A Viuvinha – José de Alencar

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José de Alencar

A D…

Janeiro de 1857.

I

Se passasse há dez anos pela Praia da Glória, minha prima,
antes que as novas ruas que se abriram tivessem dado um ar de cidade às
lindas encostas do morro de Santa Teresa, veria de longe sorrir-lhe entre
o arvoredo, na quebrada da montanha, uma casinha de quatro janelas com um
pequeno jardim na frente.

Ao cair da tarde, havia de descobrir na última das janelas o vulto
gracioso de uma menina que aí se conservava imóvel até
seis horas, e que, retirando-se ligeiramente, vinha pela portinha do jardim
encontrar-se com um moço que subia a ladeira, e oferecer-lhe modestamente
a fronte, onde ele pousava um beijo de amor tão casto que parecia antes
um beijo de pai.

Depois, com as mãos entrelaçadas, iam ambos sentar-se a um
canto do jardim, onde a sombra era mais espessa, e aí conversavam baixinho
um tempo esquecido; ouvia-se apenas o doce murmúrio das vozes, interrompidas
por esses momentos de silêncio em que a alma emudece, por não
achar no vocábulo humano outra linguagem que melhor a exprima.

O arrulhar destes dois corações virgens durava até oito
horas da noite, quando uma senhora de certa idade chegava a uma das janelas
da casa , já então iluminada, e debruçando-se um pouco,
dizia com a sua voz doce e afável:

– Olha o sereno, Carolina!

A estas palavras os dois amantes se erguiam, atravessavam o pequeno espaço
que os separava da casa, e subiam os degraus da porta, onde eram recebidos
pela senhora que os esperava.

– Boa-noite, D. Maria, dizia o moço.

– Boa-noite, Sr. Jorge; como passou, respondia a boa senhora.

A sala da casinha era simples e pequena, mas muito elegante; tudo nela respirava
esse aspecto alegre e faceiro que ri-se com a vista.

Aí nessa sala passavam as três pessoas de que lhe falei um desses
serões de família, íntimos e tranqüilos, como já
não os há talvez nessa bela cidade do Rio de Janeiro, invadida
pelos usos e costumes estrangeiros.

Os dois moços sentavam-se ao piano; as mãozinhas distraídas
da menina roçavam apenas pelo teclado, fazendo soar uns ligeiros arpejos
que serviam de acompanhamento a uma conversação em meia voz.

D. Maria, sentada à mesa do meio da sala, jogava a paciência;
e quando levantava a vista das cartas, era para olhar a furto os dois moços
e sorrir-se de satisfeita e feliz.

Isto durava até a hora do chá; e pouco depois Jorge retirava-se,
beijando a mão da boa senhora, que neste momento tinha sempre uma ordem
a dar e fingia não ver o beijo de despedida que o moço imprimia
na fronte cândida da menina.

Agora, minha prima, se quer saber o segredo da cena que lhe acabei de descrever,
cena que se repetia todas as tardes havia um mês, dê-me alguns
momentos de atenção, que vou satisfazê-la.

Este moço que designei com o nome de Jorge, e que realmente tinha
outro nome, em que decerto há de ter ouvido falar, o filho de um negociante
rico que falecera, deixando-o órfão em tenra idade; seu tutor,
velho amigo de seu pai, zelou a sua educação e a sua fortuna,
como homem inteligente e honrado que era.

Chegando à maioridade Jorge tomou conta de seu avultado patrimônio
e começou a viver essa vida dos nossos moços ricos, os quais
pensam que gastar o dinheiro que seus pais ganharam é uma profissão
suficiente para que se dispensem de abraçar qualquer outra.

Temos, infelizmente, muitos exemplos dessas esterilidades a que se condenam
homens que, pela sua posição independente, podiam aspirar a
um futuro brilhante.

Durante três anos o moço entregou-se a esse delírio do
gozo que se apodera das almas ainda jovens; saciou-se de todos os prazeres,
satisfez todas as vaidades.

As mulheres lhe sorriram, os homens o festejaram; teve amantes, luxo, e até
essa glória efêmera, auréola passageira que brilha algumas
horas para aqueles que pelos seus vícios e pelas suas extravagâncias
excitam um momento a curiosidade pública.

Felizmente, como quase sempre sucede, no meio das sensações
materiais, a alma se conservara pura; envolta ainda na sua virgindade primitiva,
dormira todo o tempo em que a vida parecia ter-se concentrado nos sentidos,
e só despertou quando, fatigado pelos excessos do prazer, gasto pelas
emoções repetidas de uma existência desregrada, o moço
sentiu o tédio e o aborrecimento, que é a última fase
dessa embriaguez do espírito.

Tudo que até então lhe parecera cor-de-rosa tornou-se insípido
e monótono, todas essas mulheres que cortejara, todas essas loucuras
que o excitaram, todo esse luxo que o fascinara, causavam-lhe repugnância;
faltava-lhe um quer que seja, sentiu um vácuo imenso; ele, que antes
não podia viver senão em sociedade e no bulício do mundo,
procurava a solidão.

Uma circunstância bem simples modificou a sua existência.

Levantou-se um dia depois de uma noite de insônia, em que todas as
recordações de sua vida desregrada, todas as imagens das mulheres
que o haviam seduzido perpassaram como fantasmas pela sua imaginação,
atirando-lhe um sorriso de zombaria e de escárnio.

Abriu a janela para aspirar o ar puro e fresco da manhã, que vinha
rompendo.

Daí a pouco o sino da igrejinha da Glória começou a
repicar alegremente; esse toque argentino, essa voz prazenteira do sino, causou-lhe
uma impressão agradável.

Vieram-lhe tentações de ir à missa.

A manhã estava lindíssima, o céu azul e o sol brilhante;
quando não fosse por espírito de religiosidade excitava-o a
idéia de um belo passeio a um dos lugares mais pitorescos da cidade.

II

Alguns instantes depois Jorge subia a ladeira e entrava na igreja.

A modesta simplicidade do templo impôs-lhe respeito; ajoelhou; não
rezou, porque não sabia, mas lembrou-se de Deus, e elevou o seu espírito
desde a miséria do homem até a grandeza do Criador.

Quando se ergueu, parecia-lhe que se tinha libertado de uma opressão
que o fatigava; sentia um bem-estar, uma tranqüilidade de espírito
indefinível.

Nesse momento viu ajoelhada ao pé da grade que separa a capela uma
menina de quinze anos, quando muito: o perfil suave e delicado, os longos
cílios que vendavam seus olhos negros e brilhantes, as tranças
que realçavam a sua fronte pura, o impressionaram.

Começou a contemplar aquela menina como se fosse uma santa; e, quando
ela levantou-se para retirar-se com sua mãe, seguiu-a insensivelmente
até a casa que já lhe descrevi porque esta moça era a
mesma de que lhe falei, e sua mãe D. Maria.

Escuso contar-lhe o que se passou depois. Quem não sabe a história
simples e eterna de um amor inocente, que começa por um olhar, passa
ao sorriso, chega ao aperto de mão às escondidas, e acaba afinal
por um beijo e por um sim, palavras sinônimas no dicionário do
coração?

Dois meses depois desse dia começou aquela visita ao cair da tarde,
aquela conversa à sombra das árvores, aquele serão de
família, aquela doce intimidade de um amor puro e tranqüilo.

Jorge esperava apenas esquecer de todo a sua vida passada, apagar completamente
os vestígios desses tempos de loucura, para casar-se com aquela menina,
e dar-lhe a sua alma pura e sem mancha.

Já não era o mesmo homem: simples nos seus hábitos e
na sua existência, ninguém diria que algum tempo ele tinha gozado
de todas as voluptuosidades do luxo; parecia um moço pobre e modesto,
vivendo do seu trabalho e ignorando inteiramente os cômodos da riqueza.

Como o amor purifica, D…! Como dá forças para vencer instintos
e vícios contra os quais a razão, a amizade e os seus conselhos
severos foram impotentes e fracos!

Creia que se algum dia me metesse a estudar as altas questões sociais
que preocupam os grandes políticos, havia de cogitar alguma coisa sobre
essa força invencível do mais nobre dos sentimentos humanos.

Não há aí um sistema engenhoso que pretende regenerar
o homem pervertido, fazendo-lhe germinar o arrependimento por meio da pena
e despertando-lhe os bons instintos pelo isolamento e pelo silêncio?

Por que razão há de procurar-se aquilo que é contra
a natureza, e desprezar-se o germe que Deus deu ao coração do
homem para regenerá-lo e purificá-lo?

Perdão, minha prima; não zombe das minhas utopias sociais;
desculpe-me esta distração; volto ao que sou – simples e fiel
narrador de uma pequena história.

Em amor, dois meses depressa se passam; os dias são momentos agradáveis
e as horas flores que os amantes desfolham sorrindo.

Por fim chegou a véspera do casamento, que se devia fazer simplesmente
em casa, na presença de um ou dois amigos; o moço, fatigado
dos prazeres ruidosos, fazia agora de sua felicidade um mistério.

Nenhum dos seus conhecidos sabia de seus projetos; ocultava o seu tesouro,
com medo que lho roubassem; escondia a flor do sentimento que tinha dentro
d’alma, receando que o bafejo do mundo onde vivera a viesse crestar.

A noite passou-se simplesmente como as outras; apenas notava-se em D. Maria
uma atividade que não lhe era habitual.

A boa senhora, que exigira como condição que seus dois filhos
ficassem morando com ela para alegrarem a sua solidão e a sua viuvez,
temia que alguma coisa faltasse à festa simples e íntima que
devia ter lugar no dia seguinte.

De vez em quando erguia-se e ia ver se tudo estava em ordem, se não
havia esquecido alguma coisa; e parecia-lhe que voltava aos primeiros anos
da sua infância, repassando na memória esse dia, que uma mulher
não esquece nunca.

Nele se passa o maior acontecimento de sua vida; ou realiza-se um sonho de
ventura, ou murcha para sempre uma esperança querida que se guarda
no fundo do coração; pode ser o dia da felicidade ou da desgraça,
mas é sempre uma data notável no livro da vida.

No momento da partida, quando Jorge se levantou, D. Maria, que compreendia
o que essas duas almas tinham necessidade de dizer-se mutuamente, retirou-se.

Os dois amantes apertaram-se as mãos e olharam-se com um desses olhares
longos, fixos e ardentes que parecem embeber a alma nos seus raios límpidos
e brilhantes.

Tinham tanta coisa a dizer e não proferiam uma palavra; foi só
depois de um comprido silêncio que Jorge murmurou quase imperceptivelmente:

– Amanhã!…

Carolina sorriu enrubescendo; aquele amanhã exprimia a felicidade,
a realização desse belo sonho cor-de-rosa que havia durado dois
meses; a linda e inocente menina, que amava com toda a pureza de sua alma,
não tinha outra resposta.

Sorriu e corou.

Jorge desceu lentamente a ladeira, e ao quebrar a rua voltou-se ainda uma
vez para lançar um olhar à casa.

Uma luz brilhava nas trevas entre as cortinas do quarto de sua noiva; era
a estrela do seu amor, que brevemente devia transformar-se em lua-de-mel.

III

Deve fazer uma idéia, minha prima, do que será a véspera
do casamento para um homem que ama.

A alma, a vida, pousa no umbral dessa nova existência que se abre,
e daí lança um volver para o passado e procura devassar o futuro.

Aquém a liberdade, a isenção, a tranqüilidade de
espírito, que se despedem do homem; além a família, os
gozos íntimos, o lar doméstico, esse santuário das verdadeiras
felicidades do mundo que acenam de longe.

No meio de tudo isto, a dúvida e a incerteza, essas inimigas dos prazeres
humanos, vêm agitar o espírito e toldar o céu brilhante
das esperanças que sorriem.

O futuro valerá o passado?

E nessa questão louca e insensata debate-se o pensamento, como se
a prudência e sabedoria humana pudessem dar-lhe uma solução,
como se os cálculos da previdência fossem capazes de resolver
o problema.

É isto pouco mais ou menos o que se passava no espírito de
Jorge quando caminhava pela Praia da Glória seguindo o caminho de sua
casa.

Davam dez horas no momento em que o moço chegava à rua de Matacavalos,
à porta de um pequeno sobrado, onde habitava, depois da sua retirada
do mundo

Ao entrar, o escravo preveniu-lhe que uma pessoa o esperava no seu gabinete;
o moço subiu apressadamente e dirigiu-se ao lugar indicado.

A pessoa que lhe fazia essa visita fora de horas era seu antigo tutor, o
amigo de seu pai, a quem por algum tempo substituiu com a sua amizade sincera
e verdadeira.

O Sr. Almeida era um velho de têmpera antiga, como se dizia há
algum tempo a esta parte; os anos haviam aumentado a gravidade natural de
sua fisionomia.

Conservava ainda toda a energia do caráter, que se revelava na vivacidade
do olhar e no porte firme de sua cabeça calva.

– A sua visita a estas horas… disse o moço entrando.

– Admira-o? perguntou o Sr. Almeida.

– Certamente; não porque isto não me dê prazer; mas acho
extraordinário.

– E com efeito o é; o que me trouxe aqui não foi o simples
desejo

de fazer-lhe uma visita.

– Então houve um motivo imperioso?

– Bem imperioso.

– Neste caso, disse o moço, diga-me de que se trata, Sr. Almeida;
estou pronto a ouvi-lo.

O velho tomou uma cadeira, sentou-se à mesa que havia no centro do
gabinete e, aproximando um pouco de si o candeeiro que esclarecia o aposento,
tirou do bolso uma dessas grandes carteiras de couro da Rússia, que
colocou defronte de si.

O moço, preocupado por este ar grave e solene, sentou-se em face e
esperou com inquietação a decifração do enigma.

– Chegando à casa há pouco, entregaram-me uma carta sua, em
que me participava o seu casamento.

– Não o aprova? perguntou o moço inquieto.

– Ao contrário, julgo que dá um passo acertado; e é
com prazer que aceito o convite que me fez de assistir a ele.

– Obrigado, Sr. Almeida.

– Não é isto, porém, que me trouxe aqui; escute-me.

O velho recostou-se na cadeira, e, fitando os olhos no moço, considerou-o
um momento, como quem procurava a palavra por que devia continuar a conversa.

– Meu amigo, disse o Sr. Almeida, há cinco anos que seu pai faleceu.

– Trata-se de mim então? perguntou Jorge, cada vez mais inquieto.

– Do senhor e só do senhor.

– Mas o que sucedeu?

– Deixe-me continuar. Há cinco anos que seu pai faleceu; e há
três que, tendo o senhor completado a sua maioridade, eu, a quem o meu
melhor amigo havia confiado a sorte de seu filho, entreguei-lhe toda a sua
herança, que administrei durante dois anos com o zelo que me foi possível.

– Diga antes com uma inteligência e uma nobreza bem raras nos tempos
de hoje.

– Não houve nada de louvável no que pratiquei; cumpri apenas
o meu dever de homem honesto e a promessa que fiz a um amigo.

– A sua modéstia pode ser dessa opinião; porém a minha
amizade e o meu reconhecimento pensam diversamente.

– Perdão; não percamos tempo em cumprimentos. A fortuna que
lhe deixara seu pai, e que ele ajuntara durante trinta anos de trabalho e
de privações, consistia em cem apólices, e na sua casa
comercial, que representava um capital igual, ainda mesmo depois de pagas
as dívidas.

– Sim, senhor, graças à sua inteligente administração,
achava-me possuidor de duzentos contos de réis, a que dei bem mau emprego,
confesso.

– Não desejo fazer-lhe exprobrações ; o senhor não
é mais meu pupilo, é um homem; já não lhe posso
falar com autoridade de um segundo pai, mas simplesmente com a confiança
de um velho amigo.

– Mas um amigo que me merecerá sempre o maior respeito.

– Infelizmente o senhor não tem dado provas disto; durante perto de
um ano acompanhei-o como uma sombra, importunei-o com os meus conselhos, abusei
dos meus direitos de amigo de seu pai, e tudo isto foi debalde.

– É verdade, disse o moço abaixando tristemente a cabeça,
para vergonha minha é verdade!

– A vida elegante o atraía, a ociosidade o fascinava; o senhor lançava
pela janela às mãos cheias o ouro que seu pai havia ajuntado
real a real.

– Basta; não me lembre esse tempo de loucura que eu desejava riscar
da minha vida.

– Conheço que o incomodo; mas é preciso. Durante este primeiro
ano, em que ainda tive esperanças de o fazer voltar à razão,
não houve meio que não empregasse, não houve estratagema
de que não lançasse mão. Responda-me, não é
exato?

– Alguma vez o neguei?

– Diga-me do fundo da sua consciência: julga que um pai no desespero
podia fazer mais por um filho do que eu fiz pelo senhor?

– Juro que não! disse Jorge estendendo a mão.

– Pois bem, agora é preciso que lhe diga tudo.

– Tudo?…

– Sim; ainda não concluí. Os seus desvarios de três anos
arruinaram a sua fortuna.

– Eu o sei.

– As suas apólices voaram umas após outras, e foram consumidas
em jantares, prazeres e jogos.

– Restava-me, porém, a minha casa comercial.

– Resta-lhe, continuou o velho carregando sobre esta palavra, a sua casa
comercial, mas três anos de má administração deviam
naturalmente ter influído no estado dessa casa.

– Parece-me que não.

– Sou negociante, e sei o que é o comércio. Depois que o vi
finalmente voltar à vida regrada, quis ocupar-me de novo dos seus negócios;
indaguei, informei-me e ontem terminei o exame da sua escrituração,
que obtive de seus caixeiros quase que por um abuso de confiança. O
resultado tenho-o aqui.

– O velho pousou a mão sobre a carteira.

– E então? perguntou Jorge com ansiedade.

O Sr. Almeida, fitando no moço um olhar severo, respondeu lentamente
à sua pergunta inquieta:

– O senhor está pobre!

IV

Para um homem habituado aos cômodos da vida, a essa descuidosa existência
da gente rica, que tem a chave de ouro que abre todas as portas, o talismã
que vence todos os impossíveis, essa palavra pobre é a desgraça,
é mais do que a desgraça, é uma fatalidade.

A miséria com o seu cortejo de privações e de desgostos,
a humilhação de uma posição decaída, a
terrível necessidade de aceitar, senão a caridade, ao menos
a benevolência alheia, tudo isto desenhou-se com as cores mais carregadas
no espírito do moço à simples palavra que seu tutor acabava
de pronunciar.

Contudo, como já se havia de alguma maneira preparado para uma vida
laboriosa pelo tédio que lhe deixaram os seus anos de loucura, aceitou
com uma espécie de resignação o castigo que lhe dava
a Providência.

– Estou pobre, disse ele respondendo ao Sr. Almeida, não importa;
sou moço, trabalharei, e como meu pai hei de fazer uma fortuna.

O velho abanou a cabeça com uma certa ironia misturada de tristeza.

– O senhor duvida? O meu passado dá-lhe direito para isso; mas um
dia lhe provarei o contrário, e lhe mostrarei que mereço a sua
estima.

– Esta promessa ma restitui toda. Mas que conta fazer?

– Não sei; a noite me há de inspirar. Liquidarei esse pouco
que me resta…

– Esse pouco que lhe resta?

– Sim.

– Não me compreendeu então; disse-lhe que estava pobre; não
lhe resta senão a miséria e…

– E… balbuciou o moço pálido e com a alma suspensa aos lábios
do velho, cuja voz tinha tomado uma entonação solene ao pronunciar
aquele monossílabo.

– E as dívidas de seu pai, articulou o Sr. Almeida no mesmo tom.

Jorge deixou-se cair sobre a cadeira com desânimo; este último
golpe o prostrara; a sua energia não resistia.

O velho, cuja intenção real era impossível de adivinhar,
porque às vezes tornava-se benévolo como um amigo e outras severo
como um juiz, encarou-o por algum tempo com uma dureza de olhar inexprimível:

– Assim, disse ele, eis um filho que herdou um nome sem mancha e uma fortuna
de duzentos contos de réis; e que, depois de ter lançado ao
pó das ruas as gotas de suor da fronte de seu pai amassadas durante
trinta anos, atira ao desprezo, ao escárnio e à irrisão
pública esse nome sagrado, esse nome que toda a praça do Rio
de Janeiro respeitava como o símbolo da honradez. Diga-me que título
merece este filho?

– O de um miserável e de um infame, disse Jorge levantando a cabeça:
eu o sou! Mas a memória de meu pai, que eu venero, não pode
ser manchada pelos atos de um mau filho.

– O senhor bem mostra que não é negociante.

– Não é preciso ser negociante para compreender o que é
honra e probidade, Sr. Almeida.

– Mas é preciso ser negociante para compreender até que ponto
obriga a honra e a probidade de um negociante. Seu pai devia; em vez de saldar
essas obrigações com a riqueza que lhe deixou, consumiu-a em
prazeres; no dia em que o nome daquele que sempre fez honra à sua firma
for declarado falido, a sua memória está desonrada.

– O senhor é severo demais Sr. Almeida.

– Oh! não discutamos; penso desta maneira; não sou rico, mas
procurarei salvar o nome de meu amigo da desonra que seu filho lançou
sobre ele.

– E o que me tocará a mim então?

– Ao senhor, disse o velho erguendo-se, fica-lhe a miséria, a vergonha,
o remorso, e talvez que mais tarde, o arrependimento.

A angústia e o desespero que se pintavam nas feições
de Jorge tocavam quase à alucinação e ao desvario; às
vezes era como uma atonia que lhe paralisava a circulação, outras
tinha ímpetos de fechar os olhos e atirar a matéria contra a
matéria, para ver se neste embate a dor física, a anulação
do espírito, moderavam o profundo sofrimento que torturava sua alma.

Por fim uma idéia sinistra passou-lhe pela mente, e agarrou-se a ela
como um náufrago a um destroço de seu navio; o desespero tem
dessas coincidências; um pensamento louco é às vezes um
bálsamo consolador, que, se não cura, adormece o padecimento.

O moço ficou de todo calmo; mas era essa calma sinistra que se assemelha
ao silêncio que precede as grandes tempestades.

Tudo isto se passou num momento, enquanto o Sr. Almeida, com o seu sorriso
irônico, abotoava até a gola da sua sobrecasaca, dispondo-se
a sair.

– Estamos entendidos, senhor; pode mandar debitar-me nos seus livros pelas
dívidas de seu pai. Boa noite.

– Adeus, senhor.

O velho saiu direito e firme como um homem no vigor da idade.

Jorge escutou o som de suas passadas, que ecoaram surdamente no soalho, até
o momento em que a porta da casa fechou-se.

Então curvou a cabeça sobre o braço, apoiado ao umbral
da janela, e chorou.

Quando um homem chora, minha prima, a dor adquire um quer que seja de suave,
uma voluptuosidade inexprimível; sofre-se, mas sente-se quase uma consolação
em sofrer.

Vós, mulheres, que chorais a todo o momento, e cujas lágrimas
são apenas um sinal de vossa fraqueza, não conheceis esse sublime
requinte da alma que sente um alívio em deixar-se vencer pela dor;
não compreendeis como é triste uma lágrima nos olhos
de um homem.

V

Uma hora seguramente se passara depois da saída do velho.

O relógio de uma das torres da cidade dava duas horas.

Jorge conservou-se na mesma posição; imóvel, com a cabeça
apoiada sobre o braço, apenas se lhe percebia o abalo que produzia
de vez em quando um soluço que o orgulho do homem reprimia, como que
para ocultar de si mesmo a sua fraqueza.

Depois nem isto; ficou inteiramente calmo, ergueu a cabeça e começou
a passear pelo aposento: a dor tinha dado lugar à reflexão;
e ele podia enfim lançar um olhar sobre o passado, e medir toda a profundeza
do abismo em que ia precipitar-se.

Havia apenas duas horas que a felicidade lhe sorria com todas as suas cores
brilhantes, que ele via o futuro através de um prisma fascinador; e
poucos instantes tinham bastado para transformar tudo isto em uma miséria
cheia de vergonha e de remorsos.

As oscilações da pêndula, que na véspera respondiam
alegremente às palpitações de seu coração,
a bater com a esperança da ventura, ressoavam agora tristemente, como
os dobres monótonos de uma campa tocando pelos mortos.

Mas não era o pensamento dessa desgraça irreparável,
imensa, que tanto o afligia; os espíritos fortes, como o seu, têm
para as grandes dores um grande remédio, a resignação.

A pobreza não o acobardava; a desonra, não a temia; o que dilacerava
agora a sua alma era um pensamento cruel, uma lembrança terrível:

– Carolina!…

A pobre menina, que o amava, que dormia tranqüilamente embalada por
algum sonho prazenteiro, que esperava com a inocência de um anjo e a
paixão de uma mulher a hora dessa ventura suprema de duas almas a confundirem-se
num mesmo beijo!

Podia, ele, desgraçado, miserável, escarnecido, iludir ainda
por um dia esse coração e ligar essa vida de inocência
e de flores à existência de um homem perdido?

Não: seria um crime, uma infâmia, que a nobreza de sua alma
repelia; sentia-se bastante desgraçado, é verdade, mas essa
desgraça era o resultado de uma falta, de uma bem grave falta, mas
não de um ato vergonhoso.

O seu casamento, pois, não podia mais efetuar-se; o seu dever, a sua
lealdade exigiam que confessasse a D. Maria e a sua filha as razões
que tornavam impossível esta união.

Sentou-se à mesa e começou a escrever com uma espécie
de delírio uma carta à mãe de Carolina; mas, apenas havia
traçado algumas linhas, a pena estacou sobre o papel.

– Seria matá-la! balbuciou ele.

Outra idéia lhe viera ao espírito; lembrou-se que no estado
a que tinham chegado as coisas, essa ruptura havia de necessariamente prejudicar
a reputação de sua noiva.

Ele seria causa de que se concebesse uma suspeita sobre a pureza dessa menina
que havia respeitado como sua irmã, embora a amasse com uma paixão
ardente; e este só pensamento paralisara a sua mão sobre o papel.

Recordou-se de que D. Maria um dia lhe havia dito:

– Jorge, a confiança que tenho na sua lealdade é tal que entreguei
minha filha antes de pertencer-lhe. Lembre-se que se o senhor mudasse de idéia,
embora ela esteja pura como um anjo, o mundo a julgaria uma moça iludida.
Espero que respeite em sua noiva a sua futura mulher.

E o moço reconhecia quanto D. Maria tinha razão; lembrava-se,
no tempo da sua vida brilhante, que comentários não faziam seus
amigos sobre um casamento rompido às vezes pelo motivo o mais simples.

Deixar pesar a sombra de uma suspeita sobre a pureza de Carolina, era coisa
que o seu espírito nem se animava a conceber; mas iludir a pobre menina,
arrastando-a a um casamento desgraçado, era uma infâmia.

Durante muito tempo o seu pensamento debateu-se nesta alternativa terrível,
até que uma idéia consoladora veio restituir-lhe a calma.

Tinha achado um meio de tudo conciliar; um meio de satisfazer ao sentimento
do seu coração e aos prejuízos do mundo.

Qual era este meio? Ele o guardou consigo e o concentrou no fundo d’alma;
apenas um triste sorriso dizia que ele o havia achado, e que sobre a dor profunda
que enchia o coração, ainda pairava um sopro consolador.

Toda a noite se passou nesta luta íntima.

De manhã o moço saiu e foi ver Carolina, para receber um sorriso
que lhe desse forças de resistir ao sofrimento.

A menina na sua ingênua afeição apercebeu-se da palidez
do moço, mas atribuiu-a a um motivo bem diverso do que era realmente.

– Não dormiste, Jorge? perguntou ela.

– Não.

– Nem eu! disse corando.

Ela cuidava que era só a felicidade que trazia essas noites brancas,
que deviam depois dourar-se aos raios do amor.

Como se enganava!

De volta, Jorge dispôs tudo que era necessário para seu casamento,
e fechou-se no seu quarto até a tarde.

VI

Quatro pessoas se achavam reunidas na sala da casa de D. Maria.

O Sr. Almeida, sempre grave e sisudo, conversava no vão de uma janela
com um outro velho, militar reformado, cuja única ocupação
era dar um passeio à tarde e jogar o seu voltarete.

O honrado negociante estava vestido em traje de cerimônia e machucava
na mão esquerda um par de luvas de pelica branca, indício certo
de alguma grande solenidade, como casamento ou batizado.

Os dois conversavam sobre o projeto do desmoronamento do morro do Castelo,
projeto que julgavam devia estender-se a todos os morros da cidade; era um
ponto este em que o reumatismo do Sr. Almeida e uma antiga ferida do militar
reformado se achavam perfeitamente de acordo.

As outras duas pessoas eram um sacerdote respeitável e uma encantadora
menina, que esperavam sentados no sofá a chegada de Jorge.

– Quando será o seu dia? dizia, sorrindo, o padre.

– É coisa em que nem penso! respondia a moça com um gracioso
gesto de desdém.

– Ande lá! Há de pensar sempre alguma vez.

– Pois não!

E, dizendo isto, a menina suspirava, minha prima, como suspiram todas as
mulheres em dia de casamento: umas desejando, outras lembrando-se e muitas
arrependendo-se.

A um lado da sala estava armado um oratório simples; um Cristo, alguns
círios e dois ramos de flores bastavam à religião do
amor, que tem as galas e as pompas do coração.

Jorge chegou às cinco horas e alguns minutos.

O Sr. Almeida apertou-lhe a mão com a mesma impassibilidade costumada,
como se nada se tivesse passado entre eles na véspera.

Um observador, porém, teria reparado no olhar perscrutador que o negociante
lançou ao moço, como procurando ler-lhe na fisionomia um pensamento
oculto.

O padre revestiu-se dos seus hábitos sacerdotais; e Carolina apareceu
na porta da sala guiada por sua mãe.

Dizem que há um momento em que toda a mulher é bela, em que
um reflexo ilumina o seu rosto e dá-lhe esse brilho que fascina; os
franceses chamam a isto… la beauté du diable.

Há também um momento em que as mulheres belas são anjos,
em que o amor casto e puro lhes dá uma expressão divina; eu,
bem ou mal, chamo a isto… a beleza do céu.

Carolina estava em um desses momentos; a felicidade que irradiava no seu
semblante, o rubor de suas faces, o sorriso que adejava nos seus lábios,
como o núncio desse monossílabo que ia resumir todo o seu amor,
davam-lhe uma graça feiticeira

Envolta nas suas roupas alvas, no seu véu transparente preso à
coroa de flores de laranjeira, os seus olhos negros cintilavam com um fulgor
brilhante entre aquela nuvem diáfana de rendas e sedas.

Jorge adiantou-se pálido, mas calmo, e, tomando a mão de sua
noiva, ajoelhou- se com ela aos pés do sacerdote.

A cerimônia começou.

No momento em que o padre disse a pergunta solene, essa pergunta que prende
toda a vida, o moço estremeceu, fez um esforço e quase imperceptivelmente
respondeu. Carolina, porém, abaixando os olhos e corando, sentiu que
toda a sua alma vinha pousar-lhe nos lábios com essa doce palavra:

– Sim! murmurou ela.

A bênção nupcial, a bênção de Deus,
desceu sobre essas duas almas, que se ligavam e se confundiam.

Pouco depois desapareceram os adornos de cerimônia e na sala ficaram
apenas algumas pessoas que festejavam em uma reunião de amigos e de
família a felicidade de dois corações.

Jorge às vezes esforçava-se por sorrir; mas esse sorriso não
iludia sua noiva, cujo olhar inquieto se fitava no seu semblante.

Entretanto a alegria de D. Maria era tão expansiva; o velho militar
contava anedotas tão desengraçadas e tão chilras, que
todos eram obrigados a rir e a se mostrar satisfeitos.

Jorge, mesmo à força de vontade, conseguiu dar ao seu rosto
uma expressão alegre, que desvaneceu em parte a inquietação
de Carolina.

Contudo havia nessa reunião uma pessoa a quem o moço não
podia esconder o que se passava na sua alma, e que lia no seu rosto como um
livro aberto.

Era o Sr. Almeida, que às vezes tornava-se pensativo como se combinasse
alguma idéia que começava a esclarecer-lhe o espírito;
sabia que a sua presença era naquele momento uma tortura para Jorge,
mas não se resolvia a retirar-se.

Deram dez horas, termo sacramental das visitas de família; passar
além, só é permitido aos amigos íntimos; é
verdade que os namorados, os maçantes e os jogadores de voltarete costumam
usurpar este direito.

Todas as pessoas levantaram-se, pois, e dispuseram-se a retirar-se.

O negociante, tomando Jorge pelo braço, afastou-se um pouco.

– Estimei, disse ele, que a nossa conversa de ontem não influísse
sobre a sua resolução.

O moço estremeceu.

– Era uma coisa a que estava obrigada a minha honra, mas…

O Sr. Almeida esperou a palavra, que não caiu dos lábios de
Jorge. O moço tinha empalidecido.

– Mas?… insistiu ele.

– Queria dizer que não sou tão culpado como o senhor pensa;
talvez breve tenha a prova.

O negociante sorriu.

– Boa-noite, Sr. Jorge.

O moço cumprimentou-o friamente.

As outras visitas tinham saído, e D. Maria, sorrindo à sua
filha, retirou-se com ela.

VII

Eram onze horas da noite.

Toda a casa estava em silêncio.

Algumas luzes esclareciam ainda uma das salas interiores, que fazia parte
do aposento que D. Maria destinara a seus dois filhos.

Jorge, em pé no meio desta sala, de braços cruzados, fitava
um olhar de profunda angústia em uma porta envidraçada, através
da qual se viam suavemente esclarecidas as alvas sanefas da cortina.

Era a porta do quarto de sua noiva.

Duas ou três vezes dera um passo para dirigir-se àquela porta,
e hesitara; temia profanar o santuário da virgindade; julgava-se indigno
de penetrar naquele templo sagrado de um amor puro e casto.

Finalmente tentou um esforço supremo; revestiu-se de toda a sua coragem
e atravessou a sala com um passo firme, mas lento e surdo.

A porta estava apenas cerrada; tocando-a com a sua mão trêmula,
o moço abriu uma fresta e correu o olhar pelo aposento.

Era um elegante gabinete forrado com um lindo papel de cor azul-celeste,
tapeçado de lã de cores mortas; das janelas pendiam alvas bambinelas
de cassa, suspensas às lanças douradas.

A mobília era tão simples e tão elegante como o aposento:
dois consolos de mármore, uma conversadeira, algumas cadeiras e o leito
nupcial, que se envolvia nas longas e alvas cortinas, como uma virgem no seu
véu de castidade.

Era, pois, um ninho de amor este gabinete, em que o bom gosto, a elegância
e a singeleza tinham imprimido um cunho de graça e distinção
que bem revelava que a mão do artista fora dirigida pela inspiração
de uma mulher.

Carolina estava sentada a um canto da conversadeira, a alguns passos do leito,
no vão das duas janelas; tinha a cabeça descansada sobre o recosto
e os olhos fitos na porta da sala.

A menina trajava apenas um alvo roupão de cambraia atacado por alamares
feitos de laços de fita cor de palha; o talhe do vestido, abrindo-se
desde a cintura, deixava entrever o seio delicado, mal encoberto por um ligeiro
véu de renda finíssima.

A indolente posição que tomara fazia sobressair toda a graça
do seu corpo, e desenhava as voluptuosas ondulações dessas formas
encantadoras, cuja mimosa carnação percebia-se sob a transparência
da cambraia.

Seus longos cabelos castanhos de reflexos dourados, presos negligentemente,
deixavam cair alguns anéis que se espreguiçavam languidamente
sobre o colo aveludado, como se sentissem o êxtase desse contato lascivo.

Descansava sobre uma almofada de veludo a ponta de um pezinho delicado, que
rocegando a orla do seu roupão deixava admirar a curva graciosa que
se perdia na sombra.

Um sorriso, ou antes um enlevo, frisava os lábios entreabertos; os
olhos fixos na porta vendavam-se às vezes com os seus longos cílios
de seda, que, cerrando-se, davam uma expressão ainda mais lânguida
ao seu rosto.

Foi em um desses momentos que Jorge entreabriu a porta e olhou: nunca vira
a sua noiva tão bela, tão cheia de encanto e de sedução.

E entretanto ele, seu marido, seu amante, que ela esperava, ele, que tinha
a felicidade ali, junto de si, sorriu amargamente como se lhe houvessem enterrado
um punhal no coração.

Abriu a porta, e entrou.

A moça teve um leve sobressalto; e, dando com os olhos no seu amante,
ergueu-se um pouco sobre a conversadeira, tanto quanto bastou para tomar-lhe
as mãos e engolfar-se nos seus olhares.

Que muda e santa linguagem não falavam essas duas almas, embebendo-se
uma na outra! Que delícia e que felicidade não havia nessa mútua
transmissão de vida entre dois corações que palpitavam
um pelo outro!

Assim ficaram tempo esquecido; ambos viviam uma mesma vida, que se comunicava
pelo fluido do olhar e pelo contato das mãos; pouco a pouco as suas
cabeças se aproximaram, os seus hálitos se confundiram, os lábios
iam tocar-se.

Jorge afastou-se de repente, como se sentisse sobre a sua boca um ferro em
brasa; desprendeu as mãos, e sentou-se pálido e lívido
como um morto.

A menina não reparou na palidez de seu marido; toda entregue ao amor,
não tinha outro pensamento, outra idéia.

Deixou cair a cabeça sobre o ombro de Jorge; e, sentindo as palpitações
do seu coração sobre o seio, achava-se feliz, como se ele lhe
falasse, lhe olhasse e lhe sorrisse.

Foi só quando o moço, erguendo docemente a fronte da menina,
a depôs sobre o recosto da almofada, que Carolina olhou seu amante com
surpresa, e viu que alguma coisa se passava de extraordinário.

– Jorge, disse ela com a voz trêmula e cheia de angústias, tu
não me amas.

– Não te amo! exclamou o moço tristemente; se tu soubesses
de que sacrifícios é capaz o amor que te tenho!…

– Oh! não, continuou a moça, abanando a cabeça; tu não
me amas! Vi-te todo o dia triste; pensei que era a felicidade que te fazia
sério, mas enganei-me.

– Não te enganaste, não, Carolina, era a tua felicidade que
me entristecia.

– Pois então saibas que a minha felicidade está em te ver sorrir.
Vamos, não me ames hoje menos do que me amavas há dois meses!

– Há dois momentos, Carolina, em que o amor é mais do que uma
paixão, é uma loucura; é o momento em que se possui ou
aquele em que se perde, o objeto que se ama.

A menina corou e abaixou os olhos sobre o tapete.

– Dize-me, tornou ela para disfarçar a sua confusão, o que
sentiste hoje no momento em que as nossas duas mãos se uniram sob a
bênção do padre?

Jorge estremeceu, e ia soltar uma palavra que reteve; depois disse com algum
esforço:

– A felicidade, Carolina.

– Pois eu senti mais do que a felicidade; quando nossas mãos se uniam
tantas vezes e que nós conversávamos horas e horas, eu era bem
feliz; mas hoje, quando ajoelhamos, não sei o que se passou em mim;
parecia-me que tudo tinha desaparecido, tu, eu, o padre, minha mãe,
e que só havia ali duas mãos que se tocavam, e nas quais nós
vivíamos!

O moço voltou o rosto para esconder uma lágrima.

– Vem cá, continuou a moça, deixa-me apertar a tua mão;
quero ver se sinto outra vez o que senti. Ah! naquele momento parecia que
nossas almas estavam tão unidas uma à outra que nada nos podia
separar.

A moça tomou as mãos de Jorge, e, descansando a cabeça
sobre o recosto da conversadeira, cerrou os olhos e assim ficou algum tempo

– Como agora!… continuou ela, sorrindo. Se fecho os olhos, vejo-te aí
onde estás. Se escuto, ouço a tua voz. Se ponho a mão
no coração, sinto-te!

Jorge ergueu-se; estava horrivelmente pálido.

Caminhou pelo gabinete agitado, quase louco; a moça o seguia com os
olhos; sentia o coração cerrado; mas não compreendia.

Por fim o moço chegou-se a um consolo sobre o qual havia uma garrafa
de Chartreuse e dois pequenos copos de cristal. Sua noiva não percebeu
o movimento rápido que ele fez, mas ficou extremamente admirada, vendo-o
apresentar-lhe um dos cálices cheio de licor.

– Não gosto! disse a menina com gracioso enfado.

– Não queres então beber à minha saúde! Pois
eu vou beber à tua.

Carolina ergueu-se vivamente e, tomando o cálice, bebeu todo o licor.

– Ao nosso amor!…

Jorge sorriu tristemente.

Dava uma hora da noite.

VIII

Jorge tomou as mãos de sua mulher e beijou-as.

– Carolina!

– Meu amigo!

– Sabes o meu passado: já te contei todas as minhas loucuras e tu
me perdoaste todas; preciso, porém, ainda do teu perdão para
uma falta mais grave do que essas, para um crime talvez!

– Dize-me: esta falta faz que não me ames? perguntou a menina um pouco
assustada.

– Ao contrário, faz que te ame ainda mais, se é possível!
exclamou o moço.

– Então não é uma falta, respondeu ela, sorrindo.

– Quando souberes! murmurou o moço, talvez me acuses.

– Tu não pensas no que estás dizendo, Jorge! replicou a moça
sentida.

– Escuta: se eu te pedir uma coisa, não me negarás?

– Pede e verás.

– Quero que me perdoes essa falta que tu ignoras!

– Causa-te prazer isto?

– Como tu não fazes idéia! disse o moço com um acento
profundo.

– Pois bem; estás perdoado.

– Não; não há de ser assim; de joelhos a teus pés.

E o moço ajoelhou-se diante de sua mulher.

– Criança! disse Carolina sorrindo.

– Agora dize que me perdoas!

– Perdôo-te e amo-te! respondeu ela cingindo-lhe o pescoço com
os braços e apertando a sua cabeça contra o seio.

Jorge ergueu-se calmo e sossegado; porém ainda mais pálido.

Carolina deixou-se cair sobre a conversadeira; suas pálpebras cerravam-se
a seu pesar; pouco depois tinha adormecido.

O moço tomou-a nos braços e deitou-a sobre o leito, fechando
as alvas cortinas; depois foi sentar-se na conversadeira, e colocou o seu
relógio sobre uma banquinha de charão.

Assim, com a cabeça apoiada sobre a mão e os olhos fitos nas
pequenas agulhas de aço que se moviam sobre o mostrador branco, passou
duas horas.

Cada instante, cada oscilação, era um ano que fugia, um mundo
de pensamentos que se abismava no passado.

Quando o ponteiro, devorando o último minuto, marcou quatro horas
justas, ele ergueu-se.

Tirou do bolso uma carta volumosa e deitou-a sobre o consolo de mármore.

Abriu as cortinas do leito e contemplou Carolina, que dormia, sorrindo talvez
à imagem dele, que em sonho lhe aparecia.

O moço inclinou-se e colheu com os lábios esse sorriso; era
o seu beijo nupcial.

Tornou a fechar as cortinas e entrou na sala onde estivera a princípio;
aí abriu uma janela e saltou no jardim.

Seguiu pela ladeira abaixo; a noite estava escura ainda; mas pouco faltava
para amanhecer.

Debaixo da janela esclarecida do aposento de Carolina destacou-se um vulto
que seguiu o moço a alguns passos de distância.

A pessoa, qualquer que ela fosse, não desejava ser conhecida; estava
envolvida em uma capa escura, e tinha o maior cuidado em abafar o som de suas
pisadas.

Jorge ganhou a Rua da Lapa, seguiu pelo Passeio Público, e dirigiu-se
à Praia de Santa Luzia.

O dia vinha começando a raiar; e o moço, que temia ver esvaecerem-se
as sombras da noite antes de ter chegado ao lugar para onde se dirigia, apressava
o passo.

O vulto o acompanhava sempre a alguma distância, tendo o cuidado de
caminhar do lado do morro, onde a escuridão era mais intensa.

Quando Jorge chegou ao lugar onde hoje se eleva o Hospital da Misericórdia,
esse lindo edifício que o Rio de Janeiro deve a José Clemente
Pereira, o horizonte se esclarecia com os primeiros clarões da alvorada.

Um espetáculo majestoso se apresentava diante de seus olhos; aos toques
da luz do sol parecia que essa baía magnífica se elevava do
seio da natureza com os seus rochedos de granito, as suas encostas graciosas,
as suas águas límpidas e serenas.

O moço deu apenas um olhar a esse belo panorama e continuou o seu
caminho.

O vulto que o seguia tinha desaparecido.

IX

O Rio de Janeiro ainda se lembra da triste celebridade que, há dez
anos passados, tinha adquirido o lugar onde está hoje construído
o Hospital da Santa Casa.

Houve um período em que quase todas as manhãs os operários
encontravam em algum barranco ou entre os cômoros de pedra e de areia,
o cadáver de um homem que acabara de pôr termo à sua existência.

Outras vezes ouvia-se um tiro; os serventes corriam e apenas achavam uma
pistola ainda fumegante, um corpo inanimado, e sobre ele alguma carta destinada
a um amigo, a um filho, ou a uma esposa.

Amantes infelizes, negociantes desgraçados, pais de família
carregados de dívidas, homens ricos caídos na miséria,
quase todos aí vinham, trazidos por um ímã irresistível,
por fascinação diabólica.

As Obras da Misericórdia, como chamavam então este lugar, tinham
a mesma reputação que o Arco das Águas Livres de Lisboa
e a Ponte Nova de Paris.

Era o templo do suicídio, onde a fragilidade humana sacrificava em
holocausto a esse ídolo sanguinário tantas vítimas arrancadas
às suas famílias e aos seus amigos.

Essa epidemia moral, que se agravava todos os dias, começava já
a inquietar alguns espíritos refletidos, alguns homens pensadores,
que viam com tristeza os progressos do mal.

Procurava-se debalde a causa daquela aberração fatal da natureza,
e não era possível explicá-la.

Não tínhamos, como a Inglaterra, esse manto de chumbo, que
pesa sobre a cabeça dos filhos da Grã-Bretanha; esse lençol
de névoa e de vapores, que os envolve como uma mortalha.

Não tínhamos, como a Alemanha, o idealismo vago e fantástico,
excitado pelas tradições da média idade, e, modernamente,
pelo romance de Goethe, que tão poderosa influência exerceu nas
imaginações jovens.

Ao contrário, o nosso céu, sempre azul, sorria àqueles
que o contemplavam; a natureza brasileira, cheia de vigor e de seiva, cantava
a todo o momento um hino sublime à vida e ao prazer.

O gênio brasileiro, vivo e alegre no meio dos vastos horizontes que
o cercam, sente-se tão livre, tão grande, que não precisa
elevar-se a essas regiões ideais em que se perde o espírito
alemão.

Nada enfim explicava o fenômeno moral que se dava então na população
desta corte; mas todos o sentiam e alguns se impressionavam seriamente.

Era fácil, pois, naquela época, adivinhar o motivo que levava
Jorge às quatro horas da manhã ao lugar onde se abriam os largos
alicerces do grande Hospital de Santa Luzia.

O moço afastou-se da praia, e desapareceu por detrás de alguns
montes de areia que se elevavam aqui e ali pelo campo.

Meia hora depois ouviram-se dois tiros de pistola; os trabalhadores que vinham
chegando para o serviço correram ao lugar donde partira o estrondo,
e viram sobre a areia o corpo de um homem, cujo rosto tinha sido completamente
desfigurado pela explosão da arma de fogo.

Um dos guardas meteu a mão no bolso da sobrecasaca, e achou uma carteira
contendo algumas notas pequenas, e uma carta apenas dobrada, que ele abriu
e leu:

"Peço a quem achar o meu corpo o faça enterrar imediatamente,
a fim de poupar à minha mulher e aos meus amigos esse horrível
espetáculo. Para isso achará na minha carteira o dinheiro que
possuo."

Jorge da Silva

5 de setembro de 1844.

Uma hora depois a autoridade competente chegou ao lugar do suicídio,
e, tomando conhecimento do fato, deu as providências para que se cumprisse
a última vontade do finado.

O trabalho continuou entre as cantilenas monótonas dos pretos e dos
serventes, como se nada de extraordinário se houvesse passado.

X

Cinco anos decorreram depois dos tristes acontecimentos que acabamos de narrar.

Estamos na Praça do Comércio.

Naquele tempo não havia, como hoje, corretores e zangões, atravessadores,
agiotas, vendedores de dividendos, roedores de cordas, emitidores de ações;
todos esses tipos modernos, importados do estrangeiro e aperfeiçoados
pelo talento natural.

Em compensação, porém, ali se faziam todas as transações
avultadas; aí se tratavam todos os negócios importantes com
uma lisura e uma boa-fé que se tornou proverbial à praça
do Rio de Janeiro.

Eram três horas da tarde.

A praça ia fechar-se; os negócios do dia estavam concluídos;
e dentro das colunas que formam a entrada do edifício poucas pessoas
ainda restavam.

Entre estas notava-se um negociante, que passeava lentamente ao comprido
do saguão, e que por momentos chegava-se à calçada e
lançava um olhar pela Rua Direita.

Era um moço que teria quando muito trinta anos, de alta estatura e
de um porte elegante; à primeira vista parecia estrangeiro.

Tinha uma dessas feições graves e severas que impõem
respeito e inspiram ao mesmo tempo a afeição e a simpatia. Sua
barba, de um louro cinzento, cobria-lhe todo o rosto e disfarçava os
seus traços distintos.

A fronte larga e reflexiva, um pouco curvada pelo hábito do trabalho
e da meditação, e o seu olhar fixo e profundo, revelavam uma
vontade calma, mas firme e tenaz.

A expressão de tristeza e ao mesmo tempo de resignação
que respirava nessa fisionomia devia traduzir a sua vida; ao menos fazia pressentir
na sua existência o predomínio de uma necessidade imperiosa,
de um dever, talvez de uma fatalidade.

Ninguém na praça conhecia esse moço, que aí aparecera
havia pouco tempo; mas as suas maneiras eram tão finas, os seus negócios
tão claros e sempre à vista, as suas transações
tão lisas, que os negociantes nem lhe perguntavam o seu nome para aceitarem
o objeto que ele lhes oferecia.

Todas as pessoas já tinham partido, e ficara apenas o moço,
que sem dúvida esperava alguém; entretanto, ou porque ainda
não tivesse chegado a hora aprazada, ou porque já estivesse
habituado a constranger-se, não dava o menor sinal de impaciência.

Finalmente a pessoa esperada apontou na entrada da Rua do Sabão e
aproximou-se rapidamente.

A senhora, que talvez tenha imaginado um personagem de grande importância
vai decerto sofrer uma decepção quando souber que o desconhecido
era apenas um mocinho de dezenove para vinte anos.

Um observador ou um homem prático, o que vale a mesma coisa, reconheceria
nele à primeira vista um desses virtuosi do comércio, como então
havia muitos nesta boa cidade do Rio de Janeiro.

A classificação é nova e precisa uma explicação.

A lei, a sociedade e a polícia estão no mau costume de exigir
que cada homem tenha uma profissão; donde provém esta exigência
absurda não sei eu, mas o fato é que ela existe, contra a opinião
de muita gente.

Ora, não é uma coisa tão fácil, como supõe-se,
o ter uma profissão. Apesar do novo progresso econômico da divisão
do trabalho, que multiplicou infinitamente as indústrias, e por conseguinte
as profissões, a questão ainda é bem difícil de
resolver para aqueles que não querem trabalhar.

Ter uma profissão quando se trabalha, isto é simples e natural,
mas ter uma profissão honesta e decente sem trabalhar, eis o sonho
dourado de muita gente, eis o problema de Arquimedes para certos homens que
seguem a religião do dolce far niente.

O problema se resolveu simplesmente.

Há uma profissão cujo nome é tão vago, tão
genérico que pode abranger tudo. Falo da profissão de negociante.

Quando um moço não quer abraçar alguma profissão
trabalhosa, diz-se negociante, isto é, ocupado em tratar dos seus negócios.

Um maço de papéis na algibeira, meia hora de estação
na Praça do Comércio, ar atarefado, são as condições
do ofício.

Mediante estas condições o nosso homem é tido e havido
como negociante; pode passear pela Rua do Ouvidor, apresentar-se nos salões
e nos teatros.

Quando perguntarem quem é este moço bem vestido, elegante,
de maneiras tão afáveis, responderão – É um negociante.

Eis o que eu chamo virtuosi do comércio, isto é, homens que
cultivam a indústria mercantil por curiosidade, por simples desfastio,
para ter uma profissão.

É tempo de voltar dessa longa digressão, que a senhora deve
ter achado muito aborrecida.

O mocinho negociante, tendo chegado à Praça do Comércio,
tomou o braço da pessoa que o esperava, dizendo-lhe:

– Está tudo arranjado.

– Seriamente? exclamou o outro moço, cujos olhos brilharam de alegria.

– Pois duvidas!

– Então, amanhã…

– Ao meio-dia.

– Obrigado! disse o moço apertando a mão de seu companheiro
com efusão.

– Obrigado, por quê? O que fiz vale a pena de agradecer? Ora, adeus!…
Vem jantar comigo.

– Não, acompanho-te até lá; mas preciso estar às
quatro horas em minha casa.

Os dois moços de braço dado dobraram o canto da Rua Direita.

XI

Seguiram pela Rua do Ouvidor.

Não sei que interesse, dizia o nosso negociante continuando a conversa;
não

sei que interesse tens tu, Carlos, em resgatares aquela letra!

É uma especulação que algum dia te explicarei, Henrique,
e na qual espero ganhar.

– É possível, respondeu o outro, mas permitirás que
duvide.

– Por quê?

– Ora, é boa! uma letra de um homem já falecido, de uma firma
falida! Aposto que não sabias disto?!

– Não; não sabia! disse Carlos sorrindo amargamente.

– Pois então deixa contar-te a história.

– Em outra ocasião.

– Por que não agora? Reduzo-te isto a duas palavras, visto que não
estás disposto a escutar-me.

– Mas…

– Trata-se de um negociante rico, que faleceu, deixando ao filho coisa de
300 contos de réis e algumas dívidas, na importância de
um terço dessa quantia. O filho gastou o dinheiro, e deixou que protestassem
as letras aceitas pelo pai, o qual, apesar de morto, foi declarado falido.

Enquanto seu companheiro falava, Carlos se tinha tornado lívido; conhecia-se
que uma emoção poderosa o dominava, apesar do esforço
de vontade com que procurava reprimi-la.

– E esse filho… o que fez? perguntou com voz trêmula.

– O sujeito, depois de ter-se divertido à larga, quando se viu pobre
e desonrado, enfastiou-se da vida, e fez viagem para o outro mundo.

– Suicidou-se!

– É verdade; mas o interessante foi que na véspera de sua morte
se tinha casado com uma menina lindíssima.

– Conheces?

– Ora! quem não conhece a Viuvinha no Rio de Janeiro? É a moça
mais linda, a mais espirituosa e a mais coquette dos nossos salões.

A conversa foi interrompida, os dois amigos caminharam por algum tempo sem
trocarem palavra.

Carlos ficara triste e pensativo; o seu rosto tinha neste momento uma expressão
de dor e resignação que revelava um sofrimento profundo, mas
habitual.

Quanto ao seu companheiro, fumava o seu charuto, olhando para todas as vidraças
de lojas por onde passava e apreciando essa exposição constante
de objetos de gosto, que já naquele tempo tornava a Rua do Ouvidor
o passeio habitual dos curiosos.

De repente soltou uma exclamação, e apertou com força
o braço de seu amigo.

– O que é? perguntou este.

– Nada mais a propósito! Ainda há pouco falamos dela, e ei-la!

– Onde? exclamou Carlos estremecendo.

– Não a viste entrar na loja do Wallerstein?

– Não; não vi ninguém.

– Pois verás.

Com efeito, uma moça vestida de preto, acompanhada por uma senhora
já idosa, havia entrado na loja do Wallerstein.

A velha nada tinha de notável e que a distinguisse de uma outra qualquer
velha; era uma boa senhora que fora jovem e bonita, e que não sabia
o que fazer do tempo que outrora levava a enfeitar-se.

A moça, porém, era um tipo de beleza e de elegância.
As linhas do seu rosto tinham uma pureza admirável.

Nos seus olhos negros e brilhantes radiava o espírito, esse espírito
da mulher cheio de vivacidade e de malícia. Nos seus lábios
mimosos brincava um sorriso divino e fascinador.

Os cabelos castanhos, de reflexos dourados, coroavam sua fronte como um diadema,
do qual se escapavam dois anéis, que deslizavam pelo seu colo soberbo.

Trajava um vestido de cetim preto, simples e elegante; não tinha um
ornato, nem uma flor, nem outro enfeite, que não fosse dessa cor triste,
que ela parecia amar.

Essa extrema simplicidade era o maior realce da sua beleza deslumbrante.
Uma jóia, uma flor, um laço de fita, em vez de enfeitá-la,
ocultariam uma das mil graças e mil perfeições que a
natureza se esmerara em criar nela.

Os dois moços pararam à porta do Wallerstein; enquanto seu
amigo olhava a moça com o desplante dos homens do tom, Carlos, através
da vidraça, contemplava com um sentimento inexprimível aquela
graciosa aparição.

Os caixeiros do Wallerstein desdobraram sobre o balcão todas as suas
mais ricas e mais delicadas novidades, todas as invenções do
luxo parisiense, verdadeiro demônio tentador das mulheres.

A cada um desses objetos de gosto, a cada uma das mimosas fantasias da moda,
ela sorria com desdém e nem sequer as tocava com a sua alva mãozinha,
delicada como a de uma menina.

As fascinações do luxo, as bonitas palavras dos caixeiros e
as instâncias de sua mãe, tudo foi baldado. Ela recusou tudo,
e contentou-se com um simples vestido preto e algumas rendas da mesma cor,
como se estivesse de luto, ou se preparasse para as festas da Semana Santa.

– Assim, depois de cinco anos, disse-lhe sua mãe em voz baixa, persistes
em conservar este luto constante.

A Viuvinha sorriu.

– Não é luto, minha mãe: é gosto. Tenho paixão
por esta cor; parece-me que ela veste melhor que as outras.

– Não digas isto, Carolina; pois o azul desta seda não te assenta
perfeitamente?

– Já gostei do azul; hoje o aborreço! É uma cor sem
significação, uma cor morta.

– É o preto.

– Oh! O preto é alegre!

– Alegre! exclamou um caixeiro, admirado dessa opinião original em
matéria de cor.

– Eu pelo menos o acho, replicou a moça tomando de repente um ar sério:
é a cor que me sorri.

Esta conversa durou ainda alguns minutos.

Poucos instantes depois, as duas senhoras saíram e o carro que as
esperava à porta desapareceu no fim da rua.

Carlos despediu-se do seu companheiro.

– Então amanhã sem falta!

– Ah! Ainda insistes no negócio?

– Mais do que nunca!

– Bem. Já que assim o queres…

– Posso contar contigo?

– Como sempre.

– Obrigado.

Henrique continuou a arruar, fazendo horas para o jantar.

Carlos dobrou a Rua dos Ourives e dirigiu-se à casa. Morava em um
pequeno sótão de segundo andar no fim da Rua da Misericórdia.

XII

A razão por que o moço, saindo da Rua Direita, dera uma grande
volta para recolher-se não fora unicamente o desejo de acompanhar Henrique.
Havia outro motivo mais sério.

Ele ocultava a sua morada a todos; o que aliás era-lhe fácil,
porque depois de dois anos que estava no Rio de Janeiro não tinha amigos,
e bem poucos eram os seus conhecidos.

Havia muito de inglês no seu trato. Quando fazia alguma transação
ou discutia um negócio, era de extrema polidez. Concluída a
operação, cortejava o negociante e não o conhecia mais.
O homem tornava-se para ele uma obrigação, um título,
uma letra de câmbio.

De todas as pessoas que diariamente encontrava na praça, Henrique
era o único com quem entretinha relações, e essas mesmas
não passavam de simples cortesia.

Entrando no seu aposento, Carlos fechou a porta de novo; e, sentando-se em
um tamborete que havia perto da carteira, escondeu a fronte nas mãos
com um gesto de desespero.

O aposento era de uma pobreza e nudez que pouco distava da miséria.
Entre as quatro paredes que compreendiam o espaço de uma braça
esclarecido por uma janela estreita, via-se a cama de lona pobremente vestida,
uma mala de viagem, a carteira e o tamborete.

Nos umbrais da porta, dois ganchos que serviam de cabide. Na janela, cuja
soleira fazia às vezes de lavatório, estavam o jarro e a bacia
de louça branca, uma bilha d’água, e um copo com um ramo de
flores murchas. Junto à cama, em uma cantoneira, um castiçal
com uma vela e uma caixa de fósforos. Sobre a carteira, papéis
e livros de escrituração mercantil.

Era toda a mobília.

Quando, passado um instante, o moço ergueu a cabeça, tinha
o rosto banhado de lágrimas.

– Era um crime, murmurou ele, mas era um grande alívio!… Coragem!

Enxugou as lágrimas, e, recobrando a calma, abriu a carteira e dispôs-se
a trabalhar. Tirou do bolso um maço de títulos e bilhetes no
valor de muitos contos de réis, contou-os e escondeu tudo em uma gaveta
de segredo; depois tomou nos seus livros notas das transações
efetuadas naquele dia.

Fora um dia feliz.

Tinha realizado um lucro líquido de 6:000$000. Não havia engano;
os algarismos ali estavam para demonstrá-lo: os valores que guardava
eram a prova.

Mas essa pobreza, essa miséria que o rodeava, e que revelava uma existência
penosa, falta de todos os cômodos, sujeita a duras necessidades?

Seria um avarento?…

Era um homem arrependido que cumpria a penitência do trabalho, depois
de ter gasto o seu tempo e os seus haveres em loucuras e desvarios. Era um
filho da riqueza, que, tendo esbanjado a sua fortuna, comprava, com sacrifício
do seu bem-estar, o direito de poder realizar uma promessa sagrada.

Se era avareza, pois, era a avareza sublime da honra e da probidade; era
abnegação nobre do presente para remir a culpa do passado. Haverá
moralista, ainda o mais severo, que condene semelhante avareza? Haverá
homem de coração, que não admire essa punição
imposta pela consciência ao corpo rebelde e aos instintos materiais
que arrastam ao vício?

Terminadas as suas notas, esse homem, que acabava de guardar uma soma avultada,
que naquele mesmo dia tinha ganho 6:000$000 líquidos, abriu uma gaveta,
tirou quatro moedas de cobre, meteu-as no bolso do colete e dispôs-se
a sair.

Aquelas quatro moedas de cobre eram um segredo da expiação
corajosa, da miséria voluntária a que se condenara um moço
que sentia a sede do gozo e tinha ao alcance da mão com que satisfazer
por um mês, talvez por um ano, todos os caprichos de sua imaginação.

Aquelas quatro moedas de cobre eram o preço do seu jantar; eram a
taxa fixa e invariável da sua segunda refeição diária;
eram a esmola que a sua razão atirava ao corpo para satisfação
da necessidade indeclinável da alimentação.

Os ricos e mesmo os abastados vão admirar-se, por certo, de que um
homem pudesse jantar no Rio de Janeiro, naquele tempo, com 160rs., ainda quando
esse homem fosse um escravo ou um mendigo. Mas eles ignoram talvez, como a
senhora, minha prima, a existência dessas tascas negras que se encontram
em algumas ruas da cidade, e principalmente nos bairros da Prainha e Misericórdia.

Nojenta caricatura dos hotéis e das antigas estalagens, essas locandas
descobriram o meio de preparar e vender comida pelo preço ínfimo
que pode pagar a classe baixa.

Quando Carlos chegou ao Rio de Janeiro, uma das coisas de que primeiro tratou
de informar-se, foi do modo de subsistir o mais barato possível. Perguntou
ao preto de ganho que conduzira os seus trastes, quanto pagava para jantar.
O preto dispendia 80rs. O moço decidiu que não excederia do
dobro. Era o mais que lhe permitia a diferença do homem livre ao escravo.

Talvez ache a coragem desse moço inverossímil, minha prima.
É possível.

Compreende-se e admira-se o valor do soldado; mas esse heroísmo inglório,
esse martírio obscuro, parece exceder as forças do homem.

Mas eu não escrevo um romance, conto-lhe uma história. A verdade
dispensa a verossimilhança.

Acompanhemos Carlos, que desce a escada íngreme do sobrado e ganha
a rua em busca da tasca onde costuma jantar.

Passando diante de uma porta, um mendigo cego dirigiu-lhe essa cantilena
fanhosa que se ouve à noite no saguão e vizinhança dos
teatros. O moço examinou o mendigo e, reconhecendo que era realmente
cego e incapaz de trabalhar, tirou do bolso uma das moedas de cobre e entrou
em uma venda para trocá-la.

O caixeiro da taverna sorriu-se com desdém desse homem que trocava
uma moeda de 40rs., e atirou-lhe com arrogância o troco sobre o balcão.
O pobre, reconhecendo que a esmola era de um vintém, guardou a sua
ladainha de agradecimentos para uma caridade mais generosa.

Entretanto o caixeiro ignorava que aquela mão que agora trocava uma
moeda de cobre para dar uma esmola, já atirara loucamente pela janela
montões de ouro e de bilhetes do tesouro. O pobre não sabia
que essa ridícula quantia que recebia era uma parte do jantar daquele
que a dava, e que nesse dia talvez o mendigo tivesse melhor refeição
do que o homem a quem pedira a esmola.

O moço recebeu a afronta do caixeiro e a ingratidão do pobre
com resignação evangélica, e continuou o seu caminho.
Seguiu por um desses becos escuros que da Rua da Misericórdia se dirigem
para as bandas do mar, cortando um dédalo de ruelas e travessas.

No meio desse beco via-se uma casa com uma janela muito larga e uma porta
muito estreita.

A vidraça inferior estava pintada de uma cor que outrora fora branca,
e que se tornara acafelada. A vidraça superior servia de tabuleta.
Liam-se em grossas letras, por baixo de um borrão de tinta informe
e com pretensões a representar uma ave, estas palavras: "Ao Garnizé".

O moço lançou um olhar à direita e à esquerda
sobre os passantes, e, vendo que ninguém se ocupava com ele, entrou
furtivamente na tasca.

XIII

O interior do edifício correspondia dignamente à sua aparência.

A sala, se assim se pode chamar um espaço fechado entre quatro paredes
negras, estava ocupada por algumas velhas mesas de pinho.

Cerca de oito ou dez pessoas enchiam o pequeno aposento: eram pela maior
parte marujos, soldados ou carroceiros que jantavam.

Alguns tomavam a sua refeição agrupados aos dois e três
sobre as mesas; outros comiam mesmo de pé, ou fumavam e conversavam
em um tom que faria corar o próprio Santo Agostinho antes da confissão.

Uma atmosfera espessa, impregnada de vapores alcoólicos e fumo de
cigarro pesava sobre essas cabeças, e dava àqueles rostos um
aspecto sinistro.

A luz que coava pelos vidros embaciados da janela mal esclarecia o aposento,
e apenas servia para mostrar a falta de asseio e de ordem que reinava nesse
couto do vício e da miséria.

No fundo, pela fresta de uma porta mal cerrada, aparecia de vez em quando
a cabeça de uma mulher de 50 anos, que interrogava com os olhos os
fregueses, e ouvia o que eles pediam.

Era a dona, a servente e ao mesmo tempo cozinheira dessa tasca imunda.

A cada pedido, a cabeça, coberta com uma espécie de turbante
feito de um lenço de tabaco, retirava-se, e daí a pouco aparecia
um braço descarnado, que estendia ao freguês algum prato de louça
azul cheio de comida, ou alguma garrafa de infusão de campeche com
o nome de vinho.

Foi nesta sala que entrou Carlos.

Mas não entrou só; porque, no momento em que ia transpor a
soleira, um homem que havia mais de meia hora passeava na calçada defronte
da tasca adiantou-se e deitou a mão sobre o ombro do moço.

Carlos voltou-se admirado dessa liberdade; e ainda mais admirado ficou, reconhecendo
na pessoa que o tratava com tanta familiaridade o nosso antigo conhecido,
o Sr. Almeida.

O velho negociante não tinha mudado; conservava ainda a força
e o vigor que apesar da idade animava o seu corpo seco e magro; no gesto a
mesma agilidade; no olhar o mesmo brilho; na cabeça encanecida o mesmo
porte firme e direito.

– Está espantado de ver-me aqui? disse o Sr. Almeida sorrindo.

– Confesso que não esperava, respondeu o moço, confuso e perturbado.

– O mal pode ocultar-se; o bem se revela sempre; acrescentou o velho em tom
sentencioso.

– Que quer dizer?

– Entremos.

– Para quê?

– O senhor não ia entrar?

Carlos recuou insensivelmente da porta, e, querendo esconder do velho negociante
o seu nobre sacrifício, fez um esforço, e balbuciou uma mentira:

– Passava… por acaso… Vou ao Largo do Moura…

O Sr. Almeida fitou os seus olhos pequenos, mas vivos, no rosto do moço,
que não pôde deixar de corar; e, apertando-lhe a mão com
uma expressão significativa, disse-lhe :

– Sei tudo!

– Como? perguntou Carlos admirado ao último ponto.

– É aqui que costuma jantar. E por isso adivinho qual tem sido a sua
existência durante estes cinco anos. Impôs-se a si mesmo o castigo
da sua antiga prodigalidade; puniu o luxo de outrora com a miséria
de hoje. É nobre, mas é exagerado

– Não, senhor; é justo. O que possuo atualmente, o que adquiro
com o meu trabalho, não me pertence; é um depósito, que
Deus me confia, e que deve servir não só para pagar as dívidas
de meu pai, como também a dívida sagrada que contraí
para com uma moça inocente. Gastar esse dinheiro seria roubar, Sr.
Almeida.

– Bem; não argumentemos sobre isto; não se discute um generoso
sacrifício: admira-se. Venha jantar comigo.

– Não posso, respondeu o moço.

– Por quê?

– Não aceito um favor que não posso retribuir.

– Quem faz o favor é aquele que aceita e não o que oferece.
Demais, eu pobre, nunca me envergonhei de sentar-me à mesa de seu pai
rico, acrescentou o velho com severidade.

– Desculpe!

O velho tomou o braço de Carlos, e dirigiu-se com ele ao Hotel Pharoux,
que naquele tempo era um dos melhores que havia no Rio de Janeiro; ainda não
estava transformado em uma casa de banhos e um ninho de dançarinas.

Poucos instantes depois, estavam os dois companheiros sentados a uma das
mesas do salão; e o Sr. Almeida, com um movimento muito pronunciado
de impaciência, instava para que o moço concordasse na escolha
do jantar que ele havia feito à vista da data.

Carlos recusava com excessiva polidez os pratos esquisitos que o velho lembrava,
e a todas as suas instâncias respondia sorrindo:

– Não quero adquirir maus hábitos, Sr. Almeida.

O velho reconheceu que era inútil insistir.

– Então o que quer jantar?

Carlos escolheu dois pratos.

– Somente?

– Somente.

– Não me meto mais a teimar com o senhor, respondeu o velho olhando
de encontro à luz o rubi líquido de um cálice de excelente
vinho do Porto.

Serviu-se o jantar.

O Sr. Almeida comeu com a consciência de um homem que paga bem e que
não lastima o dinheiro gasto nos objetos necessários à
vida. Satisfez o estômago e deixou apenas esse pequeno vácuo,
tão difícil de encher, porque só admite a flor de um
manjar saboroso ou de uma iguaria delicada.

Então, bebendo o seu último cálice de vinho do Porto,
passando na boca as pontas do guardanapo, cruzou os braços sobre a
mesa com ar de quem dispunha a conversar.

– Pode acender o seu charuto, não faça cerimônia.

– Já não fumo, respondeu Carlos simplesmente.

– O senhor já não é o mesmo homem. Não come,
não bebe, não fuma; parece um velho da minha idade.

– Há uma coisa que envelhece mais do que a idade, Sr. Almeida: é
a desgraça.

E além disto o senhor tem razão; não sou, nem posso
ser o mesmo homem; já morri uma vez, acrescentou em voz baixa.

– Mas há de ressuscitar.

– É essa a esperança que me alimenta.

– E como vai esse negócio? perguntou o velho com interesse.

– Tem-me custado recolher as letras de meu pai; já paguei 60:000$,
e amanhã devo pagar 5:000$; seis letras que me faltam não sei
onde se acham. Se eu pudesse anunciar… Mas, na minha posição,
receio comprometer-me.

– Pensou bem. Porém só restam por pagar essas seis letras?

– Unicamente.

– Quer saber então onde elas estão?

– É o maior favor que me pode fazer.

– Com uma condição.

– Qual?

– Que há de ouvir-me como se fosse seu pai quem lhe falasse, disse
o velho, estendendo a mão.

Por toda a resposta o moço apertou, com efusão e reconhecimento,
a mão leal do honrado negociante.

– Essas seis letras, disse o Sr. Almeida, estão em meu poder.

– Ah!

– Lembra-se do que lhe disse, há cinco anos, na véspera do
seu casamento?

– Lembro-me de tudo.

– Era minha intenção salvar a firma de meu melhor amigo…
de seu pai. Mas a sua morte suposta impossibilitou-me. O passivo da casa excedia
as minhas forças. Os credores reuniram-se e resolveram fazer declarar
a falência.

– De um homem morto.

– É verdade. Não o pude evitar. O mais que consegui foi abafar
este negócio, comprando a alguns credores mais insofridos as suas dívidas.
Eis como essas letras vieram parar à minha mão.

– Obrigado, Sr. Almeida, disse o moço comovido, ainda lhe devo mais
esse sacrifício.

– Está enganado, respondeu o velho querendo dar à sua voz a
aspereza habitual; não fiz sacrifício; fiz um bom negócio;
comprei as letras com um rebate de 50%, ganho o dobro.

– Mas quando as comprou não tinha esperança de ser pago.

– Tinha confiança na sua honra e na sua coragem.

– E se eu não voltasse

– Era uma transação malograda; a fortuna do negociante está
sujeita a estes riscos.

– Felizmente, Deus ajudou-me e quis que um dia pudesse agradecer-lhe sem
corar, esse benefício. O que tinha sido da sua parte uma dáaacute;diva
generosa, tornou-se um empréstimo que devo pagar-lhe hoje mesmo.

– Não consinto; prometeu-me ouvir como a seu pai; eis o que ele lhe
ordena pela minha voz. – Todas as suas dívidas acham-se pagas; a sua
honra está salva; é tempo de voltar ao mundo.

– Mas as seis letras que estão em sua mão? interrompeu o moço.

– Aqui as tem, disse o Sr. Almeida entregando-lhe um pequeno maço.

– Devo-lhe então…

– Deve o que dei por elas; e me pagará quando lhe for possível.

– Não sei quanto lhe custaram esses títulos; sei que eles representam
um valor emprestado a meu pai. O senhor podia perder; é justo que lucre.

– Bem; faça o que quiser.

– Quanto ao pagamento, posso realizá-lo imediatamente; já o
teria feito se há mais tempo soubesse que esses títulos lhe
pertenciam.

– Eu ocultei-os de propósito. Quando chegou dos Estados Unidos e me
comunicou o que tinha feito e o que pretendia fazer, resolvi, para facilitar-lhe
o cumprimento de seu dever, deixar que o senhor pagasse primeiro os estranhos.

– Agora, porém, essa dificuldade desapareceu; vamos à minha
casa.

– Para quê?

– Para receber o que lhe devo.

– Não tratemos disso agora.

– Escute, Sr. Almeida; depois de cinco anos de provanças e misérias,
não sei o que Deus me reserva. Mas, se ainda há neste mundo
felicidade para mim, antes de aceitá-la é preciso que eu tenha
reparado todos os meus erros; é preciso que eu me sinta purificado
pela desgraça. Uma dívida, embora o credor seja um amigo, se
tornaria um remorso. Tenho dinheiro suficiente para pagá-la.

– E que lhe restará?

– Um nome honrado, e a esperança.

O Sr. Almeida resignou-se e acompanhou Carlos até à sua casa.

Aí, o moço abriu a carteira, e, tirando os valores que há
pouco havia guardado, entregou ao negociante a quantia de 30:000$ representada
pelo algarismo das seis letras.

– Já lhe disse que só me deve 15:000$, disse o velho recusando
receber.

– Devo-lhe o valor integral destes títulos; se a firma de meu pai
não inspirou confiança aos outros, para seu filho ela não
sofre desconto.

Enquanto o Sr. Almeida, mordendo os beiços, guardava as notas do banco
e os bilhetes do tesouro, Carlos abria uma pequena carteira preta, e, depois
de beijar a firma de seu pai escrita no aceite, fechou com as outras essas
últimas letras que acabava de pagar.

– Aqui está a minha fortuna, disse, sorrindo com altivez.

– Tem razão, respondeu o velho; porque aí está o mais
nobre exemplo de honestidade.

– E também o mais belo testemunho de uma verdadeira amizade.

– Jorge!… exclamou o negociante, comovendo-se.

Alguns instantes depois, o Sr. Almeida despediu-se do moço.

– Escuso recomendar-lhe uma coisa, disse Jorge ao negociante.

– O quê?

– A continuação do segredo. Nem uma palavra!… Quando for
tempo, eu mesmo o revelarei. Ainda não sou Jorge.

– Que falta?

– Depois lhe direi.

E separaram-se.

XIV

As últimas palavras do velho negociante esclareceram um mistério
que já se achava quase desvanecido.

Jorge era o verdadeiro nome desse moço que morrera para o mundo, e
que durante cinco anos vivera como um estranho sem família, sem parentes,
sem amigos, ou como uma sombra errante condenada à expiação
das suas faltas.

A página em que eu devia ter escrito as circunstâncias desse
fato ficou em branco, minha prima; agora, porém, podemos lê-la
claramente no espírito de Jorge, que, sentado à sua carteira,
triste e pensativo, repassa na memória esses anos de sua vida, desde
a noite do seu casamento.

Acompanhando o moço no seu sinistro passeio às obras da Santa
Casa de Misericórdia, o vimos sumir-se por entre os cômoros de
areia que se elevavam por toda essa vasta quadra em que está hoje assentado
o Hospital de Santa Luzia.

O vulto que o seguia de perto, embuçado em uma capa e tomando todas
as precauções para não ser conhecido nem pressentido
pelo moço, desapareceu como ele nas escavações do terreno.

Jorge, como todo homem que depois de longa reflexão toma uma resolução
firme e inabalável, estava ansioso por chegar à peripécia
desse drama terrível; por isso parou no primeiro lugar que lhe pareceu
favorável ao seu desígnio.

Mas um espetáculo ainda mais horrível do que o seu pensamento
apresentou-se a seus olhos; viu a realização dessa idéia
louca que desde a véspera dominava o seu espírito.

Um infeliz, levado pela mesma vertigem, o tinha precedido; seu corpo jazia
sobre a areia na mesma posição em que o surpreendera a morte
instantânea, meio recostado sobre o declive do terreno.

A cabeça era uma coisa informe; o tiro fora carregado com água
para tornar a explosão surda e mais violenta; as feições
haviam desaparecido, e não deixavam reconhecer o desgraçado.

Naturalmente quis ocultar a sua morte, para poupar à sua família
o escândalo e a impressão dolorosa que sempre deixam esses atos
de desespero.

Aquele espetáculo horrorizou o moço: em face da realidade seu
espírito recuou; houve mesmo um instante em que se espantou da sua
loucura; e voltou o rosto para não ver esse cadáver, que parecia
escarnecer dele.

Mas a lembrança do que o esperava, se voltasse, triunfou; julgou-se
irremissivelmente condenado; e chamou covardia o grito extremo da razão
que sucumbia.

Tirou as suas pistolas, e armou-as sorrindo tristemente; depois ajoelhou
e começou uma prece.

Desvario incompreensível da criatura que, ofendendo a Deus, ora a
esse mesmo Deus! Demência extravagante do homem que pede perdão
para o crime que vai cometer!

Quando o moço, terminada a sua prece, erguia as duas pistolas e ia
aplicar os lábios à boca da arma assassina, o vulto que o tinha
acompanhado, e que se achava nesse momento de pé, atrás dele,
com um movimento rápido paralisou-lhe os braços.

Jorge ergueu-se precipitadamente, e achou-se em face do homem que se opusera
à sua vontade de uma maneira tão brusca.

Era o Sr. Almeida.

O velho, com a sua perspicácia e com os exemplos de tantos fatos semelhantes
em uma época em que dominava a vertigem do suicídio, adivinhara
as intenções do moço.

Aquela pronta resignação, aquela espécie de contradição
entre os nobres sentimentos de Jorge e a calma que ele afetava, deram-lhe
uma quase certeza do que ele planejava.

Não quis interrogá-lo, convencido que lhe negaria. Resolveu
espiá-lo durante aquela noite, até que pudesse avisar a Carolina
do que se passava, a fim de que ela defendesse pelo amor uma vida ameaçada
por loucos prejuízos.

Sua expectativa realizou-se; recostado no muro da chácara que ficava
fronteira às janelas do quarto da noiva, acompanhou por entre as cortinas
toda a cena noturna que descrevi; conheceu a agitação do moço,
viu-o deitar algumas gotas de ópio no cálice de licor que deu
à sua mulher; não perdeu nem um incidente, por menor que fosse.

Um instante, enquanto o moço meditava, com os olhos no mostrador do
seu relógio, o Sr. Almeida receou que ele quisesse fazer do quarto
da noiva um aposento mortuário; mas respirou quando o viu saltar na
rua.

Seguiu-o, e, pela direção adivinhou o desenlace da cena de
que fora espectador; preparou-se, pois, para representar também o seu
papel; e por isso achava-se em face de Jorge no momento supremo em que a sua
intervenção se tornara necessária.

O primeiro sentimento que se apoderou do moço, vendo o Sr. Almeida,
foi o do pejo; teve vergonha do que praticava e pareceu-lhe fraqueza aquilo
que há pouco julgava um ato de heroísmo.

Logo depois o despeito e o orgulho sufocaram esse bom impulso.

– Que veio fazer aqui? perguntou com arrogância.

– Evitar um crime, respondeu o velho com severidade.

– Enganou-se, disse Jorge secamente.

– Não me enganei, porque estou certo de que não há homem
que depois de escutar a razão cometa semelhante loucura. Qual é
o benefício que lhe pode dar a morte?

– Salvar-me da desonra.

– Uma desonra não lava outra desonra. O homem que atenta contra sua
vida, é fraco e covarde…

– Sr. Almeida!

– É covarde, sim! Porque a verdadeira coragem não sucumbe com
um revés; ao contrário luta, e acaba por vencer. Matando-se,
o senhor rouba os seus credores, porque tira-lhes a última garantia
que eles ainda possuem, a vida de um homem.

– E que vale esta vida?

– Vale o trabalho.

– E o sofrimento!

– É verdade; mas não temos direito de sacrificar a um pensamento
egoísta aquilo, que não nos pertence. Se a sua existência
está condenada ao sofrimento, deve aceitar essa punição
que Deus lhe impõe, e não revoltar-se contra ela.

Jorge abaixou a cabeça; não sabia o que responder àquela
lógica inflexível.

– Escute, disse o velho depois de um momento de reflexão, o que teme
o senhor dessa desonra que vai recair sobre a sua vida? Teme ver-se condenado
a sofrer o desprezo do mundo, e sentir o escárnio e o insulto sem poder
erguer a fronte e repeli-lo; teme enfim que a sua existência se torne
um suplício de vergonha, de remorso e de humilhação!
não é isto?!

– Sim! balbuciou o moço.

– Pois não é preciso cometer um crime para livrar-se dessa
tortura; morra para o mundo, morra para todos; porém viva para Deus,
e para salvar a sua honra e expiar o seu passado.

– Que quer dizer? perguntou o moço admirado.

– Ali está o corpo de um infeliz; é um cadáver sem nome,
sem sinais que digam o que ele foi; deite sobre ele uma carta, desapareça,
e daqui a uma hora o senhor terá deixado de existir.

– E depois?

– Depois, como um desconhecido, como um estranho que entra no mundo tendo
a lição da experiência e a alma provada pela desgraça,
procure remir as suas culpas. Um dia talvez possa reviver e encontrar a felicidade.

Jorge refletiu:

– Tem razão, disse ele.

Pouco depois ouviu-se um tiro; os trabalhadores das obras que iam chegando
encontraram um cadáver mutilado e a carta de Jorge; ao mesmo tempo
o moço e o Sr. Almeida ganhavam pelo lado oposto a Praia de Santa Luzia.

Passava um bote a pouca distância de terra; o velho acenou-lhe que
se aproximasse.

O acaso nos favorece, disse ao moço; sai amanhã para os Estados
Unidos um navio que me foi consignado; é melhor embarcar agora, para
não excitar desconfianças; hoje mesmo lhe tirarei um passaporte.

O bote aproximou-se; o embarque nestas paragens é incômodo;
mas a situação não admitia que se atendesse a isto.

Eram nove horas quando o Sr. Almeida, tendo deixado Jorge na barca americana
e tendo tomado um carro na primeira cocheira, chegou à casa de D. Maria.

A boa senhora recebeu-o com um sorriso; estava sentada na sala próxima
ao quarto de sua filha e esperava tranqüilamente que seus filhos acordassem.

O velho, vendo aquela serena felicidade, hesitou; não teve ânimo
de enlutar esse coração de mãe.

Nisto a porta do quarto abriu-se, e Carolina, branca como a cambraia que
vestia, apareceu na porta, tendo na mão a carta de Jorge.

A mãe soltou um grito; a filha não podia falar; e assim passou
um momento de tortura, em que uma dessas dores procurava debalde adivinhar
a desgraça, e a outra se esforçava por achar uma palavra que
a revelasse.

No dia seguinte, Jorge partia para os Estados Unidos, e Carolina trocava
suas vestes de noiva por esse vestido preto que nunca mais deixou.

Seria longo descrever a vida desse moço, morto para o mundo e existindo
contudo para sofrer; durante cinco anos alimentou-se de recordações
e de uma esperança que lhe dava forças e coragem para lutar.

O amor de Carolina, talvez mais do que o sentimento da honra, o animava;
trabalhou com uma constância e um ardor infatigáveis, e ganhou
para pagar todas as dívidas de seu pai.

Logo que se achou possuidor de uma soma avultada, Jorge preferiu vir acabar
a sua expiação no seu país, onde ao menos se sentiria
perto daqueles que amava.

De fato chegou ao Rio de Janeiro com o nome de Carlos Freeland; dava-se por
estrangeiro; alguns, porém, julgavam que nascera no Brasil e que aí
vivera muito tempo, mas não se recordavam de o ter visto.

A desgraça tinha mudado completamente a sua fisionomia; do moço
tinha feito um homem grave; além disso, a barba crescida ocultava a
beleza dos seus traços.

O seu primeiro cuidado foi procurar o Sr. Almeida e pedir-lhe que o auxiliasse
no resgate das letras, que devia ser feito de modo que ninguém o suspeitasse.
O que fez o velho negociante, já o sabe.

Como disse, Jorge ocultava sua vida de todos e do próprio velho; sofria
corajosamente a miséria a que se condenara, mas não queria que
ela tivesse uma testemunha.

O Sr. Almeida, porém, surpreendera o segredo.

XV

Vou levá-la, D…, à mesma casinha do Morro de Santa Teresa
onde começou esta pequena história.

São dez horas da noite. Penetremos no interior.

D. Maria acabava de recolher-se, depois de ter beijado sua filha; toda a
casa estava em silêncio; apenas havia luz no aposento de Carolina.

Esse aposento era a mesma câmara nupcial, onde cinco anos antes aquela
inocente menina adormecera noiva para acordar viúva, no dia seguinte
ao do seu casamento.

Nada aí tinha mudado, a não ser o coração humano.

Cinco anos que passaram por esse berço de amor, transformado de repente
em um retiro de saudade, não haviam alterado nem sequer a colocação
de um traste ou a cor de um ornato da sala.

Apenas o tempo empalidecera as decorações, roubando-lhes a
pureza e o brilho das coisas novas e virgens; e a desgraça enlutara
a rola, que se carpia viúva no seu ninho solitário.

Carolina estava sentada na conversadeira onde na primeira e última
noite de seu casamento recebera seu marido, quando este, trêmulo e pálido,
se animara a transpor o limiar desse aposento, sagrado para ela como um templo.

Justamente naquele momento, esse quadro se retraçava na memória
da menina com uma força de reminiscência tal que fazia reviver
o passado. O seu espírito, depois de saturar-se do amargo dessas recordações,
desfiava rapidamente a teia de sua existência desde aquela época.

Quer saber naturalmente o segredo dessa vida, não é, minha
prima?

Aqui o tem.

Nos primeiros dias que se seguiram à catástrofe, Carolina ficou
sepultada nessa letargia da dor, espécie de idiotismo pungente, em
que se sofre, mas sem consciência do sofrimento.

D. Maria e o Sr. Almeida, que a desgraça tinha feito amigo dedicado
da família, tentaram debalde arrancar a moça a esse torpor e
sonolência moral. O golpe fora terrível; aquela alma inocente
e virgem, bafejada pela felicidade, sentira tão forte comoção
que perdera a sensibilidade.

O tempo dissipou esse letargo. A consciência acordou e mediu todo o
alcance da perda irreparável. Sentiu então a dor em toda a sua
plenitude, e à profunda apatia sucedeu uma irritação
violenta. O desespero penetrou muitas vezes e assolou esse coração
jovem.

Mas a dor, a enfermidade da alma, como a febre, a enfermidade do corpo, quando
não mata nos seus acessos, acalma-se. O sofrimento em Carolina, depois
de a ter torturado muito, passou do estado agudo ao estado crônico.

Vieram então as lágrimas, as tristes e longas meditações,
em que o espírito evoca uma e mil vezes a lembrança da desgraça,
como uma tenta que mede a profundeza da chaga, em que se acha um prazer acerbo
no magoar das feridas que se abrem de novo.

A pouco e pouco o que havia de amargo nessas recordações se
foi adoçando: as lágrimas correram mais suaves; o seio, que
o soluço arquejava, arfou brandamente a suspirar. E, como no céu
pardo de uma noite escura surge uma estrela que doura o azul, a saudade nasceu
n’alma de Carolina e derramou a sua doce luz sobre aquela tristeza.

Tinha decorrido um ano.

Começou a viver dentro do seu coração, com as reminiscências
do seu amor, como uma sombra que sentava-se a seu lado, que lhe murmurava
ao ouvido palavras sempre repetidas e sempre novas. Sonhava no passado; diferente
nisso das outras moças, que sonham no futuro.

Mas um coração de 15 anos é um tirano a que não
há resistir; e Carolina não contara com ele.

Quando uma planta delicada nasce entre a sarça, muitas vezes o fogo
queima-lhe a rama e o hastil; ela desaparece, mas não morre, que a
raiz vive na terra; e às primeiras águas brota e pulula com
toda a força de vegetação que incubara no tempo de sua
mutilação.

O coração de Carolina fez como a planta. Apenas aberto, a desgraça
o cerrara; mas veio a calma e ele tornou-se a abrir. A princípio bastou-lhe
a saudade para enchê-lo; depois desejou mais, desejou tudo. Tinha sede
de amor; e não se ama uma sombra.

O mundo ao longe corria às vezes o pano a uma das suas brilhantes
cenas e mostrava à menina refugiada no seu retiro e na sua saudade
a auréola que cinge a fronte das mulheres belas; auréola que
aos outros parece brilho de luz, mas que realmente é para aquelas que
a trazem, chama de fogo.

Carolina resistia envolvendo-se na branca mortalha de seu primeiro amor;
mas a tela fez-se transparente, e não lhe ocultou mais o que ela não
queria ver. Sentiu-se arrastar e teve medo.

Teve medo de esquecer.

Não descreverei, minha prima, a luta prolongada e tenaz que travaram
n’alma dessa menina a saudade e a imaginação. A senhora, se
algum dia amou, deve compreender a luta e o resultado dela. O mundo venceu.
Carolina tinha 15 anos e não havia libado do amor senão perfumes.

Mas, ainda vencida, ela defendeu contra a sociedade as suas recordações,
que se tornaram então um culto do passado. Entrou nos salões,
porém com esse vestido preto, que devia lembrar-lhe a todo o momento
a fatalidade que pesara sobre a sua existência.

Excitou a admiração geral pela sua beleza. Não houve
talento, posição e riqueza que se não rojasse a seus
pés. Sabiam vagamente a sua história; suspeitavam a virgindade
sob aquela viuvez, e se lhe dava um toque de romantismo que inflamava a imaginação
dos moços à moda.

Chamavam-na a Viuvinha.

A senhora deve tê-la encontrado muitas vezes, minha prima, no tempo
em que começou a freqüentar a sociedade. Estava ela então
no brilho de sua beleza. Na menina gentil e graciosa encarnara a natureza
a mulher com todo o luxo das formas elegantes, com toda a pureza das linhas
harmoniosas.

A influência que o vestido preto devia exercer sobre essa organização
ardente revelou-se logo. O vestido preto era o símbolo de uma decepção
cruel; era a cinza de seu primeiro amor; era uma relíquia sagrada que
respeitaria sempre. Enquanto ele a cobrisse parecia-lhe que nenhuma afeição
penetraria o seu coração e iria profanar o santo culto que votava
à imagem de seu marido.

Era uma superstição; mas que alma não as tem quando
a crença ainda não a abandonou de todo!

Assim, Carolina tornou-se coquette; ouvia todos os protestos de amor, mas
para zombar deles; o seu espirito se interessava nessa comédia inocente
de sala; a sua malícia representava um papel engenhoso; mas o coração
foi mudo espectador.

Era quando voltava do baile, à noite na solidão do seu quarto,
que o coração vivia ainda no passado, no meio das tristes recordações
que despertavam quando o mundo dormia. Ali tudo lhe retraçava a noite
fatal; só havia de mais o luto, e de menos um vulto de homem, porque
a sua imagem, ela a tinha nos olhos e n’alma.

Dizem que não se pode brincar com o fogo sem queimar-se. O amor é
um fogo também, e Carolina, que brincava com ele, zombando dos seus
protestos, acabou por crer.

Ela se tinha preparado para combater o amor brilhante, ruidoso, fascinador,
dos salões; mas não se lembrou de que ele podia vir, modesto,
obscuro e misterioso, enlear-se às cismas melancólicas de sua
solidão.

Esta parte da vida de Carolina é um romance.

Havia 18 meses que, um dia, sua vista ao acordar fitou-se na janela que a
mucama acabava de abrir para despertá-la. Há um prazer indizível
em embeberem-se os olhos na luz de que durante uma noite estiveram privados.

Carolina gozava desse prazer, que nos faz parecer tudo novo e mais belo do
que na véspera, quando descobriu entre o vidro da janela um papel dobrado
como uma sobrecarta elegante. A curiosidade obrigou-a a erguer-se, levantar
a vidraça e tirar o objeto que lhe despertara a atenção.

Era realmente uma sobrecarta, fechada com este endereço: – A ela.
Não creio que haja mulher no mundo que não abrisse aquela sobrecarta
misteriosa. Carolina hesitou dez minutos, no que mostrou uma força
de vontade admirável, porque outras no seu lugar a abririam no fim
de dez segundos.

Não havia dentro nem carta, nem bilhete, nem uma frase, nem uma palavra;
mas uma flor só, uma saudade.

Este pequeno acontecimento ocupou mais o espírito da moça do
que os bailes, os teatros e os divertimentos que freqüentava. Pensou
no enigma esse dia e os seguintes, porque todas as manhãs achava a
mesma carta sem palavras e a mesma flor.

Quando isso tomou ares de uma perseguição amorosa, a moça
revoltou-se, e deixou de tirar as cartas, que ficaram no mesmo lugar onde
as tinham posto. Parecia que o autor dessa correspondência ou não
se importava com a indiferença que lhe mostrava Carolina ou contava
vencê-la à força de constância.

Uma vez Carolina, não sei como, teve uma idéia extravagante:
começou a sonhar acordada, e, como não há loucura que
não roce as asas pelo delírio da imaginação, acabou
por ver naquela flor misteriosa uma saudade que lhe enviava de além-túmulo
aquele que a amara.

Abraçado assim o romance da flor com o culto do seu passado, é
fácil adivinhar como ele não caminharia depressa ao desenlace:
por mais absurda e impossível que a razão lhe apresentasse semelhante
aliança, o coração a desejava, e ela se fez.

Uma noite resolveu conhecer quem era o seu desconhecido. Recostou-se por
dentro da vidraça, na penumbra da janela. O aposento não tinha
luz; era impossível vê-la de fora.

Esperou muito tempo.

Às duas horas sentiu ranger a chave na fechadura do portão,
que se abriu dando passagem a um vulto. A treva era espessa, Carolina mal
distinguia; mas pôde ver o vulto parar defronte de sua janela, ficar
imóvel tempo esquecido, e por fim deixar a carta e sumir-se.

Durante mais de meia hora a respiração ardente daquele homem
e o hálito suave daquela menina aqueceram uma e outra face do vidro
frágil que os separava.

Carolina, que defendera por mais de quatro anos a memória de seu marido,
que resistira a todas as seduções do mundo, sucumbiu à
força poderosa desse amor puro e desinteressado.

Carolina amou.

Amava uma sombra morta; começou a amar uma sombra viva.

XVI

O coração de Carolina sucumbira, mas não a sua vontade.

Amava e combatia esse amor, que julgava perfídia. Uma esposa virtuosa,
presa de alguma paixão adúltera, não sustenta uma luta
mais heróica do que a dessa menina contra o impulso ardente do seu
coração.

Esgotou todos os recursos. Às vezes procurava convencer-se da extravagância
dessa afeição. Dizia a si mesma que ela não conhecia
daquele homem senão o vulto. Sabia ao menos se era digno dos sentimentos
que inspirava?

Essa desconfiança a alimentava quinze dias, um mês; depois dissipava-se
como por encanto para voltar de novo.

Assim passou mais de um ano. Carolina tinha gasto e consumido toda a sua
força de resolução: combatia ainda, mas já não
esperava, nem desejava vencer.

Nestas disposições, uma noite se recostara à penumbra
da janela, para esperar, como de costume, a sombra que vinha depor a muda
homenagem do seu amor. O ar estava abafado; ergueu a vidraça, contando
fechá-la logo depois.

Mas o seu espírito enleou-se em uma das cismas em que agora vivia
de novo engolfada, e nas quais muita vez por uma bizarria de sua imaginação
o vulto desconhecido lhe aparecia com o rosto de Jorge.

Quando deu fé, o vulto estava defronte dela, parado na sombra. Vendo-se,
ambos fizeram o mesmo movimento para retirar-se e ambos ficaram imóveis,
olhando-se nas trevas. Passado um longo instante, Carolina afastou-se lentamente
da janela; o desconhecido deixou a flor e desapareceu.

Essas entrevistas mudas continuaram por muito tempo, até que em uma
delas o vulto saiu de sua imóvel contemplação, chegou-se
por baixo da janela, tomou a mão da moça e beijou-a. Carolina
estremeceu ao toque daquele beijo de fogo; quando lhe passou a vertigem que
a tomara de súbito, nada mais viu.

Decorreram muitas noites sem que o desconhecido aparecesse.

Foi então que Carolina reconheceu a força desse amor misterioso.

Recostada à janela, ansiosa, esperava pela hora da entrevista, e muitas
vezes a estrela d’alva, luzindo no horizonte, achou-a na mesma posição.
O primeiro raio da manhã apagava-lhe o último raio de esperança.

Partilhada entre a idéia de que seu amante a houvesse esquecido, ou
de que lhe tivesse sucedido alguma desgraça, sentia todas essas inquietações
que requintam a força da paixão.

Enfim o vulto apareceu de novo. Foi na véspera.

Carolina não pôde reprimir um grito do coração;
mas o desconhecido, insensível à sua demonstração,
contemplou-a por muito tempo; e beijando-lhe a mão como na primeira
vez deixou-lhe a flor envolta na carta.

Sentiu ele ou não a doce pressão da mão da moça?
O que sei é que voltou sem proferir uma palavra.

Abrindo a carta Carolina viu pela primeira vez algumas frases escritas, que
seus olhos devoraram com avidez.

Dizia:

"Amanhã à meia-noite no jardim. É a primeira ou
a última prece de um imenso amor."

Mais nada; nem data, nem assinatura.

O que pensou Carolina durante as vinte e quatro horas que sucederam à
leitura dessa carta, não o posso eu exprimir, minha prima; adivinhe.
A luta renasceu no seu espírito entre o respeito profundo pela memória
de seu marido e o amor que a dominava.

Essa luta violenta durava ainda no momento em que a encontramos; depois do
combate renhido, o coração tinha transigido com a razão,
o amor cedera ao dever. Carolina resolvera que a entrevista pedida seria a
primeira, mas também a última. Quebraria o fio dourado dessa
afeição, para não entrelaçá-lo à
teia negra do seu passado.

Cumpriria o seu voto?…

Ela mesma não o sabia; tinha medo que lhe faltassem as forças;
e para ganhar coragem relia nesse momento a carta em que seu marido, na mesma
noite do casamento, se despedira dela para sempre.

Não transcrevo aqui essa longa carta para não entristecê-la,
D…, porque nunca li coisa que me cortasse tanto o coração.
Jorge explicava à sua mulher a fatalidade que o obrigava, ele, votado
à morte, a consumar esse casamento, que a devia fazer desgraçada,
mas que ao menos a deixava pura e sem mácula.

Pela primeira vez depois de cinco anos Carolina trajava de branco; mas as
fitas dos laços, as pulseiras, o colar, eram pretos ainda. Até
no seu vestuário se revelava a luta que se passava em sua alma: o branco
era a aspiração, o sonho do futuro; o preto era a saudade do
passado.

Quando acabou de ler aquela carta, que sempre lhe arrancava lágrimas,
sentiu-se com forças de resistir aos impulsos do coração;
sentiu-se quase santificada pela evocação daquele martírio;
e, ainda inquieta, esperou.

Pouco depois a pêndula vibrou uma pancada.

Carolina assustou-se e levou os olhos ao mostrador. A agulha marcava onze
e meia horas.

A moça fez um esforço, ergueu-se rapidamente, entrou na sala
e desceu ao jardim, ligeira e sutil como uma sombra. A alguma distância
havia um berço feito de cedros, onde a treva era mais densa. Aí
sentou-se.

À meia-noite em ponto o vulto apareceu, e, guiado pelo vestido branco
de Carolina, aproximou-se dela e sentou-se no mesmo banco de relva. Seguiu-se
um longo momento de silêncio; o desconhecido não falava; o pudor
emudecia a menina cândida e inocente.

Mas não era possível que esse silêncio e essa imobilidade
continuassem; o desconhecido tomou as mãos de Carolina e apertou-as;
as suas estavam tão frias que a moça sentiu gelar-se-lhe o sangue
ao seu contato.

– A senhora me ama?…

A voz do moço pronunciando essas palavras se tornara tão surda
que perdera o metal para tornar-se apenas um sopro.

A menina não respondeu.

– É o meu destino que eu lhe pergunto! murmurou ele.

Carolina venceu a timidez.

– Não sabe a minha história? disse ela.

– Sei.

– Então compreende que não posso, que não devo amar
a ninguém mais neste mundo!

A moça sentiu que seu amante lhe cerrava as mãos com uma emoção
extraordinária; teve pena dele, e conheceu que não teria forças
para consumar o sacrifício.

– Não me pode… não me deve amar… E por que razão
me deixou conhecer uma esperança vã?

– Por quê?… balbuciou a menina.

– Sim, por quê?… Zombava de mim!

– Oh! não! Não pensava no que fazia. Era mais forte do que
a minha vontade!

Mas então me ama?… É verdade?… perguntou o desconhecido,
com ansiedade.

– Não sei.

– Para que negá-lo?

– Pois sim! É verdade! Mas é impossível!

– Não compreendo.

– Escute: não estranhe o que lhe vou dizer, não me crimine
pelo passo que dei.

Fiz mal em vir aqui, em esperá-lo; mas tenho eu culpa?… Faltou-me
o ânimo de recusar-lhe o que me pedira… E vim somente para suplicar-lhe…

– Suplicar-me?… o quê?

– Que se esqueça de mim, que me abandone!

– Importuno-a com a minha afeição?…

– Não diga isso!

– Seja indiferente a ela.

– Se eu pudesse…

– Não pode?… Então dê-me a felicidade.

– Se estivesse em mim!… Porém já lhe confessei; é
impossível.

– Por que motivo?

– Eu devo… eu sinto que amo a meu marido.

– Morto?…

– Sim.

Houve uma pausa.

– Parece-lhe ridículo esse sentimento; não e assim? Mas foi
o primeiro, cuidei que seria o último. Deus não permitiu!…
E por isso às vezes julgo que cometo um crime aceitando uma outra afeição…
Devo ser fiel à sua memória!… Quem me diz que esse remorso
não envenenará a minha existência, que a imagem dele não
virá constantemente colocar-se entre mim e aquele que me amar ainda
neste mundo?… Seríamos ambos desgraçados!

Um beijo cortou a palavra nos lábios de Carolina.

Momentos depois duas sombras resvalaram-se por entre as moitas do jardim
e perderam-se no interior da casa. Tudo entrou de novo no silêncio.

Na manhã seguinte às nove horas, D. Maria e o Sr. Almeida conversavam
amigavelmente na sala de jantar, onde acabavam de servir o almoço.

O velho negociante, depois da entrevista com o filho de seu amigo, não
se cabia de contente, e viera preparar a mãe e a filha para mais tarde
receberem a notícia inesperada, que era ainda um segredo, só
conhecido de duas pessoas.

O assunto era melindroso, e a sua habilidade comercial nada adiantava em
negócios de coração; não sabia por onde começar.

Nisto, D. Maria chamou sua filha.

– Vem almoçar, Carolina.

– Já vou, mamãe, respondeu a menina do seu quarto, estou à
espera de Jorge.

A pobre mãe julgou que sua filha tinha enlouquecido, e ergueu-se precipitadamente
para correr a ela.

Mas a porta abriu-se e Carolina entrou pelo braço de seu marido.

Desmaio, espanto, surpresa e alegria, passo por tudo isto que a senhora imagina
melhor do que eu posso descrever.

Depois do almoço, Jorge e sua mulher, passeando no jardim, pararam
junto ao lugar onde haviam estado na véspera.

– Aqui!… disse a menina, sorrindo entre o rubor.

– Foi o meu segundo berço! replicou Jorge.

– Por que dizes berço?

– Porque nasci aqui para esta vida nova. Oh! tu não sabes!… Depois
que reabilitei o nome de meu pai e o meu, ainda me faltava uma condição
para voltar ao mundo.

– Qual era?

– A tua felicidade, o teu desejo. Se tivesses esquecido teu marido para amar-me
sem remorso e sem escrúpulo, eu estava resolvido… a fugir-te para
sempre!

– Mau!… se eu te deixasse de amar, não era para amar-te ainda?…
Ah! Não terias ânimo de fugir-me.

– Também creio.

Jorge e sua mulher são hoje nossos vizinhos; têm uma fazenda
perfeitamente montada. Para evitar a curiosidade importuna e indiscreta, haviam
imediatamente abandonado a corte.

A boa D. Maria já está bastante velha. O Sr. Almeida partiu
há seis meses para a Europa, tendo feito o seu testamento, em que instituiu
herdeiros os filhos de Jorge.

Carlota é amiga íntima de Carolina. Elas acham ambas um ponto
de semelhança na sua vida: é a felicidade depois de cruéis
e terríveis provanças. As nossas famílias se visitam
com muita freqüência; e posso dizer-lhe que somos uns para os outros
a única sociedade.

Isto lhe explica, D…, como soube todos os incidentes desta história.

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