Antônio e Cleópatra

William Shakespeare

Personagens Dramáticas

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MARCO ANTÔNIO, triúnviro,
OTÁVIO CÉSAR, triúnviro,
M. EMÍLIO LÉPIDO, triúnviro,
SEXTO POMPEU,
DOMÍCIO ENOBARBO, amigo de Antônio,
VENTÍDIO, amigo de Antônio,
EROS, amigo de Antônio,
ESCARO, amigo de Antônio,
DERCETAS, amigo de Antônio,
DEMÉTRIO, amigo de Antônio,
FILO, amigo de Antônio,
MECENAS, amigo de César,
AGRIPA, amigo de César,
DOLABELA, amigo de César,
PROCULEIO, amigo de César,
TIREU, amigo de César,
GALO, amigo de César,
MENAS, amigo de Pompeu,
MENÉCRATES, amigo de Pompeu,
VARRIO, amigo de Pompeu,
TAURO, tenente-general de César,
CANÍDIO, tenente-general de Antônio,
SÍLIO, oficial sob as ordens de Ventídio,
EUFRÔNIO, embaixador de Antônio para César,
ALEXAS, servidor de Cleópatra,
MARDIAN, servidor de Cleópatra,
SELEUCO, servidor de Cleópatra,
DIOMEDES, servidor de Cleópatra,
Um adivinho,
Um bobo,
CLEÓPATRA, rainha do Egito,
OTÁVIA, irmã de César e esposa de Antônio,
CHARMIAN, criada de Cleópatra,
IRAS, criada de Cleópatra,
Oficiais, soldados, mensageiros e gente de serviço

ATO I
Cena I

Alexandria. Um quarto no palácio de Cleópatra. Entram Demétrio e Filo.

FILO — Não! Passa da medida essa loucura do nosso general. Aqueles olhos altivos que brilhavam como Marte com seu arnês chapeado, dominando multidões de soldados em revista, ora se abaixam, ora se desviam do ofício e devoção que lhes são próprios, para uma fronte escura. Aquele grande coração, que na grita das batalhas monumentais fazia que saltassem, partidas, as fivelas da couraça, agora renegou o autodomínio, para tornar-se a ventarola e o fole que acalmar tenta o ardor de uma cigana. Vede onde eles vêm vindo! (Entram Antônio e Cleópatra, com os respectivos séqüitos; eunucos a abanam.) Tomai nota, e observareis como um dos três pilares do mundo no palhaço de uma simples rameira se mudou. Examinai-os!

CLEÓPATRA — Se é amor, realmente, revelai-me quanto.

ANTÔNIO — Pobre é o amor que pode ser contado.

CLEÓPATRA — Vou pôr um marco, para o ponto extremo do amor assinalar.

ANTÔNIO — Fora preciso descobrir novos céus, uma outra terra.

(Entra um ajudante.)

AJUDANTE — Novas de Roma, meu bondoso chefe.

ANTÔNIO — Que estais! Vamos lá: resume a história.

CLEÓPATRA — Não, Antônio! Ouvi tudo. Talvez Fúlvia se encontre estomagada, ou talvez ainda o César quase imberbe vos haja ordens mandado peremptórias: “Faze isto e aquilo; toma aquele reino, liberta este outro! Cumpre as minhas ordens, se não quiseres receber castigo.”

ANTÔNIO — Como, querida?

CLEÓPATRA — Talvez? Não; é certo: não podereis ficar aqui mais tempo; César já vos enviou a demissão. Por isso, Antônio, ouvi: onde é que se acha a expressa ordem de Fúlvia… isto é, de César… de ambos? — Fazei entrar os mensageiros. — Tão certo como eu ser do Egito a rainha, Antônio, tu coraste. Esse teu sangue é a maior homenagem feita a César, se não for o tributo da vergonha que tuas faces pagam, quando a língua estrídula de Fúlvia te repreende. Olá! Os mensageiros!

ANTÔNIO — Que se afunde Roma no Tibre e de seus gonzos salte a gigantesca abóbada do império. Meu espaço é este aqui. Todos os remos são argila, mais nada; nossa terra cenagosa alimenta homens e brutos, indiferentemente. Com nobreza viver é proceder desta maneira, (Abraça-a.) quando se encontra um par tão ajustado, como se dá conosco. Desafio todo o mundo, sob pena de castigo, para vir convencer-se de que somos sem confronto possível.

CLEÓPATRA — Admirável falsidade! Por que casou com Fúlvia, se não lhe tinha amor? Quero a aparência manter da tola que não sou realmente; continuará Antônio sendo o mesmo.

ANTÔNIO — Mas amimado agora por Cleópatra. Mas, pelo amor do Amor e de seus brandos momentos, não gastemos nosso tempo com debates fastientos. Nossas vidas não contêm um minuto, um só, que deva passar sem nos deixar qualquer ventura. Qual é o divertimento desta noite?

CLEÓPATRA — Ouvi os embaixadores.

ANTÔNIO — Que rainha implicante, em que tudo assenta bem: repreender, rir, chorar, e em que se esforçam as paixões porque em ti se tornem belas e admiradas. Nenhum correio, salvo se vier de tua parte. Os dois, sozinhos, percorreremos hoje à noite as ruas, para observarmos como vive o povo. Vamos, minha rainha, que isso mesmo queríeis ontem. Não; ficai calada.

(Saem Antônio e Cleópatra com seus séqüitos.)

DEMÉTRIO — Como! Tão pouco caso faz Antônio de César a esse ponto!

FILO — Algumas vezes, senhor, isso se dá, quando ele deixa de ser Antônio e se desfaz um pouco daquela dignidade que devia sempre estar com Antônio.

DEMÉTRIO — Fico triste por ver que ele confirma os maldizentes da rua que sobre ele em Roma falam. Mas esperemos que amanhã revele mais dígna compostura. Bom repouso.

(Saem)

Cena II

O mesmo. Outro quarto. Entram Charmian, Iras, Alexas e um adivinho.

CHARMIAN — Senhor Alexas, suave Alexas, extraordinário Alexas, onde está o adivinho que tanto elogiastes à rainha? Oh! Quero que ele me mostre o marido que, como dizeis, terá de pôr grinaldas nos cornos.

ALEXAS — Adivinho!

ADIVINHO — Que desejais!

CHARMIAN — É este o homem? Sois vós, senhor, que conheceis as coisas?

ADIVINHO — No grande livro da natura, alguma coisa consigo ler.

ALEXAS — Mostrai-lhe a mão.

(Entra Enobarbo.)

ENOBARBO — Aprestai o banquete, sem demora, com vinho em profusão, para à saúde de Cleópatra beberem.

CHARMIAN — Meu bom senhor, dai-me uma boa sorte.

ADIVINHO — Não dou sorte; apenas a revelo.

CHARMIAN — Então, por obséquio, revelai a minha.

ADIVINHO — Ainda ficareis mais clara do que sois.

CHARMIAN — Ele se refere à carne.

IRAS — Não; é que vos pintareis, quando ficardes velha.

CHARMIAN — Que as rugas não o permitam!

ALEXAS — Não perturbeis sua presciência; prestai atenção.

CHARMIAN — Silêncio!

ADIVINHO — Amareis mais do que sereis amada.

CHARMIAN — Prefiro aquecer o fígado com bebida.

ALEXAS — Não; ouçamo-lo.

CHARMIAN — Muito bem; agora qualquer sorte fora do comum. Fazei-me casar com três reis, numa única manhã, e enviuvar deles todos; fazei que eu tenha um filho aos cinqüenta, a quem prestará homenagem Herodes da Judéia; revelai que vou casar-me com Otávio César, e equiparai-me, assim, à minha senhora.

ADIVINHO — Sobrevivereis à senhora a que servis.

CHARMIAN — Oh! excelente! Gosto mais de vida longa do que de figos.

ADIVINHO — Já vistes e provastes melhor sorte do que a que vos espera.

CHARMIAN — Então, é que meus filhos ficarão sem nome. Mas, por obséquio: ao todo, quantos meninos e quantas meninas irei ter?

ADIVINHO — Um milhão, se cada um de vossos desejos tivesse ventre e pudesse ser fecundado.

CHARMIAN — Vai saindo, tolo! Mas enfim, por seres bruxo, te perdôo.

ALEXAS — Pensáveis que vossos anelos só eram conhecidos da roupa da cama?

CHARMIAN — Vamos! vamos! Contai agora a sorte de Iras.

ALEXAS — Nós todos queremos saber a nossa sorte.

ENOBARBO — A minha sorte, como a da maior parte da dos presentes, hoje à noite consistirá… em ir bêbedo para a cama.

IRAS — Quando mais não seja, haveis de descobrir castidade na palma desta mão.

CHARMIAN — Parece o Nilo, que, quando transborda, pressagia fome.

IRAS — Vai saindo, estouvada! Não entendes de vaticínios.

CHARMIAN — Ora essa! Se uma palma untuosa não for indício de fecundidade, não poderei coçar as orelhas. Por favor, predizei-lhe apenas uma morte vulgar.

ADIVINHO — Vossa sorte é igual dela.

IRAS — Como assim? Como assim? Descei a particularidades.

ADIVINHO — Já disse o que tinha a dizer.

IRAS — Então não tenho nem uma polegada de sorte mais do que ela?

CHARMIAN — Bem; mas dando-se o caso de terdes mesmo uma só polegada de sorte mais do que eu, onde a iríeis procurar?

IRAS — Não haveria de ser no nariz do meu marido.

CHARMIAN — Possa o céu endireitar nossos pensamentos piores. Agora Alexas! A sorte dele! A sorte dele! Ó suave sis só te peço que o façais casar com uma mulher que não ande. E que ela venha a morrer, para dar lugar a outra pior, seguindo-se sempre à pior outra pior ainda, até que a pior de todas o acompanhe, rindo, à sepultura, cinqüenta vezes corno manso! Exalça-me esse voto, bondosa Ísis, ainda que me venhas a negar matéria de mais peso. Imploro-te, bondosa Ísis.

IRAS — Amém. Querida deusa, atende s orações do povo, por que assim como aperta o coração ver mal casado um belo rapaz, mata de tristeza ver um rústico sem cornos. Por isso, bondosa sis, sem ofender o decoro, dai-lhe a sorte que ele merece.

CHARMIAN — Amém.

ALEXAS — Ora vede! Se dependesse delas fazer-me cabrão, tornar-se-iam prostitutas, só para que isso acontecesse.

ENOBARBO — Cuidado! Eis aí Antônio.

CHARMIAN — Não; é Cleópatra.

(Entra Cleópatra)

CLEÓPATRA — Não vistes meu senhor?

ENOBARBO — Não o vi, senhora.

CLEÓPATRA — Aqui não se encontrava?

CHARMIAN — Não, senhora.

CLEÓPATRA — Estava bem disposto; mas, de súbito, uma idéia romana o deixou triste. Enobarbo!

ENOBARBO — Senhora?

CLEÓPATRA — Sai em busca dele e o traze até aqui. Onde está Alexas?

ALEXAS — Aqui, às vossas ordens. Eis meu amo.

(Entra Antônio, com mensageiros e criados.)

CLEÓPATRA — Não desejamos vê-lo. Vem conosco.

(Saem Cleópatra, Enobarbo, Alexas, Iras, Charmian, o adivinho e criados.)

MENSAGEIRO — Fúlvia, tua mulher, foi quem primeiro se pôs em campo.

ANTÔNIO — Contra o mano Lúcio?

MENSAGEIRO — Sim. Essa guerra, porém, terminou logo; a condição do tempo os fez amigos, a juntar-se levando-os contra César que, vitorioso no primeiro embate, da Itália os expulsou.

ANTÔNIO — Bem; que há de pior?

MENSAGEIRO — As más notícias infectado deixam quem tiver de contá-las.

ANTÔNIO — Só no caso de interessarem um covarde ou um tolo. Vamos, falai; o passado não tem força nenhuma sobre mim. É o que te digo. Quem me conta a verdade, embora a morte se ache no que disser, por mim é ouvido como se me adulasse.

MENSAGEIRO — Então, Labieno — eis a notícia amarga — desde o Eufrates com suas forças partas tomou a Ásia; seu estandarte vencedor levado foi da Síria até à Lídia e à Iônia, enquanto…

ANTÔNIO — Antônio, ias dizer…

MENSAGEIRO — Oh! meu senhor!

ANTÔNIO — Sê franco em teu falar; não atenues a linguagem do povo; chama Cleópatra como em Roma lhe chamam; fala dela no fraseado de Fúlvia e censurando-me todas as faltas com o atrevimento só próprio da verdade e da malícia. Oh! é certo: de nós brotam cizânias quando repousam nossos ventos céleres. Enumerar nosso defeitos vale tanto quanto mondá-los. Por enquanto, deixa-me só.

MENSAGEIRO — Às vossas gratas ordens. (Sai.)

ANTÔNIO — Onde está o mensageiro de Sicíone?

PRIMEIRO CRIADO — Há alguém aí que viesse de Sicíone?

SEGUNDO CRIADO — Aguarda vossas ordens.

ANTÔNIO — Então, que entre. Preciso arrebentar os fortes elos do Egito; do contrário, viro tonto. (Entra outro mensageiro.) Quem sois?

SEGUNDO MENSAGEIRO — Fúlvia, tua esposa, já não vive.

ANTÔNIO — Morreu? Onde?

SEGUNDO MENSAGEIRO — Em Sicíone. O decurso da doença e tudo o mais de relevância, que te importa saber, aqui se encontra. (Entrega-lhe uma carta.)

ANTÔNIO — Podes sair. (Sai o segundo mensageiro.) Partiu um grande espírito! E assim o desejei! O que o desprezo muitas vezes atira para longe, reaver desejaríamos. O gozo presente, declinando no seu curso, vem a tornar-se o oposto de si mesmo. Boa tornou-se por já ter morrido; a mão que a repeliu desejaria atraí-la de novo. É necessário que eu largue esta rainha feiticeira. Dez mil calamidades, mais que todos os males que eu conheço, está chocando minha grande nação. Olá, Enobarbo!

(Volta Enobarbo.)

ENOBARBO — Que desejais, senhor?

ANTÔNIO — Sair daqui o mais depressa possível.

ENOBARBO — Se isso acontecer, mataremos as nossas mulheres. Dá pena eliminá-las por um motivo tão pequeno, muito embora com relação a uma grande causa elas todas devam ser tidas na conta de coisa nenhuma. Aos primeiros ruídos da partida Cleópatra morrerá instantaneamente; já a vi morrer vinte vezes por motivos muito mais insignificantes. Estou convencido de que na morte há qualquer substância que exerce influência amorosa sobre ela, tal é a freqüência com que ela tem morrido.

ANTÔNIO — Sua astúcia escapa à compreensão humana.

ENOBARBO — Ah, senhor! Não! Suas paixões são feitas exclusivamente do mais puro amor; não podemos dar o nome de suspiros e de lágrimas aos furacões que lhe saem do peito e às catadupas que lhe brotam dos olhos: são vendavais e tempestades mais terríveis do que os que o calendário anuncia. Não, não pode ser astúcia de sua parte, pois se assim fosse, ela seria capaz de produzir chuva tanto como Jove.

ANTÔNIO — Quem me dera que nunca a tivesse visto!

ENOBARBO — Oh, senhor! Teríeis deixado de ver uma obra-prima maravilhosa, ficando vossa viagem desacreditada por esse fato.

ANTÔNIO — Fúlvia morreu.

ENOBARBO — Senhor!

ANTÔNIO — Fúlvia morreu.

ENOBARBO — Fúlvia!

ANTÔNIO — Morta!

ENOBARBO — Neste caso, senhor, aprestai às divindades um sacrifício gratulatório. Quando aos deuses apraz tirar a mulher a algum marido, este descobre neles o alfaiate da terra, consolando-se com a idéia de que, quando as roupas velhas se tornam imprestáveis, não faltam membros para fazer outras mais novas. Se em todo o mundo não houvesse outra mulher além de Fúlvia, então, sim; teríeis, realmente, recebido um corte, o que seria de lamentar. Essa mágoa é coroada pelo consolo de que a vossa velha camisola de mulher dará nascimento a uma saia nova. Em verdade, as lágrimas que se contêm numa cebola, dariam para lavar essa tristeza.

ANTÔNIO — Os negócios de Estado que por ela eram sempre tratados, não permitem agora minha ausência.

ENOBARBO — E os negócios de que tratais aqui, só se conservam de pé por vossa causa, principalmente o de Cleópatra, que depende só e só de vossa permanência.

ANTÔNIO — Basta de brincadeiras. Comunica aos nossos oficiais o que intentamos. Vou me abrir com a rainha sobre as causas desta nossa partida, o assentimento dela esperando obter. Não só a morte de Fúlvia com sinais mais insistentes nos concita a isso mesmo: muitas cartas de Roma, de igual modo, de pessoas dedicadas reclamam nossa volta. Sexto Pompeu lançou um repto a César; todo o império do mar a ele obedece. Nosso povo inconstante — cujo afeto nunca ao homem de mérito se liga, senão depois que o mérito está morto — já começou a ver Pompeu, o grande, com suas dignidades, em seu filho que alto já se acha por estado e nome, mas mais ainda pelo gênio e sangue como o maior guerreiro se apresenta. Se a crescer continuar, os próprios flancos do mundo põe em risco. Muita coisa se acha incubada que, tal como os fios da crina do cavalo fabuloso, tem vida apenas, mas carece ainda do veneno da serpe. Nosso alvitre — dize a todos que estão sob as nossas ordens — ordena que partamos sem demora.

ENOBARBO — Assim farei.

(Saem.)

Cena III

O mesmo. Outro quarto. Entram Cleópatra, Charmian, Iras e Alexas.

CLEÓPATRA — Onde está ele?

CHARMIAN — Não o vejo há tempo.

CLEÓPATRA — Vede onde está, que faz, quem o acompanha. Não vos mandei. Se virdes que está triste, dizei que estou dançando; se contente, que me vi atacada de mal súbito. Ide logo e voltai.

(Sai Alexas.)

CHARMIAN — Senhora, creio que, se lhe dedicam amor sincero, em prática não pondes o que fora preciso para o mesmo alcançar dele.

CLEÓPATRA — Como fora preciso que fizesse?

CHARMIAN — Em tudo concordar com ele, nunca contrariá-lo.

CLEÓPATRA — Qual tola tu me ensinas o modo de perdê-lo.

CHARMIAN — Sede cauta; não o tenteis. Por vezes, muito cedo votamos ódio ao que nos causa medo. Mas aí vem Antônio.

(Entra Antônio.)

CLEÓPATRA — Aborrecida me encontro e doente.

ANTÔNIO — Muito me entristece ter de comunicar-vos meu intento…

CLEÓPATRA — Ajuda-me a sair, querida Charmian; sinto que vou cair. Isto não pode continuar assim por muito tempo. A natureza não resiste a tanto.

ANTÔNIO — Agora, minha cara soberana…

CLEÓPATRA — Por obséquio, afastai-vos mais um pouco.

ANTÔNIO — Que aconteceu?

CLEÓPATRA — De vosso olhar deduzo que chegaram notícias lisonjeiras. Que diz vossa mulher? Podeis ir logo. Quem me dera que ela nunca vos tivesse deixado vir; e, sobretudo, nunca possa dizer que eu sou quem vos retenho. Em vós não mando; sois somente dela.

ANTÔNIO — Os deuses sabem muito bem…

CLEÓPATRA — Oh! nunca se viu uma rainha assim traída. Mas desde o início vi brotar a insídia.

ANTÔNIO — Cleópatra…

CLEÓPATRA — Como posso dar-vos crédito sobre me pertencerdes de verdade, embora vossas juras abalassem o alto trono de Jove, se perjuro com relação a Fúlvia vos mostrastes? Loucura rematada, ver-se presa nas malhas dessas juras só de boca, que se quebram por si, quando enunciadas!

ANTÔNIO — Rainha mui querida…

CLEÓPATRA — Nada, nada de apresentar desculpas para a viagem. Dizei adeus e parti logo. Quando para ficar pedíeis, era tempo somente de palavras; em partida não se falava; a eternidade tínhamos nos olhos e nos lábios; grã ventura das sobrancelhas sempre nos pendia. Não havia parcela em nós, por ínfima que fosse, que do céu não derivasse. E tudo ainda está no mesmo ponto, salvo se tu, o herói de mais destaque no mundo todo, te mudaste agora no maior mentiroso.

ANTÔNIO — Então, senhora?

CLEÓPATRA — Quisera ter as tuas polegadas; verias que há um coração no Egito.

ANTÔNIO — Escutai-me, rainha. A mais premente necessidade exige meus serviços noutro lugar, mas fica aqui convosco todo meu coração. Rebrilha ao longe nossa Itália com os gládios de seus filhos; junto ao porto de Roma já se encontra Sexto Pompeu. As forças balançadas de dois núcleos nativos alimentam dissensão cautelosa. Quem odiado era até há pouco, forte se tornando, passou a ser amado pelo povo. O proscrito Pompeu, rico das honras paternas, na afeição sabe insinuar-se dos que no estado atual não prosperaram, cujo número é enorme. Pela inércia tornada doente, a paz procura alívio em qualquer variação desesperada. O motivo pessoal que me preocupa, mas que perante vós me justifica, é o da morte de Fúlvia.

CLEÓPATRA — Embora a idade não me preservasse, de todo, da loucura, pelo menos credulidade não me deu de criança. Fúlvia pode morrer?

ANTÔNIO — Morreu, rainha. Lê isto, e no teu ócio soberano fica sabendo quanta barafunda pôde ela suscitar. Por fim, inteira-te de como ela morreu e onde foi isso.

CLEÓPATRA — Oh mui fingido amor! Onde se encontram os vasos sacrossantos que devias encher com tuas lágrimas doloridas? Agora vejo, vejo pela morte de Fúlvia como vai ser recebida a notícia da minha.

ANTÔNIO — Parai logo com essas objeções e preparai-vos para ficar sabendo meu intento, que ficará de pé ou vem abaixo, conforme resolverdes. Pelo fogo que anima o lodo do sagrado Nilo, parto daqui soldado teu ou servo; guerra farei, ou paz, como quiseres.

CLEÓPATRA — Charmian, desata-me este laço; vamos! Não; deixa. Sinto-me depressa doente e boa a um tempo. É assim o amor de Antônio.

ANTÔNIO — Por obséquio, rainha incomparável, acreditai no amor que ele vos vota, pois resiste a uma prova muito honrosa.

CLEÓPATRA — É o que Fúlvia me ensina. Por obséquio, ide chorá-la a um canto. Dirigi-me, depois, as despedidas, declarando que ao Egito essas lágrimas pertencem. Vamos; representai mais uma cena de excelente dissímulo, fazendo-a passar por mostras da mais alta fama.

ANTÔNIO — Com isso me esquentais o sangue. Chega.

CLEÓPATRA — Podeis fazer melhor; mas isso basta.

ANTÔNIO — Por minha espada…

CLEÓPATRA — E pelo meu escudo… Melhorou, mas ainda falta muito. Charmian, vê como assentam bem nesse Hércules romano os surtos de uma grande cólera.

ANTÔNIO — Senhora, vou deixar-vos.

CLEÓPATRA — Delicado senhor, uma palavra. É necessário que aqui nos separemos… Não; não é isso. Senhor, já nos amamos… Não; não é isso. Tudo isso vós sabeis, e alguma coisa foi por minha vontade. Oh! que memória! É um verdadeiro Antônio! Esqueci tudo.

ANTÔNIO — Se o capricho não fosse vosso súdito, diria que sois ele em carne e osso.

CLEÓPATRA — Trabalho cansativo é trazer sempre junto do coração um tal capricho, como Cleópatra faz. Mas desculpai-me, senhor, porque me causa a morte tudo que em mim vai bem, mas não vos causa agrado. A honra vos chama; assim, continuai mudo para minha tolice irremediável. E que todos os deuses vos escoltem. Que a láurea da vitória carregada seja por vosso gládio e que o brando êxito de flores atapete vossa estrada.

ANTÔNIO — Partamos logo. Nossa despedida desta maneira foge e permanece: aqui permanecendo, vais comigo; eu, fugindo de ti, fico contigo. Em caminho!

(Saem.)

Cena IV

Roma. Um quarto em casa de César. Entram Otávio César, Lépido e criados.

CÉSAR — Lépido, podeis ver e, doravante, sabendo ficareis que não é vício próprio de César odiar o nosso grande competidor. De Alexandria são estas as notícias: ele pesca, bebe e consome as lâmpadas da noite em contínuas orgias; não se mostra mais viril do que Cleópatra, nem esta — viúva de Ptolomeu — efeminada também é mais do que é ele. Raramente dá audiência ou condescende em recordar-se de que ainda tem colegas. Nele vedes um indivíduo que os defeitos todos dos homens compendia.

LÉPIDO — A convencer-me não chego de que possa haver defeitos bastantes para obnubilar-lhe os traços nativos de bondade. Nele as faltas são como as manchas que no céu se vêem, no contraste das trevas mais terríveis, que ele mudar não pode, sendo força seguir-lhes o pendor.

CÉSAR — Sois indulgente por demais. Admitamos que não haja grande mal em no tálamo deitar-se de Ptolomeu, em dar um reino em troco de uma pilhéria, em se sentar ao lado de um escravo e beber com ele à roda, cambalear pelas ruas a desoras e trocar socos com qualquer labrego que fede a suor… Dizei-me que isso lhe orna — conquanto deva ser muito estranhável a natureza que não sai manchada de semelhantes atos. — Mas é certo que não se justifica dos defeitos, porque sobre nós pesa todo o fardo de sua leviandade. Se o ócio ele enche com a volúpia, terá de justar contas com a saciedade e a consumpção dos ossos. Mas malgastar o tempo que o desperta dos prazeres com toques de rebate, e que tão alto como a nós. lhe fala do dever a cumprir, é revelar-se merecedor de justa reprimenda, como criança de saber maduro que por fugaz prazer empenha todas as lições do passado e se rebela contra a própria razão.

(Entra um mensageiro.)

LÉPIDO — Mais novidades.

MENSAGEIRO — Executadas foram tuas ordens, ó muito nobre César. De hora em hora novas receberás do que se passa lá por longe. Pompeu domina os mares, parecendo que é amado por aqueles que só temiam César. Para os portos os descontentes correm, comentando todos que ele sofreu grande injustiça.

CÉSAR — Fácil me fora tal coisa ter previsto. Ensina-nos a história desde o início do tempo que quem é, só e querido até chegar a ser, e que a pessoa que se acha no declínio e que não fora prezada enquanto dígna era de sê-lo, grata se torna por estar ausente. Essa turba sem nome se assemelha aos sargaços que bóiam na corrente, sem direção nenhuma, servos sempre da variável maré e que com o próprio movimento se esfazem.

MENSAGEIRO — César, trago-te a nova de que Menas e Menécrates, corsos de alto valor, o mar obrigam a obedecer-lhes, que com muitas quilhas eles lavram, abrindo fundos sulcos. Feros assaltos dão por toda a Itália; os moradores da orla ficam pálidos só de pensar em tal; a mocidade valorosa se insurge. Nenhum barco pode sair do porto; sendo visto, tomado é incontinenti, pois só o nome de Pompeu pode mais do que sua própria campanha organizada.

CÉSAR — Antônio, deixa teus banquetes lascivos! Quando, há tempo, foste expulso de Módena por teres morto Hirto e Pansa, cônsules, a fome seguiu-te os calcanhares. Mas lutaste com ela, muito embora sempre vida tivesses dissipada, revelando resistência maior que a de um selvagem. Urina de cavalo então bebeste e o charco cintilante que refugam os próprios animais. Não desdenhava teu paladar o mais azedo fruto das mais silvestres sebes. Como o cervo, quando a neve recobre todo o pasto, chegaste a roer das árvores a casca. Nos Alpes, dizem, de uma carne estranha te alimentaste que causava a muitos a morte só de ver. E todas essas privações — a lembrança delas a honra te açoita neste instante — suportaste-as como brioso soldado, de tal modo que nem murchas as faces te ficaram.

LÉPIDO — Dá pena.

CÉSAR — Que depressa o chame a Roma seu próprio brio, pois é mais que tempo de na campanha aparecermos juntos. Para esse fim reunamos o conselho. Lucra Pompeu com nossa ociosidade.

LÉPIDO — Amanhã, César, poderei dizer-vos com segurança até que ponto chegam minhas forças de mar e terra para fazer face à presente situação.

CÉSAR — Até nos vermos, vou fazer o mesmo. Adeus.

LÉPIDO — Adeus, senhor. O que souberdes sobre as desordens que se dão lá fora, far-me-eis grande obséquio revelando-mas.

CÉSAR — Ficai tranqüilo, meu senhor, sobre isso; conheço meu dever.

(Saem.)

Cena V

Alexandria Um quarto no palácio. Entram Cleópatra, Charmian, Iras e Mardian.

CLEÓPATRA — Charmian!

CHARMIAN — Senhora?

CLEÓPATRA — Ah! Quero beber mandrágora.

CHARMIAN — Mandrágora, senhora? Para quê?

CLEÓPATRA — Para que possa passar dormindo toda a grande brecha de tempo em que está ausente o meu Antônio.

CHARMIAN — Pensais por demais nele.

CLEÓPATRA — Ele traiu-me!

CHARMIAN — Não penso assim, senhora.

CLEÓPATRA — Eunuco Mardian!

MARDIAN — Agora que deseja Vossa Alteza?

CLEÓPATRA — Não te ouvir cantar hoje. Não me agrada quanto os eunucos têm. É muito grande felicidade, sendo destituído, como és, do sexo, não fugirem nunca do Egito teus vadios pensamentos. Acaso tens desejos?

MARDIAN — Sim, senhora.

CLEÓPATRA — De fato?

MARDIAN — Assim, de fato, não senhora; pois só me é permitido agir de modo perfeitamente honesto. Mas desejos tenho ardorosos e reflito sempre em quanto Marte praticou com Vênus.

CLEÓPATRA — Ó Charmian! Onde é que pensas que ele esteja neste momento? Está de pé? Sentado? Passeia, porventura? Está a cavalo? Ó ginete feliz, por carregares todo o peso de Antônio! Oh, sê brioso, corcel! Não adivinhas quem te monta? O meio Atlas da terra, o braço e o elmo dos homens. Neste instante ele murmura: “Acaso onde estará minha serpente do velho Nilo?” É assim que ele me chama. Agora vivo de um veneno raro. De mim se lembrará, que os amorosos raios do ardente Febo enegreceram e que enrugada vai deixando o tempo? César de fronte larga, quando neste solo estiveste eu era apetecível para qualquer monarca, tendo o grande Pompeu parado para olhar-me a fronte. Ali quisera ele ancorar os olhos E morrer contemplando a própria vida.

(Entra Alexas.)

ALEXAS — Soberana do Egito, salve!

CLEÓPATRA — Como com Marco Antônio não pareces nada! Mas vindo de sua parte, essa tintura das tinturas te fez ficar dourado. Como passa meu bravo Marco Antônio?

ALEXAS — Querida soberana, a última coisa que ele fez foi beijar — depois de muitos beijos dobrados — esta rica pérola. Trago no coração suas palavras.

CLEÓPATRA — De lá hão de tirá-las meus ouvidos.

ALEXAS — “Caro amigo”, falou, “o fiel Romano, dize-lhe, envia à majestade egípcia este tesouro que provém de uma ostra. Para a insignificância do presente compensar, a seus pés pretendo reinos acumular, para deixar mais rico seu opulento trono. Todo o Oriente, lhe dirás, vai chamar-lhe soberana.” Ao concluir, acenou-me, e, altivamente, subiu para o seu rápido ginete, cujo nitrido ressoou tão forte que brutalmente abafa tudo quanto eu pudesse dizer.

CLEÓPATRA — Como estava ele: alegre ou triste?

ALEXAS — Parecia o tempo que medeia entre os dois extremos do ano, de calor e de frio. Não estava nem alegre nem triste.

CLEÓPATRA — Oh equilibrada disposição! Atenta nisso, Charmian; observa bem: é o homem. Toma nota. Triste não se encontrava, pois queria lançar luz sobre quantos a postura pautam segundo a dele. Nem alegre, parecendo indicar que o pensamento tinha no Egito, onde a alegria estava. Mas entre os dois. Oh celestial mistura! Fiques alegre ou triste… Em nenhuma outra pessoa, como em ti, tão bem assenta qualquer desses extremos. Encontraste meus correios, acaso?

ALEXAS — Sim, senhora; uns vinte, em separado. Por que os mandas tão amiúde?

CLEÓPATRA — Quem nascer no dia em que eu a Antônio não mandar recado, morrerá na miséria. Boa Charmian, traze tinta e papel. Bondoso Alexas, sejas bem-vindo. Em algum tempo, Charmian, eu amei César tanto?

CHARMIAN — Oh! bravo César!

CLEÓPATRA — Que um outro grito desses te asfixie. Dize: Que bravo Antônio!

CHARMIAN — Grande César!

CLEÓPATRA — Por tais, ficarás com os dentes rubros, se novamente comparares César com esse homem único.

CHARMIAN — Com vosso perdão gracioso, mas estou cantando segundo vosso tom.

CLEÓPATRA — Oh inexperiência de minha mocidade, quando verde eu tinha o juízo e frio o sangue! Vamos: dá-me papel e tinta. Hei de mandar-lhe um mensageiro diário, embora venha a despovoar o Egito.

(Saem.)

ATO II
Cena I

Messina. Um quarto em casa de Pompeu. Entram Pompeu, Menécrates e Menas.

POMPEU — Se os deuses poderosos forem justos, hão de amparar quem se mostrar mais justo.

MENÉCRATES — Como sabeis, digno Pompeu, demora não é recusa.

POMPEU — Enquanto suplicamos diante do trono deles, vai ficando mais fraca a causa por que lhes pedimos.

MENÉCRATES — Por nos desconhecermos, muitas vezes pedimos o que mal causar nos pode, o que as sábias potências nos denegam, visando ao nosso bem. Assim, lucramos em não ver nossos votos exalçados.

POMPEU — Hei de vencer. O povo me idolatra e o mar é meu. Em progressivo aumento minhas forças estão, prognosticando-me as esperanças que elas hão de em breve chegar à cheia máxima. No Egito Marco Antônio está à mesa, não pensando em lutar extramuros. Onde César obtém dinheiro, os corações alija. Lépido adula os dois, sendo por eles adulado também, porém não ama nenhum, pois só desprezo ambos lhe votam.

MENAS — Lépido e César já em campo se acham, à frente de uma força poderosa.

POMPEU — Quem vos disse isso? É falsa essa notícia.

MENAS — De Sílvio a ouvi, senhor.

POMPEU — Está sonhando. Sei que eles dois em Roma agora se acham e a Antônio esperam. Que os encantos todos do amor, ardente Cleópatra, te deixem mais macios ainda os lábios murchos! Acrescenta a magia à formosura, e às duas a lascívia. O libertino deixa preso num campo de festejos, a mente lhe mantendo sempre em névoas. Despertem-lhe o apetite cozinheiros epicúreos, com molhos esquisitos, e que o sono e os festins lhe arrastem a honra até a apatia ele alcançar do Lete. (Entra Várrio.) Então, Várrio, que é que há?

VÁRRIO — É inteiramente certo o que vou dizer. Em Roma espera-se Marco Antônio chegar a cada instante. O tempo desde o dia da partida dele do Egito dava para viagem mais longa ainda.

POMPEU — De bom grado ouvira notícias menos grave. Não pensava, Menas, que esse amoroso libertino chegasse a pôr o capacete para ingressar numa guerra tão mesquinha. Como guerreiro, ele sozinho pesa mais do dobro dos outros dois reunidos. Mas elevemos o conceito próprio, por ver que nossa espora teve força para arrancar dos braços da viúva do Egito a Marco Antônio, esse devasso que jamais se sacia.

MENAS — Não espero que Antônio e César a entender-se venham.A falecida esposa do primeiro ofendeu muito a César; o irmão dele também o combateu, embora eu pense que nisso Antônio não tivesse parte.

POMPEU — Não sei, Menas, não sei como as pequenas inimizades dão lugar às grandes. Não fosse termos de lutar com todos, bom fora que eles entre si brigassem, pois motivo não falta a nenhum deles para sacar da espada. Mas até onde poderá o medo que lhes inspiramos cimentar a cisão que entre eles houve e liga pôr em suas rixazinhas, não sei dizê-lo. Seja tudo como quiserem nossos deuses. Nossa vida vai depender, tão-só, desta partida. Menas, vamos!

(Saem.)

Cena II

Roma. Um quarto em casa de Lípido. Entram Enobarbo e Lépido.

LÉPIDO — Caro Enobarbo, é obra meritória, dígna de vós, levar o vosso chefe a falar com bons modos.

ENOBARBO — Convencê-lo pretendo a responder como ele mesmo. Se César o irritar, que Antônio o mire sobranceiro e depois tão alto fale como o estrondo de Marte. Sim, por Júpiter, se eu fosse o portador da barba dele, hoje a não rasparia.

LÉPIDO — Não é tempo de briguinhas pessoais.

ENOBARBO — Não; qualquer tempo serve para os assuntos dele próprio.

LÉPIDO — Mas é preciso que os assuntos mínimos cedam lugar aos grandes.

ENOBARBO — Não, no caso de haverem sido aqueles os primeiros.

LÉPIDO — Em vós fala a paixão. Mas, por obséquio, não sopreis no borralho. Ali vem vindo o nobre Antônio.

(Entram Antônio e Ventídio.)

ENOBARBO — E, mais adiante, César.

(Entram César, Mecenas e Agripa.)

ANTÔNIO — Se fizermos aqui um bom acordo: contra os partos. Ouviste bem, Ventídio?

CÉSAR — Não sei, Mecenas; pergunta isso a Agripa.

LÉPIDO — Caros amigos, de importância máxima era o que nos uniu; não permitamos que uma ação secundária nos separe. O que estiver errado, com paciência deverá ser ouvido. Se elevarmos a voz para tratar de assuntos diários, causaremos a morte do que tínhamos intenção de curar. Por isso, nobres colegas, vos conjuro instantemente a que trateis dos pontos mais difíceis com termos delicados, sem deixardes que se imiscua a ofensa.

ANTÔNIO — Bem falado; em frente a nossas forças, no momento de se iniciar a pugna, não seria outra a minha linguagem.

CÉSAR — Sois bem-vindo a Roma.

ANTÔNIO — Agradecido.

CÉSAR — Sentai-vos.

ANTÔNIO — Sentai-vos, senhor.

CÉSAR — Então, que seja.

ANTÔNIO — Soube que muitas coisas vos parecem más, sem que o sejam, mas que, embora o fossem, não vos dizem respeito.

CÉSAR — Merecia que de mim rissem, se por coisa alguma, por quase nada, eu me considerasse tão ofendido assim, principalmente com relação a vós; e mais ainda fora de censurar se com desprezo viesse a nomear-vos, quando não tivesse razões para citar o vosso nome.

ANTÔNIO — Que é que tínheis que ver, César, com minha permanência no Egito?

CÉSAR — Nada, decerto, se, estando eu em Roma, residísseis no Egito. Mas no caso de em meu Estado influirdes lá do Egito, muito me importa o ponto em que morardes.

ANTÔNIO — Que entendeis por influir?

CÉSAR — Ser-vos-á fácil atinar com o sentido, refletindo com o que se tem passado. Vossa esposa com vosso mano me fizeram guerra; éreis o tema do debate deles, a senha de combate.

ANTÔNIO — Começastes por um caminho errado, pois o mano não me envolveu jamais em seus negócios. Investiguei o caso e fidedignas informações obtive de pessoas que por vós se bateram. Não é fato que ele prejudicou tanto o meu crédito como o vosso, e fez guerra de igual modo contra mim, que amparava vossa causa? De tudo isso ficastes inteirado por minhas várias cartas. Se quiserdes forjicar uma briga a toda força, tereis de procurar outro pretexto, que esse já não vos serve.

CÉSAR — Elogiais-vos com me imputardes raciocínio errado; mas isso é forjicar, tão-só, desculpas.

ANTÔNIO — De forma alguma! Não! Tenho certeza de que não careceis da perspicácia precisa para compreender que eu, sendo como sou, vosso aliado numa causa por ele combatida, não podia lançar olhares meigos a essas guerras que a própria paz ameaçar me vinham. Quanto à minha consorte, desejara que seu espírito encontrásseis noutra. Vosso é um terço do mundo, pela rédea podereis dirigi-lo, o que é impossível com uma mulher daquelas.

ENOBARBO — Oh! se todos esposa assim tivéssemos! Iriam para a guerra os maridos e as consortes.

ANTÔNIO — Inflexível como era — seus tumultos, César, nasciam do temperamento — não lhe faltando astúcia — é com tristeza que o confesso também — vos foi motivo de grande inquietação. Porém sobre isso só vos cabe dizer que eu não podia alterar coisa alguma.

CÉSAR — Enviei-vos cartas, quando em Alexandria vos acháveis, num rega-bofe eterno; mas puseste-las no bolso sem as ler e com sarcasmos despachastes da audiência o meu correio.

ANTÔNIO — Ele me surpreendeu sem ser chamado, quando três reis eu recebia à mesa. Faltava-me a disposição que eu tinha pela manhã. Mas logo no outro dia eu mesmo lhe falei, o que eqüivale a apresentar desculpas. Que esse tipo em nada influa em nossa divergência. Se de brigar tivermos, afastai-o de nossas dissensões.

CÉSAR — Não mantivestes o juramento feito, o de que nunca podereis acusar-me.

LÉPIDO — Mais brandura, César!

ANTÔNIO — Deixai-o, Lépido. Sagrada é a honra a que ele se refere e de que me presume carecente. Vamos, César: qual foi o juramento?

CÉSAR — De vir em meu auxílio com soldados e numerário, quando vos pedisse, o que me recusastes.

ANTÔNIO — Melhor fora dizer: negligenciei; e isso na fase em que horas venenosas me deixavam privado da consciência de mim mesmo. Quanto em mim estiver, quero mostrar-vos meu arrependimento; mas a minha honestidade diminuir não há de minha grandeza, como sem aquela não há de o meu poder mostrar-se nunca. É verdade que Fúlvia, para atrair-me do Egito, aqui fez guerra. Tendo eu sido disso a causa inocente, peço escusas até onde for possível, sem desdouro, a minha honra inclinar-se.

LÉPIDO — Nobre fala.

MECENAS — Se concordardes, não leveis avante tais recriminações, pois esquecê-las de todo lembrar fora que a presente necessidade inculca paz entre ambos.

LÉPIDO — Mui bem dito, Mecenas.

ENOBARBO — Ou então, no caso de cada um pedir, tão-somente, por empréstimo, o amor do outro, fareis a devolução devida logo que não mais ouvirdes falar de Pompeu. Tempo não vos há de faltar para disputas, quando não tiverdes outra coisa a fazer.

ANTÔNIO — Sois um soldado, apenas; ficai quieto.

ENOBARBO — Ia-me esquecendo de que a verdade não pode falar.

ANTÔNIO — Perturbais a conversa. Assim, calai-vos.

ENOBARBO — Então, que seja. Vossa pedra pensante.

CÉSAR — O que me desagrada em sua fala não é o assunto, mas o modo, apenas, de apresentá-lo. Assim, não é possível continuarmos amigos, quando temos maneira de viver tão diferente. Se eu conhecesse, ao menos, a cadeia que poderia conservar-nos juntos, de um pólo a outro iria procurá-la.

AGRIPA — César, dá-me licença.

CÉSAR — Fala, Agripa.

AGRIPA — Tens uma irmã do lado teu materno, a admirável Otávia. Não se encontra viúvo agora o grande Marco Antônio?

CÉSAR — Não digais isso, Agripa, pois se Cleópatra vos ouvisse, teríeis merecido a pecha receber de temerário.

ANTÔNIO — Mas eu não sou casado, César. Vamos ouvir Agripa.

AGRIPA — Para em amizade perpétua vos manter, irmãos deixar-vos e os corações num laço indissolúvel vos trazer sempre, tome Antônio a Otávia por consorte. A beleza que lhe é própria pede para marido o melhor homem; seus dotes naturais e a graça inata falam melhor do que qualquer linguagem. Com esse casamento as pequeninas invejas que ora nos parecem grandes, e os grandes medos, que perigo inculcam, a nada se reduzem. As verdades parecerão história, ao passo que hoje meias histórias passam por verdades. O amor que ela vota a ambos, um para o outro há de atrair, enquanto vosso afeto para ela vos inclina. Mas perdoai-me quanto vos disse. É um plano meditado maduramente, não fugaz capricho.

ANTÔNIO — A isso que diz César?

CÉSAR — Nada, enquanto não se certificar até onde Antônio abalado se tenha com essa idéia.

ANTÔNIO — E que poder Agripa tem, no caso de eu lhe dizer: “Pois assim seja, Agripa!” para bom termo dar a esse projeto?

CÉSAR — Todo o poder de César e a influência deste junto de Otávia.

ANTÔNIO — Nunca eu possa levantar objeções, nem mesmo em sonhos contra uma idéia tão encantadora! Dá-me a mão; leva avante esse projeto gracioso e que, a partir deste momento, um coração de irmãos dirija os nossos sentimentos e nossos grandes planos.

CÉSAR — Eis minha mão. Mais ternamente nunca irmã nenhuma foi amada como a que ora vos entrego. Que ela viva para que o coração nos una e os remos, não vindo nunca mais a abandonar-nos nosso sincero amor.

LÉPIDO — Amém! Amém!

ANTÔNIO — Não pensei em sacar de novo a espada contra Pompeu, porque recentemente tem ele a meu respeito dado provas de estranha cortesia. Vou mandar-lhe meus agradecimentos, porque minha memória não padeça vitupério. Mas, logo após, pretendo desafiá-lo.

LÉPIDO — O tempo nos concita a procurarmos Pompeu se não quisermos que ele venha para nos dar combate.

ANTÔNIO — Onde está ele?

CÉSAR — Junto ao monte Miseno.

ANTÔNIO — Já são grandes suas forças de terra?

CÉSAR — Já são grandes e sempre em crescimento; mas das águas é senhor absoluto.

ANTÔNIO — A fama é essa. Se lhe houvesse falado! Há muita pressa. Antes, porém, de nos armarmos, vamos arrematar o assunto de que há pouco nos ocupamos.

CÉSAR — Sim, com todo o gosto. Convido-vos a visitar a mana, para a casa de quem vou conduzir-vos.

ANTÔNIO — Não nos priveis de vossa companhia, Lépido.

LÉPIDO — Não, Antônio, nem doença poderia reter-me.

(Fanfarra. Saem César, Antônio e Lépido.)

MECENAS — Sede bem-vindo, senhor, de vossa viagem ao Egito.

ENOBARBO — Metade do coração de César, digno Mecenas! Meu virtuoso amigo Agripa!

AGRIPA — Valente Enobarbo!

MECENAS — Temos razão para nos alegrarmos, por se terem as coisas resolvido tão bem. A vida vos corria bem lá no Egito.

ENOBARBO — Perfeitamente, senhor; dormíamos o dia todo e iluminávamos a noite com patuscadas.

MECENAS — Oito javalis selvagens, assados inteirinhos, para almoço de doze pessoas! É verdade isso?

ENOBARBO — Isso é como um mosquito ao lado de uma águia. Com relação a festanças tivemos histórias muito mais gigantescas do que essa, que mereciam ser contadas.

MECENAS — A serem verdadeiros os rumores, é uma mulher extraordinária.

ENOBARBO — Empalmou o coração de Marco Antônio no primeiro encontro que teve com ele, no rio Cidno.

AGRIPA — Sim, foi lá, realmente, que ela lhe apareceu, se é que meu informante não mentiu nesse ponto.

ENOBARBO — Vou contar-vos. A barca em que ela estava, trono fúlgido, as águas incendiava; sua popa era de ouro batido; as velas, púrpura, e a tal ponto cheirosas, que vencidos de amor os ventos todos se mostravam. Eram de prata os remos, que ao compasso se moviam de flautas, apressando com seus golpes as águas percutidas, como amorosas deles. Com respeito a ela própria, mendiga aqui se torna a melhor descrição. Deitada estava num pavilhão todo tecido de ouro, vencendo a própria Vênus, em que vemos a arte passar de muito a natureza. Ao lado dela estavam dois meninos rechonchudos e lindos — sorridentes Cupidos — que agitavam ventarolas de mil cores cambiantes, cujo sopro parecia deixar muito mais vivo o rubor de suas faces delicadas, que acalmar se propunha, desfazendo, dessa maneira, a um tempo, o que fazia.

AGRIPA — Que jóia para Antônio!

ENOBARBO — Qual nereidas, suas damas, sereias numerosas, dos olhos dela o olhar nunca apartavam, em adorno tomando seus meneios. Uma sereia, ao parecer legítima, o leme dirigia, cujas cordas argentinas se inflavam ao contacto daquelas mãos de rosa que com tanto donaire a dura obrigação faziam. De toda a barca se evolava estranho e invisível perfume, que os sentidos tonteava dos embarcadouros próximos. A cidade lançou para ela toda sua população, tendo em seu trono ficado Antônio, só, na praça pública, a sibilar para o ar, que se não fora ter modo de fazer um grande vácuo, também correra para ver Cleópatra e um buraco no mundo ocasionara.

AGRIPA — Extraordinária egípcia!

ENOBARBO — Quando em terra tocou a barca, um mensageiro Antônio lhe mandou com o convite para o almoço, ao que ela replicou que melhor fora que hóspede dela Antônio se tomasse, tendo nisso insistido. Nosso afável Antônio, de quem nunca uma senhora ouviu o termo “Não”, tendo-se feito barbear mais de dez vezes, foi à festa, com o coração, como de praxe, havendo pago tudo o que os olhos devoraram.

AGRIPA — Que real rameira! Fez que o grande César no leito dela depusesse a espada. Ele a lavrou, mas dela foi a safra.

ENOBARBO — De certa vez a vi saltar cinqüenta passos, não mais, na rua. Tendo o fôlego perdido, estaca, quer falar, arqueja, e em graça transformando a deficiência esbaforida se revela forte.

MECENAS — Antônio agora há de esquecer-se dela.

ENOBARBO — Jamais! Não fará isso. Não a deixa fanada o tempo, nem sua variedade maravilhosa poderá tornar-se, com o hábito, sediça. Qualquer outra mulher farta o apetite a que dá pasto; mas ela quanto mais der alimento, mais a fome desperta. As mais abjetas coisas assentam nela de tal modo que os sacerdotes santos a abençoam, quando ela está lasciva.

MECENAS — Se beleza, modéstia, discrição prender puderem o coração de Antônio, é a sorte grande para ele vir a desposar Otávia.

AGRIPA — Vamos. Caro Enobarbo, ficais sendo hóspede meu, enquanto aqui estiverdes.

ENOBARBO — De todo o coração vos agradeço.

(Saem.)

Cena III

O mesmo. Um quarto em casa de César. Entram César e Antônio; entre eles, Otávia; criados.

ANTÔNIO — O mundo e meu dever, algumas vezes de vossos braços me farão ausente.

OTÁVIA — Todo esse tempo, então, diante dos deuses hão de dobrar-se meus joelhos, para pedir por vosso bem.

ANTÔNIO — Senhor, boa noite. Minha Otávia, não leias meus defeitos nos rumores do mundo. Não me tenho mantido na medida; doravante, porém, tudo farei conforme a regra. Boa noite, cara esposa.

OTÁVIA — Boa noite, meu senhor.

CÉSAR — Boa noite.

(Saem César e Otávia.)

(Entra o adivinho.)

ANTÔNIO — Então, maroto, retornar quiséreis agora para o Egito?

ADIVINHO — Melhor fora que eu de lá não me houvesse retirado, nem vós daqui.

ANTÔNIO — Vossas razões, se as tendes?

ADIVINHO — No meu íntimo as vejo, não as trago, por enquanto, na língua. Mas depressa retornai para o Egito.

ANTÔNIO — Revelai-me quem há de ter mais elevada sorte: César ou eu?

ADIVINHO — Ah! César. Por isso mesmo, Antônio, não prossigas ao lado dele. Teu demônio — o espírito, digo, que te protege — é corajoso, nobre, alto, incomparável, quando perto não se encontra o de César. Mas quando ele se aproxima do teu, este se mostra tomado de pavor, como vencido. Assim, deixa que entre ambos vós espaço bastante se interponha.

ANTÔNIO — Não me tornes a falar nisso.

ADIVINHO — A mais ninguém eu falo; só quando estamos sós. Se te empenhares com ele em qualquer jogo, não há dúvida de que a perder virás. Naturalmente tem mais sorte que tu, vindo a vencer-te contra quaisquer vantagens que possuas. Teu espírito, tomo a prevenir-te, dirige-te com medo junto dele; longe dele, porém, volta a ser nobre.

ANTÔNIO — Podes te retirar. Dize a Ventídio que desejo falar-lhe. (Sai o adivinho.) Para a Pártia terá de seguir logo… Seja acaso, seja por meio de arte, falou certo. Os próprios dados lhe obedecem sempre; em nossas justas minha habilidade ao lance acidental se dobra dele; se tiramos a sorte, ganha sempre; meus galos sempre perdem para os dele, a despeito de todos os prognósticos, e sua codorniz bate na rinha sempre a minha, apesar das desvantagens. Vou voltar para o Egito. Muito embora tenha levado a cabo o casamento para ter paz, no Oriente é que se encontra toda minha ventura. (Entra Ventídio.) Oh! vinde logo, Ventídio! Seguireis já para a Pártia. Está pronta a ordem; vinde recebê-la.

(Saem.)

Cena IV

O mesmo. Uma rua. Entram Lépido, Mecenas e Agripa.

LÉPIDO — Deixai de vos incomodar com isso. Por obséquio, segui logo no rasto de vossos generais.

AGRIPA — Marco Antônio, senhor, deseja apenas beijar Otávia. Seguiremos logo.

LÉPIDO — Adeus, adeus, até que vos reveja com vestes de guerreiro, que vos há de assentar muito bem.

MECENAS — Pelo que posso conjeturar da viagem, chegaremos primeiro do que vós ao cabo, Lépido.

LÉPIDO — Vossa rota é menor, porque meus planos me obrigam a uma volta; certamente alcançareis dois dias de vantagem.

MECENAS e AGRIPAS — Senhor, feliz sucesso!

LÉPIDO — Adeus.

(Saem.)

Cena V

Alexandria. Um quarto no palácio. Entram Cleópatra Charmian, Iras, Alexas e um criado.

CLEÓPATRA — Dai-me música, música, alimento triste de todos os que o amor mantém.

CRIADO — Olá, música!

(Entra Mardian.)

CLEÓPATRA — Não; deixemos isso. Vamos para o bilhar. Segue-me, Charmian.

CHARMIAN — O braço me incomoda. Por obséquio, jogai com Mardian.

CLEÓPATRA — Tanto faz ser nosso parceiro uma mulher como um eunuco. Vamos, senhor: quereis jogar comigo?

MARDIAN — Quanto em mim estiver, minha senhora.

CLEÓPATRA — Quando há boa vontade, embora saia tudo aquém de qualquer expectativa, desculpa-se ao ator. Mas já não quero. Traze-me a vara de pescar e vamos para a margem do rio. Ali, ouvindo música ao longe, surpreenderei peixes de escuras barbatanas. Com meu curvo gancho atravessarei suas viscosas mandíbulas, e, na hora de tirá-los da água, imaginarei que cada um deles é outro Antônio e lhe direi: “Peguei-te!”

CHARMIAN — Como eram divertidas as apostas que com ele fazíeis, quando vosso mergulhador prendia no anzol dele qualquer peixe do mar que ele, mui sôfrego, puxava logo!

CLEÓPATRA — Nesse tempo — oh tempo! — eu ria dele de deixá-lo fulo, e à noite eu ria para acomodá-lo, e na manhã seguinte, antes das nove, já o tinha emborrachado de tal modo, que se punha a dormir com meus vestidos, enquanto eu punha à cinta sua espada vencedora em Filipos. (Entra um mensageiro.) É da Itália. Finca-me nos ouvidos as notícias que me trouxeste, pois há muito tempo sem trato eles estão.

MENSAGEIRO — Minha senhora…

CLEÓPATRA — Morreu Antônio? Se disseres isso, biltre, assassinarás tua senhora. Mas com saúde e livre… Se o trouxeres assim, aqui tens ouro e aqui tens minha mão de veias azuis para a beijares, esta mão em que reis bebericaram, beijando-a com temor.

MENSAGEIRO — Primeiramente, senhora, ele está bem.

CLEÓPATRA — Toma mais ouro. Mas olha lá, maroto! toma nota: costumamos dizer dos mortos isso. Se for esse o sentido, este ouro todo, mandarei derretê-lo e derramá-lo por essa goela de ruins notícias.

MENSAGEIRO — Boa senhora, ouvi-me.

CLEÓPATRA — Estou ouvindo. Vamos, prossegue! Mas não tens no rosto nada de bom. Se Antônio se acha livre, por que assume feições assim tão ácidas o trombeteiro de notícias boas? Se não estiver bem, vens como Fúria coroada de serpentes, não como homem.

MENSAGEIRO — Não quereis escutar-me?

CLEÓPATRA — Só tenho ímpeto de te bater antes de me falares. Se disseres, porém, que Antônio vive, que está bem de saúde, vive em termos amistosos com César, não estando como seu prisioneiro, chuva de ouro farei cair em ti, seguida de uma saraivada de pérolas.

MENSAGEIRO — Senhora, ele está bem.

CLEÓPATRA — Muito bem dito.

MENSAGEIRO — E em bons termos com César.

CLEÓPATRA — És um bravo.

MENSAGEIRO — Ele e César jamais foram tão íntimos.

CLEÓPATRA — Basta quereres, para seres rico.

MENSAGEIRO — Contudo…

CLEÓPATRA — Não me agrada esse “contudo”; estraga todo o bem que disseste antes. Para longe o “contudo!” Esse “contudo” é como um carcereiro que liberta da prisão algum monstro criminoso. Amigo, por favor, despeja logo nos meus ouvidos tuas novidades, as boas e as ruins, ao mesmo tempo. Amigo ele é de César, já o disseste; está bem de saúde e acrescentaste que se acha livre.

MENSAGEIRO — Livre? Oh! não, senhora! A Otávia se acha preso.

CLEÓPATRA — De que jeito?

MENSAGEIRO — Do melhor jeito que encontrar na cama.

CLEÓPATRA — Charmian, não fiquei pálida?

MENSAGEIRO — Senhora, casou-se com Otávia.

CLEÓPATRA — Que em ti caia a mais nociva peste!

(Bate-lhe.)

MENSAGEIRO — Boa dama, tende paciência.

CLEÓPATRA — Que disseste? Fora! (Bate-lhe de novo.) Fora daqui, vilão abominável! se não quiseres que te trate os olhos como se fossem bolas de desporto. Vou deixar-te a cabeça sem cabelos. (Sacode-o pelos cabelos.) com arame trançado azorragar-te, pôr-te em salmoura, vivo, para em molho de dores definhares.

MENSAGEIRO — Mui graciosa senhora, trouxe apenas a notícia, não fiz o casamento.

CLEÓPATRA — Dize que isso não é verdade e te farei presente de uma província, além de tua sorte deixar envaidecida. Essas pancadas que recebeste valem como multa por me haveres a cólera agitado. Mais, ainda: dar-te-ei todos os mimos com que possa sonhar tua modéstia.

MENSAGEIRO — Senhora, está casado.

CLEÓPATRA — Miserável, já viveste demais!

(Saca de um punhal.)

MENSAGEIRO — Vou já safar-me. Senhora, que pensais? Não tenho culpa. (Sai.)

CHARMIAN — Boa senhora, não percais a calma. Esse homem é inocente.

CLEÓPATRA — O raio atinge a muitos inocentes. Que o Nilo trague o Egito e se transformem em serpes todas as criaturas dóceis. Chama de novo o escravo, que eu não mordo, conquanto esteja louca. Traze-o logo.

CHARMIAN — Tem receio de vir.

CLEÓPATRA — Não vou bater-lhe. (Sai Charmian.) Estas mãos se envilecem por baterem em quem me é inferior; pois sou eu própria que contra mim invento esses motivos. (Volta Charmian com o mensageiro.) Senhor, aproximai-vos. Muito embora seja honesto, não é aconselhável trazer ruins notícias. Às mensagens agradáveis dai um milhão de línguas; mas deixai que as infaustas ocorrências se anunciem por si, quando sentidas.

MENSAGEIRO — Cumpri o meu dever.

CLEÓPATRA — Está casado? Odiar-te mais não me será possível, se me disseres novamente “sim”.

MENSAGEIRO — Senhora, está casado.

CLEÓPATRA — Ainda o repetes? Que os deuses te confundam.

MENSAGEIRO — Deveria mentir, senhora?

CLEÓPATRA — Oh! como o desejara! Ainda que meio Egito se alagasse, vindo a tomar-se uma cisterna cheia de serpes escamadas. Vai-te embora. Nem que de rosto fosses um Narciso, me serias medonho. Está casado?

MENSAGEIRO — Perdoai-me, alteza…

CLEÓPATRA — Dize: está casado?

MENSAGEIRO — Não vos zangueis com quem não vos ofende. Punir-me pelo que mandais que eu faça parece injusto. Desposou Otávia.

CLEÓPATRA — Oh! que seu erro te haja transformado num miserável, ainda que não sejas o que és seguramente. Vai-te embora. Os gêneros romanos que trouxeste são caros por demais; fica com eles; e que por eles venhas a arruinar-te.

(Sai o mensageiro.)

CHARMIAN — Minha querida alteza, ficai calma.

CLEÓPATRA — Louvando Antônio eu desfazia em César.

CHARMIAN — Muitas vezes, senhora.

CLEÓPATRA — Castigada estou sendo por isso. Retirai-me daqui. Vou desmaiar. Não, não é nada. Oh! Iras! Charmian! Bondoso Alexas, vai atrás desse homem e procura saber como é Otávia, que idade tem, seus gostos, sem que deixe de dizer de que cor tem os cabelos. Traze logo a resposta. (Sai Alexas.) Abandonamo-lo para sempre… Oh, bondosa Charmian! Não. Embora às vezes seja como a Górgona, às vezes é outro Marte. (A Mardian.) Dize a Alexas que me venha contar a altura dela. Apiada-te de mim, Charmian, mas nada me fales. Leva-me para outra sala.

(Saem.)

Cena VI

Nos arredores de Miseno. Fanfarras For um lado entram Pompeu e Menas, com trombeta e tambor; por outro, César, Antônio, Lépido, Enobarbo, Mecenas, com soldados em marcha.

POMPEU — Tenho os vossos reféns; tendes os meus. Conversemos, assim, antes da pugna.

CÉSAR — É de vantagem conversarmos antes. Por isso mesmo enviamos por escrito, com antecipação, nossas propostas. Se pensaste sobre elas, comunica-nos se as consideras suficientes para deixar-te atada a espada descontente, fazendo regressar para a Sicília muitos moços viçosos que viriam talvez hoje a morrer.

POMPEU — É avós que eu falo, vós três que constituís todo o senado, representantes únicos dos deuses: não sei porque meu pai careceria de vingadores, tendo filho e amigos, se o espírito de César, que em Filipos tanto ao bondoso Bruto perseguia, vos vê agora a trabalhar por ele. Qual foi a causa que levou o pálido Cássio à conspiração? que fez o honrado romano, o honesto Bruto, com seus cúmplices armados, todos eles namorados da bela liberdade, o Capitólio banhar de sangue? Apenas o desejo de que não fosse alguém mais do que um homem. Eis a razão que a aparelhar a minha esquadra me levou, com a qual penso disciplinar a ingratidão que Roma lançou sobre meu pai em tudo nobre.

CÉSAR — Mais devagar.

ANTÔNIO — Com todas essas velas, Pompeu, amedrontar-nos não consegues. Falaremos contigo sobre as águas; em terra sabes quanto te excedemos.

POMPEU — Em terra, é muito certo, tu me excedes na casa de meu pai. Mas como o cuco jamais constrói para si mesmo, fica nela quanto puderes.

LÉPIDO — Poderíeis ter a bondade de dizer-nos — que isso foge de nosso assunto — de que modo recebeis nossa oferta?

CÉSAR — O ponto é esse.

ANTÔNIO — Pressão não vos fazemos: sopesai-o com vagar, se quiserdes aceitá-lo.

CÉSAR — E o mais que pode acontecer, no caso de quererdes tentar maior fortuna.

POMPEU — Consiste vossa oferta em me entregardes a Sicília e a Sardenha; devo, ainda, dos piratas limpar todas as águas; concedido isso tudo, despedirmo-nos sem entalhos nos gládios, carregando para casa os broquéis sem mossa alguma.

CÉSAR, ANTÔNIO e LÉPIDO — Justamente.

POMPEU — Ficai, então, sabendo que ao vir aqui, disposto eu me encontrava a aceitar essa oferta. Marco Antônio, porém, encontrou meio de irritar-me. Embora meu louvor fique empanado por ser eu próprio que vos falo nisso, deveis lembrar-vos de que quando César e vosso irmão brigavam, na Sicília vossa mãe encontrou boa acolhida.

ANTÔNIO — Sim, Pompeu, soube disso, e preparado já me encontrava para o pagamento dos agradecimentos que vos devo.

POMPEU — Dai-me a mão. Não pensei que poderia, senhor, vos encontrar neste momento.

ANTÔNIO — As camas do Nascente são macias. Grato vos sou, no entanto, por me terdes chamado antes do tempo. Ganhei muito por ter vindo mais cedo.

CÉSAR — São notáveis as modificações que em vós observo desde a última conversa que tivemos.

POMPEU — Não sei que contas a Fortuna adversa no rosto me escreveu; mas é certeza que em meu peito ela nunca há de insinuar-se para deixar-me o coração escravo.

LÉPIDO — Feliz encontro.

POMPEU — É assim que eu penso, Lépido. Estamos, pois, de acordo. Agora espero que este nosso contrato seja posto por escrito e selado por nós mesmos.

CÉSAR — É o que faremos logo.

POMPEU — Depois disso festejemo-nos antes de partirmos, mostrando a sorte quem vai dar começo.

ANTÔNIO — Quero iniciar, Pompeu; consente nisso.

POMPEU — Não, Antônio; é por sorte. Mas embora o primeiro sejais ou o derradeiro, vossa cozinha egípcia primorosa a perder não virá sua alta fama. Ouvi dizer que o nosso Júlio César só de comer por lá ficou mais gordo.

ANTÔNIO — Ouvistes muita coisa.

POMPEU — Tenho honestas intenções, meu senhor.

ANTÔNIO — E honestamente vos expressais.

POMPEU — Foi quanto me disseram. Ouvi dizer também que Apolodoro carregara nos ombros…

ANTÔNIO — Basta! É certo.

POMPEU — Certo, quê?

ENOBARBO — Num colchão uma rainha para César.

POMPEU — Agora reconheça-te. Como vais, camarada?

ENOBARBO — Bem, e espero continuar assim, pois temos quatro festins em perspectiva.

POMPEU — Dá-me a mão. Nunca te votei ódio, mas ao ver-te pelejar invejei tua postura.

ENOBARBO — Senhor, nunca vos tive muito afeto; mas já vos elogiei, quando dez vezes mais, talvez, merecêsseis do que tudo que eu pudesse dizer.

POMPEU — Sê sempre franco, que não te fica mal essa linguagem. Para minha galera vos convido. Quereis passar na frente, meus senhores?

CÉSAR, ANTÔNIO e LÉPIDO — Senhor, mostrai-nos o caminho. Vamos.

(Saem todos, com exceção de Menas e Enobarbo.)

MENAS — Teu pai, Pompeu, jamais teria feito um tratado nessas condições. Creio que já nos vimos, senhor.

ENOBARBO — No mar, se não estou enganado.

MENAS — Perfeitamente, senhor.

ENOBARBO — Realizastes grandes feitos na água.

MENAS — Assim como vós, em terra.

ENOBARBO — Estou pronto a elogiar quem me elogiar, muito embora não se possa negar o que eu fiz em terra.

MENAS — Nem o que eu fiz na água.

ENOBARBO — Contudo, para vossa própria segurança, tereis que negar alguma coisa. Fostes um grande ladrão do mar.

MENAS — Assim como vós, de terra.

ENOBARBO — Nesse ponto eu nego os meus serviços de terra. Mas dai-me a mão. Se nossos olhos tivesse autoridade, Menas, prenderiam agora dois ladrões que se beijam.

MENAS — O rosto dos homens é sempre honesto, façam as mãos o que fizerem.

ENOBARBO — Mas nunca houve mulher bonita com rosto honesto.

MENAS — Sem querer caluniá-las, roubam corações.

ENOBARBO — Viemos aqui para nos batermos convosco.

MENAS — Por minha parte, entristece-me ter acabado tudo em bebedeira. Sorrindo, Pompeu dá hoje um empurrão na própria sorte.

ENOBARBO — Se o fizer, não poderá depois, com lágrimas, chamá-la para trás.

MENAS — É como dizeis, senhor. Não esperávamos encontrar aqui Marco Antônio. Por obséquio, ele se casou com Cleópatra?

ENOBARBO — A irmã de César se chama Otávia.

MENAS — É muito certo, senhor; foi casada com Caio Marcelo.

ENOBARBO — Mas agora é esposa de Marco Antônio.

MENAS — Que me dizeis, senhor?

ENOBARBO — A pura verdade.

MENAS — Nesse caso, César e ele estão unidos para sempre.

ENOBARBO — Se eu tivesse que profetizar a respeito dessa união, não me exprimiria nesses termos.

MENAS — Sou de opinião que os interesses políticos entraram com muito maior contingente para a realização desse enlace do que o próprio amor dos interessados.

ENOBARBO — É também o que eu penso. Mas ainda chegareis a ver que o laço que parece unir a amizade deles dois se transformará justamente na corda que vai estrangular-lhes a afeição. Otávia é casta, fria e de exterior sereno.

MENAS — Quem não desejara uma esposa desse jeito?

ENOBARBO — Quem não for assim, a saber: Marco Antônio. Ele voltará para a gamela de sua egípcia. Então, os suspiros de Otávia atiçarão o fogo de César e, como disse há pouco, o que constitui hoje o forte da amizade deles dois, se afirmará como o fator imediato da discórdia entre ambos. Antônio não desviará de lá sua afeição; só desposou aqui sua própria necessidade.

MENAS — É possível que seja assim. Vinde, senhor. Não quereis ir para bordo? Desejo beber à vossa saúde.

ENOBARBO — Aceito, senhor. No Egito trabalhamos bem com a garganta.

MENAS — Então vamos logo.

(Saem.)

Cena VII

A bordo da galera de Pompeu, junto do Cabo Miseno.
Música. Entram dois ou três criados com uma mesa posta.

PRIMEIRO CRIADO — Vão chegar, homem! Vão chegar! Muitos desses caules estão com a raiz podre; o menor vento os lançará por terra.

SEGUNDO CRIADO — Lépido já está muito corado.

PRIMEIRO CRIADO — Fizeram-no beber o resto de todas as garrafas

SEGUNDO CRIADO — Quando eles beliscam reciprocamente suas disposições, ele grita: “Não prossigais!” reconcilia-os com suas súplicas e a si próprio com a bebida.

PRIMEIRO CRIADO — Suscitando com isso dissídio ainda maior entre ele e a própria discrição.

SEGUNDO CRIADO — Ora, isso acontece quando se tem o nome na companhia dos grandes homens. Prefiro um caniço que não me sirva para nada a uma partazana que eu não possa levantar.

PRIMEIRO CRIADO — Ser convidado para uma alta esfera e não ser visto mover-se, quando ela se desloca, é ser como essas órbitas sem olhos que deformam lastimosamente os rostos.

(Toque de trombetas. Entram César, Antônio, Lépido, Pompeu, Agripa, Mecenas, Enobarbo, Menas e outros capitães.)

ANTÔNIO — Assim fazem. Do Nilo a altura tomam por meio de umas marcas na pirâmide. Pela marca mais alta, média e baixa sabem se vai haver falta ou abundância. Quanto mais sobe o Nilo, mais promete. Quando reflui, o semeador espalha na lama e lodo os grãos, vindo a colheita pouco tempo depois.

LÉPIDO — Tendes por lá serpentes esquisitas.

ANTÔNIO — É verdade, Lépido.

LÉPIDO — Vossa serpente do Egito nasce do vosso lodo pela ação de vosso sol, o mesmo acontecendo com o crocodilo.

ANTÔNIO — É o que se dá, realmente.

POMPEU — Sentai-vos! Vamos ao vinho! À saúde de Lépido!

LÉPIDO — Não me sinto tão bem como quisera, mas nessas coisas nunca fico de fora.

ENOBARBO (a parte) — Enquanto não vos pondes a dormir. Mas receio muito que até lá ficareis dentro.

LÉPIDO — Não, é certo. Ouvi dizer que as pirâmides de Ptolomeu são coisas extraordinárias. Sim, foi o que me disseram.

MENAS — Pompeu uma palavra.

POMPEU — Segredai-ma. Que aconteceu?

MENAS — Deixa o lugar, meu chefe, para me ouvires uma palavrinha.

POMPEU — Espera um pouco. Vinho para Lépido!

LÉPIDO — De que jeito é o vosso crocodilo?

ANTÔNIO — Parece-se muito consigo mesmo, senhor, e é da largura que lhe é própria. Sua altura não passa da que ele tem, movimentando-se ele com seus próprios membros. Vive do que o alimenta e, uma vez dispersados os elementos, transmigra para outra parte.

LÉPIDO — De que cor é ele?

ANTÔNIO — De sua própria cor.

LÉPIDO — É uma serpente muito esquisita.

ANTÔNIO — Perfeitamente; e suas lágrimas são úmidas?

CÉSAR — Essa descrição o satisfaz?

ANTÔNIO — Sim, depois dos brindes de Pompeu. Fora disso, é um verdadeiro epicuro.

POMPEU — Ide enforcar-vos! Para que falar-me? Fazei o que vos disse. Que é da taça que vos pedi há pouco?

MENAS — Se por tudo quanto te fiz quiseres atender-me, deixa a cadeira e vem.

POMPEU — Estás maluco? Que aconteceu?

(Afastam-se.)

MENAS — Diante de tua sorte sempre fui reverente.

POMPEU — Tens-me sempre servido com lealdade. Que mais posso dizer-te. — Meus senhores, alegria!

ANTÔNIO — Tomai cuidado, Lépido, com esses bancos de areia; podem absorver-vos.

MENAS — Queres ficar senhor do mundo todo?

POMPEU — Que estás dizendo?

MENAS — Torno a perguntar-te: queres ficar senhor do mundo todo?

POMPEU — Como fora possível?

MENAS — Se me deres consentimento, embora eu seja pobre, poderei dar-te o mundo de presente.

POMPEU — Tens bebido bastante?

MENAS — Não, Pompeu abstive-me de todo. Se quiseres, ficarás sendo o Júpiter terreno. Tudo o que o oceano cerca e o céu abarca ficará sendo teu, se o desejares.

POMPEU — Dize-me como poderá ser isso.

MENAS — Os três competidores, que em três partes o mundo dividiram, ora se acham a bordo de teu barco. Se me deres consentimento, cortarei os cabos. Uma vez afastados, lhes cairemos no pescoço, e tudo isto te pertence.

POMPEU — Ah! fora bom se houvesses feito tudo sem me dizeres nada. Bom serviço de tua parte, em mim fora vileza. Fica sabendo que não é o lucro que a honra me impulsiona; é a honra mesma. É pena que tua língua houvesse sido traidora de teu ato. Se tivesses feito em silêncio, eu acharia jeito, depois, de achar bem feito. Mas agora repilo a idéia. Assim, desiste e bebe.

MENAS (à parte) — Só por isso nunca mais seguirei tua sorte pálida. Quem algo almeja e não o aceita, quando lho oferecem, jamais volta a encontrá-lo.

POMPEU — À saúde de Lépido!

ANTÔNIO — Levai-o para terra. Pompeu, falo eu por ele.

ENOBARBO — À tua, Menas!

MENAS — Enobarbo, salve!

POMPEU — Enchei a taça até que suma toda.

ENOBARBO — Ali está um tipo bem forte, Menas.

(Apontando para o criado que sai carregando Lépido.)

MENAS — Por quê?

ENOBARBO — Ora, homem! Pois vai carregando uma terça parte do mundo, não estás vendo?

MENAS — Bêbeda se acha essa terceira parte. Se assim o mundo todo se encontrasse, andaria de rodas.

ENOBARBO — Então bebe também; aumenta as rodas.

MENAS — Vamos.

POMPEU — Ainda falta muito para que isto se transforme em festim de Alexandria.

ANTÔNIO — Está perto. Batei as taças, oh! Agora para César!

CÉSAR — Poderia passar sem isso agora? É esforço insano verificar que quanto mais o cérebro tento lavar, mais ele se me enturva.

ANTÔNIO — Sê filho de teu tempo.

CÉSAR — Não, domina-o; é como te respondo. Preferira passar sem comer nada quatro dias, a beber tanto num.

ENOBARBO (A Antônio) — Meu bravo imperador, não dançaremos agora a bacanal egípcia, para chorar a bebedeira?

POMPEU — Vamos, mostra-nos, camarada, como é.

ANTÔNIO — Às mãos nos demos, até que o vinho vencedor nos tenha mergulhado os sentidos no suave e delicado Lete.

ENOBARBO — Às mãos trancemos; os ouvidos deixemos atordoados com música bem forte. Nesse em meio, designarei a todos seus lugares. Este rapaz dará começo ao canto. Dirão a um tempo todos o estribilho com tanta força quanto permitirem os pulmões resistentes.

Canção.

Vem depressa, rei do vinho, nédio Baco em desalinho. Acabemos com as dietas em tuas tinas repletas, e grinaldas de teus ramos em torno à fronte ponhamos. Mais vinho! Que vire o mundo! Mais vinho! Que vire o mundo!

CÉSAR — Que quereis mais? Pompeu muito boa noite. Permiti, caro mano, que vos leve. Nossos graves cuidados nos censuram por esta leviandade. Meus senhores, fiquemos por aqui, pois estais vendo que em brasa o rosto temos. O fortíssimo Enobarbo é mais fraco do que o vinho, fendendo minha língua quanto eu digo. Estas vestes selvagens, em palhaços a todos nós mudaram. Que diremos ainda? Boa noite. Caro Antônio, dá-me a mão.

POMPEU — Vou levar-vos até à praia.

ANTÔNIO — Pois não, senhor; aceito vossa oferta. Sim, dai-me a mão.

POMPEU — Antônio, arrebatastes-me a casa de meu pai. Mas pouco importa; somos amigos. Vamos para o bote.

ENOBARBO — Tomai cuidado para não cairdes. (Saem Pompeu, César, Antônio e criados.) Menas, não saltarei.

MENAS — De forma alguma. Para o meu camarote. Esses tambores! essas trombetas! essas flautas! Ouve Netuno, a despedida barulhenta que damos a esses grandes companheiros. Vamos! Barulho, vamos! Que se enforquem!

(Toque de trombeta, e tambores.)

ENOBARBO — Urra! é o que eu digo. Eis o meu gorro.

MENAS — Urra! Meu nobre capitão, avante!

(Saem.)

ATO III
Cena I

Planície na Síria Entra Ventídio em triunfo, com Sílio e outros romanos; Oficiais e soldados. A frente é trazido o corpo de Pacoro.

VENTÍDIO — Dardos da Pártia, fostes subjugados e agora vingador a sorte amável do trespasse me faz de Marco Crasso. Ponde à frente do exército o cadáver do filho do monarca. Teu Pacoro, Orodes, isto paga a Marco Crasso.

SÍLIO — Nobre Ventídio, enquanto tua espada com o sangue parto ainda se encontra quente, persegue os fugitivos, pela Média, pela Mesopotâmia, nos abrigos em que eles, dispersados, se acolheram. Assim, teu grande capitão Antônio te cingirá a fronte com guirlandas, carregando-te em carro de triunfo.

VENTÍDIO — Ó Sílio! Sílio! Fiz o suficiente. Um subalterno — toma nota — nunca deve fazer qualquer ação brilhante. Pois Sílio, aprende que é de mais proveito deixar de fazer algo do que fama adquirir por um feito, quando ausente se encontrar nosso chefe. Antônio e César sempre ganharam mais por seus prepostos do que por eles mesmos. O tenente de Antônio, meu antecessor na Síria, Sóssio, alto nome havendo conquistado rapidamente, por vitórias múltiplas, perdeu o favor dele. Quem na guerra faz mais que o capitão, cedo transforma-se em capitão do próprio capitão. A ambição, que é a virtude do soldado, prefere uma derrota a uma vitória que venha a desservi-la. Eu poderia fazer muito mais coisas para Antônio; mas isso fora ofensa, e nessa ofensa naufragara meu mérito.

SÍLIO — Ventídio, és dotado de certas qualidades sem as quais um soldado e sua espada mal podem distinguir-se. Não pretendes escrever para Antônio?

VENTÍDIO — Humildemente lhe comunicarei o que em seu nome — essa palavra mágica da guerra — pudemos realizar, como, com suas bandeiras e seus homens mui bem pagos, do campo escorraçamos os cavalos jamais batidos dos soldados partos.

SÍLIO — Onde está ele agora?

VENTÍDIO — Pretendia ir para Atenas, onde é nosso intento procurá-lo com a pressa permitida pelo peso do espólio que levamos. Sigamos logo. Avante!

(Saem.)

Cena II

Roma. Um quarto em casa de César. Entram Agripa e Enobarbo, por lados diferentes.

AGRIPA — Como! Os manos já foram?

ENOBARBO — Assentaram com Pompeu alguns pontos importantes. Pompeu já foi; os outros três se ocupam em selar o tratado. Otávia chora por deixar Roma; César está triste; Lépido, desde a festa de Pompeu, como diz Menas, sofre de icterícia.

AGRIPA — Como Lépido é nobre!

ENOBARBO — Primoroso! E como ele ama César!

AGRIPA — Certo! Certo! Mas também como adora Marco Antônio!

ENOBARBO — César? Oh! Ele é o Júpiter dos homens.

AGRIPA — E Antônio que será? O deus de Júpiter.

ENOBARBO — Falais de César? Oh! é sem segundo!

AGRIPA — Oh Antônio, Antônio! Pássaro da Arábia!

ENOBARBO — Para elogiarmos César, é bastante dizermos “César”, sem nenhum acréscimo.

AGRIPA — Oh! ele soube dispensar a ambos os elogios mais extraordinários.

ENOBARBO — Mas ama mais a César. Ama a Antônio. Oh! línguas, corações, pintores, bardos, poetas, escritores não conseguem pensar, falar, cantar, plasmar, dar forma, ah! ao amor que a Antônio ele dedica. Mas em frente de César, ajoelhai-vos, caí de joelhos e mostrai espanto.

AGRIPA — Dedica amor aos dois.

ENOBARBO — Eles os élitros são daquele, que é escaravelho de ambos. (Trombetas dentro.) É o toque de montar. Adeus, Agripa.

AGRIPA — Adeus, digno soldado. Muita sorte.

(Saem.)

(Entram César, Antônio, Lépido e Otávia.)

ANTÔNIO — Não mais longe, senhor.

CÉSAR — Levais de mim uma porção bem grande. Nela me dai condigno tratamento. Mana, revela-te uma esposa como penso que és em verdade e como as minhas mais altas esperanças o desejam. Meu nobre Antônio, não deixeis que o esteio de virtude que entre nós dois pusemos, para firmar de vez nossa amizade, no aríete se mude, destinado a sacudir-lhe as bases. Melhor fora para nós dois que amado nos tivéssemos sem este traço de união, que virmos em qualquer tempo a não querer-lhe muito.

ANTÔNIO — Não me ofendais com vossa desconfiança.

CÉSAR — Tenho dito.

ANTÔNIO — Por mais que vos mostrásseis exagerado nisso, nunca havíeis de achar um traço ao menos do que tanto manifestais receio. Assim, que os deuses vos amparem, deixando concertados a vossos fins os corações romanos. Aqui nos despedimos.

CÉSAR — Adeus. Adeus, também, irmã querida. Sejam-te os elementos generosos, deixando-te os sentidos bem dispostos. Adeus.

OTÁVIA — Meu nobre mano

ANTÔNIO — Abril tem ela nos olhos, primavera dos amores, que por esse aguaceiro é conduzida. Fica alegre.

OTÁVIA — Senhor, olhai a casa de meu marido, e…

CÉSAR — Que disseste, Otávia?

OTÁVIA — Vou dizer-vo-lo no ouvido.

ANTÔNIO — Ao coração desobedece a língua, tal como aquela a esta. De igual modo, no alto da onda mantém-se a plumazinha do cisne, à maré cheia, sem voltar-se para lado nenhum.

ENOBARBO (à parte, a Agripa) — Será que César vai chorar?

AGRIPA — Uma nuvem tem no rosto.

ENOBARBO — Isso já fora ultraje num cavalo. Que não será num homem?

AGRIPA — Enobarbo, ao ver Antônio a Júlio César morto, quase rugiu de dor, e chorou muito quando morto em Filipos achou Bruto.

ENOBARBO — Naquele ano ele andava endefluxado. Chorava o que ele destruiu de grado? Só se eu também chorar é que hei de crê-lo.

CÉSAR — Não, doce Otávia, mandarei notícias; o tempo não apaga tua imagem.

ANTÔNIO — Vamos, senhor. Quero lutar convosco com respeito ao amor. Eis meu abraço. Deste modo vos solto e vos entrego à proteção dos deuses.

CÉSAR — Passai bem. Sede feliz.

LÉPIDO — Que todas as estrelas te iluminem a estrada.

CÉSAR — Adeus.

(Beija Otávio.)

ANTÔNIO — Adeus.

(Soam trombetas. Saem.)

Cena III

Alexandria. Um quarto no palácio. Entram Cleópatra, Charmian, Iras e Alexas.

CLEÓPATRA — Onde está o homem?

ALEXAS — Não quer vir; tem medo.

CLEÓPATRA — Vai, vai buscá-lo. (Entra o mensageiro.) Vinde aqui, senhor.

ALEXAS — Bondosa Alteza, Herodes da Judéia a olhar-vos não se atreve senão quando vos achais bem disposta.

CLEÓPATRA — É meu desejo vir a ter a cabeça desse Herodes. Mas para quem hei de pedi-la, estando de lá ausente Antônio? Isso, aproxima-te.

MENSAGEIRO — Graciosa majestade!

CLEÓPATRA — Viste Otávia?

MENSAGEIRO — Vi, sim, rainha venerável.

CLEÓPATRA — Onde?

MENSAGEIRO — Senhora, em Roma. Contemplei-lhe o rosto e vi-a entre o irmão dela e Marco Antônio.

CLEÓPATRA — É tão alta quanto eu?

MENSAGEIRO — Não é, senhora.

CLEÓPATRA — Falar a ouviste? Fala baixo ou alto?

MENSAGEIRO — Ouvi, sim; fala baixo.

CLEÓPATRA — É mau indício; ele não a amará por muito tempo.

MENSAGEIRO — Como! Amá-la? Oh, por Ísis! Impossível.

CLEÓPATRA — É também o que eu penso. Charmian, fala sossegada e é baixota. E sua marcha, revela majestade? Pensa nisso, se é que já contemplaste majestade.

MENSAGEIRO — Ela se arrasta, tanto faz mover-se como ficar parada, é a mesma coisa. Parece mais cadáver do que gente, estátua pura, não dotada de alma.

CLEÓPATRA — Estais seguro disso?

MENSAGEIRO — Salvo se olhos eu não tiver.

CHARMIAN — Não temos três pessoas no Egito que melhor observar saibam.

CLEÓPATRA — Ele sabe o que diz, estou notando. Então ela carece de atrativos. Este homem sabe ajuizar as coisas.

CHARMIAN — Otimamente.

CLEÓPATRA — E a idade dela? Quantos anos terá?

MENSAGEIRO — Ela era viúva, minha senhora.

CLEÓPATRA — Charmian, escuta: viúva!

MENSAGEIRO — Penso que tem trinta anos.

CLEÓPATRA — E o feitio do rosto, ainda te lembras? É redondo ou alongado?

MENSAGEIRO — Oh! bem redondo; chega a ser defeituosa.

CLEÓPATRA — A maior parte das pessoas assim são abobadas. E de que cor são os cabelos dela?

MENSAGEIRO — Senhora, escura, e tem tão baixa fronte quanto ela própria desejar pudera.

CLEÓPATRA — Recebe este ouro. A mal levar não deves minha aspereza de antes. Tenho idéia de encarregar-te novamente disso, pois vejo que dás conta do recado. Vai preparar-te. As cartas estão prontas.

(Sai o mensageiro.)

CHARMIAN — É um sujeito capaz.

CLEÓPATRA — Muito, realmente. Pesa-me, agora, tê-lo molestado. Por sua descrição essa criatura não vale grande coisa.

CHARMIAN — Nada, nada, minha senhora.

CLEÓPATRA — Ele já viu, decerto, majestade, sabendo, porventura…

CHARMIAN — Se já viu majestade? Isis me ampare! Servindo-vos aqui há tanto tempo?

CLEÓPATRA — Tenho uma coisa ainda a perguntar-lhe, boa Charmian. Mas isso pouco importa. Leva-o para onde eu vou fazer as cartas. Talvez ainda conciliemos tudo.

CHARMIAN — Garanto-vos, senhora.

(Saem.)

Cena IV

Atenas. Um quarto em casa de Antônio. Entram Antônio e Otávia.

ANTÔNIO — Não, não Otávia; não é isso apenas. Isso fora escusável, isso e inúmeros outros fatos iguais. Recentemente contra Pompeu abriu de novo guerra; o testamento fez e leu-o em público. Falou de mim mui perfunctoriamente, e quando tinha de prestar-me homenagem, expressava-se com frieza e a contragosto, só medindo-me por bitola acanhada. Quando tinha boa oportunidade, desprezava-a, de caso bem pensado, ou mui de leve, tão-somente, a pegava.

OTÁVIA — Ó caro esposo! não deis crédito a tudo, ou, caso o derdes, não leveis tudo a mal. Mulher alguma mais infeliz — se vier a tomar vulto tal desinteligência — colocada se viu entre os dois campos contendores a rezar pelos dois. Hão de zombar de mim os deuses plácidos, quando rezar me ouvirem: “Protegei meu senhor e marido!” e, destruindo logo após esse voto, exclamar alto: “Protegei meu irmão!” Vença o marido, vença o irmão… um pedido destrói o outro. Nesses extremos não há meio termo.

ANTÔNIO — Nobre Otávia, coloca o teu afeto onde ele possa ser mais bem guardado. Se eu perder a honra, perco-me a mim mesmo. Prefiro não ser vosso, a pertencer-vos tão desgalhado assim. Mas acedendo no que pedis, fareis de medianeira entre mim e ele. Nesse meio tempo, senhora, tratarei dessa campanha que a vosso irmão irá deixar na sombra. Se puserdes bastante pressa nisso, realizados vereis vossos desejos.

OTÁVIA — Obrigada vos fico. O poderoso Júpiter fez de mim, fraca, tão fraca, vossa conciliadora. Uma contenda entre vós, fora como se o universo viesse a rachar, devendo corpos mortos soldar a grande fenda.

ANTÔNIO — Logo que virdes de onde vem a causa do dissídio entre nós, para essa banda fazei pender o vosso desagrado. Pois nunca poderão ser nossas faltas tão iguais que mereçam tratamento igual de vosso amor. Cuidai da viagem. Vós mesma escolhereis as componentes de vosso séqüito e fareis o cômputo das despesas que achardes necessárias.

(Saem.)

Cena V

O mesma Outro quarto. Entram Enobarbo e Eros, que se encontram.

ENOBARBO — Então, amigo Eros!

EROS — Chegaram notícias muito estranhas, senhor.

ENOBARBO — Que notícias, homem?

EROS — César e Lépido atacaram Pompeu.

ENOBARBO — Ora, isso já é velho. E qual foi o resultado?

EROS — César, tendo-se aproveitado de Lépido na guerra contra Pompeu, recusou-se a reconhecer nele um seu igual, não permitindo que lhe tocasse nenhuma parte da glória desse feito. E sem parar aí, acusa-o, ainda, de haver escrito antes a Pompeu, motivo por que o prendeu, com base na acusação por ele próprio formulada. Assim, o pobre triúnviro está na grade, até que a morte alargue sua prisão.

ENOBARBO — Desse modo ficaste — ó mundo, apenas com um par de queixadas, e ainda mesmo que entre elas jogues tudo o que tiveres, entre si hão de moer-se. Onde está Antônio?

EROS — Passeia no jardim — assim — e pisa a erva que acha, a exclamar de quando em quando: “Que estúpido, esse Lépido!” o pescoço do oficial ameaçado que sem vida deixou Pompeu.

ENOBARBO — Aparelhada nossa grande esquadra se encontra.

EROS — Para o ataque contra César e a Itália. Mais, Domínio; meu amo quer falar-vos com urgência. Depois vos contarei o que ainda falta.

ENOBARBO — Há de ser quase nada. Pouco importa. Levai-me a Antônio.

EROS — Então, senhor, segui-me.

(Saem.)

Cena VI

Roma. Um quarto em casa de César. Entram César, Agripa e Mecenas.

CÉSAR — Em menoscabo a Roma fez tudo isso, mas em Alexandria fez pior. Passou-se assim: em meio à praça pública em tronos de ouro, sobre uma tribuna de prata ele e Cleópatra se achavam. Aos pés deles Cenário se encontrava, que é filho de meu pai, segundo dizem, e todos os produtos ilegítimos a que a lascívia deles dois deu vida. Então Antônio conferiu a Cleópatra o governo do Egito e proclamou-a soberana absoluta não somente de Chipre e Lídia, mas da baixa Síria.

MECENAS — E isso à vista de todos?

CÉSAR — No recinto público das ginásticas. O filho dele foi proclamado rei dos reis. A Alexandre ele deu a grande Média, a Pátria e a Armênia; enfim, a Ptolomeu a Fenícia doou, Síria e Cilícia. Nesse dia Cleópatra vestiu-se como a deusa Isis, sendo voz corrente que desse jeito, muitas vezes, antes ela audiência já deu.

MECENAS — É necessário que Roma saiba disso.

AGRIPA — Já bastante desgostosa com seu descaramento, de toda estima há de privá-lo logo.

CÉSAR — O povo sabe disso; as queixas dele já foram feitas.

AGRIPA — A quem ele acusa?

CÉSAR — A César, alegando que, após termos na Sicília tomado todo o espólio de Pompeu, a lhe dar nos recusamos a sua parte da ilha. Alega, ainda, que eu não lhe devolvi alguns navios que me havia emprestado. Finalmente, acha-se estomagado por ter Lépido perdido o triunvirato e nós nos termos apossado de todos os bens dele.

AGRIPA — É preciso, senhor, responder a isso.

CÉSAR — Já foi feito. Partiu o mensageiro. Fiz-lhe ver como Lépido se tinha mostrado muito cruel e que abusara de sua autoridade, merecendo, por isso, tal castigo. Nas conquistas feitas por mim ele teria parte; porém que a mesma coisa eu exigia de sua Armênia e de outros reinos que ele havia conquistado.

MECENAS — Nunca ele há de conceder esse ponto.

CÉSAR — Nesse caso naquele outro também não cederemos.

(Entra Otávia, com seu séqüito.)

OTÁVIA — Salve, senhor! Meu caro César, salve!

CÉSAR — Chegar a ver-te um dia repudiada!

OTÁVIA — Nunca assim me chamastes; não há causa.

CÉSAR — Por que vens surpreender-nos desse modo? Não te apresentas como irmã de César. A consorte de Antônio deveria ter como introdutor um grande exército, servindo-lhe o relincho dos cavalos de sinal de chegada, muito tempo antes de ela surgir. Por toda a estrada carregadas as árvores deviam mostrar-se de homens e a curiosidade definhar por querer o que lhe falta. Mais, ainda: até à abóboda celeste chegar devia a poeira, levantada pela população cheia de júbilo. Mas como rapariga do mercado viestes a Roma, assim deixando frustras as manifestações de meu afeto que, muitas vezes, sem ser visto, fica também sem ser amado. Deveríamos ter ido ao vosso encontro assim em terra como no mar, as estações enchendo de saudações crescentes.

OTÁVIA — Meu bondoso senhor, não vim forçada desse jeito, mas por livre vontade. Meu marido, Marco Antônio, ao saber que vos armáveis para a guerra, instruções deu minuciosas a meu aflito ouvido. Obtive dele permissão para vir.

CÉSAR — Por ele dada com presteza, por serdes um obstáculo posto entre ele e a lascívia.

OTÁVIA — Não, bondoso senhor; não digais isso.

CÉSAR — Tenho-o sempre de olho; o vento me traz notícias dele. Em que lugar ele se encontra agora?

OTÁVIA — Em Atenas, senhor.

CÉSAR — Não é verdade, muito enganada irmã; já lhe fez Cleópatra sinal, chamando-o. A uma prostituta deu ele seu império, e os reis da terra ambos, agora, para a guerra incitam. Assim, já convocou Baco, da Líbia, o rei da Paflagônia, Filadelfo, Abdala, rei da Trácia, o rei do Ponto, Herodes da Judéia, o soberano da Capadócia, que Arquelau se chama, Mitridates de Comagene, Amintas e Polemão, de Licaônia e Média, e outra lista maior de reis cetrados.

OTÁVIA — Ai de mim, infeliz, que dividido tenho ora o coração entre dois seres que reciprocamente se maltratam!

CÉSAR — Sede bem-vinda. Retardaram vossas cartas vossa partida. Desejávamos, convencer-nos, também, de quanto tínheis sido ultrajada, e nós assim, corrido grande risco com tanta negligência. Reanimai-vos, sem vos amofinardes com o presente que sobre vossa dita tantas preocupações tem atirado. Sem nos queixarmos, aceitemos quanto nos impõe o destino no seu curso. A Roma sois bem-vinda. Sobre tudo vos dedico afeição. Não pode a mente conceber quanto fostes ultrajada. Os altos deuses, para vos fazerem justiça, em seus ministros nos transformam e a todos que vos prezam. Reanimai-vos e sede sempre para nós bem-vinda.

AGRIPA — Sois bem-vinda, senhora.

MECENAS — Mui prezada senhora, sois bem-vinda. Todos os corações de Roma, a um tempo, vos amam e lastimam. Só o adúltero Antônio, inteiramente mergulhado em suas ignomínias, vos repele e seu poder a uma rameira entrega, que contra nós atroa.

OTÁVIA — É assim, senhor?

CÉSAR — Decerto. Mana, sois bem-vinda. Tende paciência, por obséquio, irmã querida!

(Saem.)

Cena VII

Acampamento de Antônio, junto do promontório de Actio. Entram Cleópatra e Enobarbo.

CLEÓPATRA — Certeza podes ter de que haveremos de ficar quites.

ENOBARBO — Mas por quê? Por quê?

CLEÓPATRA — Por desaconselhardes minha vinda a esta guerra, julgando-a deslocada.

ENOBARBO — E dai? E dai?

CLEÓPATRA — Ainda mesmo que não houvesse sido declarada contra nós, por que não comparecermos em pessoa a esta guerra?

ENOBARBO (à parte) — Poderia dizer que se trouxéssemos cavalos e éguas para a campanha, ficaríamos sem cavalos, que as éguas se veriam a carregar forçadas os cavalos e os cavaleiros.

CLEÓPATRA — Que é que estás dizendo?

ENOBARBO — Vossa presença embaraçaria Antônio, reclamar-lhe-ia o coração, o cérebro, fá-lo-ia perder tempo, justamente quando nada desviar nos é possível. Já o acoimam de fútil, comentando-se em Roma que esta guerra é dirigida pelo eunuco Fotino e vossas criadas.

CLEÓPATRA — Desapareça Roma e que apodreçam todas as línguas que de nós falarem. Tenho função nesta campanha, e como cabeça de meu reino hei de mostrar-me soldado de valor. Não me retruques; não ficarei atrás.

ENOBARBO — Estou calado. Aí vem o imperador.

(Entram Antônio e Canídio.)

ANTÔNIO — Não te parece muito estranho, Canídio, que ele tenha, partindo de Tarento e de Brundísio, tão velozmente atravessado o Jônio e tomado Torine? Não Ouvistes falar nisso, querida?

CLEÓPATRA — Os negligentes é que a celeridade mais admiram.

ANTÔNIO — Excelente resposta, que ficaria muito bem no melhor dos combatentes, visando a repreender a negligência. No mar, Canídio, vou lutar com ele.

CLEÓPATRA — No mar? Que há mais?

CANÍDIO — Por que vai fazer isso, meu senhor?

ANTÔNIO — Porque fomos desafiados.

ENOBARBO — Meu senhor poderia desafiá-lo, se assim é, para duelo.

CANÍDIO — Justamente, e trazê-lo a Farsália, para o embate, onde Pompeu e César se encontraram. Propostas que lhe são desfavoráveis são sempre recusadas. Deveríeis fazer como ele faz.

ENOBARBO — Vossos navios estão mal equipados; a maruja se compõe de azeméis e segadores, gente alistada compulsoriamente. Nos navios de César se acham muitos que já contra Pompeu provados foram. Seus barcos são ligeiros; mais pesados, todos os vossos. Não será desonra nenhuma recusardes um combate no mar, se forte vos achais em terra.

ANTÔNIO — No mar! No mar!

ENOBARBO — Meu muito digno chefe, abris mão, desse modo, da absoluta supremacia que no firme tendes; enfraqueceis o exército, composto, em sua maioria, de pedestres já provados na guerra; sem proveito vossa fama deixais e a alta experiência, desviai-vos do caminho que promete melhor sucesso, para vos lançardes nos perigos do azar, abandonando de todo a segurança.

ANTÔNIO — Vou bater-me no mar.

CLEÓPATRA — Dou-vos sessenta embarcações. César não tem melhores.

ANTÔNIO — Queimaremos nosso excesso de barcos. Com os restantes, bem tripulados, bateremos César, quando ele vier se aproximando de Actio. No caso de perdermos, poderemos desbaratá-lo em terra. (Entra um mensageiro.) Que notícias?

MENSAGEIRO — É certo, meu senhor, ele está à vista. César tomou Torine.

ANTÔNIO — Ele, em pessoa, lá! Não é possível. E estranho que tivesse tanta força. Em terra tomarás conta de nossas dezenove legiões, Canídio, e nossos doze mil de cavalo. Para bordo! Vem, minha Tétis.

(Entra um soldado.)

SOLDADO — Ó nobre imperador, não combatais no mar, não ponhais vossa confiança em pranchas podres. Por acaso já não confiais neste meu gládio e nestas extensas cicatrizes? Que os egípcios e os fenícios mergulhem; nós estamos afeitos a vencer em terra firme, lutando pé com pé.

ANTÔNIO — Bem, bem, sigamos!

(Saem Antônio, Cleópatra e Enobarbo.)

SOLDADO — Por Hércules! no entanto, estou convicto de que tenho razão.

CANÍDIO — Tens, sim, soldado; mas é que os atos dele já não se acham guiados pela razão, pois dirigido vai sendo quem devia dirigir-nos, e a soldados ficamos reduzidos de uma mulher, apenas.

SOLDADO — O comando de todos os cavalos e dos homens de pé vos foi confiado, não é verdade?

CANÍDIO — Marco Otávio e também Marco Justeio com Publícola e Célio o mar dirigem. Nós temos ordem de ficar em terra. É incrível essa rapidez de César.

SOLDADO — Em Roma estando ele ainda, suas forças iam saindo em tão pequenos grupos que a todos os espiões mistificavam.

CANÍDIO — Quem os comanda, sabereis dizer-me?

SOLDADO — Um Tauro, dizem.

CANÍDIO — Ah! Conheço o homem.

(Entra um mensageiro.)

MENSAGEIRO — O imperador mandou chamar Canídio.

CANÍDIO — De novidades está prenhe o tempo; nasce uma a cada instante.

(Saem.)

Cena VIII

Planície perto de Actio. Entram César, Tauro, oficiais e outras pessoas.

CÉSAR — Tauro!

TAURO — Senhor?

CÉSAR — Evita choque em terra; não espalhes os homens; não provoques a batalha sem que no mar tenhamos decidido. Atém-te às instruções aqui exaradas. Nossa sorte depende deste lanço.

(Saem.)

(Entram Antônio e Enobarbo.)

ANTÔNIO — Põe nossos esquadrões naquele lado do monte, olhando o exército de César. Divisamos dali todos os barcos, para agirmos de acordo.

(Saem.)

(Entra Canídio com sua força de terra, e marcha por um lado da cena; Tauro, tenente de César, marcha pelo outro lado. Depois de passarem, ouve-se o ruído do combate naval.)

(Alarma. Volta Enobarbo.)

ENOBARBO — Está tudo perdido! Tudo, tudo! Ver isso é-me impossível. A Antonfada, a capitânia egípcia, juntamente com seus sessenta barcos, vira bordo, pondo-se em fuga. Isso me estraga a vista.

(Entra Escaro.)

ESCARO — Deuses e deusas e o concílio inteiro!

ENOBARBO — Por que essa exclamação?

ESCARO — A mais notável porção do mundo vai ficar perdida, por simples ignorância. Entre dois beijos abrimos mão de remos e províncias.

ENOBARBO — E a pugna, como está!

ESCARO — De nossa parte, como a peste, em que a morte é inevitável. A marafona egípcia — possa a lepra levá-la de uma vez! — em plena luta, quando a fortuna, como um par de gêmeos se comportava, mas o nosso um tanto maior, ao parecer, tal como a vaca de Juno, que o tavardo exasperasse, iça velas e foge.

ENOBARBO — Presenciei isso, os olhos me doeram ante esse quadro, sem que suportassem contemplá-lo mais tempo.

ESCARO — Uma vez ela virada a barlavento, a nobre ruína de seu feitiço, Antônio, tatalando suas asas marinhas, como pato no cio, deixa a pugna, no momento culminante, e em pós dela sai fugindo. Jamais vi ato de tamanho opróbrio. A experiência, a coragem, a honra nunca se rebaixaram tanto.

ENOBARBO — Oh céus! Oh céus!

(Entra Canídio.)

CANÍDIO — Nossa sorte no mar está sem fôlego e naufraga por modo lamentável. Se nosso general tivesse sido o que ele sabe ser, à maravilha tudo, então, nos correra. Seu exemplo oprobrioso nos serviu de norma, para também fugirmos.

ENOBARBO — Ah! Chegastes a esse ponto? Boa noite, então.

CANÍDIO — Fugiram para o Peloponeso.

ESCARO — Será fácil chegarmos até lá, onde pretendo aguardar o que o tempo nos reserva.

CANÍDIO — Vou entregar a César meus cavalos e todas as legiões. Seis reis a estrada que vai à rendição já me indicaram.

ENOBARBO — Continuarei a acompanhar a sorte mal ferida de Antônio, muito embora se sente contra mim o entendimento na corrente do vento.

(Saem.)

Cena IX

Alexandria. Um quarto no palácio. Entram Antônio e criados.

ANTÔNIO — Alto! A terra não quer que eu pise nela; tem vergonha de mim. Amigos, vinde! De tal modo atrasei-me neste mundo, que para sempre me desviei da estrada. Tenho um navio carregado de ouro. Ficai com ele e dividi-o; as pazes fazei com César.

CRIADOS — Como! Nós, fugirmos?

ANTÔNIO — Eu não fugi? Não ensinei aos fracos de que modo correr e virar costas? Amigos, ide; entrei por um caminho que de vós não precisa. Abandonai-me. No porto se acha o meu tesouro; é vosso. Oh! fui no encalço do que neste instante me faz ficar corado só de olhá-lo. Revolta sinto até nestes cabelos, pois os brancos acusam de imprudência aos pretos, assacando estes àqueles só medo e presunção. Amigos, ide. Vou escrever a alguns amigos para que a estrada vos aplanem. Por obséquio, não fiqueis tristes, nem me deis respostas a contragosto. Aproveitai o aceno que vos dirijo em tanto desespero. Abandonai quem a si mesmo deixa. Ide diretamente para a praia, lá vos entregarei o barco e o ouro. Deixai-me alguns instantes, por obséquio. Fazei isso, vos peço, que, em verdade, ordens já não sei dar. Por isso, peço. Dentro de pouco havemos de rever-nos.

(Senta-se.)

(Entra Cleópatra conduzida por Charmian e Iras; Eros a segue.)

EROS — Senhora, ide falar-lhe, consolai-o.

IRAS — Sim, fazei isso, cara soberana.

CHARMIAN — Fazei, fazei! Que mais?

CLEÓPATRA — Quero sentar-me. Oh, Juno!

ANTÔNIO — Não, não, não, não!

EROS — Senhor, não a estais vendo?

ANTÔNIO — Oral Ora!

CHARMIAN — Senhora!

IRAS — Minha senhora! Boa soberana!

EROS — Senhor! Senhor!

ANTÔNIO — É certo, meu senhor. Ele, em Filipos levava a espada como um dançarino. enquanto eu abatia o magro Cássio e liquidava o tresloucado Bruto. Tudo o que ele fazia era por meio dos tenentes, sem ter nenhuma prática dos destemidos esquadrões da guerra. No entanto, agora… Pouco importa.

CLEÓPATRA — Ah! Fica!

EROS — É a rainha, senhor: a soberana.

IRAS — Senhora, ide falar-lhe. Ele está fora de si, inteiramente, de vergonha.

CLEÓPATRA — Pois que seja. Amparai-me. Oh!

EROS — Muito nobre senhor, eis a rainha. Levantai-vos. A cabeça pendida, a morte dela se amparará, se não lhe fordes logo levar algum consolo.

ANTÔNIO — Ofendi minha glória enormemente. Um desvio, privado de nobreza.

EROS — A rainha, senhor.

ANTÔNIO — Para onde, Egito, me conduziste? Vê como eu afasto de tua vista meu imenso opróbrio, olhando para trás de mim e vendo quanto ficou em ruína e desonrado.

CLEÓPATRA — Ó meu senhor, perdoai as minhas velas medrosas, em excesso. Não pensava que podíeis seguir-me.

ANTÔNIO — Tu sabias perfeitamente, Egito, que em teu leme com fio atado o coração eu tinha, e que me levarias arrastado. Tinhas consciência da supremacia que sobre mim exerces e que a um simples aceno teu eu infringira as ordens dos próprios deuses.

CLEÓPATRA — Oh! perdão!

ANTÔNIO — Agora será preciso que a esse moço eu mande proposições humildes, que me valha de fingimentos e desvios longos, de traças vergonhosas, eu, que tinha meio mundo nas mãos, como brinquedo, e carreiras fazia e desfazia. Sabias muito bem quanto me tinhas sob teu domínio, e que esta minha espada tornada fraca pelo amor, só a este, em qualquer circunstância, obedecera.

CLEÓPATRA — Perdão! Perdão!

ANTÔNIO — Não, não chores. Só uma dessas lágrimas vale mais do que tudo que eu perdesse. Dá-me um beijo; já estou com isto pago. Mandamos nosso preceptor falar-lhe. Já retornou? Amor, sinto-me agora como se fosse chumbo! — Tragam vinho! Aí! Tragam comida! — Sabe a sorte que quanto mais apanho mais sou forte.

(Saem.)

CENA X

Egito. Acampamento de César. Entram César, Dolabela, Tireu e outros.

CÉSAR — Que entre o enviado de Antônio. Conhecei-lo?

DOLABELA — César, é o preceptor dos filhos dele. Preciso é que ele esteja depenado completamente, para que nos mande uma pena tão fraca, ele que tinha, não há bastantes luas, soberanos como seus mensageiros.

(Entra Eufrônio.)

CÉSAR — Entra e fala.

EUFRÔNIO — Tal como sou, da parte vim de Antônio. Até bem pouco eu era tão pequeno para seus planos como o fresco orvalho numa folha de mirto, comparado com a grandeza do mar.

CÉSAR — Que seja assim. Dá logo o teu recado.

EUFRÔNIO — Ele te envia saudares, como ao dono de sua sorte, e te pede poder viver no Egito. Sendo-lhe isso negado, diminui de muito seu pedido, suplicando-te que respirar o deixes entre a terra e ao alto céu, como cidadão de Atenas. Quanto a ele, só. E agora, quanto a Cleópatra: ante tua grandeza ela se inclina, ao teu poder se entrega e de ti pede deixar para seus filhos o diadema dos Ptolomeus, de que dispõe tua graça.

CÉSAR — Dize a Antônio que ouvidos não possuo para quanto ele diga. A soberana não ficará sem ser ouvida, sendo-lhe concedido o que pede, se ao Egito ela expulsar seu degradado amigo, ou lá mesmo o matar. Fazendo ela isso, não pedirá em vão. Para ambos disse.

EUFRÔNIO — Que te diga a Fortuna.

CÉSAR — Acompanhai-o com uma escolta pelo Acampamento. (Sai Eufrônio.) (A Tireu.) Chegou o momento de experimentares tua eloquência. Põe bem depressa nisso. De Cleópatra separa Marco Antônio. Concede em nosso nome tudo quanto te pedir, e oferece o que julgares conveniente inventar. Nos dias prósperos as mulheres não são bastante fortes, mas a necessidade leva à quebra dos votos a vestal nunca tocada. Tireu, revela tua habilidade e faze o edito para o teu trabalho, que, como lei, por tudo respondemos.

TIREU — Partirei, César.

CÉSAR — Vê como é que Antônio recebe esse revés e nos transmite teu modo de pensar de como os fatos possam influir nele.

TIREU — Fá-lo-ei, César.

(Saem.)

Cena XI

Alexandria. Um quarto no palácio. Entram Cleópatra, Enobarbo, Charmian e Iras.

CLEÓPATRA — Que fazer, Enobarbo, depois disso?

ENOBARBO — Pensar; depois, morrer.

CLEÓPATRA — Quem é culpado: Antônio ou nós?

ENOBARBO — Antônio; apenas ele, que deixou dominar seu apetite, por completo, à razão. Se desertastes da grande face da batalha, cujas filas umas às outras punham medo, por que razão seguir-vos? O prurido de seu afeto não devera nunca no mando dele influir, principalmente quando o mundo lutava meio a meio, sendo ele o assunto próprio da contenda. Não foi menor opróbrio do que perda correr em pós de vossos estandartes fugitivos, deixando seus navios de todo atarantados.

CLEÓPATRA — Paz, te peço.

(Entra Antônio com Eufrônio.)

ANTÔNIO — Foi isso que ele disse?

EUFRÔNIO — Foi, senhor.

ANTÔNIO — E a rainha achará demência nele, no caso de querer sacrificar-me?

EUFRÔNIO — Isso mesmo.

ANTÔNIO — É preciso que ela o saiba. Basta que envies ao mancebo César esta minha cabeça já grisalha, para que vejas cheios até à borda teus desejos de reinos.

CLEÓPATRA — Como! Tua cabeça, meu senhor?

ANTÔNIO (a Eufrônio) — Retorna a César. Dize-lhe que ele a flor da mocidade traz em sua pessoa, de que o mundo alguma coisa espera. Suas moedas, suas legiões, seus barcos poderiam a um covarde servir, sobressaindo-se seus auxiliares tanto sob o mando de César como sob o de uma criança. Assim, o desafio a pôr de lado suas vantagens todas e a medir-se com meu ocaso, espada contra espada, nós dois apenas. Vou escrever-lhe isso. Acompanha-me.

(Saem Antônio e Eufrônio.)

ENOBARBO (à parte) — Pois não. Seria muito interessante que o vitorioso César degradasse sua felicidade, para aos olhos do público mostrar-se medindo armas com um espadachim. Vejo que o juízo dos homens é uma parte diminuta de sua sorte. As coisas exteriores as faculdades interiores puxam, para o mesmo sofrerem. Sonhar ele — que tão equilibrado se mostrava — que César cheio vai mandar resposta a sua vacuidade! Derrotaste, César, também o julgamento dele.

(Entra um criado.)

CRIADO — Um correio de César

CLEÓPATRA — Como! Agora? Sem mais formalidades? Damas, vede: diante da rosa aberta o nariz tapam os que adoravam o botão fechado. Fazei-o entrar, senhor.

(Sai o criado.)

ENOBARBO (à parte) — Em luta franca nos encontramos, eu e a honestidade. Querer ser fiel a um louco, é deixar louco até o próprio dever. Mas quem consegue manter-se fiel a um senhor caído, domina o vencedor de seu próprio amo, e herda um lugar na história.

(Entra Tireu.)

CLEÓPATRA — Que manda César?

TIREU — Dir-to-ei à parte.

CLEÓPATRA — São só amigos; fala francamente.

TIREU — Mas amigos, quiçá, também de Antônio?

ENOBARBO — Ele tem precisão, de tantos amigos quanto César; do contrário, nos dispensara a todos. Concordando César com isso, correrá meu amo para ser dele amigo. Quanto aos outros, bem o sabeis, amigos somos sempre de quem for ele amigo, isto é: de César.

TIREU — Que seja, então. Ó tu, rainha ilustre, César te pede que não consideres em tua situação senão apenas que ele é César.

CLEÓPATRA — Adiante. Como príncipe.

TIREU — Ele sabe que é menos por afeto do que por medo que abraçais Antônio.

CLEÓPATRA — Oh!

TIREU — Apiada-se, por isso, dos estragos causados em vossa honra e os considera manchas à força impostas, não buscadas por vontade.

CLEÓPATRA — Ele é um deus, e, assim, conhece a verdade integral. Abandonada não foi minha honra, mas tão-só vencida.

ENOBARBO (à parte) — Para disso poder obter certeza vou perguntar a Antônio. Amigo, amigo, tanta água estás fazendo, que nos basta deixar-te naufragar, pois tua própria querida te abandona. (Sai.)

TIREU — Digo a César o que dele almejais? Pois ele quase pede que supliqueis alguma coisa. Ficaria contente se quisésseis um cajado fazer da sorte dele, para vos apoiardes. Mas ao cúmulo chegara da alegria se me ouvisse dizer que Antônio abandonastes, para vos colocardes sob o amparo dele, o senhor do universo.

CLEÓPATRA — Vosso nome?

TIREU — Tireu me chamo.

CLEÓPATRA — Caro mensageiro, dizei ao grande César que eu lhe beijo, por comissão, as mãos conquistadoras. Comunicai-lhe que disposta me acho a lhe depor aos pés minha coroa e, ali mesmo, ajoelhar-me. Revelai-lhe que seu hálito todo-poderoso o destino do Egito irá dizer-me.

TIREU — Muito nobre é o caminho que escolhestes. Quando a sabedoria entra em conflito com a fortuna, se não ousa aquela nada além do possível, abalada não será pelo acaso. Concedei-me depor em vossa mão minha incumbência.

CLEÓPATRA — O pai de vosso César, muitas vezes, quando pensava em conquistar impérios, nesse lugar indigno os lábios punha, que então choviam beijos.

(Volta Antônio e Enobarbo.)

ANTÔNIO — Como! Graça? Por Jove atroador! Quem és maroto?

TIREU — Alguém que apenas executa as ordens do mais poderoso homem, do mais digno de ser obedecido.

ENOBARBO (à parte) — Não escapas da chibata.

ANTÔNIO — Aproxima-te! És tu mesma, víbora! Agora — deuses e demônios! — sinto que se me escapa a autoridade. Antes, quando eu gritava “Olá!” tal como criança em jogo, os reis se apressuravam gritando: “Que quereis?” Não tendes ouças? Ainda sou Antônio. (Entram criados.) Levai este malandro e chibateai-o!

ENOBARBO (à parte) — É melhor provocar um leãozinho do que um leão já velho e moribundo.

ANTÔNIO — Pela lua e as estrelas! Chibateai-o! Embora fossem vinte dos mais fortes tributários de César, se os achasse com tamanho desplante a mão pegando desta… Sim, qual seu nome, depois que ela Cleópatra já não é? Azorragai-o, amigos, até que ele, como criança, contraia o rosto e compaixão implore. Levai-o bem depressa.

TIREU — Marco Antônio…

ANTÔNIO — Levai-o logo; e, uma vez bem zurzido, trazei-o aqui de novo. Esse lacaio de César vai levar-lhe meu recado. (Saem criados com Tireu.) Quando vos conheci, já vos acháveis meio passada. Ah! Ter deixado em Roma meu travesseiro, sem pôr nele a marca da cabeça; privar-me de uma prole legítima com minha esposa rara, para abusado assim me ver por uma mulher que dá atenção a parasitas!

CLEÓPATRA — Meu bondoso senhor…

ANTÔNIO — Sempre fostes versátil. Quando o calo criamos no vício — oh opróbrio! — os deuses sábios os olhos nos embuçam, atolando-se no próprio lodo o nosso claro juízo; fazem que nossos erros adoremos, riem de nós, enquanto, mui vaidosos, marchamos para nossa decadência.

CLEÓPATRA — Como! Chegamos a isso?

ANTÔNIO — Fui achar-vos como um bocado frio na travessa do falecido César… Não, apenas uma migalha para Cneu Pompeu; sem mencionarmos as ardentes horas que a fama não marcou e que soubestes abocar com luxúria. Pois embora possais saber o que é a temperança — disso tenho certeza — nunca a vistes.

CLEÓPATRA — Aonde quereis chegar?

ANTÔNIO — Deixar que um tipo que recebe propinas e responde: “Que Deus vos recompense!” se mostre íntimo de minha companheira de folguedos, dessa mão, timbre real, penhor donoso de altivos corações! Oh! se eu me achasse sobre o monte Basan, para mais alto mugir ainda do que os bois de chifre! Tenho razões selvagens para tanto. Moralmente aduzi-las fora como se um pescoço no laço ao seu carrasco agradecesse a grande habilidade. (Voltam os criados com Tireu.) Foi chibateado?

PRIMEIRO CRIADO — Sim, senhor; de rijo.

ANTÔNIO — Gritou? Pediu perdão?

PRIMEIRO CRIADO — Pediu piedade.

ANTÔNIO — Se teu pai vive, que ele se arrependa de não teres nascido filha dele. Enquanto a ti, reflete o que acontece aos que acompanham César em seu triunfo, Pois só por isso fostes azorragado. Fica com febre doravante, à vista das brancas mãos de uma senhora; treme tão-só de olhar para elas. Vai; retorna para César e dize como foste recebido por mim. Vê: vais dizer-lhe que irritado em excesso ele me deixa, por altivo mostrar-se e desdenhoso, a tocar sempre e sempre a mesma música: o que sou, porém não — o que ele sabe muito bem — o que fui. Isso me irrita, o que ora é muito fácil, porque os astros benfazejos, meus guias até há pouco, vazias suas órbitas deixaram, disparando seus fogos tão-somente nos abismos do inferno. Caso minhas palavras o exasperem, tudo o que houve, lembra-lhe que com ele se acha Hiparco, meu escravo liberto, que, à vontade, pode ele chibatear, pôr a tormentos, enforcar… como queira, para quite ficar comigo. Põe bem depressa nisso. Fora daqui com essas pisaduras!

(Sai Tireu.)

CLEÓPATRA — Já terminastes?

ANTÔNIO — Ah! nossa terrena lua sofreu eclipse e só proclama o declínio de Antônio.

CLEÓPATRA — Dar-lhe-ei tempo para que se refaça.

ANTÔNIO — Poderíeis, para adular a César, lançar olhos morteiros para quem lhe amarra os laços?

CLEÓPATRA — Desconheceis-me ainda?

ANTÔNIO — Indiferente serdes comigo? Coração ter frio?

CLEÓPATRA — Ah, querido! Se eu for assim, que deste coração frio o céu granizo faça e na fonte o envenene, e que a primeira pedra atingir me venha no pescoço, com minha vida, a um tempo, se esfazendo. Caia em Cesário a outra, até que, aos poucos jazam todos os frutos de meu ventre sem sepultura, e meus egípcios bravos nessa alude de pedras, té que as moscas e os mosquitos do Nilo a todos eles dêem a tumba das presas.

ANTÔNIO — Basta-me isso. César está em frente a Alexandria, onde pretendo desafiar-lhe a sorte. Nossas forças de terra se portaram nobremente; os navios dispersados se reuniram de novo e ora navegam, os mares ameaçando. Onde te achavas, meu coração? Escutas-me, senhora? Se eu voltar novamente da campanha para os lábios beijar-te, recoberto de sangue me verás. Eu e esta espada para a lenda entraremos. A esperança não se apagou de todo.

CLEÓPATRA — És meu valente Senhor!

ANTÔNIO — Sinto-me agora com três vezes mais coração, com triplicado fôlego, com músculos dobrados para à luta me atirar com violência. Quando as minhas horas eram risonhas e felizes, a vida os inimigos resgatavam com simples brincadeiras. Mas agora os dentes rangerei e para as trevas mandarei quem me vier barrar o passo. Vem! Aprestemos outra noite alegre; convoca os capitães atribulados; mais uma vez enchamos nossas taças e zombemos do sino da alta noite.

CLEÓPATRA — Hoje é meu natalício. Imaginara que iria festejá-lo pobremente. Mas, uma vez que meu senhor Antônio voltou a ser, eu também sou Cleópatra.

ANTÔNIO — Tudo há de melhorar.

CLEÓPATRA — Dizei aos nobres capitães que venham falar com meu senhor.

ANTÔNIO — Manda chamá-los. Isso mesmo. Desejo conservá-los Essa noite hei de dar-lhes tanto vinho, que vai jorrar até das cicatrizes. Vamos, rainha; ainda temos seiva. No próximo combate a própria morte vai amar-me; pretendo concorrência fazer ao seu pestilencial alfanje.

(Saem todos, com exceção de Enobarbo.)

ENOBARBO — Ofuscar pretende ele ora o relâmpago. Ficar enfurecido é revelar-se assombrado de medo. Neste estado, contra o avestruz se atreve a própria pomba. Verifico também que toda falha no cérebro dá ânimo à coragem de nosso capitão. Sempre que presa faz da razão a própria valentia, corrói a espada que à defesa serve. Vou procurar um meio de deixá-lo. (Sai.)

ATO IV
Cena I

Diante de Alexandria. Acampamento de César. Entra César, lendo uma carta; Agripa, Mecenas e outras pessoas.

CÉSAR — Chama-me de menino e me repreende, como se força ele tivesse para do Egito me expulsar. Meu emissário foi por ele açoitado. Desafia-me para um duelo: Antônio contra César. Pois que o velho bufão fique sabendo que eu sei de outros caminhos para a morte. Mas até lá seu desafio apenas o riso me provoca.

MECENAS — César deve considerar que quando uma pessoa tão grande se revela assim furiosa, e que se sente acuada ao ponto extremo. Não lhe deis trégua para refazer-se, mas procurai tirar todo o partido de sua distração. Jamais a cólera foi boa guardadora de si própria.

CÉSAR — Dizei aos capitães que amanhã cedo tencionamos travar a derradeira das numerosas pugnas da campanha. Entre nossas fileiras temos muitos que até bem pouco tempo ainda serviam a Marco Antônio, em número bastante para apossar-se da pessoa dele. Providenciai logo isso. Dai comida a nossos homens. Temos provimento e eles bem o merecem. Pobre Antônio!

(Saem.)

Cena II

Alexandria. Um quarto no palácio. Entram Antônio, Cleópatra Enobarbo, Charmian, Iras, Alexas e outras pessoas.

ANTÔNIO — Domício, não se baterá comigo.

ENOBARBO — É certo.

ANTÔNIO — E por que não?

ENOBARBO — Porque, julgando-se com sorte vinte vezes mais risonha, pensa que a luta, assim, travada fora de vinte contra um.

ANTÔNIO — Em mar e em terra lutarei amanhã; ou continuo com vida, ou banharei a moribunda glória em meu sangue, para que reviva. Pretendes lutar bem?

ENOBARBO — Hei de bater-me gritando: “Toma tudo!”

ANTÔNIO — Mui bem dito. Vamos; chama meus criados. Que haja mesa liberal esta noite. (Entram três ou quatro criados.) Dá-me a mão. Honesto sempre foste. E eu, também. E tu, e tu… Vós sempre me servistes muito bem, tendo reis por companheiros.

CLEÓPATRA (à parte, a Enobarbo) — Que é que ele quer?

ENOBARBO (à parte, a Cleópatra) — É uma dessas baldas que faz nascer do cérebro a tristeza.

ANTÔNIO — Tu também és honesto. Desejara poder ser dividido em muitos homens, e que vós num Antônio vos reunísseis, porque tão bons serviços vos prestasse como a mim tendes feito.

CRIADOS — Oh! que os deuses não o permitam

ANTÔNIO — Caros companheiros: servi-me ainda esta noite, não poupando minhas taças. Fazei comigo como se também um de vós fosse meu reino e as ordens me acatasse.

CLEÓPATRA (à parte, a Enobarbo) — Que quer ele?

ENOBARBO (à parte, a Cleópatra) — Fazer que os criados chorem.

ANTÔNIO — Servi-me ainda esta noite. É bem possível que vossa obrigação aí termine. Talvez não me vejais de novo, ou apenas como a sombra disforme; talvez a outro senhor ireis servir amanhã mesmo. Olho-vos como alguém que se despede. Meus fiéis amigos, não vos mando embora; como amo, desposei vossos serviços, de que só pela morte me separo. Servi-me ainda esta noite duas horas; mais não peço, e que os deuses vos premiem.

ENOBARBO — Senhor, por que deixá-los abatidos? Olhai, estão chorando, e eu, um grande asno, julgo também cebola ter nos olhos. Ora, ora! Não façais de nós mulheres.

ANTÔNIO — Ho, ho, ho! Leve-me a bruxa, se eu pensava nisso. Nasce a felicidade dessas gotas. Caros amigos, dais um doloroso sentido ao meu discurso; quanto eu disse foi com a intenção apenas de animar-vos, para a noite com tochas incendiardes. Sabei, meus corações, que espero muito do dia de amanhã, e que vos levo para onde hei de alcançar vida gloriosa, não a morte com honra. Para a ceia sigamos, e afoguemos a tristeza.

(Saem.)

Cena III

O mesmo. Diante do palácio. Entram dois soldados, para ficarem de guarda.

PRIMEIRO SOLDADO — Bom dia, irmão; é amanhã o dia.

SEGUNDO SOLDADO — Que vai decidir tudo. Passai bem. Ouviste algo estranho pelas ruas?

PRIMEIRO SOLDADO — Não ouvi coisa alguma. Que há de novo?

SEGUNDO SOLDADO — Talvez seja só boato. Boa noite.

PRIMEIRO SOLDADO — Pois não, senhor; o mesmo vos desejo.

(Entram dois outros soldados.)

SEGUNDO SOLDADO — Prestai muita atenção durante a guarda.

TERCEIRO SOLDADO — Vós também. Boa noite. Boa noite.

(Os dois primeiros soldados se colocam em seus lugares.)

QUARTO SOLDADO — Nós dois, aqui. (Colocam-se também nos seus.) Caso amanhã a armada leve a melhor, tenho esperança plena de que as forças de terra fiquem firmes.

TERCEIRO SOLDADO — É um exército bravo e decidido.

(Música subterrânea, como de oboés.)

QUARTO SOLDADO — Paz! Que barulho é esse?

PRIMEIRO SOLDADO — Ouvi! Ouvi!

SEGUNDO SOLDADO — Ouvi!

PRIMEIRO SOLDADO — Música no ar.

TERCEIRO SOLDADO — Não, sob a terra.

QUARTO SOLDADO — É bom sinal, pois não?

TERCEIRO SOLDADO — Não.

PRIMEIRO SOLDADO — Paz, vos digo. Por que será essa música?

SEGUNDO SOLDADO — É o deus Hércules tão amado de Antônio e que o abandona.

PRIMEIRO SOLDADO — Vamos saber se os outros guardas ouvem o que estamos ouvindo.

(Adiantam-se para o outro posto.)

SEGUNDO SOLDADO — Então, amigos?

SOLDADOS — Que é que há! Que é que há? Ouvis alguma coisa?

PRIMEIRO SOLDADO — Ouvimos; não é estranho?

TERCEIRO SOLDADO — Estais ouvindo, mestres? Estais ouvindo?

PRIMEIRO SOLDADO — Acompanhemos o ruído até onde for a guarda. Vejamos como acaba.

SOLDADOS — Certo. É estranho.

(Saem.)

Cena IV

O mesmo. Um quarto no palácio. Entram Antônio e Cleópatra, Charmian e outros servidores

ANTÔNIO — Eros, minha armadura.

CLEÓPATRA — Dorme um pouco.

ANTÔNIO — Não, pombinha. Vem, Eros! A armadura! (Entra Eros, com a armadura.) Vamos, amigo; veste-me esses ferros. Se hoje a fortuna não ficar conosco, é porque a desafiamos. Vamos logo.

CLEÓPATRA — Não, eu a ajudo. Para que serve isto?

ANTÔNIO — Não, deixa isso, és o armeiro do meu peito. Errado! Errado!… É assim.

CLEÓPATRA — Devagarinho, quero ajudar também. Deve ser isto.

ANTÔNIO — Muito bem; muito bem. Dá tudo certo. Vos, bom amigo? Agora vai armar-te.

EROS — Sem demora, senhor.

CLEÓPATRA — Afivelado não ficou tudo bem?

ANTÔNIO — Otimamente. Quem vier desfazer isto, antes de termos resolvido gozar de algum repouso, colherá tempestades. Não tens jeito, Eros, nenhum; minha rainha mostra-se escudeiro mais hábil. Vamos logo. Ó amor! não te ser possível hoje ver-me lutar e compreender um pouco da real atividade! Então verias um verdadeiro mestre. (Entra um soldado armado.) A ti, bom dia. Bem vindo sejas. Mostras pelo aspecto que conheces o ofício dos guerreiros. Cedo nos levantamos para quanto dedicamos amor e, mui contentes, a tarefa iniciamos.

SOLDADO — Um milheiro de soldados, senhor, desde bem cedo, como eu, vestiram-se de ferro e aguardam à porta vossas ordens.

(Ouvem-se exclamações. Fanfarra.)

(Entram capitães e soldados)

CAPITÃO — Radiosa está a manhã. Muito bom dia, general.

TODOS — General, muito bom dia.

ANTÔNIO — Boa música, amigos. Esse dia começa com o espírito de um jovem que promete ser grande desde cedo. Assim… Dá-me isso… Bem. Muito bem dito. Senhora, adeus. Seja qual for meu dia, eis um beijo marcial. (Beija-a.) Fora mostrar-me passível de censura, digno mesmo de crítica oprobriosa, por mais tempo ficar aqui sem cumprimentos baixos. Como homem de aço vou deixar-te agora. Os que quiserem ir lutar, me sigam, pois saberei guiá-los. Bem; adeus.

(Saem Antônio, Eros, o capitão e os soldados.)

CHARMIAN — Por favor retirai-vos para o quarto.

CLEÓPATRA — Conduze-me. Partiu galantemente. Oh! se ele e César esta grande guerra decidissem em luta corpo a corpo! Então, Antônio… Mas assim… Que seja!

(Saem.)

Cena V

Alexandria. Acampamento de Antônio. Toque de trombeta. Entram Antônio e Eros; um soldado avança ao encontro de ambos.

SOLDADO — Que hoje os deuses a Antônio dêem bom dia.

ANTÔNIO — Ah! quem me dera que eu te houvesse ouvido, quando instavas, com essas cicatrizes, para eu lutar em terra!

SOLDADO — Se o tivesses feito, os monarcas que se revoltaram contra ti, e o soldado que hoje cedo te abandonou, contigo seguiriam.

ANTÔNIO — Quem fugiu hoje cedo?

SOLDADO — Quem? Pessoa muito chegada a ti. Chama Enobarbo, que ele não te ouvirá, ou então, do campo de César, te dirá: “Não sou dos teus.”

ANTÔNIO — Que me dizes?

SOLDADO — Senhor, está com César.

EROS — Senhor, suas canastras e tesouros, ele deixou aqui.

ANTÔNIO — Então partiu?

SOLDADO — Nada mais certo.

ANTÔNIO — Envia-lhe, Eros, tudo, todo o tesouro. Sim, faze isso logo, é o que te digo. Escreve-lhe uma carta — assiná-la-ei — com cordiais adeuses e cumprimentos, e que faço voto para que ele jamais tenha motivo de uma vez mais vir a mudar de mestre. Oh! minha sorte infausta chegou mesmo a corromper os bons. Vai. Enobarbo!

Cena VI

Diante de Alexandria. Acampamento de César. Fanfarra. Entra César com Agripa, Enobarbo e outros.

CÉSAR — Vai, Agripa; inicia logo a luta. Meu desejo é que Antônio seja feito prisioneiro; fazei sabê-lo a todos.

AGRIPA — Perfeitamente, César. (Sai.)

CÉSAR — Aproxima-se a paz universal. Se o dia de hoje for venturoso, o mundo de três cantos levará livre o ramo de oliveira.

(Entra um mensageiro.)

MENSAGEIRO — Antônio está no campo de batalha.

CÉSAR — Então ordena a Agripa que coloque todos os desertores na vanguarda, para que, de algum modo, Antônio gaste contra si mesmo a fúria.

(Sai César com seu séqüito.)

ENOBARBO — Alexas desertou; indo à Judéia a negócios de Antônio, o grande Herode persuadiu a passar-se para César, abandonando seu senhor Antônio. Como prêmio, enforcá-lo mandou César. Canídio e os mais que a Antônio abandonaram, têm tratamento, mas não muito honroso. Procedi muito mal e disso mesmo de tal modo me acuso, que impossível me será readquirir minha alegria.

(Entra um soldado de César.)

SOLDADO — Enobarbo, mandou-te, Antônio toda tua riqueza, com mais outras dádivas generosas. O portador achou-me no meu posto de guarda; neste instante em tua tenda descarrega as mulas.

ENOBARBO — Podes ficar com tudo.

SOLDADO — Estás pensando que é pilhéria, Enobarbo? Falo sério. Farias bem em escoltar teu hóspede até fora do campo, que eu preciso cuidar da obrigação. Se não fora isso, eu próprio o acompanhara. Continua sendo um Júpiter vosso imperador. (Sai.)

ENOBARBO — Sou o único vilão de toda a terra, e sinto-o fundamente. Ó Antônio! Antônio! tesouro inesgotável de favores! Como não pagarias meus serviços, se coroas com ouro a vilania? Partem-me o coração tantos abalos. Se o remorso veloz não o arrebenta. há de haver meio mais veloz do que ele. Mas é certeza: só o remorso basta. Eu, lutar contra ti? De forma alguma. Hei de achar uma fossa onde enterrar-me; a mais imunda é a que convém a última parte de minha vida. (Sai.)

Cena VII

Campo de batalha entre os dois acampamentos. Fanfarra. Tambores e trombetas. Entram Agripa e outros.

AGRIPA — Convém recuar, pois avançamos muito. O próprio César vê-se assoberbado. Vai muito além de nossa expectativa a pressão que eles fazem.

(Saem.)

(Alarma. Entram Antônio e Escaro, ferido.)

ESCARO — Oh bravo imperador! Isto, realmente, é que é saber lutar! Se nós tivéssemos feito assim desde o início, enxotaríamos todos eles com a testa amarrotada.

ANTÔNIO — Estás sangrando muito.

ESCARO — Esta ferida tinha a forma de um T; mas, acrescida de outra, virou H.

ANTÔNIO — Eles recuam.

ESCARO — Havemos de batê-los, até mesmo no interior das privadas. Ainda tenho lugar para levar mais seis gilvazes.

(Entra Eros.)

EROS — Vencemo-los, senhor; nossa vantagem vale por uma esplêndida vitória.

ESCARO — Risquemo-lhes as costas e agarremo-los como se faz com as lebres: pelo dorso. É desporto malhar um fugitivo

ANTÔNIO — Hei de pegar-te o gênio sempre alegre e premiar-lhe dez vezes a bravura. Acompanhai-me.

ESCARO — Irei; embora aos pulos.

(Saem.)

Cena VIII

Junto aos muros de Alexandria. Fanfarra. Entra Antônio, em marcha militar, seguido de Escaro e de soldados.

ANTÔNIO — Forçamo-lo a acolher-se ao próprio campo. Vá alguém na frente para nossos feitos anunciar à rainha. Amanhã cedo, antes de o sol nos ver, derramaremos o sangue que deixou de correr hoje. A todos agradeço. Valorosos vos mostrardes, lutando não apenas como se a causa de outrem defendêsseis, mas cada um, tal como eu, a causa própria. Outros tantos Heitores parecíeis. Entrai um pouco na cidade, vossas esposas abraçai, vossos amigos. Contai-lhes vossos feitos. Ledas lágrimas vos limparão de coágulos as chagas, beijos farão sarar os nobres talhos. (A Escaro.) Dá-me a mão. (Entra Cleópatra, com séqüito.) A esta fada extraordinária recomendo teus feitos. Recompensem-te seus agradecimentos. Luz do mundo, em teus braços aperta-me o pescoço. Salta-me ao coração com todos esses adornos, através desta couraça, e lá te embala no pular glorioso.

CLEÓPATRA — Rei dos reis, heroísmo sem limites, sorridente escapaste da cilada gigantesca do mundo?

ANTÔNIO — Meu querido rouxinol, para a cama os expulsamos. Então, menina, embora uns fios brancos já se mostrem no meio dos castanhos, cérebro temos que alimenta os nervos e com os moços disputa a primazia. Contempla este guerreiro; aos lábios dele concede tua mão. Beija-a, meu bravo. Hoje ele combateu como se um deus, por ódio à humanidade, lhe tivesse tomado a forma para dizimá-los.

CLEÓPATRA — Vou dar-te, amigo, uma armadura de ouro; pertenceu a um monarca.

ANTÔNIO — Ele a merece, embora de rubis fosse ela cheia, como o sagrado carro do alto Febo. Dá-le tua mão; faze uma bela marcha por toda Alexandria, carregando nossos escudos de tão grandes brechas, como seus próprios donos. Se pudesse nosso grande palácio abrigar todos os seus soldados, juntos cearíamos e brinde levantaríamos ao dia de amanhã, que perigo régio apresta. Trombeteiros, com vosso som metálico ensurdecei o ouvido da cidade, de mistura com o rufo dos tambores, para que o céu e a terra soem juntos e nossa marcha aplaudam.

(Saem.)

Cena IX

Acampamento de César. Sentinelas a postos.

PRIMEIRO SOLDADO — Dentro de uma hora, se não nos renderem, será preciso que nos recolhamos para o corpo da guarda. Há claridade; às duas horas da manhã, disseram, será iniciada a pugna.

SEGUNDO SOLDADO — O dia de ontem foi para nós terrível.

(Entra Enobarbo.)

ENOBARBO — Noite, serve-me de testemunha!

TERCEIRO SOLDADO — Quem será esse homem?

SEGUNDO SOLDADO — Ficai perto e escutai.

ENOBARBO — Ó lua santa, quando em futuro forem relembrados com memória odiosa os desertores, testemunha me sejas de que em tua face o pobre Enobarbo se arrepende.

PRIMEIRO SOLDADO — Enobarbo!

TERCEIRO SOLDADO — Silêncio! Ouçamos mais.

ENOBARBO — Ó grande soberana das tristezas verdadeiras, em mim despeja todos os vapores pestíferos da noite, porque a vida, já agora divorciada de meu querer, em mim não mais se prenda. Joga meu coração de encontro à rocha e à dureza de minha grande falta, que, ressecado estando de tristeza, vai transformar-se em pó, dando remate, desta arte, aos pensamentos vergonhosos. Ó Antônio — mais nobre és do que vilíssima foi minha deserção — possas em tua alma perdoar o que te fiz e, após, que o mundo me inscreva em seu registo como trânsfuga e ingrato ao próprio dono. Oh Antônio, Antônio! (Morre.)

SEGUNDO SOLDADO — Vamos falar-lhe.

PRIMEIRO SOLDADO — Não; fiquemos quietos. A César pode interessar tudo isso.

TERCEIRO SOLDADO — Bem; que seja. Parece estar dormindo.

PRIMEIRO SOLDADO — Ou melhor, desmaiou, pois ninguém reza dessa maneira, quando vai deitar-se.

SEGUNDO SOLDADO — Vamos chamá-lo.

TERCEIRO SOLDADO — Olá, senhor, falai-nos! Meu senhor, acordai!

SEGUNDO SOLDADO — Estais ouvindo?

PRIMEIRO SOLDADO — A mão da morte já baixou sobre ele. (Tambor ao longe.) Ouvi! O rufo dos tambores deixa despertos os que dormem. Tranportemo-lo para o corpo da guarda. É gente fina. Já passou nosso quarto.

TERCEIRO SOLDADO — Vamos, ainda pode voltar a si.

(Saem carregando o corpo.)

Cena X

Planície entre os dois acampamentos. Entram Antônio e Escaro, com forças, em marcha.

ANTÔNIO — Hoje os preparativos deles visam a um combate no mar; não lhes deixamos boa impressão em terra.

ESCARO — Visam a ambos, meu senhor.

ANTÔNIO — Desejara que quisessem brigar no ar e no fogo que eu iria batê-los até lá. Mais eis o ponto: a Infantaria ficará conosco na colina mais perto da cidade. Para o mar já dei ordens. Os navios o porto abandonaram, colocando-se onde melhor possamos observá-los e ver como manobram.

(Saem.)

(Entra César com suas forças, em marcha.)

CÉSAR — Se não nos atacarem, ficaremos quietos em terra, que é como pensamos que vai acontecer, pois as galeras ele equipou com seus melhores homens. Desçamos para o vale. Sede atento para quanto nos possa dar vantagem.

(Saem.)

(Voltam Antônio e Escaro.)

ANTÔNIO — Ainda não se chocaram. De onde aquele pinheiro se alça poderei ver tudo. Logo virei contar-te o que acontece. (Sai.)

ESCARO — Nas antenas de Cleópatra construíram ninhos as andorinhas. Consultados, os áugures respondem que não sabem, que não podem falar, fazem carranca, não se atrevendo a revelar-nos nada. Antônio ora é valente, ora abatido, com sobressaltos, sua sorte inquieta lhe infunde medo ou o deixa reanimado, conforme considere o que já obteve ou o que falta alcançar.

(Barulho ao longe, como de batalha naval.)

(Volta Antônio.)

ANTÔNIO — Perdido tudo! Traiu-me a Egípcia infame; minha esquadra se passou para o imigo; os marinheiros jogam para o ar os gorros e, formando grupos ali, alegremente bebem como amigos há muito separados. Três vezes prostituta! fui vendido por ti a esse noviço. A ti, somente, meu coração faz guerra. Dize a todos que fujam, pois quando eu puder vingar-me da feiticeira, terei feito tudo. Dize a todos que fujam. Vai depressa. (Sai Escaro.) Ó sol! não mais verei teu nascimento. Antônio e sua sorte aqui se apartam; as mãos nos apertamos neste ponto. Chegaremos a isto? Os corações que vinham rastejar a meus pés, como sabujos, aos quais eu sempre fiz todos os gostos, agora se dispersam, derramando sobre o flórido César seus perfumes. E fendido se encontra este pinheiro que a todos abrigava. Fui traído. O coração enganador do Egito, fatal feitiço cujos olhos sempre me armavam para a guerra ou me faziam dela sair, em cujo peito eu tinha minha coroa, a meta da existência! tal como uma cigana, em enganaste de todo jeito e me lançaste ao próprio coração da desgraça! Eros! Eros! (Entra Cleópatra.) Para trás, malefício!

CLEÓPATRA — Por que se acha com seu amor o meu senhor zangado?

ANTÔNIO — Some de minha vista; do contrário, dar-te-ei o que mereces, estragando o triunfo, assim, de César. Que te pegue, que te exponha aos apupos da canalha! Vai atrás de seu carro, como a grande mancha de todo o sexo. Por um óbolo, pela menor entrada serás vista como um dos monstros mais característicos; e que com suas unhas bem afiadas a meiga Otávia te lacere o rosto. (Sai Cleópatra.) Fizeste bem fugindo, se se pode dizer assim, por continuares viva. Fora melhor que presa ora te visses de minha fúria, que tua morte, apenas, prevenira muitas. Eros! Eros! A camisa de Nessus me comprime. Alcides, meu antepassado, ensina-me tua cólera! Deixa que nos cornos da lua eu ponha Licas, e com esta mesma mão que brandiu a dava ingente a melhor parte de mim próprio extinga. Que morra a feiticeira! Ela vendeu-me para o jovem romano; caio vítima da conjura dos dois. Morra por isso. Eros, olá! (Sai.)

Cena XI

Alexandria. Um quarto no palácio. Entram Cleópatra, Charmian, Iras e Mardian.

CLEÓPATRA — Auxiliai-me, querida. Ele se acha mais louco do que o próprio Telamônio, quando perdeu o escudo. O javali da Tessália jamais ficou tão bravo.

CHARMIAN — No mausoléu fechai-vos e mandai-lhe dizer que já morrestes. A alma e o corpo não lutam com mais força ao se apartarem, como a grandeza, quando vai embora.

CLEÓPATRA — Sim, para o túmulo. Vai, Mardian; dize-lhe que eu me matei. Deves também contar-lhe que, ao expirar, minha última palavra foi “Antônio”. Mas, por favor, exprime-te com bastante ênfase. Vai, Mardian, logo, e vem contar-me de que modo a nova recebeu dessa morte. Para o túmulo!

(Saem.)

Cena XII

O mesmo. Outro quarto. Entram Antônio e Eros.

ANTÔNIO — Eros, ainda me vês?

EROS — Sim, nobre chefe.

ANTÔNIO — Às vezes contemplamos uma nuvem que parece dragão; às vezes forma toma o vapor de leão ou feroz urso, de cidade com torres, pedra ingente de promontório azul coroado de árvores, que oscila sobre o mundo, e nossa vista deixa atemorizada sem motivo. Sinais como esses já tens visto muitos; são fantasmas das tardes enubladas.

EROS — Sim, meu senhor, já vi.

ANTÔNIO — O que um ginete parecia transformar-se, no instante de refletires, e desaparece como água na própria água.

EROS — Justamente.

ANTÔNIO — Eros, bravo menino, um corpo desses agora é o teu senhor. Ainda Antônio sou neste instante, mas durar não pode muito tempo esta forma que aparece. Fiz as guerras do Egito. Mas Cleópatra, no entanto — cujo coração meu era, pois o meu era dela, e em todo o tempo que foi meu anexava muitos outros, um milhão mais… todos perdidos todos — ela, Eros, como disse, jogou cartas com César e roubou minha alta glória, para triunfar do imigo. Não, não chores, meu gentil Eros, pois nos resta ainda darmos fim a nós próprios. (Entra Mardian.) Tua vil ama me roubou a espada!

MARDIAN — Não, Antônio; minha ama te adorava e a sorte dela entrelaçou com a tua.

ANTÔNIO — Fora daqui, eunuco imundo! Fora! Ela traiu-me e vai morrer por isso.

MARDIAN — Ninguém duas vezes paga à morte a dívida. A dela já está paga. O que querias fazer foi feito perto de ti mesmo Sua última palavra foi “Antônio! meu muito nobre Antônio!” um lacerante gemido em dois partiu de Antônio o nome, que ficou dividido entre seus lábios e o coração. Assim perdeu a vida, sepultando teu nome nela própria.

ANTÔNIO — Então, morreu?

MARDIAN — Morreu.

ANTÔNIO — Eros, desarma-me. A tarefa do dia está concluída, precisamos dormir. (A Mardian.) Parte com vida; paga-te isso o trabalho ricamente. (Sai Mardian.) Arranca-me tudo isto. Nem o escudo de Ajaz, de sete folhas, poderia conter os batimentos com que ao peito me ataca o coração. flancos, abri-vos! Coração, uma vez somente mostra-te mais poderoso do que teu invólucro, arrebentando tua frágil caixa. Depressa, Eros, depressa! O combatente já se extinguiu. Ide, pedaços soltos; fostes usados com alguma honra. Eros, deixa-me só por uns momentos. (Sai Eros.) Vou alcançar-te, Cleópatra, e, com lágrimas, obter o meu perdão. Tem de ser isso; qualquer tardança, agora, é sofrimento. Extinta a tocha, deita-te, deixando de andar por descaminhos. Todo esforço, de agora em diante estragaria a obra. Até o próprio vigor se embaraçara na resistência própria. Põe o selo, e tudo está acabado. Eros, atende-me! — Já vou, minha rainha! — Eros, escuta-me! Onde as almas repousam sobre flores, mão com mão nós iremos, e os espectros deixaremos atônitos com nossa postura apaixonada. Sem cortejo vai ficar Dido e seu querido Enéías, correndo todos para nós. Vem, Eros!

(Volta Eros.)

EROS — Que deseja meu amo?

ANTÔNIO — Desde a morte de Cleópatra tão baixa é a minha vida que somente asco tem causado aos deuses. Eu que com a espada o mundo retalhava e construída cidades de navios no glauco dorso de Netuno, agora me maldigo por ver que sou mais fraco que uma mulher e por não ter o espírito nobre daquela que por sua morte ao nosso César disse: “De mim própria fui a conquistadora.” Prometeste-me, Eros, que quando fosse necessário — o que acontece justamente agora — e nas costas eu visse a inevitável perseguição do horror e da desgraça, a um sinal meu a vida me tiraras. Faze isso. Chegou a hora. Não me feres, assim fazendo; a César é que frustras. Põe um pouco de cor nessas bochechas.

EROS — Os deuses que me amparem! Poderia fazer o que jamais as flechas partas, apesar de inimigas, conseguiram, falhando todas o alvo?

ANTÔNIO — Eros, querias de uma janela da grandiosa Roma ver teu amo de braços amarrados, o submisso pescoço assim dobrado, a fronte baixa ante a vergonha imensa, enquanto roda à frente dele o carro do venturoso César, mais relevo dando com isso à sua humilhação?

EROS — Não desejara vê-lo.

ANTÔNIO — Então vem logo; um golpe, só, me vai deixar curado. Saca essa honesta espada, que serviços tão valiosos já tem prestado à pátria.

EROS — Oh! poupai-me, senhor!

ANTÔNIO — Ao libertar-te, não me juraste que farias isso no instante em que o pedisse? Então sê pronto, para que teus serviços não pareçam frutos do acaso, apenas, sem propósito. Saca da espada e vem.

EROS — Bem; nesse caso virai para o outro lado o nobre aspecto, em que o respeito está do mundo todo.

ANTÔNIO (virando-se) — Vem logo, então.

EROS — Já estou de espada em punho.

ANTÔNIO — Usa-a depressa para o que a tiraste.

EROS — Meu caro mestre, capitão querido, meu caro imperador, deixai que eu diga, antes de dar esse sangüíneo golpe, deixai que eu diga adeus.

ANTÔNIO — Pois, não, amigo; adeus.

EROS — Adeus, meu chefe. Posso ferir agora?

ANTÔNIO — Podes, Eros.

EROS — Então, que seja. Assim fujo à tristeza de lastimar Antônio. (Mata-se.)

ANTÔNIO — Oh! três vezes mais nobre do que eu mesmo. Meu valente Eros, mostra-me o que eu próprio, não tu, fazer devia. O gesto altivo de Eros e da rainha me fizeram despertar a nobreza. Mas desejo ser o noivo da morte e dirigir-me para ela como para o leito amado. Que venha, então. E assim, Eros, teu amo deixará a vida como teu discípulo. A fazer isto me ensinaste. (Deixa-se cair sobre a espada.) Como! Não morri? Não morri? Olá! A guarda! Oh! Acabai de vez com minha vida.

(Entram Dercetas e Guardas.)

PRIMEIRO GUARDA — Quem faz esse barulho?

ANTÔNIO — Ó meus amigos, fiz mal o meu trabalho. Dai remate a quanto principiei.

SEGUNDO GUARDA — Baixou a estrela.

PRIMEIRO GUARDA — E chega ao fim o tempo.

TODOS — Oh! que desgraça!

ANTÔNIO — Quem me amar, venha dar-me o mortal golpe.

PRIMEIRO GUARDA — Eu, não.

SEGUNDO GUARDA — Nem eu.

TERCEIRO GUARDA — Nenhum de nós, por certo.

(Saem os guardas.)

DERCETAS — Tua morte e os desastres afugentam teus seguidores. Basta que esta espada leve eu a César e lhe dê a nova, para por ele ser bem recebido.

(Entra Diomedes.)

DIOMEDES — Onde está Antônio?

DERCETAS — Aqui, aqui, Diomedes.

DIOMEDES — Está com vida? Não respondes, homem?

(Sai Dercetas.)

ANTÔNIO — Estais aí, Diomedes? Tira a espada e vem ferir-me até chegar a morte.

DIOMEDES — Alto senhor, aqui mandou-me Cleópatra.

ANTÔNIO — Quando foi isso?

DIOMEDES — Agora, meu senhor.

ANTÔNIO — Onde ela está?

DIOMEDES — Fechou-se no sepulcro. Tomada viu-se de um pressentimento angustioso do que podia dar-se. Pois ao certificar-se — o que impossível será que se confirme — de que tínheis suspeita de ter ela combinado qualquer coisa com César — e incurável era vosso furor — mandou dizer-vos que se havia matado. Mas, receando as conseqüências da notícia, logo me enviou para dizer-vos a verdade. Mas temo ter chegado muito tarde.

ANTÔNIO — Sim, bondoso Diomedes, muito tarde. Por favor, chama a guarda.

DIOMEDES — Olá! a guarda do Imperador! A guarda! vinde logo; o senhor é que chama!

(Entram quatro ou cinco homens, da guarda de Antônio.)

ANTÔNIO — Bons amigos, levai-me para onde está Cleópatra. É o último serviço que vos peço.

PRIMEIRO GUARDA — Que desgraça, senhor, não terdes vida para a nós todos até o fim dar ordens.

TODOS — Que dia carregado!

ANTÔNIO — Bons amigos, não deixeis que o destino amargo ria de vossas dores. Deve ser bem-vindo o que venha punir-vos; e punamo-lo, por nosso lado, recebendo-o alegres. Levantai-me. Já vos guiei bastante; agora me arrastai, caros amigos. Por tudo, agradecido.

(Saem, levando Antônio.)

CENA XIII

O mesmo. Um túmulo. Em cima entra Cleópatra com seu séqüito, Charmian e Iras.

CLEÓPATRA — Oh Charmian! Nunca mais sairei daqui.

CHARMIAN — Consolai-vos, embora.

CLEÓPATRA — Não, não quero. Será bem-vindo quanto for terrível e extraordinário. Desprezamos toda palavra de consolo. Nossa forma de tristeza, medida por sua causa, terá de ser proporcionada sempre com o que a fez nascer. (Entra, em baixo, Diomedes.) Então! Morreu?

DIOMEDES — Paira sobre ele a morte, mas ainda não está morto. Olhai para o outro lado do vosso monumento; os guardas dele o trazem para aqui.

(Entra, em baixo, Antônio, carregado pelos guardas.)

CLEÓPATRA — Ó sol, abrasa a grande esfera em que te moves, deixa sem luz a estrela deste mundo vário! Oh Antônio, Antônio, Antônio! Acode, Charmian! Iras, acode! Amigos aí de baixo, ajudai a trazê-lo para cima.

ANTÔNIO — Silêncio! Não foi César e sua força que derrubou Antônio, mas Antônio de si próprio triunfou.

CLEÓPATRA — Assim devia, realmente, acontecer. Somente Antônio conquistaria Antônio. Mas é lástima que tal se desse.

ANTÔNIO — Morro, Egito; morro. Só por um pouco aqui detenho a morte, até que eu possa, de um milhão de beijos, dar-te nos lábios o último, o mais pobre.

CLEÓPATRA — A descer não me atrevo, meu querido — Oh meu senhor, perdão! — Não, não me atrevo, com medo de ser presa. No cortejo do sobremodo afortunado César jamais virei a ser qualquer enfeite. Se as facas, as serpentes e os venenos tiverem corte, acóleo ou eleito certo, salva estarei. Vossa consorte Otávia, com seu gesto tranqüilo e olhos modestos não vai enaltecer-se, contemplando-me e torcendo o nariz. Mas vem, Antônio! Mulheres, ajudai-me! Precisamos pô-lo aqui em cima. Vinde, bons amigos.

ANTÔNIO — Depressa, se não morro.

CLEÓPATRA — Que exercício! Como pesais, senhor! A nossa força mudou-se em pesadume, contribuindo para aumentar o peso. Se eu tivesse todo o poder da majestosa Juno, a resistência de Mercúrio alado, iria levantar-te, colocando-te lado a lado de Jove. Vem um pouco. Quem faz votos é tola. Vem, vem, vem! (Colocam Antônio no alto, ao lado de Cleópatra.) Sê bem-vindo, bem-vindo. Vem o espírito exalar justamente onde viveste. Reanima-te com beijos; se meus lábios tivessem tal poder, eu os gastara.

TODOS — Oh! que triste espetáculo!

ANTÔNIO — Estou morrendo, Egito; estou morrendo. Dá-me um pouco de vinho, porque possa falar ainda um pouco.

CLEÓPATRA — Não, eu falo; e em voz tão alta farei minhas queixas, que a senhora Fortuna, sempre falsa, a roda quebrará, de enraivecida, pelo que lhe disser.

ANTÔNIO — Uma palavra, doce rainha: segurança e honra procura junto a César.

CLEÓPATRA — Nunca juntas andam as duas.

ANTÔNIO — Ouve-me, querida: dos que circundam César, não confies senão em Proculejo.

CLEÓPATRA — Só confio nas minhas mãos, no brio muito próprio; em ninguém junto a César.

ANTÔNIO — Não choreis a mudança lastimosa que em meu fim se observou; não seja causa de vos entristecerdes; mas de minha sorte anterior alimentai o espírito, quando eu era o maior senhor do mundo, o de maior nobreza, que nesta hora não morre baixamente. Não com medo ao meu patrício entrego o capacete; por um romano foi heroicamente dominado um romano. Meu espírito já me abandona. Mais, não me é possível.

CLEÓPATRA — Oh! Vais morrer, criatura nobilíssima? De mim não fazes caso? É então preciso que eu permaneça neste mundo estúpido que, privado de ti, valerá tanto como simples cocheira? Oh! vede, vede, mulheres, o que passa. (Antônio morre.) Derreteu-se a coroa da terra. Meu Senhor! Murcha a grinalda dos combates se acha; o estandarte caiu. No mesmo nível dos homens estão moços e meninas; planificou-se tudo, não ficando na terra nada mais que se destaque nas visitas da lua. (Desmaia.)

CHARMIAN — Calma, calma, minha senhora.

IRAS — Nossa soberana também morreu.

CHARMIAN — Senhora!

IRAS — Olá, princesa!

CHARMIAN — Oh princesa! princesa!

IRAS — Real Egito! Imperatriz!

CHARMIAN — Calma, Iras; fica quieta.

CLEÓPATRA — Agora sou uma mulher apenas, por paixões dominadas, como criada do estábulo, ocupada em vis misteres. Jogar agora me cumpria o cetro nos deuses maliciosos e dizer-lhes que nosso mundo igual ao deles era enquanto eles privado não nos tinham de nossa jóia rara. Tudo é nada. A paciência é estúpida; a impaciência só fica bem para um cachorro louco. Será crime correr para a secreta casa da morte sem chamados sermos? Mulheres, que fazeis? Vamos? Coragem! Charmian, que é isso? Nobres raparigas… Ah! meninas, meninas! Vede: nossa lâmpada se apagou; estava exausta. Coragem, bons amigos. Vamos logo cuidar da morte dele. Após, nos resta fazer o que for nobre e muito ousado, segundo a moda altíssima de Roma, porque de nós possa orgulhar-se a morte. Vamos embora. Já está frio o invólucro deste espírito nobre. Ó minhas caras, vamos embora, vamos! Só nos resta, depois disto, um auxílio sempre à mão: um fim rápido e pronta decisão.

(Saem carregando o corpo de Antônio.)

ATO V
Cena I

Alexandria Acampamento de César. Entram César. Agripa, Dolabela, Mecenas, Galo, Proculeio e outros.

CÉSAR — Vai Dolabela, procurá-lo; intima-o a que se renda e dize-lhe que, estando tão por baixo, só faz tornar-se objeto de mofa, por perder todo esse tempo.

DOLABELA — César, assim farei. (Sai.)

(Entra Dercetas com a espada de Antônio.)

CÉSAR — Que significa tal coisa, e quem és tu para atreveres-te a aparecer assim em nossa frente?

DERCETAS — Sou chamado Dercetas; no serviço de Marco Antônio estive, o homem mais digno de ser mais bem servido. Enquanto esteve de pé e ordens me dava, foi meu amo, fazendo eu uso, só, de minha vida contra seus inimigos. Se quiseres receber-me tal como eu fui para ele, assim servirei César; do contrário, te entrego minha vida.

CÉSAR — Que disseste?

DERCETAS — Digo, César, que Antônio já está morto.

CÉSAR — A queda de uma coisa desse porte deveria fazer maior barulho. Em todo o mundo os leões correr deviam para o meio das ruas, procurando suas covas os homens da cidade. O trespasse de Antônio não é um caso particular, pois esse nome abrange metade do universo.

DERCETAS — Já está morto, César; não pelo braço da justiça pública, nem por ferro assalariado. A própria mão que em feitos altanados escreveu sua glória, com a coragem que o coração lhe dava, lacerado lhe deixou o coração. Eis sua espada que eu roubei de seu golpe; podes vê-la manchada com seu sangue muito nobre.

CÉSAR — Amigos, ficais tristes? Tal notícia — embora os deuses possam castigar-me — até os olhos dos reis deixa molhados.

AGRIPA — É estranho que nos force a natureza a chorar o que mais obter queríamos.

MECENAS — Seus defeitos e méritos se achavam em perfeito equilíbrio.

AGRIPA — Nunca espírito mais raro dirigiu a raça humana; mas com faltas, ó deuses! nos fizestes, a fim de que pudéssemos ser homens. César está abalado.

MECENAS — Quando põem diante dele um espelho desse porte, forçoso é que se mire.

CÉSAR — Ó Antônio! Antônio! para isso te segui? Mas lancetamos certas doenças do corpo. Inevitável era mostrar-te um dia de declínio, ou contemplar o teu. Juntos não fora possível que coubéssemos no mundo. Mas quero lastimar com estas lágrimas tão soberanas como o próprio sangue do coração, que, meu irmão, meu êmulo no alto de toda empresa, igual no mando, amigo e companheiro nas batalhas, o braço deste corpo e o coração em que meu pensamento se aquecia, os nossos astros irreconciliáveis nos hajam dividido, embora fôssemos tão iguais. Bons amigos, escutai-me. (Entra um egípcio.) Não; depois voltaremos a esse ponto. Nas feições a mensagem traz este homem. Ouçamo-la. Da parte de quem vens?

EGÍPCIO — Uma pobre mulher egípcia, a minha senhora e soberana, confinada a tudo que ora é dela — o próprio túmulo — deseja conhecer os teus projetos, porque enveredar possa pela estrada a que seguir a forçam.

CÉSAR — Tranqüiliza-a. Por um de nós, dentro de pouco tempo, vai ter conhecimento da maneira carinhosa por que será tratada, pois César descortês não será nunca.

EGÍPCIO — Que os deuses te conservem. (Sai.)

CÉSAR — Proculeio, vem cá. Vai já dizer-lhe que não receie humilhação nenhuma. Dá-lhe o conforto que exigir o gênero de sua dor, porque ela, em seu orgulho, por um golpe mortal não nos escape, pois com sua vida, em Roma, deixaremos eterno nosso triunfo. Vai e traze-nos o mais rapidamente que puderes notícia do que quer que ela houver dito e de como a tiveres encontrado.

PROCULEIO — César, assim farei. (Sai.)

CÉSAR — Galo, acompanha-o. (Sai Galo.) Onde está Dolabela? Que acompanhe Proculeio, também.

AGRIPA e MECENAS — Oh Dolabela!

CÉSAR — Não, deixai-o; pois me recordo agora que o incumbi de um recado. Virá logo. Vamos à minha tenda. Heis de ver nela como entrei nesta guerra a contragosto, como revelo gentileza e calma nos meus escritos. Vinde, vinde, para verdes as provas do que digo.

(Saem.)

Cena II

O mesmo. O túmulo. Entram, em cima, Cleópatra, Charmian e Iras.

CLEÓPATRA — O próprio desespero me inicia numa vida melhor. É pouca coisa ser tão-somente César. Ele julga-se a Fortuna, mas é o seu lacaio, subserviente a seus gestos. É grandioso realizar o que a tudo põe remate, no caso põe grilhões, tranca as mudanças, faz dormir, sem jamais provar da lama de que o mendigo e César se alimentam.

(Entram, em baixa, Proculeio, Galo e soldados.)

PROCULEIO — À rainha do Egito envia César muitos saudares e te pede veres que pedido razoável ele pode satisfazer-te agora.

CLEÓPATRA — Qual teu nome?

PROCULEIO — Chamo-me Proculeio.

CLEÓPATRA — Já me tinha de vós falado Antônio, aconselhando-me a ter confiança em vós. Mas não se importa de poder ser burlada quem proveito nenhum tirar deseja da confiança. Se quer vosso amo que como mendiga lhe fale uma rainha, declarai-lhe que a majestade, para ser coerente, não pode menos de pedir-lhe um reino. Se ele quiser dar a meu filho o Egito conquistado, ter-me-á, assim, dado tanto do que é meu mesmo, que hei de, agradecida, ajoelhar-me a seus pés.

PROCULEIO — Ficai tranqüila. Nada temais; estais na mão de um príncipe. Ao meu senhor vos entregai confiante, pois sua graça é tanta que se estende a todos os que dela necessitam. Permiti que lhe conte o modo brando por que vos submeteis, e vereis que ele, qual vencedor, prefere a complacência, sempre que apelo é feito à sua graça.

CLEÓPATRA — Comunicai-lhe, por favor, que serva sou de sua fortuna, e que lhe envio a grandeza por ele conquistada. A cada hora que passa, aprendo as regras da obediência e, de grado, neste instante de frente o contemplara.

PROCULEIO — Excelsa dama, vou dizer-lhe isso mesmo. Ficai calma, pois sei que vossa condição comove quem foi seu causador.

GALO — Bem vedes como é fácil surpreendê-la. (Proculeio e dois guardas sobem para o monumento por uma escada, por trás de Cleópatra. Outros guardas tiram as trancas dos portões, patenteando o compartimento inferior do monumento.) Guardai-a bem, até que César chegue. (Sai.)

IRAS — Real rainha!

CHARMIAN — Cleópatra, princesa, estás presa!

CLEÓPATRA — Depressa, mãos bondosas! (Saca de um punhal.)

PROCULEIO — Parai, parai, dígna senhora! Calma! (Segura-a e desarma-a.) Não façais a vós própria essa injustiça. Amparada aqui fostes, não traída.

CLEÓPATRA — Até mesmo da morte que liberta da peste nossos cães?

PROCULEIO — Cleópatra, sede prudente, não deixando assim frustrada a generosidade de meu amo, com vos fazerdes ora essa violência. Possa o mundo admirar sua nobreza, que, com vosso trespasse, ficaria para sempre abafada.

CLEÓPATRA — Onde estás, morte? Vem aqui; vem depressa apoderar-te de uma rainha que, por certo, vale bem um monte de crianças e mendigos.

PROCULEIO — Moderação, senhora.

CLEÓPATRA — De ora em diante não comerei, senhor, nem beberei. E se preciso for falar à toa, não dormirei também. Em ruínas hei de deixar a mortal casa. Faça César o que puder. Ficai, senhor, sabendo que amarrada jamais hei de deixar-me mostrar na corte de vosso alto mestre, nem castigada pelo olhar tranqüilo daquela Otávia estúpida. Teria de ser içada e, assim, ficar exposta à gritante ralé da altiva Roma? Antes achar amena sepultura numa vala do Egito; antes na lama do Nilo me postai, de todo nua, para que em monstro as moscas me transformem; antes forca fazerem das pirâmides altas de minha terra, para delas ficar dependurada por cadeias.

PROCULEIO — Expandis mais os pensamentos tétricos do que podeis razão achar em César.

(Entra Dolabela.)

DOLABELA — César, teu amo, sabe, Proculeio, tudo quanto tens feito. Mandou ordem para que retornasses. Quanto à rainha, fica sob minha guarda.

PROCULEIO — Assim me agrada, Dolabela, com ela sê bondoso. (A Cleópatra.) Direi a César o que desejardes, se de mim vos servirdes.

CLEÓPATRA — Pois dizei-lhe que desejo morrer.

(Saem Proculeio e os soldados.)

DOLABELA — Nobre rainha, certamente de mim falar já ouviste?

CLEÓPATRA — Não poderei dizer-te.

DOLABELA — Certamente me conheceis.

CLEÓPATRA — Ora, senhor, que importa quanto eu já tenha ouvido ou conhecido? Certamente achais graça quando as crianças ou as mulheres vos falam de seus sonhos. É essa vossa pilhéria?

DOLABELA — Não compreendo minha senhora.

CLEÓPATRA — Sim, sonhei que havia um rei por nome Antônio. Ah! se eu pudesse mais uma vez dormir para, de novo, ver um homem como ele!

DOLABELA — Se quiserdes…

CLEÓPATRA — Como o céu tinha o rosto; nele havia sol e lua, que o giro perfaziam e a terra iluminavam, este zero pequenino.

DOLABELA — Criatura soberana…

CLEÓPATRA — Abarcava com as pernas o oceano; seu braço, levantado, de cimeira servia para o mundo. A voz tinha ele como a harmonia das esferas, sempre que aos amigos falava; mas querendo fazer tremer o mundo ou amedrontá-lo, era um trovão atroante. Para sua munificência não havia inverno; era um constante outono, que aumentava a cada novo corte. Seus deleites eram como o golfinho: o dorso sempre deixavam ver por sobre as próprias ondas. Coroas e diademas apertavam-se em seu séqüito, remos e ilhas eram quais moedas que do bolso lhe caíssem.

DOLABELA — Cleópatra…

CLEÓPATRA — Imaginais que pode haver um homem, que houve algum homem como o do meu sonho?

DOLABELA — Gentil senhora, não.

CLEÓPATRA — Mentis, por tudo quanto os deuses ouvem. Porém que tenha havido ou existir possa uma pessoa assim, é o que ultrapassa, de muito, qualquer sonho. À natureza falta matéria para concorrência fazer à fantasia. Mas o fato de um Antônio haver criado, é o maior golpe da natureza contra a fantasia, que o descrédito lança em seus produtos.

DOLABELA — Boa senhora, ouvi-me. Vossa perda, tal, como vós, é grande, sendo certo que acarretais com todo o peso dela. Que nunca realizado eu ver consiga nenhum anseio antigo; na ruína do vosso eu sinto uma tristeza imensa, que o coração me fere no mais íntimo.

CLEÓPATRA — Obrigada, senhor. Sabeis, acaso, o que César de mim fazer pretende?

DOLABELA — Desejaria que soubésseis quanto me repugna dizer-vos.

CLEÓPATRA — Por obséquio…

DOLABELA — Embora seja generoso…

CLEÓPATRA — Pensa em me levar no triunfo?

DOLABELA — Sim, senhora; tenho certeza disso.

(Vozes, dentro: “Abri caminho! Abri caminho! César!”)

(Entram César, Galo, Proculeio, Mecenas, Seleuco e criados.)

CÉSAR — A rainha do Egito está presente?

DOLABELA — Senhora, é o imperador.

(Cleópatra se ajoelha.)

CÉSAR — Não; levantai-vos, levantai-vos, Egito, por obséquio.

CLEÓPATRA — Senhor, os deuses querem desse modo; submissa ao meu senhor sou totalmente.

CÉSAR — Abandonai os pensamentos tristes. Muito embora o relato das ofensas que nos fizestes tenha sido escrito em nossa carne, delas nos lembramos como de fatos casuais, apenas.

CLEÓPATRA — Único árbitro do mundo, não consigo definir minha causa de maneira que vos pareça clara; mas confesso que sobre mim pesavam muitas faltas que sempre envergonharam nosso sexo.

CÉSAR — Sabei Cleópatra: sempre preferimos aliviar a agravar. Se vos mostrardes sensata em relação a nossos planos — que a respeito de vós são generosos — benefício achareis nessa mudança; porém se o peso sobre mim lançardes de uma crueldade, entrando pela via seguida por Antônio, dos benéficos efeitos vos privais de meus projetos e expondes vossos filhos à ruína de que pretendo resguardá-los, caso me reveleis confiança. Aqui despeço-me.

CLEÓPATRA — Podeis atravessar o mundo todo. Pertence-vos. E nós, vossos escudos e troféus da vitória, ficaremos pregados onde quer que vos agrade. Aqui, nobre senhor…

CÉSAR — Em tudo havemos de vos ouvir no que respeita a Cleópatra.

CLEÓPATRA — (entregando-lhe um papel) — Aqui se encontra a relação das jóias, do dinheiro e a baixela que eu possuo, em seu valor exato, sem incluirmos coisinhas sem valor. Onde se encontra Seleuco?

SELEUCO — Aqui, senhora.

CLEÓPATRA — É o tesoureiro. Consenti, meu senhor, que ele vos diga, nisso empenhando a própria vida, como nada me reservei. Fala a verdade, Seleuco.

SELEUCO — Senhora, antes selada ter a boca do que sob, penhor da própria vida, dizer uma inverdade.

CLEÓPATRA — Alguma coisa foi desviada por mim?

SELEUCO — O suficiente para comprar o que ora declarastes.

CÉSAR — Cleópatra, não coreis; aprovo nisso vossa sabedoria.

CLEÓPATRA — Vede, César, oh! vede como a pompa atrai os homens! Todos os meus, agora vos pertencem; mas se trocássemos as sortes, todos os vossos meus seriam. Dementada me deixa a ingratidão desse Seleuco. Ó escravo, em que se pode confiar tanto como no amor comprado! Como? foges? Fazes bem em fugir, posso afiançar-te. Mas hei de os olhos arrancar-te, embora sejam dotados de asas. Vil escravo, vilão sem alma, cão, canalha raro!

CÉSAR — Acalmai-vos, bondosa soberana.

CLEÓPATRA — Ó César, como dói tamanho opróbrio! Na hora em que concordais em visitar-me, a mim, tão pequenina: vir meu próprio servidor aumentar minha desgraça com a parcela da inveja muito sua. Digamos, meu bom César, que de lado tivesse eu posto algumas ninharias de que as mulheres gostam, coisas simples e sem valor nenhum, desses objetos que costumamos dar aos conhecidos, ou digamos, também, que eu apartasse qualquer lembrança um tanto mais valiosa destinada por mim a Lívia e Otávia, para que a meu favor intercedessem: poderia ter sido denunciada por quem houvesse de meu pão comido? Deuses! isso me faz cair mais baixo do que já me encontrava. (A Seleuco.) Vai-te embora; caso contrário, sentirás as brasas do meu furor por entre a cinza fria do meu próprio destino. Caso fosses homem, de mim terias te apiedado.

CÉSAR — Vai-te embora, Seleuco.

(Sai Seleuco.)

CLEÓPATRA — É sabido que nós, os grandes, somos responsáveis por quanto os outros fazem, e que, quando caímos, nosso nome serve para cobrir o alheio mérito. Por isso somos dignos de piedade.

CÉSAR — No rol não incluiremos da conquista, Cleópatra, quanto houvésseis apartado, nem mesmo nada do que declarastes. Tudo é vosso; disponde disso como melhor vos aprouver. E podeis crer-me: César não é um comerciante, vindo para convosco regatear o preço do que é vendido pelos comerciantes. Ficai, portanto, alegre, não fazendo vossa prisão dos próprios pensamentos. Cara rainha, não; pois pretendemos convosco proceder sempre de acordo com vossa orientação. Alimentai-vos; ide dormir. Tanto cuidado temos, e piedade, de vós, que continuamos amigo sendo vosso. E agora, adeus.

CLEÓPATRA — Meu mestre e meu senhor!

CÉSAR — Não, não! Adeus.

(Fanfarra. Sai César com seu séqüito.)

CLEÓPATRA — Ele fala comigo, caras, fala somente para que eu não continue nobre comigo mesma. Mas escuta, Charmian. (Fala-lhe ao ouvido.)

IRAS — Concluí, minha senhora; o dia radioso terminou; agora estamos em plena escuridão.

CLEÓPATRA — Vai lá de novo; já falei nisso; está providenciado. Vai logo; apressa-te.

CHARMIAN — Pois não, senhora.

(Volta Dolabela.)

DOLABELA — Onde está a rainha?

CHARMIAN — Ali, senhor. (Sai.)

CLEÓPATRA — Dolabela!

DOLABELA — Senhora, preso à jura que de mim exigistes, que meu zelo transforma num dever, digo-vos isto: César pretende atravessar a Síria, sendo sua intenção, nestes três dias na frente vos mandar com vossos filhos. Como puderdes, fazei uso disto. Como o queríeis, fiz o prometido.

CLEÓPATRA — Sou vossa devedora, Dolabela.

DOLABELA — E eu, vosso servo. Adeus, boa rainha. Preciso esperar César.

CLEÓPATRA — Vai; adeus. De novo, agradecida. (Sai Dolabela.) Iras, que dizes disso tudo? És uma boneca egípcia e, como eu, vais em Roma ser mostrada. Escravos artesãos, de avental sujo, réguas e malhos, hão de levantar-nos para melhor nos verem. Envolvidas vamos ser por seus hálitos pesados que a alimentos grosseiros, só, tresandam, e que a aspirar forçadas nos veremos.

IRAS — Os deuses nos amparem!

CLEÓPATRA — Não; é certo, Iras; é mais que certo. Descarados lictores, como a prostitutas, hão de vir apalpar-nos, e versistas pífios nos cantarão fora de metro e rima. Histriões habilidosos, no tablado nos improvisarão, representando nossas festas joviais de Alexandria. Antônio, bêbedo, há de entrar no palco, tendo eu de ver algum menino-Cleópatra de voz fina imitar minha grandeza com gestos de rameira.

IRAS — Oh grandes deuses!

CLEÓPATRA — Podes acreditar-me.

IRAS — Nunca hei de ver tal coisa; tenho as unhas — estou certa — mais duras do que os olhos.

CLEÓPATRA — Bravo! É o caminho de lograr seus planos e destruir-lhes o intento mais que absurdo. (Volta Charmian.) Agora, Charmian minhas companheiras, vinde arranjar-me como a uma rainha. Trazei o meu vestido mais custoso. De novo terei de ir ao Cidno, para ver-me com Marco Antônio. Iras, vai logo. Agora estamos prontas, nobre Charmian. E quando houveres feito esse serviço, liberdade te dou para brincares até o dia do juízo derradeiro. Traze a coroa e tudo o mais. (Sai Iras. Ouve-se barulho.) Que é isso?

(Volta um dos guardas.)

GUARDA — Aí fora está um rústico que insiste em ver Vossa Grandeza. Traz-vos figos.

CLEÓPATRA — Manda-o entrar. (Sai o guarda.) Como uma ação grandiosa pode ser feita por um meio humilde! Trouxe-me a liberdade. Continuo na mesma decisão, sem coisa alguma de mulher ter em mim. Tal como o mármore, sou da cabeça aos pés: inabalável. A lua incerta não é o meu planeta.

(Volta o guarda com o bobo, que traz uma cesta.)

GUARDA — Eis aqui o homem.

CLEÓPATRA — Vai-te embora e deixa-o. Então, trouxeste o bonitinho verme do Nilo que, sem dor, põe termo à vida?

BOBO — Trouxe-o, com certeza; mas não serei eu que vos aconselhe a tocar nele, porque sua picada é mortal. Os que morrem em conseqüência disso, raramente, ou nunca, se restabelecem.

CLEÓPATRA — Sabes de alguém que assim morrido houvesse?

BOBO — Oh! em quantidade! Homens e mulheres também. Ainda anteontem ouvi falar de um caso: uma mulher de grande honestidade, mas um tanto amiga de mentir — o que a mulher nunca deve fazer, senão por maneira muito honesta — como veio a morrer da picada e que dores sentiu. Realmente, ela deu uma ótima informação do verme; mas quem der crédito a tudo o que as mulheres dizem, não se salvará com a metade do que elas próprias fazem. Mas isso é muito falível, o verme é um verme muito caprichoso.

CLEÓPATRA — Bem, até logo; podes retirar-te.

BOBO — Desejo que tenhais muito prazer com o verme. (Depõe a cesta no chão.)

CLEÓPATRA — Adeus.

BOBO — Não deveis esquecer, vede bem, que o verme tem suas manhas.

CLEÓPATRA — Pois não; pois não. Adeus.

BOBO — Vede bem! Não se pode confiar no verme, a não ser sob a guarda de gente muito experta, porque, de fato, não há nele sombra de bondade.

CLEÓPATRA — Não te preocupes, que eu saberei tratar dele.

BOBO — Perfeitamente Não lhe dês nada a comer, que ele não vale o que come.

CLEÓPATRA — Será que ele comeria?

BOBO — Não haveis de pensar que eu seja tão simplório para não saber que o próprio diabo não come uma mulher. Sei muito bem que a mulher é prato para os deuses, quando não é o diabo que o prepara. Mas em verdade, esses malditos diabos causam muito mal aos deuses com as mulheres, porque de cada dez que estes aprontam, os diabos estragam cinco.

CLEÓPATRA — Bem, podes ir embora. Adeus.

BOBO — Sim, por minha fé! Desejo-vos muita alegria com o verme. (Sai.)

(Volta Iras com o manto, a coroa, etc.)

CLEÓPATRA — Dá-me o manto; coloca-me a coroa. Anseios imortais em mim se agitam. Nunca jamais há de molhar-me os lábios o líquido de nossa vinha egípcia. Vamos, Iras; depressa! Só parece que ouço Antônio chamar-me; levantar-se vejo-o e elogiar meu ato valoroso. Ouço como ele zomba da ventura de César, que aos mortais os deuses cedem para depois justificar sua cólera. Caro esposo, eis-me aqui! Minha coragem irá provar que faço jus ao título. Sou ar e fogo; os outros elementos cedo à vida inferior. Já concluíste? Então vem e recebe de meus lábios o calor derradeiro. Adeus, querida Charmian; Iras querida, um longo adeus. (Beija-as; Iras cai e morre.) Tenho, acaso, nos lábios a serpente? Como! Caíste! Se te separaste da natureza assim tão gentilmente, é que o golpe da morte é como aperto de namorado, que machuca um pouco mas sempre é desejado. Estás tranqüila? Se assim te foste, é porque ao mundo contas que digno ele não é de despedida.

CHARMIAN — Nuvem, espalha o teu negrume e chove, para que eu dizer possa que até os deuses estão chorando.

CLEÓPATRA — Isto só prova a minha pusilanimidade. Se primeiro do que eu ela encontrar o meu Antônio de cabelos cacheados, ele o beijo nela dará que para mim é o céu. Vem, coisinha fatal; (Aplica a serpente ao seio.) com o dente agudo o nó complexo vem soltar da vida. Fica zangado, tolo venenoso; termina de uma vez. Oh! se falasses, chamarias o grande César de asno sem nenhuma visão.

CHARMIAN — Estrela do nascente!

CLEÓPATRA — Oh, não! Silêncio! Não vês que ao seio tenho o meu menino, na ama, a dormir, mamando?

CHARMIAN — Parai! Parai!

CLEÓPATRA — Tão doce como bálsamo, brando como o ar, gentil… Oh meu Antônio!… Sim, tu também terás o meu carinho. (Aplica no braço outra serpente.) Por que haveria de ficar mais tempo… (Morre.)

CHARMIAN — …neste mundo tão vil? Assim, adeus. Agora, morte, podes vangloriar-te de que uma rapariga incomparável em teus braços sustentas. Ó janelas emplumadas, fechai-vos! Ó radioso Febo jamais será de novo visto por uns olhos tão reais. Vossa coroa ficou pendida; vou endireitá-la e, após, representar a minha parte.

(Entra um guarda, precipitadamente.)

PRIMEIRO GUARDA — Onde está a rainha?

CHARMIAN — Falai baixo, para não despertá-la.

PRIMEIRO GUARDA — César mandou…

CHARMIAN — …um mensageiro lerdo. (Aplica em si própria uma serpente.) Vem depressa. Termina. Mal te sinto.

PRIMEIRO GUARDA — Aproximai-vos, ah! Algo se passa. César foi enganado.

SEGUNDO GUARDA — Dolabela veio da parte dele, ide chamá-lo.

PRIMEIRO GUARDA — Que é que houve por aqui? Ó Charmian! Charmian! Achas que foi bem feito?

CHARMIAN — Foi bem feito, digno de uma princesa que descende de tantos reais monarcas. Ah! soldado… (Morre.)

(Volta Dolabela.)

DOLABELA — Que aconteceu aqui?

SEGUNDO GUARDA — Morreram todas.

DOLABELA — César, teus pensamentos se confirmam neste particular. Tu próprio chegas para ver realizado o horrível ato que evitar procuraste tanto e tanto!

(Dentro: “Daí passagem a César. Dai passagem!”)

(Volta César, com todo o seu séqüito.)

DOLABELA — Ó senhor! sois um áugur de confiança; o que receáveis, deu-se.

CÉSAR — Corajosa foi até o fim. Por ter desconfiado de nossas intenções, como legítima soberana, tomou o caminho próprio. Como morreram? Não percebo sangue.

DOLABELA — Quem por último esteve junto delas?

PRIMEIRO GUARDA — Um vil campônio, que lhe trouxe figos dentro desta cestinha.

CÉSAR — Então, estavam envenenados.

PRIMEIRO GUARDA — César, esta Charmian até há pouco vivia. Estava pálida e falou. Encontrei-a endireitando o diadema da morta. Ela tremia e caiu de repente.

CÉSAR — Oh muito nobre fraqueza! Se elas ingerido houvessem algum veneno, logo o conhecêramos pelo inchaço exterior. Mas aparência tem ela de quem dorme, de quem fosse prender um Outro Antônio nas cadeias fortes de seus encantos.

DOLABELA — Sobre o seio tem um ponto de sangue, um pouco inchado, tal como aqui no braço.

PRIMEIRO GUARDA — É a marcazinha de uma áspide; estas folhas de figueira deixam ver lodo, tal como se encontra nas cavernas do Nilo em que há serpentes.

CÉSAR — É bem provável que ela assim morresse. Seu médico me disse que ela tinha feito infinitas experiências sobre os meios de morrer mais facilmente. O leito carregai; do monumento o corpo retirai também das criadas. Sepultada vai ser junto do corpo do Marco Antônio dela. Nenhum túmulo jamais encerrará em toda a terra um tão famoso par. Altos eventos como este aqui comovem até mesmo seus próprios causadores. Sua história tão dígna foi causa de chorados serem. Com solene aparato, nosso exército o enterro seguirá. Depois, a Roma. A maior pompa. Dolabela, é que há de determinar esta solenidade.

(Saem.)

Fonte: www.dominiopublico.gov.br

 

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