Baltasar

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I
Nesse tempo, Baltasar, que os gregos chamaram Sarraceno, reinava na Etiópia. Negro, mas belo de rosto, era de espírito simples e de coração generoso. Durante o terceiro ano de seu reinado, que era o vigésimo segundo de sua idade, saiu para visitar Balkis, rainha de Sabç. Acompanhavam-no o mago Sembobitis e o eunuco Menkera. Seguiam-no setenta e cinco camelos, carregados de cinamomo, mirra, ouro em pó e dentes de elefante. No decorrer da caminhada, Sembobitis ensinava-lhe não só a influência dos planetas como também as virtudes das pedras e Menkera cantava-lhe canções litúrgicas; mas ele não os ouvia e distraía-se a olhar os pequenos chacais sentados, de orelhas em pé, contra o horizonte de areia.

Enfim, após doze dias de viagem, Baltasar e seus companheiros sentiram um perfume de rosas, e, dentro em pouco, avistaram os jardins que contornavam a cidade de Sabá. Nesse lugar, iam encontrar moçoilas que dançavam debaixo de romeiras em flor.

– A dança é uma prece, disse o mago Sembobitis.

– Vender-se-iam por elevado preço essas mulheres, disse o eunuco Menkera.

Assim que entraram na cidade, maravilharam-se da grandeza das lojas, dos galpôes e depósitos que diante deles se estendiam e, ainda, da quantidade de mercadorias que neles se acumulavam. Caminharam muito tempo pelas ruas cheias de carretas e carregadores, de asnos e almocreves, e depararam, quando menos esperavam, com as muralhas de mármore, os pavilhôes de púrpura, as cúpulas de ouro do palácio de Balkis. Recebeu-os a rainha de Sabá num pátio refrescado por chafarizes de água perfumada que se desmanchava em pérolas com límpido murmúrio. De pé, vestindo uma túnica de pedrarias, ela sorria.

Assim que a viu, Baltasar foi tomado de grande perturbação. Parecia-lhe ela mais doce que o sonho e mais bela que o desejo.

– Senhor, disse-lhe baixinho Sembobitis, cuidai de ajustar com a rainha um bom tratado de comércio.

– Acautelai-vos, senhor, acrescentou Menkera. Dizem que ela emprega a magia para se fazer amada pelos homens.

Em seguida, depois de se prosternarem, o mago e o eunuco retiraram-se.

Ao ficar a sós com Balkis, Baltasar tentou falar, abriu a boca, mas não pode dizer uma única palavra. Pensou então consigo mesmo: A rainha irá aborrecer-se com o meu silêncio.

No entanto, ela estava a sorrir e não tinha ar de enfado. Foi a primeira a falar, e disse com voz mais suave que a mais suave música:

– Sede bem-vindo e assentai-vos junto de mim.

E com o dedo, que a um raio de luz clara se assemelhava, indicou-lhe os coxins de púrpura espalhados pelo chão.

Exalando profundo suspiro Baltasar acomodou-se e, agarrando uma almofada em cada mão, exclamou de repente:

– Senhora, quisera que estes dois coxins fossem dois gigantes, inimigos vossos, para que eu lhes torcesse o pescoço.

E, assim dizendo, cerrava tão fortemente as almofadas nas mãos, que o estofo se rompeu, deixando sair uma nuvem de pequeninas plumas brancas. Uma delas voltejou por momento no ar e depois foi pousar no colo da rainha.

– Senhor Baltasar, disse Balkis corando, por que desejais matar gigantes?

– Porque vos amo, respondeu Baltasar.

– Dizei-me, indagou Balkis, se em vossa capital é boa a água das cisternas?

– Sim, respondeu surpreso Baltasar.

– Também tenho curiosidade de saber, prosseguiu Balkis, como se fabricam os doces secos na Etiópia.

O rei não sabia o que responder. Ela insistiu:

– Dizei, dizei, que me agradareis.

Então, fazendo grande esforço de memória, ele descreveu os processos dos cozinheiros etiópicos, que confeiçoam marmelos com mel. Ela porém não o ouvia.

De repente interrompeu-o:

– Senhor, dizem que amais a rainha Candace, vossa vizinha. Não me enganeis: ela é mais bela do que eu?

– Mais bela, senhora, exclamou Baltasar caindo a seus pés, será possível?…

A rainha prosseguiu:

– Sim! seus olhos? sua boca? sua tez? seu colo? . .
.
Baltasar estendeu os braços para ela e suplicou:

– Deixai-me remover a plumazinha que em vosso colo pousou e dar-vos-ei a metade de meu reino mais o sábio Sembobitis e o eunuco Menkera.

Ela porém ergueu-se e afastou-se rindo sonoramente.

Quando o mago e o eunuco retornaram, encontraram o seu senhor em inusitada atitude pensativa.

– Senhor, não haveis concluído um bom tratado comercial? inquiriu Sembobitis.

Nesse dia, Baltasar ceou com a rainha de Sabá e bebeu vinho de palmeira. Enquanto ceiavam, Balkis tornou a perguntar-lhe:

– Então, é verdade? A rainha Candace não é tão bela quanto eu?

– A rainha Candace é negra, replicou Baltasar.

Balkis encarou vivamente Baltasar e comentou:

– Pode-se ser negro sem ser feio.

– Balkis! exclamou o rei.

Mais nada pode acrescentar. Tomando-a nos braços, inclinara sob os seus lábios a fronte .da rainha. Mas viu que ela chorava. Falou-lhe então em surdina, com voz carinhosa e um pouco cantante, tal como fazem as amas, e chamou-a sua pequena flor e sua pequena estrela.

– Por que chorais? perguntou ele. E que é preciso fazer para que não choreis mais? Se tendes algum desejo dizei-me, para que eu possa realizá-lo.

Já não chorava mais, porém ficou absorta. Durante muito tempo, Baltasar instou para que ela lhe confiasse o seu desejo.

Enfim ela acedeu:

– Eu quisera ter medo.

Como Baltasar parecesse não ter compreendido, explicou-lhe que há muito sentia necessidade de correr algum perigo desconhecido, coisa que não lhe era possível, pois os guardas e os deuses sabeus velavam por ela.

– Contudo, acrescentou suspirando, quisera sentir durante a noite o delicioso frio do pavor penetrar em minha carne. Quisera sentir arrepiarem-se-me os cabelos. Oh! seria tão bom ter medo!

E, enlaçando os braços ao pescoço do rei negro, disse-lhe com a voz de uma criança que suplica:

– Eis que já chegou a noite. Partamos disfarçados para a cidade. Quereis?

Ele assentiu. Correu Balkis então ‡ janela e pela rótula olhou a praça pública.

– Um mendigo, disse ela, está deitado junto ao muro do palácio. Dai-lhe as vossas roupas e pedi-lhe em troca o seu turbante de pêlo de camelo e o pano grosseiro que lhe cinge os rins. Apressai-vos, que me vou aprontar.

E saiu correndo da sala do banquete a bater palmas para melhor manifestar a sua alegria. Baltasar tirou sua túnica de linho, bordada de ouro, e cingiu-se com o saiote do mendigo. Tinha assim a aparência de um verdadeiro escravo. A rainha reapareceu dali a pouco, vestindo a saia azul sem costura das mulheres que trabalham nos campos.

– Vamos! disse ela.

E guiou Baltasar por estreitos corredores até uma pequena porta que se abria para a campina.

II

Escura era a noite e, dentro da noite, Balkis parecia mais pequena ainda. Conduziu ela Baltasar a uma tasca onde brutamontes e carregadores da cidade se reuniam com prostitutas. Nesse lugar, assentados a uma mesa, viam, a luz de infecta lâmpada, em atmosfera espessa, homenzarrôes mal cheirosos que trocavam murros e facadas por uma barregã ou por um caneco de bebida fermentada, enquanto outros roncavam, de punhos fechados, debaixo das mesas. O taverneiro, recostado sobre uns sacos, observava prudentemente, com o canto dos olhos, as rixas dos beberrôes. Avistando uns peixes salgados que pendiam das traves do teto, Balkis declarou ao companheiro:

– Bem que eu gostaria de comer um desses peixes com cebola esmagada.

Baltasar ordenou que a servissem. Quando ela acabou de comer, o rei percebeu que não havia trazido dinheiro. Mas isto não lhe causou nenhuma inquietação por supor que poderiam sair sem pagar a despesa. O taverneiro barrou-lhes porém o caminho, chamando-lhes vilão, escravo e sórdida vagabunda. Com um soco Baltasar estendeu-o por terra. Vários bebedores atiraram-se de faca em punho contra os dois desconhecidos. Mas o negro, munindo-se de um enorme pilão, que era usado para amassar cebolas do Egito, desancou dois dos agressores e obrigou os outros a recuarem. Ao mesmo tempo, sentia o calor do corpo de Balkis enroscado no dele, e por isso era invencível. Os amigos do bodegueiro, não mais ousando se aproximar, atiraram contra Baltasar, do fundo da espelunca, jarras de óleo, canecos de estanho, tochas acesas e até o enorme caldeirão de bronze onde se cozinhava um carneiro de uma só vez. O panelão atingiu com horrível estrondo a fronte de Baltasar e lhe fez um enorme corte na cabeça. Por momentos ele ficou aturdido, mas em seguida, recuperando as forças, arremessou de volta o marmitão, porém com tamanho vigor que o seu peso foi decuplicado. Ao choque do bronze misturaram-se uivos inauditos e estertores de morte. Aproveitando-se do pânico dos sobreviventes e temendo que Balkis pudesse ser ferida, tomou-a nos braços e com ela fugiu pelas ruelas sombrias e desertas. O silêncio da noite envolvia a terra, e os fugitivos ouviam decrescer atrás deles o clamor dos bebedores e do femeaço, que os perseguiam ao acaso na escuridão. Logo nada mais ouviam a não ser o fraco ruído das gotas de sangue que caíam, uma a uma, da testa de Baltasar sobre o colo de Balkis.

– Amo-te! murmurava a rainha.

E a lua, irrompendo de uma nuvem, permitiu ao rei ver um clarão úmido e nevoento nos olhos entre cerrados de Balkis. Desceram ambos ao leito ressequido de uma corrente. De repente, o pé de Baltasar escorregou nos musgos e os dois caíram abraçados. Pareceu-lhes que se haviam afundado num delicioso abismo sem fim e o mundo dos vivos deixou de existir para eles.

Gozavam ainda do fascinante esquecimento do tempo, do número e do espaço, quando, á aurora, as gazelas vieram beber no côncavo das pedras. Nesse momento, uns salteadores que passavam viram os dois amantes deitados no musgo.

– São pobres, disseram, mas nós os venderemos por bom preço, pois são jovens e belos.

Então se aproximaram do casal, amarraram os dois e, atando-os à cauda de um asno,
prosseguiram seu caminho. O negro, acorrentado, proferia contra os bandidos ameaças de morte. Mas Balkis, tiritando ao ar frio da manhã, parecia sorrir a algo de invisível.Caminharam por desolados desertos até que se acentuou o calor do dia. Já ia alto o sol quando os facínoras desamarraram os prisioneiros e, fazendo-os assentarem-se ao pé deles, à sombra de um rochedo, jogaram-lhes um pedaço de pão bolorento, que Baltasar desdenhou de apanhar, mas que Balkis comeu avidamente.

Ela ria. O chefe dos salteadores perguntou-lhe por que ria:

– Rio-me, respondeu-lhe ela, por pensar que vos mandarei enforcar a todos.

– De verdade! zombou o chefe dos assaltantes. Eis um estranho intento na boca de uma lavadeira de escudelas como tu, minha querida! Sem dúvida é com a ajuda de teu galante negro que nos farás enforcar?

Ouvindo tão ultrajantes palavras, Baltasar foi tomado de grande furor. Atirou-se sobre o bandido e apertou-lhe tão fortemente a garganta que quase o estrangulou. Mas este enterrou-lhe até o cabo uma faca no ventre. O pobre rei, rolando por terra, volveu a Balkis um olhar de moribundo, que se extinguiu quase no mesmo instante.

III
Nesse instante, ouviu-se grande estrépito de homens, cavalos e armas, e Balkis reconheceu o bravo Abner que, à frente de sua guarda, vinha livrar a rainha, de cuja misteriosa desaparição desde a véspera tivera conhecimento.

Depois de prosternar-se três vezes aos pés de Balkis, .mandou avançar uma liteira de antemão preparada para recebê-la. Enquanto isso, os guardas amarravam as mãos dos assaltantes. Voltando-se para o chefe deles, disse-lhe com suavidade a rainha:

– Não me censurarás, amigo, de te haver feito vã promessa quando garanti que serias enforcado.

O mago Sembobitis e o eunuco Menkera, que ladeavam Abner, puseram-se aos gritos mal viram o seu príncipe estendido no chão, imóvel, com uma faca enterrada no ventre. Soergueram-no com precaução. Sembobitis, que excercia na arte da medicina, viu que ele ainda respirava. Fez-lhe um rápido curativo, enquanto Menkera enxugava a baba que escorria da boca do rei. Amarraram-no, em seguida, sobre um cavalo e conduziram-no vagarosamente até o palácio da rainha.

Durante quinze dias Baltasar esteve subjugado por violento delírio. Falava sem cessar no panelão fumegante, no musgo do córrego e chamava aos gritos por Balkis. Finalmente, no décimo sexto dia, abrindo os olhos, viu à sua cabeceira Sembobitis e Menkera, mas não avistou a rainha.

– Onde está ela? Que faz ela?

– Senhor, respondeu-lhe Menkera, ela está encerrada com o rei de Comagena.

– Combinam, sem dúvida, trocas de mercadorias, ajuntou o sábio Sembobitis. Mas não vos perturbeis dessa forma, senhor, porque vossa febre recomeçará.

– Quero vê-la! exclamou Baltasar.

E atirou-se em direção do apartamento da rainha sem que o ancião ou o eunuco pudessem retê-lo. Ao chegar diante da alcova, dela viu sair o rei de Comagena todo coberto de ouro e brilhante como um sol.

Balkis, reclinada sobre leito de púrpura, sorria, de olhos fechados.

– Minha Balkis, minha Balkis! soluçou Baltasar.

Ela porém nem voltou a cabeça e parecia prolongar um sonho.

Baltasar, aproximando-se, tomou-lhe uma das mãos que ela retirou bruscamente.

– Que quereis de mim? perguntou a mulher.

– Sois vós que perguntais! respondeu o rei negro desfazendo-se em lágrimas.

Balkis volveu-lhe uns olhos tranqüilos e duros, e Baltasar compreendeu que ela de tudo esquecera. Recordou-lhe então, a noite da torrente.

– Na verdade, não sei que pretendeis dizer, senhor. Não vos fez bem o vinho de palmeira! Estivestes sonhando por certo.

– Como! exclamou o infeliz príncipe torcendo os braços, teus beijos e a facada de que guardo o sinal, são por acaso sonhos! . . .

Ela se levantou. As pedrarias de sua veste produziram ruído semelhante à saraiva e expediram cintilações.

– Senhor, disse ela, esta é a hora em que se reúne o meu conselho. Não disponho de tempo para esclarecer os sonhos de vosso cérebro enfermo. Ide repousar. Adeus!

Baltasar, sentindo-se desfalecer, esforçou-se por não mostrar sua fraqueza à perversa mulher, e correu para sua câmara, onde tombou desmaiado, com a ferida reaberta.

Três semanas permaneceu insensível e feito morto, mas, sentindo-se reanimado no vigésimo segundo dia, segurou a mão de Sembobitis, que o velava em companhia de Menkera, e protestou soluçando:

– Oh! meus amigos, quanto sois felizes, um por ser velho e outro por aos velhos assemelhar-se! . . . Mas não! Não há felicidade no mundo, nele tudo é mau, pois que o amor é um mal e Balkis é má.

– A sabedoria restitui a felicidade, respondeu Sembobitis.

– Gostaria de experimentar, disse Baltasar. Mas partamos imediatamente para a Etiópia.

Como perdera o que amava, resolveu consagrar-se à sabedoria e vir a ser um mago. Se esta resolução não lhe dava prazer, trar-lhe-ia, ao menos, um pouco de calma. Toda a noite, sentado no terraço de seu palácio, em companhia do mago Sembobitis e do eunuco Menkera, contemplava ele as palmeiras imóveis no horizonte, ou atentava, à luz da lua, para os crocodilos que, como troncos de árvores, flutuavam sobre o Nilo.

– Nunca se cansa de admirar a natureza, dizia Sembobitis.

– Sem dúvida, respondia Baltasar. Mas há na natureza coisas mais belas que as palmeiras e os crocodilos.

E assim falava porque se lembrava de Balkis.

Sembobitis, que era velho, retomava:

– Há o fenômeno das enchentes do Nilo que é admirável e que já expliquei. O homem é feito para compreender.

– Ele é feito para amar, retrucava Baltasar suspirando. Há coisas que não se explicam.

– Quais? perguntava Sembobitis.

– A traição de uma mulher, respondia o rei.

Contudo, estando Baltasar resolvido a ser um mago, mandou construir uma torre do alto da qual se descortinavam diversos reinos e toda a extensão do céu. Era de tijolos e elevava-se acima das demais torres. Levou dois anos a ser construída e nela despendeu Baltasar todo o tesouro do rei seu pai. Toda noite subia ele ao topo dessa torre, e, lá, observava o céu sob a direção de Sembobitis.

– As figuras do céu são os signos de nossos destinos, dizia-lhe Sembobitis.

Ao que o rei replicava:

– … preciso admitir que esses signos são obscuros. Mas, enquanto eu os estudo, não penso em Balkis, o que é um grande bem.

O mago ensinava-lhe, entre outras verdades de útil conhecimento, que as estrelas são fixas como pregos na abóbada celeste e que há cinco planetas, a saber: Bel, Merodach e Nebo, que são machos, e Sin e Mílita que são fêmeas.

– A prata, dizia-lhe ele ainda, corresponde a Sin, que é a lua, o ferro a Merodach, o estanho a Bel.

E o bom Baltasar dizia:

– Eis aí conhecimentos que desejo adquirir. Enquanto estudo a astronomia, não penso nem em Balkis nem no que quer que seja deste mundo. As ciências são benéficas: elas impedem os homens de pensar. Sembobitis, ensina-me os conhecimentos que destroem nos homens a paixão e eu te cumularei de honrarias entre o meu povo.

Eis por que Sembobitis ensinou a sabedoria ao rei. Com ele Baltasar aprendeu apotelesmática, segundo os princípios de Astrampsicos, de Gobrias e de Pazatas. Baltasar, à medida que observava as doze casas do sol, pensava menos em Balkis. Menkera, que disso se apercebeu, demonstrou grande alegria:

– Confessai, senhor, disse-lhe um dia, que a rainha Balkis ocultava debaixo das vestes de ouro pés fendidos como são os das cabras…

– Quem te contou semelhante tolice? perguntou o rei.

– … a crença pública, senhor, tanto em Sabá quanto na Etiópia, respondeu o eunuco. Todos por aí afirmam que a rainha Balkis tem a perna cabeluda e o pé feito de dois chifres pretos.

Baltasar deu de ombros. Sabia que as pernas e os pés de Balkis eram feitos como os pés e as pernas de outras mulheres e perfeitamente belos. No entanto, essa idéia prejudicou-lhe a lembrança daquela que tanto amara. Pareceu-lhe afrontoso que a beleza de Balkis não estivesse isenta de ofensas na imaginação dos que a ignoravam. A idéia de que possuíra uma mulher, na verdade bela, mas que passava por monstruosa, provocou verdadeiro mal-estar e não desejou mais rever Balkis. De alma simples era Baltasar, mas o amor é sempre um sentimento assaz complicado. A contar desse dia, o rei fez grandes progressos em magia e em astrologia. Era extremamente atento às conjunções dos astros e tirava os horóscopos com tanta exatidão quanto o próprio sábio Sembobitis.

– Sembobitis, dizia-lhe, tu respondes com a cabeça pelo acerto dos meus horóscopos?

E o sábio Sembobitis respondia-lhe:

– Senhor, a ciência é infalível, mas os sábios sempre se enganam.

Baltasar tinha um belo talento natural, e afirmava:

– Nada existe de mais verdadeiro do que o que é divino, mas o divino nos é oculto. Procuramos em vão a verdade. Contudo, eis que descobri uma estrela nova no céu. … bela, parece vivente e, quando cintila, dir-se-ia um olho celeste que pisca com doçura. Feliz, feliz, feliz, quem nascer sob essa estrela! Sembobitis, vê que olhar nos lança esse astro encantador e magnífico.

Mas Sembobitis não viu a estrela, porque não a queria ver. Sábio e velho, não gostava de novidades.

E Baltasar repetia sozinho no silêncio da noite:

– Feliz, feliz, feliz, quem nascer sob essa estrela!

V

Ora, por toda a Etiópia e pelos reinos vizinhos propagou-se o rumor de que o rei Baltasar não mais amava Balkis.

Quando a notícia atingiu o país dos sabeus, Balkis indignou-se como se tivesse sido traída. Correu para o rei de Comagena, que na cidade de Sabá esquecia o seu império, e exclamou:

– Sabeis, amigo, do que acabo de ter conhecimento?

Baltasar não mais me ama.

– Que importa! respondeu sorrindo o rei de Comagena, se nós nos amamos.

– Mas não sentis, então, a afronta que esse negro me faz?

– Não, respondeu o rei de Comagena, não a sinto.

Balkis despediu-o ignominiosamente e ordenou ao seu grão-vizir tudo preparar para uma viagem à Etiópia.

– Partiremos esta noite mesmo, disse ela. Se antes do pÙr-do-sol, não estiver tudo preparado, mando cortar-te a cabeça.

Depois, quando se viu sozinha, pôs-se a soluçar:

– Amo-o! Ele não mais me ama e eu o amo! suspirava com toda a sinceridade de seu coração.

Ora, certa noite em que estava no topo da torre, a observar a estrela miraculosa, Baltasar, descendo o olhar para a terra, viu uma longa fileira negra, que serpenteava ao longe, sobre a areia do deserto, como um exército de formigas. Pouco a pouco, o que lhe parecera formigas avultou e tornou-se assaz nítido para que o rei verificasse que eram cavalos, camelos e elefantes.

Aproximando-se da cidade a caravana, Baltasar distinguiu as cimitarras resplandecentes e os cavalos negros dos guardas da rainha de Sabá. E, reconhecendo a própria rainha, sentiu-se fortemente perturbado. Percebeu que ia amá-la outra vez. A
estrela brilhava no zênite com esplendor maravilhoso. Embaixo, Balkis, reclinada numa liteira de púrpura e ouro, era pequena e brilhante como a estrela.

Baltasar sentiu-se atraído para ela por uma força violenta. Todavia, num esforço desesperado, voltou a cabeça e, levantando os olhos, reviu a estrela. Então a estrela assim falou
– Glória a Deus nos céus e paz na terra aos homens de boa vontade. Apanha uma medida de mirra, bom rei Baltasar, e segue-me. Eu te conduzirei aos pés do menino que acaba de nascer num estábulo, entre o asno e o boi. Esse menino é o rei dos reis. Ele consolará os que querem ser consolados. Ele te chama, Baltasar, a ti cuja alma é tão sombria quanto o rosto, mas cujo coração é simples como o de uma criança. Ele te escolheu porque sofreste, e ele te dará a riqueza, a alegria e o amor. Ele te dirá: sê pobre com júbilo, essa é a verdadeira riqueza. Ele te dirá ainda: a verdadeira alegria está na renúncia à alegria. Ama-me e não ames as criaturas senão em mim, porque somente eu sou o amor.î

A estas palavras, uma paz divina difundiu-se como uma luz sobre o semblante sombrio do rei. Baltasar, arrebatado, escutava a estrela. E sentia que estava se tornando um novo homem. Sembobitis e Menkera, prosternados, as frontes tocando a pedra, também a adoravam. A rainha Balkis observava Baltasar e compreendeu que jamais haveria amor para ela naquele coração transbordante do amor divino. Empalideceu de
despeito e deu ordem à caravana de regressar imediatamente às terras de Sabá.

Quando a estrela cessou de falar, o rei e seus dois companheiros desceram da torre. Em seguida, preparada a medida de mirra, organizaram uma caravana e saíram para onde os conduzia a estrela. Viajaram longo tempo por desconhecidas terras, sendo que a estrela marchava adiante deles.

Um dia, achando-se num lugar onde três caminhos se encontravam, viram eles dois reis que avançavam com numeroso séquito. Um era jovem e branco de rosto. Saudou Baltasar e disse-lhe:

– Chamo-me Gaspar, sou rei e vou levar ouro como presente ao menino que acaba de nascer em Belém de Judá.

O segundo rei adiantou-se por sua vez. Era um velho cuja barba branca lhe cobria o peito.

– Chamo-me Melchior, disse ele, sou rei e vou levar incenso à divina criança que vem ensinar a verdade aos homens.

– Sigo o mesmo caminho de vós, respondeu Baltasar; venci minha luxúria, e por isso a estrela me falou.

– Eu venci meu orgulho, disse Melchior, e por isso fui chamado.

– Eu venci minha crueldade, disse Gaspar, e por isso vou convosco.

E os três reis magos prosseguiram juntos a viagem. A estrela, que eles tinham visto no
Oriente, precedeu-os sempre até que se deteve ao chegar sobre o lugar onde estava o menino.

Ora, vendo parar a estrela, eles se alegraram profundamente. E, entrando no estábulo, encontraram o menino com Maria, sua mãe, e, prosternando-se, adoraram-no. E, abrindo seus tesouros, ofertaram-lhe ouro, incenso e mirra, tal como está dito no Evangelho.

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