Lucíola – José de Alencar

PUBLICIDADE

Clique nos links abaixo para navegar no capítulo desejado:

José de Alencar

I

A senhora estranhou, na última vez que estivemos juntos, a minha excessiva
indulgência pelas criaturas infelizes, que escandalizam a sociedade
com a ostentação do seu luxo e extravagâncias.

Quis responder-lhe imediatamente, tanto é o apreço em que tenho
o tato sutil e esquisito da mulher superior para julgar de uma questão
de sentimento. Não o fiz, porque vi sentada no sofá, do outro
lado do salão, sua neta, gentil menina de 16 anos, flor cândida
e suave, que mal desabrocha à sombra materna. Embora não pudesse
ouvir-nos, a minha história seria uma profanação na atmosfera
que ela purificava com os perfumes da sua inocência; e– quem sabe ?–
talvez por ignora repercussão o melindre de seu pudor se arrufasse
unicamente com os palpites de emoções que iam acordar em minha
alma.

Receei também que a palavra viva, rápida e impressionável
não pudesse, como a pena calma e refletida, perscrutar os mistérios
que desejava desvendar-lhe, sem romper alguns fios da tênue gaza com
que a fina educação envolve certas idéias, como envolve
a moda em rendas e tecidos diáfanos os mais sedutores encantos da mulher.
Vê-se tudo; mas furta-se aos olhos a indecente nudez.

Calando-me naquela ocasião, prometi dar-lhe a razão que a senhora
exigia; e cumpro o meu propósito mais cedo do que pensava. Trouxe no
desejo de agradar-lhe a inspiração; e achei voltando a insônia
de recordações que despertara a nossa conversa. Escrevi as páginas
que lhe envio, as quais a senhora dará um título e o destino
que merecerem. É um perfil de mulher apenas esboçado.

Desculpe, se alguma vez a fizer corar sob os seus cabelos brancos, pura e
santa coroa de uma virtude que eu respeito. O rubor vexa em face de um homem;
mas em face do papel, muda e impassível testemunha, ele deve ser para
aquelas que já imolaram à velhice os últimos desejos,
uma como essência de gozos extintos, ou extremo perfume que deixam nos
espinhos as desfolhadas rosas.

De resto, a senhora sabe que não é possível pintar sem
que a luz projete claros e escuros. As sombras do meu quadro se esfumam traços
carregados, contrastam debuxando o relevo colorido de límpidos contornos.

II

A primeira vez que vim ao Rio de Janeiro foi em 1855.

Poucos dias depois da minha chegada, um amigo e companheiro de infância,
o Dr. Sá, levou-me à festa da Glória; uma das poucas
festas populares da corte. Conforme o costume, a grande romaria desfilando
pela Rua da Lapa e ao longo do cais, serpejava nas faldas do outeiro e apinhava-se
em torno da poética ermida, cujo âmbito regurgitava com a multidão
do povo.

Era ave-maria quando chegamos ao adro; perdida a esperança de romper
a mole de gente que murava cada uma das portas da igreja, nos resignamos a
gozar da fresca viração que vinha do mar, contemplando o delicioso
panorama da baia e admirando ou criticando as devotas que também tinham
chegado tarde e pareciam satisfeitas com a exibição de seus
adornos.

Enquanto Sá era disputado pelos numerosos amigos e conhecidos, gozava
eu da minha tranqüila e independente obscuridade, sentado comodamente
sobre a pequena muralha e resolvido a estabelecer ali o meu observatório.
Para um provinciano recém-chegado à corte, que melhor festa
do que ver passar-lhe pelos olhos, à doce luz da tarde, uma parte da
população desta grande cidade, com os seus vários matizes
e infinitas gradações?

Todas as raças, desde o caucasiano sem mescla até o africano
puro; todas as posições, desde as ilustrações
da política, da fortuna ou do talento, até o proletário
humilde e desconhecido; todas as profissões, desde o banqueiro até
o mendigo; finalmente, todos os tipos grotescos da sociedade brasileira, desde
a arrogante nulidade até a vil lisonja, desfilaram em face de mim,
roçando a seda e a casimira pela baeta ou pelo algodão, misturando
os perfumes delicados às impuras exalações, o fumo aromático
do havana as acres baforadas do cigarro de palha.

— É uma festa filosófica essa festa da Glória! Aprendi
mais naquela meia hora de observação do que nos cinco anos que
acabava de esperdiçar em Olinda com uma prodigalidade verdadeiramente
brasileira.

A lua vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras; descobri nessa
ocasião, a alguns passos de mim, uma linda moça, que parara
um instante para contemplar no horizonte as nuvens brancas esgarçadas
sobre o céu azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe
esbelto e de suprema elegância. O vestido que o moldava era cinzento
com orlas de veludo castanho e dava esquisito realce a um desses rostos suaves,
puros e diáfanos, que parecem vão desfazer-se ao menor sopro,
como os tênues vapores da alvorada. Ressumbrava na sua muda contemplação
doce melancolia e não sei que laivos de tão ingênua castidade,
que o meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa aparição.

— Já vi esta moça! disse comigo. Mas onde?…

Ela pouco demorou-se na sua graciosa imobilidade e continuou lentamente o
passeio interrompido. Meu companheiro cumprimentou-a com um gesto familiar;
eu, com respeitosa cortesia, que me foi retribuída por uma imperceptível
inclinação da fronte.

— Quem é esta senhora? perguntei a Sá.

A resposta foi o sorriso inexprimível, mistura de sarcasmo, de bonomia
e fatuidade, que desperta nos elegantes da corte a ignorância de um
amigo, profano na difícil ciência das banalidades sociais.

— Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres
conhecê-la ?. . .

Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana, que confundira a máscara
hipócrita do vício com o modesto recato da inocência.
Só então notei que aquela moça estava só, e que
a ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão, devia-me
ter feito suspeitar a verdade.

Depois de algumas voltas descobrimos ao longe a ondulação do
seu vestido, e fomos encontrá-la, retirada a um canto, distribuindo
algumas pequenas moedas de prata à multidão de pobres que a
cercava. Voltou-se confusa ouvindo Sá pronunciar o seu nome:

— Lúcia!

— Não há modos de livrar-se uma pessoa desta gente! São
de uma impertinência! disse ela mostrando os pobres e esquivando-se
aos seus agradecimentos.

Feita a apresentação no tom desdenhoso e altivo com que um
moço distinto se dirige a essas sultanas do ouro, e trocadas algumas
palavras triviais, meu amigo perguntou-lhe:

— Vieste só?

— Em corpo e alma.

— E não tens companhia para a volta?

Ela fez um gesto negativo.

— Neste caso ofereço-te a minha, ou antes a nossa.

— Em qualquer outra ocasião aceitaria com muito prazer; hoje não
posso.

— Já vejo que não foste franca!

— Não acredita?. .. Se eu viesse por passeio!

— E qual é o outro motivo que te pode trazer à festa da Glória?

— A senhora veio talvez por devoção? disse eu.

— A Lúcia devota!. . . Bem se vê que a não conheces.

— Um dia no ano não é muito’ respondeu ela sorrindo.

— É sempre alguma coisa, repliquei.

Sá insistiu:

— Deixa-te disso; vem conosco.

— O senhor sabe que não é preciso rogar-me quando se trata
de me divertir. Amanhã, qualquer dia, estou pronta. Esta noite, não!

— Decididamente há alguém que te espera.

— Ora! Faço mistério disto?

— Não é teu costume decerto.

— Portanto tenho o direito de ser acreditada. As aparências enganam
tantas vezes! Não é verdade? disse voltando-se para mim com
um sorriso.

— Não me lembra o que lhe respondi; alguma palavra que nada exprimia,
dessas que se pronunciam às vezes para ter o ar de dizer alguma coisa.
Quanto a Lúcia, fazendo-nos um ligeiro aceno com o leque, aproveitou
uma aberta da multidão e penetrou no interior da igreja, em risco de
ser esmagada pelo povo.

Não preciso dizer-lhe, pois adivinha, que acabava de fazer uma triste
figura. Não sou tímido; ao contrário peco por desembaraçado.
Mas nessa ocasião diversas circunstâncias me tiravam do meu natural.
A expressão cândida do rosto e a graciosa modéstia do
gesto, ainda mesmo quando os lábios dessa mulher revelavam a cortesã
franca e impudente o contraste inexplicável da palavra e da fisionomia,
junto à vaga reminiscência do meu espírito, me preocupavam
sem querer. Atribuo a isto ter eu apenas balbuciado algumas palavras durante
a conversa, e haver cortejado respeitosamente a senhora, que apesar de tudo
ainda me aparecia nesta mulher, mal a voz lhe expirava nos lábios,
porque, então, o desdém que vertia de sua frase volúbil
passava, e o semblante em repouso tomava uns ares de meiga distinção.

A festa continuou, e fomos acabá-la em uma alegre reunião,
onde se dançou e brincou até duas horas da noite.

Quando apaguei a minha vela ao deitar-me, na dúbia visão que
oscila entre o sono e a vigília, foi que desenhou-se no meu espírito
em viva cor a reminiscência que despertara em mim o encontro de Lúcia.
Lembrei-me então perfeitamente quando e como a vira a primeira vez.

Fora no dia da minha chegada. Jantara com um companheiro de viagem, e ávidos
ambos de conhecer a corte, saímos de braço dado a percorrer
a cidade. Íamos, se não me engano, pela Rua das Mangueiras,
quando, voltando-nos, vimos um carro elegante que levavam a trote largo dois
fogosos cavalos. Uma encantadora menina, sentada ao lado de uma senhora idosa,
se recostava preguiçosamente sobre o macio estofo, e deixava pender
pela cobertura derreada do carro a mão que brincava com um leque de
penas escarlates. Havia nessa atitude cheia de abandono muita graça;
mas graça simples, correta e harmoniosa; não desgarro com ares
altivos decididos, que afetam certas mulheres à moda.

No momento em que passava o carro diante de nós, vendo o perfil suave
e delicado que iluminava a aurora de um sorriso raiando apenas no lábio
mimoso, e a fronte límpida que à sombra dos cabelos negros brilhava
de viço e juventude, não me pude conter de admiração.

Acabava de desembarcar; durante dez dias de viagem tinha-me saturado da poesia
do mar, que vive de espuma, de nuvens e de estrelas; povoara a solidão
profunda do oceano, naquelas compridas noites veladas ao relento, de sonhos
dourados e risonhas esperanças; sentia enfim a sede da vida em flor
que desabrocha aos toques de uma imaginação de vinte anos, sob
o céu azul da corte.

Recebi pois essa primeira impressão com verdadeiro entusiasmo, e a
minha voz habituada às fortes vibrações nas conversas
à tolda do vapor, quando zunia pelas enxárcias a fresca viração,
minha voz excedeu-se:

— Que linda menina! exclamei para meu companheiro, que também admirava.
Como deve ser pura a alma que mora naquele rosto mimoso!

Um embaraço imprevisto, causado por duas gôndolas, tinha feito
parar o carro. A moça ouvia-me; voltou ligeiramente a cabeça
para olhar-me, e sorriu. Qual é a mulher bonita que não sorri
a um elogio espontâneo e a um grito ingênuo de admiração’
Se não sorri nos lábios, sorri no coração.

Durante que se desimpedia o caminho, tínhamos parado para melhor admirá-la;
e então ainda mais notei a serenidade de seu olhar que nos procurava
com ingênua curiosidade, sem provocação e sem vaidade.
O carro partiu; porém tão de repente e com tal ímpeto
dos cavalos por algum tempo sofreados, que a moça assustou-se e deixou
cair o leque. Apressei-me, e tive o prazer de o restituir inteiro.

Na ocasião de entregar o leque apertei-lhe a ponta dos dedos presos
na lava de pelica. Bem vê que tive razão assegurando-lhe que
não sou tímido. A minha afoiteza a fez corar; agradeceu-me com
um segundo sorriso e uma ligeira inclinação da cabeça;
mas o sorriso desta vez foi tão melancólico, que me fez dizer
ao meu companheiro:

— Esta moça não é feliz!

— Não sei; mas o homem a quem ela amar deve ser bem feliz!

Nunca lhe sucedeu, passeando em nossos campos, admirar alguma das brilhantes
parasitas que pendem dos ramos das árvores, abrindo ao sol a rubra
corola? E quando ao colher a linda flor, em vez da suave fragrância
que esperava, sentiu o cheiro repulsivo de torpe inseto que nela dormiu, não
a atirou com desprezo para longe de si?

É o que se passava em mim quando essas primeiras recordações
roçaram a face da Lúcia que eu encontrara na Glória.
Voltei-me no leito para fugir à sua imagem, e dormi.

III

A corte tem mil seduções que arrebatam um provinciano aos seus
hábitos, e o atordoam e preocupam tanto, que só ao cabo de algum
tempo o restituem à posse de si mesmo e ao livre uso de sua pessoa.

Assim me aconteceu. Reuniões, teatros, apresentações
às notabilidades políticas, literárias e financeiras
de um e outro sexo; passeios aos arrabaldes; visitas de cerimônia e
jantares obrigados; tudo isto encheu o primeiro mês de minha estada
no Rio de Janeiro. Depois desse tributo pago à novidade, conquistei
os foros de cortesão e o direito de aborrecer-me à vontade.

Uma bela manhã, pois, estava na crítica posição
de um homem que não sabe o que fazer. Li os anúncios dos jornais;
escrevi à minha família; participei a minha chegada aos amigos;
e por fim ainda me achei com uma sobra de tempo que embaraçava-me realmente.
Acendi o charuto; e através da fumaça azulada, lancei uma vista
pelos dias decorridos. «Lembrar-se é viver outra vez»,
diz o poeta.

De repente caiu-me um nome da memória. Achara em que empregar a manhã.

— Vou ver a Lúcia.

Depois da festa da Glória tinha-a encontrado algumas vezes, mas sem
lhe falar. Lembro-me de uma manhã em casa do Desmarais. Lúcia
passava, parou na vidraça e entrou para comprar algumas perfumarias;
o seu vestido roçara por mim; mas ela não me olhou, nem pareceu
ter-me visto. Essa circunstância, e talvez um resquício do desgosto
que deixara a minha decepção, tiraram-me a vontade de a cumprimentar;
contudo conservei o chapéu na mão todo tempo que esteve na loja.
Quando escolhia alguns vidros de extratos, mostraram-lhe um que ela repeliu
com um gesto vivo e um sorriso irônico:

— Flor de laranja!. . . E muito puro para mim!

Ao sair, dobrou o seu talhe flexível inclinando-se vivamente para
o meu lado, enquanto a mão ligeira roçava os amplos folhos da
seda que rugia arrastando. Esse movimento podia ser uma profunda cortesia
disfarçada com certo acanhamento; e podia não passar de um gesto
habitual de faceirice feminina.

Outra vez estava no teatro; tinha ido fazer minha visita a um camarote durante
o último intervalo, e conversando reparei na insistência com
que me examinava um binóculo da segunda ordem. Da pessoa que o fitava
só via a mão pequena e a fronte pura, que denunciavam uma mulher.
Depois, ao levantar o pano, vi Lúcia naquela direção,
e pareceu-me reconhecer nela a indiscreta luva cor de pérola e o curioso
instrumento que me perseguira com o seu exame.

Eis quais eram as minhas relações com essa moça; e confesso
que vestindo-me sentia algumas apreensões sobre a recepção
que me esperava; não há nada que mais vexe do que a posição
de um homem solicitando da memória rebelde da pessoa a quem se dirige
um reconhecimento tardio.

Não obstante, poucos minutos depois subia as escadas de Lúcia,
e entrava numa bela sala decorada e mobiliada com mais elegância do
que riqueza. Ela mostrou não me reconhecer imediatamente; mas apenas
falei-lhe do nosso primeiro encontro na Rua das Mangueiras, sorriu e fez-me
o mais amável acolhimento. Conversamos muito tempo sobre mil futilidades,
que nos ocorreram; e eu tive ocasião de notar a simplicidade e a graça
natural com que se exprimia.

O que porém continuava a surpreender-me ao último ponto, era
o casto e ingênuo perfume que respirava de toda a sua pessoa. Uma ocasião,
sentados no sofá, como estávamos, a gola de seu roupão
azul abriu-se com um movimento involuntário, deixando ver o contorno
nascente de um seio branco e puro, que o meu olhar ávido devorou com
ardente voluptuosidade. Acompanhando a direção desse olhar,
ela enrubesceu como uma menina e fechou o roupão; mas doce e brandamente,
sem nenhuma afetação pretensiosa.

Tal é a força mística do pudor, que o homem o mais ousado,
desde que tem no coração o instinto da delicadeza, não
se anima a amarrotar bruscamente esse véu sutil que resguarda a fraqueza
da mulher. Se a resistência irrita-lhe o desejo, o enleio casto, a leve
rubescência que veste a beleza como de um santo esplendor, influem mágico
respeito. Isto, quando se ama; quando a atração irresistível
da alma emudece os escrúpulos e as suscetibilidades. O que não
será pois quando apenas um desejo ou um capricho passageiro nos excita?
Então, ousar é mais do que uma ofensa; é um insulto cruel.

Se eu amasse essa mulher, que via pela terceira ou quarta vez, teria certamente
a coragem de falar-lhe do que sentia; se quisesse fingir um amor degradante,
acharia força para mentir; mas tinha apenas sede de prazer; fazia dessa
moca uma idéia talvez falsa; e receava seriamente que uma frase minha
lhe doesse tanto mais, quanto ela não tinha nem o direito de indignar-se,
nem o consolo que deve dar a consciência de uma virtude rígida.

Quando me lembrava das palavras que lhe tinha ouvido na Glória, do
modo por que Sá a tratara e de outras circunstâncias, como do
seu isolamento a par do luxo que ostentava, tudo me parecia claro; mas se
me voltava para aquela fisionomia doce e calma, perfumada com uns longes de
melancolia; se encontrava o seu olhar límpido e sereno; se via o gesto
quase infantil, o sorriso meigo e a atitude singela e modesta, o meu pensamento
impregnado de desejos lascivos se depurava de repente, como o ar se depura
com as brisas do mar que lavam as exalações da terra.

E continuávamos a conversar tranqüilamente de mil coisas, menos
daquela que me tinha levado à sua casa. Não posso repetir-lhe
todo esse longo diálogo; mal conseguirei recompor com as minhas lembranças
algum fragmento dele.

— Há muito tempo que está no Rio de Janeiro? perguntou-me
Lúcia depois de uma pausa.

— Há pouco mais de um mês. Cheguei justamente no dia em que
a encontrei pela primeira vez.

— Ah! no mesmo dia?…

Acabava de desembarcar.

— Mas naquela tarde, lembro-me… o senhor estava fumando. Se quer, pode
acender o seu charuto; não me incomoda.

Recusei por delicadeza.

— Veio passear? Demora-se pouco naturalmente.

— Vim ver a corte; e depois talvez me resolva a ficar.

— De uma vez?

— Se achar meio de estabelecer-me. Sou pobre; preciso fazer uma carreira;
e a corte oferece-me outros recursos, que não encontro em Pernambuco.

— Ah! é filho de Pernambuco?… Que bonita cidade que é o
Recife! Como são lindos aqueles arrabaldes da Madalena, da Ponta do
Uchoa e da Soledade!..

— Já esteve no Recife! Em que época?

— Faz dois anos.

— Em 1853… Devo tê-la visto alguma vez! Nesse tempo era eu estudante
e conhecia todas as moças bonitas da cidade.

— Então já vê que não me podia conhecer! Demais,
estive apenas uma tarde. O vapor pouco se demorou.

— Donde vinha?

— Da Europa. Apenas desembarquei, meti-me num carro, e fui passear. Vinte
dias embarcada! Sabe o que é isto? Tinha saudade das árvores
e dos campos de minha terra, que eu não via há oito meses! Que
passeios encantadores por aquelas quintas cobertas de mangueiras, que bordam
as margens do rio! Havia uma sobretudo na Soledade, que me encantou: era uma
casinha muito alva que aparecia no fundo de uma rua de arvoredo sombrio; mas
tudo tão gracioso, tão bem arranjado que parecia uma pintura.
Duas senhoras, uma já de idade, que me pareceu a mãe, e outra
ainda mocinha e muito bonita, passeavam pela quinta colhendo flores e frutas.
Mandei parar o carro, e fiquei olhando com inveja para a casa e as duas senhoras,
pensando na vida tranqüila e sossegada que se devia viver naquele retiro.

— A senhora me faz saudades de minha terra. Lembrei-me de minha casa, e
das tardes em que passeava assim por aqueles sítios com minha mãe
e minha irmã.

— O senhor tem mãe e irmão! Como deve ser feliz! disse Lúcia
com sentimento.

— Quem é que não tem uma irmã! respondi-lhe sorrindo.
E minha mãe ainda é muito moca para que eu tivesse a desgraça
de a haver perdido.

— Perdi a minha muito cedo e fiquei só no mundo; por isso invejo
a felicidade daqueles que têm uma família. Há de ser tão
bom a gente sentir-se amada sem interesse!

Depois de uma hora de conversa despedi-me, e voltei sem ter arriscado um
gesto ou uma palavra duvidosa.

— Já vai? disse Lúcia vendo-me tomar o chapéu.

— Não posso demorar-me mais tempo. Se a minha visita não lhe
aborrece, voltarei outro dia.

— Deu-me tanto prazer! Até amanhã; sim?

E apertou-me a mão cordialmente.

Na rua achei-me tão ridículo com os meus vinte e cinco anos
e os meus escrúpulos extravagantes, que estive para voltar. Como podia
eu temer um engano, depois do que sabia dessa mulher ?

Encontrei-me à tarde com Sá no Hotel da Europa, onde costumava
jantar. Estava ainda muito viva a lembrança do que me sucedera naquela
manhã para não aproveitar a ocasião de falar-lhe a respeito,
tendo porém o cuidado de ocultar o papel que havia representado na
pequena comédia.

— Tens visto a Lúcia? perguntei-lhe.

— Não; há muito tempo que não a encontro.

— Tu a conheces bem, Sá?

— Ora! Intimamente!

— Tens toda a certeza de que ela seja o que me disseste na Glória
?

— E esta! Pois duvidas?. . . Vá à casa dela; já te
apresentei.

— Supunha que fosse apenas uma dessas mocas fáceis, a quem contudo
é preciso fazer a corte por algum tempo.

— O tempo de abrir a carteira. Andas no mundo da lua, Paulo. Queres saber
como se faz a corte à Lúcia?… Dando-lhe uma pulseira de brilhante,
ou abrindo-lhe um crédito no Wallerstein.

— Não é sem razão que te pergunto isto; encontrei-a
ha dias, e a sua conversa, os seus modos, pareceram-me tão sérios!

— Por que lhe falaste nesse tom? Naturalmente a trataste por senhora como
da primeira vez; e lhe fizeste duas ou três barretadas. Essas borboletas
são como as outras, Paulo; quando lhes dão asas, voam, e é
bem difícil então apanhá-las. O verdadeiro, acredita-me,
é deixá-las arrastarem-se pelo chão no estado de larvas.
A Lúcia é a mais alegre companheira que pode haver para uma
noite, ou mesmo alguns dias de extravagância.

Acabamos de jantar e não tocamos mais no assunto.

— Tens que fazer sábado depois do teatro? perguntou-me Sá
com um sorriso maligno.

— Nada, senão dormir.

— Pois vá cear comigo. Dormirás durante o dia. Asseguro-te
que não perderás o teu tempo.

— Até sábado, então.

Esta conversa desgostou-me; porque me fez parecer ainda mais ridículo
aos meus olhos.

Tinha uma vaga desconfiança, pelo tom do convite, de que Lúcia
iria à casa do Sá; e protestei que antes disso me reabilitaria
de minha estúrdia ingenuidade.

IV

No dia seguinte à mesma hora voltei à casa de Lúcia;
achei-a ao piano

— O que estava tocando?

— Nem sei!… Uma valsa que aprendi de ouvido.

— Continue!

— Não sei tocar, não! Estava brincando; não tinha que
fazer. Como passou de ontem?

— Bem, obrigado. Já vê que a minha segunda visita não
se demorou muito.

— Ainda assim não compensa a demora da primeira.

— Sentiu essa demora?. Qual! ontem nem me conheceu.

— Tanto como na Glória. Ainda que se tivessem passado anos, creio
que em qualquer parte onde me encontrasse com o senhor, o reconheceria.

— Por que motivo então fingiu ontem não se lembrar de mim,
logo que entrei ?

— Por quê?… Queria ver uma coisa.

— E não se pode saber o que era?

— Não é preciso!

— Há de me dizer!…

E tomei-lhe as mãos que estavam frias e trêmulas.

— Pois bem, eu lhe digo. Queria ver se ainda se lembrava do nosso primeiro
encontro, respondeu ela furtando o corpo ao meu abraço.

— Duvidava? . . Não tinha razão; talvez fosse eu o que melhor
guardasse essa lembrança.

Lúcia abanou a cabeça lentamente:

— Que vestido levava eu naquela tarde? perguntou sorrindo.

A pergunta embaraçou-me. Quando admiro uma mulher bonita, a impressão
que ela produz em mim não me deixa ver mais que a sua beleza.

— Nem se recorda!

— É um defeito meu. Não reparo na toilette das moças
bonitas pela mesma razão por que não se repara na moldura de
um belo quadro.

— Que desculpa!… E eu por que reparei no seu traje, na cor de sua sobrecasaca,
em tudo; até na sua bengala? Não é esta; a outra era
mais bonita; tinha o castão de marfim. Está vendo que me lembro
perfeitamente, e entretanto não tenho esses objetos diante dos olhos!

— Ah! É este o vestido?

— O vestido, as jóias, o penteado, o leque, aquele que o senhor apanhou.
Nem desse se lembrava! Só falta o chapéu! Quer vê-lo ?

Lúcia saiu um instante e voltou. Ou porque a minha memória
se avivasse, ou porque a ausência desse gentil chapéu, que parecia
fugir-lhe da cabeça, tão de leve a cingia, mutilasse a graciosa
imagem que eu vira na tarde de minha chegada; o fato é que a aparição
já desvanecida surgira de repente aos meus olhos.

— Agora lembro-me! Estou vendo-a como a vi da primeira vez!

— Como daquela vez não me verá mais nunca!

— O que lhe falta?

— Falta o que o senhor pensava e não tornará a pensar! disse
ela com a voz pungida por dor íntima!

Não compreendi então aquelas palavras, nem o tom com que foram
proferidas; procurei-lhe o sentido, acompanhando com os olhos a Lúcia
que tirava lentamente o chapéu, e fitava na sua imagem refletida pelo
espelho um triste olhar.

— Ah! já sei! O que eu pensava?… Mas ainda penso: acho-a hoje tão
bonita ou mais do que naquela tarde.

— Não é isto!

— O que é então ? Venha dizer-me.

Passei-lhe o braço pela cintura e apertei-a ao peito; eu estava sentado,
ela em pé; meus lábios encontraram naturalmente o seu colo e
se embeberam sequiosos na covinha que formavam nascendo os dois seios modestamente
ocultos pela cambraia. Com o meu primeiro movimento, Lúcia cobriu-se
de ardente rubor; e deixou-se ir sem a menor resistência, com um modo
de tímida resignação.

Quando porém os meus lábios se colaram na tez de cetim e meu
peito estreitou as formas encantadoras que debuxavam a seda, pareceu-me que
o sangue lhe refluía ao coração. As palpitações
eram bruscas e precipites. Estava lívida e mais branca do que o alvo
colarinho do seu roupão. Duas lágrimas em fio, duas lágrimas
longas e sentidas, como dizem que chora a corça expirando, pareciam
cristalizadas sobre a face, de tão lentas que rolavam.

É o coração, quando fortemente confrangido por violenta
emoção, que espreme esse soro do sangue que gela e coalha.

Pungiu-me aquela aflição.

Retirei vivamente o braço; enquanto Lúcia sentava-se trêmula,
afastei-me revoltado contra mim, e ao mesmo tempo indignado contra essa mulher
que zombava da minha credulidade, e contra Sá que me iludira. Não
sabia o que pensar; para fugir a uma posição que me incomodava
horrivelmente, fui debruçar-me na janela.

Um instante depois ouvi sua voz doce e carinhosa:

— Não se agaste comigo !

Voltei-me; ela sorriu a dois passos de mim, e com uma expressão suplicante,
como de quem pedisse perdão.

— Acabemos com isso, Lúcia. Sabes o que me traz à tua casa:
se te desagrado por qualquer motivo, dize francamente, que eu tomo o meu chapéu
e não te aborrecerei mais. Se pensas que valho tanto como os outros,
não percas o tempo a fingir o que não és. Esta comédia
de amor pode divertir os mocinhos de 18 anos e os velhos de 50; mas afianço-te
que não lhe acho a menor graça.

— Não seja tão injusto’ Em que lhe pareço fingida?
Já me perguntou alguma coisa que eu lhe negasse? Já me recusei
a um pedido seu?

— Entretanto te ofendeste com uma simples carícia!

— Não me ofendi; e a prova é que não dei sinal de desagrado,
nem conservo o menor ressentimento. Não me conhece!… Sei o que valho,
e não sou capaz de iludir a ninguém, muito menos ao senhor.

— Mas, há pouco, o que significavam essas lágrimas?

— Ah, não repare! Sofro do coração; às vezes
sobe-me o sangue à cabeça, fico muito pálida, e sinto
uma dor aguda que me arranca lágrimas dos olhos!. . . Não é
nada; passa-me logo. Já passou! concluiu com um sorriso dorido.

— É diferente; desculpa. Incomodava-me essa idéia de pensares
que estava disposto a fazer-te a corte. Seria soberanamente ridículo
para nós ambos.

— Decerto!

Lúcia acompanhou estas duas palavras com um riso estridente e um olhar
que ainda vejo brilhar nas sombras de minhas recordações: olhar
vivo e cintilante, que luziu como as chispas do brilhante ferido pela réstia
da luz, e veio bater-me em cheio na face, cobrindo-me com o mais agro desprezo
que pode estilar um coração de mulher.

Dirigiu-se a uma porta lateral, e fazendo correr com um movimento brusco
a cortina de seda, desvendou de relance uma alcova elegante e primorosamente
ornada. Então voltou-se para mim com o riso nos lábios, e de
um gesto faceiro da mão convidou-me a entrar.

A luz, que golfava em cascatas pelas janelas abertas sobre um terraço
cercado de altos muros, enchia o aposento, dourando o lustro dos móveis
de pau-cetim, ou realçando a alvura deslumbrante das cortinas e roupagens
de um leito gracioso. Não se respiravam nessas aras sagradas à
volúpia, outros perfumes senso o aroma que exalavam as flores naturais
dos vasos de porcelana colocados sobre o mármore dos consolos, e as
ondas de suave fragrância que deixava na sua passagem a deusa do templo.

Lúcia não disse mais palavra; parou no meio do aposento, defronte
de mim.

Era outra mulher.

O rosto cândido e diáfano, que tanto me impressionou à
doce claridade da lua, se transformara completamente: tinha agora uns toques
ardentes e um fulgor estranho que o iluminava. Os lábios finos e delicados
pareciam túmidos dos desejos que incubavam. Havia um abismo de sensualidade
nas asas transparentes da narina que tremiam com o anélito do respiro
curto e sibilante, e também nos fogos surdos que incendiavam a pupila
negra.

A suave fluidez do gesto meigo sucedeu a veemência e a energia dos
movimentos. O talhe perdera a ligeira flexão que de ordinário
o curvava, como uma haste delicada ao sopro das auras; e agora arqueava enfunando
a rija carnação de um colo soberbo, e traindo as ondulações
felinas num espreguiçamento voluptuoso. As vezes um tremor espasmódico
percorria-lhe todo o corpo, e as espáduas se conchegavam como se um
frio de gelo a invadira de súbito; mas breve sucedia a reação,
e o sangue abrasando-lhe as veias, dava à branca epiderme reflexos
de nácar e às formas uma exuberância de seiva e de vida,
que realçavam a radiante beleza.

Era uma transfiguração completa.

Enquanto a admirava, a sua mão ágil e sôfrega desfazia
ou antes despedaçava os frágeis laços que prendiam-lhe
as vestes. A mais leve resistência dobrava-se sobre si mesmo como uma
cobra, e os dentes de pérola talhavam mais rápidos do que a
tesoura o cadarço de seda que lhe opunha obstáculos. Até
que o penteador de veludo voou pelos ares, as trancas luxuriosas dos cabelos
negros rolaram pelos ombros arrufando ao contato a pele melindrosa, uma nuvem
de rendas e cambraias abateu-se a seus pés, e eu vi aparecer aos meus
olhos pasmos, nadando em ondas de luz, no esplendor de sua completa nudez,
a mais formosa bacante que esmagara outrora com o pé lascivo as uvas
de Corinto.

Saí alucinado!

Fora delírio, convulsão de prazer tão viva que, através
do imenso deleite, traspassava-me uma sensação dolorosa, como
se eu me revolvera no meio de um sono opiado, sobre um leito de espinhos.
É que as carícias de Lúcia vinham impregnadas de uma
irritabilidade que cauterizava

Há mulheres gastas, máquinas do prazer que vendem, autômatos
só movidos por molas de ouro. Mas Lúcia sentia; sentia sim com
tal acrimônia e desespero, que o prazer a estorcia em cãibras
pungentes. Seu olhar queimava; e às vezes parecia que ela ia estrangular-me
nos seus braços, ou asfixiar-me com seus beijos.

De repente surgiu lívida, e estendeu-me a mão aberta Ouvi uma
palavra soluçada, voz opressa, que não entendi, mas adivinhei.

Imagine qual revolução houve em mim; e a profunda indignação
com que me precipitei sobre minha carteira para atirá-la à face
dessa mulher. Mas ela reteve-me com a força sobre-humana que lhe davam
as contrações nervosas.

— Estava gracejando-me! Não é assim que me queria?

E soltou uma gargalhada.

Debalde pedi uma explicação. Ao delírio sucedera prostração
absoluta, orgasmo da constituição violentamente abalada. Vendo
então esse corpo inerte e pasmo, com os olhos vítreos e as mãos
crispadas, tive dó e como um pressentimento de que a vida o abandonaria
breve.

Quando lho dei a perceber, ela respondeu-me:

— Que importa? Contanto que tenha gozado de minha mocidade! De que serve
a velhice às mulheres como eu?

Ao retirar-me ia pela segunda vez levar a mão à carteira, quando
o olhar de Lúcia correu-me de vergonha. Entretanto ela, abatida ainda,
porém calma, apertava-me a mão por despedida. Que magia tinham
aqueles olhos fúlgidos, quando um sentimento forte lhes toldava a doce
serenidade!

Conto-lhe estes fatos, como se escrevesse no dia em que eles sucederam, ignorando
o seu futuro; entretanto, talvez que, apesar disto, compreenda as palavras
equívocas e as causas ocultas que naquela ocasião resistiram
à minha perspicácia.

Mas a senhora lê e eu vivia; no livro da vida não se volta,
quando se quer, a página já lida, para melhor entendê-la;
nem pode-se fazer a pausa necessária à reflexão. Os acontecimentos
nos tomam e nos arrebatam às vezes tão rapidamente que nem deixam
volver um olhar ao caminho percorrido.

Assim o meu espírito preocupou-se um momento com a singularidade daquela
cortesã, que ora levava a impudência até o cinismo, ora
esquecia-se do seu papel no simples e modesto recato de uma senhora; porém
vieram logo outros pensamentos distrair-me.

V

As grandes sensações de dor ou de prazer pesam tanto sobre
o homem, que o esmagam no primeiro momento e paralisam as forças vitais.
É depois que passa esse entorpecimento das faculdades, que o espírito,
insigne químico, decompõe a miríada de sensações,
e vai sugando a gota de fel ou de essência que ainda estila dos favos
apenas libados.

Foi o que me sucedeu; e não sei se no dia seguinte trocaria a voluptuosidade
lenta e infinita de minhas recordações ainda recentes por outra
hora da febre ardente que na véspera me prostrara nos braços
de Lúcia. Mas então não me lembrava que vendo-a, todos
os meus desejos, que eu supunha extenuados, iam acordar de novo, tigres famintos
da presa em que uma vez se tinham cevado.

Estava no teatro lírico, onde o acaso me colocara junto de um moço
com quem havia feito conhecimento na sociedade e cujo nome não me acode
agora. Em falta de outro, lhe darei o de Cunha.

Esperando que se levantasse o pano, corríamos ambos com o binóculo
as ordens de camarotes, que se começavam a encher. F: um regalo semelhante
ao do gastrônomo, que antes de sentar-se à mesa belisca as iguarias
que vão se ostentando aos olhos gulosos. A comparação
me agrada; porque realmente nunca senti essa gula de olhar que devora com
uma fome canina, como quando contemplava uma multidão de mulheres bonitas.
Cada uma delas me emprestava uma forma sedutora, um encanto, um contorno para
a estátua ideal que a imaginação moldava, aperfeiçoando
a capricho.

A medida que fazíamos alguma descoberta astronômica, ou na região
dos planetas de primeira e segunda ordem, ou entre as nebulosas da última
esfera, comunicávamos ao companheiro, que imediatamente assestava o
telescópio. Começavam então as competentes observações
sobre o astro. Já tínhamos examinado algumas constelações
ou grupos de estrelas brilhantes e dois ou três planetas superiores,
discorrendo Cunha sobre a sua órbita, os seus satélites e o
ponto da elíptica em que se achavam. Tínhamos lobrigado no fundo
de um camarote a cauda luminosa de um cometa; finalmente estudávamos
um aerólito ou estrela cadente, conjeturando sobre as causas prováveis
do fenômeno atmosférico-financeiro.

— Aí está a Lúcia, disse Cunha Na segunda ordem, quarto
camarote depois de vésper.

Assim havíamos batizado um planeta que se recolhia infalivelmente
entre nove e dez horas da noite.

Esqueci-me dizer que a ópera começara; as nossas observações
podiam fazer-se então em céu desnublado. Vi Lúcia sentada
na frente do seu camarote, vestida com certa galantaria, mas sem a profusão
de adornos e a exuberância de luxo que ostentam de ordinário
as cortesãs, ou porque acreditem que a sua beleza, como as caixinhas
de amêndoas, cota-se pelo invólucro dourado, ou porque no seu
orgulho de anjos decaídos desejem esmagar a casta simplicidade da mulher
honesta, quantas vezes defraudada nessa prodigalidade.

Não me posso agora recordar das minúcias do traje de Lúcia
naquela noite. O que ainda vejo neste momento, se fecho os olhos, são
as nuvens brancas e nítidas, que se frocavam graciosamente, aflando
com o lento movimento de seu leque; o mesmo leque de penas que eu apanhara,
e que de longe parecia uma grande borboleta rubra pairando no cálice
das magnólias. O rosto suave e harmonioso, o colo e as espáduas
nuas, nadavam como cisnes naquele mar de leite, que ondeava sobre formas divinas.

A expressão angélica de sua fisionomia naquele instante, a
atitude modesta e quase tímida, e a singeleza das vestes níveas
e transparentes, davam-lhe frescor e viço de infância, que devia
influir pensamentos calmos, senão puros. Entretanto o meu olhar ávido
e acerado rasgava os véus ligeiros e desnudava as formas deliciosas
que ainda sentia latejar sob meus lábios. As sensações
amortecidas se encarnavam de novo e pulsavam com uma veemência extraordinária.
Eu sofria a atração irresistível do gozo fruído,
que provoca o desejo até a consunção; e conheci que essa
mulher ia se tornar uma necessidade, embora momentânea, da minha vida.

— E uma bonita mulher! disse ao meu vizinho, com um ar de indiferença
para disfarçar a minha emoção.

— A mais bonita mulher do Rio de Janeiro e também a mais caprichosa
e excêntrica. Ninguém a compreende.

— Conheço-a apenas de vista; porém disseram-me que é
uma boa moça, muito amável…

— Oh! Posso falar a este respeito. Fui seu amante quatro meses.

— E por que a deixou? Aborreceu-se?

— Não a deixei. É seu costume; um belo dia, sem causa, sem
o mínimo pretexto, declara a um homem que as suas relações
estão acabadas; e não há que fazer. Podem oferecer-lhe
somas loucas, é tempo perdido. Também no dia seguinte, ou no
mesmo, daí a uma hora, toma outro amante que não conhece, que
nunca viu.

— Todas são assim, com pouca diferença; ninguém sabe
qual é o fio que faz dançar essas bonecas de papelão.

— Nem tanto. Há mulheres, que, ou por interesse, ou por amizade,
ou mesmo por hábito, se inquietam com a idéia de que seu amante
as abandone; mas para esta é absolutamente indiferente. Tem dias em
que está de um humor insuportável: fica uma estátua,
e não há forças humanas que possam arrancar daquela massa
inerte um sorriso, uma palavra, um movimento. Se o homem não possui
grande dose de paciência para sofrê-la calado, ela fecha-lhe a
porta muito delicadamente, e manda-lhe dizer pela criada– <<que tenha
a bondade de deixá-la tranqüila para todo o sempre».– E
uma vez dito, não volta.

— Para quem tem direitos adquiridos, parece-me um tanto forte!

— É o seu engano, continuou o Cunha que estava de veia. A Lúcia
não admite que ninguém adquira direitos sobre ela. Façam-lhe
as propostas mais brilhantes: sua casa é sua e somente sua; ela o recebe,
sempre como hóspede; como dono, nunca. Na ocasião em que o senhor
a toma por amante, ela previne-o de que reserva-se plena liberdade de fazer
o que quiser e de deixá-lo quando lhe aprouver, sem explicações
e sem pretextos, o que sucede invariavelmente antes de seis meses; está
entendido que lhe concede o mesmo direito.

— Ao menos há reciprocidade!

— Não lhe pede nada, nem sequer doces em tempo de festa, ou sorvetes
quando está no teatro. Nunca a vi bordar em malhas transparentes um
desses desejos disfarçados com que as mulheres iscam à generosidade
de seus apaixonados. Se indagam do seu gosto a respeito de algum objeto que
lhe destinam, desconversa e não responde; aceita friamente o que lhe
dão, e nada mais. Ora, com uma mulher desta natureza, que não
oferece a mínima ocasião de prestar-lhe um serviço e
ganhar-lhe a amizade ou a gratidão, é possível ter direitos
adquiridos ?

— Há de sofrer com isso! . . . Tenho-a visto duas ou três vezes
e sempre vestida simplesmente. Não traz um brilhante; entretanto que
outras, que não a valem, andam cobertas. Repare! . . .

— Qual! Não é essa a razão! Nunca lhe faltam amantes;
sei de grandes fortunas no Rio de Janeiro que se dariam por felizes se ela
se decidisse a arruiná-las. E para não ir muito longe, embora
não seja rico, caso ela ainda quisesse…

— Ah! Então as suas relações estão cortadas?

— Inteiramente; e de uma maneira célebre. Vou-lhe contar. Passeávamos
numa noite de luar claro como dia; vendo minha mulher na janela, escondi-me
involuntariamente no fundo do carro com receio de que me reconhecesse. Era
inútil, porque estava distraída olhando para o mar. Entretanto
Lúcia, por maldade, mandou ao cocheiro que parasse, saltou do carro,
e esteve muito tempo, em pé, na grade, voltada para minha casa. Eu
não sabia o que fizesse, compreende bem; não queria mostrar-me,
e tinha medo de um escândalo. Felizmente ela foi caminhando, e a alguma
distancia mandou parar um tílburi que passava; o carro a tinha acompanhado;
chegou-se à portinhola e disse-me: <<Não gosto de gente
que se esconde, meu senhor. Vá olhar para o mar, ao lado de sua mulher;
é mais inocente e mais poético. De amanhã em diante não
nos conhecemos>>. Debalde quis impedi-la, meteu-se no tílburi;
e o cocheiro, que tinha um excelente animal, logrou-me: foi-me impossível
segui-los. Voltei nessa mesma noite e nos dias seguintes à sua casa,
e achei sempre a porta fechada para mim; até que me recebeu para dizer-me
com toda a macieza e doçura, que eu supunha ter comprado a chave de
sua casa, e por isso ia-me restituir o preço de uma venda que ficara
sem efeito. Saí para não voltar mais!

— Arrufos! Se não a procurasse, ela o mandaria chamar no outro dia.
É sempre a sombra do provérbio chinês: segue quem a foge.

— São águas passadas. Estávamos falando da simplicidade
de seu trajar. A razão é outra; é pura avareza.

— Como! Não disse que ela não se deixava levar pelo interesse?
Não compreendo. Uma mulher que rejeita ofertas brilhantes e leva o
seu escrúpulo a nunca pedir, nem mesmo uma coisa insignificante…
Essa mulher não pode ser avarenta! O senhor conserva algum ressentimento,
disse eu sorrindo.

— Ora! replicou ele encolhendo os ombros. Não faltam bonitas mulheres.
Mas esse desinteresse de Lúcia é um cálculo, e um cálculo
muito fino. Uma mulher que pede, marca o preço de sua gratidão
ou do seu amor; a mulher que não pede é um abismo que nunca
se enche! Tenho experiência destas coisas.

— Em todo o caso, ainda que ela fosse de uma mesquinhez sórdida,
as jóias não se gastam com o uso.

— Se ela as vende!

— Não é possível!

Também eu duvidei por muito tempo, mas tive a prova. Há aqui
um Sr. Jacinto que fez sociedade com ela; tudo que lhe dão, até
roupas, é imediatamente reduzido a dinheiro. Lúcia deve ter
por aí em casa do Gomes ou do Couto seus trinta a quarenta contos.

— Guarda para a velhice, se lá chegar.

A tecla que vibrara em nosso espírito ressoava tão melodiosamente,
que o pano descera sobre o primeiro ato do Hernani, sem darmos por isso. O
Cunha me parecia conservar vivas saudades de suas relações com
essa moça, que ainda o interessava apesar de tudo. Quanto a mim, todas
as excentricidades e defeitos que atribuíam a Lúcia, ao passo
que a faziam descer na minha estima, davam-lhe um sainete de originalidade
e um picante sabor que me excitava. O vício também tem sua beleza
e sua atração, como a virtude; a diferença é que
no âmago do fruto os lábios encontram terra e cinza em vez de
polpa deliciosa.

Há de ter reparado em que me desse por desconhecido de Lúcia;
é hábito meu, desde que entrei no mundo, não admitir
os estranhos à intimidade de minha vida, ainda mesmo quando se trata
de objetos sem conseqüência. Só dispo a minha alma entre
amigos.

Como já lhe disse, suspeitava que Lúcia devia assistir à
ceia, para a qual Sá me convidara, na quinta-feira, jantando no Hotel
da Europa. Naquela ocasião quis ter a certeza; e creia que subindo
as escadas da segunda ordem desejava ter-me enganado.

Preciso dizer-lhe a razão?

Ela não estava só: uma multidão de adoradores invadira
a porta de seu camarote. Cortejei-a e passei, esperando a ocasião em
que lhe pudesse falar. Tudo quanto achei para mandar levar-lhe foi sorvetes,
doces, algumas flores de baile que vendiam à porta, e o libreto da
ópera. As mulheres, a senhora o sabe por experiência, agradecem
mais essas pequenas atenções de que a cercam, do que os verdadeiros
sacrifícios; e eu tinha resolvido fazer a conquista de Lúcia
por oito ou quinze dias.

Estive com ela no intervalo seguinte.

— Não tinha nem uma moça bonita do seu conhecimento a quem
dar estas flores tão lindas? disse apertando-me a mão e mostrando
dois cactos que se estrelavam, um no seio e outro entre os seus cabelos.

— Sabes quem as mandou?

— Adivinhei pelo cheiro É tão suave!…

— Ficam-te muito bem; parecem ter nascido aí entre as rendas e os
cabelos.

— Hei de enfeitar-me sempre assim.

— E com as flores que eu te mandarei todas as manhãs.

— Disse isto à toa. Não tenho paciência, nem gosto para
estas coisas! Agora foi uma lembrança e já me está aborrecendo,
replicou, batendo com a ponta dos dedos afilados nas pétalas da flor.

Notei no tom de Lúcia durante o resto desta conversa uma diferença
extraordinária com o modo singelo e modesto que ela tinha em sua casa;
agora era a frase ríspida, incisiva e levemente embebida na ironia
que destilava de seus lábios, e cujas gotas a maior parte das vezes
salpicavam a ela própria. A cortesã revelava-se a mim sem rebuços,
depois que deixara cair na falda do leito o seu último véu.
Não sei se estimei ou senti essa brusca transição; a
franqueza me punha mais à vontade, é certo, porém desvanecia
uma doce ilusão, que, por mais transparente que seja, nubla o espírito
crédulo, quando procura no fundo do prazer um átomo sequer de
amor.

Perguntei-lhe afinal se me permitia acompanhá-la depois do teatro.

— Esta noite não me pertence! . . .

— Não vais para casa?

— Não.

— Já sei! Estás convidada para uma ceia…

— Quem lhe disse?

— Em casa do Sá.

— Ah! Não me lembrava que ele é seu amigo! E o senhor, também
vai?…

— Para ter o prazer de tua companhia.

— Ainda não estou inteiramente resolvida! murmurou com lentidão,
e atalhou logo com certo estouvamento: porém não, vou! Por que
deixaria de ir? Havemos de divertir-nos muito: o Sá tem gosto.

Acendeu-se nos seus olhos o fogo que já uma vez me tinha queimado
as faces; só mais tarde devia ter a explicação desse
olhar.

Quando tomei o meu lugar nas cadeiras, Lúcia tinha desaparecido.

VI

Sá habitava, num dos arrabaldes da corte, uma chácara, que
caprichara em preparar.

Com trinta anos de idade, um caráter fleumático e uma imaginação
ardente, o meu amigo tinha errado a sua vocação; a natureza
o destinara para milionário, tal era o seu desprezo pelo dinheiro quando
se tratava de realizar um de seus mil sonhos dourados. Gozando do conforto
e mesmo da elegância que lhe permitia uma folgada abastança,
as flores que ia colhendo pelo caminho estavam longe de satisfazer-lhe as
fantasias orientais; por isso impunha a si mesmo o sacrifício de acumular
algumas pequenas reservas, fruto das economias de muitos dias, para consumi-las
em poucas horas, com um desapego selvagem.

A alma obcecada pelo trabalho, irritada pelas migalhas de prazer que bajulava
aqui e ali, tinha de tempos a tempos necessidade de um banho russiano. Nesses
dias Sá dava férias às ocupações graves,
convidava alguns amigos, e oferecia à imaginação um pasto
régio. Era o reinado efêmero da devassidão, naquela existência
alegre, mas calma de ordinário.

A sua casa de moço solteiro estava para isso admiravelmente situada
entre jardins, no centro de uma chácara ensombrada por casuarinas e
laranjeiras. Se algum eco indiscreto dos estouros báquicos ou das canções
eróticas escapava pelas frestas das persianas verdes, confundia-se
com o farfalhar do vento na espêssa folhagem; e não ia perturbar,
nem o plácido sono dos vizinhos, nem os castos pensamentos de alguma
virgem que por ali velasse a horas mortas.

Cheguei por volta de meia-noite.

Já estavam reunidos os convidados: Lúcia, três belas
mulheres que eu conhecia de vista, e um senhor de cabelos e barbas brancas,
vestido com esmero extremo, mas com alguma excentricidade inglesa; um desses
velhos ainda verdes que se esforçam em reconstruir sobre os últimos
rescaldos de fogos extintos, com o auxílio de um empertigamento cômico,
uma atividade elástica e um fátuo repertório de anedotas
galantes, a mocidade fictícia que só a eles próprios
ilude. Sá mo apresentou com estas palavras:

— O Sr. Couto, capitalista.

O sexto convidado era um moço de 17 anos, o Sr. Rochinha, que trazia
impressa na tez amarrotada, nas profundas olheiras e na aridez dos lábios,
a velhice prematura. Libertino precoce, curvado pela consunção,
tinha o orgulho do vício, que estampara nas faces, receando talvez
que o insultassem pondo em dúvida os seus brasões de nobreza,
conquistados com o copo em punho nalguma tasca imunda. Se fosse pobre, o Sr.
Rochinha teria fumaças de poeta byroniano; mas ainda era rico da herança
que esbanjava, e portanto não passava de um moço gasto!

Sá tinha jeito para escolher os seus convidados. O contraste do vício
que apresentavam aqueles dois indivíduos: o velho galanteador, fazendo-se
criança com receio de que o supusessem caduco; e o moço devasso,
esforçando-se por parecer decrépito, para que não o tratassem
de menino; essa antítese viva devia oferecer ao observador cenas grotescas.
O que eu vi entrando era uma pequena amostra.

O Sr. Couto, fresco e repolhudo, bamboleando-se na cadeira, fazia sortes
que as mulheres aplaudiam, e consumia o terceiro copo de água gelada,
para abrandar o fogo interno. O Sr. Rochinha, derreado pelo sofá, erguia
às vezes a cabeça pesada de sono e torpor para absorver um cálice
de conhaque da garrafa que tinha ao lado.

Sá, que se embalançava numa cadeira de palha, saboreando o
antegosto das delícias gastronômicas, ergueu-se para receber-me:

— Só esperávamos por ti. Onde te meteste no teatro,

— Estive do lado oposto…

— Cuidei que nos encontrássemos na saída. É meia-noite;
vamos cear.

Ao som do tímpano apareceu um criado, que recebeu ordem de servir.

A reunião nada tinha ainda que assustasse os bons costumes. A exceção
de alguns gracejos dúbios da galantaria enrugada do Sr. Couto, conversava-se
alegremente como no mais aristocrático salão. Havia mesmo um
ligeiro tom de cerimônia, que, se não era bastante para acanhar,
tirava contudo ao diálogo o colorido vivo e animado que lhe dá
a palavra solta.

Entretanto, se a senhora não conhece as odes de Horácio e os
Amores de Ovídio, se nunca leu a descrição da festa de
Baco e não tem notícia dos mistérios de Adônis
ou do rito afrodísio das virgens de Pafos, que em comemoração
do nascimento da deusa iam certos dias do ano banhar-se na espuma do mar e
oferecer as primícias do seu amor a quem mais cedo as cobiçava;
se ignora tudo isto, rasgue estas folhas, ou antes queime-as, para que sua
neta, achando as` tiras que ficarem sobre a mesa, não se lembre de
fazer delas papelotes.

Se ao contrário apreciou esses trechos admiráveis da literatura
clássica, pode continuar a ler, pois não achará imagem,
nem palavra que revolte o bom gosto: sensitiva delicada dos espíritos
cultos.

Anunciada a ceia, atravessamos o jardim para ir à sala do serviço.

Não posso deixar de fazer-lhe uma breve descrição dessa
parte da casa, que ocupava a ala direita do edifício, formando uma
espécie de pavilhão. Era o palácio encantado do sibaritismo,
que só de longe em longe e nas horas mortas da noite, abria suas portas
a chave de ouro para alguns adeptos de seu culto ou para algum profano que
desejasse iniciar-se nos lúbricos mistérios.

Entremos, já que as portas se abrem de par em par, cerrando-se logo
depois de nossa passagem. A sala não é grande, mas espaçosa;
cobre as paredes um papel aveludado de sombrio escarlate, sobre o qual destacam
entre espelhos duas ordens de quadros representando os mistérios de
Lesbos. Deve fazer idéia da energia e aparente vitalidade com que as
linhas e colorido dos contornos se debuxavam no fundo rubro, ao trêmulo
da claridade deslumbrante do gás.

A mesa oval, preparada para oito convivas, estava colocada no centro sobre
um estrado, que tinha o espaço necessário para o serviço
dos criados; o resto do soalho desaparecia sob um felpudo e macio tapete que
acolchoava o rodapé e também os bordos do estrado. Os aparadores
de mármore cobertos de flores, frutos e gelados, e os bufetes carregados
de iguarias e vinhos, eram suspensos à parede. Não pousava o
pé de um móvel na orla aveludada que cercava a mesa, e parecia
abrir os braços ao homem ébrio de vinho ou de amor, convidando-o
a espojar-se na macia alcatifa, como um jovem poldro nas cálidas areias
da várzea natal.

Pela volta da abóbada de estuque que formava o teto, pelas almofadas
interiores das portas, e na face de alguns móveis, havia tal profusão
de espelhos, que multiplicava e reproduzia ao infinito, numa confusão
fantástica, os menores objetos. As imagens, projetando-se ali em todos
os sentidos, apresentavam-se por mil faces.

Não lhe falo da ceia que nada tinha de especial. Suntuosa e delicada,
como os sabem preparar aqui, sorria aos olhos e trescalava de aromas penetrantes
e deliciosos, que iam prurir as fibras gástricas. Esse perfume sibárico
e o aspecto brilhante das iguarias esquisitas, entre as irradiações
do cristal e os reflexos áureos, rubros ou violáceos do madeira,
do porto e do borgonha, é talvez o mais delicado acepipe que um anfitrião
de gosto oferece aos seus hóspedes; porque nesse bocado homérico
os olhos e o olfato servem com fartura ao paladar um pouco de tudo; um primor
de todos os manjares que a capacidade do estômago não permite
absorver.

Sentamo-nos dois a dois, porque só havia na sala quatro cadeiras.
Não se espante; eram cadeiras medidas para dois corpos, espécies
de pequenos sofás de palhinha, onde se estava mais do que comodamente.
Esta singularidade era um símbolo da união, ou melhor, da comunhão,
que o dono da casa queria que houvesse durante a ceia: não eram oito
pessoas, mas quatro amigos que se divertiam em amável companhia. Acrescia
que a longa separação das cadeiras, e a espessa cortina de flores,
deixava a cada um plena liberdade: era ao mesmo tempo a solidão e a
convivência.

Ao anunciar da ceia, Lúcia tomou-me o braço que ia oferecer-lhe.
Sentamo-nos a um dos lados da mesa em face de Sá. O Sr. Couto, como
de rigor, impava de gula e fatuidade, defronte da sonolência do Rochinha
e à ilharga de uma linda espanholita, que o olhava à sorrelfa
com um momo de petulante zombaria.

Depois da sopa, Sá ergueu o copo cheio de velho madeira E saudou os
seus hóspedes:

— Estão feitos os cumprimentos, meus senhores: gozemos. t: meia-noite,
disse mostrando a pêndula de alabastro. Até uma hora come-se.
Caso alguém reclame, prorroga-se o tempo.

— A não ser o Sr. Couto! murmurou a companheira deste.

— Aprovado sem discussão, retrucou o velho. Com os diabos, Nina!
Comer é uma das boas coisas deste mundo; porém não é
a melhor.

— Demais, a mesa ai fica; e ninguém erra a boca mesmo no escuro!
acudiu Laura rindo.

Creio que o Sr. Couto corou; em todo o caso remexeu-se, como se estivesse
sobre alfinetes.

— Ora! Isso sucedeu uma vez; e foi para te meter febre.

— Não se trata dos sessenta anos do Sr. Couto…

— Quarenta e cinco, minha jóia! E por fazer!…

— Passemos à ordem do dia! exclamava uma francesa já abrasileirada,
que tinha privado com um orador da câmara.

— Bem! continuou Sá: a hora seguinte bebe-se. É bastante?

— É demais! Em menos tempo dou conta de uma cesta de champanha !
gritou Nina.

— Não admira! Uma burra r vale mais do que uma cesta; e tu eras capaz
de esvaziá-la num minuto!

— Então, adotada a meia hora? perguntou Sá interrompendo o
Couto.

— Para mim é indiferente, respondeu o Rochinha acordando. Já
se foi o tempo em que me embriagava com essas limonadas de espuma e esses
vinagres do Reno. Sou uma velha esponja, meu caro: fui curtido a kirsch e
rum.

— Manda-se preparar para ti uma gengibrada.

— Que bicho é esse?

— É uma infusão de gengibre fervida em aguardente de trinta
e seis graus, com uma garrafa de marasquino.

— Deliciosa bebida! disse Lúcia. Não leva também algumas
gotas de chumbo derretido?

— Finalmente, meus senhores, as duas horas em ponto, imola-se a razão
no fundo das garrafas.

— Bravo! gritaram as mulheres em coro.

— Aceito por unanimidade!

— Posso imolar a minha desde já, gritou o Couto.

— Não admito! Requeiro que se respeitem as cãs. . .

— E a inocência dos criados.

— A vista das considerações devidas ao sexo, cedo!

— É melhor; mesmo porque seria difícil imolar o que não
existe.

— Procedamos em regra. As duas horas portanto pára-se a pêndula.
Abolição completa da razão, do tempo, da luz; e inauguração
solene do reinado das trevas e da loucura. Até lá liberdade
completa dentro dos limites da decência; tudo quanto possa alegrar,
como o gracejo, a cantiga, o brinde ou o discurso, é permitido; salvo
o direito ao respeitável público feminino e masculino de patear
as sensaborias.

— Nota do taquígrafo. Numerosos apoiados; o orador é cumprimentado.

E o Couto para realizar o seu dito propôs a saúde de Sum, e
acompanhou-a com um discurso recheado de disparates, interrompido a cada palavra
pela algazarra dos estouros báquicos.

Não tomei nem uma parte nesse primeiro tiroteio; Lúcia apenas
dissera uma palavra. Ela estava visivelmente contrariada; por momentos caia
em profunda distração, de que eu a tirava a custo; depois tomava-se
de um estouvamento e sofreguidão que não era natural. Uma vez
levantado o cálice, a contração muscular foi tão
violenta que o cristal espedaçou-se entre as falanges delicadas. Tinha-se
ferido, e para estancar o sangue, mergulhou o dedo no meu copo cheio de Sauterne:
o áureo licor enrubesceu; e eu esgotei-o até a última
gota num assomo de galanteio romântico.

Lúcia acompanhou o meu movimento com um olhar tão cheio do
que olhava, como se eu lhe bebera a própria vida nessas gotas tintas
de seu sangue.

— Se o bebesse todo!… balbuciou.

— Tu morrias, Lúcia! respondi sorrindo.

— Eu. .. viveria; e o resto seria pasto dos vermes,, como foi pasto dos
homens.

Semelhante à mosca importuna que se afoga no vinho, a palavra lúgubre
afogou-se no entusiasmo que começava a brilhar em todas as frontes.

Lúcia apanhou no ar o primeiro dito que passava para fazê-lo
ressaltar com uma das réplicas vivaces, titilantes de sarcasmo e ironia,
que em certos momentos fervilhavam de seus lábios. Era impossível
segui-la nesse brilhante rasto de seu espírito.

VII

Sr. Couto, dizia Sá, recomendo-lhe estas perdizes! Estão saturadas
de trutas e castanhas.

— Obrigado; é muito forte para mim. Daqui a dez anos, não
digo que não.

— Passa-me as perdizes! exclamou o Rochinha piscando os olhos com certa
malícia.

— Por favor, Sr. Couto, disse Lúcia rindo, empreste ao Sr. Rocha
os seus cabelos brancos! Por esta noite ao menos. . .

— Oh! já não são poucos os que eu tenho.

— Mas não são bastantes, Rochinha, atalhou Sá. Lúcia
tem razão.

Esta continuou:

Vou fazer uma proposta.

Muito bem; atenção em ambas as colunas, gritou o velho Couto
abrindo os braços. — Proponho… — A minha saúde ? — Um coro
com acompanhamento de pratos? — Não! não! Se continuam, subo
à rampa!

Silêncio!

— Proponho que esta noite o Sr. Couto seja tratado por Coutozinho, que é
mais terno; e o Sr. Rochinha sem o embirrante diminutivo, que lhe dá
uns ares de menino de colégio!. . .

Houve explosão de gritos e aplausos.

— Acrescenta, disse o Sá, que Nina chamará o Sr. Couto —
nhonhô, e Laura o Rochinha– papai.

— Não admito! O incesto é contra a moral, gritou Lúcia.

— Como trata-se de nomes, eu também proponho uma mudança,
bocejou o Rochinha. Em lugar de Lúcia– diga-se Lúcifer I

— velho! Não valia a pena acordar para isto. Quem não sabe
que eu sou anjo de luz, que desci do céu ao inferno?

A guerrilha de facécias e ditos mais ou menos chistosos continuou
tão viva, que renuncio à idéia de reproduzi-la.

Não pensava, quando comecei a escrever estas páginas que lhe
destino, lutar com tamanhas dificuldades; uma coisa é sentir a impressão
que se recebeu de certos acontecimentos, outra comunicar e transmitir fielmente
essa impressão. Para o conseguir, cumpre que nada se omita; e ai justamente
está o meu embaraço, porque há episódios daquela
noite, que eu desejava bem poder deixar nos refolhos de minha memória
ou no fundo do meu tinteiro.

Se tivesse agora ao meu lado o Sr. Couto, estou certo que ele me aconselharia
para as ocasiões difíceis uma reticência. Com efeito,
a reticência não é a hipocrisia no livro, como a hipocrisia
é a reticência na sociedade?

Sempre tive horror às reticências; nesta ocasião antes
queria desistir do meu propósito, do que desdobrar aos seus olhos esse
véu de pontinhos, manto espesso, que para os severos moralistas da
época, aplaca todos os escrúpulos, e que em minha opinião
tem o mesmo efeito da máscara, o de aguçar a curiosidade .

Por isso quando em alguns livros moralíssimos vejo uma reticência,
tremo! Se uma curiosidade ingênua de 15 ou 16 anos passar por ali, não
verá abrir-se em cada um desses pontinhos o abismo do desconhecido.

A minha história é imoral; portanto não admite reticências;
mas tenho um desvanecimento, pouco modesto, confesso. Caso a senhora cometesse
a indiscrição de ler estas páginas a alguma menina inocente,
talvez chegassem ao fim sem uma única pergunta. A borboleta esvoaça
sem pousar entre as flores venenosas, por mais brilhantes que sejam; e procura
o pólen no cálice da violeta e de outras plantas humildes e
rasteiras. O espírito da moça é a borboleta; o seu instinto
a castidade.

Entretanto, se este manuscrito tivesse de sair à luz pública
algum dia, e um editor escrupuloso quisesse dar ao pequeno livro passaporte
para viajar das estantes empoeiradas aos toucadores perfumados e às
elegantes banquinhas de costura, bastaria substituir certos trechos mais ousados
por duas ordens de pontinhos.

A que se reduz por fim de contas a moral literária! Ao mesmo que a
decência pública: a alguns pontos de mais ou de menos.

Lúcia fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria, e caíra
no costumado abatimento e distração. Eu a contemplava admirado
do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava, quando
ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaído:

— Não lhe disse que nos havíamos de divertir muito?

— Contudo preferia estar só contigo. Todo o prazer de tão
amável companhia, todo o brilho de teu espírito, que como o
diamante faísca mais vivo quanto mais vivos são os raios da
luz que o fere, nada disto faz esquecer a manhã de ontem!

— Ora! Há tanta mulher bonita! Qualquer destas vale mais do que eu,
acredite! Demais, quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado,
saberá o senhor de quem são os lábios que toca? Qual?
É uma mulher! Uma presa em que ceva o apetite! Que importa o nome?
Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe preparam esta ceia?
Conhece-os?… Nem por isso as iguarias lhe parecem menos saborosas.

Estas palavras, assim lidas friamente, nada são comparadas com a voz
amarga e sibilante que as pronunciava. Soltavam-se de seus lábios,
e caíam no meu espírito, tão impregnadas de ondas de
sarcasmo, que deixavam passando uma impressão cáustica e dolorosa.

— Não fales assim, Lúcia. Podia responder-te com a tua mesma
comparação. Estas gelatinas e massas delicadas sabem que paladar
as tem de gozar? Nem por isso deixam de exalar os mesmos aromas e guardar
igual sabor para o dono da casa, como para qualquer dos convidados.

— Ou para os criados a quem se atiram os sobejos da ceia?… Não
cuide que me ofendo! Se o senhor não diz por que é delicado,
pensa-o talvez!

— Mudemos de conversa. Este tom de ironia me incomoda. Deste-me uma hora
de prazer, que não esquecerei nunca. Não apagues o perfume desta
lembrança.

— Que mal faz? Comprará outras horas de igual prazer: custam-lhe
tão pouco!

— Oh! não seria o mesmo, não!

— Já não teria o encanto da novidade?

— Não teria a doce ilusão que arrancarias do meu espírito.

— Mas o senhor não sabe então?… perguntou erguendo os grandes
olhos límpidos e fulgurantes.

— Sei tudo, mas não o quero saber; e menos de tua boca! Não
sou para ti mais do que os outros; não te mereço nada; porém
deixa-me a venda sobre os olhos, eu te peço! Sinto-me feliz com ela.

— O que não o impediria de ver-me com indiferença passar dos
seus braços aos de qualquer destes homens, daquele velho por exemplo.

— Serias capaz de fazer isso, Lúcia?

— O que tenho eu feito toda a minha vida? Logo ou alguns dias depois…
Questão de tempo!

— Não falas seriamente! É impossível!

— Aborreço o fingimento: não gosto de passar pelo que não
sou. É tão ridícula essa comédia do amor, que
representam os velhos e os meninos!

O escárnio da repetição de palavras, que eu lhe dissera
na véspera, esmagou-me.

— Estás tão calada agora, Lúcia! exclamou o Couto.

— Paulo está naturalmente fazendo-lhe a corte! replicou Sá
rindo.

— E por isso Lúcifer desapareceu do horizonte!

— Lúcifer espera o reino das trevas! O Sr. Paulo fazendo-me a corte!…
Seria soberanamente ridículo para nós ambos!

— É a segunda vez que repetes uma palavra dita por mim num momento
de despeito! Se te ofendi, perdoa-me, murmurei à meia voz.

— Gostei da frase!

Estourava o champanha, fumegando nos cálices de cristal. Foi o sinal
de um concerto infernal de saúdes, hurras e cantigas descabeladas,
com o acompanhamento de uma orquestra de copos e pratos; no meio do rumor
distinguia-se a voz de falsete do Couto, e a risada estridente de Lúcia,
cujas volatas tinham o timbre metálico do canto da araponga entre os
murmúrios da floresta. Apenas começaram as primeiras explosões
produzidas pelos vapores do vinho aristocrático, os criados saíram
batendo a porta do serviço, que fechou-se interiormente.

Estávamos sós; a pêndula marcava uma hora e quarenta
minutos; pouco tardaria o momento solene que o dono da casa, novo Erasmo,
destinara para a inauguração da loucura.

— Meus senhores, confesso que a minha vaidade de anfitrião, amador
das artes, está um tanto humilhada! Ainda não disseram uma palavra
a respeito dos meus quadros!

— De quem é a culpa? A magnificência da ceia e a amabilidade
do hóspede não consentiram que levantássemos os olhos.

— Mas são realmente soberbas estas pinturas!… exclamou o Couto.
Que posições admiráveis!… Ressuscitariam um morto.
Apenas noto a ausência absoluta do sexo feio.

— Isso prova o bom gosto do pintor.

— E o mau gosto das filhas de Lesbos.

— Então acham essas mulheres admiráveis?

— Provocantes!

— Arrebatadoras! . . .

— E tu, Paulo, que dizes?

— Digo que vi ontem um quadro deste gênero, que eu não trocaria
por todas as tuas pinturas! Era uma mulher; mas as formas palpitavam; a carne
latejava sob os olhos que a devoravam; os lábios comiam de beijos a
vítima que eles provocavam; e entre a cútis transparente corria
o sangue, que se precipitava do coração espadanando em cascatas!

— Sublime! A descrição é digna do quadro… que eu
não vi! disse o Rochinha.

— Onde descobriste essa maravilha?

— É meu segredo.

— Nem se pode saber o nome do artista, Sr. Silva?

— Não adivinharam ainda!

— Será Rafael ?

— É um Ticiano póstumo!

— Ou algum gênio desconhecido ?

— Enganaram-se: é um artista de todos os tempos e de todos os Países;
é o artista divino que fez as flores, as estrelas e as mulheres!

— Ah! neste gênero de pintura tenho visto o melhor que é possível!

— Eu aposto, disse Lúcia, que o Sr. Silva, como os poetas, embelezou
o seu quadro. Viu o que sentia; mas não o que era.

— Que importa! É outra ilusão minha que desejo guardar!

— Talvez não a guarde por muito tempo…

— Pois, meus senhores, continuou Sá, mostrando-lhes estas pinturas,
preparei-lhes uma agradável surpresa. É nada menos que o original
delas; não o original frio e calmo, mas um verdadeiro modelo, vivendo,
palpitando, sorrindo, esculpindo em carne todas as paixões que deviam
ferver no coração daquelas mulheres.

— Onde está ele?

— Lúcia vai mostrar-nos.

— Ah!…

— Magnífico!

— Que maçada! Esqueci o meu pince-nez, disse o Rochinha.

— Estás pronta, Lúcia?

Ela ergueu-se, circulando a mesa com o olhar ardente e fascinado.

— Tu não farás isto, Lúcia! disse-lhe eu à meia
voz.

Dobrando como uma palma flexível o seu talhe esbelto, atirou-me ao
ouvido uma palavra, que vazou no meu cérebro e correu-me pela medula
dos ossos, como gata de metal em fusão.

— É preciso pagar a conta da ceia!

Travei-lhe da mão:

— Eu te suplico.

O seu corpo oscilou; caiu inerte sobre a cadeira.

— Que é isso? exclamou Sá. Tens vergonha de Paulo? É
a única pessoa demais que está hoje aqui.

— Ah! não é a primeira vez? perguntei empalidecendo.

— Será a primeira vez que copiará estes quadros, pois não
há oito dias que os comprei; mas Lúcia não precisa de
modelos, e já nos mostrou, não uma, porém muitas noites,
que tem, com a beleza dos anjos, o gênio da estatuária. Não
é verdade, meus senhores?

— Bem vês, Sá, que a honra não é para todos.
Sou indigno dela! disse eu.

— O que me está parecendo é que Lúcia quer apaixonar-te.

Soltei uma gargalhada.

— Perde o seu tempo! A mim?

Lúcia ergueu a cabeça com orgulho satânico, e levantando-se
de um salto, agarrou uma garrafa de champanha, quase cheia. Quando a pousou
sobre a mesa, todo o vinho tinha-lhe passado pelos lábios, onde a espuma
fervilhava ainda. Ouvi o rugido da seda; diante de meus olhos deslumbrados
passou a divina aparição que admirara na véspera.

Lúcia saltava sobre a mesa. Arrancando uma palma de um dos jarros
de flores, trançou-a nos cabelos, coroando-se de verbena, como as virgens
gregas. Depois agitando as longas tranças negras, que se enroscaram
quais serpes vivas, retraiu os rins num requebro sensual, arqueou os braços
e começou a imitar uma a uma as lascivas pinturas; mas a imitar com
a posição, com o gesto, com a sensação do gozo
voluptuoso que lhe estremecia o corpo, com a voz que expirava no flébil
suspiro e no beijo soluçante, com a palavra trêmula que borbulhava
dos lábios no delíquio do êxtase amoroso.

Deviam de ser sublimes de beleza e sensualidade esses quadros vivos, que
se sucediam rápidos; porque até as mulheres aplaudiam com entusiasmo
e frenesi. Revoltou-me tanto cinismo; ergui-me da mesa.

— Que é isso? Não admiras? O que viste era mais perfeito’

— Não por certo!. . . Estes quadros são mais expressivos e
naturais! São sublimes de verdade! Porém sinto-me sufocado pela
atmosfera desta sala; preciso de ar.

Abri a porta que dava para o jardim, e saí.

VIII

Não Sou dos felizes, que conservam a virgindade d’alma, e levam a
santa comunhão do casamento a pureza e castidade das emoções.
Bem cedo ainda senti murchar a bonina delicada do coração; e
afoguei a minha ignorância nos gozos rapidamente fruídos e brevemente
olvidados.

Há porém na febre dos sentidos uma união intima da matéria,
unissonância de desejos e repercussão instantânea do prazer,
que opera a transfusão mística da palavra santa. O homem e a
mulher são a possessão mútua– una caro, a carne única,
onde vivem duas almas que nada vêem, porque só vêem a si.

Compreenda agora por que a bacante ficou fria e gelada para mim, na sua ardente
lascívia. A mulher que com seus encantos cevava outros olhos que não
os meus, a estátua animada de desejos que eu não havia excitado,
em vez de provocar em mim a admiração, indignou-me. Tive vergonha
e asco, eu, que na véspera apertara com delírio nos meus braços
essa mesma cortesã, menos bela ainda e menos deslumbrante, do que agora
na sua fulgurante impudência.

Quando a mulher se desnuda para o prazer, os olhos do amante a vestem de
um fluido que cega; quando a mulher se desnuda para a arte, a inspiração
a transporta a mundos ideais, onde a matéria se depara ao hálito
de Deus; quando porém a mulher se desnuda para cevar, mesmo com a vista,
a concupiscência de muitos, há nisto uma profanação
da beleza e da criatura humana, que não tem nome.

É mais do que a prostituição: é a brutalidade
da jumenta ciosa que se precipita pelo campo, mordendo os cavalos para despertar-lhes
o tardo apetite.

Contudo, passado o primeiro assomo, achei em minha alma, talvez mais piedade
do que indignação. Lembrei-me do que Lúcia me tinha dito
ao ouvido, da entonação áspera de sua voz, do estrépito
nervoso de seu riso, e tive dó dessa moça. Que motivo a obrigava
a descer tão baixo? Não era a cupidez, não; apesar de
quanto me dissera o Cunha no teatro, havia naquela mulher um quer que seja,
que revelava à primeira vista a nobreza do caráter. Devia de
ser a depravação; mas a depravação como ainda
não tinha encontrado, que se violentava, em vez de comprazer-se nos
seus excessos.

Uma curiosidade irresistível me aproximara da porta que ficara entreaberta.

Lúcia, trançando a sua longa manta listrada de escarlate, que
a envolveu como um pálio romano, voltara ao seu lugar e amolgara sobre
a cadeira um corpo sem articulações. Os aplausos e a ruidosa
grita continuavam no meio do fogo rolante de ditos licenciosos. Passado um
instante ela ergueu a cabeça, e seu olhar embaciado circulou, indo
lentamente de um a outro conviva.

— Quem estava aqui? balbuciou indicando o lugar que eu havia deixado.

— Já perdeste a memória? Bom sinal!

— Era eu, Lúcia! Não te lembras! disse o Couto.

— Mas havia alguém aqui?

— Não te inquietes!. . . Paulo foi tomar ares no jardim. Já
volta.

— E se não voltar…, disse o Couto esticando-se na sua pretensiosa
reticência.

— Era ele!… exclamou Lúcia rindo às gargalhadas.

— Está embriagada! pensei eu.

— E tu, Nina, não queres que também admiremos a tua beleza?
dizia Sá.

— É verdade! Apreciaremos o contraste! gritou o Rochinha.

— Nada, ainda não desci a este ponto.

— Com efeito é preciso ter perdido a vergonha, murmurou Laura com
desprezo.

Lúcia, que saíra da mesa, voltou-se com uma dignidade e nobreza
impossível de pressentir na cortesã da véspera e na bacante
de há pouco; mas essa expressão foi rápida; sucedeu-lhe
a habitual doçura, ainda realçada por um tom humilde.

— Não faças caso, é inveja, exclamou Sá.

— Tens razão, Laura, perdi a vergonha para ganhar o dinheiro de que
precisas; e desci a este ponto, Nina, desde que me habituei a desprezar o
insulto, tanto como o corpo que nós costumamos vender.

E sem esperar resposta, dirigiu-se à porta e saiu. O meu primeiro
movimento foi de repulsão; mas não sei que atração
irresistível me prendia a esta mulher, que a segui de longe. Vi-a caminhar
de um lado para outro, olhando em torno como se procurasse alguém;
por fim caiu extenuada sobre um banco de relva.

Aproximei-me então, e tomei-a nos braços; metiam dó
as contrações nervosas que crispavam seu belo corpo, e os soluços
de angústia que lhe partiam o seio e cerravam a garganta, sufocando-a.
Penou assim um tempo longo, em que receei por vezes que não expirasse
sobre o meu peito. Finalmente a crise passou; foi-se acalmando, e desfaleceu.

— Que idéia triste o senhor deve ter de mim! murmurou com a voz sumida.

— Para que te prestas a estas coisas!

— O que sou eu ?

— Embora! Há sempre um resto de dignidade, que impede a mulher de
consentir no que acabas de fazer.

— Dignidade de quem se despreza a si mesma!… O que é este corpo
que lhes mostrei há pouco, e que lhes tenho mostrado tantas vezes!
O que vale para mim? O mesmo, menos ainda, do que o vestido que despi; este
é de seda e custou o que não custa uma de minhas noites!. .
. Oh! creia, mais nua do que há pouco me sinto eu agora, coberta como
estou e aqui onde a sombra nem lhe deixa ver meu rosto!… Porém sua
alma vê o que fui e o que sou, e tenho vergonha!

Lúcia atirou-se soluçando sobre o meu peito; e o que me restava
ainda de indignação, desvaneceu-se.

— Por que não persististe na tua musa? Eu te pedi!

— Tinha eu o direito de recusar? Não foi para isso que se deu esta
ceia!

— Sá te disse alguma coisa a meu respeito?

— Não; mas adivinhei Queria que lhe roubasse a surpresa que estava
preparada, e aguasse com uma contrariedade a festa de seu amigo? Demais, não
havia de saber; não lhe contariam, se já não lhe contaram,
toda a minha vida?

— Não me incomodaria tanto como o que vi.

— Mas então para que veio?

— Não sabia o que se tinha de passar; suspeitava que te havia de
encontrar aqui; porém nunca pensei que homens de educação
achassem prazer em obrigar uma pobre mulher a semelhante degradação!

— Eles compram o seu prazer onde o acham; a degradação e a
miséria é a de quem recebe o preço. Senti-o hoje ! Nunca
isso custou-me tanto! Conheci que era uma infâmia; se o senhor não
zombasse de mim, não o teria feito por coisa alguma deste mundo.

Nem sei onde estava naquele momento! Mas, Lúcia, já que o confessas,
promete-me… Nada sou para ti, as nossas relações datam de
ontem; porém em nome da indignação que senti, e do interesse
que me inspiras, promete-me que nunca mais farás semelhante coisa.

Ela ergueu-se:

— Eu lhe juro, disse com a fala grave e comovida.

Sentando-se de novo ao meu lado, continuou:

— E o senhor não me julgará muito indigna? Não me desprezará?

— Não te desprezo; tenho pena de ti.

Lúcia travou-me da mão e beijou-a.

Esse beijo submisso fez-me mal.

Afastei-me arrebatadamente. Senti as mãos úmidas de lágrimas,
que eu não sentira chorando-as. Lúcia aproximou-se pouco e pouco;
os seus passos ligeiros crepitavam na areia; parou diante de mim, e não
me animei a olhá-la.

Estranha contradição!

Quando a lembrança ainda recente devia avivar as cores do quadro vergonhoso
e revoltante que me tinha indignado, eu esquecia a pesar meu. Se fazia um
esforço para evocar a cena da ceia, as idéias confundiam-se;
a imagem da bacante, surgida um momento, ia-se desvanecendo até sumir-se;
e nas sombras que nublavam o meu pensamento assomava radiante a mulher que
eu possuíra na véspera com todas as forças de minha vitalidade.
O desejo parecia mesmo ter adquirido nova têmpera, e mais poderosa,
na luta de que saíra.

Lúcia se tinha sentado junto de mim; alisava-me os cabelos, olhando-me
à luz das estrelas.

— Se não tivesse vindo! suspirou ela Não me fugiria; talvez
olhasse para mim como das primeiras vezes que nos vimos; ao menos ainda poderia
dar-lhe um pouco de prazer, já que nada mais tinha para dar-lhe.

— E por que não me darás ainda, Lúcia, esse prazer?

— Depois do que se passou ?

— Cala-te! murmurei surdamente. Tu és uma criança!… Não
tens culpa do que fizeste!

— Deveras me perdoa ?. . . Ainda me quer?

Colei os meus lábios ao ouvido de Lúcia; tinha vergonha do
eco de minhas palavras.

— Quero-te para sempre’ Quero que sejas minha e minha só.

— Ah!…

Lúcia saltou como a gazela prestes a desferir a corrida, quando as
baforadas do vento lhe trazem o faro de tigre remo to; estendendo o braço
mostrou-me a sala da ceia, donde escapava luz e rumor.

— Mais longe!…

Fomos através das árvores até um berço de relva
coberto por espêsso dossel de jasmineiros em flor.

— Sim! Esqueça tudo, e nem se lembre que já me visse! Seja
agora a primeira vez!… Os beijos que lhe guardei, ninguém os teve
nunca! Esses, acredite, são puros!

Lúcia tinha razão. Aqueles beijos, não é possível
que os gere duas vezes o mesmo lábio, porque onde nascem queimam, como
certas plantas vorazes que passam deixando a terra maninha e estéril.
Quando ela colou a sua boca na minha pareceu-me que todo o meu ser se difundia
na ardente inspiração; senti fugir-me a vida, como o liquido
de um vaso haurido em ávido e longo sorvo.

Havia na fúria amorosa dessa mulher um quer que seja na rapacidade
da fera.

Sedenta de gozo, era preciso que o bebesse por todos os poros, de um só
trago, num único e imenso beijo, sem pausa, sem intermitência
e sem repouso. Era serpente que enlaçava a presa nas suas mil voltas,
triturando-lhe o corpo; era vertigem que vos arrebatava a consciência
da própria existência, alheava va um homem de si e o fazia viver
mais anos em uma hora do que em toda a sua vida.

A aspereza e feroz irritabilidade da véspera se dissipara. O seu amor
tinha agora sensações doces e aveludadas, que penetravam os
seios d alma, como se a alma tivera tato para senti-las.

Não fui eu que possuí essa mulher; e sim ela que me possuiu
todo, e tanto, que não me resta daquela noite mais do que uma longa
sensação de imenso deleite, na qual me sentia afogar num mar
de volúpia.

Quando o primeiro raio da manhã tremulando entre as folhas rendadas
veio esclarecer-nos, Lúcia, reclinada a face na mão, me olhava
com o ressumbro de doce melancolia, que era a flor de seu semblante em repouso.
Embebendo o olhar no meu, procurou o pensamento no fundo de minha alma. Sorri;
ela corou; mas desta vez entravam também no rubor os toques vivaces
do júbilo que iluminou-lhe a fronte.

Incompreensível mulher!

A noite a vira bacante infrene, calcando aos pés lascivos n pudor
e a dignidade, ostentar o vício na maior torpeza do cinismo, com toda
a hediondez de sua beleza A manhã a encontrava tímida menina,
amante casta e ingênua, bebendo num olhar a felicidade que dera, e suplicando
o perdão da felicidade que recebera.

Se naquela ocasião me viesse a idéia de estudar, como hoje
faço à luz das minhas recordações, o caráter
de Lúcia, desanimaria por certo à primeira tentativa. Felizmente
era ator neste drama e guardei, como a urna de cristal guarda por muito tempo,
o perfume de essência já evaporada, as impressões que
então sentia. É com ela que recomponho este fragmento de minha
vida.

Lúcia disse-me adeus; não consentiu que a acompanhasse, porque
isso me podia comprometer. Insisti debalde; e recolhi-me de meu lado quebrado
de fadiga e sono.

Em casa de Sá já se dormia quando partimos.

IX

Acordei por volta de duas horas, e fui escrever. Depois da noite que passara
talvez suponha que fiz versos. Pois engana-se: fiz contas.

Revi o meu livro de assentos, dando balanço à minha fortuna,
que então orçava por uma quinzena de contos. Era bem pobre;
mas estava independente, formado, no ardor da mocidade e sem encargos de família.
Já tinha a intenção de estabelecer-me aqui; e antes de
começar a vida árida e o trabalho sério do homem que
visa ao futuro, queria dar um último e esplêndido banquete às
extravagâncias da juventude.

Quem melhor do que Lúcia me ajudaria a consumir as migalhas que me
pesavam na carteira, e me embelezaria um ou dois meses da vida que eu queria
viver por despedida? Separei o necessário para a minha subsistência
durante dois anos; e com a fé robusta que se tem aos vinte anos, rico
de esperanças, destinei o resto ao festim de Sardanapalo, onde eu devia
queimar na pira do prazer a derradeira mirra da mocidade.

Tendo registrado no meu budget, com um simples traço de pena, a importante
resolução, saí para matar a sede de ar, de sol e de espaço
que sente o homem depois do sono tardio e enervador. Espaciei o corpo pela
Rua do Ouvidor; o espírito pelas novidades do dia; os olhos pelo azul
cetim de um céu de abril e pelas galas do luxo europeu expostas nas
vidraças.

Era um domingo; o ócio dos felizes desocupados tinha ganhado o campo
e os arrabaldes. Encontrei por isso poucos conhecidos e fria palestra.

Queria fazer horas para ir ver Lúcia. Com os hábitos de voluptuosa
indolência, que tomam as mulheres a quem faltam os cuidados domésticos,
não era natural que tão cedo fosse visível. Para ocupar-me
dela, entrei em casa do Valais, o joalheiro do bom-tom.

Comprei, não o que desejava, mas o que permitiam as minhas finanças.
Só os milionários gozam do prazer de medir a sua liberalidade
pela efusão do sentimento; entretanto o desejo avulta justamente onde
mingua a fortuna. Tinha escolhido uma dessas galantarias de ouro e brilhantes,
que custam algumas centenas de mil-réis, e valem um capricho, uma tentação,
um sorriso de prazer.

Ao sair vi um adereço de azeviche muito simplesmente lavrado, e por
isso mesmo ainda mais lindo na sua simplicidade. Tênue filete de ouro
embutido bordava a face polida e negra da pedra. Há certos objetos
que um homem dá à mulher por um egoístico instinto do
belo, só para ver o efeito que produzem nela. Lembrei-me que Lúcia
era alva, e que essa jóia devia tomar novo realce com o brilho de sua
cútis branca e acetinada. Não resisti; comprei o adereço,
e tão barato, que hesitei se devia oferecê-lo.

Seriam quatro horas.

Achei Lúcia reclinada no sofá. Estava matando o tempo, ora
examinando o crivo dos punhos e o debuxo do penteador de cambraia, ora cerrando
as pálpebras para engolfar o espírito nalguma deliciosa reminiscência.

— Preguiçoso! Há duas horas que o espero! disse dando-me a
mão e sorrindo.

— Saí há muito tempo, e não passei por aqui com receio
de incomodar-te.

— Tenha bondade de dizer: quem lhe deu o direito de pensar que me incomoda?

— O meu gênio! Desconfio de mim.

— Pois o seu gênio enganou-o; fique sabendo que o senhor nunca me
pode incomodar a qualquer hora que venha aqui! Nunca; ouviu ?

— E quanto tempo durará isso?

— Ah! já lhe disseram que sou volúvel! Eles têm razão
de o dizer; porém má como sou, ainda assim não me julgue
pelo que lhe contarem.

— Não te julgo, nem te quero julgar. Conheço-te de ontem;
de ontem somente, tu o disseste!

— Pois essa que fui ontem continuarei a ser, já que Deus não
quis que fosse a outra, que viu da primeira vez.

— Não era mais bonita do que a desta noite.

— Quem sabe? Mas diga-me, continuou acariciando-me o rosto com a mão
travessa; deveras pensou hoje alguma vez em mim, ou esqueceu-se apenas nos
separamos?

— Tanto, que te trouxe uma lembrança.

— Ah! quero ver, sou muito curiosa!

Tirei as jóias e dei-lhe; o sorriso faceiro que despontava no lábio
murchou de repente. Atribuí a excesso de curiosidade e atenção,
porém ela abrindo lentamente a caixa, lançou-lhe apenas um olhar
distraído, e deitou-a sobre a cadeira com uma frieza glacial e um desgosto,
que transparecia entre a expressão de forçada amabilidade com
que me agradeceu:

— Obrigada; não valho tanto!

Esse tanto foi dito com uma surda vibração, e profunda, como
se a voz que o articulara houvesse ferido interiormente todas as cordas de
sua alma. <<Cunha tinha razão, pensei eu; a cupidez e a avareza
são as molas ocultas que movem este belo autômato de carne. Está
habituada a presentes de milionário; desdenha a migalha do pobre>>.

Tive ímpetos de cuspir dos lábios os beijos que recebera e
não podia pagar pelo seu justo preço.

Abria ela a outra caixa com a mesma lentidão e indiferença;
quando súbito expandiu-se num desses enlevos que descem, como ondas
de fluido luminoso, da fronte apaixonada e inteligente da mulher que ama.
Soltou um pequeno grito de prazer, e agradeceu-me desta vez sem palavras,
com um só olhar, mas olhar como ela unicamente os tinha; olhar fundo
e longo, que parecia surgir de um abismo e dilatar-se ao infinito.

Posso eu descrever-lhe a ingênua alegria e as visagens graciosas e
infantis que ela fez diante dessa jóia sem valor? Era a gárrula
travessura da criança a quem se deu um brinquedo bonito; a mimosa garridice
da menina que festeja o seu primeiro enfeite de moca; as carícias felinas
do gato brincando com a tímida presa que vai devorar.

— Que bonito, meu Deus! exclamava a cada instante. Quero ver como me fica!
Hei de trazê-lo sempre!

Imediatamente substituiu os brincos que tinha pelos de azeviche, cingiu o
colar, e saltando como uma louquinha, correu ao espelho; ai repetiu-se a mesma
cena. Apesar da naturalidade e do ímpeto involuntário destes
gestos, a minha habitual desconfiança suspeitou naquela efusão
de contentamento uma zombaria amarga; supus um momento, que ela pretendia
ironicamente fazer-me sentir por esse modo a mesquinhez do presente.

Não lhe cause isto surpresa; lembre-se que idéia devia fazer
então dessa mulher pelos precedentes que conhecia de sua vida.

— Que significa esta admiração fora de propósito, Lúcia?
Estou arrependido de te haver oferecido semelhante ninharia; mas cuidei que
me perdoasses em atenção à outra, que não me parecia
muito digna de tua beleza Não sou rico; e há pouco a indiferença
com que recebeste esta pulseira fez-me sentir bem amargamente a minha pobreza.
Estou convencido que o fizeste sem querer.

Essa criatura tinha a intuição rápida e instantânea,
que é no homem a segunda vista do gênio, e em algumas mulheres
privilegiadas um instinto sutil do coração. À primeira
palavra, a expansiva alegria que vertia de toda sua pessoa caiu-lhe aos pés.
Ficou séria, submissa e envergonhada, como a criança traquinas,
que surpreende em flagrante o ralho paterno. Recolheu confusa o adereço
e veio sentar-se ao meu lado.

— Diz que recebi com indiferença esta pulseira! E qual é a
causa da minha alegria? Disfarcei para o senhor não pensar que desejo
me venha ser somente pelo valor destes brilhantes. Além disto, quando
se recebe mais do que se vale, fica-se acanhada

Compreendo hoje as rápidas transições que se operavam
nessa mulher; mas naquela ocasião, como podia adivinhar a causa ignota
que transfigurava de repente a cortesã depravada na menina ingênua,
ou na amante apaixonada!

— Mas por isso não se zangue comigo!

E inclinou a face para receber uma carícia.

— Torno a pedir-te, Lúcia; nunca me digas o que não sentes.
Tens o mau gosto de te rebaixares.

— Se eu quisesse parecer melhor do que realmente sou e fingir sentimentos
que não posso ter, me tornaria ridícula. Talvez o senhor fosse
o primeiro a escarnecer de mim.

— Tudo isto, sabes o que é? É orgulho ofendido por algumas
palavras que me escaparam anteontem. Não negues; já te conheço
melhor do que tu mesma.

— Deveras! É difícil conhecer-me; mais difícil do que
pensa. Eu mesma, sei o que às vezes se passa em mim? E o motivo que
me arrasta sem querer? Não repare nestas esquisitices! Ralhe comigo,
quando eu merecer; prometo corrigir-me.

— Era o meio de me tornar insuportável. Daqui a uma semana não
me poderias aturar.

— Experimente!

— Não; dizem que és muito caprichosa, e não há
nada que eu respeite como os caprichos de uma mulher. Fica o que tu és;
somente sentiria que cometesses excessos como os de ontem.

— Já lhe dei um juramento!

— Acredito nele. Portanto não há necessidade de te humilhares
diante de mim, que não tenho direito de pedir-te contas de tua vida.
Não te pergunto pelo passado. O que te peço são alguns
instantes de prazer. Quando te aborrecer, previne-me.

O senhor nunca me há de aborrecer! Se este prazer que lhe dou vale
alguma coisa, tome dele quanto queira; pertence-lhe todo!

Davam seis horas. Lúcia pediu-me que jantasse com ela, e fê-lo
com tal humildade e timidez, que apesar dos meus escrúpulos aceitei
para não mortificá-la. Enquanto ela vestia-se no toucador, recostei-me
no sofá e descontei quase uma hora do sono perdido na véspera.
Abrindo os olhos vi Lúcia reclinada sobre mim.

— Devias estar maçada por me ver dormir. Por que não me acordaste?

— Agora mesmo acabei de aprontar-me.

Estava encantadora com o seu roupão de seda cor de pérola ornado
de grandes laços azuis, cuja gola cruzando-se no seio deixava-lhe apenas
o colo descoberto. Nos cabelos simplesmente penteados, dois cactos que apenas
começavam a abrir às primeiras sombras da noite. Mas tudo isso
era nada a par do brilho de seus olhos e do viço da pele fresca e suave,
que tinha reflexos luminosos.

— Foi para mim que te fizeste tão bonita?

— E para quem mais? disse com um acento queixoso. Estou a seu gosto?

— Como sempre.

— Pois vamos jantar.

Ela fez-me as honras de sua casa como uma verdadeira senhora, com o tato
esquisito que põe o hóspede à sua vontade, cercando-o
contudo de mil atenções delicadas. O jantar foi sério.
Ou porque Lúcia nessa ocasião desejasse conservar a sua dignidade
de dona-de-casa; ou porque a presença dos criados a acanhasse, o fato
é que não deixou nunca o tom ligeiramente cerimonioso que havia
tomado.

Depois de jantar sentamo-nos no terraço, onde tomamos café,
e eu fumei o meu charuto, do qual ela brincando roubou-me algumas fumaças
com tal graça e prazer, que bem provavam ter cultivado mais esse vício.

A noite estava bonita e estrelada, e o céu coalhado de nuvens que
recortavam sobre o azul as formas caprichosas. Lúcia tinha a alma poética;
falava da natureza com o entusiasmo ingênuo que dá a vida contemplativa
àqueles que não conhecem os segredos da ciência; muitas
vezes fazia-me perguntas que me embaraçavam; outras cortava a frase
colorida com um riso em que vertia a sua fina ironia.

— Ali está a minha estrela! Olhe, sou eu! disse mostrando-me Lúcifer,
que se elevava no oriente, límpida e fulgurante.

Não pude deixar de sorrir-me.

— És muito linda no céu, sobretudo hoje que vestes um manto
de tão puro azul; mas eu te prefiro aqui junto de mim, Lúcia.

— Também eu; antes queria viver sempre neste cantinho da tem como
agora, respondeu-me tomando as mãos e olhando-me, do que no céu
como ela brilhando para o mundo inteiro.

Calou-se um instante.

— Se eu ainda lá estivesse, desceria agora para vir sentar-me aqui.
Mas Lúcifer deixou no céu a luz que perdeu para sempre.

Quando voltamos ao salão, já estava iluminado.

É preciso ter como Lúcia a beleza, a sedução
e o espírito que enchem uma sala; a mobilidade e a elegância
que multiplicam uma mulher, como o prisma reproduz o raio do sol por suas
mil facetas; para assim consumir deliciosamente uma noite com as filigranas
da galantaria feminina. Em três horas, que voaram, quer saber o que
fez essa mulher? Tocou e cantou com sentimento, conversou com a sua graça
habitual, representou-me tipos da comédia fluminense; fez a sátira
dos ridículos da época; recitou versos de Garrett, como o faria
a Gabriela; brincou, saltou, dançou; e por fim acabou tornando-me criança
como ela, e obrigando-me a jogar prendas que eram resgatadas com um beijo
na face.

As dez horas quis retirar-me. Lúcia suspendeu-se ao meu ouvido, e
balbuciou muito baixo uma súplica:

— Fique!

Um olhar eloqüente, raio voluptuoso que rompeu o enleio encantador de
seu gesto, disse-me quanto havia nessa palavra. O meio de resistir a semelhante
pedido?

X

Recolhendo-me no dia seguinte, encontrei Sá que subia as escadas do
hotel.

— Que fim levaste anteontem, que ninguém te viu mais? — Voltei para
casa.

— Com Lúcia, já se sabe! Ainda estás muito atrasado,
Paulo. Tens o amor no meio de uma claridade esplêndida, em volta de
uma mesa bem servida, sobre macios tapetes; e preferes o amor bucólico
ao relento e sobre a relva!. . .

— Sou extremamente egoísta nesta matéria, meu amigo; só
partilho o amor com a mulher que o sente.

— São gostos; mas ficaste sabendo o que é Lúcia, e
entretanto ela estava de mau humor. Num dos seus bons dias, não tem
que invejar às cortesãs gregas ou as messalinas romanas.

— Ela já contou-me tudo isso, Sá, respondi com impaciência.

— Pudera não! São os seus brasões de glória;
e por isso previno-te. É uma mulher que só pode ser apreciada
de copo na mão e charuto na boca, depois de ter no estômago dois
litros de champanha pelo menos. Nessas ocasiões torna-se sublime! Fora
disso é excêntrica, estonteada e insuportável. Ninguém
a compreende.

— Eu compreendo-a perfeitamente. É uma moça gasta para os
prazeres; ainda jovem no corpo, mas velha n’alma. Quando se atira a esses
excessos de depravação, é estimulada pela esperança
vã de um gozo que lhe foge; atordoa-se, embriaga-se e esquece um momento;
depois vem a reação, o nojo das torpezas em que rojou, a irritabilidade
de desejos que a devoram e que não pode satisfazer; nestas ocasiões
tem suas veleidades de arrependimento; a consciência solta ainda um
grito fraco; a cortesã revolta-se contra si mesma. Isso passa no dia
seguinte. Eis o que é Lúcia; daqui a algum tempo o hábito
fará dela o mesmo que tem feito das outras: envelhecerá o corpo,
como já envelheceu a alma.

Sá me ouviu rindo à socapa e com malícia:

— Pois já que a compreendeste tão bem, explica-me isto.

E apresentou-me uma carta aberta, que ao tirar do sobrescrito deixou cair
algumas notas do banco. Era de Lúcia, e dizia:

«O senhor enganou-se. Sou eu que lhe devo, e tanto, que não
lho poderei pagar nunca.:,

Senti lendo esta carta um bem-estar inexprimível.

— Que dizes? perguntou Sá. – Digo que ela fez o que devia. -Talvez
por conselho teu?

— Afirmo-te que não sabia disto; e que soubesse, bem se importa Lúcia
com os meus conselhos. Seguiu o seu próprio impulso; arrependeu-se
do que fez; e te agradece a lição. Nada mais natural.

Sá olhou-me um instante:

— Somos ambos moços, Paulo; porém sou mais velho três
anos de idade, e oito anos de Rio de Janeiro. A corte é um país
onde se envelhece depressa; por isso não te admires se falo como um
homem de cinqüenta anos. Queres te divertir: é justo, é
mesmo necessário; porém não tomes Lúcia ao sério.

— Não te entendo!

— Sabes que terrível coisa é uma cortesã, quando lhe
vem o capricho de apaixonar-se por um homem! Agarra-se a ele como os vermes,
que roem o corpo dos pássaros, e não os deixam nem mesmo depois
de mortos. Como não tem amor, e não pode ter, como a sua inclinação
é apenas uma paixão de cabeça e uma excitação
dos sentidos, orgulho de anjo decaído mesclado de sensualidade brutal,
não se importa de humilhar seu amante. Ao contrário sente um
prazer novo, obrigando-o a sacrificar-lhe a honra, a dignidade, o sossego,
bens que ela não possui. São seus triunfos. Fá-lo instrumento
da vingança ridícula, que todas essas mulheres prosseguem surdamente
contra a boa sociedade, porque não as aplaude. O seu ciúme é
fome apenas; se o amante tem alguma afeição honesta, ela torna-se
confidente de seus amores, encoraja-o, serve-o mesmo, para ter o gosto de
mais tarde disputar a presa. Então não há excesso que
não cometa. Se for necessário aviltar o homem, ela o fará,
à semelhança desses torpes glutões que cospem no prato
para que os outros não se animem a tocá-lo.

— Mas a que vem este sermão, Sá? As minhas relações
com Lúcia não têm nada que se pareça com o teu
romance; tu me conheces bem para saber que não há mulher no
mundo capaz de me atar à cauda de seu vestido, ainda quando fosse para
elevar-me, quanto mais para arrastar-me na lama.

— Quando essa mulher é Lúcia, o próprio José
devia temer, Paulo.

— É perigosa assim? perguntei zombando.

— A mulher de Putifar foi uma pobre moça, devorada pela concupiscência,
que se atirava cega e alucinada nos braços do homem, desejado. Era
natural que a virtude chocada bruscamente repelisse o vício, como um
corpo elástico repele outro. Essa mulher não conhecia a arte
da tentação. Se ardendo em febre sensual, quando estendia a
perna nua ou descobria o seio a José, tivesse a força de olhá-lo
como ao cão importuno que gira em torno do festim a quem o conviva
repele com o pé, não se passaria muito tempo sem que o animal
exasperado se lançasse sobre o osso, que o tentava, para devorá-lo,
embora soubesse que lhe atravessaria a garganta.

— Mas eu não sou José I, respondi sorrindo; e prefiro a carne
que me dão, ao osso, que me recusam.

— Por isso mesmo, bebeste o primeiro trago do vinho provaste uma vez do
fruto proibido. Já conheces o amor dessa mulher: é um gozo tão
agudo e incisivo que não sabes se é dor ou delícia; não
sabes se te revolves entre gelo ou no meio das chamas. Parece que dos seus
lábios borbulham lavas em bebidas em mel; que o ligeiro buço
que lhe cobre a pele acetinada se eriça, como espinhos de rosa através
das pétalas macias; que o seu dente de pérola te dilacera as
carnes deixando bálsamo nas feridas. Parece enfim que essa mulher te
sufoca nos seus braços, te devora e absorve para cuspir-te imediatamente
e com asco nos beijos que atira-te à face!

— É verdade! disse eu lembrando-me, mas já a senti uma vez
sem esse sabor agro e corrosivo.

— Porque teu paladar se vai habituando. Só conheci uma criatura assim
e não era uma cortesã… Mas não se trata disto, atalhou
Sá como repelindo uma recordação importuna. Quando supuseres
que o tédio te invade, procurarás debalde o prazer; a mulher
a mais provocante, esteja ela possessa de vinho e de amor, te parecerá
morta. Eis o perigo: terás a força de resistir?

— Tu não resististe ?

— Com esforço; e entretanto quando a conheci, há um ano, já
tinha feito todas as minhas provas; não creio que possas dizer o mesmo.

— Mas, se Lúcia é essa mulher esquisita, insuportável
e caprichosa, ela mesma se incumbirá de curar-me.

— E se eu te disse que é essa versatilidade e inconstância
de humor que a torna mais excitante! Acrescenta que Lúcia tem vontade
de apaixonar-se por ti.

— Oh! essa é galante! Como fizeste semelhante descoberta ?

— Esta carta! O que é que Lúcia me pode dever daquela ceia,
senão o teu conhecimento?

— Eu já a conhecia.

— De vista.

— Na frase da escritura, Sá.

— Ah!

— Estive em sua casa, quinta-feira.

— Bem: cumpri o meu dever de amigo; cumpre o teu de homem sensato. Adeus.

Voltei de tarde à casa de Lúcia; encontrei na sala uma das
nossas companheiras de ceia. Lúcia vendo-me entrar, ergueu-se bruscamente.

— Desculpa, Laura, amanhã passarei por tua casa, e então conversaremos;
agora não posso.

— Eu te deixo, mas acredita que não esquecerei nunca o favor que
me fizeste.

— Não vale a pena. Adeus.

— Hei de lembrar-me sempre que sem ti, não teria amanhã onde
dormir. É pequeno serviço?

— Não vês que me estás aborrecendo, Laura! disse Lúcia
batendo o pé com impaciência.

— Está bem, não quero que te arrependas do benefício.

— Certamente me farás arrepender Sabes que eu não gosto que
me contrariem. Adeus.

Laura fitou nela um olhar surpreso, no qual passou rapidamente a sombra de
um ressentimento; mas acabou rindo-se, e saiu depois de dizer estas palavras:

— Tu me expulsas de tua casa? Não tenho o direito de me ofender;
acabas de pagar o aluguel da minha.

A porta fechada por Lúcia bateu com tanta força que as vidraças
das janelas estremeceram.

Tinha assistido de parte a esse pequeno e vivo diálogo, e compreendera
tudo. A alusão que Lúcia fizera na noite da ceia realizava-se;
Laura recorrera a ela numa dificuldade, e acabava de receber o benefício
da mão que insultara. Inda mais, sem delicadeza para compreender o
motivo da contrariedade de Lúcia que desejava ocultar de mim a sua
generosidade, saía maculando com uma ironia grosseira a gratidão
que exprimia.

O coração de uma me apareceu vil e torpe, quanto a alma da
outra se mostrava nobre, elevada e rica de sensibilidade.

Lúcia deu algumas voltas pela sala, enquanto dominava a sua agitação,
e caminhou para mim risonha, meiga, e ainda resplandecente das cores vivas
que uma cólera passageira abrira em suas faces, como as tempestades
rápidas, que atravessam a atmosfera, deixando a natureza mais brilhante
e viçosa.

— Agora é meu até?. . . e a última palavra desfez-se
num sorriso celeste. Até amanhã! E meu só.

Inclinou a fronte, que eu beijei.

Por que estavas há pouco tão zangada?

— Já não me lembro! respondeu com faceirice, pousando a unha
rosada no lugar que os meus lábios tinham tocado. Apagou tudo! Estas
horas que acabam de passar, não contam na minha vida Dormi e sonhei.
Foi o senhor que me acordou; e eu acordei rindo-me. Não viu?

— Quiseste ocultar-me; mas entendi tudo. Acabavas de fazer um benefício
à mulher que te ofendeu.

— Ela não teve culpa! Foi um despeito porque não lhe deram
a preferência: eu faria o mesmo. Demais, não era justo o que
ela disse!

— Em todo o caso é preciso muita baixeza para pedir-se um favor à
pessoa a quem se dirigiu um insulto.

— Tinha pedido antes; e nem foi o que o senhor pensa

— Ah! Veio exigir o cumprimento da promessa feita.

— Não foi assim, não senhor. Não exigiu coisa alguma.

— E que fazia ela aqui quando eu cheguei?

— Estava me aborrecendo.

— Estava te agradecendo.

— É o mesmo.

— E por que te agradecia? Porque lhe tinhas dado c que veio pedir; o dinheiro
para pagar o aluguel da casa.

— Que teimoso! Se estou lhe dizendo que ela não me veio pedir nada.

— Percebo; tu lhe ofereceste espontaneamente, e ela aceitou, porque vindo
aqui não tinha outro fim.

— Meu Deus! disse com um gracioso enfado, quando eu estou junto dele, não
me lembro de outra coisa; e ele esquece-se de mim para ocupar-se com Laura!
Quer saber tudo? pois eu lhe digo. Fui eu quem lhe mandou ontem esse dinheiro,
uma ninharia; e ela veio aqui aborrecer-me e contar as suas desgraças.
Está contente ?

— Não; fizeste uma esmola, é generoso; quiseste ocultá-la
é modesto; mas esqueceste que eu devia ter a minha parte nessa boa
ação; e não te perdôo.

— Assim nunca remiria os meus pecados! E o que eu fiz, não é
tal uma boa ação; quando chegar a minha vez de precisar, ela
me dará.

— Ainda!.. . Deixarás de pedir-me a mim para pedir a ela?

— Disse-o sem sentir! Não precisarei de nada; de nada senão
que me venha ver! Isso, fique certo que lhe pedirei todos os dias.

Tomou-me a cabeça. e reclinando-a sobre o ombro, cobriu-me de carícias.

— Hão de lhe ter dito já que sou muito avarenta. Não
lhe enganaram, não! Sou; gosto de esconder assim o meu tesouro; de
fazer tinir docemente as minhas moedas; de contá-las uma a uma até
perder a soma; de embriagar-me como agora na contemplação de
meu ouro, e estremecer só com a idéia de perdê-lo!

Cada uma dessas palavras caía através dos beijos amiudados
que me sufocavam.

— Dizem que a avareza é um vicio; mas desse não peço
perdão a Deus, que me deu o meu tesouro, mesmo para que o escondesse
do mundo, e não expusesse a maus olhados. Portanto fique sabendo, não
há de vir à minha casa todos os dias como pensa!

Quis levantar-me despeitado. Ela obrigou-me a sentar; e saltando ligeira
sobre os meus joelhos, desfolhou no meu rosto uma risada fresca e argentina.

— Não, senhor; não ha de vir todos os dias: Ah: supunha ?.
. .

— Tinha-me enganado; não será a última vez.

— Já está me querendo mal; pois tenha paciência. Só
há de entrar aqui duas vezes por semana: na segunda e na quinta-feira.

XI

Encontram-se nas florestas do Brasil árvores preciosas, que, feridas,
vertem em lágrimas o bálsamo que encerram.

Assim era, quando uma palavra involuntária da minha parte ofendia-lhe
a suscetibilidade e banhava-lhe o rosto do pranto, que Lúcia me revelava
toda a riqueza da sua alma.

As nossas relações duravam havia um mês; apenas algumas
ligeiras nuvens, das que achamalotam o azul da atmosfera nas tardes calmosas,
toldaram por vezes o nosso céu risonho. Mas, como brisa suave, o hálito
de Lúcia as delgaçava logo, e elas se desvaneciam com um sorriso
doce e carinhoso. Era eu que desastradamente acumulava sobre o nosso horizonte
esses vapores do meu mau humor; e era ela que os expelia, não perdoando,
mas pedindo perdão da ofensa que recebera.

A questão econômica, questão delicada em que se chocavam
o seu nobre desinteresse e a minha dignidade, havia sido felizmente resolvida.

Tinha visto Lúcia esconder num vaso do toucador a chave da gaveta
onde guardava o seu dinheiro. Cometi a indiscrição de abrir
uma vez por semana essa gaveta, e deitar a soma que comportava com a minha
fortuna e com o luxo em que ela vivia.

A primeira vez que isso sucedeu, foi na manhã seguinte à visita
de Sé; todo o dia se passou sem a menor alteração, o
que me tranqüilizou, porque estava firmemente resolvido a não
ceder. Já por diversas vezes Lúcia tinha aberto a gaveta; era
natural que houvesse percebido; e contudo não me dissera uma palavra.

A tarde porém pareceu-me ouvir ao longe rugir a tempestade.

— Mandei comprar um camarote!

— Se querias ir ao teatro, por que recusaste o que te ofereci ?

— Estou tão rica hoje! Não sei o que hei de fazer do dinheiro,
respondeu sorrindo.

Veio nesse sorriso um espinho que entrou-me n’alma; olhei-a fixamente, porém
já o seu rosto estava calmo e sereno. A consciência que eu tinha,
de não ser bastante rico para essa mulher, pungia-me tanto e a cada
momento, que à menor palavra dúbia, ao menor gesto equívoco,
os meus brios se revoltavam. Farejava uma ironia até no seu próprio
desinteresse, que podia ser inspirado pelo conhecimento de minha pobreza.

Mas essa foi a última ocasião em que Lúcia deu azo à
minha desconfiança; desde então quando eu ia à gaveta
do toucador, por mais que o disfarçasse, ela adivinhava imediatamente,
não sei por que secreta revelação; e mal eu me sentava
ao seu lado dizia-me com uma mansuetude e uma gratidão sublime, apertando
a minha mão ao seio:

— Obrigada!

Como explicar essa rápida e extraordinária mudança?
A mulher que dois dias antes se indignava com um oferecimento delicadamente
feito, agora não só recebia o serviço oferecido, mas
o agradecia com tanta efusão e reconhecimento! Teria nesse momento
grande e urgente necessidade de dinheiro, ou a sua primeira recusa não
fora sincera?

Compreenda, se pode; quanto a mim, expliquei as repugnâncias de Lúcia
por um resto de pudor; e regozijei-me com as suas novas disposições,
que vinham poupar-nos futuros dissabores.

Desde que os meus escrúpulos desapareciam com a posição
que tomara, não havia motivo para deixar de beber a longo trago na
taça do prazer, que Lúcia me apresentava sorrindo. Passava todo
o meu tempo em sua casa e ao seu lado; conversávamos, ríamos,
colhíamos as flores que a mocidade espargia em nosso caminho; e assim
corriam as horas tecidas a fio de ouro e púrpura.

Às vezes lia para ela ouvir algum romance, ou a Bíblia, que
era o seu livro favorito. Lúcia conservava de tempos passados o hábito
da leitura e do estudo; raro era o dia em que não se distraía
uma hora pelo menos com o primeiro livro que lhe caía nas mãos.
Dessas leituras rápidas e sem método provinha a profusão
de noções variadas e imperfeitos que ela adquirira e se revelavam
na sua conversação. As segundas e quintas-feiras eu saía;
mas apenas tinha comprado algumas galantarias que lhe destinava, já
os pés me pruriam para tomar o caminho de sua casa. Depois de três
ou quatro horas inutilmente desperdiçadas, voltava ao meu berço
de rosas; e por mais cedo que chegasse, sempre chegava tarde para ela, e para
mim.

Lúcia tinha a poesia da voluptuosidade.

«Fazer nascer um desejo, nutri-lo, desenvolvê-lo, engrandecê-lo,
irritá-lo, afinal satisfazê-lo, diz Balzac, é um poema
completo.:> Ela compunha esses poemas divinos com um beijo, um olhar, um
sorriso, um gesto. Que de harmonias sublimes não arrancava da lira
do amor com aquelas notas de sua chave voluptuosa! E a sua beleza admirável,
como a sua graça infinita, davam sempre àqueles hinos do prazer
uns retoques originais.

Entretanto devo dizer-lhe: nunca mais admirei essa mimosa criatura no esplendor
da sua beleza. A cortesã que se despira friamente aos olhos de um desconhecido,
em plena luz do dia ou na brilhante claridade de um salão, não
se entregava mais senão coberta de seus ligeiros véus: não
havia súplicas, nem rogos que os fizessem cair. As vezes e quantas,
ela chegava-se para mim corando, e começava a olhar-me com os seus
grandes olhos negros, tão afogados em languidez, que eu percebia imediatamente
o turbilhão de desejos que se agitava naquele seio ofegante. E quando
a tomava nos meus braços, debatia-se esgarçando com prazer as
rendas e a escumilha, até que, rendida na luta que provocava, caia
trêmula e palpitante no meu peito.

Apesar de minhas instâncias, Lúcia recusava ir ao teatro, sair
a passeio, ou gozar de algum dos poucos divertimentos que lhe oferecia esta
insípida cidade.

— Não sei quanto tempo durará a minha felicidade; e não
quero esperdiçá-la.

— Eu te acompanharei!

— Nem eu devo aceitar esse sacrifício que o comprometeria; nem que
o aceitasse, me podia divertir. Não estaríamos sós!

Eis a situação em que nos achávamos quando uma manhã,
passando pelo hotel, achei uma carta de convite para uma partida. O Sr. R…,
a quem fui recomendado por amigos de minha província, pedia-me encarecidamente
que ao menos no dia dos anos de sua senhora lhe desse o prazer de ver-me em
sua casa. Realmente estava em falta para com a família, que apenas
visitara com um cartão, e à qual devia muitas finezas! Era ocasião
de reparar a minha descortesia.

Mostrei a carta a Lúcia:

— Deve ir, respondeu adivinhando o meu pensamento!

— Entretanto tu renuncias aos teus divertimentos por minha causa. Por que
não farei o mesmo?

— Essa partida não é só um divertimento para o senhor,
é também um dever.

— Assim queres que vá me divertir sem ti?

— Não o posso acompanhar! disse ela com uma expressão que
significava– um abismo nos separa.

Fui à partida, que esteve brilhante. Lá a encontrei, à
senhora, e à sua filha, anjo que ainda não tinha batido as asas
brancas, deixando viúvas a velhice e a infância de quem tanto
amara neste mundo. Havia moças lindas e elegantes, que tornavam a dança
verdadeiro prazer, e não sacrifício penoso, como sucede na maior
parte desses saraus, em que o convidado é apenas um instrumento de
quadrilha, compasso coreográfico, que se transforma na hora da ceia
em máquina gastronômica.

A Sr.ª R…, com uma amabilidade que eu decerto não merecia,
esmerou-se em tornar agradáveis as horas que passei em sua casa: apresentou-me
a quanto havia ali de distinto pela beleza, pela inteligência e pela
virtude; e com o tato fino da mulher de salão poupava-me as banalidades
cerimoniosas das apresentações, fazendo-me entrar logo na conversação
que animava com a sua graça e os seus repentes felizes. A filha, gentil
moça de 17 anos, fez-me a honra de uma contradança e de algumas
voltas de valsa.

Confesso que fiquei fazendo melhor idéia das reuniões dançantes
da sociedade fluminense

Pouco tempo antes de retirar-me, vi Sá que me acenava de uma janela
da sala de jogo, onde se abrigara para fumar. Logo ao entrar tinha-lhe falado;
mas evitara a sua conversa, com receio de que me fizesse perguntas sobre Lúcia;
sentia remorder-me a consciência; e pouco disposto a aceitar os seus
conselhos, previa que eles me haviam de irritar tanto mais, quanto seriam
prudentes e razoáveis.

— Desculpa-me: vou dançar.

— A quadrilha ainda se demora, bem sabes; mas queres

— Que idéia!

— Queres escapar-te, sim. Cuidas que sou desses homens que perseguem os
seus amigos de conselhos que nada lhes custam, porque nem sequer dão
o exemplo; e com isso julgam-se quites de todos os deveres da amizade! Estás
enganado, Paulo. Disse-te uma vez a minha opinião sobre as tuas relações
com Lúcia; fiz o que me cumpria: o resto te pertence.

— Estava tão longe de pensar nisso agora! Como tens achado a partida?
Há muito tempo não me divirto tanto!… Rostos encantadores,
toilettes de gosto, excelente serviço; nada falta!

— Deixa estes elogios aos folhetinistas em cata de novidades. Compreendes
que não te chamei para ouvir o teu juízo sobre a reunião
do Sr. R…

— E para que me chamaste então?

— Para pedir-te um conselho.

— A mim?

— De que te admiras? Porque não os dou, segue-se que não posso
pedi-los? Ao contrário!

— Vejamos que negócio importante é esse que exige o meu voto
?

— Julgas que um amigo deva referir ao outro tudo o que se diz a seu respeito?
Vamos; a tua opinião franca!

— Julgo que é o maior serviço que possa prestar a amizade.

— Bem. Ouve então o que dizem de ti.

— Para quê? Não dou peso à maledicência, Sá.

— Pode ser que tenhas razão; mas ouve primeiro; depois riremos dessas
parvoíces. Há aqui no Rio de Janeiro certa classe de gente que
se ocupa mais com a vida dos outros, do que com a sua própria; e em
parte dou-lhes razão; de que viveriam eles sem isso, quando têm
a alma oca e vazia? Essa gente já sabe quem tu és, que fortuna
tens, quanto ganhas, onde moras e como vives.

— É fácil saber; não tenho que ocultar, mercê
de Deus.

— Estou convencido que poderias habitar a casa de vidro de Catão;
mas infelizmente não a habitas; e portanto o mundo não vê
justamente o que a tua modéstia esconde por detrás das paredes,
isto é, o lado nobre e honroso da tua vida. O resto está patente.

— Mas ainda uma vez, Sá, o que pretendes com isso? Que me importa
o que pensam a meu respeito? Não tenho reputação a perder.

— Mas tens reputação a ganhar. És amante de Lúcia,
há um mês; e eu te conheço, sei que estás te sacrificando.
Entretanto, como Lúcia não aparece mais no teatro, não
roda no carro mais rico, e já não esmaga as outras com o seu
luxo; como a Rua do Ouvidor não lhe envia diariamente o vestido de
melhor gosto, a jóia mais custosa, e as últimas novidades da
moda; sabes o que se pensa e o que se diz? Que estás sacrificando Lúcia.
. . que estás vivendo à sua custa!

O primeiro ímpeto de minha indignação caiu sobre Sá,
em quem se encarnava o insulto vago e anônimo; cometia um excesso, se
o seu olhar franco e leal não me fizesse entrar em mim.

— Então! Não te ris dessa estúpida calúnia?…
Tomas isto ao sério?

— Dize-me o nome de um só dos infames que se ocupam com a minha vida.
O teu dever, já que assim o chamaste, o exige, e eu te peço!

— O nome?… É o mundo, a gente, a sociedade! Vai tomar-lhe satisfações.

— Mas tu ouviste de um homem?

— Que ouviu de outro e outro. Procura numa árvore a folha que gerou
e nutriu a vespa que te morde?

Sá tinha razão. Senti a impotência do homem contra a
calúnia impalpável que esvoaça e zune e ferroa como a
vespa, e escapa nas asas à raiva e desespero da vitima É a fábula
do leão e do mosquito. Mas o que então se passou em mim lhe
parecerá incrível: a minha cólera precisava desabafar-se
contra alguém, e na impossibilidade de dar um corpo àquela injúria
atroz, levei a ingratidão até encarná-la em Lúcia,
causa inocente do que sucedia. Ela tinha razão quando temia que as
nossas relações fossem conhecidas, e quando fazia tudo por escondê-las,
como se escondem à sombra as flores delicadas que o vento fresco ou
o sol ardente crestam e matam.

Sai bem decidido a pôr um termo à situação vergonhosa
e humilhante em que me achava colocado. As palavras de Sá me queimavam
os ouvidos. Eu vivendo à custa de Lúcia, eu que esbanjava a
minha pequena fortuna por ela! Mas as calúnias tinham razão
em um ponto; não exibia a minha amante como um traste de luxo, ou um
manequim da moda; roubava o bem que lhes pertencia, visto que não era
milionário para ter o direito de possuí-lo exclusivamente.

Não me dei ao trabalho de procurar o meu tílburi e parti a
pé; precisava agitar-me.

Um vulto de mulher passou rapidamente. Ao voltar a esquina, encontrei-o parado.
Chegou-se a mim e ergueu o véu. Reconheci Lúcia.

— Divertiu-se muito? perguntou-me com interesse.

— Oh, muito; nem fazes idéia!

— Eu vi! disse timidamente.

Não compreendi.

O que viste?

Vi-o dançar, passear na sala com as moças; acompanhei-o de
longe toda a noite. Estava defronte, escondida por detrás das cortinas.

Havia em face da casa do Sr. R… um miserável botequim, onde ela
alugara um quarto a fim de passar a noite vendo-me. Era sublime de delicadeza,
e contudo esta prova de afeição, que em outra circunstância
me comoveria, pareceu-me uma perseguição insuportável,
e esteve quase fazendo transbordar a minha cólera concentrada.

— Não gosto nada destas extravagâncias, que dão em resultado
comprometer-me.

— Ninguém me conhece ali; e não podem adivinhar o que me trouxe.
Agora mesmo, se a rua não estivesse deserta, me animaria a falar-lhe?
Fique certo de uma coisa: não há nada neste mundo que eu deseje
tanto como vê-lo; e me privaria desse prazer se ele pudesse trazer-lhe
um dissabor.

— Com que fim vieste a essa casa? Não posso sair uma noite sem que
me veja espiado! Hás de confessar que não é muito agradável;
se pensas que é este o meio de me prender, estás completamente
enganada. Aprecio muito a minha liberdade; deves te lembrar que entre nós
não existem compromissos.

— Nem um decerto!

— Portanto não temos que espiar-nos um ao outro.

— Perdoe-me: fiz mal, não o farei nunca mais. Calei-me.

— Diga-me ao menos que não está agastado!

— Boa-noite!

Lúcia precipitou-se para impedir-me o passo; vi um instante brilhar
na sombra o seu olhar cintilante, mas logo deixou pender os braços,
curvando a cabeça: — O coração me adivinhava! O Sá!…
Continuei o meu caminho. Era a primeira noite, depois de um mês, que
passava no hotel, e longe de Lúcia; como me achei só no deserto
da nova existência que ia começar!

XII

Meio-dia a dar no sino das torres, e eu entrando em casa de Lúcia.

Tinha refletido: essa amizade não podia continuar; se havia de desatar
mais tarde, depois de me ter feito curtir mil dissabores, bom era que cessasse
desde logo. Não julgue porém que estava resolvido a separar-me
por uma vez de Lúcia; minha coragem não chegava a tanto. O que
eu desejava era demitir de mim um titulo que me esmagava na minha pobreza,
o titulo de amante exclusivo da mais elegante e mais bonita cortesã
do Rio de Janeiro.

Ela recebeu-me com brandura. Tinha os olhos rubros e pisados de lágrimas;
apertando minha mão, beijou-a Que pretendia ela exprimir com esse movimento!
Seria a imagem viva da humilde fidelidade do cão, afagando a mão
que o acaba de castigar?

Estivemos muito tempo sem trocar palavra.

Enfim Lúcia fez um esforço, sorriu como se nada houvesse passado,
e veio sentar-se nos meus joelhos, acariciando-me com a ternura e a graciosa
volubilidade que ela tinha quando o júbilo lhe transbordava d’alma.
Aproveitei o momento para alijar o peso que desde a véspera me acabrunhava.

— Sabes que eu não sou rico, Lúcia!

Seu olhar luminoso penetrou-me ate os seios d’alma para arrancar o pensamento
que inspirava essas palavras; respondeu com um pálido sorriso:

— Pensava ao contrário que era muito rico!

Pois pensaste mal. Sou pobre, e não posso sustentar o luxo de uma
mulher como tu.

— Acha pouco o que me tem dado!

— O que dei não vale a pena de ser lembrado. Falemos do que devia
dar, e não pude, porque não tinha. Neste mês que se passou,
a tua vida não foi tão brilhante como era antes.

— Por que eu não quis, e não porque me faltasse coisa alguma.
Nunca me achei tão rica como agora.

— Não tens sido vista nos teatros e passeios; já não
tens um carro; não és enfim a mulher do tom que eu ainda conheci!

Aborreci-me de tudo isto!

— Não te podes aborrecer sem que o mundo repare!

— Como! Não sou senhora de viver a meu modo, desde que com isso não
faço mal a ninguém? Se apareço, é um escândalo;
se fico no meu canto, ainda se ocupam comigo.

Que queres! Há certas vidas que não se pertencem, mas à
sociedade onde existem. Tu és uma celebridade pela beleza, como outras
o são pelo talento e pela posição. O público,
em troca do favor e admiração de que cerca os seus ídolos,
pede-lhes conta de todas as suas ações. Quer saber por que agora
andas tão retirada; e não acha senão um motivo.

— Qual? perguntou Lúcia com ansiedade.

Supõe que eu te sacrifico aos meus ciúmes; e não me
perdoa. porque não sou bastante rico para ter semelhantes caprichos.

— É isso que o incomoda! Meu Deus! Fique descansado: terei carro,
aparecerei como dantes! Hoje mesmo!… Verá! Não sabe quanto
me custa esse sacrifício; mas um só beijo me paga com usura!

Estalou o lábio entre os meus.

— Precisava dele para me dar coragem; agora sinto me forte.

— Aonde vais? perguntei retendo-a.

— Vou mandar a cocheira ver o meu carro; escrever à Gudin que me
faça ama dúzia de vestidos os mais ricos; dizer ao caixeiro
do Wallerstein que me traga para escolher o que ele tem de melhor em modas
chegadas ultimamente! É verdade, esquecia-me de mandar tomar uma assinatura
no teatro lírico, e encomendar uma nova parelha de cavalos. A minha
caleça já está usada; preciso trocá-la por urna
vitória, e renovar o fardamento tios criados Ate à noite tenho
tempo para tudo. O Jacinto se incumbirá de uma parte das comissões.

Olhei para Lúcia; ou está louca, ou zomba de mim, foi a minha
primeira idéia, ouvindo a sem-cerimônia e o desplante com que
ela decretava um orçamento de despesa que faria estremecer o mais pródigo
financeiro.

— Espera, Lúcia!

— Ainda não é bastante? Que hei de fazer mais? disse com um
gesto de cômico desespero. Ah! Mandarei arranjar de novo a minha casa,
e darei um baile! Que diz!

— Farás o que for do teu gosto!

— Do meu!..

— Goza da tua mocidade, é justo: tu podes e deves fazer; mas como
só eu venho à tua casa e todo o mundo sabe que não sou
milionário, compreendes que, se isto continuasse, suspeitariam, diriam
mesmo, se já não disseram, que vivo à tua custa’

Lúcia ficou lívida; tinha compreendido

— Então não posso dar-me a quem for de minha vontade? — Quem
diz isso? Eu é que não te posso aceitar por semelhante preço.
A custa da honra… é muito caro, Lúcia!

— Ah! esquecia que uma mulher como eu não se pertence; é uma
coisa pública, um carro da praça, que não pode recusar
quem chega. Estes objetos, este luxo, que comprei muito caro também,
porque me custaram vergonha e humilhação, nada disto é
meu. Se quisesse dá-los, roubaria aos meus amantes presentes e futuros;
aquele que os aceitasse seria meu cúmplice. Esqueci, que, para ter
o direito de vender o meu corpo, perdi a liberdade de dá-lo a quem
me aprouver! O mundo é lógico! Aplaudia-me se eu reduzisse à
miséria a família de algum libertino; era justo que pateasse
se eu tivesse a loucura de arruinar-me, e por um homem pobre! Enquanto abrir
a mão para receber o salário, contando os meus beijos pelo número
das notas do banco, ou medindo o fogo das minhas carícias pelo peso
do ouro; enquanto ostentar a impudência da cortesã e fizer timbre
da minha infâmia, um homem honesto pode rolar-se nos meus braços
sem que a mais leve nódoa manche a sua honra; mas se pedir-lhe que
me aceite, se lhe suplicar a esmola de um pouco de afeição,
oh! então o meu contato será como a lepra para a sua dignidade
e a sua reputação. Todo o homem honesto deve repelir-me!

Impetuosas como a torrente que borbota em cachões, ardentes como as
bolhas d’água em plena ebulição, essas palavras se precipitavam
dos lábios de Lúcia, em tropel e quase sem nexo. Às vezes
de tão rápidas que vinham lhe tomavam a respiração,
e parecia que a estrangulavam. Até que por fim um soluço cortou-lhe
a voz; o seio ofegou como se o coração lhe quisesse saltar com
o último grito de indignação de sua alma ofendida.

Que responder àquela lógica inflexível da paixão
fazendo justiça aos prejuízos sociais? Nada. Calei-me, irritado
contra os estímulos nobres que recebemos na infância e não
nos permitem praticar cientemente um ato de que devamos corar.

— Tu me fazes arrepender da minha franqueza, Lúcia! disse passado
um momento. Preferias que deixasse de ver-te?

— Não! Antes assim! O senhor quer… Será feita a sua vontade!
Terei amantes!

Saiu arrebatadamente e fechou-se no toucador.

Voltei, refletindo se o que tinha feito era realmente uma ação
digna, ou uma refinada cobardia; servilismo à inveja e malevolência
social, que se decora tantas vezes com o pomposo nome de opinião pública.

Às três horas da tarde passando pela Rua do Ouvidor vi Lúcia
na casa do Desmarais, cercada por uma grande roda, na qual eu distingui logo
o Sr. Couto e o Cunha.

Lúcia estava rutilante de beleza; a sua formosura tinha nesse momento
uma ardentia fosforescente que eu atribuí à irritação
nervosa da manhã. O orgulho e o desprezo vertiam-Ihe de todos os poros,
nos olhos, nos lábios, nas faces e no porte desenvolto. Ela flutuava
numa atmosfera maléfica para o coração, que, entrando
naquela zona abrasada, sentia-se asfixiar. A roda elegante festejava o astro
que surgia, depois do seu eclipse passageiro, mais que nunca brilhante.

Atirando a réplica viva e incisiva a todos os adoradores que a cortejavam;
escarnecendo da fineza, e fazendo ressaltar a zombaria contra o que a lançara,
Lúcia, com a mesma liberdade que teria em sua casa, continuava a escolher
na grande exposição de objetos de fantasia que cobria os balcões.

Que sentimento me obrigava a parar na loja para seguir com os olhos essa
mulher, à posse exclusiva da qual eu acabava de renunciar? Que motivo
estranho, vendo-a agora cercada de apaixonados, me fazia sofrer, a mim que
não havia duas horas tinha assistido friamente à explosão
violenta da sua cólera?

Lúcia me viu, porém não me deu atenção.
Dirigiu-se ao Couto; trocando com ele algumas palavras em segredo, voltou
para o caixeiro e declarou que comprava os objetos apartados, cujo preço
lhe seria enviado no dia seguinte.

Vendo o gesto significativo do Couto ao dono da loja, como eu, todas as pessoas
presentes ficaram persuadidas que da bolsa do velho saía o dinheiro
que ela acabava de atirar a mancheias de uma a outra ponta da Rua do Ouvidor.

Felizmente para mim, que já não me podia conter, o suplício
terminou. Ela retirava-se. Passando junto de mim cortejou-me, e disse em vez
baixa:

— Está satisfeito?

O sorriso em que ela envolveu estas palavras, caiu, se me posso assim exprimir,
como a dobra de uma mortalha; tal foi a súbita lividez que lhe cobriu
o rosto, e o desanimo que abateu o seu corpo.

O Couto apressou-se a oferecer-lhe a mão para ajudá-la a entrar
no carro.

— Até logo! disse-lhe ela bem alto.

Podia-me restar a menor dúvida? Lúcia era amante do Couto.

Enquanto acompanhava com os olhos a cortesã desprezível que
se balançava lubricitante no seu novo carro, insultando com o luxo
desmedido as senhoras honestas que passavam a pé, sabe de que me lembrei?
Não foi da ceia em casa de Sá, nem do mês que acabava
de passar; foi unicamente da suave aparição da Rua das Mangueiras
no dia da minha chegada. São extravagâncias da memória.
Quem conhece o fio misterioso que leva o pensamento através do labirinto
do passado a uma lembrança remota?

— Rei morto, rei posto! disse-me o Cunha, que chegara à porta para
ver Lúcia entrar no carro.

— Não sei a que se refere!

— Referia-me, Sr. Silva, continuou apontando para o carro que ainda aparecia,
àquele trono de sedas e veludos que vagou esta manhã, e que
uma hora depois já estava preenchido.

— Enganou-se, Sr. Cunha, respondi no mesmo tom de gracejo, fui apenas regente
durante uma curta vacância.

— Pois não é isso o que se dizia.

— O que se dizia então? repliquei tornando-me sério, porque
as palavras de Sá me acudiram ao pensamento.

— Dizia-se que o senhor mudara o sistema de governo daquele estado, e sucedera
na qualidade de autocrata aos reis constitucionais, como eu tive a honra de
sê-lo em certo tempo.

— O que entende por autocrata, Sr. Cunha?

— Perdão: vejo que toma ao sério um gracejo. Mudes de assunto;
não desejo ofendê-lo.

O Couto, que nos ouvia de principio, interveio na conversa.

— A significação da palavra é bem clara, Sr. Silva,
disse .n o seu fátuo sorriso.

— Se o Sr. Couto quisesse fazer-me o favor de explicá-la Tenho a
inteligência embotada.

O velho calou-se com visível embaraço. Continuei pesando as
minhas palavras:

— O senhor quer talvez lembrar-me que os autocratas têm o costume
de tiranizar os povos e vexá-los de imposições; razão
por que os povos, quando os expulsam, se tornam excessivamente exigentes para
com os truões que lhes sucedera. Não é isto? Diga-me
por obséquio: não faz idéia da ansiedade com que procuro
desde ontem um homem que tenha a coragem de repetir-mo em face!

— Ora, o senhor está brincando!

E o Sr. Couto fez-me uma profunda cortesia, e saiu empertigando-se mais que
de costume.

Voltei-me para o Cunha.

— Bem dada lição! disse estendendo-me a mão.

Decididamente não havia meio de brigar; o homem que eu procurava fugia-me
como uma sombra.

XIII

À noite, quando dei por mim, subia as escadas de Lúcia. Se
alguém me perguntasse o que ia fazer, ficaria bem embaraçado
para responder e bem admirado da pergunta.

Tinha passado o resto do dia a atordoar-me, a fazer esforços inúteis
para expelir da idéia uma lembrança que me afligia; à
noite não pude resistir: senti uma necessidade invencível de
ver aquela mulher, que eu já aborrecia.

Tinha-a eu amado para ter o direito de odiá-la.

Lúcia estava no toucador, acabando de vestir-se. A minha entrada lhe
causou alguma surpresa. O acolhimento que me fez foi triste, mas doce e afável.

— Cometi uma indiscrição talvez, usando da liberdade que me
deu outrora.

— Quem fez do presente um passado já tão remoto? Não
fui eu! Mas fique certo que esta casa, hoje, como ontem, como amanhã,
não tem para o senhor nem portas, nem paredes.

— Renuncio de bom grado a tanta honra; prefiro esperar no topo da escada,
a correr o risco de uma surpresa ridícula para ambos.

Lúcia fitou-me por muito tempo, e chegou-se ao espelho para dar os
últimos toques ao seu traje, que se compunha de um vestido escarlate
com largos folhos de renda preta, bastante decotado para deixar ver as suas
belas espáduas, de um filó alvo e transparente que flutuava-lhe
pelo seio cingindo o colo, e de uma profusão de brilhantes magníficos
capaz de tentar Eva, se ela tivesse resistido ao fruto proibido. Uma grinalda
de espigas de trigo, cingia-lhe a fronte e cala sobre os ombros com a basta
madeixa de cabelos, misturando os louros cachos aos negros anéis que
brincavam.

Estava excessivamente pálida, e a cor escarlate do vestido ainda lhe
aumentava o desmaio; os olhos luziam com ardor febril que incomodava, e os
lábios se contraíam num movimento que não era riso nem
ânsia, mas uma e outra coisa. Entretanto nunca essa mulher me pareceu
tão bela; a idéia de que ela se enfeitava para outro homem irritava-me
a ponto que estive para precipitar-me e espedaçar, arrancando-lhe do
corpo, as galas que a cobriam.

— Ainda não a felicitei pelo seu novo amante!

— Quem não tem o direito de escolher, aceita o primeiro que lhe chega;
e o mais ridículo é sempre o melhor.

— É naturalmente para ele que está se pondo tão bonita!

— Acha que estou bonita? perguntou com o sorriso que deve ter o condenado
para o Sol nascente que vem alumiar o seu suplício.

— Nunca a vi tão fascinadora, nem vestida com tanto primor. Ele merece.

— Dizem que outrora ornavam-se as vítimas para o sacrifício.

— Isso foi outrora; mas hoje que os sacrifícios são incruentos,
a vítima orna-se para o sacrificador; também em vez do sangue
daquela, é o ouro deste que corre nas aras consagradas ao prazer.

Lúcia quis responder-me, mas reprimiu-se a tempo de sorver a palavra
que já lhe espontava no lábio. Foi uma coisa que notei desde
que começaram as nossas relações: esse espírito
mordaz e cintilante, esse verbo rápido que não deixava sem resposta
nem um motejo, se ofuscava sempre e emudecia diante de mim.

— Pode-se saber onde vai, se não é segredo? Dirige-se talvez
ao templo do sacrifício.

— Vou ao Paraíso.

Tão alheio andava eu deste mundo fluminense! Nem sabia que naquela
noite havia um baile público.

— Ah! vais ao baile! Então não se demore; são horas.

— Estou à espera de alguém.

— Diga do Sr. Couto; já não é segredo. E agora me lembro,
a minha presença aqui pode comprometê-la; eu me retiro.

— O senhor está na minha casa; não a chamo sua para não
ofendê-lo.

— Ou para que não me venham tentações de ficar.

— Quem lhe impede?

— Deveras!… Seria agradável para a senhora deixar um paciente em
casa contando as horas, enquanto vai ao baile exibir a sua nova conquista,
e arrular pombinhos nalgum hotel de Botafogo. Na volta esse paciente pode
servir para apagar o fogo que as brumas do inverno apenas sopraram. Infelizmente
por mais inocente que seja esse pequeno manejo, não estou disposto
a prestar-me a ele.

— Que gosto tem em me estar assim torturando! O senhor sabe que por mais
cruel que seja a sua zombaria, não sei retorquir-lhe! Não quer
que eu saia de casa? Basta-lhe dizer uma palavra!

— E a senhora ficaria?

— Duvida!

Com um movimento rápido, Lúcia correu a mão pelos cabelos,
e o penteado desfez-se como por milagre, deixando cair a grinalda aos pés
e rolar as tranças pelas espáduas.

Ouviu-se rumor de passos na sala.

— Não faça isto!. . . Aí está o Couto; ele vai
ficar furioso e com razão! Pode dar algum escândalo! disse escarnecendo.

A um sinal de sua senhora, a escrava de Lúcia abriu a porta ao Couto,
que entrou sem me ver.

— Ainda neste estado!. . . Se eu adivinhasse, tinha trazido o cabeleireiro
para penteá-la.

— Não se precisa aqui desta gente! murmurou Joaquina

— Pois faz a tua obrigação, penteia tua senhora; e se andares
depressa, terás uma boa molhadura.

— Não vou ao Paraíso! disse Lúcia friamente.

— Como, minha amiga! Que capricho é este! O baile deve estar brilhante.
O que há de mais chibante na corte lá se achará esta
noite. Faze idéia! Venderam-se todos os bilhetes ! Tão cedo
não teremos outro baile como este! Bem sabes que são raros no
Rio de Janeiro.

— Prefiro ficar em minha casa. O Sr. Silva toma chá comigo; estaremos
sós e conversaremos mais à vontade!

Foi então que o Sr. Couto me viu sentado no sofá; desta vez
não me cumprimentou. Era demais.

— Então é esse o motivo por que não vai ao baile! E
foi para isso que me mandou chamar e me fez acompanhá-la esta manhã
pela Rua do Ouvidor? O meio é engenhoso! Finge-se um arrufo, e põe-se
o amor em leilão a quem mais der.

— Uma infâmia de mais ou de menos para quem já perdeu a conta,
vale a pena que se ocupem com ela? Não vou ao teatro, repito; e peço-lhe
que me deixe tranqüila.

O Couto fez um gesto soberbo, e uma saída teatral.

Tinha assistido mudo e com aparente indiferença a esse incidente;
mas que rápida sucessão de sentimentos houve no meu coração!
À vaidade de ver Lúcia ceder pronta e espontaneamente a um desejo
meu apenas suspeitado, sucedeu o prazer da humilhação do Couto
em minha presença. Depois, quando o velho libertino revelou o procedimento
vil da cortesã, e esta com toda a desvergonhez apanhou a lama em que
patinhava para lançá-la ao seu parceiro, senti, com o asco e
o vexame de achar-me ligado a tanta miséria, um consolo imenso das
torturas que sofrera naquele dia. Esses dois entes são dignos em do
outro, murmurou minha alma ao coração ainda magoado.

Mas restava uma última emoção. Reatar as relações
que bradas dessas duas criaturas; entregá-las uma à outra com’
presas destinadas a saciar a cupidez e a lascívia uma da outra jungir
o vício ardente e moço, ao vício enregelado e decrépito
fazê-los arrastar na mesma canga a crápula ignóbil, ferroando-os
com o aguilhão do meu sarcasmo: seria a minha vingança.

Vingança de quê ? Tinha-me essa moca ofendido para assanhar
em mim o ódio e os instintos perversos do coração humano?
Não era eu a causa única de tudo o que se passava.

A razão dormia naquele momento. Ordenei à escrava que chamasse
o Couto em nome da senhora; e o fiz com tanto império que ela obedeceu-me
apesar do gesto de Lúcia.

Então voltei-me para esta:

— Agradeço-lhe muito a fineza; mas é um sacrifício
que não tem o direito de fazer, e que eu não terei decerto o
desfaçamento de aceitar. Esta noite a senhora não se pertence:
é um objeto, um bem do homem que a vestiu, que a enfeitou e cobriu
de jóias, para mostrar ao público a sua riqueza e generosidade.

— A mim?… exclamou Lúcia indignada, e continuou com sorriso amargo:
Pois sim, roubei-o! E ele deve agradecer-me; porque assim leva a honra intata!

— A senhora vai ao baile!

— Morta podem levar-me; viva não.

— Então expulsa-me da sua casa Sabe o que esse velho palhaço,
que é hoje seu amante, pensava esta manhã, sem ter a coragem
de o dizer? Que eu a havia desfrutado corpo e bens durante as nossas relações,
e por isso era tempo da senhora indenizar-se do prejuízo! Não
basta! t: preciso que ele pense ainda que este pretendido arrufo foi um expediente
engenhoso da minha parte para encher o cofre que esgotei!

Lúcia não me respondeu uma palavra; com a mesma vivacidade
que pusera em desfazer o seu penteado, arranjou-o de novo sem alinho; e voltou-se
para mim de olhos baixos e submissa, como uma escrava que esperasse a última
ordem do senhor.

Que miserável animalidade havia em mim naquela noite ! Quando essa
pobre mulher atingia o sublime do heroísmo e da abnegação,
eu descia até à estupidez e à brutalidade!

— Pois realmente capacitou-se de que eu podia ter ciúmes de um Couto!
Que extravagância! Nem dele, nem de qualquer outro! Era preciso que
tivesse um ciúme bem elástico para poder abarcar todos os que
a senhora distinguiu e há de distinguir com os seus favores! Fique
sossegada: virei alguma vez colher a minha flor; mas em ocasião que
não perturbe os seus bucólicos amores. Então me contará
os ridículos de seu velho amante, e afianço-lhe que passaremos
uma hora divertida, rindo-nos à custa do próximo: salvo bem
entendido, a cada um de nós o direito de rir-se interiormente do outro.

— Duas vezes no mesmo dia! É muito, meu Deus! exclamou Lúcia
tragando um soluço.

O Couto entrava morno e carrancudo.

— A senhora arrependeu-se; e está pronta a acompanhá-lo ao
baile.

— E ao senhor é que devo agradecer esta resolução repentina
?

— O senhor. . . O senhor só tem que me agradecer uma coisa: é
a minha paciência. Quanto ao baile, a senhora é livre, e eu não
tive parte nem na sua recusa de há pouco, nem na sua aceitação
de agora.

— Se assim não fosse, rejeitaria o favor.

— Pois saiba que vou a esse baile, disse Lúcia, unicamente porque
o Sr. Silva me ordenou; e devo obedecer-lhe.

O Sr. Couto procurou o lenço e não acertou com o bolso da casaca.

— Não se esqueça de deitar uni pouco de carmim! disse eu a
Lúcia despedindo-me. Está horrivelmente pálida.

Ela sorriu.

— Não faz mal! Julgarão que passei a noite de ontem nalguma
orgia! Faz seu efeito!

Nesse momento a mucama lhe apresentava as luvas e o leque, o mesmo do nosso
primeiro encontro, e que ela costumava trazer sempre. Lúcia recuou
como se uma áspide a quisesse morder.

— Esse não!

Cuida que a minha raiva brutal ficou satisfeita?

Entrei no baile aspirando no ar um faro de sangue. E verdade, tinha frenesi
de matar essa mulher; porém matá-la devorando-lhe as carnes.
sufocando-a nos meus braços, gozando-a uma ultima vez, doixando-a já
cadáver e mutilada para que depois de mim ninguém mais a possuísse.

Ela lá estava sempre bela, sempre radiante. Júbilo satânico
dava a essa estranha criatura ares fantásticos e sobrenaturais entre
as roupas de negro fescarlate.

Junto dela descobri a Nina, que, apesar da sua graça, desaparecia
completamente naquela zona que Lúcia deslumbrava com a sua reverberação.
Mas eu que via com os olhos do despeito, percebi-a imediatamente.

Nina sabia das nossas relações f ignorava ainda o desenlace
muito recente As minha. pretensões deviam pois ter para ela o encanto
que acha toda a mulher em afligir outra que lhe é superior pela graça
e formosura; assim explicam-se os avanços de amabilidade que me fez,
à custa de algum crédulo e paciente admirador; deu-me uma entrevista
em sua casa depois do baile.

Mas esse favor, discretamente concedido, não me servia; era preciso
que mais alguém o soubesse.

— Então, uma hora depois do baile? disse eu alçando a voz.

— Sim; mas segredo! respondeu Nina levando o dedo à boca.

— Estará só? perguntei para mais fazer ainda ouvir a minha
fala.

Nina fez um momo gracioso; os ombros de Lúcia agitaram-se com um tremor
nervoso.

Não conheço mais estúpido animal do que seja o bípede
implume e social, que chamem homem civilizado.

Na véspera era feliz. Estava numa brilhante reunião, onde se
achavam talvez as mais bonitas senhoras do Rio de Janeiro. Observando-as com
o culto do belo e a religião da mulher, que é inata em mim,
conhecia que em graça e atrativos não tinha que invejar ao mortal
ditoso a quem elas abandonassem um dia os primores de sua mocidade. Mais linda
que todas, uma mulher me esperava, que em troca da pureza que não tinha,
me guardava seus imensos tesouros de voluptuosidade; ela me esperava cheia
de mim; e para não deixar-me um instante, me acompanhara de longe com
os olhos através do mundo que fechara-lhe as suas portas.

Bastou uma palavra, um sentimento de convenção, para que o
meu orgulho destruísse a felicidade que as suas mãos delicadas
tinham tecido com tanta paciência e esmero. E como remate da minha demência,
depois de haver torturado aquela pobre mulher, depois de a ter insultado cobardemente,
acabava de entregá-la a um velho histrião, para agarrar-me à
fralda da primeira saia que passava pelo meu caminho. E eu considerava isto
a minha vingança!

Como tinha razão o poeta que chamou o homem um menino corpulento–
puer robustus!

XIV

Foi uma noite horrível.

O baile terminara às duas horas. Lúcia assistira até
o fim, o que ainda mais me irritou, porque eu desejava triunfar com a sua
saída precipitada, depois do desprezo que lhe mostrara. «Se ela
se retirasse, pensava eu, correria à sua casa para pedir-lhe perdão».
Mas não acredite que o fizesse: procederia com o mesmo orgulho estúpido
que me dominou no momento em que ela despediu o Couto e renunciou ao baile
para ficar comigo.

Na retirada o velho esperava-a na porta, e partiram ambos de carro.

— Está acabado! disse comigo. Não pensemos mais nisto.

Porem não era coisa fácil apagar no meu espírito a profunda
impressão que aí deixara gravada a imagem de Lúcia. Tomei
o braço do Rochinha, que encontrei ao sair, e fomos cear no primeiro
hotel que encontramos aberto. Em qualquer outra ocasião esse moço
me enjoaria com a sua afetada decrepitude moral; nesse momento era um homem
que podia falar-me de Lúcia e dizer mal dela.

Com efeito o Rochinha contou-me diversas anedotas escandalosas da vida de
Lúcia; e concluiu dizendo:

— Não acredito ainda que esse Diógenes do Couto seja seu amante.

— Ouvi-a confessar esta noite mesmo. Saíram juntos do baile.

— Pois admira-me; porque há muito tempo que ele a persegue debalde.
Lúcia tinha-lhe tal birra, que no dia em que o via, ficava de um humor
insuportável.

— São coisas que passam. O velho abriu os cordões da bolsa;
e o motivo da antipatia desapareceu.

— Pode ser que ela esteja agora em crise financeira; mas asseguro-lhe que
a questão não era de dinheiro, não. O Couto, como todos
os velhos gamenhos que compram o amor, à hora certa, é mais
que generoso, é pródigo; vi-o oferecer a Lúcia somas
fabulosas que ela rejeitava sempre e com desprezo.

Essas palavras me consolaram. Uma débil esperança espontou-me
no coração; corri à casa de Lúcia.

A porta ainda estava aberta; Lúcia não tinha voltado! eram
perto de três horas e meia, naturalmente estava em casa do Couto.

Pus-me a passear na calçada; ao surdo rodar de um carro que passava
longe, aplicava o ouvido para conhecer se ele se aproximava; o rumor se desvanecia
e com ele minha esperança, para ressurgir de novo, e de novo extinguir-se.
Nestas alternativas sem repouso vi os primeiros clarões do dia.

Dirigi-me tristemente para o hotel e dormi, porque a fadiga me vencia.

Eis qual tinha sido a minha noite; o acordar não foi menos cruel.
Sucede com as feridas d’alma o mesmo que às feri das do corpo; é
quando elas esfriam, que a dor se torna aguda e lancinante. Lembrei-me do
que sucedera; repassei uma a uma as circunstâncias do dia anterior;
reconheci a minha grosseira imbecilidade; e a consciência de que eu
tinha sido o mais culpado, devia dizer o único, exacerbava o meu sofrimento.

E essa pobre moça, a Nina, inocente da minha loucura, que talvez por
meu respeito perdera o seu amante? Era a primeira vez, desde que a deixara,
que me recordava dela. Devia-lhe uma desculpa; e como não tinha outra
coisa que fazer, aproveitei esse pretexto para sair.

Pensava, chegando à casa de Nina, encontrar um rosto fechado, um momo
despeitado, e um bom dia atirado da ponta de um beiço desdenhoso. Qual
não foi portanto a minha surpresa vendo-a precipitar-se para mim, abraçar-me
com ímpeto, e atirar-me de repente pela testa e pelo rosto uma chuva
de carícias que me azoou.

Afinal consegui desprender-me dos braços que me enlaçavam;
ia pedir uma explicação, quando Nina atalhou-me:

— Estou muito zangada com o senhor! disse com um ar que exprimia inteiramente
o contrário. Fazer-me esperar até não sei que horas!

— Confesso que cometi uma falta; mas há de me desculpar.

— Ah! Cuida que a pulseira que me mandou paga o prazer de sua companhia!
Enganou-se!. .

— A pulseira! balbuciei sem compreender.

— É linda que faz gosto. Não há segunda: a Lúcia
não tem melhor. Também o senhor nem sabe como lhe agradeço.

E um novo granizo de beijos ia cair sobre mim; mas desta vez desviei-me a
tempo.

— Está gracejando! Que quer dizer isto?

— Ora, faça-se desentendido! Já não se lembra de que
me mandou pelo seu criado esta manhã?

Julguei que a moça tinha perdido a cabeça, ou que eu sofria
uma mistificação.

— Ah! percebo! exclamou Nina que de seu lado também me considerava
com surpresa. Queria achar-me com. ela! Tem razão.

Saiu e logo voltou trazendo um cartão meu e uma caixa de jóia
que eu abri precipitadamente. Tinha reconhecido a pulseira de brilhantes que
dera a Lúcia no dia seguinte à ceia do Sá.

Entrei no primeiro tílburi que passou, e atravessei as ruas a galope.

Lúcia estava atirada a um sofá de bruços nas almofadas
que escondiam-lhe o rosto. Tinha o mesmo vestido de seda escarlate que levara
ao teatro, porém amarrotado, com as rendas despedaçadas e os
colchetes arrancados da ourela, onde se viam os traços evidentes das
unhas. Os cabelos em desordem flutuavam sobre as espáduas nuas; a grinalda
despedaçada, o leque e as luvas jaziam por terra; numa cadeira ao lado
estavam amontoadas todas as suas jóias.

Vendo-me, ergueu-se de um salto e quis precipitar-se para mim; porém
decerto o meu olhar cru a conteve, porque deixou-se cair sentada sobre o sofá
em que estava. Sentei-me também, e incomodado; viera com uma cólera
violenta; mas começava a sentir-me mau e pequeno diante dessa mulher
sublime nas suas paixões. O seu rosto pisado, os olhos injetados de
sangue e febricitantes ainda aumentaram o meu vexame.

Peguei maquinalmente nas jóias que estavam sobre a cadeira.

— Estas jóias são de muito valor!… Mas falta aqui uma, a
mais insignificante! Não era digna por certo de brilhar no seu braço;
atirou-a de esmola a alguma mendiga, e deu uma lição ao bobo
que teve a ousadia de oferecer-lhe semelhante miséria. Aquilo quando
muito, é o preço de uma noite de qualquer mulher à-toa,
da Nina por exemplo.

Ela tinha-se erguido trêmula; e foi-se a pouco e pouco retraindo até
cair de joelhos.

— Foi uma loucura, e eu mereço toda a sua cólera. Mas para
que me fazer penar assim, meu Deus! Que prazer lhe podia dar essa mulher?.
. . Não me tinha a mim? Uma escrava humilde, pronta para lhe obedecer,
e que em paga de tanta submissão só lhe pedia que a não
expulsasse!

— E a senhora não chamou um velho desprezível para sua casa?

— É tão diferente! Eu! Não fui atirada contra minha
vontade à lama de que desejava erguer-me? Recuando ainda, não
fui à noite repelida cruelmente e lançada nos braços
desse homem, que no meu desespero eu procurei, por ser mesmo o ente mais vil
e ignóbil que eu conheço; pois era preciso que o suplício
fosse bastante violento para matar-me logo, e sem lenta agonia! No baile,
apesar de tudo, não esperei uma palavra, um sinal para correr a seus
pés, e suplicar-lhe como agora o meu perdão!

Lúcia pousou a cabeça sobre os meus joelhos, sufocada pelo
pranto; e eu não a ergui logo e não a apertei ao meu seio, porque
achei-me tão infame a par dessa mulher, que sentia um vexame insuperável.
Por fim levantei-a nos meus braços, e confesso que foi corando de vergonha.

— Quem deve pedir perdão desta como de todas as vezes, Lúcia,
sou eu: mas não o mereço, não.

— Basta! Já me falou como outrora! Disse o meu nome! Que mais quero
eu saber? Esqueci tudo.

— Deixa-me falar; não me interrompas. Sou um miserável, indigno
de ti. Eu só com o meu orgulho estúpido fui causa do que temos
sofrido; mas é justo que a punição recaia sobre mim unicamente.
Se a idéia de que tive um instante aquela mulher, te aflige, expele
a lembrança desse mau sonho; pisei em sua casa pela primeira vez hoje,
há meia hora. Vi a pulseira, compreendi tudo, e corri até aqui!

Que êxtase de bem-aventurança foi o de Lúcia quando ouviu
a confissão que eu lhe fazia! A mulher quebrada de fadiga, prostrada
por uma noite de vigília e de violentas emoções, transfigurou-se
de repente: o anjo de suave beleza surgiu na sua auréola luminosa,
ao bafejo de uma felicidade celeste.

— Passei esta noite, continuei, cheio de teu pensamento e de tua imagem.
Às duas horas estive aqui, não te disseram? Esperei-te passeando
na calçada até quase ao amanhecer; e as torturas que eu sofri
é impossível dizer. Mas eu a procurei; não me posso queixar
de ti, não tenho que pedir-te contas! Fui eu que te arrastei à
força, louco que eu estava.

— Não fale mais nisso! Acabou; foi um pesadelo que tivemos. Esqueça
tudo! Eis o que vai apagar para sempre essa lembrança importuna.

Dizendo isto Lúcia estendeu-me o lábio risonho; eu recuei como
se visse por entre o carmim brilhar o dente de uma víbora. Ela empalideceu.

— Nunca mais, eu juro, Lúcia, tu me ouvirás as palavras que
ontem te disse; nunca mais também me verás rejeitar por causa
das calúnias de alguns miseráveis as provas de tua afeição.
Mas esse beijo, agora!…não me perguntes a razão!

Não! não o posso aceitar; e Lúcia cobriu-me com um olhar
límpido, raio de luz de sua alma; o seu sorriso era sublime de candura.

— Aquele homem não tocou no meu corpo, porque até a mão
que roçou na sua, estava calçada com esta luva, que eu já
despedacei, disse estendendo a ponta do pé. Mas tem razão, bastava
o seu hálito para manchar. Olhe para mim. Quando eu despir esta roupa,
despirei trapos que para nada servem!

Foi então que reparei na desordem de seu traje.

— Não me enganas, Lúcia?

— Que juramento quer que lhe dê? O mais sagrado!…

Se não fosse assim, teria animo de falar-lhe, de vê-lo ainda!
Também eu, não sabe? Estive na rua até quase ao amanhecer,
olhando a casa onde supunha que o senhor apertava nos braços outra
mulher! Não se morre de dor, porque eu não morri esta noite!

— Não me devias dizer semelhante coisa para me punir!

Fui eu que procurei então o lábio que ela há pouco me
oferecera.

— Espere!…

Lúcia demorou-se algum tempo. Quando apareceu, saia do banho fresca
e viçosa. Trazia os cabelos ainda úmidos; e a pele rorejada
de gotas d’água. Rica e inexaurível era a organização
dessa moça, que depois de tão violento abalo parecia criar nova
seiva e florescer com o primeiro raio de felicidade!

Fora o acaso ou uma doce inspiração, que arranjara o traje
puro e simples que ela trazia? Tudo era branco e resplandecente como a sua
fronte serena: por vestes cassas e rendas; por jóias somente pérolas.
Nem uma fita, nem um aro dourado, manchava essa nítida e cândida
imagem. Creio antes na inspiração. Lúcia tinha no coração
o germe da poesia ingênua e delicada das naturezas primitivas, que se
revela por um emblema e por uma alegoria. Ela me dizia no seu traje, o que
nunca se animaria a dizer-me em palavras, que estava tão pura como
eu a tinha deixado, do contato de outro homem.

Lúcia expandia-se com tal efusão de contentamento, que, se
há felicidade neste mundo, devia ser a que ela sentia. Entretanto,
passada essa primeira e fugace irradiação, achei-a fria, quase
gelada; apenas respondia às minhas carícias ardentes e impetuosas.
Naquele momento atribui à prostração natural depois de
tão fortes emoções; porém me enganava.

A frieza continuou aumentando de dia em dia, até que uma vez não
me pude conter:

— Parece-me que já te aborreceste de mim, Lúcia!

— Creio que estou doente! sofro tanto!

— De quê? Dessa moléstia do coração de que já
me falaste ?

Fugiu-lhe pelos lábios um sorriso sinistro.

— Sim; dessa moléstia do coração que me há de
matar!

E então, como para desvanecer a impressão que me deixara a
sua frieza, atirava-se aos meus braços com uma espécie de frenesi;
mas a sua ternura tinha um desabrimento e rispidez que me lembravam as palavras
de Sá, e as impressões acres da primeira vez que possuíra
esta mulher.

A minha Lúcia dos bons dias, que aveludava-se no estreito enlace com
que me cerrava ao seio, que diluía-se de gozo engolfando-me num mar
de voluptuosidades, que aspirava-me a vida num beijo para vazá-la de
novo e gota a gota: essa, eu só revia nas minhas doces recordações;
porque a realidade fugia-me, quando a buscava com desespero.

Esqueci-me de lhe contar um incidente que se passou na mesma manhã
da nossa reconciliação. Quis sair um momento para ir pagar as
dívidas que Lúcia fizera na véspera.

— Já estão pagas! me respondeu sorrindo e mostrando os recibos.

— Por quem? perguntei com severidade.

— Por mim! Quem, senão eu, tinha o direito de pagá-las?

— Mas ontem o Couto te acompanhava…

— O senhor queria que eu tivesse amantes! disse Lúcia entristecendo.
Mandei chamar esse velho. Não sabe por quê?… Antes queria dar-me
a um escravo, do que vender-me a ele por todo o ouro deste mundo!

— E a tua pulseira? Ficarás sem ela?

— Psiu! fez Lúcia levando o dedo à boca e baixando a voz.
Não fale mais nisso! Deixa-a ir; queimava! Ficou-me a sua lembrança!

Tirou então o adereço de azeviche que eu lhe tinha dado.

— Apareceu enfim!

— Não se lembra do motivo?… Agora já não preciso
escondê-lo! Vale os brilhantes que perdi.

Desde então realmente a sua predileção por aquelas jóias
tornou-se uma espécie de fetichismo para esse coração,
que por muito tempo ermo e vazio, sentia ardente sede de afeição.

XV

Decorreram vinte dias.

Chegando uma tarde vi Lúcia assustar-se e esconder sob as amplas dobras
do vestido um objeto que me pareceu um livro.

— Estava lendo?

— Não, estava esperando-o.

— Quero ver que livro era.

Meio à força e meio rindo consegui tomar o livro depois de
uma fraca resistência. Ela ficou enfadada.

Era um livro muito conhecido– A Dama das Camélias. Ergui os olhos
para Lúcia interrogando a expressão de seu rosto. Muitas vezes
lê-se não por hábito e distração, mas pela
influência de uma simpatia moral que nos faz procurar um confidente
de nossos sentimentos, até nas páginas mudas de um escritor.
Lúcia teria, como Margarida, a aspiração vaga para o
amor? Sonharia com as afeições puras do coração?

Ela tornou-se de lacre sentindo o peso de meu olhar. – Esse livro é
uma mentira!

— Uma poética exageração. mas uma mentira, não!
Julgas impossível que uma mulher como Margarida ame?

— Talvez; porém nunca desta maneira ! disse indicando

— De que maneira?

— Dando-lhe o mesmo corpo que tantos outros tiveram. Que diferença
haveria então entre o amor e o vício? Essa moça não
sentia, quando se lançava nos braços de seu amante, que eram
os sobejos da corrupção que lhe oferecia? Não temia que
seus lábios naquele momento latejassem ainda com os beijos vendidos
?

O amor purifica e dá sempre um novo encanto ao prazer. Há mulheres
que amam toda a vida; e o seu coração, em vez de gastar-se e
envelhecer, remoça como a natureza quando volta a primavera.

— Se elas uma só vez tivessem a desgraça de se desprezar a
si próprias no momento em que um homem as possuía; se tivessem
sentido estancarem-se as fontes da vida com o prazer que lhes arrancavam à
força da carne convulsa, nunca mais amariam assim. O amor é
inexaurível e remoça, como a primavera; mas não ressuscita
o que já morreu.

— Pelo que vejo, Lúcia, nunca amarás em tua vida!

— Eu?… Que idéia! Para que amar? O que há de real e de melhor
na vida é o prazer, e esse dispensa o coração. O prazer
que se dá e recebe é calmo e doce, sem inquietação
e sem receios. Não conhece o ciúme que desenterra o passado,
como dizem que os abutres desenterram os corpos para roerem as entranhas.
Quando eu lhe ofereço um beijo meu, que importa ao senhor que mil outros
tenham tocado o lábio que o provoca ? A água lavou a boca, como
o copo que serviu ao festim; e o vinho não é menos bom, nem
menos generoso, no cálice usado, do que no cálice novo. O amor!.
. . O amor para uma mulher como eu seria a mais terrível punição
que Deus poderia infligir-lhe! Mas o verdadeiro amor d’alma; e não
a paixão sensual de Margarida, que nem sequer teve o mérito
da fidelidade. Se alguma vez essa mulher se prostituiu mais do que nunca,
e se mostrou cortesã depravada, sem brio e sem pudor, foi quando se
animou profanar o amor com as torpes carícias que tantos haviam comprado.

Lúcia falou com uma volubilidade nervosa. Às vezes o rosto
se tornava sombrio e torvo para esclarecer-se de repente com um raio de indignação,
que cintilava na pupila; outras, a sua palavra sentida e apaixonada estacava
no meio da vibração, afogando num sorriso de desprezo.

— E houve um homem que aceitasse semelhante amor?

— Ele também a amava; e certamente não pensava como tu.

— Mas é impossível amar uma mulher que se compra, e se tem
apenas a desejam! A menos que não se ame por especulação
e cálculo para obter-se de graça o que não se pode pagar.

— Seria uma infâmia! Não dês a isto o santo nome do amor.

— E podemos nós ser amadas de outro modo? Como? Arrependendo-nos,
e rompendo com o passado? Talvez o primeiro que zombasse da mísera
fosse aquele por quem ela desejasse se regenerar. Pensaria que o enganava,
para obter por esse meio os benefícios de uma generosidade maior. Quem
sabe?… suspeitaria até que ela sonhava com uma união aviltante
para a sua honra e para a reputação de sua família. Antes
mil vezes esta vida, nua de afeições, em que se paga o desprezo
com a indiferença! Antes ter seco e morto o coração do
que senti-lo viver para semelhante tortura.

— Está bem: deixemos em paz A Dama das Camélias. Nem tu és
Margarida, nem eu sou Armando.

— Oh! juro-lhe que não!

Esse juramento teve uma solenidade que me pareceu caricata. Ou porque o percebesse,
ou por uma das inexplicáveis transições que lhe eram
freqüentes, Lúcia soltou uma gargalhada.

— Realmente este livro não presta. Nem quero acabá-lo. Cometeu-se
aí um sacrilégio literário.

As folhas desse primor da escola realista voaram despedaçadas pelas
mãos crispadas de Lúcia, que parecia antes estrangular uma víbora,
do que rasgar o livro inocente que tivera a infelicidade de irritar-lhe o
humor.

Tinha ido levar a Lúcia um bilhete de teatro, que ela aceitou. As
nossas relações tinham-se modificado insensivelmente, depois
do choque violento que sofreram.

Há de ter visto em nossas matas algumas árvores estreitamente
abraçadas pelas delgadas enrediças que lhes cingem o tronco,
confundindo na mesma copa as suas folhas e flores. Um dia vem a borrasca que
abala com rudeza o arvoredo: não conseguem os ímpetos da ventania
quebrar os elos que prendem as duas plantas amigas; porém a enrediça
deslizando inclinou para a terra. Volta a bonança: a seiva expande-se
com as águas que passaram; o pâmpano tocando o chão começa
se lastrar; a haste da árvore desassombrada se lança. No ano
seguinte, quando de novo por aí passar, verá o tronco nu e isolado,
e o verde dossel bordado de flores que o cobria se estenderá ao longe
humilde e rasteiro.

É a imagem fiel do que nos acontecera. O mundo soprando o seu hálito
frio na intimidade de nossa existência não tinha podido separar
Lúcia de mim; porém o estame delicado de sua vida desprendeu-se
do meu seio, onde ela o escondera e abrigara. A flor mimosa de sua alma talvez
sentisse que a sombra das ramas ia faltar-lhe contra os sóis abrasadores,
como a proteção do tronco contra os vendavais. E inclinou-se,
langue e desfalecida. Eu, que a devia erguer, não o fiz, porque também
sentia o mundo que me impelia; as aspirações do futuro me chamavam
à vida de estudo e trabalho.

Involuntariamente pois, sem queixas nem recriminações, apenas
com uma doce saudade dos tempos que fugiam rápidos, ambos cedíamos
a uma lei natural, e víamos afrouxarem os laços que nos uniam.
Lúcia, sempre meiga e terna para mim, não podia já esconder
a frieza com que recebia 0 gozo que outrora era a primeira a provocar. Quando
as minhas instâncias redobravam, ela, que a princípio se expandia
entre o rubor, sorria constrangida como uma escrava submissa ao aceno do senhor.

Eu assistia em silêncio a essa transformação. Algumas
vezes tentava ainda soprar naquelas cinzas para ver se ateava uma chama do
intenso fogo que lavrara ali; mas esmorecia, porque já o frio me ia
invadindo; e só colhia as pálidas rosas que ainda espontavam
breves e rápidas como flores de chuva. Contudo, ou por um doce hábito,
ou por uma misteriosa influência do passado, preferia a frieza dessa
mulher aos transportes de qualquer beleza; guardava-lhe sem sacrifício,
como sem intenção, uma fidelidade exemplar.

Não se admire pois se eu lhe disser que já não ia todos
os dias à casa de Lúcia, apesar de suas instâncias; contudo
sentia que a minha presença ainda lhe era agradável, e que ela
a desejava, senão ardentemente, com uma doce emoção.
Parecia que o prazer fugindo deixava a amizade calma e serena.

Qual era a existência de Lúcia durante o tempo que não
passava em sua casa? Ignorava completamente; tinha até receio de conhecê-la;
quando nalgum circulo a conversa caía sobre ela, de ordinário
me retirava. Adivinha a razão. Lúcia não tinha compromissos
para comigo; devia usar de sua liberdade; se eu lhe havia guardado uma fidelidade
espontânea, não tinha por isso direito de exigir retribuição,
sobretudo depois que minhas visitas se tornavam mais curtas e menos freqüentes.

Contei-lhe tudo isto a propósito do teatro, onde nos devíamos
encontrar.

Lá estava a família do Sr. R. . . a quem fui cumprimentar apenas
caiu o pano. A mãe, absorvida por uma velha titular, que lhe contava
maravilhas do teatro 3. João, depois de acolher-me com a sua costumada
amabilidade, deixou-me à filha, que estava desesperada por achar um
cúmplice para a inocente critica feminina. Não tendo nada que
me ocupasse, entretive-me mais tempo do que era natural com essa conversa,
que não deixava de ser agradável para quem aprecia como eu a
botânica da flor viva, gênero zoófito, que se chama mulher.
A menina as vezes debruçava-se para comunicar-me alguma observação
mais cáustica; e eu tinha ocasião de sentir um hálito
fragrante, e entrever na sombra a marmórea saliência de um seio
virgem.

Saindo vi sentada na porta do seu camarote uma das poucas lorettes de Paris,
que por um belo dia de inverno, como verdadeiras aves de arribação,
batem as asas, atravessam o Atlântico, e vêm espanejar-se ao sol
do Brasil nas margens risonhas da mais bela baía do mundo. Ela tinha
e tem, comi a cor da Espanhola e os cabelos da Italiana, a suprema elegância
do passo e da atitude que o solo parisiense inocula pelas plantas de suas
filhas prediletas. Admirava e conhecia essa mulher de a ter encontrado algumas
vezes, mas as nossas relações não passavam de uma polidez
mútua.

Vendo-a, tive como um pressentimento de que essa mulher era a única
que poderia apagar a lembrança de Lúcia. Levado por semelhante
idéia, e também por esse desejo que temos todos de tocar com
o ciúme o ouro de uma afeição, a fim de lhe conhecer
o quilate, aproximei-me: conversamos alguns instantes.

Não sei se a senhora achará prazer na leitura destas cenas
sem colorido, estirado diálogo entre dois atores, raro interrompido
pelo mundo, que lhes atira um eco de seus rumores. Já tenho tido vezes
de arrependimento depois que comecei estas páginas, que eu podia tornar
mais interessantes, se as quisesse dramatizar com sacrifício da verdade:
porém mentiria às minhas recordações e à
promessa que lhe fiz de exumar do meu coração a imagem de uma
mulher.

Fui ver Lúcia. Ela estava pensativa e distraía-se continuamente
para fitar o óculo na direção do camarote do R… Nem
uma palavra a respeito da francesa, o que me contrariava, como deve supor.

— Ainda há pouco te vi de um camarote!

— Onde está uma família?

— Não, de outro mais chegado à cena, disse sorrindo.

— Sei, também o vi na porta.

— E uma bonita mulher, não achas? repliquei fingindo indiferença,
mas realmente humilhado pela calma e sossego de Lúcia.

— Não conheço nem uma no Rio de Janeiro, nem mais bonita,
nem mais graciosa. Merece todas as atenções de que a cercam.

— Estive conversando com ela; achei-a muito agradável. Se não
tivesse receio de desgostar-te, iria vê-la.

Lúcia calou-se e levou o binóculo aos olhos. Era demais; nem
sequer um despeito simulado. A consciência de sua infidelidade a pungiria
tanto que se reconhecia indigna até de fingir ciúmes? Ou desejava
ela ver romper-se o último véu que ainda nos ocultava a ambos
a realidade de uma afeição partida?

— Sabes o provérbio, Lúcia. Quem cala consente.

— Como! Não ouvi! disse-me retirando o óculo e voltando-se
para mim com a expressão lesa de quem procura apreender uma idéia
no vácuo da memória.

— É indiferente para ti que eu veja aquela francesa! O teu silencio
é claro!

— Tenho acaso o direito de me queixar? disse com melancolia. O prazer que
ela lhe promete, sinto que já não posso dá-lo.

— Porque não queres; porque já não és a mesma’

— Não decerto, não sou a mesma! Mudei tanto!

— Para mim unicamente!

Ela fitou-me com um olhar ingênuo. Hoje que me lembro da expressão
desse olhar leio nele perfeitamente: <<Vive no mundo alguém mais?>>
Era a frase muda de seus olhos.

Lúcia ergueu de novo o binóculo.

— Aquela família com quem esteve não é a mesma que
o convidou para a partida? A filha é muito bonita! O senhor dançou
com ela!

XVI

Dias depois estava em casa de Lúcia; conversávamos tranqüilamente
como dois bons amigos num momento de expansão.

Ela me contara vagamente, sem indicação de datas nem de localidades,
as impressões de sua infância passada no campo entre as árvores
e à borda do mar; seu espírito adejava com prazer sobre essas
reminiscências embalsamadas com os agrestes perfumes da mata, e por
vezes a poesia da natureza fluía no seu ingênuo entusiasmo.

Pela primeira vez também, desde o momento em que a conhecera, Lúcia
se mostrara curiosa a respeito do meu passado, de minha família, e
de minhas ambições de futuro. Até então só
conhecia de mim o meu nome e a minha pessoa; nem mostrava desejar mais. Os
meus sentimentos, a minha vida íntima era um mundo em que se julgava
profana, e no qual não ousava ou não queria mesmo penetrar.

Já tinha por vezes refletido nessa abstenção, a qual
aparentemente denotava que Lúcia só estimava em mim o homem
exterior; o moço que encontrara num dia de desenfado, e que lhe agradara
pela figura, pelos modos, ou antes por capricho seu. Pouco lhe importando
saber donde vinha e para onde ia esse companheiro de viagem, unira-se a ele
para amenizar, durante o tempo que seguissem o mesmo rumo, os incidentes do
caminho e a solidão do pouso.

Naquele dia, pois, satisfazendo o seu desejo, falei-lhe pela primeira vez
do meu verdadeiro eu; das minhas esperanças, das minhas afeições,
dos meus sonhos. Ela ouvia tudo com evidente interesse: o nome de uma pessoa
querida por mim, ou de parente ou de amigo; uma data de família; uma
localidade que fora teatro de algum dos pequenos acontecimentos da vida; tudo
se gravara tão rápida e profundamente no seu espírito,
que as suas observações não pareciam de quem acabava
de ouvir, mas de quem acompanhara dia por dia os fatos que eu lhe contava.
Identificando-se com a minha alma, graças à admirável
flexibilidade do senso íntimo da mulher, ela sentia e comovia-se, recordando
as minhas afeições; e nutria-se das minhas ambições,
sonhando com elas, e dourando-as aos reflexos de sua rica imaginação.

Lúcia trazia nessa manhã um traje quase severo: vestido escuro,
afogado e de mangas compridas, com pouca roda, simples colarinho e punhos
de linho rebatidos; cabelos negligentemente enrolados em basta madeixa, sem
ornato algum. Em vez dos pantufos aveludados que costumava usar em casa, no
desalinho, calçava uma botina de merinó preto, que ia-lhe admiravelmente,
porque ela tinha o mais lindo pé do mundo. Quando o vento que entrava
pela janela erguia indiscretamente a fímbria da saia, apesar do movimento
rápido que a conchegava, descobria-se a volta bordada de uma calça
estreita, cerrando o colo esbelto da perna divina.

O homem é um sistema de contrariedade.

As confidências mútuas, as expansões d’alma despegada
do seu invólucro material, o recato austero do traje que ocultava belezas
criadas para viver em plena luz e ao ar livre, como as flores do trópico,
deviam alhear-me os sentidos. Mas bem longe disso, no fim da nossa conversação
remordiam-me as recordações. Meu olhar insinuava-se perfidamente
pela abertura do colarinho modesto que cingia uma garganta pura, espreguiçava-se
pela seda avara que entufava a marmórea rijeza de um seio comprimido;
enleava-se nas pregas fofas que quebravam a harmonia das formas.

Tomei as mãos de Lúcia sorrindo, e meus olhos foram à
porta vendada de sua alcova. Ela ergueu-se rapidamente, e disse-me com um
modo ríspido:

— Vou sair!

Era a primeira recusa que eu sofria.

O constrangimento de Lúcia tinha ido sempre em aumento; mas nunca,
até ali, o meu desejo encontrara uma resistência; nunca uma desculpa,
um pretexto, o contrariara. Ainda pronta para sair, no momento de entrar no
carro, já no teatro ou no passeio, bastava uma palavra minha para fazê-la
voltar, muda e fria, é verdade, mas obediente e resignada. Em qualquer
ocasião, a qualquer hora do dia ou da noite, se meu lábio procurava
o seu, achava-o, seco e áspero, mas dócil à carícia.

— A que horas voltas?

— Não sei; é natural que me demore.

— Até à noite, então

A noite, quando voltei, queixava-se de uma indisposição. Repeliu-me
ainda; só abracei um corpo convulso e gelado que me assustou; sobretudo
quando, levando as mãos à cabeça, soltou um gemido plangente
e doloroso.

Estava realmente doente; respeitei-a. As nove horas, apesar de minhas instâncias
para ficar velando-a na sua enfermidade, obrigou-me a sair, e disse-me adeus
sem acrescentar, como tinha de costume:

— Até amanhã.

Era também a primeira vez que a minha presença parecia contrariá-la.
De manhã soube que o seu incômodo se agravara durante a noite.
Achei instalada em sua casa, como enfermeira, uma tal Sr.ª Jesuína,
mulher de cinqüenta anos, seca e já encarquilhada, com quem embirrei
solenemente desde o momento em que a vi. Essa insuportável criatura
não deixava um momento a borda do leito; e quando alguma vez eu tomava
as mãos de Lúcia, ou reclinava-me para ela, quando meus lábios
iam roçar a flor de seu rosto, a Sr.ª Jesuína tinha sempre
um remédio a dar, um travesseiro a endireitar, uma recomendação
a fazer.

Um dia retirando-me, a velha acompanhou-me até a sala; aí no
meio de biocos e gatimanhos, deu-me a entender que o médico proibira
terminantemente a Lúcia o menor excesso, que lhe podia ser fatal.

— Mas qual é a moléstia de Lúcia?

— Não me recordo; esses nomes de medicina são tão esquisitos!
A moléstia agora não vale nada; amanhã está de
pé; e num mês pode ficar inteiramente boa. Somente nada de excesso!

A velha carregou na palavra, piscando os olhos pequeninos.

— Pode custar-lhe a vida’ acrescentou.

— Qual é o médico que trata dela?

— Um tal… Não me lembro agora. Mas é bom doutor.

— A que horas costuma vir?

— Não tem hora certa. Quando o senhor chegou, tinha saído.

— Onde mora?

— Nem sei! Ele disse; porém já me esqueci!

Desejava falar ao médico para saber com certeza o estado de Lúcia;
não o consegui porém. No dia seguinte já encontrei Lúcia
na sala, ainda abatida, mas sem sofrimento algum.

Decorreu uma semana. Lúcia tinha-se restabelecido completamente; continuávamos
as nossas longas conversas de outrora, mas não a sós. A Sr.ª
Jesuina ficara a título de caseira ou dama de companhia; encontrava-a
invariavelmente repimpada numa cadeira de balanço, a dois passos de
Lúcia, lendo uma coleção de novelas em que brilhavam
Zaíra, e os Azares da Fortuna. Se alguma vez Lúcia se levantava,
a Sr.ª Jesuína atirava com um movimento da cabeça os óculos
de tartaruga sobre a ponta do nariz, e seguia-a para lhe perguntar se queria
um refresco, um banho, o jantar, a roupa para sair, ou qualquer outra coisa.

Afinal não me pude ter.

— Já estás boa, Lúcia; não precisas mais de
enfermeira. Que faz aqui esta velha?

— Faz-me companhia. Vivo tão só!

— Outrora a minha companhia te bastava.

Não me respondeu.

— Manda-a embora!

— Não é possível preciso dela, mesmo para o arranjo
da casa.

— Bem; como eu não a posso suportar, não voltarei enquanto
ela aqui estiver.

A Sr.ª Jesuína tinha ouvido, o que me era completamente indiferente.
Lúcia abaixara a cabeça e ficara pensativa; ao retirar-me, quando
me apertava a mão, disse:

— Não a encontrará mais!

De fato no outro dia não encontrei a Jesuína. Lúcia
estava só; todos os obstáculos e contrariedades que sofria depois
de duas semanas, me tinham irritado creio Que fui até violento e grosseiro;
mas debalde. A resistência era tenaz e friamente calculada. Um momento.
enquanto se debatia nos meus braços, o egoísmo cruel que às
vezes faz do homem uma fera, e lhe dá instintos carniceiros, levou-me
a dizer-lhe com escárnio:

— É a recomendação do médico ? Tens medo de
adoecer!

— Se fosse isso! Ainda quando soubesse que morreria nos seus braços…
Que morte mais doce podia eu desejar. Não; não é esse
o motivo. Não houve tal recomendação, nem aqui veio medico.
Repugna-me enganá-lo tudo foi uma mentira daquela mulher.

— Não estiveste doente? perguntei admirado.

Tive uma ligeira indisposição. Naquele dia em que saí,
andei muito e apanhei bastante sol; quando voltei. tinha dores de cabeça
horríveis. O senhor chegou. .. E naquele momento cuidei que ia ter
uma vertigem. Mas passou.

E a que veio a história daquela velha?

Lúcia perturbou-se e a custo balbuciou esta explicação:

— Chamei esta mulher para junto de mim porque tinha medo de estar só
com o senhor.

— Ah!

— Ela inventou a mentira, de que eu não gostei; mas não tive
animo de desenganá-lo!

— E por que receias estar só comigo, Lúcia?

Ela hesitou; por fim prorrompeu-lhe a voz do seio arquejante:

— Porque não posso fazer-lhe a vontade… Não! Sofro horrivelmente!

— Isto quer dizer que eu te incomodo vindo aqui

— Ao contrário, meu Deus! É a única alegria que tenho
neste mundo. Dê-me esse consolo! Venha conversar comigo! Todos os dias!
. . .

— Tenho agora muito que fazer; estou tratando de estabelecer-me. A tua conversa
é bastante agradável, mas falta-me o tempo.

— E nos domingos ? . . .

— Ora Lúcia, sejamos francos. Melhor é confessares que eu
te importuno. Já sabia disso; não me dirias nada de novo.

Quer saber o que respondeu?

— Se lhe incomoda vir aqui, eu irei vê-lo.

— Para conversar?…

Deixou pender a cabeça abatida.

— Para isso, continuei, não se incomode. li, até favor não
ir; porque vendo-a não me saberei dominar, e posso causar-lhe algum
horrível sofrimento.

— É justo! Servi apenas para matar um desejo! E hoje nem para isso!..
.

Ainda voltei uma vez à casa de Lúcia.

Era natural; à medida que eu sentia essa criatura desapegar-se de
mim, agarrava-me a ela com a ânsia do náufrago. Suspeitava que
Lúcia tinha um amante. Queria desenganar-me; o acaso favoreceu-me.

Vi entrando na sala um objeto que pela sua novidade atraiu logo a minha atenção.
Era um elegante vaso de cristal cor de leite, representando uma tuberosa;
a flor que lhe servia de bocal ostentava uma camélia soberba; o ciúme,
que é instinto e faro da paixão, descobriu logo entre o pé
do vaso e o mármore do consolo a ponta de uma carta em papel rosa.

Lúcia teve um sobressalto quando entrei. Podia ser um assomo de alegria,
por me ver depois de três dias de ausência; podia ser também
um movimento de contrariedade. Atribui ao segundo motivo.

— Estavas esperando alguma pessoa?

— Já ninguém me visita.

— Por que razão?

— Os meus antigos amantes se enfastiaram de mim! disse com voz amarga.

— Virão novos! Já eles se anunciam! respondi indicando a camélia.
É naturalmente pela pessoa que te mandou esta flor, que esperas.

Lúcia ergueu os olhos surpresos e pareceu ver pela primeira vez o
vaso e a camélia.

— É um lindo presente com efeito! disse ela chegando-se ao consolo.
E uma flor tão bonita não tem perfume!…

Levantando o vaso, descobriu a carta que eu entrevira, e que ela passou-me
sem ter rompido o fecho.

— Leia.

Corri os olhos pela carta; era do Cunha; insistia com Lúcia para aceitar
o seu amor, oferecendo-lhe as condições mais brilhantes que
poderia desejar uma mulher na sua posição. Enquanto lia, ela
se aproximara da janela.

— Ah! que pena! exclamou rindo.

O vaso e a flor acabavam de despedaçar-se nas pedras da calçada.
Lúcia tomou-me a carta das mãos e sem ter rasgou-a friamente.

— Não desconfie; desse menos que de qualquer outro. Já foi
meu amante; uma noite vi sua mulher, que ele abandonava por minha causa, triste
e pensativa. Desde esse momento deixou de existir para mim.

Lembra-se do que me dissera o Cunha no teatro? Era assim que caluniavam essa
moca; porque também ela punha sobre o coração a máscara
do capricho.

Tínhamos esquecido o Cunha e falávamos de outras coisas.

— Decididamente, Lúcia, não queres mais saber de mim?

— Eu!… Se é preciso, suplico-lhe de joelhos que me venha ver!

Abanei a cabeça.

— Se tens um amante e desejas guardar-lhe fidelidade, é diferente;
podemos ficar amigos e ver-nos ainda de vez em quando. Mas para satisfazer
um capricho pueril! Não estou disposto.

— Então se eu tivesse um amante, faria o que eu lhe peco ? Viria
ver-me ?

— Nesse caso haveria um motivo justo, que eu respeitaria.

— Pois bem; eu tenho!

— Um amante?

— Sim!

— Quem é ele?

— Não sei. Ainda não tenho; mas terei amanhã; hoje,
se quiser.

— Agora mesmo! Serei eu!

— Oh! não!

— Bem vês que não passa de um capricho. Já me tinham
falado dessa tua excentricidade. Gostas de fechar a porta aos teus amantes,
quando eles menos esperam; talvez para puni-los do prazer que lhes deste!
É uma vingança!

— Aqueles que lhe falaram assim tinham razão; mas nenhum, fique certo,
se queixará de o ter eu enganado.

XVII

Havia mais de quinze dias que já não ia a casa de Lúcia;
tinha-a encontrado três ou quatro vezes na rua, e não lhe falara:
fingia não vê-la.

A princípio custou-me não ceder àquele doce hábito;
mas convencido como estava de que essa mulher zombava de mim, e queria ver-me
representar o ridículo papel de amante titular, ou honorário,
satélite de um astro que brilha para outros! paciente caudatário
que as cortesãs gostam de trazer por orgulho e vaidade, revesti-me
de coragem, e quebrei de uma vez com essas relações. O tempo
e remédio soberano; os dias correram; a pouco e pouco fui-me resignando
à. separa ao.

Tinha aproveitado a minha liberdade para me preparar à vida séria.
Mudara-me do hotel, e tomara um primeiro andar na Rua da Assembléia.
As passadas necessárias para fazê-lo mobiliar e arranjar. as
compras de arranjos domésticos tinharn feito uma poderosa diversão
que muito concorreu para fortalecer-me na resolução que havia
tomado

Contudo a lembrança de Lúcia não se apagava: eu vivia
ainda das recordações da felicidade que ela me dera; e quando
saía afagava sempre a esperança de encontrá-la. Se isto
sucedia, apesar de minha aparente indiferença, sentia uma emoção
que achava ridícula e não podia dominar. A conversa do Rochinha,
ou do Cunha, me era agradável, porque dava ocasião de saber
notícias dela. Uma vez me disseram que Lúcia saía freqüentemente,
e passava todos os dias pela Rua do Ouvidor; a idéia de que ela o fazia
para ter ocasiões de me ver consolou-me.

Uma manhã lia os jornais sobre a mesa do almoço, esperando
que me servissem, quando o moleque prorrompeu na sala com o ar espantado,
com que correria a anunciar-me que tínhamos fogo em casa.

— Está aí uma moça!

— Uma moça! repeti com um batimento de coração.

— O rosto dela está coberto com véu; mas eu vi!. . . muito
bonita, sim senhor!

Quem podia ser senão Lúcia ? Não me enganei. Avistando-me
roçagou o véu, e disse com um triste sorriso:

— Resisti enquanto pude: não tenho mais forças. Estou pronta
para tudo.

— Para tudo? perguntei sorrindo.

— Já que é preciso para vê-lo!

— Com que ar dizes isto! Se e um sacrifício, renuncio.

— E continuará a fugir-me? Passará por mim sem olhar-me. Não;
não é um sacrifício. Preferia que nos víssemos
de outra maneira; mas não é possível! O senhor quer;
e o meu maior prazer não é fazer-lhe todas as vontades?

— Vamos almoçar; passarás hoje o dia comigo.

— Só com uma condição.

— Qual será essa condição que eu não aceite
para ter o prazer de possuir-te um dia inteiro ?

— É… que não há de ser hoje! disse ela enrubescendo.

— Começas de novo com os teus caprichos.

— Então não fico! replicou atando as fitas do chapéu,
e com o tom decidido.

— Deixa-te disto, Lúcia.

— Adeus; até amanhã.

— Está bem; aceito a condição.

— Dá-me sua palavra?

— Faço-te um juramento se quiseres.

— Não é preciso: estou satisfeita, e em paga do sacrifício,
quero ser generosa.

Deu-me um beijo, um só, e na fronte.

— Então o beijo é permitido? disse eu sorrindo.

— Da minha parte unicamente; da sua, não senhor.

— Por que essa diferença? Deve haver completa igualdade.

— E não há! Se eu fico com o direito de dar, o senhor não
tem o de recusar?

— Tu bem sabes que me faltaria a coragem!

— Não é culpa minha!

— E de quem é? De quem te fez tão bonita?

— Já fui! disse ela sorrindo com melancolia.

Realmente Lúcia estava mudada: tinha perdido o esmalte fresco e suave
da tez; parecia mesmo desfeita e abatida; porém isso, longe de desmerecer
a sua beleza, dava-lhe certa morbidez lânguida que a tornava ainda mais
sedutora. Há dois momentos em que a rosa, a flor da beleza, tem para
mim um irresistível encanto: é quando desata as mil folhas ostentando
o brilho das cores e a régia altivez de sua coroa, e quando desfalece
ao beijo ardente do sol, evaporando das pétalas flácidas o pálido
matiz e o aroma sutil.

Saí um instante depois do almoço para ir ao escritório
da Companhia de Paquetes pagar o frete de umas encomendas que enviava à
minha família, e para encarregá-las à solicitude de um
empregado do vapor.

Quando voltei, a minha casa de homem solteiro tinha sofrido uma alteração
completa. Os vidros que em quinze dias já tinham adquirido uma crosta
espessa dessa poeira clássica do Rio de Janeiro, como é clássica
a lama de Paris, os vidros brilhavam na sua límpida transparência
entre as bambinelas de cassa que um armador acabava de pregar. Os móveis
espanejados tinham mudado de lugar, tomando a posição melhor
e formando esse quadro harmônico, que o olhar de uma mulher esboça
com a rapidez do pensamento; porque ela tem em si o instinto da forma, como
a luz encerra a diversidade de cores que reflete sobre os objetos. Do recosto
do sofá e das cadeiras pendiam lindas cobertas a crochê; nos
vasos dos consolos se expandiam ramos de flores que embalsamavam a sala.

No meu gabinete de estudo, a desordem desaparecera ao toque mágico
do condão de uma fada hospitaleira: os livros arrumados na estante,
e em seu devido lugar; os manuscritos reunidos sob pesos de cristal; as cartas
emaçadas em ganchos de metal pregados junto à mesa e ao alcance
da mão; ao lado da cadeira de braços uma cesta de palha para
receber as tiras de papel, e na frente um pequeno tapete felpudo para aquecer
os pés nas noites frias.

Igual revolução no meu quarto de vestir. Sobre o toucador uma
profusão de perfumarias e pequenos objetos de fantasia. Na cômoda
a roupa estava arranjada como no tempo em que minha mãe se incumbia
desse trabalho. Um dedal de ouro, um papel de botões, e preparos de
costura, que se viam sobre a cadeira numa caixinha de tartaruga, indicavam
que antes da arrumação, mãozinha ágil e habilidosa
da costureira reparara os estragos do uso.

Mas eu tinha corrido toda a casa, notando essa transformação
repentina, sem descobrir a autora; já estava inquieto quando pela janela
da sala de jantar, a vi na cozinha, e num estado que só tanta beleza
e graça podia salvar do ridículo. Figure uma moça vestida
de ricas sedas, com as mangas enroladas e a saia arregaçada e atada
em nó sobre o meio da crinolina; com uma toalha passada pelo pescoço
à guisa de avental; vermelha pelo calor e reflexo do fogo, batendo
gemas de ovos para fazer não sei que doce. Repito: era preciso ter
a faceirice e gentileza daquela mulher, para nessa posição e
no meio da moldura de paredes enfumaçadas, obrigar que a admirassem
ainda.

Fui tirá-la da sua azáfama doceira, e a trouxe confusa e envergonhada.
Depois que ela reparou a desordem de seu traje, tanto quanto era possível,
tomei-lhe contas severas.

— Quando pedi à senhora que passasse o dia comigo, não foi
para me servir nem de cozinheira, nem de costureira, nem de criada.

— De que posso eu servir-lhe?

— O mais grave porém não é isso: a senhora encheu a
minha casa de objetos que não me pertencem, porque não os comprei.

Ela tirou um papel do seio:

— Oh! eu o conheço!… Tudo foi comprado com o dinheiro que tirei
da sua gaveta. Aqui tem a conta. Se fiz mal em gastar sem sua ordem, ralhe
comigo; suponha que eu pedi essa quantia, que o senhor decerto não
me recusaria.

Lúcia deu-me a conta que eu rasguei sem ler fazendo-a sentar nos meus
joelhos, e cobrindo-a de beijos.

— Olhe lá! Já faltou ao prometido! Mas desta vez passe; porque
me perdoou. Se não se apressasse, eu mesma lhos daria.

— Ainda está em tempo!

— Não, senhor. Quero fazer valer a minha riqueza. Darei se me afiançar
outra vez que aprova tudo que fiz!

O ajuste foi aceito e concluído. Eram uma perfídia de Lúcia,
como verá.

Estive para esquecer o nosso compromisso. Lúcia escapou-se; fitando-me
com um olhar de exprobração disse-me:

— E sua promessa!

— Não tenho forças para cumpri-la!

— E eu tenho para ceder-lhe! Pois bem; restituo sua palavra, para não
obrigá-lo a faltar a ela. Quer-me assim mesmo morta?

Lúcia deu um passo para mim. Era realmente um corpo morto e uma feição
estúpida que ela me oferecia. Repeli com vago terror. Então,
serenou, e conseguiu sorrir:

— Amanhã!

Depois com a voz triste e grave acrescentou:

— Será sempre cedo!

Chegou o moleque que tinha ido à sua casa buscar um vestido; poucos
instantes depois ela apareceu com um traje fresco e risonho de que tinha,
mais que nenhuma mulher, o encantador segredo. Eu embalava-me na rede. Lúcia,
depois que cansou de traquinar, fazendo-me cócegas, cobrindo-me o rosto
com as franjas e oferecendo-me entre as malhas um beijo que eu não
podia colher e se evaporava no ar, foi à estante escolher um livro,
e sentou-se na esteira para ouvir-me ler.

O livro que ela trouxe era esse gracioso conto de Bernardin de Saint-Pierre,
que todos lemos uma vez aos quinze anos, quando ainda não o sabemos
compreender; e outra aos trinta, quando já não o podemos sentir.
O que seduzira Lúcia foi o nome de Paulo que ela ao entregar-me o volume
mostrara sorrindo. Quando eu lia a descrição das duas cabanas
e a infância dos amantes, Lúcia deixou pender a cabeça
sobre o seio, cruzou as mãos nos joelhos dobrando o talhe, como a estatueta
da Safo de Pradier que por aí anda tão copiada em marfim e porcelana.

De repente a voz desatou num suspiro:

— Ah! meu tempo de menina!

Voltei-me para ela; as lágrimas caíam-lhe em bagas; quis atraí-la,
fugiu, arrebatando-me o livro das mãos.

Escolhi outro livro para distraí-la; li a Atala de Chateau-briand,
que ela ouviu com uma atenção religiosa. Chegando a essa passagem
encantadora em que a filha de Lopes declara ao jovem selvagem que nunca será
sua amante, embora o ame como à sombra da floresta nos ardores do sol,
Lúcia pousou a mão sobre os meus olhos dizendo-me:

— Não podíamos viver assim?

— Atala tinha um motivo para resistir, Lúcia!

— E eu não tenho?

— Ela obedecia a um voto; e a virgindade lhe servia de defesa.

Lúcia respondeu-me arrebatadamente:

— Alguns espinhos que cercam a rosa, valem o veneno de certas flores? Um
voto é coisa santa; mas a dor da mãe que mata seu filho é
horrível.

— Não te entendo!

Ela demorou um instante o seu olhar ardente sobre mim, e murmurou abaixando
as longas pálpebras:

— Queria dizer que se eu fosse Átala, poderia perder a minha alma
para dar-lhe a virgindade que não tenho; mas o que eu não posso,
é separar-me deste corpo!

Jantamos; nunca lauto banquete foi festejado por epicuristas, como a minha
modesta colação pelos dois convivas que partilhavam o mesmo
prato e bebiam no mesmo copo, rindo e brigando de qual daria ao outro uma
preferência mutuamente recusada.

As oito horas da noite acompanhei Lúcia a casa.

Poucos momentos depois de entrar ela foi ao toucador e voltou em traje de
dormir; os cabelos soltos e uma longa camisola de linho, sem uma renda, nem
um bordado.

— Já vais dormir?

— Vou deitar-me; estou fatigada; trabalhei hoje muito! respondeu sorrindo
e tomando-me pela mão. Mas podemos conversar até dez horas.
Durmo cedo agora.

O seu quarto de dormir já não era o mesmo; notei logo a mudança
completa dos móveis. Uma saleta cor-de-rosa esteirada, uma cama de
ferro, uma banquinha de cabeceira, algumas cadeiras e um crucifixo de marfim,
compunham esse aposento de extrema simplicidade e nudez.

A idéia que primeiro me ocorreu foi que Lúcia tivera necessidade
de dinheiro, e vendera os seus ricos trastes; isso me causou um aperto de
coração.

— Por que esta mudança?

— Durmo aqui melhor. O outro quarto lá está como o senhor
deixou.

— Nada lhe falta ?

— Nada absolutamente. Admira-se de que me prive da minha rica mobília,
para usar de outra mais simples?

— Decerto; foi uma despesa inútil.

— Mas o senhor não sabe que posso comprar o que me parecer sem que
reparem; e não posso vender coisa alguma sem que me suponham arruinada?

— A minha questão é da preferência que dás a
esses trastes ordinários sobre os teus lindos móveis de pau-cetim.

— Grande questão. . . Questão de mulher no fim de contas:
capricho. Nesta cama que o senhor acha tão feia, e neste quarto que
lhe parece tão triste, o sono é doce para mim e os sonhos alegres.
Quando entro aqui, sacudo no limiar da porta, como os viajantes, a poeira
do caminho; e Deus me recebe.

Dizendo estas palavras, Lúcia ajoelhou em face do crucifixo e recolheu-se
numa breve oração mental; depois regaçou a roupa da cama
e espreguiçou-se entre as alvas lençarias, com o voluptuoso
bem-estar que sente o corpo repousando depois da fadiga.

— Como é bom adormecer assim! disse-me ela pousando a cabeça
no travesseiro e fechando-me as mãos entre as suas. Fale; conte alguma
história! Sou uma criança! É verdade! Preciso que me
acalentem. Mas fale! Diga-me…

— O quê?

— Não se agaste. Qual foi a primeira moça de quem o senhor
gostou?

— Foi uma menina, não foi uma moça, respondi sorrindo.

— Ah ! Que idade tinha ?

— Doze anos; e eu acabava de completar dezesseis.

— Oh ! Conte-me como foi !

Contei; um desses idílios das primeiras flores da vida; amores infantis
que balbucia o coração ignaro, como antes balbuciara o lábio
a palavra indecisa; arpejos vagos que o sopro da brisa arranca das cordas
de uma lira ainda não dedilhada. Essas primeiras impressões
são tão ricas de sentimento, que nunca o espírito penetra
nelas sem achar uma melodia arrebatadora, mais viva e mais brilhante, à
medida que o homem declina para a velhice. É natural que eu falasse
com animação e entusiasmo. Lúcia cerrara as pálpebras
para ouvir-me, e embalada pelas minhas palavras pareceu ir adormecendo insensivelmente.
Calei-me, admirando com respeitosa ternura o rosto puro e cândido que
entre a alvura do linho e no repouso das paixões tomara uma diáfana
limpidez.

Meus lábios roçaram apenas a tez mimosa, tanto eu receava manchar
com o hálito a flor dessa alma, que se abria na sombra e no silêncio,
como o cacto selvagem de nossos campos. Nesse momento Lúcia ergueu
as pálpebras, e seu olhar vago, já nublado pelo sono, afagou-me
docemente.

— Foi o dia mais feliz da minha vida! murmurou ela com a voz quase imperceptível.

Ainda hoje não posso compreender que força misteriosa me obrigou
a respeitar um dia inteiro essa mulher, que eu possuíra, e ainda apertava
nos meus braços, recebendo a carícia de seu lábio amante.

Chegando a casa, e na ocasião de dar o dinheiro para as compras, conheci
que Lúcia tinha-me enganado: a soma que eu possuía estava intata.

E contudo a minha suscetibilidade extrema emudeceu nesse momento. Não
sei que voz interior me disse que Lúcia tinha o direito de fazer aquilo,
e eu a obrigação de respeitar a sua vontade e agradecer-lhe.

O que outrora me parecia vileza, era já delicada atenção.

XVIII

Vi no dia seguinte correr de novo aquela mesma cortina de seda azul que abrira
para mim, como nuvem serena, um céu de delícias. Penetrei o
templo do prazer, que eu entrara pela primeira vez esmagado por um olhar de
tão soberano desprezo. Mas não encontrei nem a antiga fragrância,
nem a atmosfera tépida e embalsamada que outrora o enchia. Estava frio
e triste, como um aposento por muito tempo privado de ar e luz.

Lúcia não proferira uma palavra desde a minha chegada. Muda
e submissa obedecera ao meu olhar; quando a toquei, teve uma comoção
violenta, verdadeiro choque elétrico. Fugiu espavorida; mas voltou
logo; e caminhando para mim, entregou-se com um cínico desgarro.

Há de ter ouvido falar na sensualidade nefanda dos coveiros de cemitério,
que saciavam no cadáver das belas mulheres um desejo brutal. Não
creio que esses abutres da lascívia apertassem corpo mais gelado e
insensível do que a múmia que se inteiriçava nos meus
braços. Senti o frio horror de Virgílio correr-me pela medula
dos ossos.

Lúcia atravessou o aposento com o passo hirto, e saiu. Entrou alguns
minutos depois. O calor voltara à epiderme, que abrasava agora; o corpo
tinha, não a doce flexibilidade que lhe era natural, porém uma
elasticidade nervosa e convulsa, que o enrolava como a cauda de uma serpente
na agonia. Em vez do seu hálito sempre perfumado, a boca exalava o
bafo ardente de uma chama interior e o fumo alcoólico de espírito
fortíssimo.

— O que bebeste tu, Lúcia? perguntei-lhe inquieto.

— Sofro do estômago, bebi um gole de kirsch, respondeu com a voz trôpega.

— Que extravagância!

Ela cortou-me a palavra com um beijo de fogo; escaldou-me da lava que corria-lhe
do corpo; mas de repente repeliu-me bruscamente escondendo o rosto nas mãos:

— Não posso! É mais forte do que eu!

Soluçava como uma criança; riu depois como uma louca.

Conheci então a verdade; Lúcia estava embriagada.

A sua saída repentina fora um ato de desespero para vencer o gélido
espasmo que a marmorizava. Tinha quase esvaziado uma garrafa de kirsch. Acreditei
enfim na sinceridade da repugnância de Lúcia; renunciei de uma
vez ao meu desejo. Sentia profunda compaixão por essa mulher. O seu
pranto me enterneceu; chorei com ela.

O abalo moral foi-lhe dissipando a embriaguez, até que adormeceu profundamente
sobre o meu peito.

Quando acordou, Lúcia percorreu algum tempo com os olhos o aposento,
como se coligisse os vestígios esparsos de recordações
esvanecidas pelo sono, até que a idéia do que se havia passado
desenhou-se lúcida no seu espírito. Então volveu para
mim o olhar humilde juntando as mãos com uma expressão suplicante.

— Logo mais terei forcas! balbuciou ela. Era a primeira vez depois de tanto
tempo; e não pensei que me faltasse o animo.

— Não, Lúcia; nunca mais!

O seu rosto anuviou-se:

— Então vai abandonar-me de novo?

— Supunha que isso não passava de uma excentricidade; o meu orgulho
se revoltava. Mas há pouco o suplício horrível por que
passaste me comoveu a ponto que chorei contigo.

— Chorou?… E por mim!

— Conheci que havia uma dor profunda e intensa no que me parecia ridículo
capricho! Hei de me lembrar sempre que te vi quase morta nos meus braços!
Um desejo de hoje em diante seria uma idéia assassina! Não posso,
não o devo ter! És sagrada para mim; sagrada pelo martírio
que te causei; sagrada pelas lágrimas que derramamos juntos. A tua
beleza já não tem influência sobre os meus sentidos. Posso
te ver agora impunemente.

Lúcia me escutava com enlevo, bebendo uma a uma as minhas palavras
e o meu olhar, como se foram um elixir poderoso que a regenerasse. Apenas
me calei, desprendeu-se docemente de meu seio, e caiu de joelhos. Ergueu-se
depois grave e recolhida para dizer-me:

— Deus me abençoou.

Houve um grande silêncio, em que Lúcia, imóvel e recolhida,
continuava absorta no seu êxtase religioso, e eu contemplava-a mudo
sem me animar a interrompê-la.

— Agora deves ter confiança em mim, Lúcia; explica-me a razão
dessa singularidade.

— Eu mesma não sei! respondeu com ingênua simplicidade.

Ainda receias?…

— Não! Alguma coisa me diz que eu vibro no seu coração
uma corda, embora seja a da compaixão e da piedade. Posso abrir-lhe
minha alma e deixar que penetre nela. Veja se compreende: eu não posso.

— Mas devias sentir alguma coisa ?

— Sentia a morte que me invadia o corpo, enquanto eu vivia dentro dele sofrendo
torturas horríveis. Se eu tivesse ainda minha mãe expirante
diante de meus olhos, amaldiçoando-me no seu último soluço;
se por algum crime infame me açoitassem nua pelas ruas, cuspindo-me
às faces no meio das vaias do povo, creio que não sentiria o
que sinto nesses momentos. Por que razão?

— Entretanto houve um tempo em que, se não me engano, tu eras feliz
como eu do prazer que me davas.

— É verdade! Esse tempo foi uma eternidade de delícias para
mim; desejava até, louca que eu era! . . . desejava que fosse possível
morrermos assim um no outro… uma só vida extinguindo-se num só
corpo! Mas passou!… Devia passar.

— Por quê?

— Não sei!… Quando me lembro…

Tornou-se lívida; a voz encobriu-se: — Quando me lembro, que um filho
pode gerar das minhas entranhas, tenho horror de mim mesma!

— Não digas isso, Lúcia! Que mulher não deseja gozar
desse sublime sentimento da maternidade!

— Oh! Um filho, se Deus mo desse, seria o perdão da minha culpa !
Mas sinto que ele não poderia viver no meu seio! Eu o mataria, eu,
depois de o ter concebido!

Não compreendia esse fenômeno; ainda hoje não o posso
explicar senão por alguma das misteriosas afinidades do corpo com o
espírito que o habita.

— Mas que importa? continuou Lúcia. Aquelas delícias passadas
não valem a felicidade que eu sinto agora quando o vejo, quando lhe
falo. Se eu pudesse viver toda a minha vida assim, sentada nos seus joelhos,
olhando-o, não pediria a Deus nada mais!

Entramos então em uma nova fase de nossa mútua existência,
fase original e curiosa que me faria rir quinze dias antes. Com efeito, quem
poderia julgar possível uma amizade fraternal e pura entre duas criaturas
que meses antes trocavam as mais ardentes expansões da sensualidade?
Quem poderia conceber uma abstinência absoluta num caráter ardente,
provocado todos os dias e a todas as horas pela beleza sempre radiante de
uma mulher divina, que retraçava com um olhar e um sorriso os poemas
da voluptuosidade fruída?

Nessa época se revelavam francamente em Lúcia as aspirações
ingênuas para uma juventude perdida, os sonhos vivos do passado, que
desde muito tempo espontavam por vezes através do luxo e agitação
de uma vida elegante. Com a timidez de seu olhar velado pelos longos cílios,
com o modesto recato de sua graça e o seu vestido de cassa branca,
Lúcia parecia-me agora uma menina de quinze anos, pura e cândida.

Por que segredo ignoto da natureza a rosa que há pouco se ostentava
no viço da florescência, abrochara as folhas, e agora botão
recente, mal ia desatando o seio? Por que mágica força de vegetação
a palmeira altiva que hasteava no vale as verdes frondes, se transformara
de repente na mimosa sensitiva!

Muitas vezes achava Lúcia cosendo e cantando à meia voz alguma
monótona modinha brasileira, que só a graça de uma bonita
boca, e a melodia de uma voz fresca, pode tornar agradável. Outras
vezes passava horas inteiras esboçando um desenho, tirando uma música
ao piano, escrevendo uma lição de francês, língua
que aliás traduzia sofrivelmente; ou enfim bordando ao bastidor algum
presente que me destinava.

Não saía mais durante o dia; à noite pedia-me que a
levasse a algum arrabalde distante da cidade, à Lagoa, ou ao Cosme-Velho.
Partíamos de carro; parávamos nalgum lugar mais espovoado; ela
recostava-se no meu braço, e passeávamos durante uma ou duas
horas. Outras noites preferia o mar; embarcávamos num bote e vogávamos
pela baía.

O seu traje habitual nestes passeios era vestido de merinó escuro,
mantelete de seda preta, e um chapéu de palha com laços azuis.
Mas essa mulher tinha a beleza luxuosa que se orna a si mesma, e que os enfeites,
longe de realçar, amesquinham; nunca ela me parecia mais linda do que
sob essa simplicidade severa.

Um dia Lúcia chegou-se a mim com certo ar de mistério:

— Quer fazer amanhã um passeio comigo?

— Aonde?

— A São Domingos.

— Se isto te causa prazer!…

Partimos às 4 horas da madrugada numa falua, que atravessou rapidamente
a baía e levou-nos à praia do Icaraí. Não sei
se ainda aí perto existe um velho casebre, escondido no mato e habitado
por uma velha e dois filhos, que nos hospedaram, ou por outra, nos deram sombra
e água fresca.

Quando Lúcia pôs o pezinho calçado com a botina de duraque
preto na areia úmida da praia, pareceu que a mobilidade e agitação
das ondinhas que esfrolavam murmurando, comunicou-se-lhe pelo contato. Em
um instante chegou à casa, abraçou a velha, correu todos os
recantos, o terreiro, o quintal e o mato que se estendia em roda. Ora suspendia-se
aos ramos das árvores e colhia os frutos verdes que saboreava com delícia;
ora pulava sobre a relva soltando gritos de prazer como as aves quando atitam
ao raiar da manhã.

E no meio de tudo isso voltava para mim, e me obrigava a tomar a minha parte
do prazer que ela sentia. O meio de não comer frutas verdes quando
elas nos são apresentadas entre duas linhas de pérolas e a sombra
de lábios vermelhos, que fugiam furtando o beijo que prometiam? O meio
de não fazer toda a sorte de loucuras, quando um talhe esbelto suspende-se
ao vosso flanco, e uma voz aveludada murmura uma prece ao ouvido ?

Almoçamos. Lúcia contentou-se com uma códea de pão
e um copo de leite, que bebeu sentada sobre uma pedra.

Depois do almoço ela tomou-me pelo braço:

— Foi nesta casa que eu nasci, disse-me ela. Não era então
velha como hoje está. Tudo muda; tudo passa!

Mostrou-me o lugar onde seu pai costumava trabalhar, onde sua mãe
cosia; lembrava-se de todos os cantos, do lagar de cada móvel, da idade
de cada fruteira, dos menores incidentes passados nesta área de terra.

— Faz sete anos que deixei este lugar; parece-me que foi ontem. Quando venho
aqui alguma vez, acho ainda viva e fiel a minha infância tão
feliz! Recorda-se da Glória? De lá olhei para esta praia. O
senhor estava perto de mim. Mal pensava que três meses depois aqui viríamos
juntos!

— E o que é feito de tua família? Como a perdeste? Nunca me
quiseste dizer nada a este respeito.

— Toda a minha vida lhe pertence; o passado como o futuro. Mas aqui não
teria animo: aqui vive a minha infância, que eu respeito. Não
quero que estes lugares, que me viram tão alegre, me vejam sofrer,
tendo-o junto de mim. Não falemos nisso agora; suponho que dormi estes
sete anos e acordei hoje de repente.

Sentamo-nos sobre a relva coberta de flores e à borda de um pequeno
tanque natural, cujas águas límpidas espelhavam a doce serenidade
do céu azul. Lúcia tirou do bolso o seu crochê e o novelo
de torçal, e continuou uma gravata que estava fazendo para mim. Enquanto
ela trabalhava, eu arrancava as flores silvestres para enfeitar-lhe os cabelos;
ou arrastava-me pela relva para beijar-lhe a ponta da botina que aparecia
sob a orla do vestido.

Deixei cair algumas pedras no tanque. Não sei que impressão
triste faz sobre o espírito a plácida imobilidade da onda, que
desafia o homem a quebrar a quietude da natureza. Os olhos acompanham então
com uma indefinível satisfação os círculos concêntricos
que surgem à tona e vão-se dilatando até correr nas margens
do lago.

Ia atirar uma nova pedra, quando Lúcia que eu supunha ocupada com
o seu trabalho, reclinou-se para mim, de mãos juntas, e disse-me com
uma voz angustiada:

— Não ! Coitadinha ! Tenha pena dela!

Encarei com Lúcia: seu rosto traía uma aflição
profunda. De surpreso, deixei cair a pedra.

— Oh! Como deve sofrer! balbuciou ela mostrando-me com a mão trêmula
a água que se toldava e enegrecia.

— Que é isto? Em que estás pensando, Lúcia? disse apertando-lhe
as mãos com força.

Volveu para mim os olhos vagos; contemplou-me um instante e riu:

— Uma loucura!… Não sei como me veio semelhante idéia! Vendo
esta água tão clara toldar-se de repente, pareceu-me que via
minha alma; e acreditei que ela sofria, como eu quando os sentidos perturbam
a doce serenidade de minha vida.

Depois de uma pausa continuou:

— Naquele dia. . . não soube explicar-lhe. . . É isto! Veja!
A lama deste tanque é meu corpo: enquanto a deixam no fundo e em repouso,
a água está pura e límpida!

Acredite ou não, Lúcia acabava de me revelar naquela imagem
simples um fenômeno psicológico que eu nunca teria suspeitado.

XIX

Talvez não se lembre de um Jacinto, cujo nome, então desconhecido
para mim, ouvira uma vez da boca de Lúcia.

Era um homem de 45 anos; feição comum e espírito medíocre.
Encontrava-o agora todos os dias em casa de Lúcia; e desde a primeira
vez antipatizara com a sua enjoativa figura.

— Quem é este senhor? perguntei a Lúcia.

Ela perturbou-se.

— É um sujeito que costuma tratar dos meus negócios.

— Que importantes negócios são os teus que eu não me
possa incumbir deles ?

— Compras… Não tenho outros. Para que incomodá-lo com isso?

— Também sou ciumento: não desejo que ocupes outra pessoa
além de mim.

— Esse homem é quase um criado.

A palavra produziu o seu efeito; desde que o Jacinto desceu ao mister de
homem assalariado, não fiz mais reparo na sua assiduidade. Quase sempre
o encontrava na escada interior, descendo quando eu subia; dava-lhe tanta
atenção como ao carroceiro que enchia as talhas d’água,
ou ao cozinheiro que saía a compras.

Tínhamos partido de São Domingos na véspera às
oito horas da noite; às onze deixara Lúcia em sua casa, desculpando-me
de não ir vê-la no dia seguinte de manhã, por causa de
algumas visitas de rigor.

— Sucedeu porém que, voltando de uma dessas visitas, o cocheiro do
tílburi passasse pela porta de Lúcia. Não pude resistir
ao desejo de vê-la, apertar-lhe a mão e saber como havia passado
a noite. Cheguei à sala de jantar sem encontrar viva alma; supondo
achar Lúcia na sala, dirigi-me para ali, pelo corredor particular.
Abafei os passos, para surpreendê-la.

O surpreendido foi eu, ouvindo vozes na alcova, onde tanto havia, já
ninguém entrava. Enfiei o olhar pela fresta que deixava a sanefa de
tafetá na porta envidraçada; e o que vi me fez empalidecer.
A pessoa que estava com Lúcia era o Jacinto; ela abanava a cabeça;
ele sorria com um ar de estúpida satisfação, e abria
lentamente uma nojenta carteira de couro da Rússia.

Corri o aposento com uma vista rápida e ansiada: o leito estava desfeito
e os móveis em desordem. O Sr. Jacinto tirara da carteira um maço
de bilhetes do banco, que Lúcia escondera no seio com um expressivo
gesto de contentamento. Não havia dúvida possível; as
provas da infâmia eram evidentes; e para cúmulo do cinismo, o
preço depois de regateado fora pago à vista. Uma parede que
desabasse não me atordoaria como aquela cena a que eu acabava de assistir.
Não sei quanto tempo fiquei ali, atirado contra a porta, sem sentidos
nem espírito, somente com a consciência de uma imensa dor. Quando
voltei a mim, a alcova estava deserta; o Jacinto tinha partido, e Lúcia
cosia no toucador, cantando a meia voz. Hesitei se devia fugir para nunca
mais ver semelhante monstro de mulher, ou se ficaria para lançar-lhe
em rosto a sua ignomínia.

Conhecendo o meu passo, ela jogou de si a costura, e precipitou-se para mim;
trazia o sorriso orvalhado de carícias, o olhar cheio de candura.

— Infame!

A indignação e o desespero que fermentavam no meu seio borbotaram
nessa única palavra, grito e soluço de uma angústia cruel.
Lúcia tornou-se lívida; vacilou. Com um supremo esforço
dominando a vertigem que a tomava, cobriu-me com um olhar frio, cheio de tanta
dignidade e altivez, que me colou imóvel sobre o chão. Assim
pasmo e quedo, vi-a atravessar com lentidão a sala e desaparecer detrás
de uma porta, que se fechou surdamente. Pareceu-me ouvir selar a lousa do
túmulo, onde eu acabasse de sepultar uma porção de minha
alma.

Lancei-me pelas ruas desatinado. As quatro horas da tarde ainda eu vagava
sem destino.

O Sá passava no seu tílburi; viu-me e parou:

— Que milagre é este: ressuscitaste!

— Não me fales nisso!

— Ah! estás apenas em convalescença; mas desta vez incumbo-me
de curar-te, para que não tenhas nova recaída.

— Asseguro-te que não há mais perigo.

— Se não me engano, ainda não jantaste.

— Nem quero.

— Vem jantar comigo; entrarás imediatamente no regime higiênico
que pretendo receitar-te.

Tomou as rédeas do cocheiro, que seguiu a pé, e ofereceu-me
um lugar no tílburi.

Mais tarde Sá interrogou-me sobre o que se tinha passado; porém
recusei constantemente satisfazer a sua curiosidade. Para que ele compreendesse
o meu sofrimento, fora mister contar-lhe as minhas relações
intimas com Lúcia; e era esse mistério que invencível
pudor d’alma não me deixava expor a outros olhos, fossem eles de um
amigo.

Achei-me num estado de apatia moral; tinha medo da iniciativa, porque vagamente
pressentia que ela me arrastaria de novo à casa de Lúcia, quando
não fosse senão para ter o agro prazer de insultá-la
com o meu desprezo. Nessa situação era natural que Sá
não encontrasse a menor resistência no que ele chamava o regime
higiênico da minha paixão.

Durante três dias corremos os arrabaldes da cidade.

Passávamos uma tarde a cavalo por Santa Teresa na direção
da Caixa d’Água, quando vimos parado defronte de uma pequena casa,
reparada de novo, o Jacinto. Esse homem me atraía, pelo ímã
irresistível de Lúcia; e entretanto eu o detestava.

— Pertence-lhe esta casa, Sr. Jacinto? disse-lhe Sá respondendo à
cortesia.

— Não, senhor. Pertence a uma pessoa do seu conhecimento, a Lúcia.

— Como! Lúcia vem morar numa casa térrea e de duas janelas
? Não é possível.

— Também eu não acreditei quando ela me falou nisso! Cuidei
que estava brincando; porém é negócio sério.

— Então comprou esta casa?

— E mandou prepará-la. Já está mobiliada e pronta.
Devia mudar-se hoje; não sei que transtorno houve. Ficou para a semana!

— Está bem! São luxos de passar o verão no campo! Não
lhe dou um mês que não esteja arrependida, e não volte
para a sua casa da cidade.

— Para essa, há de ser difícil, disse o Jacinto com um sorriso.

— Por que razão?

— Vendeu-me o arrendamento e toda a mobília.

— Que diz!

— Na quinta-feira fechamos o negócio. Dei-lhe um conto de réis
de sinal. Porém o mais interessante é que mandou fazer leilão
de tudo quanto possuía, inclusive jóias e roupa.

— Terá ela caído na miséria?

— Qual! Tem perto dos seus cinqüenta contos e quer gozar da vida tranqüilamente.
Doidice; podia fazer uma fortuna, e ajudar os outros.

O Jacinto cumprimentou e desceu a ladeira. A conversa que acabava de ouvir
me tinha completamente perturbado; enquanto Sá aproximava-se do portão
para examinar o jardim, ficara eu imóvel e perplexo. Por fim, impelido
por uma força superior, segui precipitadamente o homem que levava consigo
o sossego e tranqüilidade do meu espírito.

Alcancei-o junto aos arcos. Procurei o pretexto do aluguel da casa em que
Lúcia morara, e obtive a narração minuciosa do que se
passara. Aquela desordem do leito não fora outra coisa mais que o exame
de um comprador de trastes, que antes de fechar o negócio deseja conhecer
o estado da mercadoria.

Corri à casa de Lúcia.

— Sofri muito, ainda sofro; mas sinto a necessidade de perdoar, disse-me
ela grave e melancólica.

Nem um transporte de alegria, nem um sobressalto de surpresa por ver-me chegar
arrependido e suplicante. Recebeu-me com uma serena placidez e um olhar de
meiga exprobração:

— Não é generoso ofender a quem não sabe e não
pode repelir a ofensa.

Era estranha para mim a expressão de calma e serena dignidade que
se difundia pelo seu rosto e por toda a sua pessoa; alguma vez já vira
passar-lhe na fronte um reflexo de nobre altivez, mas de relance, como a eletricidade
que lambe a face da nuvem. Naquele momento porém a luz irradiava de
um foco íntimo; e na feição, como na atitude de Lúcia,
aparecia profundamente impresso o pudor de uma alma ressentida.

Pela primeira vez a mulher submissa, que temia ofender-me, mostrando-se ofendida
de minhas injustiças, conservava contra mim uma queixa, e assumia o
direito de perdoar. Admirando, aceitava todas as gradações por
que passara a sua existência depois que nos conhecíamos.

— Duvidou de mim! disse Lúcia fitando-me com os seus grandes olhos
límpidos.

Ia balbuciar uma desculpa; ela atalhou-me.

— Não! A mulher de quem duvidou já não existe, morreu!
É uma história bem triste! Ouça!

Lúcia ficou um momento absorvida nas suas recordações;
afinal chegando um banquinho de tapete, sentou-se aos meus pés:

— Deixamos São Domingos para vir morar na corte; tinham dado a meu
pai um emprego nas obras públicas. Vivemos dois anos ainda bem felizes.
À noite toda a família se reunia na sala; eu dava a minha lição
de francês a meu mano mais velho, ou a lição de piano
com minha tia. Depois passávamos o serão ouvindo meu pai ler
ou contar alguma história. Às nove horas ele fechava o livro,
e minha mãe dizia: «Maria da Glória, teu pai quer cear».
Levantava-me então para deitar a toalha.

— Maria da Glória !

— É meu nome. Foi Nossa Senhora, minha madrinha, quem mo deu. Nasci
a 15 de agosto. Por isso todos os anos vou levar-lhe um trabalho de minhas
mãos, e pedir-lhe que me perdoe. Outrora pedia-lhe que me fizesse feliz;
toda a minha família me acompanhava; agora vou só e escondida.

— E que é feito de tua família?

— Lembra-se da febre amarela em 1850?

— Não estava aqui.

— Verdade! Foi um ano terrível. Meu pai, minha mãe, meus manos,
todos caíram doentes: só havia em pé minha tia e eu.
Uma vizinha que viera acudir-nos, adoecera à noite e não amanheceu.
Ninguém mais se animou a fazer-nos companhia. Estávamos na penúria;
algum dinheiro que nos tinham emprestado mal chegara para a botica. O médico,
que nos fazia a esmola de tratar, dera uma queda de cavalo e estava mal. Para
cúmulo de desespero, minha tia uma manhã não se pôde
erguer da cama; estava também com a febre. Fiquei só! Uma menina
de 14 anos para tratar de seis doentes graves, e achar recursos onde os não
havia. Não sei como não enlouqueci.

Lúcia apertou a cabeça com as mãos, como se ainda temera
que a razão lhe fugisse.

— Tudo quanto era possível, meu Deus, sinto que o fiz. Já
não dormia; sustentava-me com uma xícara de café. Nalgum
momento de repouso ia à porta e pedia aos que passavam. Pedia para
meu pai enfermo, e para minha mãe moribunda, não tinha vexame.
Uma tarde perdi a coragem; meu irmão estava na agonia, minha mãe
despedira-se de mim, e Ana, minha irmãzinha, que eu tinha criado e
amava como minha filha, já não dava acordo de si. Passou um
vizinho. Falei-lhe; ele me consolou e disse-me que o acompanhasse à
sua casa. A inocência e a dor me cegavam: acompanhei-o.

Lúcia fez um esforço para continuar:

— Esse homem era o Couto…

_ Ah!

— Ele tirou do bolso algumas moedas de ouro, sobre as quais me precipitei,
pedindo-lhe de joelhos que mas desse para salvar minha mãe; mas senti
os seus lábios que me tocavam, e fugi. Oh! Não posso contar-lhe
que lata foi a minha: três vezes corri espavorida até à
casa, e diante daquela agonia sentia renascer a coragem, e voltava. Não
sabia o que queria esse homem; ignorava então o que é a honra
e a virtude da mulher

o que se revoltava em mim era o pudor ofendido. Desde que os meus véus
se despedaçaram, cuidei que morria; não senti nada mais, nada,
senão o contato frio das moedas de ouro que eu cerrava na minha mão
crispado. O meu pensamento estava junto do leito de dor, onde gemia tudo o
que eu amava neste mundo.

Lúcia escondeu o rosto nos meus joelhos e emudeceu. Quando levantou
a fronte, implorava com as mãos juntas e o olhar súplice. O
quê? O perdão de sua primeira falta?

Não sei. Faltaram-me as palavras para consolar dor tão profunda:
beijei Lúcia na face.

— Obrigada! exclamou ela; obrigada! Alguma coisa me diz que mereço
este consolo. Terei forças para concluir. O dinheiro ganho com a minha
vergonha salvou a vida de meu pai e trouxe-nos um raio de esperança.
Quase que não me lembrava do que se tinha passado entre mim e aquele
homem; a consciência de me ter sacrificado por aqueles que eu adorava,
fazia-me forte. Demais, um esquecimento profundo, só explicável
pela alheação completa do espírito, ocultava-me a triste
verdade. Devia compreendê-la, e de que modo, ó meu Deus!

Como impelida por um choque elétrico, Lúcia ergueu-se galvanizada
por súbita e violenta recordação.

— Ainda vejo! As melhoras foram aparentes! Meus dois irmãos acabavam
de expirar, minha tia entrava na agonia, minha mãe tivera um novo acesso.
Felizmente já meu pai estava em convalescença, e saiu para tratar
do enterro. Ele não tinha dinheiro, apresentei-lhe as últimas
moedas de ouro que me restavam. «Quem te deu este dinheiro?. . . Roubaste?.
. .» Contei-lhe tudo; tudo que eu sabia na minha inocência. Ele
compreendeu o resto. Expulsou-me!

— A ti que lhe salvaste a vida?

— Meu pai julgava que eu tinha um amante e iria viver com ele! A não
ser assim, exporia sua filha a morrer de fome? Saí de casa. O único
ente que me sorriu e me abraçou por despedida foi o anjinho que Deus
me dera por irmã e conforto. Sentei-me na calçada. Era bastante
tarde já, quando uma mulher que se recolhia me perguntou o que fazia
ali àquelas horas. «Perdi meu pai e minha mãe, respondi,
não tenho onde viver». Jesuína… Era ela… levou-me
consigo. Não me esqueci dos meus. A forca de rogos e instâncias
Jesuína mandava constantemente à casa saber notícias
e levar os socorros necessários: nada faltou, nem médico, nem
enfermeiros. A paz voltou enfim; e eu tive o supremo alívio de comprar
com a minha desgraça a vida de meus pais e de minha irmã. Jesuína,
o senhor adivinha o que foi ela, tinha posto um preço aos seus serviços;
não sei se a primeira humilhação custou mais do que a
segunda; mas o sacrifício devia se consumar, porque não tive
mão que me amparasse. A minha felicidade estava destruída; cuidei
que não havia maior infâmia do que a minha. Resolvi viver para
tranqüilidade e ventura de uma família inocente da minha culpa
Quinze dias depois de expulsa por meu pai era. . . o que fui.

O sorriso pálido, que contraiu o rosto de Lúcia, parecia despedaçar-lhe
a alma nos lábios:

— Sabe agora o segredo da cupidez e avareza de que me acusavam. Encontram-se
no Rio de Janeiro homens como o Jacinto, que vivem da prostituição
das mulheres pobres e da devassidão dos homens ricos; por intermédio
dele vendia quanto me davam de algum valor. Todo esse dinheiro adquirido com
a minha infâmia era destinado a socorrer meu pai, e a fazer um dote
para Ana. Jesuína continuava a servir-me. Minha família vivia
tranqüila, e seria feliz se a lembrança do meu erro não
a perseguisse. Nisto uma moça quase de minha idade veio morar comigo;
a semelhança de nossos destinos fez-nos amigas; porém Deus quis
que eu carregasse só a minha cruz. Lúcia morreu tísica;
quando veio o médico passar o atestado, troquei os nossos nomes. Meu
pai leu no jornal o óbito de sua filha; e muitas vezes o encontrei
junto dessa sepultura onde ele ia rezar por mim, e eu pela única amiga
que tive neste mundo.

Morri pois para o mundo e para minha família. Foi então que
aceitei agradecida o oferecimento que me fizeram de levar-me à Europa.
Um ano de ausência devia quebrar os últimos laços que
me prendiam. Meus pais choravam sua filha morta; mas já não
se envergonhavam de sua filha prostituída. Eles tinham me perdoado.
Quando voltei, só restava de minha família uma irmã,
Ana, meu anjo da guarda. Está num colégio educando-se.

Eis a minha vida. O que se passava em mim é difícil de compreender,
e mais difícil de confessar. Eu tinha-me vendido a todos os caprichos
e extravagâncias; deixara-me arrastar ao mais profundo abismo da depravação;
contudo, quando entrava em mim, na solidão de minha vida íntima,
sentia que eu não era uma cortesã como aquelas que me cercavam.
Os homens que se chamavam meus amantes valiam menos para mim do que um animal;
às vezes tinha-lhes asco e nojo. Ficaram gravados no meu coração
certos germes de virtude. . . Essa palavra é uma profanação
nos meus lábios, mas não sei outra. Havia no meu coração
germes de virtude, que eu não podia arrancar, e que ainda nos excessos
do vício não me deixavam cometer uma ação vil.
Vendia-me, mas francamente e de boa-fé; aceitava a prodigalidade do
rico; nunca a ruína e a miséria de uma família.

Aquele esquecimento profundo, aquela alheação absoluta do espírito,
que eu sentira da primeira vez, continuou sempre. Era a tal ponto que depois
não me lembrava de coisa alguma; fazia-se como que uma interrupção,
um vácuo na minha vida. No momento em que uma palavra me chamava ao
meu papel, insensivelmente, pela força do hábito, eu me esquivava,
separava-me de mim mesma, e fugia deixando no meu lugar outra mulher, a cortesã
sem pudor e sem consciência, que eu desprezava, como uma coisa sórdida
e abjeta.

Mas horrível era quando nos braços de um homem este corpo sem
alma despertava pelos sentidos. Oh! Ninguém pode imaginar! Queria resistir
e não podia! Queria matar-me trucidando a carne rebelde! Tinha instintos
de fera! Era uma raiva e desespero, que me davam ímpetos de estrangular
o meu algoz. Passado esse suplício restava uma vaga sensação
de dor e um rancor profundo pelo ente miserável que me arrancara o
prazer das entranhas convulsas!

Comovida e lacrimosa, ela atirou-se ao meu peito, e enlaçou-me com
os braços trêmulos:

— Perdão! Houve um momento bem rápido em que o odiei também!
Como sofri, meu Deus! Devia resgatar essa dor a felicidade que pela dor havia
perdido!

Lúcia concluindo essa narração, que a fatigara em extremo,
enxugou as lágrimas e deu algumas voltas pela sala.

— Se eu ainda tivesse junto de mim todos os entes queridos que perdi, disse-me
com lentidão, veria morrerem um a um diante de meus olhos, e não
os salvaria por tal preço. Tive força para sacrificar-lhes outrora
o meu corpo virgem; hoje depois de cinco anos de infâmia, sinto que
não teria a coragem de profanar a castidade de minha alma. Não
sei o que sou, sei que começo a viver, que ressuscitei agora. Ainda
duvidará de mim?

— Tu és um anjo, minha Lúcia!

XX

Às cinco horas da manhã estava de pé, vestindo-me para
ir buscar Lúcia.

Na véspera ao despedir-se de mim ela me dissera:

— Amanhã mudo-me. Venha-me buscar ao romper do dia. Desejo… careco
de entrar apoiada ao seu braço na casa onde vou viver a minha nova
existência.

Achei-a pronta e esperando-me; os vestígios da comoção
violenta que haviam produzido as amargas recordações, desapareciam
sob a plácida serenidade que reslumbrava de sua alma e dava à
sua beleza uma suave limpidez.

Partimos a pé, com a fresca da manhã; fizemos um dos mais belos
passeios de que se pode gozar no Rio de Janeiro. A casa ainda estava fechada:
o preto que a guardava veio abrir-nos o portão; corremos o jardim colhendo
flores, enquanto se arejavam as salas para receber-nos. Os cômodos eram
suficientes para duas pessoas; Lúcia devia morar com sua irmã,
que ia sair do colégio. Apesar da revelação da véspera,
continuava a dar a Lúcia esse doce nome, que estava tão habituado
a pronunciar. Uma vez porém ela olhou-me com uma expressão de
mágoa:

— Paulo, disse-me com brandura, chama-me Maria!

Desde então quando eu pronunciava esse nome, sua alma tinha enlevos,
e ela acompanhava o movimento de meus lábios estremecendo de gozo,
como se todo o seu corpo sentisse uma doce carícia.

— Quando me chamas assim, Paulo, murmurava ela, parece-me que tu me embebes
e me afagas num só e imenso beijo que me envolve toda

Também a partir daquele momento ela sentia um prazer indizível
em articular o meu nome, que seus lábios às vezes desfolhavam
num sorriso, e outras debulhavam lentamente, letra por letra, como um favo
de mel, que estilassem gota a gota. Nunca Lúcia (quero chamá-la
assim ainda, porque foi esse o primeiro nome que amei, e que ainda amo) nunca
Lúcia deixara o tratamento cerimonioso que me dava, mesmo no mais intimo
das nossas relações. Nesse dia porém, de repente, sem
vexame e sem o menor esforço, começou a atuar-me.

Almoçamos, como os pastores de Teócrito, frutas, pão
e leite cru: ainda não havia preparos de cozinha, nem fogo. Por volta
de onze horas do dia chegou a criada, com uma menina de doze anos, linda e
mimosa como um anjinho de Rafael. Era o retrato de Lúcia, com a única
diferença de ter uns longes de louro cinzento nos cabelos anelados.
Ana já conhecia a irmã e a amava ignorando os laços de
sangue que existiam entre ambas; mas o instinto de seu coração
fizera adivinhar à pobre órfã um amor quase materno na
afeição ardente e apaixonada que lhe votava Lúcia.

As seis horas da tarde deixei as duas irmãs já definitivamente
instaladas no seu modesto retiro.

Continuei a visitá-las todos os dias, mas ao cair do dia. Fora Lúcia
quem regulara estas visitas.

— Tens agora o teu escritório, e eu preciso trabalhar para viver;
além disso quero ensinar a Ana o pouco que sei. Não podemos
estar todo o dia juntos. Vem ver-me à tarde, à hora da ave-maria.
Passaremos as noites no jardim, ou passeando. No domingo porém jantarás
sempre comigo; se não vieres, sei que não terei fome.

Quando a noite estava bonita, íamos os três até a Caixa-d’água,
ou até os Dois Irmãos, gozar da frescura das árvores
e da água corrente. Lúcia reclinava-se ao meu braço,
e eu dava a outra mão livre a Ana. Assim caminhávamos, quase
sempre mudos e silenciosos, contemplando a beleza das cenas que se desenrolavam
aos nossos olhos, ou absorvidos em nossos pensamentos íntimos. Quando
Ana soltava a minha mão para correr diante de nós com a inquieta
travessura de sua idade, Lúcia erguia-se na ponta dos pés, e
suspirava-me ao ouvido alguma palavra terna, alguma doce confidência
de sua alma.

— Sou feliz! dizia-me uma noite, muito feliz! Deus se compadeceu de mim
dando-me essa força de vontade que me faz separar de minha vida o tempo
que não vivi. Ele me aparece como um sonho, como uma nuvem sombria
que se vai sumindo.

Outras noites nos sentávamos sobre as pedras do caminho, e eu, respondendo
às perguntas de Ana, falava-lhe da natureza, das flores, das árvores,
das estrelas, com o entusiasmo e a poesia que as belas criações
de Deus despertam em nossa alma.

— Fala ainda! balbuciava Lúcia ao meu ouvido, quando me calava. Fala!
É tão bom ouvir-te.

Era unicamente aos domingos que eu tinha um momento de estar só com
Lúcia. Então ela tomava-me a cabeça que escondia no seio
com um anelo de ternura; fechava-me os olhos, e eu sentia os seus lábios
roçarem o meu rosto, tão de leve como as tranças de seus
cabelos; por fim olhava-me, ora sorrindo, ora séria e absorvida nos
seus pensamentos.

— Isto não pode durar muito! É impossível! murmurava
como se respondesse a uma reflexão íntima.

— Por que razão, Maria?

— Por quê? Porque não se goza da bem-aventurança na
terra.

A exceção desses raros instantes, sua irmã não
nos deixava, e em presença dela Lúcia não me permitia
uma carícia, por mais inocente que fosse. O dia se passava ouvindo
Ana tocar, vendo-a brincar, e brincando com ela. Éramos três
crianças; e delas talvez a mais moça fosse a que mais juízo
tivesse naqueles alegres folguedos.

Uma tarde, havia poucos instantes que eu tinha chegado, quando Lúcia
tomou-me pela mão, e levou-me ao seu toucador.

— Não entendo de negócios, me disse abrindo uma gaveta; e
não sei pedir senão a ti. Toma; é a escritura de compra
desta casa, que pertence a Ana: há de ser preciso pagar décima.
Tira do dinheiro destes vales; do resto comprarás apólices em
nome dela.

Examinei os papéis que Lúcia me dera; representavam um valor
de mais de cinqüenta contos de réis; dez no prédio, o resto
em dinheiro.

— E tu com que ficas? Longe de mim censurar a tua generosidade, minha boa
Maria; mas não é justo que te sujeite, a passar privações.

— Eu também tenho a minha fortuna! disse-me sorrindo. Mostrou-me
uma carteira, que eu lhe tinha dado.

— Queres ver? Olha! Foste tu que ma deste, Paulo! Guardei-a para o tempo
em que fosse digna dela. Quando eu te agradecia então, nem suspeitavas
que te agradecia pelo futuro, por este tempo em que não me peja, ao
contrário tenho orgulho, de viver por ti e para ti.

A carteira continha pequenos maços de notas, com o algarismo e uma
data escrita no rótulo.

— Não sei o que quer dizer isto!

— Não te lembras, quando ias à gavetinha do meu toucador?
Aí está o que me davas, dia por dia. Compreendes agora ?

— Mas isto é uma bagatela; não é uma fortuna!

— Chega-me; demais, eu trabalho, e quando alguma vez precisar, não
terei vergonha de pedir-te. Verás.

— O que me parece de eqüidade é dividires esta soma com tua
irmã, e guardares o resto. Ela pode casar, seguir seu marido. . . Quem
sabe o que sucederá?

— Tudo quanto quiseres, Paulo, menos isso. Não tenho outra vontade
que não seja a tua, mas estou certa que me hás de compreender
e consentir. O que me custou tantas angústias, e tantas humilhações,
não me pode pertencer, não. Só uma coisa justifica essa
fortuna, é o motivo santo por que me vendi para adquiri-la. Ana pode
gozar dela sem remorso e sem vexame, porque não saberá donde
lhe vem; a mim amargaria o pão amassado com tanto fel! Não achas
que eu tenho razão?

— Maria, meu anjo, não fales nisso mais nunca! Faze o que quiseres;
eu aprovo tudo.

— Deixa-me acabar. Agora só vivo, e só quero viver do que
me deste; porque a minha coragem, o meu trabalho, tudo é inspiração
tua. O dinheiro pois que ganhar com minhas mãos, ainda me vem de ti!
Não possuo hoje um objeto, a coisa mais insignificante, que tenha outra
origem. É talvez uma superstição; mas quero conservá-la.

Ao despedir-me nessa noite Lúcia, como para dar-me uma prova da sua
sinceridade, disse-me:

— Paulo, traze-me amanhã quando vieres uma caixinha sortida de linhas
e agulhas.

Era uma ninharia; mas era a primeira coisa de valor pecuniário que
ela me pedia.

Essa vida calma e tranqüila, remanso de uma existência tão
agitada, durava cerca de um mês. Nada perturbava a serenidade de Lúcia.
Parecia realmente que sua alma cândida, muito tempo adormecida na crisálida,
acordara por fim, e continuara a mocidade interrompida por um longo e profundo
letargo. Lúcia tinha então 19 anos; mas o seu coração
puro e virgem tinha apenas a idade do botão de rosa na manhã
do dia em que deve florescer, ou a idade do casulo quando a ninfa vai fendê-lo,
desfraldando as tenras asas.

Como as aves de arribação, que tornando ao ninho abandonado,
trazem ainda nas asas o aroma das árvores exóticas em que pousaram
nas remotas regiões, Lúcia conservava do mundo a elegância
e a distinção que se tinham por assim dizer impresso e gravado
na sua pessoa. Fora disto, ninguém diria que essa maca vivera algum
tempo numa sociedade livre. As suas idéias tinham a ingenuidade dos
quinze anos; e às vezes ela me parecia mais infantil, mais inocente
do que Ana com toda a sua pureza e ignorância.

Talvez a senhora julgue isso impossível; mas é a verdade. Se
não fosse a originalidade dessa fase de uma vida que em quatro meses
passara aos meus olhos por tão profunda revolução, não
teria nada que lhe contar, e não valeria a pena revolver o rescaldo
de minhas reminiscências.

Quis pintar-lhe o que vi: a incubação de uma alma violentamente
comprimida por uma terrível catástrofe; a vegetação
de um corpo vivendo apenas pela força da matéria e do instinto;
a revelação súbita da sensibilidade embotada pelos choques
violentos que partiram o estame de uma infância feliz; a floração
tardia do coração confrangido pelo escárnio e pelo desprezo;
finalmente a energia e o vigor do espírito que surgia, soldando por
misteriosa coesão os elos partidos da vida moral e continuando no futuro
a adolescência truncada.

Quantas vezes absorto na admiração que me causava esse fenômeno,
não acompanhava com um olhar pasmo e surpreso os movimentos de Lúcia
brincando com a irmã, e criança como ela na expansão
da beleza que eu vira radiar no mundo com todas as graças e encantos
da mulher! Quantas vezes desesperado pela naturalidade do seu gesto e pela
ingênua simplicidade de suas palavras, que excluíam a mais leve
suspeita de afetação, não pensava comigo: «Esta
mulher ou é um demônio de malícia, ou um anjo que passou
pelo mundo sem roçar as suas asas brancas!»

Se ela surpreendia o meu olhar perscrutador, sorria, e caminhando para mim,
movia lentamente a cabeça:

— Não compreendes, Paulo? Também eu não compreendo.
Quem me fez menina assim ?. . . Devo-te parecer ridícula. Eu, que desejo
ter para Ana a gravidade de mãe, torno" -me mais travessa do que
ela, Mas que queres? É preciso que eu brinque… como as cigarras hão
de cantar daqui a um ano quando acordarem!

O jardim da casa de Lúcia era dividido, por um gradil de madeira,
da chácara vizinha. Isso a desgostara desde o primeiro dia; e era sua
intenção fazer passar um muro que ocultasse às vistas
estranhas o seu modesto retiro; um sentimento de delicadeza retardara só
a realização desse projeto. As moças daquela chácara
tinham pouco depois de sua mudança procurado entreter relações
de vizinhança; e quase todas as tardes vinham conversar com Ana.

Lúcia quis logo impedir essa amizade, mas não teve animo de
privar sua irmã de tão inocente distração; contentou-se
de sua parte em se esquivar aos avanços das vizinhas, retribuindo com
polidez as suas saudações. As instâncias porém
foram tão repetidas e tão amáveis, que, apesar de sua
modesta reserva, Lúcia não pôde deixar algumas vezes de
responder às palavras que lhe dirigiam. Demais, elas tinham achado
o caminho de seu coração; com uma liberdade censurável
começaram a pedir-lhe pequenos favores: hoje era a muda de uma flor,
amanhã o molde de um vestido, depois o desenho de um bordado. Lúcia,
que não aceitava coisa alguma do mundo, não sabia recusar um
serviço.

Uma tarde ela estava conversando comigo, quando Ana veio pedir-lhe em nome
da mais moça das vizinhas, sua predileta, que lhe fosse ensinar um
ponto de crochê.

— Tu não sabes, Ana?

— Mas não sei como tu, maninha.

Lúcia aproximou-se do gradil; tomou das mãos da moça
o fio e a agulha e teceu com agilidade e destreza uma carreira de malhas,
acompanhando o movimento rápido de seus dedos afilados com as explicações
precisas. Como isto não bastasse tirou do braço uma pulseira
de contas tecida por ela e deu-a para servir de modelo.

Nessa ocasião adiantavam-se por entre as árvores as outras
mocas acompanhadas de um homem, cujo rosto não pude ver logo por entre
a folhagem. Lúcia, atenta aos esforços que fazia sua discípula
para acertar, não reparou nessa circunstância.

O grupo parou a alguma distancia; eu reconheci o Couto no momento em que
se adiantava com um movimento de espanto. Corri para fazer Lúcia retirar-se
antes de vê-lo; mas estava distante, e quando cheguei, já a mais
velha das moças se tinha aproximado, e arrancando a pulseira das mãos
de sua irmã, atirou-a por cima da grade:

— Não toques em coisa que pertença a esta mulher! É
uma perdida!

Lúcia tinha erguido a cabeça no primeiro instante de surpresa;
nada porém perturbava a serenidade e quietude de seu rosto iluminado
por uma doce altivez; circulou com um olhar límpido os atores desta
cena, como se lhes pedisse a explicação do desagradável
incidente; e tomando Ana pela mão e passando o braço pelo meu,
afastou-se com uma dignidade meiga e nobre.

Contudo pensei que esse sossego era aparente, e que sua alma devia ter sido
traspassada por aquele ultraje. Ela respondeu à interrogação
muda do meu olhar murmurando-me ao ouvido para que sua irmã não
a ouvisse:

— Elas não sabem, como tu, que eu tenho outra virgindade, a virgindade
do coração! Perdoa-lhes, Paulo.

E o sorriso, que banhou estas palavras como de uma luz divina, parecia abrir
o céu aos arroubos de sua alma.

XXI

Era um domingo.

O novo ano tinha começado. A bonança que sucedera às
grandes chuvas trouxera um dos sorrisos de primavera, como costumam desabrochar
no Rio de Janeiro entre as fortes trovoadas do estio. As árvores cobriam-se
da nova folhagem de um verde tenro; o campo aveludava a macia pelúcia
da relva, e as frutas dos cajueiros se douravam aos raios do sol.

Uma brisa ligeira, ainda impregnada das evaporações das águas,
refrescava a atmosfera Os lábios aspiravam com delícias o sabor
desses puros bafejos, que lavavam os pulmões fatigados de uma respiração
árida e miasmática. Os olhos se recreavam na festa campestre
e matutina da natureza fluminense, da qual as belezas de todos os climas são
convivas.

Subia a passo curto e repousado a ladeira de Santa Teresa, calculando a hora
de minha chegada pelo despertar de Lúcia; o meu pensamento porém
abria as asas, e precedendo-me, ia saudar a minha doce e terna amiga.

Havia oito dias que Lúcia não andava boa. A fresca e vivace
expansão de saúde desaparecera sob uma langue morbidez que a
desfalecia; o seu sorriso, sempre angélico, tinha uns laivos melancólicos,
que me penavam. Às vezes a surpreendia fitando em mim um olhar ardente
e longo; então ela voltava o rosto de confusa, enrubescendo. Tudo isto
me inquietava; atribuindo a sua mudança a algum pesar oculto, a tinha
interrogado, suplicando-lhe que me confiasse as mágoas que a afligiam.

— Não digas isso, Paulo! respondia com um tom de queixa. Posso ter
pesares junto de ti? É uma ligeira indisposição; há
de passar.

De bem longe avistei Lúcia que me esperava e me fez um aceno de impaciência;
apressei o passo para alcançar o portão do jardim. Ela estendeu-me
as mãos ambas risonha e atraindo-me, reclinou-se sobre o meu peito
com um gracioso abandono. Sentamo-nos nos degraus da pequena escada de pedra,
e informei-me de sua saúde.

— Já estou boa. Não vês?

Realmente as rosas de suas faces viçavam; era cintilante o brilho
que desferia a sua pupila negra. Pelos lábios úmidos lentejava
a onda perene de um sorriso, que orvalhava-lhe o semblante de luz e graça.

— Ainda bem! Já me habituaste a só achar bonito aquilo que
vejo através do teu mimoso sorriso. Agora é que eu começo
a gozar desta linda manhã.

Trocamos ainda algumas palavras.

De repente Lúcia atirou-se a mim. Com uma arrebatada veemência
esmagou na minha boca os lábios túrgidos, como se os prurisse
fome de beijos que a devorava. Mas desprendeu-se logo dos meus braços,
e fugiu veloz’ ardendo em rubor, sorvendo num soluço o seu último
beijo.

Fugiu, e ao passar fechou a porta que comunicava com o interior.

Contrariado por este obstáculo, consolei a minha impaciência
com o sabor a esperança que se insinuara no meu coração.
A fúria amorosa dos primeiros tempos, recalcada por uma força
misteriosa, despertava. Outra vez a febre voluptuosa nos arrebataria para
abrir-nos a mansão do prazer e dos mágicos deleites.

A minha esperança afagava-me tanto mais risonha, quanto desde o momento
cruel em que vira Lúcia quase morta nos meus braços, nunca mais
a ponta mimosa do seu lábio roçara sequer pelo meu, ávido
de carícias. O seu beijo quase de irmã apenas de longe em longe
bafejava-me a fronte; e isso mesmo depois de ter-me cerrado as pálpebras
com a mão, para que eu não visse arder o lacre de suas faces.

A porta abriu-se enfim.

Lúcia apareceu trazendo a irmã pela mão. Sua fisionomia
e atitude reslumbravam já a casta serenidade, que obrigava quantos
a cercavam agora, a uma doce e terna veneração. Procurei debalde,
sob essa calma aparência, um vestígio das emoções
recentes; a tranqüilidade vinha do intimo, exalava dos seios d’alma,
e difundia-se brandamente por toda a sua pessoa. Julgaria que nada tinha passado,
se as lágrimas já estanques não houvessem empanado a
habitual limpidez de seu olhar.

Ana adiantou-se para mim, e dando-me a mão como costumava, apresentou
rubescente a fronte pura e angélica. Admirado não sabia o que
fizesse, quando por cima da loura cabeça da menina vi o gesto imperativo
de Lúcia. Toquei com os lábios a raiz daqueles cabelos sedosos
que ondulavam com o sopro de minha respiração. Ana teve um estremecimento
intimo; e banhou-se na onda de púrpura que descendo-lhe da fronte,
derramou-se pelas espáduas, roseando a branca escumilha.

— É assim que se deve dizer adeus quando se quer bem! exclamou Lúcia
abraçando a irmã.

Partimos para a missa, como de costume. Lúcia e a irmã com
os braços enlaçados, eu a alguma distância, passando por
desconhecidos que seguiam o mesmo caminho. Mas de longe mesmo, um olhar rápido
trocado a furto, um gesto imperceptível, nos aproximava um do outro
no meio da multidão.

Ambas trajavam de preto, com véus espessos; elas sentiam quanto é
tocante o uso de só penetrar na casa de Deus ocultando a beleza sob
a gala triste e grave, que prepara o espírito para o santo recolho.

De volta da missa, tomaram de novo as suas alvas roupas de cassa, e vieram
sentar-se junto de mim; porém Lúcia que costumava ficar entre
nós, trocou o lugar com a irmã. Toda a nossa vida era tão
igual, e sucedia-se com tal regularidade, que essa circunstância não
me podia escapar.

Apesar da separação, em que não tinha de todo perdido
a minha fagueira esperança, aproveitava o momento em que a menina voltava
o rosto, para suplicar Lúcia com um gesto; ela respondeu com um olhar
de tão fria severidade que gelou-me

— Ana, vai mandar deitar o almoço. Paulo hoje acordou muito cedo!

Acompanhou com os olhos a irmã até que ela desapareceu no fundo
do corredor; e voltou-se para mim séria e recolhida:

— Foi uma loucura! Esqueçamos esse momento, Paulo.

— Se tivesses verdadeira afeição a teu amigo, Maria, não
o tratarias com tanta severidade!

— Paulo! Paulo… Tu bem sabes que com esta palavra me farias cometer crimes,
se crimes fossem necessários para te provar que eu só vivo da
vida que me dás, e me podes tirar com um sopro. Não sou eu criatura
tua? Não renasci pela luz que derramaste em minha alma? Não
és meu senhor, meu artista, meu pai e meu criador?

Fez-me um gesto para que não a interrompesse.

— Tu podes me fazer voltar à treva de que me arrancaste; podes estancar
as fontes de minha existência que manam de tua alma; e não me
hás de ouvir uma só queixa. A dor, como a alegria, serão
sempre benditas, porque virão de ti. Mas, Paulo, a súplica do
humilde não ofende. Deus a permite e exalça. Não me retires
a graça e a bênção que me deste! Salva-me, Paulo!
Salva-me de ti. Salva-me de mim mesma!…

Deixou-se cair a meus pés, e sua voz espedaçou-se num grito
pungente:

— De mim que não terei forças para resistir, se a tua coragem
me não exaltar.

Ergui-a, fazendo-a sentar nos meus joelhos. Ela deixou-se atrair, com meiga
confiança. Seu instinto sutil lhe dizia que não devia temer
naquele momento; adivinhava o respeito e a unção de que minha
alma a envolvia, santificando-a.

— Maria, minha amiga, sossega! Se for preciso, eu terei força por
nós ambos. Perdoa-me, porque te ofendi; não soube resistir.
Não sucederá mais nunca, eu te prometo! Recobra o teu sorriso
celeste, que me purifica!

Lúcia sorriu; nesse sorriso banhou-se minha alma e eu a senti melhor
e mais pura.

— Tu és bom, como Deus, que me deu a ti, Paulo, para não esperdiçar
as sobras de tua alma. Tu deves ler dentro de mim, e compreender o que eu
não sei dizer, o que não sei nem mesmo pensar. A vida como tu
ma fizeste é a bem-aventurança, porque vivo já no céu.
Entre nós ambos nada existe; tu me absorves em ti, somos um: em torno
de nós só Deus que nos protege, que nos une, e envolve-nos com
um único de seus olhares. Tu, Paulo, tu podes tocar a terra sem quebrar
essa coesso de nossas almas; porque sou uma coisa tua, uma porção
de teu ser; porque te pertenço e te sigo fatalmente; porque na terra,
como no céu, longe ou perto, vivo de tua vida. Mas tua Maria, o reflexo
de tua luz e a flor de tua seiva, se ela caísse no pó, se desprenderia
de ti para sempre. . . Como aqueles a quem o Senhor abandona na hora extrema!
Compreendes, Paulo, compreendes !

Respondi apenas com o olhar; a voz me falecia, tanto aquelas palavras tocantes
de Lúcia me comoviam.

— Se estivesses junto de mim durante aquela eternidade de vinte dias em
que me deixaste só com a minha consciência, verias que martírio
foi o meu, quando eu queria erguer-me do abismo para abrigar-me e esconder-me
em ti; mas sentia a tua própria mão que me repelia e precipitava
de novo! Verias também no meu rosto quanto horror me causava a só
idéia de que eu talvez trouxesse já nas entranhas o verme que
me devia roer as vísceras. Que importa que esse verme fosse gerado
do teu e do meu sangue? Ele me arrancaria uma porção deste espírito
que é teu, e criara uma vida nova nesta carne que já morreu,
e não pode ressuscitar para sentimento algum!

Ana veio chamar-nos para almoçar.

Saindo da mesa, dávamos habitualmente algumas voltas pelo jardim:
elas colhendo flores para os vasos, eu fumando o meu charuto. Às dez
horas pouco mais ou menos entrávamos. Lúcia levava-nos então
para o seu toucador bem pobre e bem modesto, mas ainda assim encantador, como
tudo que essa mulher tocava com as pontas de seus dedos de fada ou bafejava
com o seu hálito celeste.

Então Lúcia ocupava-se em anelar os cabelos louros da irmã
e a toucá-la com tanto esmero como se a preparasse para alguma festa
esplêndida; essa festa era a nossa intimidade, que Ana alegrava com
o seu sorriso e inocência Depois de ter posto a irmã tão
bonita, quanto ela caprichava em tornar-se simples, fazia-me admirar aquela
formosura infantil e gozava do prazer que nos fazia sentir. Durante o seu
trabalho, eu lia para ambas alguma página de literatura, ou falava
sobre um tema agradável.

Nesse dia porém a ordem de nossa comum existência fôra
perturbada. Lúcia chamou-me para ajudá-la a pentear a irmã:
fez-me sentar ao lado; deu-me a segurar um após outro os lindos anéis
que se enroscavam entre os seus dedos; e rindo e folgando afagava-me o rosto
com a nuvem desses cabelos finos e sutis, e obrigava-me a beijar as pontas.
O que ela exigiria de mim que eu não fizesse para vê-la feliz
do seu desejo satisfeito ?

As duas horas costumava eu sair e fazer um passeio pelo encanamento. Esse
caminho estava tão cheio da imagem de Lúcia, que deixando-a
em casa um momento, parecia-me que ela me acompanhava, que eu sentia a pressão
do seu braço no meu e a frescura embalsamada do seu hálito na
minha face; ao mais leve estremecimento das folhas supunha ouvir o rugir da
seda de seu vestido. Trazia do meu passeio alguma flor silvestre, uma borboleta,
qualquer coisa, colhida em sua intenção para dizer-lhe que me
lembrara dela: eram relíquias para o seu coração.

Quando cheguei, Lúcia estava só no jardim, debaixo de uma espessa
e sombria latada de maracujás, tão absorvida em sua meditação
que não me percebeu.

— Onde andava este pensamento tão longe de mim? disse-lhe sentando-me
ao lado.

Sobressaltou-se, e abanou a cabeça sorrindo:

— Longe de ti?… Estava fazendo projetos para a nossa felicidade.

— Já não é ela uma realidade, Maria?

— E por isso, porque eu sei o que ela vale, receio que não dure sempre.
Tu vives num mundo, Paulo, onde há condições que serás
obrigado a aceitar, cedo ou tarde; um dia sentirás a necessidade de
criar uma família, e gozar das afeições domésticas.

— Não me casarei nunca!

— Agradeço-te essa palavra; mas recuso o sacrifício. Se a
tua bondade por mim não te cegasse neste momento, me darias razão.
Há sentimentos e gozos que ainda não sentiste, e só uma
esposa casta e pura te pode dar. Por mim te havias de privar de tão
santas afeições, como são o amor conjugal e o amor paterno
?

— Assim, eram estes os projetos que fazias sobre a nossa felicidade? repliquei
com um sorriso amargo. Se essa necessidade de que falas é tão
forte que ninguém se pode esquivar a ela, o que eu contesto, nunca
pensei que fosses tu que a lembrasse.

— Escuta-me primeiro, Paulo, meu amigo; depois pune-me, se eu merecer, mas
não retires de mim o teu olhar. Pensas que essa idéia de que
um dia me poderás abandonar por uma mulher a quem deverás consagrar
toda a tua vida, não me tortura? Se assim fosse, por que me preocuparia
com isto? É porque temo essa desgraça, que refletia no meio
único de evitá-la.

— E esse meio?. . . Qual é ele? Dize-me.

— Ana! respondeu Lúcia timidamente.

Não compreendi.

— Poderias escolher uma noiva rica, de alta posição, porém
não acharás alma tão pura, nem mais casto amor.

— Queres casar-me com Ana ? Com tua irmã, Maria ?

— Quero uni-la ao santo consórcio de nossas almas. Formaremos uma
só família; os filhos que ela te der, serão meus filhos
também; as carícias que lhe fizeres, eu as receberei na pessoa
dela. Seremos duas para amar-te; uma só para o teu amor. Ela será
tua esposa; eu completarei todas as outras afeições de que careces,
serei tua irmã, tua filha, tua mãe!

— E podes dispor assim dos sentimentos de Ana?

— Era preciso que ela não vivesse comigo, para deixar de amar-te!
Já te ama. Não sabes então que o meu pensamento e a minha
alegria têm sido formar aquela alma pelo molde da minha?

— Tudo isto é um sonho teu, minha amiga! Vivamos com a realidade;
e deixemos vir um futuro que pertence a Deus.

— Por que este sonho não se realizaria, querendo tu? Seria a consagração
da minha felicidade. Sim; não há sacrifício de minha
parte. Ana te daria os castos prazeres que não posso dar-te; e recebendo-os
dela, ainda os receberias de mim. Que podia eu mais desejar neste mundo? Que
vida mais doce do que viver da ventura de ambos? Ana se parece comigo; amarias
nela minha imagem purificada, beijarias nela os meus lábios virgens;
e minha alma entre a sua boca e tua gozaria dos beijos de ambos. Que suprema
delícia…

Lúcia calou-se de súbito, empalidecendo. Toda a sua pessoa
assumiu-se, tomando a expressão vaga e extática de quem é
absorvido por um recolho íntimo: figurava uma pessoa escutando-se viver
interiormente. Até que ergueu-se espavorida; soltou um gemido pungente
levando a mão ao regaço, e caiu fulminada em meus braços.

O abalo interior que sofrera esse corpo delicado fora tão forte, que
a cintura do vestido se despedaçara.

Conduzi Lúcia ao seu leito, e só depois de cruéis angústias
tive o consolo de vê-la recobrar os sentidos, mas para cair logo numa
prostração, em que apesar dos meus rogos e instâncias,
só a ouvia murmurar surdamente estas palavras incompreensíveis:

— Eu adivinhava que ele me levaria consigo!

— Ele quem, minha boa Maria?

— O teu, o nosso filho! respondeu-me ela.

— Como! Julgas ?. . .

— Senti há pouco o seu primeiro e o seu último movimento!

— Um filho! Mas é um novo laço e mais forte que nos prende
um ao outro. Serás mãe, minha querida Maria? Terás mais
esse doce sentimento da maternidade para encher-te o coração;
terás mais uma criatura com quem repartir a riqueza inexaurível
de tua alma!

— Cala-te, Paulo! Ele morreu! disse-me com a voz surda. E fui eu que o matei!

— Para que te afliges assim! Nosso filho vive, há de viver! Não
sentiste há pouco o seu primeiro movimento.

Nisto chegou o médico a quem tinha escrito imediatamente, e que depois
de examinar o estado de Lúcia, declarou que não inspirava receio.
Ela estava ameaçada de um aborto, resultado do choque violento que
sofrera, quando conheceu que se achava grávida. O doutor, um dos mais
hábeis parteiros da corte, procurou desvanecer os receios de Lúcia,
assegurando-lhe que seu filho vivia, e nada ainda fazia recear pela sua vida.

Apenas o médico saiu, ela olhou-me tristemente:

— Era o primeiro! Mas o tato das entranhas maternas, sejam elas virgens
ainda, não engana. Nosso filho, Paulo, o teu, porque ele era mais teu
do que meu, já não existe.

À noite declarou-se a febre; uma febre intensa que a fez delirar.
Foi então que conheci quanto eu vivia no seu pensamento: ela não
disse no delírio uma só palavra que não se referisse
a mim e a alguma circunstância de nossa vida mútua, desde o primeiro
dia em que nos encontramos.

Pela manhã, depois de um sono curto e agitado, achei-a mais tranqüila:

— Tu me prometes, Paulo, casar com Ana!

— Não tratemos disso agora, minha amiga! Quando ficares boa, tudo
o que tu quiseres eu farei para a tua felicidade.

— Mas essa promessa me daria tanto agora!

Escuta, Maria, esse casamento nos tornaria infelizes a ti, à tua irmã,
e a mim que não poderia amá-la, mesmo por causa dessa semelhança!
Tu viverias sempre entre mim e ela!

— Pois bem, promete-me que se ela não for tua mulher, lhe servirás
de pai.

— Juro-te!

Beijou-me as mãos:

— Ela vai ter tanta necessidade de um pai!

Os acessos de febre repetiram-se durante três dias, e sempre mais graves.
Uma tarde em que o médico apresentou a Lúcia um remédio:

— Para que é isso? perguntou ela com brandura.

— Para aliviá-la do seu incomodo. Logo que lançar o aborto,
ficará inteiramente boa.

— Lançar!… Expelir meu filho de mim?

E o copo que Lúcia sustentava na mão trêmula, impelido
com violência, voou pelo aposento e espedaçou-se de encontro
à parede.

— Iremos juntos’… murmurou descaindo inerte sobre as almofadas do leito.
Sua mãe lhe servirá de túmulo.

De joelhos à cabeceira eu suplicava-lhe que bebesse o remédio
que a devia salvar.

— Queres acompanhar teu filho, Maria, e abandonar-me só neste mundo.
Vive por mim!

— Se eu pudesse viver, haveria forças que me separassem de ti? Haveria
sacrifício que eu não fizesse para comprar mais alguns dias
da minha felicidade? Mas Deus não quis. Sinto que a vida me foge!

A instâncias minhas bebeu finalmente o remédio, que nenhum efeito
produziu. A febre lavrava com intensidade; eu já não tinha esperanças.

— O remédio de que eu preciso é o da religião. Quero
confessar-me, Paulo.

Lúcia tomou os sacramentos com uma resignação angélica;
e abraçando a irmã, disse-lhe:

— Perdes uma irmã, Ana; fica-te um pai. Ama-o por ele, por ti e por
mim

O dia se passou na cruel agonia que só compreendem aqueles que ajoelhados
à borda de um leito viram finar-se gradualmente uma vida querida.

Quebrado de fadiga e vencido por uma vigília de tantas noites, tinha
insensivelmente adormecido, sentado como estava à beira da cama, com
os lábios sobre a mão gelada de Lúcia e a testa apoiada
no recosto do leito. O sono foi curto, povoado de sonhos horríveis;
acordei sobressaltado e achei-me reclinado sobre o peito de Lúcia,
que se sentara de encontro às almofadas para suster minha cabeça
ao colo, como faria uma terna mãe com seu filho.

Mesmo adormecido ela me sorria, me falava, e cobria-me de beijos:

— Se soubesses que gozo supremo é para mim beijar-te neste momento!
Agora que o corpo já está morto e a carne álgida, não
sente nem a dor nem o prazer, é a minha alma só que te beija,
que se une à tua e se desprende parcela por parcela para se embeber
em teu seio.

E seus lábios ávidos devoravam-me o rosto de carícias.
bebendo o pranto que corria abundante de meus olhos:

— Se alguma coisa me pudesse salvar ainda, seria esse bálsamo celeste,
meu amigo!

Eu soluçava como uma criança.

— Beija-me também, Paulo. Beija-me como beijarás um dia tua
noiva! Oh! agora posso te confessar sem receio. Nesta hora não se mente.
Eu te amei desde o momento em que te vi ! Eu te amei por séculos nestes
poucos dias que passamos juntos na terra. Agora que a minha vida se conta
por instantes, amo-te em cada momento por uma existência inteira. Amo-te
ao mesmo tempo com todas as afeições que se pode ter neste mundo.
Vou te amar enfim por toda a eternidade.

A voz desfaleceu completamente, de extenuada que ela ficara por esse enérgico
esforço. Eu chorava de bruços sobre o travesseiro, e as suas
palavras suspiravam docemente em minha alma, como as dulias dos anjos devem
ressoar aos espíritos celestes.

— Nunca te disse que te amava, Paulo!

— Mas eu sabia, e era feliz!

— Tu me purificaste ungindo-me com os teus lábios. Tu me santificaste
com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o consórcio de
nossas almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no céu ! E contudo
essa palavra divina do amor, minha boca não a devia profanar, enquanto
viva. Ela será meu último suspiro.

Lúcia pediu-me que abrisse a janela: era noite já; do leito
víamos uma zona de azul na qual brilhava límpida e serena a
estrela da tarde. Um sorriso pálido desfolhou-se ainda nos lábios
sem cores: sublime êxtase iluminou a suave transparência de seu
rosto. A beleza imaterial dos anjos deve ter aquela divina limpidez.

— Recebe-me… Paulo!…

Terminei ontem este manuscrito, que lhe envio ainda úmido de minhas
lágrimas.

Relendo-o, admirei como tivera a coragem de alguma vez, no correr desta história,
deixar a minha pena rir e brincar, quando o meu coração estava
ainda cheio da saudade, que sepultou-se nele para sempre.

É porque, repassando na memória essa melhor porção
de minha vida, alheio-me tanto do presente que revivo hora por hora aqueles
dias de ventura, como de primeiro os vivo, ignorando o futuro, e entregue
todo às emoções que sentia outrora. Quando eu gracejava,
Lúcia estava ainda ao meu lado; ainda eu era feliz da minha lembrada
felicidade.

Há seis anos que ela me deixou; mas eu recebi a sua alma, que me acompanhará
eternamente. Tenho-a tão viva e presente no meu coração,
como se ainda a visse reclinar-se meiga para mim. Há dias no ano e
horas no dia que ela sagrou com a sua memória, e lhe pertencem exclusivamente.
Onde quer que eu esteja, a sua alma me reclama e atrai; é forçoso
então que ela viva em mim. Há também lugares e objetos
onde vagam seus espíritos; não os posso ver sem que o seu amor
me envolva como uma luz celeste.

Ana casou-se há dois anos. Vive feliz com seu marido, que a ama como
ela merece. É um anjo de bondade; e a juventude realçando-lhe
as graças infantis, aumentou a sua semelhança com a irmã;
porém falta-lhe aquela irradiação intima de fogo divino.
Almas como as de Lúcia, Deus não as dá duas vezes à
mesma família, nem as cria aos pares, mas isoladas como os grandes
astros destinados a esclarecer uma esfera.

Cumpri a vontade de minha Lúcia; tenho servido de pai a essa menina;
com a sua felicidade paguei um óbolo de minha gratidão à
doce amiga que tanto amou-me.

Estas páginas foram escritas unicamente para a senhora. Vazei nelas
toda a minha alma para lhe transmitir um perfume da mulher sublime, que passou
na minha vida como sonho fugace. Creio que não o consegui; por isso
fecho aqui alguns fios da trança de cabelos, que cortei no momento
de dizer o último adeus à sua imagem querida.

Há nos cabelos da pessoa que se ama não sei que fluido misterioso,
que comunica com o nosso espírito. A senhora há de amar Lúcia,
tenho a certeza; talvez pois aquela relíquia, ainda impregnada de seiva
e fragrância da criatura angélica, lhe revele o que eu não
pude exprimir.

Veja também

John Locke

PUBLICIDADE John Locke, nascido em Wrington (Inglaterra), estudou em Oxford. Em 1688, fora nomeado membro …

Gugu Liberato

PUBLICIDADE Antonio Augusto Liberato de Moraes, muito conhecido por” Gugu”, foi um importante apresentador de …

Friedrich Nietzsche

Friedrich Nietzsche

PUBLICIDADE Quem foi Friedrich Nietzsche? O filósofo alemão influente Friedrich Nietzsche (1844-1900) é conhecido por seus …

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.