História de Jenni

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Voltaire

Apresentação

A “História de Jenni” foi escrita por Voltaire nos seus
últimos anos de vida. O mesmo escritor crítico, irônico
e sarcástico tornou-se mais severo. Já havia sido criticado
com veemência, por suas idéias e comentários desairosos
ao clero, especialmente os jesuítas, aos nobres e reis. Foi preso e
depois perseguido por toda a Europa, mesmo quando enaltecido pelo indiscutível
valor de seus conceitos, não deixou de sofrer perseguições.

Nesta obra Voltaire debruça sua língua viperina sobre a “religião
revelada” e os dogmas do catolicismo. Mas a carga maior de veneno recai
sobre o ateísmo de D’Holbach. Veja-se com que peso desfere seu
ataque a ateus e supersticiosos:

A crença num Deus remunerador das boas ações, punidor
das más, perdoador das faltas leves, é pois a crença
mais útil ao gênero humano; é o único freio dos
poderosos, que cometem insolentemente os crimes públicos; é
o único freio dos homens que cometem disfarçadamente os crimes
secretos. Não vos digo, meus amigos, que junteis, a essa crença
necessária, superstições que a desonrariam e que até
poderiam torná-la funesta: o ateu é um monstro que só
devorará para apaziguar a fome; o supersticioso é outro monstro
que estraçalhará os homens por dever. Sempre notei que se pode
curar um ateu, mas jamais se cura radicalmente a um supersticioso; o ateu
é um homem de talento que se engana, mas que pensa por si mesmo; o
supersticioso é um tolo brutal que jamais teve senão as idéias
dos outros.

Voltaire, como em outros textos, revela uma aparente ambiguidade quando
se refere aos judeus, mas apenas aparente. Se critica os judeus da História,
pelos crimes e males cometidos; por outro lado os defende como seres humanos.
Dois trechos são significativos:

— E mesmo que ele fosse judeu – respondeu o nosso amigo com
o seu sangue-frio habitual, – fica-lhe bem, senhor Caracucarador, assar
pessoas porque pertencem a uma raça que habitava outrora um pequeno
cantão pedregoso próximo ao deserto da Síria? Que lhe
importa que um homem tenha ou não tenha prepúcio e que comemore
a páscoa na lua cheia de abril ou no domingo seguinte?

Desertos tão horrendos, tão inabitáveis, que esses
animais ferozes chamados judeus se julgaram no paraíso terrestre quando
passaram, daqueles lugares de horror, para um recanto de terra onde se podiam
cultivar algumas jeiras.

Tema recorrente, em Voltaire, é o canibalismo que, em sua época
ainda era prática encontradiça em diversas culturas. Se sempre
se referiu ao costume de forma satírica, agora o faz com sarcasmo virulento:

Freind mostrou-se muito bem impressionado com essa máxima; mas observou
que o costume de devorar mulheres era indigno de tão brava gente e
que, com tantas virtudes, não deviam ser antropófagos.

O chefe das montanhas perguntou-nos então o que fazíamos com
os nossos inimigos, depois de os matar.

— Nós os enterramos – respondi-lhe.

— Quer isto dizer – retrucou – que os dais de comer aos
vermes. Nós queremos a primazia; nossos estômagos são
uma sepultura mais honrosa.

O texto merece ser lido com especial carinho, contém uma síntese
e soma das idéias filosóficas que Voltaire desenvolveu durante
toda uma vida com extraordinário gênio e competência que,
infelizmente, muitos dos que viveram seu tempo não foram capazes de
compreender.

Nélson Jahr Garcia

CAPÍTULO I

Vós me solicitais, senhor, alguns pormenores acerca de nosso amigo,
o respeitável Freind, e de seu estranho filho. O lazer de que afinal
disponho após a reforma de milorde Peterborou permite-me atender-vos
satisfatoriamente. Ficareis tão espantado quanto eu, e compartilhareis
de todos os meus sentimentos.

Quase não vos avistastes com esse jovem e infeliz Jenni, filho único
de Freind, que o levou consigo à Espanha quando era capelão
de nosso exército, em 1705. Vós partistes para Alep antes que
milorde cercasse Barcelona; mas tendes razão em dizer que Jenni possuía
um aspecto dos mais amáveis e atraentes e denotava coragem e espírito.
Nada mais verdadeiro; era impossível vê-lo sem estimá-lo.
O pai o destinara primeiramente à Igreja; mas, tendo o jovem demonstrado
repugnância a essa condição que demanda tanto engenho,
circunspeção e finura, julgou aquele sensato pai que seria um
crime e uma tolice forçar a natureza.

Jenni ainda não contava vinte anos. Fez questão absoluta de
servir como voluntário no ataque a Montjuich, que nós vencemos,
e onde foi morto o príncipe de Hesse. O nosso pobre Jenni, ferido,
foi feito prisioneiro e levado para a cidade. Eis uma fiel narrativa do que
lhe aconteceu desde o ataque de Montjuich até a tomada de Barcelona.
Esse relato é devido a uma catalã um pouco livre e ingênua
demais; tais escritos não chegam até o coração
do sábio. Apreendi o referido escrito em casa dela, quando entrei em
Barcelona com milorde Peterborou. Vós o lereis sem escândalo,
como um fiel retrato dos costumes do país.

AVENTURAS DE UM JOVEM INGLÊS CHAMADO JENNI

escritas por mão de doña Las Nalgas

Quando nos disseram que os mesmos selvagens que tinham chegado pelos ares,
de uma ilha desconhecida, para tomar-nos Gibraltar, vinham cercar a nossa
bela cidade de Barcelona, começamos por fazer novenas à Santa
Virgem de Manreze, o que é sem dúvida a melhor maneira de nos
defendermos.

Esse povo, que nos vinha atacar de tão longe, tem um nome difícil
de pronunciar, pois é english. Nosso reverendo padre inquisidor dom
Jerónimo Bueno Caracucarador pregou contra esses salteadores. Lançou
contra eles uma excomunhão-mor em Nossa Senhora del Pino. Assegurou-nos
que os english tinham cauda de macaco, patas de urso e cabeça de papagaio;
que na verdade falavam algumas vezes como os homens, mas que silvavam quase
sempre; que eram, aliás, notoriamente heréticos; que a Santa
Virgem, que é muito favorável aos outros pecadores e pecadoras,
jamais perdoava aos heréticos, e que por conseguinte seriam todos infalivelmente
exterminados, sobretudo se se apresentassem diante de Montjuich. Mal acabara
ele o seu sermão, soubemos que Montjuich fora tomado de assalto.

À noite soubemos que nesse assalto havíamos ferido a um jovem
english e que ele se achava em nossas mãos. Gritaram por toda a cidade:
Vitória! Vitória! e acenderam-se luminárias.

Doña Boca Bermeja, que tinha a honra de ser amante do reverendo padre
inquisidor, sentiu extremos desejos de ver como era feito um animal english
e herético. Era minha amiga íntima. Sentia-me tão curiosa
quanto ela. Mas foi preciso esperar que ele se curasse do ferimento, o que
não demorou.

Soubemos logo depois que ele deveria tomar banhos no estabelecimento de
meu primo Elvob, que é como se sabe, o melhor cirurgião da cidade.
Em minha amiga Boca Bermeja, redobrou a impaciência de ver tal monstro.
Não tivemos descanso, nem o demos a meu primo, enquanto não
nos ocultou em um vestiário, atrás de uma veneziana pela qual
se enxergava o banheiro. Ali entramos na ponta das pés, sem o mínimo
ruído, sem uma palavra, sem nos atrevermos a respirar, precisamente
no instante em que o english saia de dentro d’água. Seu rosto
não se achava voltado para nós; retirou um pequeno barrete sob
o qual estavam enrolados os seus cabelos loiros que tombaram em grossos cachos
sobre o mais belo dorso que já vi em minha vida; seus braços,
suas coxas, suas pernas, me pareceram de uma carnação, de um
acabado, de uma elegância que se aproxima, a meu ver, do Apolo de Belvedere
de Roma, cuja cópia se acha em casa de meu tio escultor.

Doña Boca Bermeja achava-se extasiada de surpresa e encantamento.
Quanto a mim, sentia-me igualmente arrebatada. Não pude deixar de dizer:
Oh, que hermoso muchacho! Essas palavras, que me escaparam, fizeram o jovem
voltar-se. Ai foi muito pior; vimos o rosto de Adônis sobre o corpo
de um jovem Hércules. Por pouco doña Boca Bermeja não
tombou para trás e eu também. Seus olhos se incenderam, cobrindo-se
de leve orvalho, através do qual se entreviam flamas. Não sei
o que aconteceu aos meus.

Quando voltou a si: “S. Tiago (me disse ela) e Santa Virgem! E assim
que são os hereges? Oh! Como nos enganaram.”

Saímos o mais tarde que pudemos. Boca Bermeja foi logo acometida
do mais violento amor pelo monstro herético. Ela é mais bonita
do que eu, confesso-o; e confesso também que me senti duplamente enciumada.
Fiz-lhe ver que perdia a alma traindo o reverendo padre Inquisidor dom Jerónimo
Bueno Caracucarador, com um english. “Ai, minha querida Las Nalgas –
disse-me ela (pois Las Nalgas é o meu nome) – eu seria capaz
de trair Melquisedeque por esse belo rapaz”. Ela não deixou de
o fazer e, já que é preciso dizer tudo, concorri secretamente
com muito mais do que o dízimo das oferendas.

Um dos familiares da Inquisição, que ouvia quatro missas por
dia para obter de Nossa Senhora de Manreze o aniquilamento dos english, foi
informado das nossos atos de devoção. O reverendo padre dom
Caracucarador mandou-nos vergastar a ambas. Mandou vinte e quatro alguazis
da Santa Hermandad prenderem o nosso querido english. Jenni matou cinco deles
e foi preso pelos dezenove que sobraram. Fizeram-no repousar num calabouço
bem arejado. Resolveram queimá-lo no domingo seguinte, em grande cerimonial,
paramentado com um grande sambenito e um chapéu em forma de pão-de-açúcar,
em honra de nosso Salvador e da Virgem Maria, sua mãe. Dom Caracucarador
preparou um belo sermão, mas não pode pronunciá-lo porque
a cidade foi tomada às quatro da madrugada daquele mesmo domingo.

Aqui termina a narrativa de doña Las Nalgas. Era uma mulher que não
deixava de ter essa espécie de espírito a que os espanhóis
denominam agudeza.

CAPÍTULO II

Continuação das aventuras do jovem inglês Jenni e do
senhor seu pai, doutor em teologia, membro do Parlamento e da Sociedade Real

Sabeis que admirável conduta manteve o conde de Peterborou quando
se apoderou de Barcelona; como impediu a pilhagem; com que pronta sagacidade
pôs ordem em tudo; como arrancou a duquesa de Popoli das mãos
de alguns soldados alemães bêbedos que a roubavam e violavam.
Mas podereis acaso imaginar a surpresa, a dor, o aniquilamento, a cólera,
as lágrimas, os transportes de nosso amigo Freind, quando soube que
Jenni estava nos calabouços do Santo Ofício e já se achava
preparada a sua fogueira? Sabeis que as cabeças mais frias são
as mais exaltadas nas grandes ocasiões. Era de ver aquele pai, que
conhecestes tão grave e tão imperturbável, voar do antro
da Inquisição mais depressa do que correm os nossos cavalos
de raça em Neumarket. Cinqüenta soldados, que o seguiam arquejantes,
estavam sempre a duzentos passos dele. Ei-lo que chega. Entra na caverna.
Que momento! Que prantos e que alegria! Vinte vítimas destinadas à
mesma cerimônia são libertadas com Jenni. Todos esses prisioneiros
se armam; todos se juntam a nossos soldados; arrasam o Santo Ofício
em dez minutos e almoçam sobre as ruínas, com o vinho e o presunto
dos inquisidores.

Em meio desse tumulto, e das fanfarras, e dos tambores, e do troar de quatrocentos
canhões que anunciavam a nossa vitória na Catalunha, o nosso
amigo Freind retomara a tranqüilidade que lhe conheceis. Estava, calmo
como o céu de um belo dia após a tempestade. Erguia a Deus um
coração tão sereno como o seu rosto, quando viu sair
do respiradouro de um calabouço um espectro negro de sobrepeliz, que
se lançou a seus pés, bradando misericórdia.

— Quem és tu? – indagou o nosso amigo. – Vens do
inferno?

— Mais ou menos – respondeu o outro. – Sou dom Jerónimo
Bueno Caracucarador, inquisidor da fé; peço-vos humildemente
perdão por haver querido assar o senhor vosso filho em praça
pública: eu supunha que ele fosse judeu.

— E mesmo que ele fosse judeu – respondeu o nosso amigo com
o seu sangue-frio habitual, – fica-lhe bem, senhor Caracucarador, assar
pessoas porque pertencem a uma raça que habitava outrora um pequeno
cantão pedregoso próximo ao deserto da Síria? Que lhe
importa que um homem tenha ou não tenha prepúcio e que comemore
a páscoa na lua cheia de abril ou no domingo seguinte?. Este homem
é judeu; precisa pois ser queimado; e todos os seus bens me pertencem:
eis um péssimo argumento; não se raciocina assim na Sociedade
Real de Londres.

E não sabia o senhor Caracucarador que Jesus Cristo era judeu? Que
ele nasceu, viveu e morreu judeu; que celebrou a páscoa, como judeu,
na lua cheia; que todos os seus apóstolos eram judeus; que foram ao
templo judeu após a desgraça de Cristo, como está expressamente
referido; e que os quinze primeiros bispos secretos de Jerusalém eram
judeus? Meu filho não é judeu, é anglicano: como lhe
deu na telha a idéia de o queimar?

O inquisidor Caracucarador, aterrado com a erudição do senhor
Freind, e sempre prosternado a seus pés, respondeu:

— Ai de nós! Não sabíamos nada de tudo isso na
Universidade de Salamanca. Mais uma vez, perdão. Mas o verdadeiro motivo
é que o senhor vosso filho me tomou a minha amante Boca Bermeja.

— Ah! se ele tomou a sua amante, é outra história; não
se deve tomar os bens de outrem. Todavia, não se nos depara aqui uma
razão suficiente (como diria Leibnitz) para queimar um jovem. As penas
devem ser proporcionais aos delitos. Vós outros, cristãos de
além do mar britânico tirante para o sul, sois mais expeditos
em assar a um de vossos irmãos, seja o conselheiro Anne Dubourg, seja
Michel – Servet, ou todos aqueles que foram sagrados sob Filipe II,
cognominado o discreto, do que nós, ingleses, em mandar preparar um
rosbife em Londres. Mas tragam-me aqui a senhorita Boca Bermeja, para que
eu saiba dela a verdade.“

Boca Bermeja foi conduzida à sua presença, toda chorosa, e
embelezada pelas lágrimas, como é costume.

— É verdade que a senhorita amava ternamente a dom Caracucarador
e que o meu filho Jenni a possuiu à força?

— A força, senhor inglês?! Qual nada! Foi de todo o meu
coração. Nunca vi nada tão lindo e tio digno de amor
como o senhor vosso filho; e julgo-vos muito feliz em ser seu pai. Fui eu
quem fiz todas as investidas; ele bem o merece: sou capaz de segui-lo até
o fim do mundo, se é que o mundo tem fim. Sempre detestei, no fundo
d’alma, esse maldito inquisidor; ele mandou vergastar-me até
sair sangue, a mim e à senhorita Las Nalgas. Se quereis tornar-me a
vida um verdadeiro encanto, mandareis enforcar esse celerado monge à
minha janela, enquanto eu estiver jurando a vosso filho um amor eterno. Feliz
de mim, se lhe pudesse um dia dar um filho que se pareça convosco!

E, com efeito, enquanto Boca Bermeja pronunciava estas singelas palavras,
milord Peterborou mandava procurar Caracucarador, que se havia sumido, para
que não o enforcassem. Não vos espantareis se eu disser que
o senhor Freind se opôs energicamente a isso.

— Que vossa justa cólera – disse ele – se curve
ante vossa generosidade; só se deve condenar um homem à morte
quando tal coisa for absolutamente necessária ao bem público.
Os espanhóis iriam dizer que os ingleses são uns bárbaros
que matam todos os padres que encontram. Isso poderia prejudicar grandemente
ao senhor arquiduque, em nome do qual acabais de tomar Barcelona. Estou assaz
contente de que meu filho tenha sido salvo e de que o pulha desse frade não
mais esteja em condições de exercer as suas funções
inquisitoriais.

Enfim, tão bem falou o sábio e caridoso Freind, que milorde
se contentou em mandar vergastar Caracucarador, como esse miserável
fizera a Miss Boca Bermeja e a Miss Las Nalgas.

Tamanha demência tocou o coração dos catalães.
Os que haviam sido libertados dos calabouços da Inquisição
concluíram que a nossa religião valia infinitamente mais que
a sua. Quase todos pediram para serem aceitos na igreja anglicana; e até
alguns bacharéis da Universidade de Salamanca, que estavam em Barcelona,
desejaram ser esclarecidos. A maioria foi logo atendida. Só houve um
deles, chamado dom Inigo y Medroso y Comodios y Papalamiendo, que se mostrou
um tanto rebelde.

Eis a súmula da amigável discussão que o nosso querido
amigo Freind e o bacharel dom Papalamiendo travaram na presença de
milorde Peterborou. Chamaram a essa conversação familiar o diálogo
dos Mas. Vereis facilmente por que, ao lê-la

CAPÍTULO III

Súmula da controvérsia dos Mas, entre Mister Freind e dom
Inigo y Medroso y Comodios y Papalamiendo, bacharel de Salamanca

O bacharel: — Mas, Senhor, apesar de todas as belas coisas que acabais
de dizer-me, tereis de confessar que a vossa igreja anglicana, tão
respeitável, não existia antes de dom Lutero e antes de dom
OEcolampadius. Sois muito recentes: portanto, não sois de casa.

Freind: — É como se me dissessem que não descendo de
meu avô, porque um colateral, residente na Itália, se apossara
do seu testamento e dos meus títulos. Felizmente os recuperei, e é
claro que sou neto de meu avô. Somos ambos da mesma família,
com a pequena diferença de que nós, ingleses, lemos o testamento
de nosso avô em nossa própria língua e de que vos é
proibido lê-lo na vossa. Sois escravos de um estrangeiro, e nós
estamos apenas submetidos à nossa razão.

O bacharel: — Mas se a vossa razão vos perder?… porque afinal
não creio, na nossa Universidade de Salamanca, a qual declarou a infalibilidade
do papa e o seu direito incontestável sobre o passado, o presente,
o futuro e o paulo-post-futuro.

Freind: — Ah! Os apóstolos também não acreditavam
em nada disso. Está escrito que esse Pedro, que renegou a seu mestre
Jesus, foi severamente acusado por Paulo. Não quero examinar qual dos
dois estava errado; talvez ambos o estivessem, como acontece em quase todas
as disputas; mas afinal não há uma única passagem nos
Atos dos Apóstolos em que Pedro seja considerado como senhor de seus
companheiros e do paulo-post-futuro.

O bacharel: — Mas não há dúvida de que S. Pedro
foi arcebispo de Roma, pois Sánchez nos ensina que esse grande homem
ali chegou no tempo de Nero e que ali ocupou o trono arqui-episcopal durante
vinte e cinco anos, sob esse mesmo Nero, que só reinou treze. De resto,
é matéria de fé, e é dom Grillandus, o protótipo
da Inquisição, quem o afirma (pois nós nunca lemos a
Bíblia Sagrada), é matéria de fé, digo eu, que
S. Pedro estava em Roma certo ano; pois data uma de suas cartas de Babilônia;
e, como Babilônia é visivelmente um anagrama de Roma, está
visto que o papa é, por direito divino, senhor de toda a terra: a,
mais ainda, todos os licenciados de Salamanca demonstraram que Simão
Virtude-Deus, feiticeiro-mor e conselheiro de Estado do Imperador Nero, mandou
seu cachorro cumprimentar a S. Simão Barjonas, também chamado
S. Pedro; que S. Pedro, não menos polido, enviou também cumprimentos
a Simão Virtude-Deus, por intermédio de seu cachorro; que em
seguida apostaram qual dos dois ressuscitaria mais depressa a um primo de
Nero, que Simão Virtude-Deus só ressuscitou o seu morto pela
metade e que Simão Barjonas ganhou a aposta, ressuscitando o primo
por inteiro; que Virtude-Deus quis tirar desforra, voando nos ares como S.
Dédalo, e que S. Pedro lhe quebrou as duas pernas, fazendo-o tombar.
Eis por que S. Pedro recebeu a coroa do martírio, com a cabeça
para baixo e as pernas para cima.(1) Está pois demonstrado a posteriori
que nosso santo padre o papa deve reinar sobre todos aqueles que têm
coroa na cabeça, e é senhor do passado, do presente e de todos
os futuros do mundo.

Freind: — É claro que todas essas coisas aconteceram no tempo
em que Hércules com um passe de mágica, separou as duas montanhas
de Calpe e Abila e tirou do chapéu o estreito de Gibraltar. Mas não
é nessas histórias, por mais autênticas que sejam, que
baseamos a nossa religião; é no Evangelho.

O bacharel: — Mas em que passagens do Evangelho, senhor? Pois li uma
parte desse Evangelho em nossos cadernos de teologia. E na passagem do anjo
que desceu das nuvens para anunciar a Maria que ela seria engravidada pelo
Espírito Santo? E na da viagem dos três reis e de uma estrela?
No morticínio de todas as crianças do país? No trabalho
que teve o diabo em transportar Deus, no deserto, ao alto do templo e ao cimo
de uma montanha de onde se descortinavam todos os reinos da terra? No milagre
da água mudada em vinho, num casamento de aldeia? No milagre dos dois
mil porcos que o diabo afogou num lago por ordem de Jesus? No…

Freind: — Senhor, nós respeitamos todas essas coisas, porque
estão no Evangelho; e jamais nos referimos a elas, porque estão
muito acima da frágil razão humana.

O bacharel: — Mas dizem que nunca chamais à Santa Virgem de
mãe de Deus.

Freind: — Nós a veneramos e amamos; mas cremos que ela pouco
se importa com os títulos que lhe dão neste mundo. Aliás,
nunca é denominada mãe de Deus no Evangelho. Houve uma grande
disputa, em 431, no concílio de Éfeso, para saber se Maria era
teótocos, e se, sendo Jesus Cristo Deus e filho de Maria, poderia esta
ser ao mesmo tempo mãe de Deus Pai e de Deus Filho.

O bacharel: — Mas Senhor, falais em teótocos… Que quer dizer
isso, por favor?

Freind: — Quer dizer mãe de Deus. Como?! Sois bacharel de Salamanca
e não sabeis grego?

O bacharel: — Mas o grego… ora, o grego! De que pode o grego servir
a um espanhol? Mas senhor, acreditais que Jesus tenha uma natureza, uma pessoa
e uma vontade? Ou duas naturezas, duas pessoas e duas vontades? Ou uma vontade,
duas naturezas e duas pessoas? Ou duas vontades, duas pessoas e uma natureza?
Ou…

Freind: — São questões de Éfeso. Isso absolutamente
não nos interessa.

O bacharel: — Mas que é que vos interessa, então? Pensais
que haja três pessoas em Deus, ou três deuses em uma pessoa? Procede
a segunda da primeira pessoa, e a terceira das duas outras, ou da segunda
intrinsecus, ou apenas da primeira? Possui o Filho todos os atributos do Pai,
exceto a paternidade? E essa terceira pessoa, vem por infusão, ou por
identificação, ou por espiração?

Freind: — O Evangelho não trata dessa questão, e nunca
S. Paulo escreveu o nome da Trindade.

O bacharel: — Mas sempre me falais do Evangelho, e nunca de S. Boaventura,
nem de Alberto o Grande, nem de Tamburini, nem de Grillandus, nem de Escobar.

Freind: — E que não sou nem dominicano, nem franciscano, nem
jesuíta; contento-me em ser cristão.

O bacharel: — Mas se sois cristão, dizei-me de sã consciência:
acreditais que o resto dos homens esteja condenado à danação
eterna?

Freind: — A mim não me compete medir a justiça de Deus
e sua misericórdia.

O bacharel: — Mas afinal, se sois cristão, em que é
que acreditais?

Freind: — Creio, com Jesus Cristo, que devemos amar a Deus e ao próximo,
perdoar as injúrias e reparar os males que tenhamos feito. Crede-me:
adorai a Deus, sede justo e caridoso; é quanto basta ao homem. Eis
as máximas de Jesus. São tão verdadeiras que nenhum legislador
ou filósofo jamais teve outros princípios antes dele, e é
impossível que haja outros. Tais verdades jamais tiveram nem podem
ter outros adversários senão as nossas paixões.

O bacharel: — Mas… ah! a propósito de paixões: é
verdade que os vossos bispos, os vossos pastores e diáconos, são
todos casados?

Freind: — É verdade. S. José, que passou por pai de
Jesus, era casado. Teve por filho a Tiago, o moço, cognominado Oblia,
irmão de Nosso Senhor; o qual, após a morte de Jesus, passou
a vida no templo. S. Paulo, o grande S. Paulo, era casado.

O bacharel: — Mas Grillandus e Molina dizem o contrário.

Freind: — Molina e Grillandus que digam o que quiserem, prefiro acreditar
no próprio S. Paulo, que diz em sua primeira epístola aos coríntios(2)
Não temos o direito de comer e beber à vossa custa? Não
temos o direito de levar conosco nossa mulher, nossa irmã, como fazem
os outros apóstolos, e os irmãos de Nosso Senhor, e Cefas? Vai-se
jamais para a guerra à própria custa? Quando se plantou uma
vinha, não se lhe come o fruto? etc.

O bacharel: — Mas senhor, é mesmo verdade que S. Paulo tenha
dito isso?

Freind: — Sim, ele disse, e muitas coisas mais.

O bacharel: — Mas como! Aquele verdadeiro prodígio, aquele
exemplo de graça eficaz!

Freind: — É verdade, senhor, que a sua conversão foi
um grande prodígio. Confesso que, segundo os Atos dos Apóstolos,
fora ele o mais cruel satélite dos inimigos de Jesus. Dizem os Atos
que assistira à lapidação de Santo Estêvão;
ele próprio diz que, quando os judeus condenavam à morte um
seguidor de Jesus, era ele quem levava a sentença, detuli sententiam.
(3)

Confesso que Abdias, seu discípulo, e Júlio Africano, seu
tradutor, o acusam de ter mandado matar a Tiago Oblia, irmão de Nosso
Senhor;(4) mas a sua fúria ainda mais admirável lhe torna a
conversão, e não o impediu de achar mulher. Era casado, digo-vos,
como expressamente o declara S. Clemente de Alexandria.

O bacharel: — Mas no entanto era um digno, um excelente homem, esse
S. Paulo! Sinto muito que ele haja assassinado a S. Tiago e a Santo Estêvão,
e muito me surpreende que tenha ido ao terceiro céu; mas continuai,
por favor.

Freind: — S. Pedro, pelo que diz S. Clemente de Alexandria, teve filhos;
e até se encontra entre estes uma Santa Petronilha. Na sua História
da Igreja, diz Eusébio que S. Nicolau, um dos primeiros discípulos,
tinha uma belíssima mulher, e que os apóstolos lhe censuraram
preocupar-se muito com ela e parecer ciumento. “Pois tome-a quem quiser
– respondeu-lhes o santo, – eu a cedo aos senhores.” (5)

Na economia judaica, que devia durar eternamente, e à qual no entanto
sucedeu a economia cristã, o casamento era, não só permitido,
mas expressamente ordenado aos sacerdotes, pois que deviam ser da mesma raça;
e o celibato era uma espécie de infâmia.

Em verdade o celibato não deve ter sido considerado uma situação
muito pura e honrosa pelos primeiros cristãos, pois, entre os hereges
anatematizados pelos primeiros concílios, encontram-se especialmente
aqueles que se revoltavam contra o casamento dos padres, como os saturnianos,
os basilidianos, os montanistas, os encratistas, e outros anos e istas. Eis
porque a mulher de S. Gregório Nazianzeno deu à luz a outro
S. Gregório Nazianzeno e teve a inestimável ventura de ser esposa
e mãe de um canonizado, o que não aconteceu nem mesmo a Santa
Mônica, mãe de Santo Agostinho. Eis por que vos poderia eu nomear
igual ou maior número de antigos bispos casados do que o que tivestes,
outrora, de bispos e papas concubinários, adúlteros, ou pederastas,
coisa que já não se encontra em nenhum país. Eis por
que a Igreja grega, mãe da Igreja Latina, quer ainda que os curas sejam
casados. Eis afinal porque eu, que vos falo, sou casado, e tenho o mais belo
filho do mundo.

E dizei-me, meu caro bacharel, não tendes vós na vossa Igreja
sete sacramentos, que são todos sinais visíveis de uma coisa
invisível? Ora, um bacharel de Salamanca desfruta das vantagens do
batismo logo que nasce, da crisma, logo que começa a usar calças;
das confissão, logo que faz algumas loucuras, ou compreende as dos
outros; da comunhão, embora um pouco diferente da nossa, logo que chega
aos treze ou catorze anos, da ordenação quando é tonsurado
e lhe dão um benefício de vinte, ou trinta, ou quarenta mil
piastras de renda, e enfim, da extrema-unção, quando chega a
hora. Deveremos privá-lo do sacramento do matrimônio, quando
se acha em plena saúde, e sobretudo depois que o próprio Deus
casou Adão e Eva: Adão, o primeiro dos bacharéis do mundo,
pois tinha ciência infusa, segundo a vossa escola; Eva, a primeira bacharela,
pois conheceu a árvore da ciência antes do marido?

O bacharel: — Mas, se assim é, acabo com os mas. Está
feito, sou da vossa religião; faço-me anglicano. Quero casar
com uma boa mulher que sempre fingirá amar-me, enquanto eu for jovem,
que cuidará de mim na velhice, e a quem enterrarei com todas as honras,
se lhe sobrevivo; mais vale isso do que queimar homens e desonrar raparigas,
como fez o meu primo dom Caracucarador, inquisidor da fé.

Tal é o fiel apanhado da conversação que tiveram o
doutor Freind e o bacharel dom Papalamiendo, chamado depois por nós
Papa Dejando. Essa curiosa entrevista foi redigida por Jacob Hulf, um dos
secretários de Milorde.

Após esse encontro, o bacharel chamou-me à parte e disse-me:
“Esse inglês, que eu tomara a princípio por um antropófago,
deve ser um excelente homem, pois é teólogo e não me
disse injúrias.” Respondi-lhe que o senhor Freind era tolerante
e que descendia de uma filha de William Penn, o primeiro dos tolerantes, e
fundador de Filadélfia. “Tolerante e Filadélfia! –
exclamou ele. – Eu nunca tinha ouvido falar nessas seitas”. Informei-o
de tudo: não podia acreditar-me, pensava estar em outro universo, e
tinha razão.

CAPÍTULO IV

Regresso a Londres: Jenni começa a corromper-se

Enquanto o nosso digno filósofo Freind esclarecia assim os barceloneses
e o seu filho Jenni encantava as barcelonesas, milorde Peterborou viu-se perdido
no conceito da rainha, e no do arquiduque, por lhes haver dado Barcelona.
Os cortesãos lhe censuraram haver tomado essa cidade contra todas as
regras da arte, com um exército metade menos forte do que a guarnição.
O arquiduque a princípio topou o jogo e o amigo Freind foi obrigado
a imprimir a apologia do general. Todavia, o arquiduque, que viera conquistar
o reino da Espanha, não tinha com que pagar seu chocolate. Tudo o que
lhe dera a rainha Ana se evaporara. Diz Montecuculli, nas suas memórias,
que três coisas são precisas para fazer guerra: 1o. dinheiro,
2o. dinheiro, 3o. e dinheiro. O arquiduque escreveu de Guadalajara, onde se
achava a 11 de agosto de 1706, a milorde Peterborou, uma grande carta assinada
yo el rey, na qual o conjurava a que fosse imediatamente a Gênova conseguir-lhe,
sob fiança pessoal, cem mil libras esterlinas, para reinar.(6) Eis
pois o nosso Sertório transformado de general de exército em
banqueiro genovês. Confiou sua situação ao amigo Freind;
dirigiram-se ambos a Gênova; eu os acompanhei, pois bem sabeis que o
coração me dirige. Admirei a habilidade e espírito de
conciliação de meu amigo nesse delicado assunto. Vi que um bom
espírito pode prover a tudo; o nosso grande Locke era médico:
pois foi o único metafísico da Europa e restabeleceu as finanças
da Inglaterra.

Freind, em três dias, conseguiu as cem mil libras esterlinas, que
a corte de Carlos VI devorou em menos de três semanas. Após o
que, o general, acompanhado do seu teólogo, teve de ir justificar-se
em Londres, em pleno Parlamento, de haver conquistado a Catalunha contra as
regras e ter-se arruinado a serviço da causa comum. O assunto dilatou-se
em extensão e acrimônia, como todos os assuntos de partido.

Bem sabeis que o senhor Freind fora deputado ao Parlamento antes de ser
pastor, e o único a quem permitiram exercer essas funções
incompatíveis. Ora, um dia em que Freind meditava um discurso que devia
pronunciar na Câmara dos Comuns, de que era um digno membro, anunciaram-lhe
uma dama espanhola que pedia para lhe falar sobre assunto urgente. Era doña
Boca Bermeja. Achava-se em pranto; o nosso bom amigo lhe mandou servir almoço.
Ela enxugou as lágrimas, almoçou, e falou-lhe como se segue:

— Deveis estar lembrado, meu caro senhor, de que, ao seguir para Gênova,
ordenastes ao senhor vosso filho, que partisse de Barcelona para Londres,
a fim de assumir o emprego de amanuense do Tesouro, que vossa influência
lhe obteve. Ele embarcou no Tritão com o jovem bacharel dom Papa Dejando
e alguns outros mais que convertestes. Bem deveis imaginar que eu também
seguira em sua companhia, com a minha boa amiga Las Nalgas. Pois não
ignorais que me permitistes amar ao senhor vosso filho, e que eu o adoro…

— Eu, senhorita! Não, não lhe permiti isso, tolerei-o;
é muito diferente. A fornicação entre duas pessoas livres
foi talvez outrora uma espécie de direito natural de que Jenni pode
gozar com discrição, sem que eu me intrometa; não o constranjo,
quanto às suas amantes, da mesma forma que o deixo jantar o que bem
lhe pareça. Agora, se se tratasse de um adultério, confesso
que seria mais severo, pois o adultério é um furto. Mas quanto
à. senhorita, que não faz mal a ninguém, nada tenho que
dizer.

Pois bem senhor, é de adultério que se trata! O belo Jenni
me abandonou por uma jovem casada que não é tão bonita
como eu. Bem vedes que é uma injúria atroz.

Ele fez mal – disse então o senhor Freind.

Boca Bermeja, derramando algumas lágrimas, contou-lhe como Jenni
se enciumara, ou tinha fingido enciumar-se, do bacharel; como a senhora Clive-Hart,
uma dama muito atrevida, muito arrebatada, muito masculina, muito má,
soubera apoderar-se do seu espírito; como vivia ele com libertinos
que não temiam a Deus; como enfim desprezava a sua fiel Boca Bermeja
pela esperta da Clive-Hart, porque a Clive-Hart tinha uma nuança ou
duas de brancura e rosado acima da pobre Boca Bermeja.

— “Examinarei este assunto com mais vagar – disse o bom
Freind. – Tenho de ir agora ao Parlamento para tratar do caso de milorde
Peterborou”.

Foi pois ao Parlamento: ouvi-o pronunciar um discurso firme e cerrado, sem
nenhum lugar-comum, sem epítetos, sem o que nós chamamos frases;
ele não invocava um testemunho, uma lei; atestava-os, citava-os, reclamava-os;
não dizia que haviam surpreendido a religião da Corte acusando
Milorde Peterborou por haver arriscado as tropas da rainha Ana, pois; não
se tratava de um assunto de religião; não prodigava a uma conjetura
o nome de demonstração; não faltava com o respeito à
augusta assembléia por meio de insípidos gracejos burgueses;
não chamava a milorde Peterborou seu cliente, porque a palavra cliente
significa um homem da burguesia protegido por um senador. Freind falava com
tanta modéstia quanto firmeza; escutavam-no em silêncio; não
o interrompiam senão para dizer: “Hear him, hear him: ouçam-no,
ouçam-no”. A Câmara dos Comuns votou que agradecessem ao
conde de Peterborou em vez de o condenar. Milorde obteve a mesma justiça
da Corte dos Pares, e preparou-se para partir com o seu caro Freind, a fim
de dar o reino da Espanha ao arquiduque; o que todavia não aconteceu,
pela razão de que nada acontece no mundo precisamente como se quer.

Ao sair do Parlamento, nada urgia tanto como nos informarmos da conduta
de Jenni. Soubemos que efetivamente levava uma vida desbragada e crapulosa
com a senhora Clive-Hart e um bando de jovens ateus, aliás gente de
espírito, a quem os próprios deboches haviam persuadido de “que
o homem nada tem de superior ao animal, que nasce e morre como o animal, que
são ambos igualmente formados de terra, que voltam igualmente à
terra, e que não há nada de bom e sensato senão em gozar
e viver com aquela a quem se ama, como o afirma Salomão no fim do capítulo
terceiro do Coheleth, a que nós chamamos Eclesiastes”.

Essas idéias lhes eram principalmente insufladas por um impudente
malandro chamado Wirburton. Li algo dos manuscritos desse louco: Deus nos
livre de os ver impressos algum dia! Pretende Wirburton que Moisés
não acreditava na imortalidade da alma; e, como, com efeito, Moisés
jamais falou nisso, conclui que seria aquela a única prova da sua missão
divina. Essa, conclusão absurda faz infelizmente concluir que a seita
judaica era falsa; os ímpios concluem por conseqüência que
a nossa, fundada na judaica, também é falsa e que, sendo falsa
esta nossa, que é a melhor de todas, todas as outras são ainda
mais falsas; e que, destarte, não há religião. De onde
concluem alguns que não há Deus. Acrescentai a essas conclusões
que esse pequeno Wirburton é um intrigante e um caluniador. Imaginai
que perigo!

Um outro louco chamado Needham, que é em segredo jesuíta,
vai ainda mais longe. Esse animal, como aliás o sabeis, e como tanto
já vos disseram, imagina que criou enguias com farinha de centeio e
banha de carneiro; que imediatamente essas enguias produziram outras, sem
cobertura. Daí decidirem os nossos filósofos que se pode fazer
homens com farinha de trigo e banha de perdiz: pois devem ter origem mais
nobre que a das enguias; pretendem que esses homens produzirão outros
incontinenti; que, assim, não foi Deus quem fez o homem; que tudo se
fez por si mesmo; que se pode muito bem passar sem Deus; que não há
Deus. Imagina! que estragos o Coheleth mal compreendido, e Wirburton e Needham
bem compreendidos, não podem fazer em corações moços
movidos de paixões e que só raciocinam segundo elas!

Mas o pior de tudo é que Jenni estava enterrado em dívidas
até o pescoço. Pagava-as de estranha maneira. Naquele mesmo
dia, enquanto nos achávamos no Parlamento, um de seus credores lhe
fora cobrar cem guinéus. O belo Jenni, que até então
permanecera muito dócil e polido, batera-se com ele, dando-lhe, como
único pagamento, uma boa estocada. Temia-se que o ferido viesse a morrer:
Jenni ia ser preso e arriscava ir para a forca, apesar da proteção
de milorde Peterborou.

CAPÍTULO V

Pretende-se casar Jenni

Relembro ainda a dor e indignação que experimentara o venerável
Freind ao saber que o seu querido Jenni se achava nas prisões do Santo
Ofício, em Barcelona; pois podeis acreditar que foi tomado de transporte
ainda mais violento, quando soube dos excessos daquele desgraçado filho,
das suas orgias, das suas dissipações, da sua maneira de atender
aos credores e do perigo, em que se achava,, de ir para a forca. Mas Freind
conteve-se. É uma coisa espantosa o domínio que esse homem exerce
sobre si mesmo. A razão governa-lhe o coração, como um
bom amo ao criado. Faz tudo a propósito, e age prudentemente com a
mesma celeridade com que atuam os imprudentes. “Não é
ocasião – disse ele – para pregar sermões a Jenni;
é preciso tirá-lo do precipício.”

Na véspera recebera o nosso amigo uma importante soma, da herança
de George Hubert, seu tio. Vai ele próprio procurar o nosso grande
cirurgião Cheselden. Felizmente o encontramos; vamos juntos à
casa do credor ferido. O senhor Freind manda-lhe examinar o ferimento; não
era mortal. Dá ao paciente os cem guinéus e mais cinqüenta
à guisa de indenização; pede-lhe perdão por seu
filho; exprime-lhe a sua dor com tanto sentimento e verdade que aquele pobre
homem, que estava no leito, abraça-o chorando e quer devolver-lhe o
dinheiro. Esse espetáculo espantava e comovia o jovem senhor Cheselden,
que começa a adquirir grande reputação e cujo coração
é tão bondoso como hábeis a sua mão e seu golpe
de vista. Eu estava emocionado, fora de mim; nunca venerara e amara tanto
a nosso amigo.

Perguntei-lhe, na volta, se não mandaria chamar o filho, para lhe
exprobrar as faltas. “Não – disse ele, – quero que
ele as reconheça antes que eu fale nelas. Vamos cear nós dois,
veremos o que posso fazer de melhor. Os exemplos corrigem muito mais do que
as censuras.”

Enquanto não chegava a hora da ceia, fui ter com Jenni; encontrei-o,
como julgo se ache qualquer homem após o seu primeiro crime, pálido,
com o olhar perdido, a voz rouca e entrecortada, o espírito perturbado,
e dando respostas desconexas ao que lhe diziam. Contei-lhe afinal o que seu
pai acabara de fazer. Ele permaneceu imóvel, olhou-me fixamente, e
depois desviou a face um instante, para verter algumas lágrimas. Tirei
bons augúrios desta cena; e tive grandes esperanças de que Jenni
ainda viria a ser um homem às direitas Ia abraçá-lo,
quando entrou a senhora Clive-Hart, em companhia de um dos estroinas seus
amigos, chamado Birton.

— E então? – disse a dama a rir. – É verdade
que mataste um homem hoje? Devia ser algum aborrecido; é bom livrar
o mundo dessa espécie de gente. Quando te vier vontade de matar outro,
peço-te que dês preferência a meu marido; pois ele me aborrece
furiosamente.

Eu contemplava aquela mulher da cabeça aos pés. Era bela,
mas pareceu-me ter qualquer coisa de sinistro na fisionomia. Jenni não
ousava responder e baixava os olhos porque eu me achava presente.

— Que é que tens, meu amigo? – indagou Birton. –
Até parece que praticaste algum mal; pois eu venho remir os teus pecados.
Olha, eis aqui um livrinho que acabo de comprar no Lintot; ele prova, como
dois e dois são quatro, que não há nem Deus, nem vício,
nem virtude: isso é consolador. Vamos beber.

Ante essas estranhas palavras, retirei-me o mais depressa possível.
Fiz ver discretamente ao senhor Freind o quanto necessitava o filho da sua
presença e dos seus conselhos. “O mesmo penso eu – disse
aquele bom pai, – mas comecemos por lhe pagar as dívidas.”
Todas foram liquidadas na manhã seguinte. Jenni veio lançar-se
a seus pés. Pois acreditais que o pai não lhe fez censura alguma?
Abandonou-a à própria consciência, dizendo-lhe apenas:
“Meu filho, lembra-te de que não há felicidade sem virtude.”

Em seguida fez casar Boca Bermeja com o bacharel de Catalunha, pelo qual
tinha ela uma secreta inclinação, apesar das lágrimas
que derramara por Jenni; pois tudo isso se combina maravilhosamente nas mulheres.
Dizem que é nos seus corações que todas as contradições
se reúnem. Sem dúvida é porque foram originariamente
formadas de uma costela nossa.

O generoso Freind pagou o dote do casal; deixou bem colocados todos os seus
novos conversos, graças à proteção de milorde
Peterborou: pois não basta assegurar a salvação dos outros;
é preciso fazê-los viver.

Tendo despachado todas essas boas ações com aquele ativo sangue-frio
que sempre me espantava, concluiu que não havia outro partido para
recolocar o filho no reto caminho, senão casá-lo com uma criatura
de bom nascimento, que tivesse beleza, caráter, inteligência,
e até um pouco de riqueza; pois era o único meio de afastar
Jenni dessa detestável Clive-Hart e dos perdidos que ele freqüentava.

Tinha eu ouvido falar na senhora Primerose, jovem herdeira, criada por milady
Hervey, sua parenta. Milorde Peterborou introduziu-me em casa de milady Hervey.
Vi Miss Primerose e achei-a capaz de satisfazer a todos os desígnios
de meu amigo Freind. Jenni, em meio à sua vida desregrada, dedicava
profundo respeito e mesmo ternura ao pai. Agora, o que mais o sensibilizava
é que o pai não lhe fazia nenhuma censura ao passado. Suas dívidas
saldadas sem avisá-lo, sábios conselhos dados a propósito
e sem reprimendas, mostras de amizade escapadas de tempos em tempos, sem nenhuma
familiaridade que as pudesse aviltar, tudo isso penetrava Jenni, que nascera
com sentimento e bastante inteligência. Todas as razões tinha
eu para crer que a fúria de suas desordens acabaria cedendo aos encantos
de Primerose e às admiráveis virtudes de meu amigo.

O próprio milorde Peterborou apresentou primeiro o pai e depois Jenni
em casa de milady Hervey. Notei que a extrema beleza de Jenni causou logo
uma impressão profunda no coração de Primerose; pois
vi-a baixar os olhos, erguê-los e enrubescer. Jenni apenas se mostrou
polido, e Primerose confessou a milady Hervey que desejaria muito que essa
polidez fosse amor.

Pouco a pouco o nosso belo jovem foi descobrindo todo o mérito daquela
incomparável moça, embora estivesse subjugado pela infame Clive-Hart.
Achava-se como aquele indiano convidado por um anjo a colher um fruto celeste,
e retido pelas garras de um dragão. Sufoca-me, neste instante, a lembrança
do que vi. Minhas lágrimas molham o papel. Quando houver recobrado
a calma, retomarei o fio de minha história.

CAPÍTULO VI

Terrível aventura

Estava prestes a concluir-se o casamento da bela Primerose com o belo Jenni.
O nosso amigo Freind jamais gozara de tão pura alegria; eu a compartilhava.
E eis como se transforma ela numa desgraça que mal Posso compreender.

A Clive-Hart amava Jenni, sem deixar de fazer-lhe contínuas traições.
É a sorte, dizem, de todas as mulheres que, desprezando demais o pudor,
renunciaram à probidade. Ela traía principalmente o seu querido
Jenni com o seu querido Birton e mais um outro debochado da mesma têmpera.
Viviam juntos na crápula. E uma coisa que talvez só se veja
em nosso país é que eles todos tinham espírito e valor.
Infelizmente, nunca tinham tanto espírito como contra Deus. A casa
da senhora Clive-Hart era o salão dos ateus. Se ao menos fossem ateus
honrados, como Epicuro e Leontium, como Lucrécio e Memmius, como Spinoza,
que dizem ter sido um dos homens mais honestos da Holanda, como Hobbes, tão
fiel a seu desgraçado soberano Carlos I…

Como quer que seja, Clive-Hart, furiosamente enciumada da terna e inocente
Primerose, sem que fosse fiel a Jenni, não pôde suportar aquele
feliz enlace. Medita uma vingança de que não creio haja exemplo
em nossa cidade de Londres, onde no entanto nossos pais viram tantos e tão
diversos crimes.

Soube que Primerose devia passar pela sua porta ao voltar do centro, onde
fora a compras, com a camareira. Manda então consertar um encanamento
subterrâneo que levava água a sua casa.

A carruagem de Primerose foi obrigada, na volta, a parar ante o obstáculo.
A Clive-Hart aparece, pede-lhe que desça, que descanse um pouco, que
tome alguns refrescos, enquanto não fica desimpedida a passagem. A
bela Primerose tremia ante este convite; mas Jenni achava-se no vestíbulo.
Um movimento involuntário, mais forte que a reflexão, fê-la
descer. Jenni corria a seu encontro, oferecendo-lhe a mão. Ela entra;
o marido de Clive-Hart era um bêbedo imbecil, odioso a sua mulher tanto
quanto submisso, e talvez exatamente por suas complacências. Balbuciando,
oferece primeiro uns refrescos à senhorita que lhe honra a casa, e
também se serve depois dela. A senhora Clive-Hart leva-os em seguida
e manda trazer outros. Nesse meio tempo, a rua é desembaraçada
e Primerose sobe no carro e regressa à casa da mãe.

Um quarto de hora após, queixa-se de náuseas e vertigens.
Atribui-se esse pequeno desarranjo ao movimento da carruagem. Mas o mal aumenta
de instante a instante; e, no dia seguinte, estava à morte. O senhor
Freind e eu corremos à sua residência. Fomos encontrar aquela
encantadora criatura pálida, lívida, agitada de convulsões,
os lábios contraídos, os olhos ora apagados, ora fulgurantes,
e sempre fixos. Manchas negras lhe desfiguravam a bela garganta e o belo rosto.
Sua mãe achava-se desmaiada junto ao leito. O prestativo Cheselden
prodigalizava em vão todos os recursos da sua arte. Não vos
pintarei o desespero de Freind; era inexprimível. Corro à casa
da Clive-Hart. Informo-me de que seu marido acaba de morrer, e que sua mulher
desertara de casa. Procuro Jenni; impossível encontrá-lo. Conta-me
uma criada que a sua patroa se lançara aos pés de Jenni, conjurando-o
a não abandoná-la na sua desgraça. Diz mais que ela partira
com Jenni e Birton, e que ninguém sabe para onde foram.

Esmagado com esses repentinos e múltiplos golpes, o espírito
agitado de terríveis suspeitas que eu repelia e que voltavam, arrasto-me
até a casa da moribunda. “No entanto – dizia eu comigo
mesmo, – se aquela abominável mulher se lançou aos joelhos
de Jenni, se lhe pediu misericórdia, é que então ele
não era cúmplice. Jenni é incapaz de um crime tão
covarde, tão medonho, que não teria nenhum interesse, nenhum
motivo para cometer, que o privaria de uma mulher adorável e da sua
fortuna, que o tornaria execrável ao gênero humano. Fraco, ter-se-á
deixado subjugar por uma infeliz cuja perversidade desconhece. Não
viu, como eu, Primerose moribunda; não teria deixado a cabeceira de
seu leito para seguir a envenenadora de sua futura esposa.” Devorado
por esses pensamentos, penetro, trêmulo, na casa daquela que não
mais esperava encontrar com vida. Ela respirava. O velho Clive-Hart sucumbira
em um instante, porque seu corpo se achava, desgastado pelos excessos; mas
a jovem Primerose era sustentada por uma natureza tão robusta como
pura era a sua alma. Avistou-me e, com voz terna, me perguntou onde estava
Jenni. Diante disto, confesso que uma torrente de lágrimas me correu
dos olhos. Não pude responder-lhe; não pude falar ao pai. Foi
preciso deixá-la enfim entre as mãos fiéis que a serviam.

Fomos informar milorde dessa desgraça. Vós lhe conheceis o
coração: é tão terno para com os amigos como terrível
para os inimigos. Nunca um homem se mostrou tão compassivo com mais
dura fisionomia. Tanto se esforçou por socorrer a moribunda, por descobrir
o refúgio de Jenni e da sua celerada companheira, como se esforçara
antes por dar a Espanha ao arquiduque. Todas as nossas pesquisas foram inúteis.
Acreditei que Freind fosse morrer de desgosto. Corríamos, ora à
casa de Primerose, cuja agonia se prolongava, ora a Rochester, a Douvres,
a Portsmouth; enviava-se correio a toda parte, estava-se em toda parte, errava-se
ao acaso como cães de caça que houvessem perdido a pista; e,
enquanto isto, a desgraçada mãe da desgraçada Primerose
via de hora a hora ir morrendo a filha.

Soubemos afinal que uma mulher muito moça e bonita, acompanhada de
três jovens e alguns criados, embarcara em Neuport, no condado de Pembroke,
em um pequeno navio cheio de contrabandistas, que ali se achava ancorado,
e que esse navio partira para a América Setentrional.

Freind, a esta notícia, lançou um profundo suspiro; concentrou-se
um momento e, apertando-me a mão, declarou:

— Devo ir à América.

Cheio de admiração e em pranto, respondi-lhe:

— Não vos deixarei. Mas que podereis fazer?

— Restituir meu filho único à sua pátria e à
virtude, ou sepultar-me junto dele.

Não podíamos duvidar, com efeito, pelos sinais que nos deram,
de que era Jenni que havia embarcado com aquela horrível mulher e Birton,
e os mais do seu cortejo.

O bom pai, tendo tomado o seu partido, despediu-se de milorde Peterborou,
que logo regressou à Catalunha, e fomos fretar em Bristol um navio
até Delaware e Maryland. Concluía Freind que, estando essas
paragens em meio às possessões inglesas, para lá deveríamos
navegar, tivesse o filho rumado para o sul ou para o norte. Muniu-se de dinheiro,
de letras de câmbio e de víveres, deixando em Londres um empregado
com o encargo de lhe mandar notícias pelos navios que partiam semanalmente
para Maryland ou a Pensilvânia.

Partimos; o pessoal de bordo, vendo a serenidade de Freind, supunha que
se tratava de uma viagem de recreio. Mas, quando tinha só a mim por
testemunha, os seus suspiros assaz denotavam o sofrimento que lhe ia na alma.
Algumas vezes eu me aplaudia, em segredo, da honra de consolar tão
bela alma. Um vento de oeste nos reteve longo tempo à altura das Sorlingas.
Fomos obrigados a rumar para a Nova Inglaterra. Quantas informações
tomamos por toda a costa! Quanto tempo e quanto passo perdido! Afinal, tendo-se
levantado um vento do nordeste, tocamos para Maryland. Foi lá que nos
deram notícias de Jenni, da Clive-Hart e seus companheiros.

Haviam-se demorado mais de um mês no litoral, espantando toda a colônia
com orgias e magnificências até então desconhecidas naquela
parte do globo; depois haviam desaparecido, e ninguém sabia notícias
suas.

Avançamos pela baía, com o intento de ir até Baltimore
colher novas informações.

CAPÍTULO VII

O que aconteceu na América

Deparou-se-nos à direita, no litoral, uma habitação
muito bem edificada. Era uma casa baixa, cômoda e limpa, entre uma granja
espaçosa e um vasto estábulo, tudo cercado de um parque onde
vicejavam todos os frutos da região. A propriedade pertencia a um velho
que nos convidou a desembarcar, para visitá-la. Não tinha aspecto
de inglês, e vimos logo, pelo sotaque, que se tratava de um estrangeiro.
Deitamos âncora; descemos; o bom do homem recebeu-nos cordialmente,
e ofereceu-nos a melhor refeição que se possa fazer no novo
mundo.

Discretamente lhe insinuamos nosso desejo de saber a quem devíamos
a bondade de tal recepção.

— Sou – disse ele – um desses a quem chamais selvagens.
Nasci numa das montanha. azuis que bordam esta região, e que daqui
avistais no ocidente. Quando menino, fui mordido por uma cascavel, numa dessas
montanhas; estava abandonado, ia morrer. Mas o pai do lorde Baltimore de hoje,
encontrando-me, entregou-me aos cuidados de seu médico, e a ele devi
a minha salvação. Em breve retribui o que lhe devia; pois lhe
salvei a vida durante um combate com uma horda vizinha. Como recompensa, deu-me
ele esta casa, onde vivo feliz.

Perguntou-lhe o senhor Freind se ele não era da mesma religião
de Lorde Baltimore.

— Eu? – disse ele. – Eu sou da minha. Porque há
de querer o senhor que eu seja da religião de um outro homem?

Essa curta e enérgica resposta nos fez refletir um pouco.

— Tendes então – lhe disse eu – o vosso Deus e
a vossa lei?

— Sim – respondeu-nos, com uma segurança que nada tinha
de altivez. – Lá está o meu Deus (e apontou para o céu)
e aqui a minha lei (e pôs a mão no coração).

Disse-me o sr. Freind, cheio de admiração:

— Essa pura natureza sabe mais sobre o assunto do que todos os bacharéis
que discutiram conosco em Barcelona.

Estava ansioso por saber, se possível, alguma notícia certa
acerca de seu filho Jenni. Era um peso que o oprimia. Perguntou se não
tinham ouvido falar daquele bando de jovens que tanto estardalhaço
fizera pelas redondezas.

— Como? Se me falaram neles?! – exclamou o velho.

— Mas eu próprio os vi, hospedei-os em casa, e ficaram tão
satisfeitos com a minha recepção, que partiram com uma de minhas
filhas.

Imaginai qual não foi o choque e o terror de meu amigo, ao ouvir
tais palavras. Não pode deixar de exclamar, no primeiro impulso:

Como! Então foi raptada por meu filho?!

Bom inglês – retrucou o velho, – não te incomodes;
estimo muito que aquele que partiu de minha casa com minha filha seja teu
filho; pois é belo, bem proporcionado e parece corajoso. Não,
ele não raptou a minha querida Paruba; pois deves saber que Paruba
é o seu nome, porque Paruba é o meu. Se ele houvesse raptado
a minha Paruba, seria um roubo; e os meus cinco filhos machos, que estão
a caçar pela vizinhança, a quarenta ou cinqüenta milhas
daqui, não teriam suportado essa afronta. É um grande pecado
roubar o bem alheio. A minha filha foi por sua própria vontade com
esses jovens; quis visitar o país; é uma pequena satisfação
que não se deve recusar a uma criatura da sua idade. Esses viajantes
ma devolverão em menos de um mês, tenho certeza, pois assim me
prometeram.

Tais palavras me teriam feito rir, se a dor em que eu via absorto o meu
amigo também não me houvesse penetrado a alma.

À noite, quando estávamos prestes a partir, aproveitando o
vento, chega um dos filhos de Paruba, sem fôlego, com a palidez, o horror
e o desespero estampado no rosto.

— Que tens, meu filho? De onde vens? Eu te supunha na caça.
Que te aconteceu? Foste fendo por algum animal selvagem?

Não, meu pai, não fui ferido, mas estou morrendo. Mas de onde
vens, mais uma vez te pergunto, meu caro filho?

— Venho de quarenta milhas de distância, mas estou morto.

O pai, trêmulo, obriga-o a descansar. Dão-lhe estimulantes;
apressuramo-nos em torno dele, os seus irmãozinhos, as suas irmãzinhas,
o sr. Freind, eu e nossos criados. Depois que se refez, lançou-se ao
pescoço do bom velho Paruba.

— Ah! – disse ele soluçando. – A minha irmã
Paruba é prisioneira de guerra, e provavelmente vai ser devorada.

A estas palavras, o velho Paruba caiu por terra. O senhor Freind, que também
era pai, sentiu um aperto nas entranhas. Afinal Paruba filho nos relatou que
um bando de jovens ingleses muito estouvados atacara por passatempo os habitantes
da montanha azul.

— Levavam consigo – disse ele – uma bela mulher e sua
criada; e não sei como é que minha irmã se encontrava
em tal companhia. A bela inglesa foi morta e comida; minha irmã foi
feita prisioneira e será igualmente devorada. Venho aqui procurar auxílio
contra os habitantes da montanha azul; quero matá-los, comê-los
por minha vez, tomar-lhes minha irmã, ou morrer.

Foi então a vez do senhor Freind desmaiar; mas o hábito de
dominar-se sustentou-o.

Deus me deu um filho – disse-me ele. – Retomará o filho
e o pai, quando for chegado o momento de executar seus eternos desígnios.
Meu amigo, sou tentado a crer que Deus age às vezes por meio de uma
providência particular, submetida às suas leis gerais, visto
que pune na América os crimes cometidos na Europa e que a celerada
Clive-Hart morreu como devia. Talvez o soberano fabricador de tantos mundos
haja arranjado as coisas de modo que os grandes males cometidos em um globo
sejam algumas vezes expiados nesse mesmo globo. Não ouso acreditá-lo,
mas desejo-o; e assim acreditaria, se essa idéia não fosse contrária
a todas as regras da boa metafísica.

Após reflexões tão tristes sobre tão fatais
aventuras, muito comuns na América, Freind tomou incontinenti o seu
partido, como costumava.

— Tenho – disse ele a seu hospedeiro – um bom navio, bem
aprovisionado; remontemos o golfo com a maré, o mais perto possível
das montanhas azuis. Meu mais urgente empenho é agora salvar a vossa
filha. Vamos ter com os vossos antigos compatriotas; direis a eles que lhes
venho trazer o cachimbo da paz e que sou neto de Penn: este nome bastará.

A esse nome de Penn, tão venerado em toda a América boreal,
o bom Paruba e seu filho sentiram-se tomados do mais profundo respeito e da
mais grata esperança. Embarcamos, velejamos e, em trinta e seis horas,
já estávamos desembarcando nas proximidades de Baltimore.

Apenas nos achávamos à vista dessa praça, então
quase deserta, quando divisamos de longe um numeroso bando de habitantes das
montanhas azuis, que desciam para a planície com maças, machados
e esses mosquetões que os europeus tão tolamente lhes haviam
vendido para conseguir peles. Já se ouviam terríveis gritos.
De outro lado, avançavam quatro cavaleiros, seguidos de alguns homens
a pé. Essa pequena tropa nos tomou por gente de Baltimore que lhes
fosse dar combate: Os cavaleiros correm para nós a toda brida, com
o sabre em punho. Nossos companheiros preparavam-se para os receber. O senhor
Freind, depois de olhar fixamente os cavaleiros, estremeceu um instante; mas,
retomando logo o sangue-frio, disse-nos com voz comovida:

— Não se movam, meu amigos; deixem-me agir sozinho. Avança
com efeito sozinho, sem armas, a passo lento, ao encontro da tropa. Vemos,
num ápice, o chefe abandonar as rédeas de seu cavalo, lançar-se
por terra, e tombar prosternado. Lançamos um grito de espanto; aproximamo-nos:
era o próprio Jenni que banhava de lágrimas os pés do
pai, o qual o enlaçava com suas mãos trêmulas. Nenhum
dos dois podia falar. Birton e os dois jovens cavaleiros que o acompanhavam
apearam do cavalo. Mas Birton, conservando o seu caráter, disse-lhe:

— Oh! meu caro Freind, eu não te esperava por aqui. Fomos feitos
para as aventuras. Francamente, muito prazer em ver-te.

Freind, sem se dignar responder-lhe, voltou-se para o exército das
montanhas azuis, que avançava. E encaminhou-se na sua direção
apenas com Paruba, que servia de intérprete.

— Compatriotas – disse-lhes Paruba, – eis aqui o descendente
de Penn, que vos traz o cachimbo da paz.

A estas palavras, respondeu o mais antigo do povo, erguendo as mãos
e os olhos ao céu.

— Um filho de Penn! Que eu lhe beije os pés e as mãos,
e as partes sagradas da geração. Possa ele fazer uma longa raça
de Penn! Que os Penn vivam para sempre! O grande Penn é o nosso manitu,
o nosso Deus. Foi quase o único europeu que não nos enganou,
que não se apoderou de nossas terras à força. Comprou
a região que lhe cedemos; pagou-a liberalmente; manteve a concórdia
entre nós; trouxe remédios para as poucas doenças que
nos comunicava o nosso contato com europeus; ensinou-nos artes que ignorávamos.
Jamais fumamos contra ele nem contra seus filhos o cachimbo da guerra; para
os Penn, só temos o cachimbo da adoração.

Tendo assim falado em nome de seu povo, correu com efeito a beijar as mãos
e os pés do senhor Freind; mas absteve-se de chegar às partes
sagradas quando lhe disseram que isso não era costume na Inglaterra
e que cada terra tem as suas cerimônias.

Freind mandou trazer imediatamente de bordo umas três dúzias
de presuntos, outros tantos pastelões e frangos recheados e duzentos
garrafões de vinho de Pontac. Jenni e seus companheiros tomaram parte
no festim; mas Jenni preferia achar-se a cem pés abaixo da terra. O
pai não lhe dizia palavra; e tal silêncio ainda mais lhe aumentava
a vergonha.

Birton, a quem tudo era igual, mostrava uma estouvada alegria. Antes de
começarem a comer, disse Freind ao bom Paruba: “Só nos
falta aqui uma estimada criatura, a vossa filha.” Imediatamente o comandante
das montanhas azuis a mandou buscar; não lhe tinham feito nenhum ultraje;
ela abraçou o pai e o irmão como se voltasse de um passeio.

Aproveitei-me da liberdade do repasto para indagar porque motivo haviam
os guerreiros das montanhas azuis matado o devorado a senhora Clive-Hart,
e nada tinham feito à filha de Paruba.

— É porque somos justos – respondeu o comandante. –
Essa orgulhosa inglesa era do bando que nos atacou, matou um dos nossos por
trás, com um tiro de pistola. Nada fizemos a Paruba ao saber que era
filha de um dos nossos antigos camaradas e que aqui só viera divertir-se;
a cada qual pelo que faz.

Freind mostrou-se muito bem impressionado com essa máxima; mas observou
que o costume de devorar mulheres era indigno de tão brava gente e
que, com tantas virtudes, não deviam ser antropófagos.

O chefe das montanhas perguntou-nos então o que fazíamos com
os nossos inimigos, depois de os matar.

— Nós os enterramos – respondi-lhe.

— Quer isto dizer – retrucou – que os dais de comer aos
vermes. Nós queremos a primazia; nossos estômagos são
uma sepultura mais honrosa.

Birton divertiu-se em sustentar a opinião das montanhas azuis. Disse
que o costume de levar o próximo para a panela ou para o espeto era
o mais antigo, e o mais natural, pois já o haviam encontrado assente
em ambos os hemisférios; que estava por conseguinte provado tratar-se
de uma idéia inata; que tinham saído à caça de
homens antes de ir à caça de animais, pela razão de que
era mais fácil matar um homem do que matar um lobo; que, se os judeus,
nos seus livros por tanto tempo ignorados, imaginaram que um chamado Caim
matou um chamado Abel, talvez fosse apenas para o comer; que esses próprios
judeus confessam claramente haver-se alimentado várias vezes de carne
humana; que, segundo os melhores historiadores, os judeus devoraram as carnes
sangrentas dos romanos assassinados por eles no Egito, em Chipre, na Ásia,
quando das suas revoltas contra os imperadores Trajano e Adriano.

Deixamo-lo dizer esses duros gracejos, cujo fundo podia infelizmente ser
verdadeiro, mas que nada tinham do aticismo grego e da urbanidade romana.

O bom Freind, sem lhe responder, dirigiu a palavra aos nativos. Paruba interpretava-o
frase a frase. Jamais o grave Tillotson falou com tanta energia. Jamais o
insinuante Smalridge teve graças tão tocantes. O grande segredo
está em demonstrar com eloqüência. Ele lhes demonstrou,
pois, que esses festins, onde é servida a carne de nossos semelhantes,
são repastos de abutres, e não de homens; que esse execrável
costume inspira uma ferocidade destrutiva do gênero humano; que era
a razão pela qual não conheciam eles nem as consolações
da sociedade nem o cultivo da terra. Afinal juraram pelo seu grande Manitu
que não mais comeriam nem homens nem mulheres.

Freind, em uma só conversação, tornou-se o seu legislador:
era Orfeu que dominava os tigres. Os jesuítas, por mais que se atribuam
milagres em suas Cartas curiosas e edificantes, que raramente são uma
coisa ou outra, jamais igualarão a nosso amigo Freind.

Após haver cumulado de presentes os senhores das montanhas, trouxe
a bordo, de volta para casa, o velho Paruba, bem como o jovem Paruba e sua
irmã; os outros irmãos prosseguiram a caçada, para as
bandas da Carolina. Jenni, Birton e seus camaradas também vinham a
bordo, O sábio Freind persistia no método de não dirigir
a mínima censura a seu filho quando este fazia alguma das suas. Deixava-o
examinar-se e devorar seu próprio coração, como diz Pitágoras.
No entanto, tomou três vezes a carta que lhe haviam mandado da Inglaterra
e, enquanto a relia, olhava para o filho, que sempre baixava os olhos; e no
rosto do jovem liam-se o respeito e o arrependimento.

Quanto a Birton, estava tão alegre e desenvolto como se voltasse
do teatro: era um caráter mais ou menos ao gosto do falecido conde
de Rochester, extremo no deboche, na bravura, nas idéias, nas expressões,
na filosofia epicurista, sem nunca estar ligado a coisa alguma, senão
às coisas extraordinárias, de que logo se aborrecia; com essa
sorte de espírito que toma as verossimilhanças por demonstrações;
mais sábio, mais eloqüente do que nenhum jovem da sua idade, mas
sem nunca se dar ao trabalho de aprofundar coisa alguma.

Ao sr. Freind, escapou dizer-me, enquanto jantava conosco a bordo:

— Na verdade, meu amigo, espero que Deus há de inspirar melhores
costumes a esses jovens, que o terrível exemplo da Clive-Hart os possa
corrigir.

Tendo ouvido essas palavras, disse-lhe Birton, em tom um pouco desdenhoso:

— Fazia muito que eu não estava nada contente com essa malvada
Clive-Hart: não me importo mais com ela do que com uma franga gorda
que houvessem mandado para o espeto. Mas, falando sério, achais que
exista, não sei onde, um ser continuamente ocupado em punir todas as
más mulheres e todos os homens perversos que povoam e despovoam os
quatro cantos do nosso pequeno mundo? Esqueceis que a nossa detestável
Maria, filha de Henrique VIII, foi feliz até a morte? E no entanto
fizera morrer, nas chamas, mais de oitocentos cidadãos e cidadãs,
sob o pretexto de que não acreditavam nem na transubstanciação
nem no papa. Seu pai, quase tão bárbaro quanto ela, e seu marido,
mais profundamente mau, viveram nos prazeres. O papa Alexandre VI, mais criminoso
do que eles todos, foi também o mais afortunado: todos os seus crimes
lhe saíram bem, e ele morreu aos setenta e dois anos, poderoso, rico,
cortejado por todos os reis. Onde está, pois, o Deus justo e vingador?
Não, por Deus! não existe Deus.

O senhor Freind, com um ar austero, mas tranqüilo, retrucou-lhe:

— Quer-me parecer que não devíeis jurar pelo próprio
Deus que esse mesmo Deus não existe. Atentai em que Newton e Locke
jamais pronunciaram esse nome sagrado senão com um ar de recolhimento
e adoração secreta que foi notado por todo o mundo.

— Pox! – exclamou Birton. – Pouco me importa a cara que
dois homens tenham feito. Que cara teria Newton quando comentava o Apocalipse?
E que careta fazia Locke quando narrava a conversação de um
papagaio com o príncipe Maurício?

Então Freind pronunciou estas belas palavras de ouro, que se gravaram
em meu coração: Esqueçamos os sonhos dos grandes homens,
e lembremo-nos das verdades que eles nos ensinaram.

Essa resposta provocou uma disputa regular, mais interessante que a conversação
com o bacharel de Salamanca. Meti-me a um canto e anotei tudo quanto se disse.
O público cercou os dois contendores: o velho Paruba, o seu filho,
e principalmente a sua filha, e os companheiros de Jenni, escutavam, com o
pescoço estendido, os olhos fixos; e Jenni, de cabeça baixa,
com os cotovelos sobre os joelhos, as mãos sobre os olhos, parecia
mergulhado na mais profunda meditação. Eis a polêmica,
palavra por palavra.

CAPÍTULO VIII

Diálogo de Freind e de Birton sobre o ateísmo

Freind: — Não vos repetirei, Senhor, os argumentos metafísicos
de nosso famoso Clarke. Exorto-vos simplesmente a lê-los; são
mais próprios para vos esclarecer do que para vos comover: não
vos quero trazer senão razões, que talvez falem mais a vosso
coração.

Birton: — Com muito prazer; quero que me divirtam e que me interessem;
odeio os sofismas: as disputas metafísicas se assemelham a bolas cheias
de vento que os combatentes atiram um ao outro. As bexigas rebentam, o ar
escapa-se: nada sobra.

Freind: — Talvez nas profundezas do respeitável ariano Clarke
haja algumas obscuridades, algumas bexigas; talvez se haja ele enganado sobre
a realidade do infinito atual e do espaço, etc.; talvez, fazendo-se
comentador de Deus, tenha imitado as vezes os comentadores de Homero, que
lhe atribuem idéias que a Homero jamais ocorreram.

A estas palavras de infinito, espaço, Homero, comentadores, o velho
Paruba e sua filha, e até alguns ingleses, resolveram ir tomar a fresca
no tombadilho; mas Freind prometeu ser inteligível, e eles permaneceram;
e eu expliquei baixinho a Paruba algumas palavras um pouco científicas,
que criaturas nascidas nas montanhas azuis não podiam compreender tão
comodamente como doutores de Oxford e de Cambridge.

O amigo Freind continuou assim:

Seria triste que, para ter certeza da existência de Deus, fosse necessário
ser um profundo metafísico: não haveria, quando muito, na Inglaterra,
mais que uns cem espíritos versados nessa árdua ciência
do pró e do contra que fossem capazes de sondar esse abismo, e o resto
da terra inteira jazeria numa ignorância invencível, abandonado
a suas paixões brutais, governado tão só pelo instinto,
e só raciocinando passavelmente sobre as grosseiras noções
de seus interesses carnais. Para saber se há um Deus, só vos
peço uma coisa: é abrirdes os olhos.

Birton: — Ah! já sei: recorrer a esse velho e batido argumento
de que o sol gira em torno do seu eixo em vinte e cinco dias e meio, a despeito
da absurda Inquisição de Roma; que a luz nos chega refletida
de Saturno em catorze minutos, apesar das suposições absurdas
de Descartes; que cada estrela fixa é um sol como o nosso, cercado
de planetas; que todos esses astros inumeráveis, colocados nas profundezas
do espaço, obedecem às leis matemáticas descobertas e
demonstradas pelo grande Newton; que um catequista anuncia Deus às
crianças, e que Newton o prova aos sábios, como o disse um filósofo
frenchman, perseguido no seu engraçado país por havê-lo
dito.

Não vos atormenteis em patentear-me essa ordem constante que reina
em todas as partes do universo: afinal de contas, tudo o que existe deve estar
numa ordem qualquer; a matéria mais rarefeita deve elevar-se acima
da mais maciça, o mais forte deve fazer pressão, em todos os
sentidos, sobre o mais fraco, o que é impulsionado com maior movimento
deve correr mais depressa que o seu igual; tudo se arranja assim por si mesmo.
Ainda que bebêsseis uma pinta de vinho, como Esdras, e falásseis,
como ele, novecentas e sessenta horas seguidas, sem fechar a boca, nem por
isso eu vos acreditaria mais. Queríeis que eu adotasse um Ser eterno,
infinito e imutável, a quem aprouve, não sei em que tempo, criar,
do nada, coisas que mudam a todo instante, e fazer aranhas para que destripem
moscas? Queríeis que eu dissesse, com esse impertinente de Nienventyd,
que Deus nos deu ouvidos para termos fé, porque a fé nos vem
por ouvir dizer. Não, não acreditarei em charlatães que
venderam caro a sua droga a imbecis.

Reporto-me ainda ao livrinho desse frenchman que disse que nada existe e
nada pode existir, senão a natureza; que a natureza faz tudo, que a
natureza é tudo, que é impossível e contraditório
que exista alguma coisa além do tudo; numa palavra, só creio
na natureza.

Freind: — E se eu vos dissesse que não há natureza,
e que em nós, em torno de nós, e a cem milhões de léguas,
tudo é arte sem nenhuma exceção?

Birton: — Como! Tudo é arte? Mais outra!

Freind: — Quase ninguém atenta nisso; e no entanto nada é
mais verdadeiro. Sempre hei de dizer: Servi-vos de vossos olhos, e reconhecereis,
adorareis um Deus. Pensai em como esses globos imensos, que vedes rolar em
sua imensa carreira, observam as leis de uma profunda matemática: há,
pois, um grande matemático, a que Platão chamava o Eterno Geômetra.

Admirais essas máquinas recém-inventadas a que chamam oreri,
porque milorde Oreri as pôs em moda, protegendo o operário com
suas liberalidades; é uma cópia muito fraca do nosso mundo planetário
e das suas revoluções, o próprio período da mudança
dos solstícios e dos equinócios, que nos traz dia a dia uma
nova estrela polar.

Esse período, esse curso tão lento de cerca de vinte e seis
mil anos, não pôde ser executado por mãos humanas em nosso
oreri. Essa máquina é muito imperfeita: é preciso acioná-la
a manivela; no entanto, é uma obra-prima da habilidade de nossos artífices.
Julgai, pois, qual não é o poder, qual não é o
gênio do eterno arquiteto, se nos podemos servir desses termos impróprios,
tão mal adequados ao Ser Supremo.

Dei a Paruba uma ligeira idéia do oreri. Pile disse: “Se há
gênio nessa cópia também o deve haver no original. Eu
desejaria ver um oreri; mas o céu é mais belo.” Todos
os assistentes, ingleses e americanos, ao ouvir tais palavras, sentiram-se
igualmente tocados da verdade, e ergueram as mãos ao céu. Birton
permaneceu pensativo, depois exclamou: “Como! Tudo seria então
arte, e a natureza não mais que a obra de um supremo artífice!
Será possível?”

O sábio Freind continuou assim:

Volvei agora os olhos para vós mesmos. Examinai com que arte espantosa,
e nunca assaz desvendada, tudo aí está construído, por
dentro e por fora, para todos os vossos usos e todos os vossos desejos; não
pretendo dar aqui uma lição de anatomia, bem sabeis que não
há uma víscera que não seja necessária e que não
seja socorrida, quando em perigo, pelo jogo contínuo das vísceras
vizinhas. Os socorros, no corpo, se acham tão artificiosamente preparados,
que não há nenhuma veia que não tenha as suas válvulas
e eclusas, para abrir passagem ao sangue. Desde a raiz dos cabelos até
os dedos dos pés, tudo é arte, tudo é preparação,
meio e fim. E, na verdade, só se pode sentir indignação
contra aqueles que ousam negar as verdadeiras causas finais, e que têm
bastante má fé ou fúria para dizerem que a boca não
é feita para falar e comer; nem que os olhos não estejam maravilhosamente
dispostos para ver, nem os ouvidos para ouvir; nem as partes da geração
para engendrar: tão louca é essa audácia que tenho dificuldade
em compreendê-la.

Confessemos que cada animal é um testemunho do supremo artífice.

A mais pequena relva basta para confundir a inteligência humana; e
tão verdade é isso, que é impossível aos esforços
de todos os homens reunidos produzir uma folhinha de capim se o germe não
estiver na terra. E não se deve dizer que os germes apodrecem para
produzir; pois tais asneiras não se dizem mais.

A assembléia sentiu a verdade dessas provas mais vivamente que todo
o resto, porque eram mais palpáveis. Birton dizia entre dentes: “Será
preciso submeter-me a reconhecer um Deus? Veremos isso; por Deus, é
um assunto que se deve examinar.” Jenni, que continuava imerso em profunda
cisma, sentia-se abalado; e o nosso Freind terminou a sua frase:

Não, meus amigos, nós não fazemos nada, nada podemos
fazer; é-nos dado arranjar, unir, desunir, numerar, pesar, medir; mas
fazer! Qual! Só quem faz é o Ser necessário, o Ser eternamente
existente por si mesmo. Eis porque os charlatães que procuram a pedra
filosofal são sempre tamanhos imbecis ou tamanhos velhacos. Gabam-se
de criar ouro, e seriam incapazes de criar lama.

Confessemos pois, meus amigos, que existe um Ser supremo, necessário,
incompreensível, que nos fez a todos.

Birton: — E esse Ser, onde está? Se há um, por que se
esconde? Quem jamais o viu Devemo-nos esconder depois de ter feito o bem?

Freind: — Vistes alguma vez Cristovão Ken, que construiu S.
Paulo de Londres? No entanto, está demonstrado que esse edifício
é obra de um hábil arquiteto.

Birton: — Todos concebem facilmente que Ken haja construído
com muito dinheiro esse vasto edifício, onde Burgess nos adormece quando
prega. Bem sabemos por que e como ergueram os nossos pais essa construção.
Mas por que e como teria um Deus criado do nada este universo? Conheceis a
velha máxima de toda a Antigüidade: Nada se pode criar, nada volta
a nada. É uma verdade de que ninguém jamais duvidou. Até
a vossa Bíblia diz expressamente que o vosso Deus fez o céu
e a terra, embora o céu, isto é, a reunião de todos os
astros seja tão superior à terra como a terra o é ao
menor dos grãos de areia; mas a vossa Bíblia jamais disse que
Deus tenha feito o céu e a terra absolutamente com coisa alguma: não
pretende que Deus tenha feito a mulher de nada. Formou-a singularmente de
uma costela que arrancou ao marido. O caos existia, segundo a própria
Bíblia, antes da terra: a matéria era, pois, tão eterna
quanto o vosso Deus.

Elevou-se então um pequeno murmúrio na assembléia;
dizia-se: “É bem possível que Birton esteja com a razão”;
mas Freind respondeu:

Já vos provei, creio eu, que existe uma inteligência suprema,
uma potência eterna a que devemos uma existência passageira: não
vos prometi explicar o “por que” nem o “como”. Deus
me deu suficiente razão para compreender que ele existe, mas não
o bastante para saber ao certo se a matéria lhe foi eternamente submissa,
ou se ele a fez nascer no tempo. Que vos importa a eternidade ou a criação
da matéria, contanto que reconheçais um Deus, um senhor da matéria
e senhor vosso?

Perguntais onde está Deus; nada sei, e não devo sabê-lo.
Sei que ele existe, sei que ele é nosso senhor, que faz tudo, que tudo
devemos esperar da sua bondade.

Birton: — Da sua bondade! Estais troçando comigo. Dissestes:
“Servi-vos dos olhos”. Pois eu vos digo: “Servi-vos dos
vossos.” Lançai um único olhar que seja, à terra
inteira, e vede se o vosso Deus é bom.

O sr. Freind sentiu que ai é que estava o forte da discussão,
e que Birton lhe preparava um rude assalto. Percebeu que os ouvintes, principalmente
os americanos, tinham necessidade de tomar ares para escutar e eles para falar.
Recomendou-se a Deus; foram passear pelo tombadilho; em seguida tomaram chá
no iate, e recomeçou a discussão.

CAPÍTULO IX

Sobre o ateísmo

Birton: — Por Deus, senhor! Não vos saireis tão bem
no artigo da bondade como no referente ao poder e à indústria;
falarei primeiro dos enormes defeitos deste globo, que são precisamente
o oposto dessa tão gabada indústria; em seguida vos farei ver
os crimes e males perpétuos dos habitantes, e julgareis do paternal
afeto que, na vossa opinião, lhes dedica o Senhor.

Começo por vos dizer que os naturais de Glocestershire, minha terra,
quando fazem nascer cavalos nos seus haras, criam-nos em belas pastagens,
dão-lhes depois uma boa estrebaria, e aveia e feno com fartura; mas
dizei-me, que alimento e que abrigo tinham esses pobres americanos do norte,
quando os descobrimos passados tantos séculos. Tinham de correr trinta
a quarenta milhas para conseguir o que comer. Toda a costa boreal do nosso
antigo mundo definha mais ou menos sob a mesma necessidade; e, desde a Lapônia
sueca até os mares setentrionais do Japão, cem povos arrastam
a sua vida, tão curta quão insuportável, numa miséria
terrível, em meio das neves eternas.

Os mais belos climas estão continuamente expostos a flagelos destruidores.
Aí marchamos sobre acesos abismos recobertos de terrenos férteis,
que são ciladas de morte. Não há outros infernos sem
dúvida; e esses infernos se abriram milhentas vezes sob nossos passos.

Falam-nos de um dilúvio universal, fisicamente impossível,
e de que riem todas as pessoas sensatas; mas ao menos consolam-nos dizendo
que somente durou dez meses: devia ele ter apagado esses fogos que depois
destruíram tantas cidades florescentes. Informa-nos o vosso Santo Agostinho
que um só terremoto, na Líbia, abrasou e subverteu cem cidades
inteiras; esses vulcões abalaram toda a bela Itália. Para cúmulo
de males, nem os tristes habitantes das zonas glaciais se acham isentos desses
pegos subterrâneos; os islandeses, sempre ameaçados, vêem,
pela frente, a fome, e, à direita e à esquerda, cem pés
de flama e cem pés de gelo no seu monte Hecla: pois todos os grandes
vulcões ficam situados naquelas horríveis montanhas.

E não nos venham dizer que essas montanhas de duas mil toesas de
altura não são nada em relação à terra,
que tem três mil léguas de diâmetro; que são como
as granulações da casca de uma laranja sobre a redondeza desse
fruto; que se acham na razão de um pé para três mil. Ai!
que somos nós então, se as altas montanhas só fazem sobre
a terra a figura de um pé sobre três mil e de quatro polegadas
sobre nove mil pés? Somos portanto animais absolutamente imperceptíveis;
e no entanto vemo-nos esmagados por tudo o que nos cerca, embora a nossa infinita
pequenez, tão vizinha do nada, nos devesse colocar ao abrigo de todos
os acidentes. Após essa infinidade de cidades destruídas, reconstruídas
e novamente destruídas como formigueiros, que diremos desses mares
de areia que atravessam o meio da África e cujas vagas ardentes, amontoadas
pelos ventos, engoliram exércitos inteiros? De que servem esses vastos
desertos ao lado da velha Síria? Desertos tão horrendos, tão
inabitáveis, que esses animais ferozes chamados judeus se julgaram
no paraíso terrestre quando passaram, daqueles lugares de horror, para
um recanto de terra onde se podiam cultivar algumas jeiras.

E ainda não basta que o homem, essa nobre criatura, tenha sido tão
mal alojado, tão mal vestido, tão mal alimentado durante séculos.
Nasce, entre a urina e a matéria fecal, para respirar dois dias; e,
durante esses dois dias, compostos de enganadoras esperanças e de aborrecimentos
reais, o seu corpo, formado com uma arte inútil, está à
mercê de todos os males que resultam dessa mesma arte; vive entre a
peste e a sífilis; a fonte de seu ser se acha envenenada; não
há quem possa reter na memória a lista de todas as doenças
que nos perseguem; e o médico das urinas na Suíça, pretende
curá-las todas!

Enquanto Birton assim falava, o auditório se mostrava atento e impressionado.
“Vejamos – dizia consigo Paruba – como o nosso doutor se
sairá desta.” O próprio Jenni deixou escapar em voz baixa:
“Palavra, ele tem razão; tolo fui eu em me impressionar com os
discursos de meu pai.” O senhor Freind deixou passar essa onda, que
agitava todas as imaginações, e depois disse:

Um jovem teólogo responderia com sofismas a essa torrente de tristes
verdades e vos citaria S. Basílio e S. Cirilo, que não têm
o que fazer aqui; quanto a mim, senhores, confessarei sem rodeios que há
muito mal físico sobre a face da terra; não lhe subestimo a
existência; mas o sr. Birton exagerou-a demasiado. Reporto-me a vós,
meu caro Paruba: este clima foi feito para os americanos, e não é
assim tão mau, já que nem vós, nem os vossos compatriotas,
jamais quisestes deixá-lo. Os esquimós, os islandeses, os lapões,
os ostíacos, os samoiedos, igualmente jamais quiseram abandonar o seu.
Os rangíferes, os renas, que Deus lhes deu para os alimentar, vestir
e carregar, morrem quando transportados para outras zonas. Os próprios
lapões também morrem em climas um pouco meridionais; o clima
da Sibéria é demasiado quente para eles: sentir-se-iam abrasados
na paragem em que nos achamos.

É claro que Deus fez cada espécie de animais e de vegetais
para o local onde se perpetuam. Os negros, essa espécie de homens tão
diferente da nossa, nasceram de tal modo para a sua pátria, que milhares
desses negros animais se suicidaram, quando a nossa bárbara cupidez
os transportou alhures. O Camelo e o avestruz vivem constantemente nas areias
da África: o touro e suas companheiras movimentam-se nas regiões
férteis em que a relva continuamente se renova para seu sustento; a
canela e o cravo só crescem na Índia, o trigo só é
bom nos poucos países em que Deus o fez nascer. Temos outros alimentos,
em toda a vossa América, desde a Califórnia até o estreito
de Lemaire; não podemos cultivar a vinha em nossa fértil Inglaterra;
nem tampouco na Suécia e no Canadá. Eis por que aqueles que,
em certos países, fundam os seus ritos religiosos em pão e vinho,
não fizeram mais que consultar o seu clima; bem fazem eles em agradecer
a Deus o alimento e a bebida que auferem da sua bondade; e vós, americanos,
fareis bem em lhe dar graças, pelo vosso milho, a vossa mandioca e
a vossa farinha. Deus, por toda a terra, proporcionou os órgãos
e faculdades dos animais, desde o homem ao caracol, aos locais onde lhes deu
vida: não acusemos sempre a Providência quando tantas vezes lhe
devemos ações de graças.

Consideremos os flagelos, as inundações, os vulcões,
os terremotos. Se não reparais senão nessas calamidades, se
só reunis um medonho conjunto de todos os incidentes que entravaram
algumas engrenagens da máquina deste universo, Deus é um tirano;
se atentais em seus inumeráveis benefícios, Deus é um
pai. Vós me citais Santo Agostinho, o retórico, que, no seu
livro dos milagres, fala de cem cidades destruídas ao mesmo tempo na
Líbia; mas considerai que esse africano, que passou a vida a contradizer-se,
prodigava em seus escritos a figura da ênfase: tratava os terremotos
como a graça eficaz e a danação eterna de todas as criancinhas
mortas sem batismo. Não disse ele, no seu trigésimo-sétimo
sermão, ter visto na Etiópia uma raça de homens providos
de um grande olho no meio da fronte, como os ciclopes, e povos inteiros sem
cabeça?

Nós, que não somos doutores da Igreja, não devemos
ficar muito além nem muito aquém da verdade: essa verdade é
que, dentre cem mil casas, pode-se contar quando muito uma destruída
cada século pelos fogos necessários à formação
deste globo.

Tão necessário é o fogo ao universo inteiro que, se
não fora ele, não haveria na terra nem animais, nem vegetais,
nem minerais: não haveria nem sol nem estrelas no espaço. Esse
fogo, espalhado por debaixo da primeira crosta da terra, obedece às
leis gerais estabelecidas pelo próprio Deus; impossível que
disso não resultem alguns desastres particulares: não se pode
dizer que um artesão seja mau operário quando uma máquina
imensa, construída por ele só, vem durando há tantos
séculos sem desarranjar-se. Se um homem tivesse inventado uma máquina
hidráulica que regasse e fertilizasse toda uma província, haveríeis
de censurar-lhe que a água que ele vos propinou afogasse alguns insetos?

Já vos provei que a máquina do mundo é obra de um ser
soberanamente inteligente e poderoso: vós, que sois inteligentes, deveis
admirá-lo; vós, que sois cumulados de seus benefícios,
deveis amá-lo.

Mas os infelizes, direis, condenados a sofrer toda a vida, acabrunhados
de moléstias incuráveis, podem acaso admirá-lo e amá-lo?
Eu vos direi, meus amigos, que essas doenças tão cruéis
vêm quase todas por culpa nossa, ou por culpa dos nossos pais, que abusaram
do seu corpo, e não por culpa do grande artífice. Quase não
se conheciam outras enfermidades além da decrepitude, em toda a América
setentrional, antes de que para cá houvéssemos trazido essa
água de morte a que chamamos eau-de-vie (7) e, e que traz mil males
diversos a quem quer que a beba em demasia. O contágio secreto das
Caraíbas, a quem vós, os jovens, chamais de pox, não
passava de uma leve indisposição cuja origem, ignorávamos
e de que nos curávamos em dois dias com guaiaco ou caldo de tartaruga;
a incontinência dos europeus transplantou para o resto do mundo esse
incômodo, que tomou entre nós um caráter tão funesto
e se transformou em tão abominável flagelo. Lemos que vieram
a morrer desse mal o papa Júlio II, o papa Leão X, um arcebispo
de Mogúncia chamado Benneberg e o rei de França Francisco I.

A varíola, originada na Arábia Felix, era tão somente
uma fraca erupção, uma ebulição passageira e sem
perigo, uma simples depuração do sangue: tornou-se mortal na
Inglaterra, como em tantos outros climas; nossa cupidez a trouxe para este
mundo; ela o despovoou.

Cumpre lembrar que, no poema de Milton, esse tolo do Adão pergunta
ao anjo Gabriel se viverá por muito tempo. “Sim – respondeu-lhe
o anjo, – se observares a grande regra: Nada em excesso.” Observai
todos essa regra, meus amigos; acaso vos atreveríeis a exigir que Deus
vos fizesse viver sem dor durante séculos inteiros, em recompensa da
vossa gula, da vossa embriaguez, da vossa incontinência, do vosso abandono
a infames paixões que corrompem o sangue e abreviam fatalmente a vida?

Aprovei tal resposta; Paruba ficou muito satisfeito com ela; mas Birton
não se abalou; e notei pelos olhos de Jenni, que este ainda se achava
bastante indeciso. Birton replicou como segue:

Já que vos servistes de lugares-comuns de envolta com algumas reflexões
novas, empregarei também um lugar comum ao qual jamais se respondeu
senão com ficções e verbiagem. Se existisse mesmo um
Deus tão poderoso e tão bom, não teria ele posto o mal
na terra; não teria devotado as suas criaturas ao sofrimento e ao crime.
Se ele não pôde impedir o mal, é impotente, se o pôde
e não o quis, é bárbaro.

Só temos anais de cerca de oito mil anos, conservados entre os brâmanes;
só os temos de uns cinco mil anos entre os chineses; o que conhecemos
é de ontem; mas, nesse ontem, tudo é horror. Degolamos de um
extremo a outro da terra, e fomos bastante imbecis para dar o nome de grandes
homens, de heróis, de semideuses, de deuses até, àqueles
que mataram o maior número de seus semelhantes.

Restavam na América duas grandes nações civilizadas
que começavam a gozar das doçuras da paz: chegam os espanhóis
e massacram doze milhões desses nativos; partem à caça
de homens, como cães; e Fernando, rei de Castela, concede uma pensão
a esses cães, por terem-no tão bem servido. Os heróis
vencedores do novo mundo, que massacram tantos inocentes desarmados e nus,
mandam servir à mesa assados de homens e mulheres, nádegas,
braços e panturrilhas ensopadas. Mandam assar num braseiro o rei Guatimozin
do México; correm ao Peru, a converter o rei Atabalipa. Um chamado
Almagro, padre, filho de padre, condenado à forca na Espanha por ter
sido ladrão de estrada, vai, com um chamado Pizarro, comunicar ao rei,
por voz de um outro padre, que um terceiro padre, chamado Alexandre VI, manchado
de incestos, de assassínios e de homicídios, dera, por sua livre
vontade, próprio motu, e por seus plenos poderes, não só
o Peru, mas a metade do novo mundo ao rei de Espanha; que Atabalipa deve imediatamente
submeter-se, sob pena de incorrer na indignação dos apóstolos
S. Pedro e S. Paulo. E, como esse rei não entendesse a língua
latina mais do que o padre que lia a bula, foi logo declarado incréu
e herético: mandaram queimar Atabalipa, como fizeram com Guatimozin;
trucidaram o seu povo, e tudo isso para roubar uma terra amarela endurecida,
que só serviu para despovoar e empobrecer a Espanha: pois lhe fez negligenciar
a verdadeira terra que sustenta os homens quando cultivada.

Com efeito, meu caro sr. Freind, se o ser fantástico e ridículo
a que chamam Diabo tivesse querido fazer homens à sua imagem e semelhança,
acaso os teria formado de outro modo? Deixai, pois, de atribuir a um Deus
uma obra tão abominável.

Esta tirada colocou toda a assembléia do lado de Birton. Eu via Jenni
triunfar em segredo; até a jovem Paruba se sentiu tomada de horror
ante o padre Almagre, o padre que lera a bula em latim, o padre Alexandre
Vi, todos os cristãos que haviam cometido tão inconcebíveis
crimes por devoção e para roubar ouro. Confesso que tremi pelo
amigo Freind; desesperava da sua causa; eis no entanto como ele respondeu,
sem perturbar-se.:

Meus amigos, lembrai-vos sempre de que existe um Ser supremo; eu vo-lo provei,
e concordastes comigo, e, após ter sido forçados a confessar
que ele existe, vós vos esforçastes por lhe achar imperfeições,
vícios e maldades.

Longe estou de vos afiançar, como certos arrazoadores, que os males
particulares formam o bem geral. Essa extravagância é demasiado
ridícula. Convenho com pesar em que existe muito mal moral e mal físico;
mas, já que a existência de Deus é certa, também
é certo que esses males todos não podem impedir que Deus exista.
Ele não pode ser mau; pois que interesse teria em sê-lo? Há
males terríveis, meus amigos: pois bem! não lhes aumentemos
o número. É impossível que Deus não seja bom;
mas os homens são perversos; fazem um detestável uso da liberdade
que esse Grande Ser lhes deu e lhes deve ter dado, isto é, o poder
de executarem suas próprias vontades, sem o que não passariam
de puras máquinas formadas por um ser mau, para serem por ele quebradas.

Todos os espanhóis esclarecidos concordam em que um pequeno número
de seus antepassados abusou dessa liberdade até a prática de
crimes que fazem fremir a natureza. Dom Carlos, segundo do nome (de quem possa
o senhor arquiduque ser sucessor!) reparou o quanto pôde as atrocidades
a que se entregaram os espanhóis sob Fernando e sob Carlos Quinto.

Meus amigos, se existe o crime na face da terra, aqui também existe
a virtude.

Birton: — Ah! ah! ah! a virtude! Engraçado, isto. Por Deus!
Eu bem queria saber que cara tem a virtude, e onde encontrá-la.

A estas palavras, não me contive e interrompi por minha vez a Birton:
— “Vós a encontrareis no sr. Freind, no bom Paruba, em
vós mesmo, quando tiverdes limpado o coração dos vícios
que os recobrem.” Ele corou, Jenni também; depois Jenni baixou
os olhos, e pareceu sentir remorsos. O pai olhou-o com alguma compaixão
e prosseguiu nos seguintes termos:

Sim, meus caros amigos, se houve crimes, sempre houve virtudes. Atenas,
Se viu Anitos, viu também Sócrates; Roma, se teve Silas, também
teve Catões; Calígula, Nero, horrorizaram o mundo com as suas
atrocidades; mas Tito, Trajano Antonino Pio, Marco Aurélio consolaram-no
com a sua beneficência: o meu Sherloc dirá em poucas palavras
ao bom Paruba quem eram esses a que me refiro. Tenho felizmente o meu Epicteto
aqui no bolso: esse Epicteto não passava de um escravo, mas, pelos
seus sentimentos, era igual a Marco Aurélio. Escutai, e possam todos
aqueles que se arvoram em doutrinadores escutar o que Epicteto diz a si mesmo:
Foi Deus quem me criou, eu o trago em mim; ousaria desonrá-lo com pensamentos
infames, com ações criminosas, com desejos indignos? A sua vida
foi conforme as suas palavras. Marco Aurélio, no trono da Europa e
de duas outras partes de nosso hemisfério, não pensou diversamente
de Epicteto; jamais se humilhou este da sua baixeza, jamais se deslumbrou
da sua grandeza; e, quando escreveram seus pensamentos, fizeram-no para si
mesmos e para seus discípulos, e não para serem louvados nos
jornais. E, na vossa opinião, Locke, Newton, Tillotson, Penn, Clarke,
aquele a que chamam the man of Ross, e tantos outros da nossa ilha e fora
da nossa ilha, que eu vos poderia citar, não foram modelos de virtude?
Falastes das guerras tão cruéis quãatilde;o injustas de que
tantas nações se tornaram culpadas, descrevestes as abominações
dos cristãos no México e no Peru, podeis acrescentar a isso
a noite de S. Bartolomeu na França e os morticínios da Irlanda;
mas não há povos inteiros que sempre tiveram horror ao derramamento
de sangue? Os brâmanes não deram sempre tal exemplo ao mundo?
E, sem sair do país onde nos achamos, não temos aqui perto a
Pensilvânia, onde os nossos primitivos, que desfiguram em vão
com o nome de quakers, sempre detestaram a guerra? Não temos a Carolina,
onde o grande Locke ditou as suas leis? Nessas duas pátrias da virtude,
todos os cidadãos são iguais, todas as consciências são
livres, todas as religiões são boas, desde que se adore a um
Deus; todos os homens são ali irmãos. Vistes como, à
simples menção de um descendente de Penn, os habitantes das
montanhas azuis, que podiam exterminar-vos, logo largaram as armas. Eles sentiram
o que é a virtude, e vós vos obstinais em ignorá-lo!
Se a terra tanto produz venenos como alimentos salutares, ides acaso alimentar-vos
unicamente de veneno?

Birton: — Ah! senhor, para que tantos venenos? Se Deus tudo fez, os
venenos são obra sua; ele é o senhor de tudo; ele faz tudo;
ele dirige a mão de Cromwell que assina a morte de Carlos I; ele conduz
o braço do carrasco que lhe corta a cabeça; não, não
posso admitir um Deus homicida.

Freind: — Nem eu tampouco. Escutai, peço-vos; haveis de convir
comigo em que Deus governa o mundo por meio de leis gerais. Segundo essas
leis, Cromwell, monstro de fanatismo e de hipocrisia, decidiu a morte de Carlos
I, por seu interesse, que todos os homens necessariamente amam e que nem todos
interpretam do mesmo modo. Segundo as leis do movimento estabelecidas pelo
próprio Deus, o carrasco cortou a cabeça desse rei. Mas sem
dúvida Deus não assassinou Carlos I por um ato particular da
sua vontade. Deus não foi nem Cromwell, nem Jeffrys, nem Ravaillac,
nem Balthazar Gérard, nem o irmão pregador Jacques Clément.
Deus não comete, nem ordena, nem permite o crime; mas fez o homem,
e fez as leis do movimento; essas leis eternas do movimento são igualmente
executadas pela mão do homem caridoso que socorre o pobre e pela mão
do celerado que degola seu irmão. Da mesma forma que Deus não
extingue o sol e não afunda a Espanha no mar, para punir Cortez, Almagro
e Pizarro, que inundaram de sangue humano a metade de um hemisfério,
assim também não envia um bando de anjos a Londres, nem faz
baixarem do céu cem mil tonéis de vinho de Borgonha, para causar
prazer a seus queridos ingleses quando estes praticam uma boa ação.
Sua providência geral seria ridícula se baixasse em cada momento
a cada indivíduo; e tão palpável é essa verdade
que Deus puniu imediatamente a um criminoso, com um golpe teatral da sua onipotência:
deixa brilhar o seu sol sobre os bons e sobre os maus. Se alguns celerados
morrem imediatamente após seus crimes, aconteceu-lhes isso por obra
das leis gerais que presidem o mundo. Li no grande livro de um frenchman chamado
Méseray que Deus fizera morrer o nosso grande Henrique V de uma fístula
no orifício final do intestino grosso porque ele ousara sentar-se no
trono do rei cristianíssimo; não, ele morreu por que as leis
gerais emanadas da onipotência tinham de tal modo arranjado a matéria
que a fístula no orifício final do intestino grosso acabaria
com a vida daquele herói Todo o mal físico de uma ação
má é efeito das leis gerais impostas pela mão de Deus
à matéria; todo o mal moral da ação criminosa
é efeito da liberdade de que o homem abusa.

Enfim, sem nos perdermos no nevoeiro da metafísica, lembremo-nos que
está demonstrada a existência de Deus; não há que
discutir quanto à sua existência. Tirai Deus ao mundo, e acaso
se tornará mais legítimo o assassínio de Carlos I? Mais
caro vos será o seu carrasco? Deus existe, é justo. Sede pois
justos.

Birton: — E vós, sr. Freind, que falais tão bem, não
lestes o livro intitulado O Bom-Senso?

Freind: — Sim, eu o li, e não sou daqueles que condenam tudo
em seus adversários. Há nesse livro verdades bem expostas, mas
prejudicadas por um grande defeito. O autor quer continuamente destruir o
Deus de Scot, de Albert, de Boaventura, o Deus dos ridículos escolásticos
e dos monges. Notai que não ousa dizer uma palavra contra o Deus de
Sócrates, de Platão, de Epicteto, de Marco Aurélio, contra
o Deus de Newton e de Locke, contra o meu Deus, ouso dizê-lo. Perde
o tempo a deblaterar contra superstições absurdas e abomináveis
cujo ridículo e horror todas as pessoas sensatas hoje reconhecem. É
como se se escrevesse contra a natureza porque os turbilhões de Descartes
a desfiguraram; é como se se dissesse que o bom gosto não existe
porque a maioria dos autores não tem gosto nenhum. Aquele que escreveu
o livro do Bom-Senso julga haver atacado a Deus, e com isso demonstra absoluta
falta de bom-senso: só escreveu contra certos padres antigos e modernos.
Julga haver aniquilado o senhor por ter repetido que ele foi muitas vezes
servido por velhacos.

Birton: — Escutai, nós poderíamos aproximar-nos. Eu
poderia respeitar o senhor se me entregásseis os servos. Amo a verdade;
mostrai-ma, e eu a seguirei.

CAPÍTULO X

Sobre o ateísmo

Descera a noite. Era bela, a atmosfera era uma abóbada de transparente
azul, semeada de estrelas de ouro; esse espetáculo sempre toca os homens
e lhes inspira doces meditações: o bom Paruba admirava o céu,
como um alemão admira a basílica de S. Pedro, ou a Ópera
de Nápoles, ao vê-la pela primeira vez.

— Essa abóbada é bastante ousada – dizia Paruba
a Freind, e Freind lhe retrucava:

— Não há nenhuma abóbada, meu caro Paruba; essa
cúpula azul não é mais que um estendal de nuvens ligeiras,
que Deus de tal modo dispôs e combinou de tal modo com a mecânica
de vossos olhos, que, em qualquer ponto em que vos acheis, estais sempre no
centro do vosso passeio, e avistais isso a que chamam céu, e que não
é o céu, arqueado sobre a vossa cabeça.

— E essas estrelas, sr. Freind?

— São, como já o disse, outros tantos sóis em
torno dos quais giram outros mundos; longe de estarem ligados a essa abóbada
azul, lembrai-vos que estão a distâncias diferentes e prodigiosas:
aquela que estais vendo acha-se a mil e duzentos milhões de mil passos
do nosso sol.

Mostrou-lhe então o telescópio que trouxera: fez-lhe ver nossos
planetas, Júpiter com as suas quatro luas, Saturno com as suas cinco
luas e o seu inconcebível anel luminoso; é a mesma luz, dizia-lhe
ele, que parte de todos esses globos, e que chega a nossos olhos, daquele
planeta em um quarto de hora, daquela estrela em seis meses. Paruba pôs-se
de joelhos e disse: “Os céus anunciam Deus.” Toda a equipagem
cercava o venerável Freind, olhava, e admirava. O coriáceo Birton
avançou sem nada olhar, e falou assim:

Birton: — Pois bem, seja! há um Deus, concedo-vos; mas que
importa a vós e a mim? Que há entre o Ser infinito e nós,
vermes da terra? Que relação pode existir entre a sua essência
e a nossa? Epicuro, admitindo deuses nos planetas, tinha razão em ensinar
que eles não se misturavam absolutamente às nossas tolices e
aos nossos horrores; que não podíamos nem ofendê-los nem
lhes agradar; que não tinham nenhuma necessidade de nós, nem
nós deles: admitis um Deus mais digno do espírito humano que
os deuses de Epicuro e que todos os deuses dos orientais e ocidentais. Mas
se dizeis, como tantos outros, que esse Deus formou ao mundo e a nós
para sua glória; que exigiu outrora sacrifícios de bois, para
sua glória; que apareceu, para glória sua, sob a nossa forma
de bípedes, etc., estareis dizendo, parece-me, uma coisa absurda, que
faria rir a todas as pessoas que pensam. O amor da glória não
é outra coisa que orgulho, e o orgulho não passa de vaidade;
um orgulhoso é um tolo personagem que Shakespeare representava no seu
teatro: esse epíteto não pode convir mais a Deus que o de injusto,
de cruel, de inconstante. Se Deus se dignou fazer, ou antes, arranjar o universo,
só deve ter sido em vista de fazer felizes as criaturas. Deixo a vosso
entendimento o afirmar se ele atingiu tal desígnio, o único,
no entanto, que poderia convir à natureza divina.

Freind: — Sim, sem dúvida, ele o conseguiu com todas as almas
justas: elas serão felizes um dia, se já não o são
hoje.

Birton: — Felizes! Que sonho! Que história da Carochinha! Onde?
Como? Quando? Quem vos disse tal?

Freind: — A sua justiça.

Birton: — Não me digais, depois de tantos declamadores, que
nós viveremos eternamente quando não mais existirmos; que possuímos
uma alma imortal, ou antes, que ela nos possui, após nos haverdes confessado
que os próprios judeus, os judeus a quem vos gabais de haver substituído,
jamais suspeitaram ao menos essa imortalidade da alma, até o tempo
de Herodes? Essa idéia de uma alma imortal fora inventada pelos brâmanes,
adotada pelos persas, os caldeus, os gregos, ignorada muito tempo pela infeliz
horda judaica, mãe das mais infames superstições. Ah,
senhor, sabemos ao menos se possuímos uma alma? Sabemos se os animais
cujo sangue lhes constitui a vida, como constitui a nossa, que têm,
como nós, vontades, apetites, paixões, idéias, memória,
indústria, sabeis se essas criaturas, tão incompreensíveis
quanto nós, possuem uma alma, como pretendem que nós possuímos?

Julgara até agora que existia na natureza uma força ativa
de que recebemos o dom de viver em todo o nosso corpo, de marchar com os pés,
de aprender com as mãos, de ver com os olhos, de ouvir com os ouvidos,
de sentir com os nervos, de pensar com a cabeça, e que tudo isso era
o que chamamos alma, palavra vaga que não significa, no fundo, mais
que o princípio desconhecido de nossas faculdades. Chamarei Deus, convosco,
a esse princípio inteligente e poderoso que anima a natureza inteira;
mas acaso se dignou ele em dar-se a conhecer a nós?

Freind: — Sim, pelas suas obras.

Birton: — Ditou-nos as suas leis? Falou-nos?

Freind: — Sim, pela voz da vossa consciência. Não é
verdade que, se houvésseis matado vosso pai e vossa mãe, essa
consciência vos despedaçaria com remorsos tão horrendos
quão involuntários? Essa verdade não é sentida
e confessada pelo universo inteiro? Baixemos agora a menores crimes. Haverá
um único que não vos assuste à primeira vista, que não
vos faça empalidecer na primeira vez em que o cometeis, e que não
vos deixe no coração o aguilhão do arrependimento?

Birton: — Tenho de o confessar.

Freind: — Deus portanto expressamente ordenou, falando a vosso coração,
que nunca vos manchásseis com um crime evidente. E quanto a todas essas
ações equívocas, que uns condenam e outros justificam,
que de melhor temos a fazer senão seguir esta grande lei do primeiro
dos Zoroastros, tão celebrada em nossos dias por um autor francês:
“Quando não sabes se a ação que meditas é
boa ou má, abstém-te”?

Birton: — Essa máxima é admirável; é sem
dúvida o que jamais se disse de mais belo, isto é, de mais útil
em moral; e isso quase me faria pensar que Deus suscitou de tempos em tempos
alguns sábios que ensinaram a virtude aos homens transviados. Peço-vos
perdão de haver escarnecido da virtude.

Freind: — Pedi perdão ao Ser eterno, que pode recompensá-lo
eternamente, e punir os transgressores.

Birton: — Como! Deus me puniria eternamente por me haver entregue
a paixões que ele me deu?

Freind: — Ele vos deu paixões com as quais se pode fazer o
bem e o mal Eu não disse que ele vos punirá para sempre, nem
como vos punirá, pois ninguém pode saber nada a respeito; digo-vos
que ele o pode. Foram os brâmanes os primeiros que imaginaram uma prisão
eterna para as substâncias celestes que se haviam revoltado contra Deus
no seu próprio palácio; encerrou-os numa espécie de inferno
a que chamavam ondera; mas, ao cabo de alguns milhares de séculos,
suavizou-lhes as penas, colocou-os na terra, fê-los homens: é
daí que vem a nossa mescla de vícios e de virtudes, de prazeres
e de calamidades. É engenhosa essa imaginação; e ainda
mais o é a fábula de Pandora e de Prometeu. Nações
grosseiras imitaram grosseiramente a bela fábula de Pandora; essas
invenções são sonhos da filosofia oriental; tudo o que
vos posso dizer é que, se cometestes crimes abusando da vossa liberdade,
ser-vos-á impossível provar que Deus seja incapaz de vos punir;
desafio-vos a isso.

Birton: — Esperai; dizeis que não vos posso demonstrar que
ao grande Ser é impossível punir-me: palavra, tendes razão;
fiz o que pude para provar-me que isso era impossível, e jamais o consegui.
Confesso que abusei da minha liberdade, e que Deus me pode castigar; mas,
por Deus! não serei punido quando não mais existir.

Freind: — O melhor partido é serdes honesto enquanto existis.

Birton: — Ser honesto enquanto existo?… Sim, confesso-o, tendes
razão, é o partido que se deve tomar.

Desejaria, caro amigo, que houvésseis testemunhado o efeito que as
palavras de Freind produziram em todos os ingleses e americanos. Birton, tão
leviano e audacioso, tomou de súbito um ar recolhido e modesto; Jenni,
com os olhos úmidos de pranto, lançou-se aos joelhos de seu
pai, e o pai o abraçou. Eis enfim a última cena dessa disputa
tão espinhosa e tão interessante.

CAPÍTULO XI

Do ateísmo

Birton: — Concebo perfeitamente que o grande Ser, o senhor da natureza,
seja eterno; mas nós, que não existíamos ontem, poderemos
ter a louca ousadia de aspirar a uma eternidade futura? Tudo parece sem remissão
em torno de nós, desde o inseto devorado pela andorinha até
o elefante devorado pelos vermes.

Freind: — Não, nada perece: tudo se transforma: os germes impalpáveis
dos animais e dos vegetais subsistem, desenvolvem-se, e perpetuam as espécies.
Por que não havíeis de querer que Deus conservasse o princípio
que vos faz agir e pensar, de qualquer natureza que ele possa ser? Deus me
livre de construir um sistema; mas certamente há em nós qualquer
coisa que pensa e que quer: essa qualquer coisa, a que chamavam outrora uma
mônada, essa qualquer coisa, é imperceptível. Deus no-la
deu, ou talvez, para falar mais justo, Deus nos deu a ela. Estais bem certo
de que ele não a pode conservar? Pensai, examinai, podeis fornecer-me
alguma demonstração disso?

Birton: — Não;. procurei-a em meu entendimento, em todos os
livros dos ateus, e sobretudo no terceiro canto de Lucrécio; confesso
que nunca encontrei senão verossimilhanças.

Freind: — E, louvados nessas simples verossimilhanças, nos
entregaríamos a todas as nossas funestas paixões? Viveríamos
como brutos, não tendo como regra senão os nossos apetites e
como freio o temor dos outros homens, eternamente inimigos uns dos outros
devido a esse mútuo temor! pois a gente sempre quer destruir aquilo
a que teme. Pensai bem nisso, Sr. Birton, reflete profundamente sobre isso,
meu filho Jenni; não esperar de Deus nem castigo nem recompensa, é
ser verdadeiramente ateu. De que serviria a idéia de um Deus que não
tivesse nenhum poder sobre nós? É como se dissessem: há
um rei da China que é muito poderoso. Que lhe faça bom proveito,
– responderia eu; – que fique na sua terra e eu na minha não
me preocupo mais com ele do que ele comigo; ele não tem mais jurisdição
sobre a minha pessoa do que um cônego de Windsor sobre um membro do
nosso Parlamento; então sou eu o meu próprio Deus: sacrifico
o mundo inteiro as minhas fantasias, se se apresentar uma ocasião;
sou sem lei, e só importo a mim mesmo. Se os outros seres são
carneiros, faço-me lobo; se são galinhas, faço-me raposa.

Suponhamos (queira Deus o contrário) que toda a nossa Inglaterra
seja atéia por princípios. Convenho em que poderá haver
vários cidadãos que, nascidos com um gênio tranqüilo
e brando, bastante ricos para não terem necessidade de ser injustos,
governados pela honra e por isso atentos a seu procedimento, conseguirão
viver em sociedade: cultivarão as belas artes, que suavizam os costumes:
poderão viver na paz, na inocente alegria da gente honrada. Mas o ateu
pobre e violento, seguro da sua impunidade, será um tolo se não
vos assassinar para roubar vosso dinheiro. De então, todos os elos
da sociedade são rompidos, todos os crimes secretos inundam a terra,
como os gafanhotos, no princípio mal percebidos, vêm assolar
nossos campos; o baixo povo não passará de uma horda de salteadores,
como os nossos ladrões de que não se enforca a décima
parte: passam a sua miserável vida em tavernas, com prostitutas, batem-lhes,
batem-se entre si; tombam bêbedos no meio de seus canecões com
os quais quebram a cabeça uns aos outros; despertam para roubar e para
assassinar; recomeçam cada dia esse círculo abominável
de brutalidades!

Quem conterá os grandes e os reis nas suas vinganças, na sua
ambição, à qual tudo querem imolar? Um rei ateu é
mais perigoso que um Ravaillac fanático.

Os ateus formigavam na Itália, no século XV; que resultou
daí? Tornou-se tão comum envenenar como oferecer uma ceia, e
mergulhar um punhal no coração de um amigo como abraçá-lo;
houve professores de crime, como há hoje mestres de música e
de matemática. Escolhiam expressamente os templos para ai assassinar
os príncipes ao pé dos altares. O papa Sixto IV e um arcebispo
de Florença mandaram assassinar assim os dois príncipes mais
distintos da Europa. (Dizei, meu caro Sherloc, a Paruba e a seus filhos, o
que é um papa e um arcebispo, e dizei-lhes sobretudo que já
não existem semelhantes monstros.) Mas continuemos. Um duque de Milão
foi assassinado da mesma forma no interior de uma igreja. São por demais
conhecidos os espantosos horrores de Alexandre VI. Se houvessem subsistido
tais costumes, a Itália teria ficado mais deserta do que o Peru após
a invasão.

A crença num Deus remunerador, das boas ações, punidor
das más, perdoador das faltas leves, é pois a crença
mais útil ao gênero humano; é o único freio dos
poderosos, que cometem insolentemente os crimes públicos; é
o único freio dos homens que cometem disfarçadamente os crimes
secretos. Não vos digo, meus amigos, que junteis, a essa crença
necessária, superstições que a desonrariam e que até
poderiam torná-la funesta: o ateu é um monstro que só
devorará para apaziguar a fome; o supersticioso é outro monstro
que estraçalhará os homens por dever. Sempre notei que se pode
curar um ateu, mas jamais se cura radicalmente a um supersticioso; o ateu
é um homem de talento que se engana, mas que pensa por si mesmo; o
supersticioso é um tolo brutal que jamais teve senão as idéias
dos outros. O ateu violará Ifigênia, prestes a desposar Aquiles,
mas o fanático a degolará piedosamente sobre o altar, e julgará
que Júpiter lhe ficará devendo obrigações; o ateu
roubará um vaso de ouro a uma igreja, para cear com mulheres. alegres,
mas um fanático celebrará um auto-de-fé nessa igreja
e entoará um cântico judeu, a plenos pulmões, enquanto
faz queimar judeus, sim, meus amigos, o ateísmo e o fanatismo são
os dois pólos de um universo de confusão e de horror. A pequena
zona da virtude está entre esses dois pólos; marchai a passo
firme por esse caminho; acreditai num Deus bom, e sede bons. É tudo
quanto os grandes legisladores Locke e Penn pedem a seus povos.

Respondei-me, senhor Birton, vós e vossos amigos: que mal vos pode
fazer a adoração de um Deus, junta à ventura de ser um
homem honrado? Neste momento em que vos falo, podemos todos ser atacados de
uma doença mortal: qual de nós não desejaria então
ter vivido na inocência? Vede como o nosso mau Ricardo III morre em
Shakespeare; como os espectros de todos aqueles que ele matou vêm aterrorizar
sua imaginação. Vede como expira Carlos IX de França
após S. Bartolomeu. Por mais que lhe diga o capelão que ele
fez bem, seu crime o dilacera, seu sangue jorra-lhe pelos poros, e todo o
sangue que fez correr brada contra ele. Acreditai-me: de todos esses monstros,
não há nenhum que não tenha vivido nos tormentos do remorso
e que não tenha acabado no desespero.

CAPÍTULO XII

Regresso à Inglaterra. Casamento de Jenni

Birton e seus amigos não mais puderam conter-se; lançaram-se
aos joelhos de Freind.

— Sim – disse Birton, – eu creio em Deus e em vós.

Já estavam perto da casa de Paruba. Ali cearam; mas Jenni não
pode comer: mantinha-se afastado, derramava lágrimas; o pai foi procurá-lo
para o consolar.

— Ah! – disse-lhe Jenni, – eu não merecia ter um
pai como vós; morrerei de dor de me haver deixado seduzir por essa
abominável Clive-Hart: sou a causa, embora inocente, da morte de Primerose;
e, ainda há pouco, quando nos falastes de envenenamento, senti um calafrio;
pareceu-me ver Clive-Hart apresentando a Primerose a horrível beberagem.
Meu Deus! Como pude ter o espírito bastante alienado para seguir uma
criatura tão criminosa? Ela enganou-me; eu estava cego. Só me
desenganei um pouco antes de os selvagens a terem apanhado: num assomo de
cólera, ela quase me fez a confissão de seu crime. Desde esse
momento, tive-lhe horror. E, para meu suplício, a imagem de Primerose
está incessantemente diante de meus olhos; eu a vejo, eu a ouço;
ela me diz: “Eu estou morta porque te amava.”

O senhor Freind esboçou um sorriso de bondade, cujo motivo Jenni
não compreendeu; disse-lhe o pai que só uma vida impecável
poderia reparar as faltas passadas; levou-o para a mesa como um homem a quem
acabam de retirar das vagas onde se afogava; eu próprio o abracei,
agradei-lhe, animei-o; estávamos todos comovidos.

Aparelhamo-nos no dia seguinte para voltar à Inglaterra, depois de
ter dado presentes a toda a família de Paruba: nossos adeuses foram
mesclados de lágrimas sinceras; Birton e seus camaradas, que nunca
tinham sido senão levianos, pareciam agora completamente sensatos.

Estávamos em alto mar, quando Freind disse a Jenni em minha presença:

— E então, meu filho, a lembrança da linda, da virtuosa
e terna Primerose ainda te é muito cara?

Jenni desesperou-se a essas palavras; as flechas de um eterno e inútil
arrependimento lhe varavam o coração, e eu temi que ele se precipitasse
no mar.

— Pois bem – disse-lhe Freind, – consola-te; Primerose
está. viva, e ama-te.

Freind, com efeito, recebia notícias seguras, graças àquele
fiel empregado que lhe escrevia por todos os navios que partiam para Maryland.
O senhor Mead, que depois adquiriu tamanha reputação no conhecimento
de todos os venenos, tivera a felicidade de arrancar Primerose aos braços
da morte. O sr. Freind mostrou ao filho aquela carta que ele relera tantas
vezes e com tanta emoção.

Jenni passou, em um ápice, do auge do desespero ao da felicidade.
Não vos descreverei o efeito dessa tão repentina mudança;
quanto mais me impressionou, menos posso exprimi-lo; foi o mais belo momento
da vida de Jenni. Birton e seus camaradas compartilharam tão pura alegria.

Que mais vos direi? O excelente Freind lhes serviu de pai a todos. O casamento
do belo Jenni e da bela Primerose efetuou-se em casa do doutor Mead. Também
casamos Birton, que estava completamente mudado. Jenni e ele são hoje
as pessoas mais honradas da Inglaterra. Haveis de convir em que um sábio
pode curar loucos.

NOTAS

(1) – Toda essa história é narrada por Abdias, Marcelo
e Hegesipo. Eusébio refere-lhe uma parte.
(2) – Cap. IX.
(3) – Atos, Cap. XXVI.
(4) – História Apostólica de Abdias. Tradução
de Júlio Africano, livro VI, pp. 395 e seguintes.
(5) – Eusébio, liv. III, cap. XXX.
(6) – Vem transcrita na Apologia do Conde de Peterborou, pelo doutor
Freind, pag. 143.
(7) – Em francês eau-de-vie, isto é, água de vida.(bebida
alcoólica).

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