A Policitemia de Dona Lindoca

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Dona Lindoca não era feliz. Quarentona bem puxada, apesar dos trinta e sete anos em que fizera finca-pé, via pouco a pouco chegar a velhice com seu empaste de feições, rugas e macacoas.

Não era feliz, porque nascera com o gênio da ordem e do asseio meticuloso – e agente assim passa a vida a amofinar-se com criados e coisinhas. E como também nascera casta e amorosa, não ia com o desamor e desrespeito do mundo. O marido jamais lhe retribuíra o amor como os mimos entressonhados em noiva. Não tinha “caídos”, nem usava para a sua sensibilidade, sempre menineira, desses pequeninos nada cariciosos que para certas criaturas constituem a suprema felicidade na terra.

Isso, porém, não traria a dona Lindoca mal de monta, excedente a suspiros e queixas às amigas, se a certeza da infidelidade do Fernando não visse um dia estragar tudo. Estava a boa senhora a escovar-lhe o paletó quando sentiu vago aroma suspeito. Foi logo aos bolsos – e apanhou o corpo de delito num lencinho perfumado.

– Fernando, você deu agora para usar perfume? – indaga a santa esposa, aspirando o lenço comprometedor. E “Coeur de Jeannette”, inda mais…

O marido, pegado de surpresa, armou a cara mais alvar de toda a sua coleção de “caras circunstanciais” e murmurou o primeiro rebate sugerido pelo instinto de defesa: – você estar sonhado, mulher…

Mais teve de render-se à evidência, logo que a esposa lhe chegou ao nariz o crime.
Há coisas inexplicáveis, por mais lépida que seja a presença de espírito de um homem traquejado. Lenço cheiroso no bolso de marido que jamais usou perfume, eis uma. Põe em ti o caso, leitor, e vai estudando desde já uma saída honrosa para a hipótese de te suceder o mesmo.

– Pilhéria de mau gosto do Lopes …

O melhor que lhe acudiu foi lançar à conta do espírito brincalhão do seu velho amigo Lopes mais aquela. Dona Lindoca, está claro, não engoliu a grosseira pílula – e desde aquele dia entrou a suspirar suspiros de um novo gênero, com muita queixa às amigas sobre a corrupção dos homens.

Mais a realidade era diferente de tudo aquilo. Dona Lindoca não era infeliz; seu marido não era um mau marido; seus filhos não eram maus filhos. Gente toda ela muito normal, vivendo a vida que todas as criaturas normais vivem.

Dava-se apenas o que se dá sempre na existência da generalidade dos casais pacíficos. A peça matrimonial “Multiplicativos” tem um segundo ato em excesso trabalhoso na procriação e criação dos rebentos. É uma doradoura de anos, na qual os atores principais mal têm tempo de cuidar de si, tanto lhes monopolizam as energias os cuidados absorventes da prole. Nesse período longo e rotineiro, quanto perfume vago não trouxe da rua o doutor Fernando! Mas o olfato da esposa, sempre saturado com o cheirinho das crianças, jamais deu tento de nada.

Um dia, porém, começou a dispersão. Casaram-se as filhas e os filhos foram deixando o borralho um por um, como passarinhos que já sabem fazer uso das asas. E como o esvaziamento do lar ocorreu no período muito curto de dois anos, o vácuo trouxe a dona Lindoca uma penosa sensação de infelicidade.

O marido não mudara em coisa nenhuma, mas como só agora dona Lindoca tinha tempo de dar-lhe atenção, parecia-lhe mudado. E queixava-se dos seus eternos negócios fora de casa, de sua indiferença, do seu “desamor”. Certa vez, perguntou-lhe ao jantar:

– Fernando, que dia é hoje?

– Treze, filha.

– Treze, só?

Está claro que treze só. Impossível que fosse treze e mais alguma coisa. É da aritmética.

Dona Lindoca arrancou um suspiro dos mais sugados.

– Essa aritmética antigamente era bem mais amável.

Pela aritmética antiga, hoje não seria treze só – e sim treze de julho…

O doutor Fernando bateu na testa.

– É verdade, filha! Não sei como me escapou que é hoje dia dos teus anos. Esta cabeça…

– Essa cabeça não falha quando as coisas a interessam. É que para você eu já passei… Mas console-se meu caro. Não me ando sentindo bem e breve deixarei você livre no mundo. Poderá então, sem remorso, regalar-se com as Jeannettes…

Como as recriminações alusivas ao caso do lenço perfumado fossem uma “Scie”, o marido adotara a boa política de “passar”, como no pôquer. “Passava” todas as alusões da esposa, meio eficaz em torcer em germe o pepino de um debate tão inútil quão indigesto. Fernando “passou” a Jeannette e aceitou a doença.

– Sério? Sente qualquer coisa, Lindoca?

– Uma ansiedade, uma canseira, isto desde que vim de Teresópolis.

– Calor. Estes verões cariocas derrancam até aos mais pintados.

– Sei quando é calor. O mal-estar que sinto deve ter outra causa.

– Nervoso, então. Por que não vai ao médico?

– Já pensei nisso. Mais, a qual médico?

– Ao Lanson, filha. Que idéia! Pois não é o médico da casa?

– Deus me livre. Depois que matou a mulher do Esteves? Isso quer você…

– Não matou tal, Lindoca. É tolice propalar essa maldade inventada por aquela caninana da Marocas. Ela é que diz isso.

– Ela e todos. Voz corrente. Além do mais, depois daquele caso da corista di Trianon…

O doutor Fernando espirrou uma gargalhada.

– Não diga mais nada! – exclamou. – adivinho tudo. A eterna mania.

Sim, era a mania. Dona Lindoca não perdoava a infidelidade do marido, nem do seu nem do das outras. Em matéria de moralidade sexual não cedia milímetro.

Como fosse de natural casta, exigia castidade de todo mundo. Daí o desmerecerem ante seus olhos todos os maridos que na voz das comadres andavam de amores fora do ninho conjugal. Aquele doutor Lanson perdera-se no conceito de dona Lindoca não porque houvesse “matado” a mulher do Esteves – pobre tuberculosa que mesmo sem médico tinha de morrer –, mas porque andara às voltas com uma corista.

A gargalhada do marido enfureceu-a.

– Cínicos! São todos os mesmos… Pois não vou ao Lanson. É um sujo. Vou ao doutor Lorena, que é homem limpo, decente, um puro.

– Vai filha. Vai ao Lorena. A pureza desse médico, que eu cá chamo hipocrisia requintada, com certeza lhe há de ajudar muito a terapêutica.

– Vou sim, e nunca mais me há de entrar aqui outro médico. De Lovelaces ando eu farta

– concluiu dona Lindoca sublinhando a indireta.

O marido olho-a de soslaio, sorriu filosoficamente e, “passando” o “Lovelaces”, pôs-se a ler os jornais.

No dia seguinte, dona Lindoca foi ao consultório do médico puritano e voltou radiante.

– Tenho uma policitemia – foi logo dizendo. – garante ele que não é grave, embora requeira tratamento sério e longo.

– Policitemia? – repetiu o marido com vincos na testa, sinal de que entendia suas pitadas de medicina.

– Que espanto é esse? Policitemia, sim, a doença da minha margarida e da grã-duquesa Estefânia, disse-me o doutor. Mas cura-me, assegurou – e ele sabe o que diz. Como é fino o doutor Lorena! Como sabe falar!…

– Sobretudo falar…

– Já vem você. Já começa a implicar com o homem só porque é um puro… Pois, quanto a mim, só sinto té-lo conhecido agora. É um médico decente, sabe? Fino, amável, muito religioso. Religioso, sim! Não perde a missa das onze na Candelária.

Diz as coisas de um modo que até lisonjeia agente. Não é um sujo como o tal Lanson, que anda metido com atrizes, que vê humores em tudo e põe as clientes nuas para examiná-las.

– E o teu Lorena como as examina? Vestidas?

– Vestidas, sim, está claro. Não é nenhum libertino. E se o caso exige que a cliente se dispa em parte, ele aplica os ouvidos mas fecha os olhos. É decente, ora aí está! Não faz do consultório casa de encontros.

– Venha cá, minha filha. Noto que você fala com leviandade de sua doença. Tenho minhas noções de medicina e parece-me que essa tal policitemia…

– Parece nada. O doutor Lorena afirmou-me que não é coisa de matar, embora de cura lenta. Doença até distinta, de fidalgos.

– De rainha, grã-duquesa,sei…

– Só que exige muito tratamento – sossego, regime alimentar, coisas impossíveis nesta casa.

– Por quê?

– Ora essa. Quer você que uma dona de casa possa cuidar de si tendo tanta coisa em olhar? Vá a pobre de mim deixar de matar-se na trabalheira para ver como isto vira de pernas para o ar. Tratamento na regra, só para essas que tomam o marido das outras. A vida é para elas…

– Deixemos isso, Lindoca, até cansa.

– Mas vocês não se cansam delas.

– Elas, elas! Que elas, mulher? – exclamou, já exasperado, o marido.

– As perfumadas.

– Bolas.

– Não briguemos. Basta. O doutor… ia-me esquecendo. O doutor Lorena quer que você apareça por lá, no consultório.

– Para quê?

– Ele dirá. Das duas às cinco.

– Muita gente a essa hora?

– Como não? Um médico daqueles…Mas a você não fará esperar. É negócio à parte da clínica. Vai?

O doutor Fernando foi. O médico desejava adverti-lo de que a doença de dona Lindoca era grave, havendo perigo sério caso o tratamento que prescrevera não fosse seguido à risca.

– Muito sossego, nada de contrariedades, mimos. Principalmente mimos. Indo tudo a contento, num ano poderá estar boa. Do contrário, teremos mais um viúvo em pouco tempo.

A possibilidade da morte da esposa, quando assim se antolha pela primeira vez ao marido de coração sensível, abala profundamente. O doutor Fernando deixou o consultório e rodando para casa ia a recordar o tempo róseo do namoro, o noivado, o casamento, o enlevo dos primeiros filhos. Não era meu marido. Podia até figurar entre os ótimos, no juízo dos homens que se perdoam uns aos outros os pequenos arranhões no pacto conjugal, filhos da curiosidade adâmica.

Já as mulheres não compreendem assim, e dão demasiado vulto a borboleteios que muitas vezes só servem para valorizar as esposas aos olhos dos maridos. Assim é que a notícia da gravidade da moléstia de dona Lindoca despertou em Fernando um certo remorso, e o desejo de redimir com carinhos de noivos os anos de indiferença conjugal.

– Pobre Lindoca. Tão boa de coração… Se azedou um bocado, a culpa foi só minha. O tal perfume… Se ela pudesse compreender a absoluta insignificância do frasco donde emanou aquele perfume…

Ao entrar em casa indagou logo da esposa.

– Está em cima – respondeu a criada.

Subiu. Encontrou-a no quarto, numa preguiçosa.

– Viva a minha doentezinha! E abraçou-a e beijo-a na testa.

Dona Lindoca espantou-se.

– Ué! Que amores esses agora? Até beijos, coisas que me dizias fora da moda…

– Vim do médico. Confirmou-me o diagnóstico. Não há gravidade nenhuma, mas exige tratamento de rigor. Muito sossego, nada de amofinações, nada que abale o moral. Vou ser o enfermeiro da minha Lindoca e hei de pô-la sãzinha.

Dona Lindoca arregalou os olhos. Não reconhecia no indiferente Fernando de tanto tempo aquele marido amável, tão perto do padrão com que sempre sonhara.

Até diminutivos…

– Sim – disse ela –, tudo isso é fácil de dizer, mas sossego de fato, repouso absoluto, como, nesta casa?

– Por que não?

– Ora, você será o primeiro a dar-me aborrecimentos.

– Perdoe-me, Lindoca. Compreenda a situação. Confesso que não fui contigo o esposo entressonhado. Mas tudo mudará. Você está doente e isto vai fazer com que tudo renasça – até o velho amos dos vinte e anos, que não morreu nunca, apenas encasulou- se. Não imagina como me sinto cheio de ternura para com a minha mulherzinha. Estou todo lua-de-mel por dentro.

– Os anjos digam amém. Só receio que com tanto tempo o mel já esteja azedo…

Apesar de mostrar-se assim tão incrédula, a boa senhora irradiava. O seu amor pelo marido era o mesmo dos primeiros tempos, de modo que aquela ternura o fez logo reflorir, à imitação das árvores desfolhadas pelo inverno a um chuvisco de primavera.

E a vida de dona Lindoca mudou. Os filhos passaram a vir vê-la com freqüência – logo que o pai os advertiu da vida periclitante da boa mãe. E mostravam-se muito carinhoso e solícitos. Os parentes mais chegados, também por influxo do marido, amiudaram as visitas, de tal jeito que dona Lindoca, sempre queixosa outrora de isolamento, se fosse queixar-se agora seria de solicitude excessiva.

Veio uma tia pobre do interior tomar conta da casa, chamando a si todas as preucupações amofinantes.

Dona Lindoca sentia um certo orgulho da sua doença, cujo nome lhe soava bem aos ouvidos e fazia abrir a boca dos visitantes – policitemia… E como o marido e os demais lhe lisonjeassem a vaidade enaltecendo o chique das policitemias, acabou por considerar-se uma privilegiada.

Falavam muito na rainha Margarida e na grã-duquesa Estefânia como se fossem pessoas de casa, havendo um dos filhos conseguido e posto na parede o retrato de ambas. E certa vez que os jornais deram um telegrama de Londres, noticiando achar-se enferma a princesa Mary, dona Lindoca sugeriu logo, convencidamente:

– Vai ver que é uma policitemia…

A prima Elvira trouxa de Petrópolis uma novidade de sensação.

– Viajei com o doutor Maciel na barca. Contou-me que a baronesa de Pilão Arcado também está com policitemia. E também aquela grandalhona loura, mulher do ministro Francês – a Grouvion.

– Sério?

– Sério, sim. É doença de gente graúda, Lindoca. Este mundo!… até em questão de doença as bonitas vão para os ricos e as feias para os pobres! Você, a Pilão Arcado e a Grouvion, com policitemia – e lá a minha costureirinha do Catete, que morre dia e noite em cima da máquina de costura, sabe o que lhe deu? Tísica mesentérica…

Dona Lindoca fez cara de nojo.

Eu nem sei onde “essa gente” apanha tais coisas.

Outra ocasião, ao saber que uma sua ex-criada de Teresópolis fora ao médico e viera com o diagnóstico de policitemia, exclamou, incrédula, a sorrir com superioridade:

– Duvido! A linduína com policitemia? Duvido!… Vai ver que quem disse tal bobagem foi

Lanson, aquela topeira.

A casa virou perfeita maravilha de ordem. As coisas surgiam à hora e no ponto, como se anões invisíveis estivessem a prover tudo. A cozinheira, ótima, fazia pitéus de arregalar o olho. A arrumadeira alemã dava idéia de uma abelha em forma de gente. A tia Gertrudes era uma nova governanta de casa como jamais existiu outra.

E nenhum barulho, todos na ponta dos pés, com “psius” aos estouvados. E presentinhos. Os filhos e noras jamais esqueciam a boa mamãe, ora com flores, ora com os doces de que ela mais gostava. O marido fizera-se caseiro. Deu jeito aos negócios e pouco saía, e à noite nunca, passando a ler para a esposa os crimes dos jornais nas raras vezes em que não tinha visitas.

Dona Lindoca começou a viver vida de céu aberto.

– como me sinto feliz agora! – dizia. – Mas para que nada haja perfeito, tenho a policitemia. Verdade é que esta doença não me incomoda em nada. Não a sinto absolutamente – além de que é uma doença fina…

O medico vinha vê-la amiúde, mostrando boa cara à doente e má ao marido.

– Demora ainda, meu caro. Não nos iludamos com aparências. As policitemias são insidiosas.

O curioso era que dona Lindoca realmente não sentia coisa nenhuma. O mal-estar, a ansiedade do começo que a levara a consultar o médico, de muito que havia passado. Mas quem sabia da sua doença não era ela, e sim o médico. De modo que enquanto ele não lhe desse alta, teria de continuar nas delícias daquele tratamento.

Certa vez, chegou a dizer ao doutor Lorena:

– Sinto-me boa, doutor, completamente boa.

– Parece-lhe, minha senhora. O característico das policitemias é iludir assim os doentes, e pô-los derreados ou liquidados, à menor imprudência. Deixe-me cá levar o barco a meu modo, que para outra coisa não queimei as pestanas na escola. A grã-duquesa Estefânia também se julgou boa, certa vez, e contra o parecer do médico assistente deu-se alta a si própria…

– E morreu?

– Quase. Recaiu e foi um custo pô-la de novo no ponto em que estava. O abuso, minha senhora, a falta de confiança no médico, tem levado muita gente para outro mundo…

E repetiu ao marido aquele parecer, com grande encanto de dona Lindoca, que não cessava de abrir-se em elogios ao grande clínico.

– Que homem! Não é a toa que ninguém diz “isto” dele, Neste rio de Janeiro das más- línguas. “Amantes, minha senhora”, declarou ele outro dia à prima Elvira, “ninguém me apontará jamais nenhuma”.

O doutor Fernando ia se saindo com uma ironia à moda antiga, mas recolheu-se a tempo, por amor ao sossego da esposa, com a qual jamais esgrimira depois da doença. E resignou-se a ouvir o estribilho de sempre: “É um homem puro e muito religioso. Fossem todos assim e o mundo seria um paraíso”.

Durou seis meses o tratamento de dona Lindoca e duraria doze, se um belo dia não rebentasse um grande escândalo – a fuga do doutor Lorena para Buenos Aires com uma cliente, moça de alta sociedade.

Ao receber a notícia dona Lindoca recusou-se a dar crédito.

– Impossível! Há de ser calúnia. Vai ver como ele logo aparece por aqui e tudo se desmente.

O doutor Lorena jamais apareceu; o fato confirmou-se, fazendo dona Lindoca passar pela maior desilusão de sua vida.

– Que mundo, meu Deus! – murmurava. – em que mais acreditar, se até o doutor Lorena faz dessas?

O marido rejubilou-se, por dentro. Sempre vivera engasgado com a pureza do charlatão, comenta todos os dias em sua presença sem que ele pudesse explodir o grito d’alma que lhe punha um nó na garganta: “Puro nada! É um pirata igual aos outros”

O abalo moral não fez dona Lindoca recair enferma, como era de supor. Sinal de que estava perfeitamente curada. Para melhor certificar-se disso o marido lembrou-se de consultar outro médico.

– Pensei no Lemos de Souza – sugeriu ele. – está com muito nome.

– Deus me livre! – acudiu logo a doente. – dizem que é amante da mulher de Bastos.

– Mas trata-se de um grande clínico, Lindoca. Que importa o que lá do seu namoro dizem as más-línguas? Neste Rio ninguém escapa.

– A mim importa muito. Não quero. Veja outro. Escolha um decente. Sujeiras não admito aqui.

Depois de comprido debate acordaram em chamar Manuel Brandão, professor da escola e já em adiantado grau de senilidade. Não constava que fosse amante de ninguém.

Veio o novo doutor. Examinou cuidadosamente a doente e ao cabo concluiu com absoluta segurança.

– Vossa excelência não tem nada – disse ele. – absolutamente nada.

Dona Lindoca pulou, muito lépida, da sua preguiçosa.

– Então sarei de uma vez, doutor?

– Sarou… Se é que esteve doente. Não consigo ver sinal nenhum em seu organismo de doença presente ou passada. Quem foi o médico?

– O doutor Lorena…

O velho clínico sorriu, e voltando-se para o marido:

– É o quarto caso de doença imaginária que o meu colega Lorena (aqui entre nós, um refinadíssimo patife) leva a explorar durante meses. Felizmente raspo-se para Buenos Aires, ou “desinfetou” o Rio, como dizem os capadócios.

Foi um assombrado. O doutor Fernando abriu a boca.

– Mas então…

– É o que lhe digo – reafirmou o médico. – A sua senhora teve qualquer crise nervosa que passou com o repouso. Mas, policitemia, nunca! Policitemia!… até me espanta que tão grosseiramente pudesse o tal Lorena iludir a todos com essa pilhéria…

A tia Gertrudes voltou para sua casa no interior. Os filhos foram se tornando mais parcos nas visitas – e os demais parentes idem. O doutor Fernando retornou a vida de negócios e nunca mais teve tempo de ler crimes para a desconsolada esposa, sobre cujos ombros recaiu a velha trabalhadeira de zelar pela casa.

Em suma, a infelicidade de dona Lindoca voltou com armas e bagagens, fazendo-a suspirar suspiros ainda mais profundos que os de outrora. Suspiros de saudade. Saudade da policitemia…

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