento! É coisa grande:

Ultrajas aos ministros e proteges

A todos os tratantes, que exercitam

O furto e o contrabando. Tu, piedoso,

165 — Não queres ver perdido um só soldado;

Se algum, se algum consente que se escalem

Os vedados lugares, tu escreves

Ao sucessor honrado e lhe suplicas

Que parte não te dê, de um tal desmancho.

170 — O teu fidalgo peito não se vence

Da sórdida avareza. Tu repartes

Os luzentes seixinhos c’o teu chefe,

E, bem que o seu Matúsio, em nome dele,

Os ache miudinhos, sempre servem.

175 — Também tu, digno irmão, também cavalgas

O posto de tenente, por dizeres

Que honrado comandante, na parada,

Austero te corrige, por falares

Dos retos magistrados, sem respeito.

180 — Que vezes a cachaça… Mas, amigo,

Deixemos de falar na paga tropa

E vamos a falar do grande corpo

Da gente auxiliar; aqui podemos

Acabar de dizer o mais que falta.

185 — Tinha este continente, levantados,

De tropa auxiliar uns treze corpos.

O nosso chefe ainda não se farta:

Alista o povo inteiro, e, dele, forma

Inda mais de quarenta regimentos,

190 — Mais faminto de ver galões e fardas

Que Midas de trocar em ouro puro

As coisas em que punha o torpe dedo.

O coronel, valente, agarra tudo

Quanto tem, de varão, a forma e traje;

195 — Nem lhe obsta, Doroteu, que os seus soldados

Meninos inda sejam; que eles crescem,

E cresce, com os corpos, igualmente,

O santo amor das armas. Muitos, muitos,

Quando vão para a igreja receberem

200 — As águas salvadoras do batismo,

Já vão vestidos com a curta farda.

Este mesmo costume tem, amigo,

O pago regimento. Apenas nasce

Aos cabos algum filho, logo, à pressa,

205 — Lhe assenta o chefe, de cadete, a praça

Venturoso costume, que promete

Produzir, de cordeiros, tigres bravos!

Aníbal, Doroteu, desde menino

Com seu pai militou; talvez não fosse

210 — O terror dos romanos, se passasse

A tenra, inda imberbe mocidade,

Entre os moles prazeres de Cartago.

Contudo, Doroteu, o céu permita

Que guerras não tenhamos;pois, a termos

215 — Algum acampamento, que constranja

A saírem da praça os regimentos,

Há de haver bom trabalho em conduzir-se

O rancho de crianças em jacases.

Há-de, também, haver despesa grande

220 — Em levar-se uma tropa de mulheres,

Que dêem o peito a uns e a outros papa.

Tu sabes, Doroteu, que as nossas tropas

De infantaria são, porem montada;

Que as leis do nosso reino não consentem

225 — Que estas montadas tropas se componham

De membros, que não tenham certas rendas,

Com que possam manter os seus cavalos.

Ora ouve, Doroteu, quais são as posses

Dos míseros paisanos, que se alistam

230 — Nos fortes regimentos: quase todos

Um sendeiro não têm, e muitos deles

Gemeram nas prisões, por não poderem

Ajeitar uma grossa e curta farda.

Eu topei Doroteu, por várias vezes,

235 — Atrás de um regimento, os rapazinhos

Em veste e mais descalços: fina idéia

Em que deram os cabos, para verem

Se, à força de vergonha, se fardavam.

Eu sei, eu sei, amigo, que alguns destes,

240 — Cansados de sofrerem mais opróbrios,

Fizeram fardamentos dos produtos

Dos únicos escravos, que venderam

E dos trastes alheios, que furtaram.

Perguntarás, agora, doce amigo:

245 — "Aonde estão os ricos taverneiros?

Aonde os mercadores, que têm lojas

A que chamam de seco e de molhado?"

Aonde, Doroteu? Eu já t’o digo:

Estão, estão, também, nos regimentos,

250 — Mas trazem nas direitas, que conservam

Inda lixosas peles, as bengalas.

Não rias, Doroteu, das nossas tropas.

De que gente formou um corpo invicto

O luso Viriato? Foi de moços

255 — Criados, desde a infância, nas campanhas?

Não foi, meu Doroteu, foi de uns pastores,

De uns pastores incultos, que, animados

Do esforço do seu chefe, conseguiram

Vitórias singulares, contra um povo

260 — Que ao mundo sujeitou, à força de armas.

Os homens, Doroteu, são todos fortes

Em cima das muralhas, que defendem

As chorosas mulheres e as fazendas,

Os ternos filhos e os avós cansados.

265 — A desordem, amigo, não consiste

Em formar esquadrões, mas, sim, no excesso.

Um reino bem regido não se forma

Somente de soldados; tem de tudo:

Tem milícia, lavoura, e tem comércio.

270 — Se quantos forem ricos se adornarem

Das golas e das bandas, não teremos

Um só depositário, nem os órfãos

Terão também tutores, quando nisto

Interessa, igualmente, o bem do império.

275 — Carece a monarquia dez mil homens

De tropa auxiliar? Não haja embora

De menos um soldado, mas os outros

Vão à pátria servir nos mais empregos,

Pois os corpos civis são como os nossos,

280 — Que, tendo um membro forte e os outros debeis,

Se devem, Doroteu, julgar enfermos.

É também, Doroteu, contra a policia

Franquearem-se as portas, a que subam

Aos distintos empregos, as pessoas

285 — Que vêm de humildes troncos. Os tendeiros,

Mal se vêem capitães, são já fidalgos;

Seus néscios descendentes já não querem

Conservar as tavernas, que lhes deram

Os primeiros sapatos e os primeiros

290 — Capotes com capuz de grosso pano.

Que império, Doroteu, que império pode

Um povo sustentar, que só se forma

De nobres sem ofícios? Estes membros

Não amam, como devem, as virtudes,

295 — Seguem à rédea solta os torpes vícios.

Daqui saem os torpes malfeitores,

Os vis alcoviteiros, os perjuros,

Os famosos ladroes; numa palavra,

A tropa insultadora de vadios.

300 — A este corpo imenso de milícia

Concede Fanfarrão as regalias

Que as nossas leis não dão aos bons vassalos,

Que chegam aos empregos mais honrosos,

Em paga de proezas e serviços.

305 — Não quer, não quer o chefe, que aos seus cabos

Mandem citar os tristes acredores

Por ordem de justiça. Quais os grandes,

Que não vêm a juízo sem licença

Do príncipe, a quem servem, nesta terra,

310 — Sem licença do chefe, não se citam

Os negros, os crioulos e os mulatos,

Mal vestem a fardinha e, muito menos,

Mal cingem, na cintura, honrosa banda.

Se alguém requer ao chefe que permita

315 — Para isso faculdade, põe-lhe em cima

De humilde petição, que o suplicado

Componha ao suplicante o que lhe deve.

Se diz o suplicado ao suplicante

Que não lhe deve nada, foi-se embora

320 — O sólido direito, que a policia

Do chefe não consente que se ponha

Aos seus oficiais, inda que sejam

Velhacos e ladrões, no foro, um pleito.

Já viste regalia igual a esta?

325 — A pátria, Doroteu, concede aos nobres,

Que os postos exercitam, grossas rendas,

Com que possam pagar, aos mais vassalos

As coisas que lhes compram; não concede

Ao mesmo general que vista e coma,

330 — À custa do suor dos outros homens.

E quando o rei não quer pagar a todos,

Com dinheiro contado, remunera

Os serviços com graças, mas daquelas

Que deixam sempre intacto o jus alheio.

335 — Não são somente isentos da justiça

Os cabos valerosos. Onde habitam,

Se acolhem, Doroteu, os malfeitores,

E, quais antigas casas de fidalgos,

Ou famosos conventos, que, na porta,

340 — Têm as grossas cadeias, onde pegam

Os míseros culpados, aqui todos

Se livram dos meirinhos, bem que sejam

Indignos, torpes réus de magistrado.

Se os ousados meirinhos entrar querem

345 — Nas casas destes cabos, a que chamam

Militares quartéis, os fortes donos

Encaixam nas cabeças os casquetes,

Apertam as correias, põem as bandas

E, cingindo as torcidas, largas folhas.

350 — Ultrajam com palavras a justiça,

Resistem, gritam, ferem, matam, prendem.

Os zelosos juízes punir querem

A injúria da justiça: formam autos,

Procedem às devassas, pronunciam,

355 — E mandam que estes nomes se descrevam

Nos róis dos mais culpados. Mas, amigo,

De que serve fazer-se o que as leis mandam

Na terra, que governa um bruto chefe,

Que não tem outra lei mais que a vontade?

360 — O chefe onipotente logo envia

Atrevidos soldados, que, chegando

À casa do escrivão, os nomes riscam

Do rol dos delinqüentes e lhe arrancam

Da fechada gaveta os próprios autos.

365 — Ousado, indigno chefe, que governo,

Que governos nos fazes? A milícia

Ergueu-se para guarda dos vassalos,

E tu, e tu trabalhas, por que seja

A mesma que nos prive do sossego

370 — Que, próvidas, nos dão as leis sagradas.

Agora, Doroteu, talvez trabalhes

Em achar o motivo por que o chefe

Concede tanto indulto aos seus soldados;

Pois ele, Doroteu, não é o enigma,

375 — Que vem nos doces versos de Vergílio,

De umas flores, que têm de reis os nomes

Escritos sobre as folhas, e do sitio

De que três braças só do céu se avista.

O chefe, Doroteu, só quer dinheiro,

375 — E, dando aos militares regalias,

Podem os grandes postos, que lhes vende,

Subir à proporção, também de preço.

Tu assim o conheces, Cata Preta,

Pois deste mil oitavas por trazeres

385 — Lavrado castão de ouro sobre a cana.

Tu também, capanema, assim discorres,

Pois largaste seiscentas, por vestires

De capitão maior vermelha farda.

Todos assim o julgam. Ah! só pensa

390 — De diversa maneira, aquele néscio

Que sofreu que Matúsio lhe rompesse

A passada patente à sua vista,

Por não largar, de luvas, os trezentos.

Dize-me, Doroteu, um chefe sábio

395 — Levanta nas conquistas umas tropas,

Com que não pode a força do distante

Conquistador império? Infunde, inspira

Nos cabos tanto orgulho, que se atrevam

A resistir aos mesmos magistrados,

400 — Que a pessoa do augusto representam?

Maldito, Doroteu, maldito seja

Um bruto, que só quer a todo custo,

Entesourar o sórdido dinheiro.

CARTA l0ª

Em que se contam as desordens maiores que Fanfarrão fez no seu governo.

Quis, amigo, compor sentidos versos

A uma longa ausência e, para encher-me

De ternas expressões, de imagens tristes,

A banca fui sentar-me, com projeto

5 — De ler, primeiramente, algumas obras

No meu já roto, destroncado Ovídio.

Abri-o nas saudosas alegrias

E, quando me embebia na leitura

Dos casos lastimosos, que ele pinta,

10 — Na passagem que fez ao Ponto Euxínio

Encontro aqueles versos que descrevem

As ondas decumanas; de repente

Me sobe ao pensamento que estas eram

Do nosso Fanfarrão imagem viva.

15 — Os mares, Doroteu, jamais descansam;

Agitam sem cessar as verdes águas,

E, depois que levantam ondas nove,

Com menos fortidão, despedem outra,

Que corre mais ligeira e que se quebra

20 — Nos musgosos rochedos com mais força.

Assim o nosso chefe não descansa

De fazer, Doroteu, no seu governo,

Asneiras sobre asneiras e, entre as muitas,

Que menos violentas nos parecem,

25 — Pratica outras que excedem muito e muito

As raias dos humanos desconcertos.

Perdoa, minha Nise, que eu desista

Do intento começado. Tu mil vezes

Nos meus olhos já leste os meus afetos,

30 — Não careces de os ler nos meus escritos.

Perdoa, pois, que eu gaste as breves horas

A contar as asneiras desumanas

Do nosso Fanfarrão ao caro amigo.

E tu, meu Doroteu, antes que leias

35 — O que vou a contar-te, jurar deves

Pelos olhos da tua amada esposa,

Por seu louro cabelo, e pelo dia

Em que viste, na sua alegre boca,

O primeiro sorriso, que não hás-de

40 — Duvidar do que leres, bem que sejam

Desordens que pareçam impossíveis.

A Junta, Doroteu, a quem pertence

Evitar contrabandos, prende, envia

A sabia Relação do Continente

45 — A trinta delinqüentes, para serem

Castigados conforme os seus delitos.

Entende o nosso chefe que esta Junta

Não devia mandar aos malfeitores

Sem sua autoridade e, dela, toma

50 — O mais estranho, bárbaro despique.

Manda embargar aos presos na cadeia

Do nosso Santiago, e manda ao pobre

Do condutor meirinho que os sustente,

Assistindo, também, aos que enfermarem,

55 — Com médicos, remédios e galinhas.

Acaba-se o dinheiro que lhe deram

Para fazer os gastos do caminho;

Recorre, neste aperto, ao bruto chefe,

Expõe-lhe que não tem com que alimente

60 — Ao menos a si próprio; pede e roga

Que o deixe recolher à pátria terra,

Para nela exercer seu pobre oficio.

Tão terna rogativa não merece

Do chefe a compaixão; antes lhe ordena

65 — Que assista, como dantes, aos culpados

De todo o necessário, na enxovia;

Que, a faltar-lhe o dinheiro para os gastos,

Ou que o peça, ou que o furte. Caro amigo,

Da boca de uma Fúria sairia

70 — Mais dura decisão? Por que motivo

Deve um pobre meirinho dar sustento

A mais de trinta presos? São seus filhos?

E, ainda a serem filhos, um pai justo,

Que fazenda não tem, vive obrigado

75 — A sustentar infames malfeitores,

Por meio de culpáveis latrocínios?

Suponho, Doroteu, suponho ainda

Que a Junta fez excesso na remessa

Dos presos, sem licença. Neste caso

80 — Merece o condutor algum castigo?

Ele fez outra coisa que não fosse

Cumprir o que mandaram seus maiores?

Podia repugnar-lhes, sem delito?

Amigo Doroteu, o nosso chefe

85 — É qual mulher ciosa, que não pode

Vingar no vário amante os duros zelos,

E vai desafogar as suas iras,

Bebendo o sangue de inocentes filhos.

Depois de se passarem alguns anos,

90 — Depois que o bom meirinho já não tinha

Vestido que vendesse, nem pessoa

Que um chavo lhe fiasse, o bruto chefe

Passa a fazer-um novo despotismo:

Ordena que os culpados sejam soltos,

95 — E, dizem, lhes mandava vinte oitavas,

Para os gastos fazerem da fugida.

Até aqui pagou o seu desgosto

O pobre condutor; agora o paga

A triste, aflita pátria, pois lhe aumenta,

100 — Dos torpes malfeitores, a quadrilha.

É esta, Doroteu, a sua gente;

Trafica em coisa santa, no comércio

Da compra e mais da venda de seixinhos,

Negócio avantajado e mais seguro

105 — Que o meter entre os fardos das baetas,

Os pesados galões e as drogas finas.

Preza o bravo leão aos leões bravos,

A fraca pomba preza as pombas fracas,

E o homem, apesar do raciocínio

110 — Que a verdade lhe mostra, estima aos homens

Que têm iguais paixões e os mesmos vícios.

Avisam ao bom chefe que um ministro

Queria que os soldados lhe mostrassem

As ordens, com que entravam a fazerem

115 — Prisões no seu distrito. Investe o bruto

Qual touro levantado, a quem acenam,

C’os vermelhos droguetes, os capinhas;

Escreve-lhe uma carta, em que lhe ordena

Lhe dê logo as razoes, em que se funda.

120 — Inda pede as razões, e já lhe estranha

O néscio proceder. Aqui não para

Tão rápida desordem: manda um corpo

De ousados militares, que conduzam,

Ao magistrado, a carta, e lhes ordena

125 — Que fiquem nesta vila sustentados

A custa, Doroteu, do aflito povo.

Não se concede ao pobre que sustente,

Em casa, o seu soldado; manda o chefe

Que a cada um se dê, em cada um dia.

130 — Para sustento, meia oitava de ouro,

Fora milho e capim para o cavalo;

E não entrando aqui o régio soldo.

Que santo proceder! Um Deus irado,

Se houvessem sete justos, perdoava

135 — Os imensos delitos de Sodoma,

E o nosso grande chefe, pelo crime,

Pelo sonhado crime de um só homem,

Castiga, como réu de majestade,

Formado de inocentes, todo um povo.

140 — Faz penhora Macedo em certas barras

Que, a um seu devedor, devia Mévio;

Recorre ao magistrado Silverino,

Pedindo que mandasse que o dinheiro

A juízo viesse, pois queria

145 — Sobre ele disputar a preferência,

Na forma que concede a lei do reino.

Cita-se ao triste Mévio e deposita

As barras em juízo, prontamente.

Conhece Silverino que Macedo

150 — Para a vitória tem melhor direito,

Não quer seguir a causa na presença

De um reto magistrado, que profere,

Na forma que as leis mandam, as sentenças.

Recorre ao general, e o bruto chefe

155 — Decide desta sorte o longo pleito:

Habita nesta terra um homem rico,

Que tem de Albino o nome, e, dizem, trata

A Mévio, devedor,–por seu sobrinho.

Manda pois, Doroteu, o grande chefe

160 — Que Albino se recolha na cadeia

E more com os negros na enxovia,

Enquanto não pagar a Silverino

Outra tanta quantia, quanta Mévio

Depositou, doloso, por que houvesse

165 — Entre os dois acredores um litígio.

Eis aqui, Doroteu, o que é ciência!

As nossas leis não querem que o pai solva

O calote que fez o próprio filho

E quer um general que Albino pague

170 — Da sórdida masmorra, novamente,

A soma que pagou o bom sobrinho!

Aonde existe o dolo? A lei não manda

Que todo o que temer que alguém lhe peça

Segundo pagamento, se segure

175 — Metendo no depósito o que deve?

Pois se isto nos faculta o são direito,

Que delito comete aquele triste

Que a dívida em juízo deposita,

Quando o sábio juiz assim o manda,

180 — Porque o mesmo credor assim o pede?

E se Mévio fez dolo, por que causa

Há-de Albino pagar a culpa dele?

Porque lhe aconselhou que não pagasse

Outra tanta quantia a Silverino?

185 — Aconselhar conforme as leis do reino

É culpa que mereça um tal castigo?

E pode ser castigo regulado

Pagar o conselheiro aquela soma

Que o mesmo aconselhado não devia?

190 — Não é isto furtar? Não é violência?

Ah! pobre, ah! pobre povo, a quem governa

Um bruto general, que ao céu não teme,

Nem tem o menor pejo de lhe verem

Tão indignas ações os outros homens!

195 — Há neste regimento um moço Adônis,

Amores de uma escrava, cuja dona

Depois de cativar a muitos peitos, . .

Ao nosso herói atou, também, ao carro

Dos seus cruéis triunfos. Cego nume!

200 — Qual é, qual é dos homens que não honra,

Com puros sacrifícios, teus altares?

Tu vences os pequenos, mais os grandes,

Tu vences os estultos, mais os sábios,

Tu, vences, que inda é mais, as mesmas feras

205 — E, bem que cinja o grosso peito d’aço,

Não pode resistir às tuas setas

O duro coração do próprio Marte.

Intenta este soldado que o ministro

Lhe remate umas casas e consegue

210 — Um despacho do chefe, em que decreta

Que nelas ninguém lance: coisa estranha

Que, entendo, nunca viu nenhuma idade!

O reto magistrado, que respeita,

Mais que ao chefe, as leis do seu monarca,

215 — Ordena que o porteiro, incontinenti,

As pertendidas casas meta a lanço.

Honrado cidadão o preço cobre;

O porteiro passeia pela rua,

Repete, em alta voz, o lanço novo

220 — E prossegue a falar, assim dizendo:

"Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três,

Dou-lhe outra mais pequena, afronta faço,

Se ninguém mais me oferece, arremato".

Ao lanço do Brandúsio ninguém chega,

225 — Informado o juiz, ordena e manda

Que o prédio se remate; então se chega

O porteiro risonho ao licitante,

E lhe diz — "que lhe faça bom proveito"

Ao mesmo tempo que lhe entrega o ramo.

230 — Parte logo o soldado e conta ao chefe

O sucesso da praça. O bruto monstro,

Julgando profanado o seu respeito,

Manda lançar no pobre licitante

Um pesado grilhão e manda pô-lo,

235 — Ajoujado com um despido negro,

A trabalhar nas obras da cadeia.

O preso injuriado desfalece

E o chefe desumano desce à rua

Para que possa, de mais perto, vê-lo.

240 — Sucede a um desmaio outro desmaio;

O negro companheiro, então, lhe acode,

Nos braços compassivos o sustenta;

Porem o velho chefe, que deseja

O vê-lo, ali, morrer, por um soldado

245 — Manda ao negro dizer que ao preso deixe

E cuide em prosseguir no seu trabalho.

Os mesmos desumanos, que rodeiam

Tão bruto general, aqueles mesmos

Que, alegres, executam seus mandados,

250 — Apenas escutaram tal preceito,

Um pouco emudeceram e tiveram

Os rostos tristes, muito tempo, baixos.

Os outros, Doroteu, deram suspiros

E, bem que forcejaram, não puderam

255 — Fazer que os olhos não se enchessem d’água.

Eu creio, Doroteu, que tu já leste

Que um César dos romanos pertendera

Vestir, ao seu cavalo, a nobre toga

Dos velhos senadores. Esta história

260 — Pode servir de fábula, que mostre

Que muitos homens, mais que as feras brutos,

Na verdade conseguem grandes honras!

Mas ah! prezado amigo, que ditosa

Não fora a nossa Chile se, antes, visse

265 — Adornado um cavalo com insígnias

De general supremo, do que ver-se

Obrigada a dobrar os seus joelhos

Na presença de um chefe, a quem os deuses

Somente deram a figura de homem!

270 — Então, prezado amigo, o néscio povo

Com fitas lhe enfeitara as negras clinas,

Ornara a estrebaria com tapetes,

Com formosas pinturas, ricos panos,

Bordados reposteiros e cortinas;

275 — Um dos grandes da terra lhe levara

Licor, para beber, em baldes d’ouro,

Outro lhe dera o milho em ricas salvas;

Mas sempre, Doroteu, aqueles néscios

Que ao bruto respeitassem, poderiam

280 — Servi-lo acautelados e de sorte

Que dar-lhes não pudesse um leve coice.

Eis aqui, Doroteu, o que nos nega

Uma heróica virtude. Um louco chefe

O poder exercita do monarca

285 — E os súditos não devem nem fugir-lhe

Nem tirar-lhe da mão a injusta espada.

Mas, caro Doroteu, um chefe destes

Só vem para castigo de pecados.

Os deuses não carecem de mandarem

290 — Flagelos esquisitos; quasi sempre

Nos punem com as coisas ordinárias.

O mundo inda não viu senão um corpo

Em branco sal mudado, e só no Egito

Fez novas penas de Moisés a vara.

295 — Perguntarás agora que torpezas

Comete a nossa Chile, que mereça

Tão estranho flagelo? Não há homem

Que viva isento de delitos graves,

E, aonde se amontoam os viventes

300 — Em cidades ou vilas, ai crescem

Os crimes e as desordens, aos milhares.

Talvez prezado amigo, que nós, hoje,

Sintamos os castigos dos insultos

Que nossos pais fizeram; estes campos

305 — Estão cobertos de insepultos ossos

De inumeráveis homens que mataram.

Aqui ou europeus se divertiam

Em andarem à caça dos gentios

Como à caça das feras, pelos matos.

310 — Havia tal que dava, aos seus cachorros,

Por diário sustento, humana carne,

Querendo desculpar tão grave culpa

Com dizer que os gentios, bem que tinham

A nossa semelhança, enquanto aos corpos,

315 — Não eram como nós, enquanto às almas.

Que muito, pois, que Deus levante o braco

E puna os descendentes de uns tiranos

Que, sem razão alguma e por capricho,

Espalharam na terra tanto sangue.

CARTA 11ª

Em que se contam as brejeirices de Fanfarrão.

No meio desta terra há uma ponte,

Em cujos dois extremos se levantam

De dois grossos rendeiros as moradas;

E, apenas, Doroteu, o sol declina

5 — A descansar de Tétis no regaço,

Neste agradável sitio vão sentar-se

Os principais marotos e, com eles,

A brejeira família de palácio.

Aqui, meu bom amigo, aqui se passam

10 — As horas em conversa deleitosa:

Um conta que o ministro, à meia noite,

Entrara no quintal de certa dama;

Diz outro que se expôs uma criança

A porta de Florício, e já lhe assina

15 — O pai e mais a mãe; aquele aumenta

A bulha que Dirceu com Lauro teve

Por ciúmes cruéis’, da sua amásia;

Este chama a Simplicio caloteiro

E mofa, ao mesmo tempo, de Frondélio,

20 — Que o seu dinheiro guarda. Enfim, amigo,

Aqui, aqui de tudo se murmura.

Só se livra da língua venenosa

O que contrata em vendas de despachos

E quem se alegra ao ver que a sua moça

25 — Ajunta, pela prenda, um par de oitavas:

Que os membros do congresso são prudentes

E não querem que alguns dos companheiros

Tomem esta conversa em ar de chasco.

Amigo Doroteu, ah! neste sitio

30 — Eu não me dilatara um breve instante

Em dia de trovões, bem que estivesse

Plantado todo de loureiros machos!

Por este sítio, pois, passei há pouco

Cuidando que, por ser mui cedo ainda,

35 — Não toparia a corria dos marotos.

Mas, apenas a vi, fiquei tremendo

Qual fraco passageiro, quando avista,

Em deserto lugar, pintadas onças.

Contudo, Doroteu, criei esforço

40 — E fui atravessando pelo meio,

Rezando sempre o credo e, por cautela,

Fazendo muitas cruzes sobre o peito.

Apenas me salvei daquele risco,

Um suspiro soltei, que encheu os ares,

45 — E, voltando o semblante para o sitio,

Em que os tais\mariolas se assentavam,

Meneando a cabeça um par de vezes

E soltando um sorriso, em ar de mofa,

Dentro do meu discurso, assim lhes falo:

50 — "Vocês, meus mariolas, meus tratantes,

Estão contando histórias das pessoas

De quem não são afetos, por que as levem,

Aos ouvidos do chefe, os seus lacaios;

Pois eu também já vou contar verdades,

55 — Em que possam falar os homens sérios

Inda daqui a mais de um cento de anos.

Recolhi-me à choupana e, de repente,

Sem tirar a gravata do pescoço,

Entrei a pôr em limpo esta cartinha,

60 — Que já, pelo caminho, vim compondo.

Entendo, Doroteu, que as nossas almas

Não são todas iguais; que o grande Jove

Fez umas de matéria muito pura,

Fez outras de matéria mais grosseira,

65 — Por não perder as borras que ficaram.

Entendo, ainda mais, que o dispenseiro,

Quando lhe vão pedir algumas almas,

Vai dando aquelas que primeiro encontra.

Por isto, às vezes, nascem os mochilas

70 — Com brios de fidalgos, outras vezes

Os nobres com espíritos humildes,

Só dignos de animarem vis Lacaios.

O nosso Fanfarrão, prezado amigo,

Vos dá mui boa prova: não se nega

75 — Que tenha ilustre sangue, mas não dizem,

Com seu ilustre sangue, as suas obras.

Apenas, Doroteu, a noite chega,

Ninguém andar já pode, sem cautela,

Nos sujos corredores de palácio,

80 — Uns batem com os peitos noutros peitos;

Outros quebram as testas noutras testas;

Qual leva um encontrão, que o vira em roda;

E qual, por defender a cara, fura,

Com os dedos que estende, incautos olhos.

85 — Aqui se quebra a porta e ninguém fala;

Ali range a couceira e soa a chave;

Este anda de mansinho, aquele corre;

Um grita que o pisaram, outro inquire

"Quem é? " a um vulto, que lhe não responde.

90 — Não temas, Doroteu, que não é nada,

Não são ladrões que ofendam, são donzelas

Que buscam aos devotos, que costumam

Fazer, de quando em quando, a sua esmola.

Chegam-se, enfim, as horas, em que o sono

95 — Estende, na cidade, as negras asas,

Em cima dos viventes espremendo

Viçosas dormideiras. Tudo fica

Em profundo silêncio, só a casa,

A casa aonde habita o grande chefe.

100 — Parece, Doroteu, que vem abaixo.

Fingindo a moça que levanta a saia

E voando na ponta dos dedinhos,

Prega no machacaz, de quem mais gosta,

A lasciva embigada, abrindo os braços;

105 — Então o machacaz, mexendo a bunda,

Pondo uma mão na testa, outra na ilharga,

Ou dando alguns estalos com os dedos,

Seguindo das violas o compasso,

Lhe diz–"eu pago, eu pago"–e, de repente,

110 — Sobre a torpe michela atira o salto.

Ó dança venturosa! Tu entravas

Nas humildes choupanas, onde as negras,

Aonde as vis mulatas, apertando

Por baixo do bandulho a larga cinta,

115 — Te honravam, c’os marotos e brejeiros,

Batendo sobre o chão o pé descalço.

Agora já consegues ter entrada

Nas casas mais honestas e palácios!

Ah! tu, famoso chefe, dás exemplo.

120 — Tu já, tu já batucas, escondido

Debaixo dos-teus tetos, com a moca

Que furtou, ao senhor o teu Ribério!

Tu também já batucas sobre a sala

Da formosa comadre, quando o pede

125 — A borracha função do santo entrudo.

Ah! que isto, sendo pouco, é muito!

Que os exemplos dos chefes logo correm

E corre muito mais, quando fomentam

Aqueles vícios, a que os gênios puxam.

130 — O tempo, Doroteu, voando foge

E nunca os de palácio imaginaram

Que tão veloz fugia, como agora.

Acaba-se a função, e chega o dia;

vem abrir as janelas um criado,

135 — E o chefe lhe pergunta que algazarra

Fizeram os mais servos toda a noite,

Que o não deixou dormir um breve instante.

O criado, que sabe que o bom chefe

Só quer que lhe confessem a verdade,

140 –O sucesso lhe conta, desta sorte:

“Fizemos esta noite um tal batuque!

Na ceia todos nós nos alegrávamos,

Entrou nele a mulher do teu lacaio;

Um só, senhor, não houve que, lascivo,

145 — Com ela não brincasse; todos eles,

De bêbedos que estavam, não puderam

O intento conseguir; só eu, mais forte…”

Apenas isto diz o vil criado,

O chefe as costas vira e lhe responde,

150 — Soltando um grande riso: “fora, fracos!”

Já disse, Doroteu, que as mocetonas

Só entram em palácio quando estende

A noite, sobre a terra, a negra capa;

Que a formosa virtude da cautela

155 — Até parece bem, naquele mesmo

A quem a profissão lhe não exige

Que viva recatado, como vivem

As moças, que inda querem ser donzelas.

Agora, Doroteu, julgar já podes

160 — Que saem de palácio muito cedo.

Assim é, Doroteu; as donzelinhas,

Pela porta travessa, vão saindo,

Mal tocam as garridas à primeira.

Mas a bela Rosinha fica e dorme,

165 — Nos braços de Matúsio, a madrugada;

Só sai de dia claro, e o grande chefe

Lhe atira uma pedrinha da janela,

Só para que lhe dê um ar de graça!

Que grande estimação, Rosica bela!

170 — Aqui se mostra bem, que as outras mocas

Não trazem, como trazes, lucro à casa.

Não há, prezado amigo, quem não queira

Mostrar-se liberal com sua dama.

Para dar-lhe o vestido, mais a capa,

175 — O manto, a saia, a meia, a fita, o pente.

Tira o pobre de si e, destro, furta

O peralta rapaz ao pai jarreta.

Eu mesmo, Doroteu, que fui dos santos

Que em Salamanca andaram, umas vezes

180 — Doenças afetava, outras fingia

Necessitar de livros, ou de um traste,

Para mandar de mimo a certo lente.

Maldita sejas, tu harpia Olaia,

Que, enquanto não abria a minha bolsa,

185 — Não mostravas, também, alegre, os dentes!

Esta paixão, amigo, que nos vence,

Nos próprios animais também se observa:

Esgravatam os galos sobre a terra

E, mal topam o grão ou a migalha,

190 — Contentes cacarejam, porque a moça

Se vá utilizar do seu trabalho.

O nosso ilustre chefe, que se julga

De mui diversa massa do que somos,

Neste ponto, também, também conhece

195 — Que está sujeito à miséria d’homem.

Nas obras, doce amigo, da cadeia,

Trabalham jornaleiros por salário.

Aqueles que carregam cal e pedra,

Só ganham, por semana, meia oitava;

200 — Aqueles que trabalham de canteiro,

Ao menos ganham, cada dia. um quarto.

Tem, pois, certa mocinha, quatro negros

Que apenas são serventes, mas o chefe

Ordena que, na féria, se lhes pague

205 — A quarto os seus jornais, e creio, amigo,

Que ainda não consente se descontem

Os muitos dias que nas obras faltam.

As casas onde mora esta madama

Ainda não estavam acabadas;

210 — Agora já de longe a cal alveja,

Quem entra dentro delas já recreia

Os olhos nas pinturas das paredes

E teto apainelado, a quem, um dia,

Supria, Doroteu, a grossa esteira.

215 — Não quis o nosso herói chamasse a moça,

Para mestre das obras, um pedreiro,

Entregou o conserto ao grão-tenente,

Que o fez baratinho, c’o massame

Que pertencia às obras da cadeia.

220 — Entende Fanfarrão que não devia

Deixar ao desamparo a sua dama;

Que a lei da Igreja pede que amparemos

As que, por nossa culpa, se perderam,

E a lei da fidalguia, que professa

225 — O nosso chefe, manda que ele ampare

As mesmas, que na fama já têm nota,

Contanto que isto seja à custa alheia.

Chama, pois, o bom chefe a um peralta,

Que era cabo de esquadra, e lhe comete

230 — A glória de casar com uma dama

Que, se não fez descer dos céus à terra

Ao Supremo Tonante, fez, contudo,

Humanizar um chefe, que descende

Da mais distinta, mais soberba raça.

235 — Que súbita alegria banha o rosto

Deste inocente cabo! Nos seus olhos

As lágrimas rebentam, e os seus beiços

Formar não podem uma só palavra.

A dita, Doroteu, é muito grande.

240 — Que fortuna não é casar um pobre

Com a rica viúva de um fidalgo?

Chamar ao fidalguinho, que ele deixa,

Ou enteado ou filho? Aparentar-se

Com todos os magnates desta terra

245 — Em grau tão conhecido e tão chegado?

Esta grande ventura, doce amigo,

Para todos não é. O negro demo

A quadra para prêmio dos serviços

Dos chefes principais dos seus bandalhos.

250 — Mas ah! prezado amigo, que o bom chefe

Já manda aparelhar as magras bestas,

Que têm de conduzir-lhe o pobre fato

Que trouxe lá da corte, e se o casquilho

Não chega a receber a cara esposa

255 — Primeiro que ele, no governo, morra,

Bem pode ser. amigo, se arrependa

E que, depois de ter cingido a banda

E empunhado o bastão, lhe pregue o mono.

Faltaram às promessas outros homens,

260 — Que, de honrados, nos deram muitas provas.

Como faltar não pode ao seu ajuste

Um fraco coração, uma alma indigna

Que, por tão baixo preço, a honra vende?

Cautela e mais cautela; sim, o chefe

265 — Não saberá mandar armadas tropas,

Nem saberá reger as cultas gentes,

Mas, para o não lograrem, sabe, astuto,

Dar todas as cadimas providências.

Escreve ao velho bispo e lhe suplica

270 — Que em todos os três banhos o dispense;

Não expende razão que justa seja,

Porem o velho bispo tem bom gênio

E em todos os proclamas o dispensa;

Que ele tem grandes letras e bem sabe

275 — Que os cânones da igreja não pensaram

Da espécie singular de quando um chefe

Quer, à pressa, casar a sua amásia.

Ah! se ele estas desordens não fizera,

Não daria motivo a ser cantado

280 –Por sábia, oculta musa, em um poema!

Agora inquirirás, prezado amigo,

Se é este sábio bispo aquele mesmo,

Que o bruto Fanfarrão, em certo dia,

Meteu na sua sege, ao lado esquerdo?

285 — É este, sim. senhor. o mesmo bispo,

A quem o nosso chefe desalmado,

Enquanto governou a nossa Chile,

Já dentro de palácio e já na rua,

Tratou como quem trata um vil podengo.

290 –De novo inquirirás: "Então um chefe,

Que trata, dessa sorte, ao seu prelado,

Atreve-se a pedir-lhe que lhe faça

Dispensa em uma lei, a benefício

Da sua torpe amásia?" Eu, doce amigo,

295 — Ainda duvidara, se pedira

Me desse absolvição dos meus pecados,

Ao ver-me para dar, a Deus, minha alma.

O mesmo, Doroteu, também fizeras;

Mas tu, prezado amigo, não conheces

300 — O sistema que tem tão vil canalha.

Uma mui grande parte destes chefes

Assenta em procurar seu interesse

Por todos os caminhos, e acredita

Que o brio e pundonor, que nós prezamos,

305 — São umas vãs fantasmas, que só devem

Honrar de simples voz aqueles homens,

Que vêm de uma distinta e velha raca.

Para estes a nobreza está nos termos

Do sórdido monturo em que se deita

310 — Quanta imundície têm as velhas casas.

Ditoso de quem vive, neste mundo,

No estado de ver rir os outros homens

Das suas vis ações, sem que lhe suba

Um vermelho sinal de pejo à cara!

315 — Mas ah! meu doce amigo, quanto, quanto

Se enganam estes monstros, que a nobreza

É um vestido branco, aonde, logo,

Aos olhos aparece a leve mancha!

Já chega, Doroteu, o alegre dia.

320 — O dia venturoso do noivado.

Entra, no santo templo, a linda esposa,

Coberta toda de umas novas graças.

Os seus louros cabelos não flutuam,

Levados pelo vento, a toda parte;

325 — Em tranças se dividem e se prendem

No pente, a quem esconde um branco laço;

Nos cabelos da frente resplandecem

Das pedras de mais custo, os fogos vários;

A sua testa iguala à pura neve

330 — E são da cor da rosa as suas faces;

São pérolas mimosas os seus dentes,

As gengivas rubis e os grossos beiços

Estão cobertos dos cheirosos cravos.

Talvez, talvez não fosse tão formosa

335 — A mesma, que obrigou ao forte Aquiles

A que, terno, vestisse a mole saia.

Neste sagrado templo não se adora

A imagem do Himeneu; aqui os noivos,

Para prova da fé que, eterna, dura,

340 — Não recebem na mão acesa tocha.

Ministro do senhor é quem os prende,

Cobrindo as castas mãos, com que se enlaçam.

Co,a branca ponta da pendente estola.

Aqui lascivas graças, nus amores

345 — Não cercam os consortes, nem meneiam,

Em torno dos altares e das piras,

Os vistosos festões de lindas flores.

Aqui, aqui só entram as virtudes,

A cândida modéstia, a inocência,

350 — A santa honestidade e a vergonha.

São estas e não outras as que correm

A receber, à porta do edifício,

Os sinceros amantes; sim, são estas,

São estas e não outras, as que espalham,

355 — Debaixo dos seus pés, cheirosas folhas

E as que fazem queimar, sobre os braseiros,

O incenso devoto e os mais aromas.

Recebem estes gênios aos dois noivos

E, ao ministro do altar, os apresentam.

360 — Ah! formosa Marília, agora, agora

Se aumentam tuas graças, pois te aviva

A cor da linda face um novo pejo!

Com que custo não dás a mão nevada

Ao teu amado Adônis, que a recebe

365 — Como quem lucra nela o seu tesouro!

Já não veste Jelônio a grossa farda

Com divisas de lã e, sobre a testa,

Não põe a barretina, que enfeita

Com armas e botões de grosso estanho.

370 — Já não cinge as correias amarelas,

Nem carrega, na cinta, o peso enorme

Dos férreos copos da comprida espada.

Jelônio se mudou, Jelônio é outro.

Já brilham, nos canhões, os alamares

375 — Das finas lentejoulas, e, nos ombros,

Já brilham as dragonas, enfeitadas

C’os grandes cachos das lustrosas flores.

Jelônio se mudou, Jelônio é outro.

A veste de cetim já resplandece

380 — Orlada co’o galão da fina prata,

E, por cima da veste, já se enrola,

Na cintura, a vermelha e rica banda.

Jelônio se mudou, Jelônio é outro.

Como está belo! Como está casquilho!

385 — Concerta do babado a fina renda,

Olha uma e outra vez os alamares

Endireita a cucula, estende a perna;

Não consente um só fio sobre a farda;

Levanta o pescocinho, morde os beiços,

390 — E o seu cabelo, com a mão, afaga.

Jelônio se namora de si mesmo,

Ainda, ainda mais que o terno Adônis,

Quando viu o seu rosto dentro d’água.

Jelônio se mudou, Jelônio é outro.

395 — Então, os militares que o rodeiam,

Amado Doroteu, risonhos, mofam.

Um pisa com o pé nos pés vizinhos;

Puxa outro pelas pontas das fardetas

Aos amigos chegados; este acena

400 — C’os olhos e cabeça aos companheiros

Que lhe ficam defronte; aquele tapa,

Fingindo que tem tosse, a alegre boca;

Qual foge da presença… mas que vejo!

Tu, Doroteu, carregas sobre os olhos

405 — As grossas sobrancelhas? Tu enrugas

A testa levantada? Tu inflamas

As faces já desfeitas e suspiras?

Acaso tu presumes que eu murmuro

Do fato de casar o nosso chefe

410 — A sua terna amásia? Não, amigo,

Eu conheço, também, aonde chegam

Os deveres de quem nasceu fidalgo:

Obrou o nosso chefe o que eu faria.

Murmuro, Doroteu, mas é do dote;

415 — Do dote, sim, do dote. Dize, a banda,

O castão de coquilho, as mais insígnias,

São dotes que se dêem a um soldado,

Porque serviu ao chefe, em receber-lhe,

Sem vergonha do mundo, a sua amiga?

420 — Não achas insolência e desaforo

Ver os porta-bandeiras, os cadetes,

E os furriéis já velhos, preteridos

Só para-premiar-se com o posto,

Que por lei lhes pertence, um torpe crime?

425 — São estes, Doroteu, os grandes cabos,

De quem a triste pátria fiar deve

A sua salvação? São estes? Dize…

Agora já te calas. Pois não tornes

A mostrar-me, outra vez, o gesto irado,

430 — Que um dia hei-de enfadar-me e, se me enfadas,

Ainda que me pecas de joelhos,

Não hás-de receber da minha pena,

Em verso ou prosa, mais uma só carta.

CARTA 12ª

Aquele que se jacta de fidalgo

Não cessa de contar progenitores

Da raça dos suevos, mais dos godos;

O valente soldado gasta o dia

5 — Em falar das batalhas, e nos mostra

Das feridas, que preza, cheio o corpo;

O louco namorado não descansa

Enquanto tem quem ouça as aventuras,

Que fez com as madamas, mais senhoras,

10 — Benzendo-se mil vezes, quando chega

Aos lances apertados de ser visto

Dos maridos, dos pais e dos parentes,

Em que, só por milagre, não foi morto.

Assim, assim, também, o teu Critilo

15 — Não cansa de escrever-te, enquanto encontra

Do tolo Fanfarrão, do indigno chefe,

Estranhas bandalhices, que te conte.

Ah! sofre, amigo, que te gaste o tempo,

Pois conter-se não pode, bem que queria,

20 — Que a força da paixão assopra a chama,

A chama ativa do picante gênio.

Já sabes, Doroteu, aonde chega

Do nosso Fanfarrão a bizarria,

Em premiar serviços de uma dama.

25 — Agora, nesta carta, vou mostrar-te

Até aonde chegam as grandezas

Que fez com os marotos, por que tenhas,

Do seu fidalgo gênio, noção clara.

Qual negra tempestade, que carrega

30 — As nuvens de cupins e de formigas,

Que criam, com as chuvas, longas asas,

Assim o nosso chefe traz consigo,

Arribação infame de bandalhos,

Que geram, também, asas, com a muita,

35 — Nociva audácia que lhes dá seu amo.

Na corja dos marotos aparece

Um magriço mulato, a quem o chefe,

Por ocultas razões estima e preza.

Talvez que, noutro tempo, lhe levasse

40 — Os miúdos papéis às suas damas.

Ocupação distinta, que já teve

Um famoso Mercúrio, que comia

Sentado à mesa dos mais altos deuses.

Deseja o nosso chefe que este lucre

45 — Quatrocentas oitavas, pelo menos,

E, para que não saiam de seu bolso,

Descobre esta feliz e nova idéia:

Dispõe dos bens alheios como próprios.

No público teatro de Lupésio

50 — Ordena, Doroteu, se represente

Uma vista comédia, por que fiquem,

Para o velho mulato, os lucros dela.

Ordena, ainda mais, que o seu Robério

Os boletos reparta pelas damas,

55 — Pelos contratadores opulentos

E por quantos casquilhos os quiserem

Pagar, ao menos, por dobrado preço.

Robério assim o faz; supõe, coitado,

Que prometeu pedir alguma missa.

60 — E, junto c’o mulato, vai entrando

Em uma e outra casa, aonde deixa

Ou selado papel, para a platéia,

Ou, com tábua pendente, a velha chave.

Ah! nota, Doroteu, que ação tão feia!

65 — Aquele bruto chefe que não paga,

As pessoas mais nobres, o cortejo

Sequer por um criado, agora manda

Que o seu próprio Robério, o seu bom aio.

Ande de porta em porta, qual mendigo,

70 — Pedindo para um bode a benta esmola!

Então, amigo, a quem? a quem? aos mesmos

Que tem desfeiteado muitas vezes

E às pobres, que é mais, às pobres moças

Que hão-de ganhar, à custa de seu corpo,

75 — Com que possam pagar deste convite

Um tão avantajado, indigno preço.

Maldito sejas tu, pouca vergonha,

Que tanto influxo tens sobre este leso!

Chegou-se, Doroteu, a noite alegre

80 — Destinada à função, e o vil Robério

Dá nova prova de fervor e zelo:

Vai-se pôr, com o traste do mulato,

Na porta da platéia, e, quando acaba

A primeira jornada, também corre

85 — Os cheios camarotes: fina idéia!

Para ver se os tolinhos, assim, largam,

Na copa do chapéu, que a esmola apanha,

Embrulhos de mais peso ! Ah ! doce amigo,

Quem bandalho nasceu, ainda que suba

90 — Ao posto de maior, morreu bandalho,

Que o tronco, se dá fruto azedo, ou doce,

Procede da semente e qualidade

Da negra terra, em que foi gerado.

Servia-se este chefe de um lacaio,

95 — E, por não lhe pagar salário certo,

Deu neste ardil, também: quando ia às festas

Lhe dava o seu brandão, e as mais pessoas,

Que estavam na tribuna, por obséquio,

Lhe davam as compridas, grossas velas.

100 — Se dava algum despacho, de que vinha

Proveito à parte rica, lho entregava,

Por que fosse ganhar o grande prêmio

Com que os néscios, servidos, o brindavam.

Nas vésperas, amigo, da partida,

105 — Tratou de lhe fazer maior a safra:

Passou atestações a todo mundo

E, sem saber se o mundo lh’as queria,

Mandou ao mesmo servo as entregasse

E os prêmios do trabalho recolhesse!

110 — Maldita sejas tu, pouca vergonha,

Que tanto influxo tens sobre este leso!

Havia, Doroteu… mas não gastemos

O tempo em referir mais bandalhices

Da mesma natureza; refiramos

115 — Outras, que sejam de diversa classe.

Não quero, Doroteu, que o justo tédio,

Que infunde a semelhança, te duplique

O tédio, que produz a minha frase.

Fizeram os devotos de uma imagem,

120 — Da festa protetor, ao grande chefe.

Aceita o Fanfarrão do cargo a honra

E medita fazer um grão festejo.

Ordena aos cavalheiros, que vieram

Correr as argolinhas, em obséquio

125 — Do ditoso consórcio dos infantes,

Que esperam, nesta terra, à sua custa,

E que, nos dias da função, repitam

Os feitos jogos, com o mesmo lustre.

Manda que o grande curro, que o Senado

130 — Fez levantar, na praia, permaneça,

E venham os boizinhos, que, por serem

Mais bravos do que os outros, se guardaram,

Mal rapavam o chão e mal corriam,

Atrás do mau capinha, no terreiro.

135 — Eis aqui, eis aqui, amigo, o como

Se fazem coisas grandes, sem despesa.

Manda mais o bom chefe que se aluguem

Os palanques a quatro oitavas d’ouro,

Para que se comprasse um patrimônio,

140 — A sacrossanta imagem, deste lucro.

Que sábias intenções, que fins tão santos!

Celebram-se os festins e não escapa

Um camarote só, que não se alugue;

Mas deste rendimento não se sabe,

145 — Que a compra se meteu, de todo, à bulha.

Não penses, Doroteu, que o nosso chefe

Comeu este dinheiro. Longe, longe

De nós este tão baixo pensamento.

Indo já no caminho, o seu Matúsio

150 — Passou, sobre Marquésio, certa letra.

Para que se pagasse ao Santo Cristo.

Agora considera se este fato

Não mostra que ele zela a consciência.

Agora inquirirás se o tal Marquésio

155 — Pôs na sacada letra o seu "aceito".

Não pôs, não pôs, amigo, porque disse

Que deste passador não tinha efeitos.

Porem o bom Matúsio, mais seu amo,

Levam as consciências descansadas,

160 — Pois não devem supor, pelo costume,

Que a letra não pagasse o mau rendeiro.

Maldita sejas tu, pouca vergonha,

Que tanto influxo tens sobre este leso!

Roubou um seu criado a certa escrava

165 — E dentro lha meteu, do seu palácio.

Conheceu o senhor quem fez o furto,

E foi pedir ao chefe que mandasse

Que o terno roubador restituísse

A serva, com os lucros! pois cedia

170 — De toda a mais ação, que a lei lhe dava.

Que entendes, Doroteu, que obrou o chefe?

Que fez um sério exame sobre o caso?

Que, conhecendo ser a queixa justa,

Meteu, em duros ferros, ao criado?

175 — Que não lhe perdoou, enquanto o mesmo

Ofendido queixoso não lhe veio

Suplicar o perdão da culpa grave?

Devias esperar que assim fizesse,

Mas, quando a razão pede certa coisa,

180 — Ele, então, executa o seu contrário.

Não zela, Doroteu, a sã justiça,

Nem zela a honra própria, maculada

Na sua habitação, que o servo muda

Em torpe lupanário. Não, não zela;

185 –Antes, prezado amigo, austero, estranha

Ao mísero queixoso, que se atreva

A supor que os seus servos são capazes

De poderem obrar excessos destes.

Maldita sejas tu, pouca vergonha,

190 — Que tanto influxo tens sobre este leso.

Passados alguns tempos, Ludovino

Encontrou, uma noite, a sua escrava

E à casa conduziu do bom Saônio,

Aonde, em hospedagem, se abrigava.

195 — Aqui lhe perguntou a longa história

Da fugida que fez, e a triste serva,

Com animo sincero, assim lhe fala:

"Ribério me induziu a que fugisse,

Meteu-me no seu quarto, aonde estive,

200 — Fechada, muitos dias. Alugou-me,

Depois, uma casinha; aqui me dava,

Dos sobejos da mesa de seu amo,

Para eu alimentar a pobre vida.

Tive dele dois filhos; o demônio

205 –Enganou-me, senhor, cuidei… “E, nisto,

Queria mais dizer, porem, de pejo,

As lágrimas lhe estalam, e se cortam

As últimas palavras, com suspiros.

Agora dirás tu, amigo honrado:

210 — "Agora, agora sim, agora é tempo,

Insolente Ribério, de nós vermos,

Para exemplo dos mais, o teu castigo.

Os soldados já marcham, já te prendem,

Já vens maniatado, já te metem

215 — Na sórdida enxovia, já te encaixam,

No pescoço, a corrente, e vais marchando

Com rosto baixo, a ver Angola ou Índia.”

Devagar, devagar com essas coisas:

Os servos de palácio são os duques

220 — Do nosso Santiago, e não se prendem

Por essas, nem por outras ninharias.

Atrevidos soldados já se aprontam,

Mas não para prenderem a Ribério,

Sim para conduzirem, entre as armas,

225 — Ao pobre Ludovino e à sua serva,

Que já buscando vão à sua casa,

Que dista desta terra muitas léguas.

É o mesmo Ribério quem

A fazer, Doroteu, a diligência,

230 — Cobrindo a testa da insolente esquadra.

Já viste, Doroteu, insultos destes?

Já viste que pertenda um homem sério

Que, à força, um bom senhor de si demita

A escrava desonesta, porque possa

235 — Ficar na mancebia? Já, já viste

Que se mande prender ao ultrajado

Pelo mesmo ladrão? Ah! caro amigo

Que, destas insolências que te conto,

Apenas pode ver quem mora em Chile!

240 — Maldita sejas tu, pouca vergonha,

Que tanto influxo tens sobre este leso!

Há, nesta grande terra, um homem sábio

E o único formado em medicina.

A este bom doutor estimam todos,

245 — Por sua profissão, por seus talentos,

Por seu afável modo e, mais que tudo,

Pelas muitas virtudes que respira.

Curava o nosso sábio a certo enfermo

E, vendo a vária febre e os mais sinTomás,

250 — Ordena que ele tome um copo d’água

A que dá de Inglaterra o povo o nome.

Manda-lhe o boticário uma botelha,

Que já servido tinha; o sábio, atento

A que ela poderia ter perdido

255 — A força natural, a não aprova

E passa a receitar outro composto,

Que possa produzir o mesmo efeito.

Chorando, o boticário sobe ao chefe

E diz-lhe que o doutor a rejeitara.

260 — Por ser seu inimigo e, desta sorte,

Tirar-lhe, da botica, o bom conceito.

Manda o chefe chamar aos boticários

E manda que examinem a garrafa;

Concordam os doutores que não tinha.

265 — Ainda, corrupção, talvez por verem

Que ainda conservava algum amargo.

Então, então o chefe, enfurecido,

Ordena ao ajudante que, ali mesmo,

Avise ao professor que ele tem ferros,

270 — Cadeias e galés, com que reprima,

Se neles prosseguir, os seus excessos.

Maldita sejas tu, pouca vergonha,

Que tanto influxo tens sobre este leso!

Pensavas, Doroteu, que o nosso chefe

275 — Passasse à insolência, que refiro,

De insultar, por amor de um vil mulato,

Um velho professor tão bem aceito,

Um velho professor, alem de sábio,

Na terra singular, no seu oficio?

280 –Não, meu prezado amigo, não pensavas;

Pois quero, Doroteu, dizer-te a causa:

Esta grave ameaça e grave insulto

Foi feita em tom de paga, porque o bode

Curava, cuidadoso, ao próprio chefe,

285 — De mal oculto, que a modéstia cala.

Maldita seja tu, pouca vergonha,

Que tanto influxo tens sobre este leso!

Ah! dize, Doroteu, por que motivo

O pai de Fanfarrão o não pôs antes

290 — Na loja de algum hábil sapateiro,

C’os moços aprendizes deste oficio?

Agora dirás tu: "Nasceu fidalgo

E as grandes personagens não se ocupam

Em baixos exercícios." Nada dizes.

295 — Tonante, Doroteu, é pai dos deuses:

Nasceu-lhe o seu Vulcano e nasceu feio.

Mal o bom pai o viu, pregou-lhe um coice

Que o pôs do Olimpo fora, e o pobre moço

Foi abrir uma tenda de ferreiro.

CARTA l3ª

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Ainda, caro amigo, ainda existem

Os vestígios dos templos suntuosos

Que a mão religiosa do bom Numa

Ergueu o Marte e levantou a Jano.

5 — Ainda, ainda lemos que elegera,

Para estas divindades, sacerdotes,

E que muitas donzelas consagrara,

Afim de conservar-se, aceso, o fogo,

Em o templo de Vesta, sobre as aras.

10 — Também, também sabemos que este sábio,

Para ter mais conceitos entre o seu povo,

Fingiu que a ninfa Egéria, sendo noite,

Vinha falar com ele, e que, benigna,

A forma do goveno lhe inspirava.

15 — O mesmo fez Sertório, que dizia

Que nada executa, que não fosse

Ensinado por uma branca cerva,

Que, a deusa caçadora lhe mandara.

Mafoma, o vil Mafoma, astuto segue

20 — Também este sistema: ao seu ouvido

Acostuma a chegar-se a mansa pomba.

A nação, ignorante, se convence

De que este seu profeta conhecia

Os segredos do céu, por este meio.

25 — Não há, meu Doroteu, não há um chefe,

Bem que perverso seja, que não finja,

Pela religião, um justo zelo,

E, quando não o faça por virtude,

Sempre, ao menos, o mostra por sistema.

EPÍSTOLA A CRITILO

Qual seja o original. Dentro em minha alma

Vejo, ó Critilo, do chileno chefe,

Tão bem pintada a história nos teus versos,

Que não sei decidir qual seja a cópia,

Qual seja o original. Dentro em minha alma

5 — Que diversas paixões, que afetos vários

A um tempo se suscitam! Gelo e tremo,

Umas vezes de horror, de mágoa e susto;

Outras vezes do riso apenas posso

Resistir aos impulsos. Igualmente

10 — Me sinto vacilar entre os combates

Da raiva e do prazer. Mas ah! que disse!

Eu retrato a expressão, nem me subscrevo

Ao sufrágio daquele, que assim pensa,

Alheio da razão, que me surpreende.

15 — Trata-se aqui da humanidade aflita;

Exige a natureza os seus deveres.

Nem da mofa ou do riso pode a idéia

Jamais nutrir-se, enquanto aos olhos nossos

Se propõe do teu chefe a infame história.

20 — Quem me dirá que da estultice as obras

Infestas à virtude e dirigidas

A despertar o escândalo conseguem,

No prudente varão, mover o riso?

Eu veio que um Calígula se empenha

25 — Em fazer que de Roma ao Consulado,

Se jure o seu cavalo por colega.

Vejo que os cidadãos e as tropas arma

O filho de Agripina, que os transporta

Em grossos vasos sobre o Tibre e logo

30 — Por inimigos lhes assina os matos,

Que atacar manda com guerreiro estrondo.

Direi que me recreia esta loucura?

Que devo rir-me e sufocar o pranto

Que pula dos meus olhos? Não, Critilo,

35 — Não é esta a moção que n’alma provo.

Por entre estes delírios, insensível,

Me conduz a razão, brilhante e sábia,

A gemer igualmente na desgraça

Dos míseros vassalos, que honrar devem,

40 — De um tirano o poder, o trono, o cetro.

Se Talia e Melpômene nos pintam,

Nos seus teatros, paixões humanas,

Ao ridículo gesto, ou ao semblante

Da cena que o coturno me apresenta,`

45 — Eu me conformo ao interesse, quando

Aborreço a maldade e quando rendo

À formosa virtude os dignos votos.

Despedace Medéia os caros filhos,

Guise Atreu de seus netos as entranhas,

50 — Eu terei sempre horror às impiedades.

Jamais da irreligião, da fé mentida

Me hão-de enganar os pérfidos rebuços

Ou da fingida cena os vãos adornos.

Devo pois confessar, Critilo amado,

55 — Que teus escritos, de uma idade a outra

Passarão, sempre de esplendor cingidos:

Que a humanidade, enfim desagravada

Das injúrias que sofre, por teu braços,

Os ferros soltará, que desafrouxa,

60 — Tintos do fresco, gotejado sangue.

Súditos infelices, que provastes

Os estragos da bárbara desordem,

Respirai, respirai: ao benefício

Deveis do bom Critilo a paz suave,

65 –Que a vossa liberdade alegre goza,

Sim, Critilo, são estes os agouros

Que, lendo a tua história, ao mundo faço.

De pejo e de vergonha os bons monarcas,

Que pias intenções sempre alimentam,

70 — De reger como filhos os seus povos,

Tocados se verão. Prudentes, sábios,

Consultarão primeiro sobre a escolha

Daqueles chefes, que a remotos climas

Determinam mandar, deles fiando

75 — A importante porção do seu governo.

Prevenidos que a vã, brutal soberba

Só nas obras influi destes monstros,

Pelo escrutínio da virtude espero,

Que regulados os seus votos sejam.

80 –De uma estéril mortal genealogia

0 Que o mérito produz de seus maiores,

Eles, amigo, argumentar não devem

Propalados talentos. A virtude

Nem sempre aos netos, por herança, desce.

85 — Pode o pai ser piedoso, sábio e justo,

Manso, afável, pacífico e prudente:

Não se segue daí que um ímpio filho,

Perverso, infame, díscolo e malvado,

Não desordene de seus pais a glória.

90 — Nem sempre as águias de outras águias nascem,

Nem sempre de leões, leões se geram,

Quantas vezes as pombas e os cordeiros

São partos dos leões, das águias partos!

Para reger, ó rei, os vossos povos,

95 — Debalde ides buscar brasões e escudos

Entre os vossos dinastas. Roma, Roma

As fasces, as secures, mais as outras

Imperiais insígnias só tirava

Da provada virtude. Se das togas

100 — Distinguia uma e outra espécie, Atenas

1! quem a todas o caráter dava.

Igualmente civil jurisconsulto

Que instruído guerreiro, era mandado

Um cidadão que da província as rédeas

105 — Manejasse fiel. Daqui os Fábios,

Daqui os Cipiões e os bons Emílios,

Os Césares daqui, que os fastos ornam.

Quão diferentes, hoje, os nossos grandes!

É filho do marquês, do conde é filho,

110 — Vá das Índias reger vasto império.

() Deus! e que infelices os vassalos

Que tão longe do trono prostitui

O vosso império aos abortivos chefes!

Lá vai aquele, que de avara sede

115 — E por gênio arrastado: que tesouros

Não espera ajustar! Do alheio cofre

Se há-de esgotar a aferrolhada soma.

Desgraçada Justiça! Da igualdade

Tu não sabes o ponto: é a balança

120 — Do interesse que só por ti decide.

Que despachos injustos, que dispensas.

Que mercês e que postos não se compram

Ao grave peso de selada firma!

Outro vai que, lascivo, e desenvolto

125 — Só da carne as paixões adora e segue.

Honras, decoros, vós sereis despojos

Do seu bruto apetite. Em vão, cansados

Pais de família, zelareis vós outros

Da vossa casa o pundonor herdado.

130 — Aos vis ataques do atrevido orgulho

Hão-de ceder as prevenções mais fortes;

Vítimas da voraz sensualidade

Vossas filhas serão, vossas mulheres.

Que direi do soberbo, do vaidoso,

135 — Do colérico e de outros vários monstros,

Que freio algum não conhecendo, passam

A sustentar no autorizado cargo

Tudo quanto a paixão lhes dita e manda!

Não sofre aquele, que o vassalo oculte

140 — os cabedais que à sua indústria deve

E que a seus filhos e a seus netos, possa

Deixar, morrendo, uma opulenta herança.

Um falso crime lhe figura, aonde

Esgote as forças, que levar procura

145 — Alem das frias, apagadas cinzas.

Este medita que a nobreza ilustre

Sufocada se veja. A prisão dura,

O distante degredo é que promete

Da prevista vingança o fim prescrito.

150 — Ó senhores! ó reis! ó grandes! quanto

São para nós as vossas leis inúteis!

Mandais debalde, sem julgada culpa,

Que o vosso chefe, a arbítrio seu, não possa

Exterminar os réus, punir os impios.

155 — É c’os ministros de menor esfera

Que falam vossas leis. Nos chefes vossos

Somente o despotismo impera e reina.

Gozar da sombra do copado tronco

É só livre ao que perto tem o abrigo

160 –Dos seus ramos frondosos. Se se aparta

Da clara fonte o passageiro, prova

Turbadas águas em maior distancia.

Mas ah! Critilo meu, que eu estou vendo,

Que já chegam a ler as cartas tuas:

165 — Estes bárbaros monstros são cobertos

De vivo pejo, ao ver os seus delitos,

Que em tão disforme vulto, hoje aparecem.

Destro pintor, em um só quadro a muitos

Soubeste descrever. Sim, que o teu chefe

170 — As maldades de todos compreende.

Aqui vê-se o soberbo, que pensando

Do resto dos mais homens nada serem,

Mais que humildes insetos, só de fúrias

Nutre o vil coração e a seus pés calca

175 — A pobre humanidade. Aqui se encontra

O ímpio, o libertino, que ultrajando

Tudo que é sagrado, tem por timbre

Ao público mostrar, que o santo culto

Que nos intima a religião, somente

180 — Aos pequenos obriga, e que por arte

Os conserva a ilusão no fanatismo,

Porque da obediência às leis se dobrem;

Aqui se acha o lascivo; é o vaidoso,

1! o estúpido, enfim é o demente

185 — O que ao vivo aparece nesta empresa.

Tu, severo Catão, tu repreendes

Com teu mudo semblante a pátria Roma.

Nem seus teatros de lascívia cheios

Sofrem teus olhos nobremente irados.

190 — Pede o congresso, de terror ferido,

Que o rígido censor o circo deixe

Ou que se não produza a torpe cena.

Este, ó Critilo, o precioso efeito

Dos teus versos será, como em espelho,

195 –Que as cores toma e que reflete a imagem,

Os ímpios chefes de uma igual conduta

A ele se verão, sendo argüidos

Pela face brilhante da virtude,

Que, nos defeitos de um, castiga a tantos.

200 — Lições prudentes, de um discreto aviso,

No mesmo horror do crime, que os infama,

Teus escritos lhes dêem. Sobrada usura

É este o prêmio das fadigas tuas.

Eles dirão, voltando-se a Critilo:

205 — Quando devemos, ó censor fecundo,

Ao castigado metro, com que afeias

Nossos delitos, e buscar nos fazes

Da cândida virtude a sã doutrina!

FIM

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