Morte e Vida Severina

João Cabral de Melo Neto

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O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.

Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem falo ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia

com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina:
que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,

a de querer arrancar alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir a história de minha vida,

passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE “Ó IRMÃOS DAS ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUEM MATEI NÃO!”

— A quem estais carregando, irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.

— A um defunto de nada, irmão das almas,
que há muitas horas viaja à sua morada.

— E sabeis quem era ele, irmãos das almas,
sabeis como ele se chama ou se chamava?

— Severino Lavrador, irmão das almas, Severino Lavrador, mas já não lavra.

— E de onde que o estais trazendo, irmãos das almas,
onde foi que começou vossa jornada?

— Onde a caatinga é mais seca, irmão das almas,

onde uma terra que não dá nem planta brava.

— E foi morrida essa morte, irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?

— Até que não foi morrida, irmão das almas,
esta foi morte matada, numa emboscada.

— E o que guardava a emboscada, irmão das almas
e com que foi que o mataram, com faca ou bala?

— Este foi morto de bala, irmão das almas,
mas garantido é de bala, mais longe vara.

— E quem foi que o emboscou, irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?

— Ali é difícil dizer, irmão das almas,
sempre há uma bala voando desocupada.

— E o que havia ele feito irmãos das almas,
e o que havia ele feito contra a tal pássara?

— Ter um hectares de terra, irmão das almas,
de pedra e areia lavada que cultivava.

— Mas que roças que ele tinha, irmãos das almas
que podia ele plantar na pedra avara?

— Nos magros lábios de areia, irmão das almas,
os intervalos das pedras, plantava palha.

— E era grande sua lavoura, irmãos das almas,
lavoura de muitas covas, tão cobiçada?

— Tinha somente dez quadras, irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.

— Mas então por que o mataram, irmãos das almas,
mas então por que o mataram com espingarda?

— Queria mais espalhar-se, irmão das almas,
queria voar mais livre essa ave-bala.

— E agora o que passará, irmãos das almas,
o que é que acontecerá contra a espingarda?

— Mais campo tem para soltar, irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.

— E onde o levais a enterrar, irmãos das almas,

com a semente do chumbo que tem guardada?

— Ao cemitério de Torres, irmão das almas,
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.

— E poderei ajudar, irmãos das almas?
vou passar por Toritama, é minha estrada.

— Bem que poderá ajudar, irmão das almas,
é irmão das almas quem ouve nossa chamada.

— E um de nós pode voltar, irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo para sua casa.

— Vou eu que a viagem é longa, irmãos das almas,
é muito longa a viagem
e a serra é alta.

— Mais sorte tem o defunto irmãos das almas,
pois já não fará na volta a caminhada.

— Toritama não cai longe, irmãos das almas,
seremos no campo santo de madrugada.

— Partamos enquanto é noite irmãos das almas,
que é o melhor lençol dos mortos noite fechada.

O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR POR SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE, CORTOU COM O VERÃO

—— Antes de sair de casa aprendi a ladainha
das vilas que vou passar na minha longa descida.
Sei que há muitas vilas grandes, cidades que elas são ditas
sei que há simples arruados, sei que há vilas pequeninas,
todas formando um rosário
cujas contas fossem vilas,
de que a estrada fosse a linha. Devo rezar tal rosário
até o mar onde termina, saltando de conta em conta, passando de vila em vila. Vejo agora: não é fácil
seguir essa ladainha
entre uma conta e outra conta, entre uma e outra ave-maria,
há certas paragens brancas, de planta e bicho vazias, vazias até de donos,
e onde o pé se descaminha. Não desejo emaranhar
o fio de minha linha
nem que se enrede no pêlo hirsuto desta caatinga. Pensei que seguindo o rio eu jamais me perderia:
ele é o caminho mais certo, de todos o melhor guia.
Mas como segui-lo agora que interrompeu a descida?

Vejo que o Capibaribe, como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham. Tenho que saber agora
qual a verdadeira via
entre essas que escancaradas frente a mim se multiplicam. Mas não vejo almas aqui,
nem almas mortas nem vivas ouço somente à distância
o que parece cantoria. Será novena de santo, será algum mês-de-Maria
quem sabe até se uma festa
ou uma dança não seria?

NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO UM HOMEM, DO LADO DE FORA, VAI PARODIANDO A PALAVRAS DOS CANTADORES

—— Finado Severino, quando passares em Jordão e o demônios te atalharem
perguntando o que é que levas..

—— Dize que levas cera, capuz e cordão
mais a Virgem da Conceição.

—— Finado Severino, etc…

—— Dize que levas somente coisas de não:
fome, sede, privação.

—— Finado Severino, etc…

—— Dize que coisas de não, ocas, leves:
como o caixão, que ainda deves.

—— Uma excelência dizendo que a hora é hora.

—— Ajunta os carregadores que o corpo quer ir embora.

—— Duas excelências…

—— … dizendo é a hora da plantação.

—— Ajunta os carreadores…

—— … que a terra vai colher a mão.

CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR TRABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA.

—— Desde que estou retirando só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva
só a morte tem encontrado quem pensava encontrar vida,

e o pouco que não foi morte foi de vida severina
(aquela vida que é menos vivida que defendida,
e é ainda mais severina para o homem que retira).
Penso agora: mas por que parar aqui eu não podia
e como Capibaribe interromper minha linha?
ao menos até que as águas de uma próxima invernia
me levem direto ao mar ao refazer sua rotina?
Na verdade, por uns tempos, parar aqui eu bem podia
e retomar a viagem
quando vencesse a fadiga. Ou será que aqui cortando agora minha descida
já não poderei seguir
nunca mais em minha vida?
(será que a água destes poços é toda aqui consumida
pelas roças, pelos bichos, pelo sol com suas línguas? será que quando chegar
o rio da nova invernia
um resto de água no antigo sobrará nos poços ainda?) Mas isso depois verei: tempo há para que decida primeiro é preciso achar
um trabalho de que viva. Vejo uma mulher na janela, ali, que se não é rica,
parece remediada
ou dona de sua vida:
vou saber se de trabalho poderá me dar notícia.

DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS, DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ

—— Muito bom dia senhora, que nessa janela está
sabe dizer se é possível algum trabalho encontrar?

—— Trabalho aqui nunca falta a quem sabe trabalhar
o que fazia o compadre na sua terra de lá?

—— Pois fui sempre lavrador, lavrador de terra má
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.

—— Isso aqui de nada adianta, poucos existe o que lavrar
mas diga-me, retirante, o que mais fazia por lá?

—— Também lá na minha terra de terra mesmo pouco há
mas até a calva da pedra sinto-me capaz de arar.

—— Também de pouco adianta, nem pedra há aqui que amassar diga-me ainda, compadre,
que mais fazias por lá?

—— Conheço todas as roças que nesta chã podem dar

o algodão, a mamona, a pita, o milho, o caroá.

—— Esses roçados o banco já não quer financiar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia lá?

—— Melhor do que eu ninguém sei combater, quiçá,
tanta planta de rapina que tenho visto por cá.

—— Essas plantas de rapina são tudo o que a terra dá
diga-me ainda, compadre que mais fazia por lá?

—— Tirei mandioca de chãs que o vento vive a esfolar
e de outras escalavras pela seca faca solar.
—— Isto aqui não é Vitória nem é Glória do Goitá
e além da terra, me diga,
que mais sabe trabalhar?

—— Sei também tratar de gado, entre urtigas pastorear
gado de comer do chão
ou de comer ramas no ar.

—— Aqui não é Surubim nem Limoeiro, Oxalá!
mas diga-me, retirante, que mais fazia por lá?

—— Em qualquer das cinco tachas de um bangüê sei cozinhar

sei cuidar de uma moenda, de uma casa de purgar.

—— Com a vinda das usinas há poucos engenhos já
nada mais o retirante
aprendeu a fazer lá?

—— Ali ninguém aprendeu outro ofício, ou aprenderá mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.

—— Mas isso então será tudo em que sabe trabalhar?
vamos, diga, retirante, outras coisas saberá.

—— Deseja mesmo saber o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.

—— Essa vida por aqui é coisa familiar
mas diga-me retirante, sabe benditos rezar? sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas, sabe mortos enterrar?

—— Já velei muitos defuntos, na serra é coisa vulgar
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.

—— Pois se o compadre soubesse rezar ou mesmo cantar, trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.

—— Agora se me permite minha vez de perguntar: como senhora, comadre, pode manter o seu lar?

—— Vou explicar rapidamente, logo compreenderá:

como aqui a morte é tanta, vivo de a morte ajudar.

—— E ainda se me permite que volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?

—— é, sim, uma profissão, e a melhor de quantas há: sou de toda a região rezadora titular.

—— E ainda se me permite mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?

—— De um raio de muitas léguas vem gente aqui me chamar
a verdade é que não pude queixar-me ainda de azar.

—— E se pela última vez me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?

—— Como aqui a morte é tanta, só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar. Imagine que outra gente
de profissão similar,

farmacêuticos, coveiros, doutor de anel no anular, remando contra a corrente da gente que baixa ao mar, retirantes às avessas, sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte compensam aqui cultivar, e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar não se precisa de limpa,
as estiagens e as pragas fazemos mais prosperar
e dão lucro imediato
nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.

O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA, QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ, EM INTERROMPER A VIAGEM.

—— Bem me diziam que a terra se faz mais branda e macia quando mais do litoral
a viagem se aproxima. Agora afinal cheguei nesta terra que diziam.
Como ela é uma terra doce para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui têm água vitalícia.
Cacimbas por todo lado
cavando o chão, água mina. Vejo agora que é verdade

o que pensei ser mentira Quem sabe se nesta terra não plantarei minha sina? Não tenho medo de terra
(cavei pedra toda a vida), e para quem lutou a braço
contra a piçarra da Caatinga será fácil amansar
esta aqui, tão feminina.

Mas não avisto ninguém, só folhas de cana fina somente ali à distância aquele bueiro de usina somente naquela várzea
um bangüê velho em ruína.

Por onde andará a gente que tantas canas cultiva? Feriando: que nesta terra tão fácil, tão doce e rica, não é preciso trabalhar todas as horas do dia,
os dias todos do mês,
os meses todos da vida.

Decerto a gente daqui jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida, vida em morte, severina
e aquele cemitério ali,
branco de verde colina, decerto pouco funciona e poucas covas aninha.

ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO

—— Essa cova em que estás, com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.

—— é de bom tamanho, nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe neste latifúndio.
—— Não é cova grande. é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.

—— é uma cova grande para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho que estavas no mundo.

—— é uma cova grande para teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo.

—— é uma cova grande para tua carne pouca, mas a terra dada
não se abre a boca.

—— Viverás, e para sempre na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.

—— Aí ficarás para sempre, livre do sol e da chuva, criando tuas saúvas.

—— Agora trabalharás só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.

—— Trabalharás uma terra da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.

—— Trabalhando nessa terra, tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.

—— Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.

—— Será de terra
tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.

—— Será de terra
e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.

—— Terás de terra completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.

—— Como és homem, a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.

—— Tua roupa melhor

será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.

—— Tua roupa melhor e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.

—— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).

—— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo)

—— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).

—— Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).

—— Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos)

—— Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).

—— Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.

—— Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.

—— Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.

—— Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.

—— Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.

—— Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.

—— Dentro da rede não vinha nada,
só tua espiga debulhada.

—— Dentro da rede vinha tudo, só tua espiga no sabugo.

—— Dentro da rede coisa vasqueira, só a maçaroca banguela.

—— Dentro da rede coisa pouca, tua vida que deu sem soca.

—— Na mão direita um rosário, milho negro e ressecado.

—— Na mão direita somente o rosário, seca semente.

—— Na mão direita, de cinza, o rosário, semente maninha,

—— Na mão direita o rosário, semente inerte e sem salto.

—— Despido vieste no caixão, despido também se enterra o grão.

—— De tanto te despiu a privação que escapou de teu peito à viração.

—— Tanta coisa despiste em vida que fugiu de teu peito a brisa.

—— E agora, se abre o chão e te abriga, lençol que não tiveste em vida.

—— Se abre o chão e te fecha, dando-te agora cama e coberta.

—— Se abre o chão e te envolve, como mulher com que se dorme.

O RETIRANTE RESOLVE APRESSAR OS PASSOS PARA CHEGAR LOGO AO RECIFE

—— Nunca esperei muita coisa, digo a Vossas Senhorias.
O que me fez retirar
não foi a grande cobiça o que apenas busquei foi defender minha vida de tal velhice que chega antes de se inteirar trinta
se na serra vivi vinte,
se alcancei lá tal medida, o que pensei, retirando,
foi estendê-la um pouco ainda. Mas não senti diferença
entre o Agreste e a Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui a Mata a diferença é a mais mínima.

Está apenas em que a terra é por aqui mais macia
está apenas no pavio,
ou melhor, na lamparina: pois é igual o querosene que em toda parte ilumina, e quer nesta terra gorda quer na serra, de caliça,
a vida arde sempre com a mesma chama mortiça.

Agora é que compreendo
por que em paragens tão ricas

o rio não corta em poços como ele faz na Caatinga: vivi a fugir dos remansos
a que a paisagem o convida, com medo de se deter, grande que seja a fadiga. Sim, o melhor é apressar
o fim desta ladainha,
o fim do rosário de nomes que a linha do rio enfia
é chegar logo ao Recife, derradeira ave-maria
do rosário, derradeira invocação da ladainha,
Recife, onde o rio some
e esta minha viagem se fina.

CHEGANDO AO RECIFE O RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO E OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS

—— O dia hoje está difícil não sei onde vamos parar. Deviam dar um aumento,
ao menos aos deste setor de cá.
As avenidas do centro são melhores, mas são para os protegidos:
há sempre menos trabalho e gorjetas pelo serviço
e é mais numeroso o pessoal
(toma mais tempo enterrar os ricos).
—— pois eu me daria por contente se me mandassem para cá.

Se trabalhasses no de Casa Amarela não estarias a reclamar.
De trabalhar no de Santo Amaro deve alegrar-se o colega
porque parece que a gente
que se enterra no de Casa Amarela está decidida a mudar-se
toda para debaixo da terra.

—— é que o colega ainda não viu o movimento: não é o que se vê. Fique-se por aí um momento
e não tardarão a aparecer os defuntos que ainda hoje
vão chegar (ou partir, não sei). As avenidas do centro,
onde se enterram os ricos, são como o porto do mar não é muito ali o serviço:
no máximo um transatlântico
chega ali cada dia,
com muita pompa, protocolo, e ainda mais cenografia.

Mas este setor de cá
é como a estação dos trens:
diversas vezes por dia
chega o comboio de alguém.

—— Mas se teu setor é comparado à estação central dos trens,
o que dizer de Casa Amarela onde não para o vaivém? Pode ser uma estação
mas não estação de trem:
será parada de ônibus, com filas de mais de cem.

—— Então por que não pedes, já que és de carreira, e antigo,
que te mandem para Santo Amaro se achas mais leve o serviço?

Não creio que te mandassem para as belas avenidas
onde estão os endereços e o bairro da gente fina:
isto é, para o bairro dos usineiros, dos políticos, dos banqueiros,
e no tempo antigo, dos bangunlezeiros
(hoje estes se enterram em carneiros)
bairro também dos industriais, dos membros das
associações patronais
e dos que foram mais horizontais

nas profissões liberais. Difícil é que consigas
aquele bairro, logo de saída.

—— Só pedi que me mandasse para as urbanizações discretas, com seus quarteirões apertados, com suas cômodas de pedra.

—— Esse é o bairro dos funcionários, inclusive extranumerários,
contratados e mensalistas
(menos os tarefeiros e diaristas). Para lá vão os jornalistas,
os escritores, os artistas
ali vão também os bancários,
as altas patentes dos comerciários, os lojistas, os boticários,
os localizados aeroviários e os de profissões liberais
que não se libertaram jamais.

—— Também um bairro dessa gente temos no de Casa Amarela:
cada um em seu escaninho, cada um em sua gaveta,
com o nome aberto na lousa quase sempre em letras pretas.

Raras as letras douradas, raras também as gorjetas.

—— Gorjetas aqui, também, só dá mesmo a gente rica, em cujo bairro não se pode
trabalhar em mangas de camisa onde se exige quepe
e farda engomada e limpa.

—— Mas não foi pelas gorjetas, não, que vim pedir remoção:
é porque tem menos trabalho
que quero vir para Santo Amaro aqui ao menos há mais gente para atender a freguesia,
para botar a caixa cheia dentro da caixa vazia.

—— E que disse o Administrador, se é que te deu ouvido?

—— Que quando apareça a ocasião atenderá meu pedido.

—— E do senhor Administrador isso foi tudo que arrancaste?

—— No de Casa Amarela me deixou mas me mudou de arrabalde.

—— E onde vais trabalhar agora, qual o subúrbio que te cabe?

—— Passo para o dos industriários, que também é o dos ferroviários,
de todos os rodoviários
e praças-de-pré dos comerciários.

—— Passas para o dos operário, deixas o dos pobres vários

melhor: não são tão contagiosos e são muito menos numerosos.

—— é, deixo o subúrbio dos indigentes onde se enterra toda essa gente
que o rio afoga na preamar
e sufoca na baixa-mar.

—— é a gente sem instituto, gente de braços devolutos são os que jamais usam luto
e se enterram sem salvo-conduto.

—— é a gente dos enterros gratuitos e dos defuntos ininterruptos.

—— é a gente retirante
que vem do Sertão de longe.

—— Desenrolam todo o barbante e chegam aqui na jante.

—— E que então, ao chegar, não tem mais o que esperar.

—— Não podem continuar pois têm pela frente o mar.

—— Não têm onde trabalhar e muito menos onde morar.

—— E da maneira em que está não vão ter onde se enterrar.

—— Eu também, antigamente, fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão, fica vivendo no meio da lama, comendo os siris que apanha

pois bem: quando sua morte chega, temos que enterrá-los em terra seca.

—— Na verdade, seria mais rápido e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
dentro do rio e da morte.

—— O rio daria a mortalha
e até um macio caixão de água e também o acompanhamento que levaria com passo lento
o defunto ao enterro final a ser feito no mar de sal.

—— E não precisava dinheiro, e não precisava coveiro,
e não precisava oração
e não precisava inscrição.

—— Mas o que se vê não é isso:

é sempre nosso serviço crescendo mais cada dia morre gente que nem vivia.

—— E esse povo de lá de riba de Pernambuco, da Paraíba, que vem buscar no Recife poder morrer de velhice, encontra só, aqui chegando cemitério esperando.

—— Não é viagem o que fazem vindo por essas caatingas, vargens aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro.

O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE

—— Nunca esperei muita coisa, é preciso que eu repita.
Sabia que no rosário de cidade e de vilas,
e mesmo aqui no Recife ao acabar minha descida,
não seria diferente a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas foices de corte e capina,
ferros de cova, estrovengas o meu braço esperariam.
Mas que se este não mudasse
seu uso de toda vida, esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca, dentro da cuia, a farinha,
o algodãozinho da camisa,
ao meu aluguel com a vida.

E chegando, aprendo que, nessa viagem que eu fazia, sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia. Só que devo ter chegado adiantado de uns dias
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida. A solução é apressar
a morte a que se decida e pedir a este rio,
que vem também lá de cima, que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia: caixão macio de lama, mortalha macia e líquida,

coroas de baronesa
junto com flores de aninga, e aquele acompanhamento de água que sempre desfila
(que o rio, aqui no Recife, não seca, vai toda a vida).

APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO RIO

—— Seu José, mestre carpina, que habita este lamaçal,
sabes me dizer se o rio a esta altura dá vau?
sabe me dizer se é funda
esta água grossa e carnal?

—— Severino, retirante, jamais o cruzei a nado quando a maré está cheia vejo passar muitos barcos, barcaças, alvarengas, muitas de grande calado.

—— Seu José, mestre carpina, para cobrir corpo de homem
não é preciso muito água:
basta que chega o abdome, basta que tenha fundura igual à de sua fome.

—— Severino, retirante
pois não sei o que lhe conte sempre que cruzo este rio

costumo tomar a ponte
quanto ao vazio do estômago, se cruza quando se come.

—— Seu José, mestre carpina, e quando ponte não há?
quando os vazios da fome não se tem com que cruzar? quando esses rios sem água são grandes braços de mar?

—— Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço
sei que a miséria é mar largo, não é como qualquer poço: mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço.

—— Seu José, mestre carpina, e quando é fundo o perau? quando a força que morreu
nem tem onde se enterrar, por que ao puxão das águas não é melhor se entregar?

—— Severino, retirante, o mar de nossa conversa
precisa ser combatido,
sempre, de qualquer maneira, porque senão ele alarga
e devasta a terra inteira.

—— Seu José, mestre carpina, e em que nos faz diferença
que como frieira se alastre, ou como rio na cheia,
se acabamos naufragados
num braço do mar miséria?

—— Severino, retirante, muita diferença faz
entre lutar com as mãos

e abandoná-las para trás, porque ao menos esse mar não pode adiantar-se mais.

—— Seu José, mestre carpina, e que diferença faz
que esse oceano vazio
cresça ou não seus cabedais se nenhuma ponte mesmo
é de vencê-lo capaz?

—— Seu José, mestre carpina, que lhe pergunte permita:
há muito no lamaçal apodrece a sua vida?
e a vida que tem vivido
foi sempre comprada à vista?

—— Severino, retirante, sou de Nazaré da Mata, mas tanto lá como aqui jamais me fiaram nada:
a vida de cada dia
cada dia hei de comprá-la.

—— Seu José, mestre carpina, e que interesse, me diga,
há nessa vida a retalho que é cada dia adquirida? espera poder um dia
comprá-la em grandes partidas?

—— Severino, retirante,
não sei bem o que lhe diga: não é que espere comprar em grosso tais partidas,
mas o que compro a retalho é, de qualquer forma, vida.

—— Seu José, mestre carpina, que diferença faria
se em vez de continuar

tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?

UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ

—— Compadre José, compadre, que na relva estais deitado: conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado? Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho saltou para dentro da vida? Saltou para dento da vida
ao dar o primeiro grito
e estais aí conversando
pois sabeis que ele é nascido.

APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA DO HOMEM VIZINHOS, AMIGOS, DUAS CIGANAS, ETC

—— Todo o céu e a terra lhe cantam louvor.
Foi por ele que a maré esta noite não baixou.

—— Foi por ele que a maré fez parar o seu motor:
a lama ficou coberta
e o mau-cheiro não voou.

—— E a alfazema do sargaço, ácida, desinfetante,
veio varrer nossas ruas enviada do mar distante.

—— E a língua seca de esponja que tem o vento terral
veio enxugar a umidade do encharcado lamaçal.

—— Todo o céu e a terra lhe cantam louvor
e cada casa se torna num mocambo sedutor.

—— Cada casebre se torna no mocambo modelar
que tanto celebram os sociólogos do lugar.

—— E a banda de maruins que toda noite se ouvia
por causa dele, esta noite,
creio que não irradia.

—— E este rio de água, cega, ou baça, de comer terra,
que jamais espelha o céu, hoje enfeitou-se de estrelas.

COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS TRAZENDO PRESENTES PARA
O RECÉM-NASCIDO

COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS TRAZENDO PRESENTES PARA O RECÉM-NASCIDO

—— Minha pobreza tal é
que não trago presente grande:
trago para a mãe caranguejos pescados por esses mangues mamando leite de lama conservará nosso sangue.

—— Minha pobreza tal é
que coisa alguma posso ofertar:
somente o leite que tenho para meu filho amamentar aqui todos são irmãos,
de leite, de lama, de ar.

—— Minha pobreza tal é
que não tenho presente melhor:
trago este papel de jornal para lhe servir de cobertor cobrindo-se assim de letras vai um dia ser doutor.

—— Minha pobreza tal é
que não tenho presente caro:
como não posso trazer
um olho d’água de Lagoa do Cerro, trago aqui água de Olinda,
água da bica do Rosário.

—— Minha pobreza tal é que grande coisa não trago: trago este canário da terra
que canta sorrindo e de estalo.

—— Minha pobreza tal é que minha oferta não é rica:
trago daquela bolacha d’água que só em Paudalho se fabrica.

—— Minha pobreza tal é
que melhor presente não tem:
dou este boneco de barro
de Severino de Tracunhaém.

—— Minha pobreza tal é que pouco tenho o que dar:
dou da pitu que o pintor Monteiro fabricava em Gravatá.
—— Trago abacaxi de Goiana
e de todo o Estado rolete de cana.

—— Eis ostras chegadas agora, apanhadas no cais da Aurora.

—— Eis tamarindos da Jaqueira e jaca da Tamarineira.

—— Mangabas do Cajueiro e cajus da Mangabeira.
—— Peixe pescado no Passarinho, carne de boi dos Peixinhos.

—— Siris apanhados no lamaçal que já no avesso da rua Imperial.

—— Mangas compradas nos quintais ricos do Espinheiro e dos Aflitos.

—— Goiamuns dados pela gente pobre da Avenida Sul e da Avenida Norte.

FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM APARECIDO COM OS VIZINHOS

—— Atenção peço, senhores, para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito, lemos a sorte futura.
Vou dizer todas as coisas que desde já posso ver
na vida desse menino acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar por aí, com aratus, aprenderá a caminhar
na lama, como goiamuns,
e a correr o ensinarão o anfíbios caranguejos,
pelo que será anfíbio
como a gente daqui mesmo. Cedo aprenderá a caçar: primeiro, com as galinhas, que é catando pelo chão
tudo o que cheira a comida depois, aprenderá com outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos, com os cachorros no lixo.
Vejo-o, uns anos mais tarde, na ilha do Maruim,

vestido negro de lama, voltar de pescar siris
e vejo-o, ainda maior, pelo imenso lamarão fazendo dos dedos iscas
para pescar camarão.

—— Atenção peço, senhores, também para minha leitura: também venho dos Egitos,
vou completar a figura.
Outras coisas que estou vendo é necessário que eu diga:
não ficará a pescar
de jereré toda a vida. Minha amiga se esqueceu de dizer todas as linhas
não pensem que a vida dele há de ser sempre daninha. Enxergo daqui a planura
que é a vida do homem de ofício,
bem mais sadia que os mangues, tenha embora precipícios.
Não o vejo dentro dos mangues, vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é lama, é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama do pescador de maré
que vemos aqui vestido de lama da cara ao pé.
E mais: para que não pensem
que em sua vida tudo é triste, vejo coisa que o trabalho talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor nos mangues do Beberibe.

FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE VIERAM COM PRESENTES, ETC

—— De sua formosura já venho dizer:
é um menino magro, de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de mulher.

—— De sua formosura deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem, marca de humana oficina.

—— Sua formosura deixai-me que cante: é um menino guenzo
como todos os desses mangues, mas a máquina de homem
já bate nele, incessante.

—— Sua formosura eis aqui descrita:
é uma criança pequena, enclenque e setemesinha,
mas as mãos que criam coisas nas suas já se adivinha.

—— De sua formosura deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.

—— De sua formosura deixai-me que diga:
belo como o avelós
contra o Agreste de cinza.

—— De sua formosura deixai-me que diga:
belo como a palmatória na caatinga sem saliva.

—— De sua formosura deixai-me que diga:
é tão belo como um sim numa sala negativa.
—— é tão belo como a soca que o canavial multiplica.

—— Belo porque é uma porta abrindo-se em mais saídas.

—— Belo como a última onda que o fim do mar sempre adia.

—— é tão belo como as ondas em sua adição infinita.
—— Belo porque tem do novo a surpresa e a alegria.

—— Belo como a coisa nova na prateleira até então vazia.

—— Como qualquer coisa nova inaugurando o seu dia.

—— Ou como o caderno novo quando a gente o principia.
—— E belo porque o novo todo o velho contagia.

—— Belo porque corrompe com sangue novo a anemia.

—— Infecciona a miséria com vida nova e sadia.

—— Com oásis, o deserto, com ventos, a calmaria.

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE DE NADA

—— Severino, retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar fora da ponte e da vida
nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga
é difícil defender,
só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é

esta que vê, severina
mas se responder não pude à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu com sua presença viva.
E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida
mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida
como a de há pouco, franzina mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

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