Urupês

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Monteiro Lobato

Os faroleiros

– Navio? Dava azo à dúvida uma luz vermelha a piscar na escuridão
da noite. Escuridão, não direi de breu, que não é
o breu de sobejo escuro para referir um negror daqueles. De cego de nascença,
vá.

Céu e mar fundia-os um só carvão, sem fresta nem pique
além da pinta vermelha que, súbito, se fez amarela.

– Lá mudou de cor. E farol.

E, como era farol, a conversa recaiu sobre faróis.

Eduardo interpelou-me de chofre sobre a idéia que eu deles fazia.

– A idéia de toda a gente, ora essa! – Quer dizer, uma idéia
falsa. "Toda a gente" é um monstro com orelhas d’asno e miolos
de macaco, incapaz duma idéia sensata sobre o que quer que seja. Tens
na cabeça, respeito a farol, uma idéia de rua recebida do vulgo
e nunca recurihada na matriz das impressões pessoais. Erro.

– Confesso-me capaz de abrir a boca a um auditório de casaca, se
me desse na telha discursar sobre o tema; mas não afianço que
o farol descrito venha a parecer-se com algum…

– Pois eu te asseguro, sem fazer pouco no teu engenho, que tal conferência,
ouvida por um faroleiro, poria o homem de olho parvo, a dizer como o outro:
Se percebo, sebo! – Acredito. Mas perceberia melhor uma tua? – retorqui abespinhado.

– É de crer. Já vivi uma inesquecível temporada no
farol dos Albatrozes e falaria de cadeira.

– Viveste em farol?!… – exclamei com espanto.

– E lá fui comparsa numa tragédia noturna de arrepiar os cabelos.
O escuro desta noite evoca-me o tremendo drama…

Estávamos ambos de bruços na amurada do Orion, em hora propícia
ao esbagoar dum dramalhão inédito. Esporeado na curiosidade,
provoquei-o.

– Vamos ao caso, que estes negrumes clamam por espectros que os povoem.
É calamidade à Shakespeare ou à Ibsen? – Assina o meu
drama um nome maior que o de Shakespeare…

-? ? ?

– … a Vida, meu caro, a grande mestra dos shakespeares maiores e menores.

Eduardo começou do princípio.

– O farol é um romance. Um romance iniciado na antiguidade com as
fogueiras armadas nos promontórios para norteio das embarcações
de remo e continuado séculos em fora até nossos possantes holofotes
elétricos. Enquanto subsistir no mundo o homem, o romance "Farol"
não conhecerá epílogo. Monótono como as calmarias,
embrecham-se nele, a espaços, capítulos de tragédia e
loucura – pungentes gravuras de Doré quebrando a monotonia de um diário
de bordo. O caso dos Albatrozes foi um deles. Gerebita meteu-se no farol aos
vinte e três anos. É raro isso.

– Quem é Gerebita? – Sabê-lo-ás em tempo. É raro
isso porque no geral só se metem nas torres homens maduros, quarentões
batidos pela vida e descrentes das suas ilusões. Deixar a terra na
quadra verdolenga dos vinte anos é apavorante. A terra!…

Nós mal damos tento da nossa profunda adaptação ao
meio terreno. A sua fixidez, o variegado de aspectos, o bulício humano,
a cidade, os campos, a mulher, as árvores… Conhecem os faroleiros
melhor do que ninguém o valor dessas teias. Enlurados num bloco de
pedra, tudo quanto para nós é sensação de todos
os instantes, neles é saudade e desejo. Cessam os ouvidos de ouvir
a música da terra, rumorejo de arvoredo, vozes amigas, barulho de rua,
as mil e uma notas duma polifonia que nós sabemos que o é, e
encantadora, unicamente quando a segregação prolongada nos ensina
a lhe conhecer o valor. Cessam os olhos de rever as imagens que desde a meninice
lhes são habituais. Para os ouvidos só há ali, dia e
noite, ano e ano, o marulho das ondas às chicotadas no enrocamento
da torre; e para a vista, a eterna massa que ondula, ora torva, ora azul.
Variantes únicas, as velas que passam de largo, donairosas como garças,
ou os transatlânticos penachados de fumo. Figura a vida de um homem
arrancado à querência e assim posto, qual triste galé,
dentro duma torre de pedra, grudada como craca a um ilhéu. Terá
poesia de longe; de perto é alucinante.

– Mas o Gerebita…

– Uma leitura de Kipling despertara-me a curiosidade de conhecer um farol
por dentro.

– O Perturbador do Tráfego…

– Parabéns pela argúcia. Foi justamente a história
do Dowse o ponto inicial do meu drama. Esse desejo incubou-se-me cá
dentro à espera d’ocasião para brotar.

Certo dia fui espairecer ao cais – e lá estava, de mãos às
costas, a seguir o vôo dos joão-grandes e a notar a gama dos
verdes luzentes que à sombra dos barcos ondeia na água represada
dos portos, quando uma lancha abicou, e vi descer um homem de feições
duras e pele encorreada. Ao passar por um magote de catraeiros, um deles chasqueou
em tom insinuativo: – "Gerebita, como vai a Maria Rita?" O desembarcadiço
rosnou um palavrão de grosso calibre, e seguiu caminho, de sobrecenho
carregado.

Interessou-me aquele tipo.

– "Quem é?", indaguei.

– "Pois quem há de ser senão o faroleiro dos Albatrozes?
Não vê a lancha?" De fato, a lancha era do farol. A velha
idéia deu-me cotoveladas: é hora! Fui-lhe no encalço.

– "Sr. Gerebita…" O homem entreparou, como admirado de ouvir-se
nomear por boca desconhecida. Emparelhei-me com ele e, enquanto andávamos,
fui-lhe expondo os meus projetos.

– "Não pode ser", respondeu; "o regulamento proíbe
sapos na torre. Só com ordem superior." Ora, eu tenho corrido
mundo, sei que marosca é essa de ordens superiores. Meti a mão
no bolso e cochichei-lhe o argumento decisivo. O faroleiro relutou uns instantes,
mas corrompeu-se mais depressa do que esperei. Guardou o dinheiro e disse:
– "Procure o Dunga, patrão da Gaivota Branca, terceiro armazém.
Diga-lhe que já falou comigo. De quinta-feira em diante. E bico, veja
lá!" Prometi-lho caladíssimo, e tornei ao cais à
cata do Dunga. Que sim – foi a resposta do catraeiro, ilhéu palavroso,
logo que expus o negócio -‘ já fizera isso certa vez a "outro
maluco" e sabia prender a língua para não atanazar a vida
aos amigos. E como me informasse do faroleiro: – "É o Gerebita,
d’apelido ganho no Purus, onde serviu como grumete. Ao depois se meteu na
lanterna, p’r’amor d’amores, o alarve, como se faltassem elas por aí,
e bem catitas. Mulheres! A mim é que não me empecem, não,
as songuirihas. O demo que as tolha que eu…

E foi pelas mulheres além, a dar de rijo, com razões nem melhores
nem piores que as de Schopenhauer.

No dia aprazado, antemanhã, a Gaivota largou de rumo ao farol. Saltei
num rude atracadouro de difícil abordagem, e encontrei o faroleiro
ocupado em polir os metais da lanterna. Recebeu-me de boa sombra, largando
o esfregão para fazer as honras da casa. Examinei tudo, dos alicerces
ao lanternim, e à hora do almoço já entendia de farol
mais que uma enciclopédia. Gerebita deu trela à língua
e falou do ofício com melancólica psicologia. Também
contou sua vida desde menino, a grumetagem no Purus, sua paixão pelo
mar e por fim a entrada para o farol aos vinte e três anos de idade.

– "Por que assim tão moço?" – "Caprichos do
coração, má sorte, coisas…", respondeu com ar
triste; e acrescentou após uma pausa, mudando de tom: – "Pois
a vida é cá isto que vê. Boazinha, hein? Entretanto, boa
ou má, temos, os faroleiros, um orgulho: sem nós, essa bicharada
de ferro que passeia nas águas fumando seus dois, seus três charutos…"
– "Lá vem um!" – interrompeu-se, fisgando com a luneta uma
fumaça remota.

– "Bandeira alemã… duas chaminés… rumo sul… Há
de ser um ‘Cap’ – o Trafalgar, talvez. Seja lá que diabo for, vá
com Deus. Mas, como ia dizendo, sem os faroleiros a manobrarem a ‘óptica’,
esses comedores de carvão haviam de rachar à toinha aí
pelos bancos de areia. Basta cair a cerração e já se
põem tontos, a urrar de medo pela boca das sereias, que é mesmo
um cortar a alma à gente. Porque então nem farol nem caracol.
É a cegueira. Navegam com a Morte no leme. Fora disso, salva-os o foguinho
lá de cima. Pouco antes de minha entrada para aqui houve desgraça.
Um cargueiro da Bremen rachou o bico ali no Capelão… Quem é
o Capelão? Ah! ah! ah! O Capelão… Pois o Capelão é
o raio da terceira pedra a boreste. São três deste lado, a Menina,
que é a primeira, a Curutuba, que é a do meio. A criminosa é
o Capelão, que reponta mais ao largo e só mostra a coroa nas
grandes vazantes. Cá a bombordo ainda há duas, a Virgem e a
Maldita, onde bateu o cargueiro Rotterdam." – "É aquela lisinha,
acolá?" – "Uma coitada que nem nome tem. É mansa,
está muito perto da terra, não faz mal a navio. Ali mora um
anequim (2), bichanca de tamanho do diabo, que gosta de virar canoas. Mas,
aqui para nós, moço, isso é embromação.

Peixe mora em todo o mar, não tem toca como bicho de terra. É
abusão de pescador. Quando há mar, não se enxerga nada
por ali; mas se a água é serena e vem yindo a vazante, vai aparecendo
um lombo de pedra lisa com jeito de peixe. Passa um pescador atolambado, vê
aquilo de longe. ‘É anequim! É anequim!’ e toca a safar, com
o medão n’alma. Se acontece embravecer a água, e dá temporal,
e a canoa vira: ‘Qu’é de Fulano?’ Tá, tá, tá,
foi o anequim! Toda a gente pega, feito mulher velha. ‘Foi o anequim do farol!’
Ora aí está como são as coisas. há muito anequim
e tintureira (3) por aqui. Onde é mar sem cação? Mas
dizer que um tal mora aqui ou ali, isso é embroma." E na sua pinturesca
linguagem de marítimo, que às vezes se tornava prodigiosamente
técnica, narrou-me toda a história daquelas paragens malditas.
Falou de como, segundo a tradição, se foram batizando os arrecifes;
falou dos crimes de cada um; das hecatombes periódicas de aves noturnas
que, cegadas pela luz, batem de peito contra os vidros da lanterna, juncando
o chão de corpinhos latejantes; das medonhas tormentas nas quais o
farol estremece como a tiritar de pavor. De que não falou Gerebita
naquele inesquecível dia? – "E o ajudante? Tem-no cá?",
perguntei.

O rosto do meu faroleiro mudou de expressão. Vi de relance que eram
inimigos.

– "É aquele estupor que lá pesca", disse, apontando
da janela um vulto imóvel, acocorado num penedo. "Está
a apanhar garoupinhas. É o Cabrea. Mau companheiro, mau homem…

Entreparou. Percebi que mascava uma confidência difícil. Mas
a confidência denunciou-se apenas. Gerebita sacudiu a cabeça
e murmurou como de si para si: – "Está cá de pouco, e é
o único homem no mundo que não podia cá estar. Já
reclamei do capitão do porto, já mostrei o perigo. Mas, qual!…"
Estranha criatura, o homem! Insulados do mundo naquela frágua, ambos
náufragos da vida, o ódio os separava…

Não faltavam no farol, entretanto, acomodações para
as famílias dos seus guardiães. Por que não as tinham
ali? Seria um bocado de mundo a lenir as agruras do emparedamento. Interpelei-o;
Gerebita retrucou-me de modo enviesado.

– "Família não tenho, isto é, tenho e não
tenho. Tenho, porque sou casado, e não tenho porque… Histórias!
Estas coisas de família é bom que fiquem com a gente."
Notei de novo que a pique duma revelação mascava o segredo por
desconfiança ou pudor. Suas feições endureceram. Sombras
más anuviaram-lhe a fisionomia. E mais torvo ainda me pareceu quando
Cabrea entrou, sobraçando um balaio de pescado. Tipo de má cara,
passou em direitura à cozinha sem nos volver um olhar. Mal se sumiu,
Gerebita exclamou: "Raio do diabo!" – assentando num caixote expiatório
um murro de fender pinho. Depois: – "O mundo é tão grande,
há tanta gente no mundo, e cai-me aqui justamente o único ajudante
que eu não podia ter…" – "Por quê?" – "Por
quê?… Porque… é um louco." Entre o primeiro e o segundo
"porquê" notei transição radical. Dúbio
o primeiro, o segundo afigurou-se-me resoluto, como iluminado pelo clarão
duma idéia brotada no momento.

Desde esse dia nunca mais o faroleiro abandonou o tema da loucura do outro.
Demonstrava-ma de mil maneiras.

– "E aqui onde até os sãos perdem a tramontana",
argumentava ele, "um já assim rachado de telha aos três
por dois rebenta como bomba no fogo. Eu jogo que ele não vara o mês.
Não vê seus modos?" Metade por sugestão, metade por
observação leviana, razoável me pareceu a profecia; e
como sem cessar Gerebita malhasse na mesma tecla, acabei por convencer-me
de que o casmurro ajudante era um fadado ao hospício, com pouco tempo
de equilíbrio nos miolos.

Um dia Gerebita abordou a questão nestes termos: – "Quero que
o senhor me resolva um caso. Estão dois homens numa casa; de repente
um enlouquece e rompe, como cação esfomeado, para cima do outro.
Deve o outro deixar-se matar como carneiro ou tem o direito de atolar a faca
na garganta do bicho?" Era por demais clara a consulta. Respondi como
um rábula positivo: – "Se Cabrea enlouquecesse e o agredisse,
matá-lo seria um direito natural de defesa – não havendo socorro
à mão. Matar para não morrer não é crime
– mas isto só em último caso, você compreende." –
"Compreendo, compreendo", respondeu-me distraidamente, como quem
lá segue os volteios duma idéia secreta; e depois de longa pausa:
"Seja o que Deus quiser murmurou entre si, suspirando e recaindo em cismas.

Deixei-me ficar à janela a ver cair a noite. Nada mais triste do
que as ave-marias no ermo. A treva espessava as águas e absorvia no
céu os derradeiros palores da luz. No poente, um leque aluarado enrubescia
nas varetas, com dedadas sangrentas de nuvens a barrá-lo de listrões
horizontais.

Triste…

A ardósia do mar; as primeiras estrelinhas entreluzindo a medo; o
marulho na pedra, tchá, tchá, compassado, eterno… A alma confrangeu-se-me
de angústia. Vi-me náufrago, retido para sempre num navio de
pedra, grudado como desconforme craca na pedranceira da ilhota. E pela primeira
vez na vida senti profundas saudades dessa coisa sórdida, a mais reles
de quantas inventou a civilização – o "café",
com o seu tumulto, a sua poeira, o seu bafio a tabaco e a sua freguesia habitual
de vagabundíssimos "agentes de negócios"…

Correram dias. Minto. No vazio daquele dessaborido viver no ermo o tempo
não corria – arrastava-se com a lentidão da lesma por sobre
chão liso e sem fim. Gerebita tornara-se enfadonho. Não mais
narrava pinturescos incidentes da sua vida de marujo. Aferrado à idéia
fixa da loucura do Cabrea, só cuidava de demonstrar-me os seus progressos.
Fora desse tema sinistro, sua ocupação era seguir de olhos os
navios que repontavam ao largo, até vê-los sumirem-se na curva
do horizonte.

Velas, poucas alvejavam, tirante barquinhas de pescadores. Mas uma que surgisse
lá nos levava os olhos e a imaginação. Como se casa bem
com o mar o barco de vela! E que sórdido baratão craquento é
ao pé dele o navio a vapor! Escunas, corvetas, pequeninos cutters,
fragatas, lugres, brigues, iates… O que lá vai passado de leveza
e graça!…

Substituem-nas, às garças leves, os feios escaravelhos de
ferro e piche; a elas, que viviam de brisas, os negros comedores de carvão,
bicharocos que mugem roncos de touro enrouquecido.

Progresso amigo, tu és cômodo, és delicioso, mas feio…

Que fizeste da coisa linda que é a vela enfunada? Do barco à
antiga, onde ressoavam canções de maruja, e todo se enleava
de cordame, e trazia gajeiro na gávea, e lendas de serpentes marinhas
na boca dos marinheiros, e a Nossa Senhora dos Navegantes em todas as almas,
e o medo das sereias em todas as imaginações? Desfez-se a poesia
do reino encantado de Anfitrite ao ronco do Lusitânias, hotéis
flutuantes com garçons em vez de "lobos-do-mar", incaracterísticos,
cosmopolitas, sem donaire, sem capitães de suíças, pitorescos
no falar como seiscentos milhões de caravelas. O fumo da hulha sujou
a aquarela maravilhosa que desde Hanon e Ulisses vinha o veleiro pintando
sobre a tela oceânica…

– Se paras o caso dos loucos e te metes por intermezzos líricos para
uso de meninas olheirudas, vou dormir. Volta ao farol, romanticão de
má morte.

– Eu devia castigar o teu prosaísmo sonegando-te o epílogo
do meu drama, ó filho do "café" e do carvão!
– Conta, conta…

Certa tarde, Gerebita chamou minha atenção para o agravamento
da loucura de Cabrea, e aduziu várias provas concludentes.

– "Queira Deus não seja hoje!…" – "Tens medo?"
– "Medo? Eu? De Cabrea?" Queria que visses a estranha expressão
de ferocidade que lhe endureceu o rosto!…

A conversa parou aí. Gerebita chupava cachimbadas nervosas, fechado
de sobrecenho como quem rumina uma idéia fixa. Deixou-me, e logo em
seguida subiu. Como anoitecesse, recolhi-me pouco depois e deitei-me. Dormi
e sonhei. Sonhei um sonho guinholesco, agitadíssimo, com lutas, facadas,
o diabo. Lembro-me que, agredido por um facínora, desfechei contra
ele cinco tiros de revólver; as balas, porém, grudaram-se à
parede e deram de ressoar dum modo que me despertou. Mas acordado continuei
a ouvir o mesmo barulho, vindo de cima, da lanterna.

Pressinto a catástrofe esperada. Salto da cama e aguço o ouvido:
barulho de luta. Corro à escada, galgo-a aos três degraus e no
topo esbarro com a porta fechada. Tento abriLa: não cede. Escuto: era
de fato luta. Rolavam corpos pelo chão, fazendo retinir os vidros da
lanterna, e ouvia-se um resfolego surdo, entremeado de embates contra os móveis.

Trevas absolutas. Nenhuma réstia de luz coava para a escada.

Minha situação era esquerda. Ficar ali, inútil, quando
portas adentro dois homens se entrematavam? Permanecia eu nessa dubiedade,
quando choque violento escancaroume a porta. Um clarão de sol chofrou-me
os olhos. Senti nas pernas um tranco – e rodei escada abaixo de cambulhada
com dois corpos engalfinhados. Ergui-me, tonto, e vi em rebolo no chão
os dois faroleiros.

Atirei-me à Luta em auxílio de Gerebita.

– "Dois contra um!", gemeu Cabrea, sufocado. "É covardia!"
Pela primeira vez lhe ouvi a voz – e hoje noto que nada nela denunciava loucura.
No momento pensei diversamente, se é que pensei alguma coisa.

Gerebita, com grande assombro meu, também me repeliu.

– "Não! Não! Eu só!" Nisto, um pegão
de nortada, varrendo a torre, trancou a porta do lanternim com estrondo. Envolveu-nos
de novo a escuridão.

E começa aqui o horror… Os rugidos que ouvi, os arrancos e socões
formidáveis da luta nas trevas, a minha ansiedade… Pavorosos minutos
de vida que não desejo renovados.

Perdi a noção do tempo. Durou muito aquilo? Não sei
dizer. Só sei que a tantas ouvi escapar-se ao peito de Gerebita um
urro de dor, e logo em seguida uma imprecação, "Desgraçado!",
cujas derradeiras sílabas morreram num trincar de dentes atassalhando
carnes. Cabrea grugulejou uns roncos que se casaram com o arquejar do peito
de Gerebita, e a luta esmoreceu.

Sem palavras na boca, cegado pela escuridão, eu só ouvia,
fora, os uivos da nortada, e ali, aquele arquejo do vencedor exausto caído
à beira do vencido. Com os olhos da imaginação eu via
esse quadro, que com os da cara enxergava tanto como se os tivera envoltos
em veludo negro.

Não te conto os pormenores do epílogo. Obtive luz e o que
vi não te conto. Impossível pintar o hediondo aspecto de Cabrea
com a carótida estraçalhada a dente, caído num lago de
sangue. Ao seu lado Gerebita, com a cara e o peito vermelhos, a mão
sangrenta, estatelava-se no chão, sem sentidos. Os meus transes diante
daqueles corpos martirizados, àquela hora da noite – daquela terrível
noite negra como esta e sacudida por um vento do inferno!…

Na manhã seguinte, Gerebita pousou-me a mão sobre o ombro
e disse: – "O mar não leva daqui os corpos à praia e o
mundo não precisa saber de que morreu Cabrea. Caiu n’água morte
de marinheiro – e o moço é testemunha de que matei para não
morrer. Foi defesa. Agora vai jurar-me que isto ficará para sempre
entre nós." Jurei-o lealmente, tocando de leve a mão mutilada.
E ele, num acesso de infinito desalento, quedou-se imóvel, a olhar
para o chão, murmurando insistentemente: – "Eu bem avisei. Não
me acreditaram. Agora, está aí, está aí, está
aí…" Nesse mesmo dia veio buscar-me o Dunga. Mal a Gaivota largou,
narrei-lhe a morte do faroleiro, romanceando-a: Cabrea, louco a despenhar-se
torre abaixo e a sumir-se para sempre no seio das ondas.

Dunga, assombrado, susteve no ar os remos.

– "Pois morreu? E louco." – "Está claro!" – "Claro
que lhe parece, que a mim…

– "Conhecia-o?" – "Não conhecia outra coisa. Des’que
furtou a Maria Rita…" – "Que Maria Rita?" – "Pois a
Maria Rita, mulher do Gerebita, então não sabe? Que ele seduziu,
hom’essa." Abri a minha maior boca e arregalei o que pude os olhos.

– "Como sabe disso?" – "É boa! Sei porque sei, como
sei que aquela gaivota que ali vai é uma e que este mar é mar.
A Maria Rita era uma morena de truz, perigosa como o demo. O tolo do Gerebita
derreou-se d’amores pela bisca e lá casou. E vai ela, a songuinha,
mal o homem saía no Purus, metia em casa ao Cabrea. E nesse jogo viveram
até que um dia fugiram juntos para outras terras. O pobre Gerebita
se não acabou de paixão é que é teso. Mas entrou
para o farol, o que é também um modo de morrer p’r’o mundo.
Pois bem. A bola vira, o tempo corre, e vai, senão quando, quem mete
o Governo no farol em lugar do defunto Gabriel? Ao Cabrea! Ao Cabrea que também
andava descrente da vida porque a Rita lhe fugira com terceiro. Coisas do
mundo. Diz-me agora vossoria que o homem enlouqueceu, e rolou no penedo, e
lá o rói o peixe. Está bem. Antes assim, que do contrário
era em ponta de faca que aquilo acabaria…" Calei-me. Há situações
na vida que as idéias embaralham de tal forma que é de bom conselho
deixarmo-las se assentarem por si. Eis como…

– … o meu grande amigo Eduardo foi empulhado por um assassino vulgar!
– Perdão. O fato de se não manejarem floretes não tira
àquele pugilato o caráter de duelo.

– "Cavalleria rusticana", então? – E por que não?

Notas: 1. O conto "Os Faroleiros" foi publicado na Revista do Brasil,
nº 20, de agosto de 1917, sob o título de: "Cavalleria Rusticana".
Numa carta a Godofredo Rangel, Lobato explica a mudança: "Minha
Cavalleria Rusticana, que vou mudar para Os Faroleiros porque toda a gente
confunde "cavaleria" com "cavalaria" (que cavalos!)…

2. Anequim: Espécie de tubarão.

3. Tintureira: Espécie de tubarão.

O engraçado arrependido

Francisco Teixeira de Souza Pontes, galho bastardo duns Souza Pontes de trinta
mil arrobas afazendados no Barreiro, só aos trinta e dois anos de idade
entrou a pensar seriamente na vida.

Como fosse de natural engraçado, vivera até ali à custa
da veia cômica, e com ela amanhara casa, mesa, vestuário e o
mais. Sua moeda corrente era micagens, pilhérias, anedotas de inglês
e tudo quanto bole com os músculos faciais do animal que ri, vulgo
homem, repuxando risos ou matracolejando gargalhadas.

Sabia de cor a Enciclopédia do Riso e da Galhofa, de Fuão
Pechincha, o autor mais dessaborido que Deus botou no mundo; mas era tal a
arte do Pontes, que as sensaborias mais relambórias ganhavam em sua
boca um chiste raro, de fazer os ouvintes babarem de puro gozo.

Para arremedar gente ou bicho, era um gênio. A gama inteira das vozes
do cachorro, da acuação aos caititus ao uivo à lua, e
o mais, rosnado ou latido, assumia em sua boca perfectibilidade capaz de iludir
aos próprios cães – e à lua.

Também grunhia de porco, cacarejava de galinha, coaxava de untariha,
ralhava de mulher velha, choramingava de fedelho, silenciava de deputado governista
ou perorava de patriota em sacada. Que vozeiro de bípede ou quadrúpede
não copiava ele às maravilhas, quando tinha pela frente um auditório
predisposto? Descia outras vezes à pré-história. Como
fosse d’algumas luzes, quando os ouvintes não eram pecos ele reconstituía
os vozeirões paleontológicos dos bichos extintos – roncos de
mastodontes ôu berros de mamutes ao avistarem-se com peludos homos repimpados
e fetos arbóreos – coisa muito de rir e divulgar a ciência do
sr. Barros Barreto.

Na rua, se pilhava um magote de amigos parados à esquina, aproximava-se
de mansinho e – nhoc! – arremessava um bote de munheca à barriga da
perna mais a jeito.

Era de ver o pinote assustado e o – passa! nervoso do incauto, e logo em
seguida as risadas sem fim dos outros, e a do Pontes, o qual gargalhava dum
modo todo seu, estrepitoso e musical – música d’Qffenbach.

Pontes ria parodiando o riso normal e espontâneo da criatura humana,
única que ri além da raposa bêbada; e estacava de golpe,
sem transição, caindo num sério de irresistível
cômico.

Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações
mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no
sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava
abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade.
Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam;
se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns,
outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria
o bico, Nossa Senhora!, eram cascalhadas, eram rinchavelhos, eram guinchos,
engasgos, fungações e asfixias tremendas.

– É da pele, este Pontes! – Basta, homem, você me afoga! E
se o pândego se inocentava, com cara palerma: – Mas que estou fazendo?
Se nem abri a boca…

– Quá, quá, quá – a companhia inteira, desmandibulada,
chorava no espasmo supremo dos risos incoercíveis.

Com o correr do tempo, não foi preciso mais que seu nome para deflagrar
a hilaridade. Pronunciando alguém a palavra "Pontes", acendia-se
logo o estopim das fungadelas pelas quais o homem se alteia acima da animalidade
que não ri.

Assim viveu Pontes até a idade do Cristo, numa parábola risonha,
a rir e fazer rir, sem pensar em nada sério vida de filante que dá
momos em troca de jantares e paga continhas miúdas com pilhérias
de truz.

Um negociante caloteado disse-lhe um dia entre frouxos de riso babado: –
Você ao menos diverte, não é como o major Carapuça
que caloteia de carranca.

Aquele recibo sem selo mortificou seu tanto ao nosso pândego; mas
a conta subia a quinze mil réis – valia bem a pelotada. Entretanto,
lá ficou a lembrança dela espetada como alfinete na almofadinha
do amor-próprio. Depois vieram outros e outros, estes fincados de leve,
aqueles até a cabeça.

Tudo cansa. Farto de tal vida, entrou o hilarião a sonhar as delícias
de ser tomado a sério, falar e ser ouvido sem repuxo de músculos
faciais, gesticular sem promover a quebra da compostura humana, atravessar
uma rua sem pressentir na peugada um coro de "Lá vem o Pontes!"
em tom de quem se espreme na contenção do riso ou se ajeita
para uma barrigada das boas.

Reagindo, tentou Pontes a seriedade.

Desastre.

Pontes sério mudava de tecla, caía no humorismo inglês.
Se antes divertia como o Clown, passava agora a divertir como o Tony.

O estrondoso êxito do que a toda a gente se afigurou uma faceta nova
da sua veia cômica verteu mais sombra na alma do engraçado arrependido.
Era certo que não poderia traçar outro caminho na vida além
daquele, ora odioso? Palhaço, então, eternamente palhaço
à força? Mas a vida de um homem feito tem exigências sisudas,
impõe gravidade e até casmurrice dispensáveis nos anos
verdes. O cargo mais modesto da administração, uma simples vereança,
requer na cara a imobilidade da idiotia que não ri. Não se concebe
vereador risonho. Falta ao dito de Rabelais uma exclusão: o riso é
próprio à espécie humana, fora o vereador.

Com o dobar dos anos a reflexão amadureceu, o brio cristalizou-se,
e os jantares cavados deram a saber-lhe a azedo. A moeda pilhéria tornou-se-lhe
dura ao cunho; já a não fundia com a frescura antiga; já
usava dela como expediente de vida, não por fogança despreocupada,
como outrora. Comparava-se mentalmente a um palhaço de circo, velho
e achacoso, a quem a miséria obriga a transformar reumatismo em caretas
hílares como as quer o público pagante.

Entrou a fugir dos homens e despendeu bons meses no estudo da transição
necessária ao conseguimento de um emprego honesto. Pensou no balcão,
na indústria, na feitoria duma fazenda, na montagem dum botequim –
que tudo era preferível à paspalhice cômica de até
ali.

Um dia, bem maturados os planos, resolveu mudar de vida. Foi a um negociante
amigo e sinceramente lhe expôs os propósitos regeneradores, pedindo
por fim um lugar na casa, de varredor que fosse. Mal acabou a exposição,
o galego e os que espiavam de longe à espera do desfecho torceram-se
em estrondoso gargalhar, como sob cócegas.

– Esta é boa! E de primeiríssima! Quá! quá!
quá! Com que então… Quá! quá! quá! Você
me arruina os fígados, homem! Se é pela continha dos cigarros,
vá embora que me dou por bem pago! Este Pontes tem cada uma…

E a caixeirada, os fregueses, os sapos de balcão e até passantes
que pararam na calçada para "aproveitar o espírito",
desbocaram-se em quás de matraca até lhes doerem os diafragmas.

Atarantado e seriíssimo, Pontes tentou desfazer o engano.

– Falo sério, e o senhor não tem o direito de rir-se. Pelo
amor de Deus, não zombe de um pobre homem que pede trabalho e não
gargalhadas.

O negociante desabotoou o cós da calça.

– Fala sério, pff! Quá! quá! quá! Olha Pontes,
você…

Pontes largou-o em meio da frase, e se foi com a alma atenazada entre o
desespero e a cólera. Era demais. A sociedade o repelia, então?
Impunha-lhe uma comicidade eterna? Correu outros balcões, explicou-se
como melhor pôde, implorou. Mas por voz unânime, o caso foi julgado
como uma das melhores pilhérias do "incorrigível"
– e muita gente o comentou com a observação de costume: – Não
se emenda o raio do rapaz! E olhem que já não é criança…

Barrado no comércio, voltou-se para a lavoura. Procurou um velho
fazendeiro que despedira o feitor e expôs-lhe o seu caso.

Depois de ouvir-lhe atentamente as alegações, conclusas com
o pedido do lugar de capataz, o coronel explodiu num ataque de hilaridade.

– O Pontes capataz! 1h! 1h! 1h! – Mas…

– Deixe-me rir, homem, que cá na roça isto é raro.
1h! 1h! 1h! É muito boa! Eu sempre digo: graça como o Pontes,
ninguém! E berrando para dentro: – Maricota, venha ouvir esta do Pontes.
1h! 1h! 1h! Nesse dia, o infeliz engraçado chorou. Compreendeu que
não se desfaz do pé p’r’a mão o que levou anos a cristalizar-se.
A sua reputação de pândego, de impagável, de monumental,
de homem do chifre furado ou da pele, estava construída com muito boa
cal e rijo cimentado para que assim esboroasse de chofre.

Urgia, entretanto, mudar de tecla, e Pontes volveu as vistas para o Estado,
patrão cômodo e único possível nas circunstâncias,
porque abstrato, porque não sabe rir nem conhece de perto as células
que o compõem. Esse patrão, só ele, o tomaria a sério
– o caminho da salvação, pois, embicava por ali.

Estudou a possibilidade da agência do correio, dos tabelionatos, das
coletorias e do resto. Bem ponderados os prós e contras, os trunfos
e naipes, fixou a escolha na coletoria federal, cujo ocupante, major Bentes,
por avelhantado e cardíaco, era de crer não durasse muito. Seu
aneurisma andava na berra pública, com rebentamento esperado para qualquer
hora.

O ás de Pontes era um parente do Rio, sujeito de posses, em via de
influenciar a política no caso da realização de certa
reviravolta no governo. Lá correu atrás dele e tantas fez para
movê-lo à sua pretensão que o parente o despediu com promessa
formal.

– Vai sossegado que, em a coisa arrebentando por cá e o teu coletor
rebentando por lá, ninguém mais há de rir-se de ti. Vai,
e avisa-me da morte do homem sem esperar que esfrie o corpo.

Pontes voltou radioso de esperança e pacíentemente aguardou
a sucessão dos fatos, com um olho na política e outro no aneurisma
salvador.

A crise afinal veio; caíram ministros, subiram outros e entre estes
um politicão negocista, sócio do tal parente.

Meio caminho já era andado. Restava apenas a segunda parte.

Infelizmente, a saúde do major encruara, sem sinais patentes de declínio
rápido. Seu aneurisma, na opinião dos médicos que matavam
pela alopatia, era coisa grave, de estourar ao menor esforço; mas o
precavido velho não tinha pressa de ir-se para melhor, deixando uma
vida onde os fados lhe conchegavam tão fofo ninho, e lá engambelava
a doença com um regime ultrametódico. Se o mataria um esforço
violento, sossegassem, ele não faria tal esforço.

Ora, Pontes, mentalmente dono daquela sinecura, impacientava-se com o equilíbrio
desequilibrador dos seus cálculos. Como desembaraçar o caminho
daquela travanca? Leu no Chernoviz o capítulo dos aneurismas, decorou-o;
andou em indagações de tudo quanto se dizia ou se escreveu a
respeito; chegou a entender da matéria mais que o doutor Iodureto,
médico da terra, o qual, seja dito aqui à puridade, não
entendia de coisa nenhuma desta vida.

O pomo da ciência, assim comido, induziu-o à tentação
de matar o homem, forçando-o a estourar. Um esforço o mataria?
Pois bem, Souza Pontes o levaria a esse esforço! – A gargalhada é
um esforço, filosofava satanicamente de si para si. A gargalhada, portanto,
mata. Ora, eu sei fazer rir…

Longos dias passou Pontes alheio ao mundo, em diálogo mental com
a serpente.

– Crime? Não! Em que código fazer rir é crime? Se disso
morresse o homem, culpa era da sua má aorta.

A cabeça do maroto virou picadeiro de luta onde o "plano"
se batia em duelo contra todas as objeções mandadas ao encontro
pela consciência. Servia de juiz a sua ambição amarga
e Deus sabe quantas vezes tal juiz prevaricou, levado de escandalosa parcialidade
por um dos contendores.

Como era de prever, a serpente venceu, e Pontes ressurgiu para o mundo um
tanto mais magro, de olheiras cavadas, porém com um estranho brilho
de resolução vitoriosa nos olhos. Também notaria nele
o nervoso dos modos quem o observasse com argúcia – mas a argúcia
não era virtude sobeja entre os seus conterrâneos, além
de que estados d’alma do Pontes eram coisa de somenos, porque o Pontes…

– Ora o Pontes…

o futuro funcionário forjicou, então, meticulosos planos de
campanha. Em primeiro era mister aproximar-se do major, homem recolhido consigo
e pouco amigo de lérias; insinuar-se-lhe na intimidade; estudar suas
venetas e cachacinhas até descobrir em que zona do corpo tinha ele
o calcanhar-de-aquiles.

Começou freqüentando com assiduidade a coletoria, sob pretextos
vários, ora para selos, ora para informações sobre impostos,
que tudo era ensejo de um parolar manhoso, habilíssimo, calculado para
combalir a rispidez do velho.

Também ia a negócios alheios, pagar coisas, extrair guias,
coisinhas; fizera-se muito serviçal para os amigos que traziam negócios
com a fazenda.

O major estranhou tanta assiduidade e disse-lho, mas Pontes escamoteou-se
à interpelação montado numa pilhéria de truz,
e perseverou num bem calculado dar tempo ao tempo que fosse desbastando as
arestas agressivas do cardíaco.

Dentro de dois meses já se habituara Bentes àquele serelepe,
como lhe chamava, o qual, em fim de contas, lhe parecia um bom moço,
sincero, amigo de servir e sobretudo inofensivo… Daí a lá
em dia d’acúmulo de serviço pedir-lhe um obséquio, e
depois outro, e terceiro, e tê-lo afinal como espécie de adido
à repartição, foi um passo. Para certas comissões
não havia outro. Que diligência! Que finura! Que tato! Advertindo
certa vez o escrevente, o major puxou aquela diplomacia como lembrete.

– Grande pasmado! Aprenda com o Pontes, que tem jeito para tudo e ainda
por cima tem graça.

Nesse dia, convidou-o para jantar. Grande exultação na alma
do Pontes! A fortaleza abria-lhe as portas.

Aquele jantar foi o início duma série em que o serelepe, agora
factótum indispensável, teve campo de primeira ordem para evoluções
táticas.

O major Bentes, entretanto, possuía uma invulnerabilidade: não
ria, limitava suas expansões hílares a sorrisos irônicos.
Pilhéria que levava outros comensais a erguerem-se da mesa atabafando
a boca nos guardanapos, encrespava apenas os seus lábios. E se a graça
não era de superfina agudeza, ele desmontava sem piedade o contador.

– Isso é velho, Pontes, já num almanaque Laemmert de 1850
me lembro de o ter lido.

Pontes sorria com ar vencido; mas lá por dentro consolava-se, dizendo,
dos fígados para o rim, que se não pegara daquela, doutra pegaria.

Toda a sua sagacidade enfocava no fito de descobrir o fraco do major. Cada
homem tem predileção por um certo gênero de humorismo
ou chalaça. Este morre por pilhérias fesceninas de frades bojudos.
Aquele péla-se pelo chiste bonacheirão da chacota germânica.
Aquel’outro dá a vida pela pimenta gaulesa. O brasileiro adora a chalaça
onde se põe a nu a burrice tamancuda de galegos e ilhéus.

Mas o major? Por que não ria à inglesa, nem à alemã,
nem à francesa, nem à brasileira? Qual o seu gênero? Um
trabalho sistemático de observação, com a metódica
exclusão dos gêneros já provados ineficientes, levou Pontes
a descobrir a fraqueza do rijo adversário: o major lambia as unhas
por casos de ingleses e frades. Era preciso, porém, que viessem juntos.
Separados, negavam fogo. Esquisitices do velho. Em surgindo bifes vermelhos,
de capacete de cortiça, roupa enxadrezada, sapatões formidolosos
e cachimbo, juntamente com frades redondos, namorados da pipa e da polpa feminina,
lá abria o major a boca e interrompia o serviço da mastigação,
como criança a quem acenam com cocada. E quando o lance cômico
chegava, ele ria com gosto, abertamente, embora sem exagero capaz de lhe destruir
o equilíbrio sangüíneo.

Com infinita paciência, Pontes bancou nesse gênero e não
mais saiu dali. Aumentou o repertório, a gradação do
sal, a dose de malícia, e sistematicamente bombardeou a aorta do major
com os produtos dessa hábil manipulação.

Quando o caso era longo, porque o narrador o forja no intento de esconder
o desfecho e realçar o efeito, o velho interessava-se vivamente, e
nas pausas manhosas pedia esclarecimento ou continuação.

– "E o raio do bife?" "E daí?" "Mister John
apitou?" Embora tardasse a gargalhada fatal, o futuro coletor não
desesperava, confiando no apólogo da bilha que de tanto ir à
fonte lá ficou. Não era mau o cálculo. Tinha a psicologia
por si – e teve também por si a quaresma.

Certa vez, findo o carnaval, reuniu o major os amigos em torno a uma enorme
piabanha recheada, presente dum colega. O entrudo desmazorrara a alma dos
comensais e a do anfitrião, que estava naquele dia contente de si e
do mundo, como se houvera enxergado o passarinho verde. O cheiro vindo da
cozinha, valendo por todos os aperitivos de garrafaria, punha nas caras um
enternecimento estomacal.

Quando o peixe entrou, cintilaram os olhos do major.

Pescado fino era com ele, inda mais cozido pela Gertrudes.

E naquele bródio, primara a Gertrudes num tempero que excedia as
raias da culinária e se guindava ao mais puro lirismo. Que peixe! Vatel
o assinaria com a pena da impotência molhada na tinta da inveja, disse
o escrevente, sujeito lido em Brillat-Savarin e outros praxistas do paladar.

Entre goles de rica vinhaça, ia a piabanha sendo introduzida nos
estômagos com religiosa unção. Ninguém se atrevia
a quebrar o silêncio da bromatológica beatitude.

Pontes pressentiu oportuno o momento do golpe. Trazia engatilhado o caso
dum inglês, sua mulher e dois frades barbadinhos, anedota que elaborara
à custa da melhor matéria cinzenta de seu cérebro, aperfeiçoando-a
em longas noites de insônia. Já de dias a tinha de tocaia, só
aguardando o momento em que tudo concorresse para levá-la a produzir
o efeito máximo.

Era a derradeira esperança do facínora, seu último
cartucho. Negasse fogo e, estava resolvido, metia duas balas nos miolos. Reconhecia
impossível manipular-se torpedo mais engenhoso. Se o aneurisma lhe
resiste ao embate, então é que o aneurisma era uma potoca, a
aorta uma ficção, o Chernoviz um palavrório, a medicina
uma miséria, o doutor Iodureto uma cavalgadura e ele, Pontes, o mais
chapado sensaborão ainda aquecido pelo sol – indigno, portanto, de
viver.

Matutava assim o Pontes, negaceando com os olhos da psicologia a pobre vítima,
quando o major veio ao seu encontro: piscou o olho esquerdo – sinal de predisposição
para ouvir.

– E agora! – pensou o bandido. E com infinita naturalidade, pegando como
por acaso uma garrafinha de molho, pôs-se a ler o rótulo.

– Perrins; Lea and Perrins. Será parente daquele lorde Perrins que
bigodeou os dois frades barbadinhos? Inebriado pelos amavios do peixe, o major
alumiou um olho concupiscente, guloso de chulice.

– Dois barbadinhos e um lorde! A patifaria deve ser marca X. P. T. O. Conta
lá, serelepe.

E, mastigando maquinalmente, absorveu-se no caso fatal.

A anedota correu capciosa pelos fios naturais até as proximidades
do desfecho, narrada com arte de mestre, segura e firme, num andamento estratégico
em que havia gênio. Do meio para o fim, a maranha empolgou de tal forma
o pobre velho que o pôs suspenso, de boca entreaberta, uma azeitona
no garfo detida a meio caminho. Um ar de riso – riso parado, riso estopim,
que não era senão o armar bote da gargalhada, iluminou-lhe o
rosto.

Pontes vacilou. Pressentiu o estouro da artéria. Por uns instantes
a consciência brecou-lhe a língua, mas Pontes deulhe um pontapé
e com voz firme puxou o gatilho.

O major Antonio Pereira da Silva Bentes desferiu a primeira gargalhada da
sua vida, franca, estrondosa, de ouvirse no fim da rua, gargalhada igual à
de Teufelsdrock diante de João Paulo Richter. Primeira e última,
entretanto, porque no meio dela os convivas, atônitos, viram-no cair
de borco sobre o prato, ao tempo que uma onda de sangue avermelhava a toalha.

o assassino ergueu-se alucinado; aproveitando a confusão, esgueirou-se
para a rua, qual outro Caim. Escondeu-se em casa, trancou-se no quarto, bateu
dentes a noite inteira, suou gelado. Os menores rumores retransiam-no de pavor.

Polícia? Semanas depois é que entrou a declinar aquele transtorno
que toda a gente levara à conta de mágoa pela morte do amigo.
Não obstante, trazia sempre nos olhos a mesma visão: o coletor
de bruços no prato, golfando sangue, enquanto no ar vibravam os ecos
da sua derradeira gargalhada.

E foi nesse deplorável estado que recebeu a carta do parente do Rio.
Entre outras coisas, dizia o ás: "Como não me avisaste
a tempo, conforme o combinado, só pelas folhas vim a saber da morte
do Bentes. Fui ao ministro mas era tarde, já estava lavrada a nomeação
do sucessor. A tua leviandade fez-te perder a melhor ocasião da vida.
Guarda para teu governo este latim: tarde venientibus ossa, quem chega tarde
só encontra os ossos – e sê mais esperto para o futuro."
Um mês depois, descobriram-no pendente duma trave, com a língua
de fora, rígido.

Enforcara-se numa perna de ceroula.

Quando a notícia deu volta pela cidade, toda a gente achou graça
no caso. O galego do armazém comentou para os caixeiros: – Vejam que
criatura! Até morrendo fez chalaça. Enforcar-se na ceroula!
Esta só mesmo do Pontes…

E reeditaram em coro meia duzia de – único epitáfio que lhe
deu a sociedade.

Nota: O conto "O Engraçado Arrependido" foi publicado na
Revista do Brasil, nº 16, de abril de 1917, com o título de "A
Gargalhada do Colector".

A colcha de retalhos

– Upa! Cavalgo e parto.

Por estes dias de março a natureza acorda tarde. Passa as manhãs
embrulhada num roupão de neblina e é com espreguiçamentos
de mulher vadia que despe os véus da cerração para o
banho de sol.

A névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as cores. Tudo parece
coado através dum cristal despolido.

Vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dos barrancos; vejo o roxo-terra
da estrada esmaecer logo adiante; e nada mais vejo senão, a espaços,
o vulto gotejante dalguns angiqueiros marginais.

Agora, uma porteira.

Ali, a encruzilhada do Labrego.

Tomo à destra, em direitura ao sítio do José Alvorada.

Este barba-rala mora-me a jeito de empreitar um roçado no capoeirão
do Bilu, nata da terra que pelas bocas do caeté legítimo, (1)
da unha-de-vaca(2) e da caquera(3) está a pedir foice e covas de milho.

Não é difícil a puxada: com cinqüenta braças
de carreador boto a roça no caminho.

Três alqueires, só no bom. Talvez quatro. A noventa por um
– nove vezes quatro trinta e seis; trezentos e sessenta alqueires de oito
mãos. Descontadas as bandeiras (4) que o porco estraga e o que comem
a paca e o rato…

Será a filha do Alvorada? – Bom dia, menina! O pai está em
casa? É a filha única. Pelo jeito não vai além
de quatorze anos.

Que frescura! Lembra os pés d’avenca viçados nas grotas noruegas.
Mas arredia e itê (5) como a fruta do gravatá. Olhem como se
acanhou! D’olhos baixos, finge arrumar a rodilha. (6) Veio pegar água
a este corrego e é milagre não se haver esgueirado por detrás
daquela moita de taquaris, ao ver-me.

– O pai está lá? – insisti.

Respondeu um "está" enleado, sem erguer os olhos da rodilha.

Como a vida no mato asselvaja estas veadinhas! Note-se que os Alvoradas
não são caipiras. Quando comprou a situação dos
Periquitos, o velho vinha da cidade; lembro-me até que entrava em sua
casa um jornal.

Mas a vida lhes correu áspera na luta contra as terras ensapezadas
e secas, que encurtam a renda por mais que dê de si o homem. Foram rareando
as idas à cidade e ao cabo de todo se suprimiram. Depois que lhes nasceu
a menina, rebento floral em anos outoniços, e que a geada queimou o
café novo – uma tamina, (7) três mil pés – o velho, amuado,
nunca mais espichou o nariz fora do sítio.

Se o marido deu assim em urumbeva, a mulher, essa enraizou de peão
para o resto da vida. Costumava dizer: mulher na roça vai à
vila três vezes – uma a batizar, outra a casar, terceira a enterrar.

Com tais casmurrices na cabeça dos velhos, era natural que a pobrezinha
da Pingo d’Água (tinha esse apelido a Maria das Dores) se tolhesse
na desenvoltura ao extremo de ganhar medo às gentes. Fora uma vez à
vila com vinte dias, a batizar. E já lá ia nos quatorze anos
sem nunca mais ter-se arredado dali.

Ler? Escrever? Patacoadas, falta de serviço, dizia a mãe.

Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora, se des’que casou
nunca mais teve jeito de abrir um livro? Na roça, como na roça.

Deixei a menina às voltas com a rodilha e embrenheime por um atalho
conducente à morada.

Que descalabro!…

Da casa velha aluíra uma ala, e o restante, além da cumeeira
selada, tinha o oitão fora do prumo.

O velho pomar, roído de formiga, morrera de inanição;
na ânsia de sobreviver, três ou quatro laranjeiras macilentas,
furadas de broca e sopesando o polvo retrançado da erva-de-passarinho,
ainda abrolhavam rebentos cheios de compridos acúleos. Fora disso,
mamoeiros, a silvestre goiaba e araçás, promiscuamente com o
mato invasor que só respeitava o terreirinho batido, fronteiro à
casa. Tapera quase e, enluradas nela, o que é mais triste, almas humanas
em tapera.

Bati palmas.

– Ó de casa! Apareceu a mulher.

– Está seu Zé? – Inda agorinha saiu, mas não demora.
Foi queimar um mel na massaranduva do pasto. Apeie e entre.

Amarrei o cavalo a um moirão de cerca e entrei.

Acabadinha, a Sinh’Ana. Toda rugas na cara – e uma cor… Estranhei-lhe
aquilo.

– Doença! – gemeu. – Estou no fim. Estômago, fígado,
uma dor aqui no peito que responde na cacunda. Casa velha, é o que
é.

– Metade é cisma – disse-lhe para consolo.

– Eu é que sei! – retrucou-me suspirando.

Entrementes, surgiu da cozinha uma velhota bem-apessoada, no ceme, rija
e tesa, que saudou e: – Está espantado do jeito de Nhana? Esta gente
de agora não presta para nada. Olhe, eu com setenta no lombo não
me troco por ela. Criei minha neta e inda lavo, cozinho e coso. Admira-se?
Coso, sim!…

– Mecê é gabola porque nunca padeceu doença – nem dor
de dente! Mas eu? Pobre de mim! Só admiro ainda estar fora da cova…
Aí vem o Zé.

Chegava o Alvorada. Ao ver-me, abriu a cara.

– Ora viva quem se lembra dos pobres! Não pego na sua mão
porque estou assim… É só melado. Bonito, hein? Estava difícil,
num oco muito alto e sem jeito. Mas sempre tirei. Não é jiti,
não! É mel-de-pau.

Depôs num mocho a cuja dos favos e se foi à janela, lavar as
mãos à caneca d’água que a mulher despejava. Pôs
os olhos no meu cavalo.

– Hoje veio no picaço… Bom bicho! Eu sempre digo: animais aqui
no redor, só este picaço e a ruana do Izé*48 de Lima.
O mais é eguada de moenda.

Neste momento entrou a menina de pote à cabeça. Ao vê-la,
o pai apontou para a cuja de mel.

– Está aí, filha, o doce da aposta. Perdi, paguei. Que aposta?
Ah! ah! Brincadeira. A gente cá na roça, quando não tem
serviço com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de maritacas.
Eu disse à loa: "São mais de dez!" Pingo negou: "Não
chega lá!" Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o doce. Doce da roça
mel é. Esta songuiriha só vendo; não é o que parece,
não…

A loquacidade daquele homem não desmedrara com o atraso da vida.
Em se lhe dando corda, ressurgia nele o tagarela da cidade.

Expus-lhe o negócio. Alvorada enrugou a testa; refletiu um bocado,
de queixo preso. Depois: – Eu hoje, franqueza, não valho mais nada.
Des’que caí daquela amaldiçoada ponte do Labrego, fiquei assim
como quebrado por dentro. Não escoro serviço, e para lidar com
camaradas no eito não basta ter boca. Sem puxar a enxada de par com
eles, a coisa não vai, não! Lembra-se da empreitada do ano retrasado?
Pois saí perdendo. O tranca do João Mina me quebrou um machado
e furtou uma foice. Com esses prejuízos, não livrei o jornal.
Desde então fiz cruz em serviço alheio. Se ainda teimo neste
sapezal amaldiçoado é por via da menina; senão, largava
tudo e ia viver no mato, como bicho. É Pingo que inda me dá
um pouco de coragem, concluiu com ternura.

A velhinha sentara-se à luz da janela e, abrindo uma caixeta, pusera-se
a coser, de óculos na ponta do nariz.

Aproximei-me, admirativo.

– Sim, senhora! Com setenta anos! Sorriu, lisonjeada.

– É para ver. E isto aqui tem coisa. É uma colcha de retalhos
que venho fazendo há quatorze anos, des’que Pingo nasceu. Dos vestidinhos
dela vou guardando cada retalho que sobeja e um dia os coso. Veja que galantaria
de serviço…

Estendeu-me ante os olhos um pano variegado, de quadrinhos maiores e menores,
todos de chita, cada qual de um padrão.

– Esta colcha é o meu presente de noivado. O último retalho
há de ser do vestido de casamento, não é, Pingo? Pingo
d’Água não respondeu. Metida na cozinha, percebi que nos espiava
por uma fresta.

Mais dois dedos de prosa com Alvorada, um cafezinho ralo – escolha (8) com
rapadura – e: – Está bem – rematei, levantando-me do mocho de três
pernas. – Como não pode ser, paciência. Apesar disso acho que
deve pensar um bocado. Olhe que este ano se estão pagando os roçados
a oitenta mil réis o alqueire. Dá para ganhar, não? –
Que dá, sei que dá – mas também sei para quem dá.

Um perrengue como eu não pensa mais nisso, não. Quando era
gente, muitos peguei a sessenta e não me arrependi.

Mas hoje…

– Nesse caso…

Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse intervalo
Sinh’Ana faleceu. Era fatal a dor que respondia na cacunda. E não mais
me aflorava à memória a imagem daqueles humildes urupês,
quando me chegou aos ouvidos o zunzum corrente no bairro, uma coisa apenas
crível: o filho de um sitiante vizinho, rapaz de todo pancada, furtara
Pingo d’Água aos Periquitos.

– "Como isso? Uma menina tão acanhada!…" – "É
para ver! Desconfiem das sonsas… Fugiu, e lá rodou com ele para a
cidade – não para casar, nem para enterrar. Foi ser ‘moça’,
a pombinha…" O incidente ficou a azoinar-me o bestunto. À noite
perdi o sono, revivendo cenas da minha última visita ao sítio,
e nasceu-me a idéia de lá tornar. Para? Confesso: mera curiosidade,
para ouvir os comentários da triste velhinha. Que golpe! Desta feita
ia-se-lhe a rijeza de cerne.

Fui.

Setembro entumecia gomos em cada arbusto. Nenhuma neblina. A paisagem desenhava-se
nítida até aos cabeços dos morros distantes.

Por amor à simetria, montava eu o mesmo picaço. Transpus a
mesma porteira. Atalhei pelo mesmo trilho.

No córrego vi, com os olhos da imaginação, o vulto
da menina envergonhada com o pote em repouso na laje e toda às voltas
com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me, deserta. As três
árvores do pomar extinto eram já galhaça resseca e poenta.
Só os mamoeiros subsistiam, mais crescidos, sempre apinhados de frutos.
O resto piorara, descambando para o lúgubre. Ruíra o oitão
e o terreirinho pintalgara-se de moitas de guanxuma, cordão-de-frade
e joás.

– O de casa! – gritei.

Silêncio. Três vezes repeti o apelo. Por fim surgiu dos fundos
uma sombra acurvada e trêmula.

– Bom dia, nhá Joaquina. Está seu Zé? Não me
reconheceu a velhinha. Zé fora à vila, vender a sitioca para
mudar de terra.

Fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindo escusas da má
vista.

– Tem coragem de estar aqui sozinha? – Eu? Sozinha estou em toda parte.
Morreu-me tudo, a filha, a neta… Sente-se – murmurou apontando para o mocho
de dois anos atras.

Sentei-me, com um nó na garganta. Não sabia o que dizer. Por
fim: – O que é a vida, nhá Joaquina! Parece que foi ontem que
estive aqui. Apesar das doenças, iam vivendo felizes. Hoje…

A velha limpou no canhão da manga uma lágrima.

– Viver setenta e dois anos para acabar assim… Felizmente a morte não
tarda. Já a sinto cá dentro.

Confrangia-me o coração aquele ermo onde tudo era passado
– a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas, salvo trêmulo espectro
sobrevivente como a alma da tapera – a triste velhinha encanecida, cujos olhos
poucas lágrimas estilavam, tantas chorava.

– Que mais agora? – murmurou pausadamente em voz de quem já não
é deste mundo. – Até à "desgraça", eu
não queria morrer. Velha e inútil, inda gostava do mundo. Morreu-me
a filha, mas restava a neta – que era duas vezes filha e o meu consolo. Desencaminharam
a pobrezinha… Agora, que mais? Só peço a Deus que me retire,
logo e logo.

Relanceei um olhar pela sala vazia. A caixeta de costura inda estava sobre
a arca no lugar de sempre. Meus olhos pousaram ali, marasmados.

A velha adivinhou-me o pensamento e, levantando-se, tomou-a nas mãos
mal firmes. Abriu-a. Tirou de dentro a colcha inacabada, contemplou-a longamente.
Depois, com tremuras na voz: – Dezesseis anos – e não pude acabar a
colcha… Ninguém imagina o que é para mim esta prenda. Cada
retalho tem sua história e me lembra um vestidinho de Pingo d’Água.
Aqui leio a vidinha dela des’que nasceu.

Este, olhe, foi da primeira camiseta que vestiu… Tão galantinha!
Estou a vê-la no meu braço, tentando pegar os óculos com
a mãozinha gorda…

Este azul, de listras, lembra um vestido que a madrinha lhe deu aos três
anos. Ela já andava pela casa inteira armando reinações,
perseguindo o Romão – que um dia, por sinal, lhe meteu as unhas no
rostinho. Chamava-me "ÓÓ aquina Este vermelho de rosinhas
foi quando completou os cinco anos. Estava com ele por ocasião do tombo
na pedra do córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, não
reparou? Este cá, de xadrezinho, foi pelos sete anos, e eu mesma o
fiz, e o fiz de saia comprida e paletó de quartinho. Ficou tão
engraçada, feita uma mulherzinha! Pingo d’Agua ja sabia temperar um
virado, quando usou este aqui, de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto
porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mãos.

Este cor de batata foi quando tinha dez anos e caiu com sarampo, muito malzinha.
Os dias e as noites que passei ao pé dela, a contar histórias!
Como gostava da Gata Borralheira!…

A velha enxugou na colcha uma lágrima perdida e calou-se.

– E este? – perguntei para avivá-la, apontando um retalho amarelo.

Pausou um bocado a triste avó, em contemplação. Depois:
– Este é novo. Já tinha feito quinze anos quando o vestiu pela
primeira vez num mutirão (9) do Labrego. Não gosto dele. Parece
que a desgraça começa aqui. Ficou um vestido muito assentadinho
no corpo, e galante, mas pelas minhas contas foi o culpado do Labreguinho
engraçar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava.

– Este – disse-lhe eu, fingindo recordar-me – é o que ela vestia
quando cá estive.

– Engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas vermelhas, repare bem.

– É verdade, é verdade! menti. Agora me lembro, isso mesmo.
E este último? Após uma pausa dorida, a pobre criatura oscilou
a cabeça e balbuciou: – Este é o da desgraça. Foi o derradeiro
que fiz. Com ele fugiu… e me matou.

Calou-se, a lacrimejar, trêmula.

Calei-me também, opresso dum infinito apertão d’alma.

Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida machucado pela mocidade
louca!…

E ficamos ambos assim, imóveis, de olhos presos à colcha.

Ela por fim quebrou o silêncio.

– Ia ser o meu presente de noivado. Deus não quis.

Será agora a minha mortalha. Já pedi que me enterrassem com
ela.

E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro arrancado ao imo do
coração.

Um mês depois morria. Vim a saber que lhe não cumpriram a última
vontade.

Que importa ao mundo a vontade última duma pobre velhinha da roça?
Pieguices…

Notas: 1, 2, 3. Padrões de terra boa.

4. Bandeira de milho, diz-se de qualquer trecho do milharal 5. Itê:
Sabor agreste, adstringente, ácido.

6. Rodilha: Rodela de pano torcido que os carregadores de água usam
entre a cabeça e o pote ou a lata.

7. Tamina: Ninharia, coisa de nada.

8. Escolha: Café de ínfima qualidade – resíduo do "café
escolhido".

9. Ajuntamento de vizinhos num serviço de roça.

A vingança da peroba

A cidade duvidará do caso. Não obstante, aquele monjolo do
João Nunes no Varjão foi durante meses o palhaço da zona.
Sobretudo no bairro dos Porungas, onde assistia Pedro Porunga, mestre monj
oleiro de larga fama, fungavam-se à conta do engenho risos sem fim.

Sitiantes ambos em terras próprias, convizinhavam separados pelo
espigão do Nheco – e por malquerença antiga. Levantara Nunes
uma paca, certo domingo; mas ao dobrar o morro a bicha esbarrou de frente
com um Porunguinha que casualmente lenhava por ali. Zás! Certeiro golpe
de foice dá com ela em terra.

Até aí nada.

Mas comeram-na, sem ao menos mandarem um quarto de presente ao legítimo
dono. Legítimo, sim, porque, afinal de contas, aquela paca era uma
paca nomeada. Sabida como um vigário, dizia o Nunes, nem cachorro-mestre,
nem mundéu, podiam com a vida dela. Escapulia sempre. A gente do outro
lado não ignorava isso. Paca velha e matreira tem sempre a biografia
na boca dos caçadores. Paca muito conhecida, portanto; moradora em
suas terras. Paca do Nunes, homessa. Ora, justamente no dia em que, numa batida
feliz, ele a apanhara desprevenida, fazer aquilo o Porunguinha? – "Mas
é uma criança!" Sim, mas o pai não aprovou? Não
disse, entre risadas, "o Nunes que se fomente?" Haviam de pagar!
Veio daí a malquerença. O espigão vinha do período
um pouco mais remoto em que a crosta da terra se solidificou.

Agravava a dissensão uma rivalidade quase de casta.

Pertencia Nunes à classe dos que decaem por força de muita
cachaça na cabeça e muita saia em casa. Filho homem só
tinha o José Benedito, d’apelido Pernambi, um passarico desta alturinha,
apesar de bem entrado nos sete anos. O resto era uma récula de "famílias
mulheres" Maria Benedita, Maria da Conceição, Maria da
Graça, Maria da Glória, um rosário de oito mariquinhas
de saia comprida. Tanta mulher em casa amargava o ânimo do Nunes, que
nos dias de cachaça ameaçava afogá-las na lagoa como
se fossem uma ninhada de gatos.

O seu consolo era mimar Pernambi, que aquele ao menos logo estaria no eito,
a ajudá-lo no cabo da enxada, enquanto o mulherio inútil mamparrearia
por ali a espiolhar-se ao sol.

Pegava, então, do menino e dava-lhe pinga.

A princípio com caretas que muito divertiam o pai, o engrimanço
pegou lesto no vício. Bebia e fumava muito sorna, com ares palermas
de quem não é deste mundo. Também usava faca de ponta
à cinta.

Homem que não bebe, não pita, não tem faca de ponta,
não é homem, dizia o Nunes.

E cônscio de que já era homem o piquirinha batia nas irmas,
cuspilhava de esguicho, dizia nomes à mãe, além de muitas
outras coisas próprias de homem.

Do outro lado tudo corria pelo inverso. Comedido na pinga, Pedro Porunga
casara com mulher sensata, que lhe dera seis "famílias",
tudo homem.

Era natural que prosperasse, com tanta gente no eito.

Plantava cada setembro três alqueires de milho; tinha dois monjolos,
moenda, sua mandioquinha, sua cana, além duma égua e duas porcas
de cria. Caçava com espingarda de dois canos, "imitação
Laporte", boa de chumbo como não havia outra. Morava em casa nova,
bem coberta de sapé de boa lua, aparado a linha, com mestria, no beiral;
os esteios e portais eram de madeira lavrada; e as paredes, rebocadas à
mão por dentro, coisa muito fina.

Já o Nunes – pobre do Nunes! – não punha na terra nem um alqueire
de semente. Teve égua, mas barganhou-a por um capadete e uma espingarda
velha. Comido o porquinho, sobrou do negócio o caco da pica-pau, dum
cano só e manhosa de tardar fogo.

Sua casa, de esteios com casca e portas de embaúba rachada, muito
encardida de picumã, prenunciava tapera próxima.

Capado, nenhum. Galinhada escassa.

Ao cachorro Brinquinho não lhe valia ser mestre paqueiro de fama;
andava de barriga às costas, com bernes no toutiço. O pobrezinho
não caminhava dez passos sem que parasse, pondo-se aos rodopios sobre
os quartos traseiros, tentando inutilmente abocar o parasita inatingível.
Que preasse.

Cachorro é bicho ladino e o mato anda cheio de preás atolambadas.
E tudo mais no Vaijão afinava pela mesma tecla.

Certa vez contaram ao Nunes que Pedro Porunga trazia negócio duma
besta arreada. Besta arreada, o Porunga! Doeulhe aquilo no fundo da alma.
Era atrepar demais.

– Quê! Já roncam assim? – bravateou. – Pois hei de mostrar
à Porungada quem é o João Nunes Eusébio dos Santos,
da Ponte Alta! E entrou-se, desd’aí, de grandes atarefamentos.

A mulher pasmava na súbita reviravolta do marido, duvidando e esperando.

– Durará esse fogo? Quem sabe? Planeava Nunes grandes coisas, roça
de três alqueires, conserto da casa, monjolo…

Aqui a mulher repuxou os lábios num muxoxo de dúvida.

– Monjolo? Ché, qu’esperança! Nunes, metido em brios, roncou:
– Boto, mulher, boto monjolo, boto moenda, boto até moinho! Hei de
fazer a porungada morder a munheca de inveja. Vai ver!…

Com assombro de todos não ficou em prosa fiada a promessa. Nunes
remendou mal e mal a casa, derrubou um capoeirão descansado de oito
anos e, num esforço de mouro, meteu na terra nove quartas de milho.

Pedro Porunga soube logo da bravata. Riu-se e profetizou: – Eh! Aquilo é
fogo de jacá velho. Calor de pinguço não dura…

O ano correu bem. Vieram chuvas a tempo, de modo que em janeiro o milho
desembrulhava pendão, muito medrado de espigas.

Nunes não cabia em si. Visitava as roças muito contente da
vida, urthando os caules viçosos já em pleno arreganhamento
da dentuça vermelha, ou apalpando as bonecas tenras, a madeixarem-se
da cabelugem louro-translúcida. Segurava então a barbica do
queixo e sonhava opulências futuras, balanceando prós e contras.
Os contras já estavam de fora. Só havia prós. E concluía,
entrando em casa, para a mulher: – Este ano quebro um milhão desgramado!
Carecia, pois, de armar monjolo. Desdobrado em farinha o milho, vinham dobrados
os lucros. Não foi o que empolou os Porungas, a farinha? Uma resolução
de tal vulto, porém, não se toma assim do pé pr’a mão:
era preciso meditar, calcular. E Nunes "maginava"… O chóó-pan
do futuro engenho batia-lhe na cabeça como um ritornelo de música
do céu.

– Hei de mostrar ao Porunga que ele não é o único monjoleiro
do mundo. Empreito o serviço com o compadre Teixeirinha da Ponte Alta.

A mulher botou as mãos na cabeça.

– Nossa Virgem! É coisa de louco! Pois o compadre nem braço
tem…

– Bééé! – urrou Nunes, estomagado. – Cale essa boca!
Mulher não entende das coisas…

E ela, nas encolhas: – Tá bom. Depois não se queixe.

– Bééé! – rematou o marido.

Esta troada era o argumento decisivo de Nunes nas relações
familiares. Quando ali roncava o "bééé", mulher,
filhas, Pernambi, Brinquinho, todos se escoavam em silêncio. Sabiam
por dolorosa experiência pessoal que o ponto acima era o porretinho
de sapuva.

Se a mulher emudecia, emudecia com ela a razão, porque o Teixeirinha
Maneta era um carapina ruim inteirado, dos que vivem de biscates e remendos.
Só a um bêbado como o Nunes bacorejaria a idéia de meter
a monjoleiro um taramela daqueles, maneta e, inda por cima, cego duma vista.
Mas era compadre e acabou-se. Bééé! Uma nova semana passou
Nunes em trabalhos de "maginação". Coçava lentamente
a cabeça, pitava enormes cigarrões, muito absorto, com os olhos
no milharal e o sentido em coisas futuras. Decidiu-se, por fim.

Rumou à Ponte Alta e trouxe de lá o velho carapina, com a
ferramenta capenga.

Só restava resolver o problema da madeira. Nas suas terras não
havia senão pau de foice. Pau de machado, capaz de monjolo, só
a peroba da divisa, velha árvore morta que era o marco entre os dois
sítios, tacitamente respeitada de lá e cá. Deitá-la-ia
por terra sem dar contas ao outro lado – como lhe fizeram à paca.

Boa peça! Nunes gozava-se da picuinha, planeando derrubar a árvore
à noite, de modo que pela madrugada, quando os Porungas dessem pela
coisa, nem Santo Antônio remediaria o mal.

– Está resolvido: derrubo a peroba! Dito e feito. Dois machados roncaram
no pau alta noite, e ainda não raiava a manhã quando a peroba
estrondeou por terra, tombada do lado do Nunes.

Mal rompeu o dia, os Porungas, advertidos pela ronqueira, saíram
a sondar o que fora. Deram logo com a marosca, e Pedro, à frente do
bando, interpelou: – Com ordem de quem, seu…

– Com ordem da paca, ouviu? – revidou Nunes provocativamente.

– Mas paca é paca e essa peroba era o marco do rumo, meia minha,
meia sua.

– Pois eu quero gastar a minha parte. Deixo a sua p’r’aí!… – retrucou
Nunes apontando com o beiço a cavacana cor-de-rosa.

Pedro continha-se a custo.

– Ah, cachorro! Não sei onde estou que não…

– Pois eu sei que estou em minha casa e que bato fogo na primeira "cuia"
que passar o rumo!…

Esquentou o bate-boca. Houve nome feio a valer. O mulherio interveio com
grande descabelamento de palavrões. De espingardinha na mão,
radiante no meio da barulhada, Nunes dizia ao Maneta: – Vá lavrando,
compadre, que eu sozinho escoro este cuiame!… (2) A Porungada, afinal, abandonou
o campo – para não haver sangue.

– Você fica com o pau, cachaceiro à-toa, mas inda há
de chorar muita lágrima p’r’amor disso…

– Bééé! … – estrugiu Nunes triunfalmente.

Os Porungas desceram resmoneando em conciliábulo, seguidos do olhar
vitorioso do Nunes.

– Então, compadre, viu que cuiada choca? É só chá
de língua, pé, pé, pé; mas, chegar mesmo, quando!
O guampudo conheceu a arruda pelo cheiro! E assombrou o velho com muitos lances
heróicos, quebramentos de cara, escoras de três e quatro, o diabo.

– O dia está ganho, compadre, largue disso e vamos molhar a garganta.

A molhadela da garganta excedeu a quanta bebedeira tinham na memória.
Nunes, Maneta e Pernambi confraternizaram num bolo acachaçado, comemorativo
do triunfo, até que uma soneira letárgica os derreou pelo chão.
Com a derradeira Maria pendurada do seio magro, a mulher olhava para aquilo
sacudindo a cabeça, a cismar…

– Que monjolo sairá disto, mãe do céu!…

Esvaídos os fumos da pinga, tornaram no dia seguinte à peroba,
muito acamaradados. A cachaça cimentara o compadresco antigo, e a feitura
do monjolo teve início com grande quebreira de corpo. Nunes passava
os dias na obra, vendo o compadre desbastar a madeira com um braço
só.

Pasmava daquilo, e do ajutório que ao braço perfeito dava
o toco aleijado. O velho Maneta sabia casos e casos, que Nunes respondia com
outros, sempre tendentes a patentear a ruindade dos Porungas.

Falquejado o toro, correram um barbante embebido num mingau de carvão.
"Pegue nesta ponta, compadre, dizia o velho; agora estique; isso."
E tomando entre os dedos o cordel pelo meio, plaf, chicoteava a madeira, riscando
nela um traço negro.

Nunes revelou grande vocação para esfnia-verruma. Esfnia-verrumas
são os "empaliadores" dos carapinas. Sentam-se com uma nádega
à beira da banca e durante horas pasmam do rebote correr na tábua
encaracolando fitas, ou do formão ir lentamente abrindo uma fura. Ora
pegam da enxó, examinam-na, passam o dedo pelo fio e perguntam: "É
Gnive? (Greaves) Quanto custou?" E quando sai da madeira a verruma, quente
da fricção, pegam-na e põem-se a soprá-la muito
sérios.

Enquanto isso, muito desajeitadamente ia o Maneta escavando o cocho (3)
a machado e enxó. Depois rasgou as furas furas da haste (4) e afeiçoou
a munheca. (5) Prontas que foram, atacou o pilão. (6) Escava que escava,
em três dias pô-lo de banda, concluso. Restava somente aparelhar
a "virgem". (7) – O compadre sabe a história do pau de feitiço?
Nunes não sabia. Nunes não sabia coisa alguma, tirante emborcar
o gargalo e difamar os Porungas. Sem interromper o esquadrejamento da virgem,
Maneta narrou o caso que ouvira ao pai, o Teixeirão serrador, madeireiro
de fama.

– Em cada eito de mato, dizia o meu velho, há um pau vingativo que
pune a malfeitoria dos homens. Vivi no mato toda a vida, lidei toda casta
de árvore, desdobrei desde embaúva e embiruçu até
bálsamo, que é raro por aqui.

Dormi no estaleiro quantas noites! Homem, fui um bicho-do-mato. E de tanto
lidar com paus, fiquei na suposição de que as árvores
têm alma, como a gente.

– T’esconjuro! – espirrou Nunes.

– Isto dizia lá o velho; eu por mim não dou opinião.

E têm alma, dizia ele, porque sentem a dor e choram. Não vê
como gemem cértos paus ao caírem? E outros como choram tanta
lágrima vermelha, que escorre e vira resina? Ora pois têm alma,
porque neste mundo tudo é criatura de Deus.

– Lá isso…

– Então, dizia ele, há em cada mato um pau que ninguém
sabe qual é, a modo que peitado p’r’a desforra dos mais. É o
pau de feitiço. O desgraçado que acerta meter o machado no cerne
desse pau pode encomendar a alma p’r’o diabo, que está perdido. Ou
estrepado ou de cabeça rachada por um galho seco que despenca de cima,
ou mais tarde por artes da obra feita com a madeira, de todo jeito não
escapa. Não ‘dianta se precatar: a desgraça peala mesmo, mais
hoje, mais amanhã, a criatura marcada.

Isto dizia o velho – e eu por mim tenho visto muita coisa. Na derrubada
do Figueirão, alembra-se? morreu o filho do Chico Pires. Estava cortando
um guamirim quando, de repente, soltou um grito. Acode que acode, o moço
estava com o peito varado até as costas. Como foi? Como não
foi? Ninguém entendeu aquilo. Eu fiquei cismando e disse: "É
feitiço de pau…" Como este um, quantos casos? O mundo está
cheio. O Sebastiãozinho da Ponte Alta fez uma casa, o pau da cumeeira
ele mesmo o derrubou. Pois não é que a cumeeira arreia e estronda
a cabeça do rapaz? Por isso meu pai, sabido que era, especulava primeiro
se por ali perto não tinha havido desgraça. Era para ver se
o feitiço estava solto ou preso, e precatar-se.

Com estas e outras ia Maneta florejando de lérias as horas de serviço,
enquanto dava os derradeiros retoques no engenho.

Estava pronto o monjolo. Jubiloso, via Nunes quase realizado o primeiro
sonho das futuras grandezas. Faltava apenas o assentamento, que é pouco
– e ele batia tapas amigos na peroba vermelha.

– Aí, minha velha! Mansinha, hein? Há de chamar-se Tira-prosa
de Porungas, Cabaças e Cuias, eh! eh! Recolheram cedo nesse dia para
solenizar o feito à custa dum ancorote (8) de cachaça, que esvaziaram
a meio.

Dias depois, bem fincado, bem socado o pilão, o monjolo recebeu água.
Aberta a bica, um jorro d’enxurro espumejou no cocho, encheu-o, desbordou
para o "inferno". (9) A engenhoca gemeu na virgem e alçou
o pescoço. O cocho despejou a aguaceira – chóó! A munheca
bateu firme no pilão – pan! Nunes pulava d’alegria.

– Conheceu, Porungada choca, quem é João Nunes Eusébio
da Ponte Alta? Mas não lhe bastou aquele barulho, nem a gritaria da
meninada a palmear, nem os ladridos do Brinquinho que, espantado da maluqueira,
latia de longe, a salvo de pontapés. Queria mais. Correu à espingarda,
espoletou-a e, erguendo-a

para o "outro lado", desfechou. Mas o caco velho da pica-pau não
compartilhou da sua alegria, rebentou a espoleta e calou-se. Nunes inda a
manteve uns segundos alçada, esperando o tiro. Como o fogo tardasse
demais, remessou com ela para longe, embrulhada num palavrão. Lembrou-se
depois de três foguetes sobejados de uma reza; foi buscá-los;
atacou-os em direção aos Porungas.

– Cheira essa pólvora, cuiada! Infelizmente as bombas, muito úmidas,
negaram fogo por sua vez.

– Tudo nega, compadre! Vamos ver se o ancorote nega também.

Não negou. E a prova foi roncarem logo p’r’ali como dois gambás.

No outro dia partiu Maneta para a Ponte Alta, com grande sentimento do Nunes
que perdia nele um companheirão.

Quanto ao monjolo, como não houvesse milho a pilar, ficou sua estréia
para quando se quebrasse a roça.

Cessaram as chuvas de verão. Entrou o outono, refrescado, limpo.
Amarelaram as folhas do milharal, as espigas penderam, maduras. Começou
a quebra. Muito impaciente, Nunes debulhou o primeiro jacá recolhido
e atochou o pilão.

Ai! Não há felicidade completa no mundo. O engenho provou
mal. Não rendia a canjíca. Desproporcionada ao cocho, a haste
não dava o jogo da regra. A mão, por muito leve ou por defeito
de esquadria na virgem, guinava à esquerda ao bater, espirrando milho
para fora. Por mal dos pecados, à primeira chuvinha o pilão
entrou a rever agua.

Fora escavado em madeira ventada. (10) Não prestava.

Nunes, de má sombra, represando a cólera, meteu-se a reparar
tantas "torturas". Diminuiu o peso ao macaco, (11) engrossou as
águas, amarrou ali, especou acolá, calafetou fendas. Consumiu
dias em luta surda contra as manhas do mal-engonçado. Mas a peste do
monstrengo respondia a cada arranjo com uma reincidência de desalentar.

O pobre homem explodiu, então. Da boca lhe espirraram injúrias
sem fim contra o patife do carapina.

– Excomungado do diabo de maldelazento de maneta…

Impossível meter no papel todas as contas do rosário; as miúdas
inda cabem, mas as graúdas não podem sair do Varjão.
Além de injúrias, ameaças. Que iria à Ponte Alta
rachar o compadre à foice; que lhe vazava a outra vista; que…

Num desses desabafos, a tola da mulher meteu a colher torta no meio.

– Eu bem disse, eu bem avisei. Mas o "queixo duro" não
fez caso…

Ai! Nunes, que só esperava por aquilo, passou a mão na sapuva
(12) e encarnando na esposa o odiado maneta deslombou-a numa sova de consertar
negro ladrão.

– Toma, cachorro! Toma, excomungado do inferno! Aprende a fazer monjolo,
porco sujo! e malhava…

A mulher sumiu-se aos pinotes mata adentro, seguida do mulherio miúdo;
e por oito dias andou em esfregações de salmoura pela polpa
avergoada. Nunes, porém, melhorou consideravelmente com o derivativo.
Mundificou-se da bílis.

A nova de tais sucessos chegou à Porungada. Pedro, exultante, não
teve mão de si, quis ver com os próprios olhos a caranguejola
que o vingava tão a pique. Meditou um plano, e lá um dia transpôs
o espigão, rumo à casa do rival. Voltou uma hora depois espremendo
risos fungados.

– Eh, eh, minha gente! Vocês não calculam. Quando virei o espigão
ja ouvi o barulho – chóó-pan -, uma ronqueira dos diabos! Disse
comigo: roncar, ele ronca, eh, eh! Fui chegando. O Nunes, jururu, estava debulhando
milho na porta. Quando me viu entreparou, amode que assombrado.

– "É de paz!" eu disse, e me plantei diante dele. "Dois
chefes de família, ainda mais vizinhos, não podem viver toda
a vida assim de focinho "trucido" um p’r’o outro. O que foi, foi.
Acabou-se. Toque." Ele relanceou os olhos p’r’o lado da ronqueira – eh,
eh! – e muito desconchavado me espichou a mão sem abrir o bico.

– "Traga um café!", gritou p’ra dentro.

Enfiei os olhos pela casa: estava "assim" de mulherada na cozinha!
Peguei de prosa. Ele foi respondendo. Conversa sem graça, amarradinha.
Por fim especulei: "E o monjolo, vizinho, ficou na ordem?" Nunes
amarelou que nem esta folha! – "É bonzinho, rende bem…"
– "Quero ver", disse eu, "se não é curiosidade…"
– "Pois vá", respondeu sem se mexer do lugar.

E fui.

Nossa Virgem! Aquilo nunca foi monjolo, nem aqui nem na casa do diabo! Só
se vê amarrilhos de cipó e espeques e macacos. A haste tem nove
palmos e o cocho a mó que tem dez!…

– Quiá! quiá! quiá! – cacarejou a roda, que em matéria
de monjolo era entendidíssima.

– A mão não pesa, homem, não pesa nem arroba e meia!
A virgem está errada e fora do prumo. Milho está que está
alvejando o chão. A mão pincha duma banda.

Os Porunguinhas babavam.

– Então, roncar ele ronca? – Nossa! Ronca que nem uma trumenta. Mas,
socar? O boi soca! Nem três litros rende por dia. Homem, gentes, aquilo
é coisa que só vendo! A cara dos Porungas, anuviada desde o
incidente da peroba, refloriu dali por diante nos saudáveis risos escarninhos
do despique. As nuvens foram escurentar os céus do Varjão. Era
um nunca se acabar de troças e pilhérias de toda ordem. Inventavam
traços cômicos, exageravam as trapalhices do mundéu. Enfeitavam-no
como se faz ao mastro de São João. Sobre as linhas gerais debuxadas
pelo velho, os Porunguinhas iam atando cada qual o seu buquê, de modo
a tornar o pobre monjolo uma coisa prodigiosamente cômica. A palavra
Ronqueira entrou a girar nas vizinhanças como termo comparativo de
tudo quanto é risível ou sem pé nem cabeça.

Aos ouvidos do Nunes foram bater tais rumores. O orgulho, muito medrado
no período dos sonhos de grandeza, murchara-lhe como fruta verde colhida
antes do tempo. Mas, impossibilitado de vingar-se, deu de criar um rancor
surdo contra a Ronqueira, que, trôpega, lá ia malhando, dia e
noite, chóô-pan, muito lerda, muito parca de rendimento. Para
acalmar a bílis, Nunes dobrou as doses de cachaça.

A mulher amanhava a casa num grande desconsolo da vida, esmolambada, sem
mais esperanças d’arranjo p’r’aquele homem.

Sempre rentando o pai, somíssimo, Pernambi parecia um velhinho idiota.
Não tirava da boca o pito e cada vez batia mais forte no mulherio miúdo.

Brinquinho desnorteara. Sentado nas patas traseiras olhava, inclinando a
cabeça, ora para um, ora para outro, sem saber o que pensar da sua
gente.

E assim, meses.

Afinal, veio a desgraça. Feitiço de pau ou não, o caso
foi que o inocente pagou o crime do pecador, como é da justiça
bíblica. Certo dia soube Nunes que o José Cuitelo da Pedra Branca,
outro compadre, pusera nome a uma égua lazarenta de Ronqueira.

Era demais.

– Até aquele cachorro do Cuitelo! – gemeu o mísero, passando
a mão na garrafa.

Sorveu um gole e: – Pernambizinho, vem cá. Bebe com teu pai, meu
filho.

O menino não esperou novo convite: bebeu, um, dois e três goles,
estalando a língua. O resto da garrafa soverteu-se no bucho do caboclo.
Mal tonteado pelos eflúvios do álcool, o menino banzou um bocado
por ali e depois saiu.

Nunes estirou-se ao sol para dormir.

Era um dia feio de agosto. Céu turvo do fumo das queimadas.

Sol de cobre, sem brilho, a modorrar no ocaso. Folhinhas carbonizadas a
descerem lentas do alto, regirantes.

Transcorrida uma hora, o bêbedo acordou, relanceou em torno os olhos
mortiços.

– Quedele Pernambi? – disse às filhas acocoradas à soleira
da porta.

As meninas não sabiam do irmão.

– Chamem Pernambi, engrolou o bêbedo, recaindo em cochilo.

Uma das pequenas saiu no encalço do menino.

Os olhos de Nunes a custo se abriam; sua cabeça oscilava, como se
lhe houvessem desossado o pescoço. Da boca escorria-lhe baba, e molhadas
nela as palavras vinham vagas, mal atadas.

Súbito, um grito lancinante ao longe alvorotou a casa.

A mulher, estonteada, surge de dentro do casebre, pára à porta,
orienta-se e corre para onde a voz. As filhas disparam-lhe atrás, rumo
ao monjolo.

Silêncio trágico.

Depois novos gritos – gritos em coro -, gritos de desespero.

– Coitadinho do meu filho! – uivava lá longe a mãe.

Nunes soergue-se, amparado ao portal.

– Que é isso? – grunhe.

Ninguém lhe responde. Não há ninguém por ali.
Mas no monjolo recrudesce a grita. Para lá segue o bêbedo, cambaleante.
Em caminho dá de cara com a mulher, que voltava descabelada, a falar
sozinha.

– Que é que foi, mulher? Arrostando com o marido, a pobre mãe
afuzila nos olhos um raio de cólera incoercível.

– O que é? É tua obra, cachaceiro do inferno! É a tua
pinga, homem à-toa, esterco imundo! Vá ver, vá ver, vá
ver, desgraçado!…

Nunes alcança o monjolo com dificuldade. E topa um quadro horrendo.
No meio das filhas em grita, o corpinho magro de Pernambi de borco no pilão.
Para fora, pendentes, duas pernas franzinas – e o monjolo impassível,
a subir e a descer, chóó-pan, pilando uma pasta vermelha de
farinha, miolos e pelanca…

Esvaem-se-lhe os vapores do álcool e em semidemência Nunes
corre ao machado, ringindo os dentes, aos uivos.

– Chegou teu dia, desgraçado! Cena lúgubre foi aquela! Entre
rugidos de cólera, o louco arremessava golpes tremendos contra o engenho
assassino. Uma pancada na mão – toma Barbazu! Outra na haste – rebenta
demônio! Outra no pilão – estoura feiticeiro do diabo! – E pan,
pan, pan – dez, vinte, cem machadadas como nunca as desferiu derrubador nenhum
com tal rijeza de pulso.

Cavacos saltavam para longe, róseos cavacos da peroba assassina.
E lascas. E achas…

Longo tempo durou o duelo trágico da demência contra a matéria
bruta. Por fim, quando o monjolo maldito era já um monte escavado de
peças em desmantelo, o mísero caboclo tombou por terra, arquejante,
abraçado ao corpo inerte do filho. Instintivamente, sua mão
trêmula apalpava o fundo do pilão em procura da cabecinha que
faltava.

Notas: 1. O conto "A Vingança da Peroba" foi publicado na
primeira edição de Uru pês, com o título de "Chóóó!
Pan!".

2. Cuiame: Porção de cuias. Jogo de palavras; as cuias se
fazem das cabaças, ou porungas.

3. Cocho: Parte traseira do monjolo, que recebe a água.

4. Haste: Madeiro comprido que constitui a parte principal do monjolo.

5. Munheca: Mão de monjolo, peça que serve para pilar.

6. Pilão: Recipiente de madeira (tronco escavado) que recebe o milho
a ser pilado.

7. Virgem: Peça em cuja forquilha gira a haste.

8. Ancorote: Barrilete próprio para transportar pinga em Lombo de
burro.

9. Inferno: Lugar onde a água que move o monjolo despeja depois de
enchido o cocho.

10. Madeira ventada: Madeira naturalmente rachada.

11. Macaco: Contrapeso destinado a assegurar o bom equilíbrio de
haste do monjolo.

12. Sapuva: Madeira de que se fazem bons porretes.

Um suplício moderno

Todas as crueldades de que foi useira a Inquisição para reduzir
heréticos, as torturas requintadas da "questão" medieval,
o empalamento otomano, o suplício chinês dos mil pedaços,
o chumbo em fusão metido a funil gorgomilos adentro – toda a velha
ciência de martirizar subsiste ainda hoje encapotada sob hábeis
disfarces. A humanidade é sempre a mesma cruel chacinadora de si própria,
numerem-se os séculos anterior ou posteriormente ao Cristo. Mudam de
forma as coisas; a essência nunca muda. Como prova denuncia-se aqui
um avatar moderno das antigas torturas: o estafetamento.

Este suplício vale o torniquete, a fogueira, o garrote, a polé,
o touro de bronze, a empalação, o bacalhau, o tronco, a roda
hidráulica de surrar. A diferença é que estas engenharias
matavam com certa rapidez, ao passo que o estafetamento prolonga por anos
a agonia do paciente.

Estafeta-se um homem da seguinte maneira: o governo, por malévola
indicação dum chefe político, hodierno sucedâneo
do "familiar" do Santo Ofício, nomeia um cidadão estafeta
do correio entre duas cidades convizinhas não ligadas por via férrea.

O ingênuo vê no caso honraria e negócio. É honra
penetrar na falange gorda dos carrapatos orçamentívoros que
pacientemente devoram o país; é negócio lambiscar ao
termo de cada mês um ordenado fixo, tendo arrumadinha, no futuro, a
cama fofa da aposentadoria.

Note-se aqui a diferença entre os ominosos tempos medievos e os sobreexcelentes
da democracia de hoje. O absolutismo agarrava às brutas a vítima
e, sem tir-te nem habeas-corp os, trucidava-a; a democracia opera com manhas
de Tartufo, arma arapucas, mete dentro rodelas de laranja e espera aleivosamente
que, sponte sua, caia no laço o passarinho. Quer vítimas ao
acaso, não escolhe. Chama-se a isto – arte pela arte…

Nomeado que é o homem, não percebe a princípio a sua
desgraça. Só ao cabo de um mês ou dois é que entra
a desconfiar; desconfiança que por graus se vai fazendo certeza, certeza
horrível de que o empalaram no lombilho duro do pior matungo das redondezas,
com, pela frente, cinco, seis, sete léguas de tortura a engolir por
dia, de mala postal à garupa.

Eis as puas do aparelho de tormento, as tais léguas! Para o comum
dos mortais, uma légua é uma légua; é a medida
duma distância que principia aqui e acaba lá. Quem viaja, feito
o percurso, chega e é feliz.

As léguas do estafeta, porém, mal acabam voltam da capo, como
nas músicas. Vencidas as seis (suponhamos um caso em que sejam só
seis) renascem na sua frente de volta.

É fazê-las e desfazê-las. Teia de Penélope, rochedo
de Sísifo, há de permeio entre o ir e o vir a má digestão
do jantar requentado e a noite mal dormida; e assim um mês, um ano,
dois, três, cinco, enquanto lhes restarem, a ele nádegas, e ao
sendeiro lombo.

Quando cruza um viandante a jornadear, morde-o a inveja: aquele breve "chegará",
ao passo que para o estafeta tal verbo é uma irrisão. Mal apeia,
derreado, com o coranchim em fogo, ao termo dos trinta e seis mil metros da
caminheira, come lá o mau feijão, dorme lá a má
soneca e a aurora do dia seguinte estira-lhe à frente, à guisa
de "Bom dia!", os mesmos trinta e seis mil metros da véspera,
agora espichados ao contrário…

Breve o animal, pisado, dá de si, fraqueja. Já os topes o
cavaleiro galga a pé. Não possui meios de adquirir outra montada.
O ordenado vai-se-lhe em milho e "rapador" (1) para a alimária,
água de sal para os semicúpios e mais remédios às
pisaduras de ambos, cavalgante e cavalgado.

Não sobeja sequer para roupa.

Dá-lhe o Estado – o mesmo que custeia enxundiosas taturanas burocráticas
a contos por mês, e baitacas parlamentares a 200 mil réis por
dia – dá-lhe o generoso Estado…

cem mil réis mensais. Quer dizer "um real" por nove braças
de tormento. Com um vintém paga-lhe trezentos e trinta metros de suplício.
Vem a sair a sessenta réis o quilômetro de martírio. Dor
mais barata é impossível.

O estafeta entra a definhar de canseira e fome. Vão-se-lhe as carnes,
as bochechas encovam, as pernas viram parênteses dentro dos quais mora
a barriga do desventurado rocim.

Além das calamidades fisiológicas, econômicas e sociais,
chovem-lhe em cima as meteorológicas. O tempo inclemente não
lhe poupa judiarias.

No verão não se dói o sol de assá-lo como se
assam pinhões nas cinzas. Se chove, de nenhuma gota se livra.

Pelos fins de maio, à entrada do frio, é entanguido como um
súdito de Nicolau exilado nas Sibérias que devora as léguas
infernais. No dia de S. Bartolomeu, agarrado de unhas à crina da escanzelada
égua, é por milagre que não os despeja a ambos, pirambeira
abaixo, o endemoninhado vento.

O patrão-governo pressupõe que ele é de ferro e suas
nádegas são de aço; que o tempo é um permanente
céu com "brisas fagueiras" ocupadas em soprar sobre os caminhantes
os olores da "balsamina em flor".

Pressupõe ainda que os cem mil réis do salário são
uma paga real de lamber as unhas. E, nestas angelicais pressuposiçÕes,
quando há crises financeiras e lhe lembram economias, corta seus cinco,
seus dez mil réis no pingue ordenado, para que haja sobras permitidoras
d’ir à Europa um genro em comissão de estudos sobre "a
influência zigomática do periélio solar no regime zaratústrico
das democracias latinas".

E assim o exército dos estafetas, dia a dia mais encanifrado, encalacrado
de dívidas, enchagado de pisaduras, ao sol de dezembro ou à
garoa entanguente de junho, trota, trota sem cessar, morro acima, morro abaixo,
por atoleiros e are&otildeotilde;es, caldeirões e escorregadoiros, sacudido
pela miseranda cavalgadura que de tanto padecer, coitada, já nem jeito
de cavalo tem.

O lombo delas é todo uma chaga viva; as costelas, um ripado. Caricaturas
contristadoras do nobre Equus, um dia rebentam de fome, exaustas, a meio de
viagem.

O estafeta toma às costas os arreios, a mala, e conclui a caminheira
a pé. Nesse dia chega fora de horas, e o agente do correio oficia ao
centro sobre a "irregularidade".

O centro move-se; faz correr um papelório através de várias
salas onde, comodamente espapaçada em poltronas caras, a burocracia
gorda palestra sobre espiões alemães.

Depois de demorada viagem, o papelório chega a um gabinete onde impa
em secretária de imbuia, fumegando o seu charuto, um sujeito de boas
carnes e ótimas cores. Este vence dois contos de réis por mês;
é filho d’algo; é cunhado, sogro ou genro d’algo; entra às
onze e sai às três, com folga de permeio para uma "batida"
no frege da esquina.

O canastrão corre os olhos mortiços de lombeira por sobre
o papel e grunhe: – Estes estafetas, que malandros! E assina a demissão
daquele a bem do serviço público.

(E se isso não acontece, acontece pior. Certa vez o agente do correio
duma cidadezinha paulista oficiou ao centro queixando-se do estafeta. O centro
respondeu autorizando-o a "punir com severidade o faltoso". O agente
medita a sério sobre o caso; depois, mostrando o ofício ao estafeta,
e com muita dor de coração, ferra-lhe em nome do Governo a maior
sova de chicote de que há memória no lugar. Em seguida, oficia
ao centro dando conta do desempenho da missão e declarando que o serviço
ficaria interrompido por uma quinzena, visto o paciente estar de cama, a curar-se
com salmoura…) O supliciado, posto no olho da rua, sem saúde, sem
cavalo, sem nádegas, coberto de dívidas, com o fígado
e mais vísceras fora do lugar em virtude do muito que "chacoalharam",
vê-se logo rodeado pela chusma de credores, ávidos como urubus
de charqueada. Como está nu, mais nu que Job, não pode pagar
a nenhum – e ganha fama de caloteiro.

– Parecia um homem sério, e no entanto roubou-me cinco alqueires
de milho, diz o da venda, calabrês gordo, enricado no passamento de
notas falsas.

– Tomou-me emprestados cem mil réis para a compra de um cavalo, a
jurinho d’amigo (cinco por cento ao mês), já lá vão
cinco anos, e por muito favor pagou-me o premiozinho e deu os arreios por
conta. Que ladrão! diz o onzeneiro, sócio do outro na nota falsa.

A loja de fazenda chora umas calças de algodão mineiro que
lhe fiou em tempo. A farmácia, um quilo de sal-amargo falsificado.
Abeberado de insultos, o mártir só vê pela frente uma
saída: fincar o pé na estrada e fugir… fugir para uma terra
qualquer onde o desconheçam e o deixem morrer em paz.

Dest’arte, o moderno suplício do estafetamento, além de charquear
as carnes duma criatura humana limpa de crimes, dá-lhe ainda de lambuja
uma bela mortezinha moral.

Tudo isto a fim de que não falte aos soletradores de tais bibocas
do sertão o pábulo diário de graxa preta em fundo branco,
por meio do qual se estampam em língua bunda as facadas que Pé
Espalhado deu no Camisa Preta, o queijo que furtou o Baianinho ao Manoel da
Venda, o romance traduzido de Jorge Ohnet, o salvamento da pátria pela
alta volataria nacional, o palavreado gordo das ligas disto e daquilo, a descoberta
de espiões onde nada há que espiar, a policultura, o zebu, o
analfabetismo, o aliadismo, o germanismo, as potocas da Havas e quanta papalvice
grela por massapés e terras roxas deste país das arábias.

A política do coronel Evandro em Itaoca deu com o rabo na cerca des’que
em tal pleito o competidor Fidêncio, também coronel, guindou
a cotação dos votos de gravata a quinhentos mil réis,
e a dos votos de pé-no-chão a dois parelhos de roupa, mais um
chapéu.

O primeiro ato do vencedor foi correr a vassoura do Olho da Rua em tudo
quanto era olhodarruável em matéria de funcionalismo público.
Entre os varridos estava a gente do correio, inclusive o estafeta, para cuja
substituição inculcou-se ao governo o Izé Biriba.

Era este Biriba um caranguejo humano, lerdo de maneiras e atolambado de
idéias, com dois percalços tremendos na vida – a política
e o topete.

O topete consistia num palmo de grenha teimosa em lhe cair sobre a testa,
e tão insistente nisto que gastava ele metade do dia erguendo a mão
esquerda à altura da fronte para, num movimento maquinal, botar p’r’arriba
a crina rebelde. A política escusa dizer o que é.

Coligados ambos, topete e política comiam-lhe o tempo inteiro, de
jeito a não lhe deixar folga nenhuma para o amanho do sítio,
que, afinal, roído pelo cupim da hipoteca, lá foi parar nas
unhas dum onzeneiro ladrão.

Montou em seguida botequim mas faliu. Enquanto Biriba arrumava o topete,
os fregueses surrupiavam-lhe os mata-bichos; e nas cavaqueiras políticas,
os correligionários, de passo que expeliam diatribes contra o governo,
sorviam capilés refrescantes e mascavam bolinhos de peixe por conta
da vitória futura.

Além do topete tinha Biriba o sestro do "sim senhor" alçado
às funções de vírgula, ponto-e-vírgula,
dois-pontos e ponto final de todas as parvoiçadas emitidas pelo parceiro;
e às vezes, pelo hábito, quando o freguês parando de falar
entrava a comer, continuava ele escandindo a "sim senhores" a mastigação
do bolinho filado.

-q URUPÊS 77

Ao tempo da queda do outro e subida de sua gente, andava Biriba reduzido
à conspícua posição de "fósforo"
eleitoral. No pleito trabalhara como nenhum. Deram-lhe as piores missões
– acuar eleitores tabaréus embibocados nos socavões das serras,
negociar-lhes a consciência, debater preço de votos, barganhá-los
com éguas lazarentas e provar aos desconfiados, com argumentos de cochicho
ao ouvido, que o governo estava com eles.

Após a vitória, sentiu pela primeira vez um gozo integral
de coração, cabeça e estômago.

Vencer! Oh, néctar! Oh, ambrosia incomparável! O nosso homem
regalou as vísceras com o petisco dos deuses. Até que enfim
os negrores da vida de misérias lhe alvorejavam em aurora. Comer à
farta, serrar de cima…

Delícias do triunfo! Que lhe daria o chefe? No antegozo da pepineira
iminente, viveu a rebolar-se em cama de rosas até que rebentou sua
nomeação para o cargo de estafeta.

Sem queda para aquilo, quis relutar, pedir mais; na conferência que
teve com o chefe, entretanto, as objeções que lhe vinham à
boca transmutavam-se no habitual "sim senhor", de modo a convencer
o coronel de que era aquilo o seu ideal.

– Veja, Biriba, quanto vale a felicidade! Pilha um empregão! Vai
o Regino para agente e você para estafeta.

O mais que ele pôde alegar foi que não tinha cavalgadura.

– Arranja-se, resolveu de pronto o coronel; tenho lá uma égua
moira legítima, de passo picado, que vale duzentos mil réis.
Por ser para você, dou-a por metade. O dinheiro? É o de menos.
Você toma-o de empréstimo ao Leandrinho. Arranja-se tudo, homem.

O arranjo foi adquirir Biriba uma égua trotona pelo dobro do valor,
com dinheiro tomado a três por cento ao tal Leandro, que outra coisa
não era senão o testa-de-ferro do próprio Fidêncio.
Dest’arte, carambolando, o matreiro chefe punha a juros o pior sendeiro da
fazenda, além de conservar pelo cabresto da gratidão ao idiota
estafetado.

Iniciou Biriba o serviço: seis léguas diárias a fazer
hoje e a desfazer amanhã, sem outra folga além do último
dia dos meses ímpares.

Inda bem se fora devorar as léguas na só companhia da chupada
mala postal. Mas não lhe saiu serena assim a empresa. Como Itaoca não
passasse de mesquinho lugarejo empoleirado no espinhaço da serra e
desprovido de tudo, não transcorria vez sem que os amigos políticos
não viessem com encomendas a aviar na cidade. À hora de partir,
surgiam aproveitadores com listinhas de miudezas, ou moleques com recados.

– Sinhá disse assim p’ra suncê comprar três carretéis
de linha cinqüenta, um papel de agulhas, uma peça de cadarço
branco, cinco maços de grampo miúdo e, se sobejar um tostão,
p’ra trazer uma bala de apito p’r’o seu Juquinha.

Todos aqueles artigos existiam em Itaoca, um tantinho mais caros, porém
o encomendá-los fora visava apenas a economia do tostão da bala
de apito.

– Sim senhor, sim senhor!…

Não lhe escapava da boca outro som, embora o exasperasse a contínua
repetição do abuso.

Além das pequenas encomendas, pouco trabalhosas, surgiam outras de
vulto, como levar um cavalo arreado ao sr.

Fulano que vinha em tal dia, acompanhar a mulher de Etcetrano, e que tais.
A Tibúrcia, cozinheira preta do coletor, cada vez que ia de férias
descansar à cidade era o Biriba o indicado para conduzi-la.

Foi como o conheci, guardando costa às amazonas. De viagem para Itaoca,
a meio caminho topo um homem encavalgado na mais avariada égua que
jamais meus olhos viram. à garupa iam malas do correio e vários
picuás; no santo-antônio, mais picuás além duma
vassoura nova enganchada nos arreios com a palha para cima. Estava parado,
em atitude idiotizada, segurando pelo cabresto um cavalinho de silhão.
Abordei-o, pedindo fogo. Aceso o cigarro, indaguei de quem montava a cavalgadura
vazia.

– "Não vê" que estou acompanhando a dona Engrácia,
que é parteira em Itaoca. Ela apeou um bocadinho e…

Ouvi rumor atrás: saía do mato uma mulheraça rúbida,
de saias tufadas de goma, tendo na cabeça um toucadinho coevo de 5.
M. Fidelíssima… Para não vexá-la, pus-me a caminho,
não sem, voltando a cara de soslaio, regular-me com os apuros do estafeta
para entalar nas andilhas as cinco arrobas da parteira aliviada.

E descomposturas…

– Seu Biriba, não foi linha 40 que eu encomendei. O senhor parece
bobo! Quando a fazenda era má: – Não viu que a chita desbotava?
Que moda! Doía-lhe, sobretudo, carretear para a execrável gente
da oposição. O coronel contrário não se pejava
de por intromissão de terceiro, neutro ou oposicionista encapotado,
abusar da boa-fé do mártir. Lembrava-se Biriba, com dor d’alma,
de um bode de raça que lhe dera grandes trabalhos pelo caminho – e
várias marradas de lambuja; afinal, chegando, verificou que vinha para
o inimigo.

Toda a gente gozou do caso, entre espirros de riso e galhofa.

– É um pax vobis o Biriba! Trazer o bode da oposição!
Quiá! Quiá! Quiá! Estas e outras foram-lhe azedando os
fígados e as vísceras circunvizinhas. Biriba emagreceu. Biriba
amarelou.

A égua, coitada, perdeu a feição cavalar. Seu lombo
selara em meia-lua, de modo que por um nadinha não raspavam o chão
os pés do cavaleiro. Montado, Biriba afundava. Sua cabeça caía
quase ao nível duma linha tirada da anca às orelhas da égua.
Horrendamente pisada, trazia a bicha nos olhos permanentes lágrimas
de dor; mas em vez de tanta mazela mover ao dó o coração
dos itaoquenses, regalava-os, e eram chufas sem fim e piadas idiotas acerca
do "Estafeta da Triste Figura mais a sua Bucéfala", como
os batizou um engraçado local.

Lazarento como eles, só o Cunegundes, cão sem dono, coberto
de sarna, que perambulava a esmo pela cidade, fugindo a moscas e pontapés.
Pois não lhe mudaram o nome para Biribinha? Cachorrada! Não
tardou muito viesse o governo dar sua volta ao torniquete, cortando dez mil
réis no ordenado dos estafetas – para salvar-se em certa ocasião
de apuros financeiros. E salvou-se, esta é que é!.

A roupa no fio. A entrada das chuvas uma alma caridosa deu-lhe uma velha
capa de borracha; mas no primeiro aguaceiro verificou Biriba que tal capote
vazava como peneira, de modo a piorar-lhe a situação com a sobrecarga
dum panejamento absorvedor de litros d’água.

Biriba, perdida a paciência, murmurou.

Ai! Soube-o logo o chefe e fê-lo vir a contas.

– É certo que o senhor me anda arrenegando do emprego que lhe demos?
Queria, acaso, ser eleito senador ou vice-presidente? Um pedaço de
porcalhão que andava aí lambendo embira, morre não morre
de fome, passa, por generosidade nossa, a ocupar um cargo federal com ordenado
relativamente bom (aqui Biriba tossiu um… sim senhor"), encontra todas
as facilidades, recebe um bom animal e ainda se queixa? Que quer então
Vossa Excelência? Biriba intumesceu-se de coragem e declarou querer
uma coisa só: a demissão. Estava doente, surradíssimo,
ameaçado de perder de um momento para outro a égua e as nádegas.
Queria mudar de vida.

Muda-se, então, de vida assim do pé para a mão? Quer
abandonar os amigos? E a disciplina partidária onde fica, meu caro
palerma? Não convinha a ninguém a saída do Biriba. Quem
mais serviçal? Lembravam-se dos estafetas anteriores, malcriados, inimigos
de trazer um papel d’agulha fosse para quem fosse. Não sairia. Itaoca
impunha-lhe o sacrifício de ficar.

Mas a tortura do diário chocalhar por sete léguas das vísceras
do Biriba acabou por desconjuntar nele o cimento da lealdade partidária.
O mártir abriu os olhos. Lembrou-se com saudades dos ominosos tempos
do coronel Evandro, das delícias do botequim e até do calamitoso
período da degradação "fosfórica". Piorara
após o triunfo, não havia dúvida.

Este livre exame de consciência – crede-me, foi o início da
queda do coronel Fidêncio em Itaoca. Biriba, o firme esteio, apodrecia
pelo nabo; viria abaixo, e com ele a cumeeira do pardieiro político.
A víbora da traição armara ninho em sua alma.

Como o novo pleito se aproximasse, nova vitória lhe seria novo triênio
de martírio. Biriba ponderou de si para sua égua que a salvação
de ambos estava na derrota. Demitiam-no, e ele, veterano e mártir do
fidencismo, continuaria com jus ao apoio do partido, sem padecer por via coccigiana
o contato odioso das sete horas diárias de socado.

Deliberou trair.

Na véspera da eleição incumbiu-o Fidêncio de
trazer da cidade um papel importantíssimo para o tribofe das urnas.

Sei lá o que era! Um "papel". A palavra "papel"
dita assim em tom de mistério traz no bojo coisas Fidêncio frisou
a gravidade da incumbência – a maior prova de confiança jamais
dada por ele a um cabo eleitoral.

– Veja lá! A nossa sorte está nas suas mãos. Isto é
que é confiança, hein? Partiu Biriba. Recebeu na cidade o "papel"
e rodou para trás. A meio caminho, porém, tomou por uma errada,
foi ter à biboca dum negro velho, soltou a égua, pegou de prosa
com o gorila. Caiu a noite: Biriba deixou-se ficar.

Alvoreceu o dia seguinte: Biriba quieto. Dez dias se passaram assim. Ao
cabo, arreou a égua, montou e botou-se para Itaoca como se nada houvera
acontecido.

Foi um assombro a sua aparição. Baldadas as tentativas para
apanhá-lo no dia do pleito e nos posteriores, deram-no como papado
pelas onças, ele, égua, mala postal e "papel".

Vê-lo agora surgir sãozinho da silva foi um abrir de boca e
um pasmar à vila inteira. Que houve? Que não houve? A todas
as perguntas Biriba armava na cara a suprema expressão da idiotia.
Nada explicava. Não sabia de nada.

Sono cataléptico? Feitiço? Não compreendia o sucedido.

Afigurava-se-lhe ter partido na véspera e estar de volta no dia certo.

Ficaram todos maravilhados, com asníssimas caras.

Fidêncio delirava na cama, com febre cerebral. Perdera a eleição
redondamente. "Derrota fedida", arrotavam os vencedores, atochando
foguetes de assobio.

Em conseqüência do inexplicável eclipse do estafeta senhoreou-se
do rebenque o ex-ominoso Evandro. Começou a derrubada. O olho-da-rua
recebeu em seu seio tudo quanto cheirava a fidencismo. A vassoura da demissão,
porém, poupou a… Biriba.

O novo cacique aproximou-se dele e disse: – Demiti toda a canalha, Biriba,
menos a você. Você é a única coisa que se salva
da quadrilha do Fidêncio. Fique sossegado, que do seu lugarzinho ninguém
o arranca, nem que o céu chova torqueses.

Pela derradeira vez em Itaoca, Biriba balbuciou o "sim senhor".
À noite deu um beijo no focinho da égua e saiu de casa pé
ante pé. Ganhou a estrada e sumiu.

E nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima…

Nota: Rapador: Pasto de aluguel muito sovado; rapado.

Meu conto de Maupassant

Conversavam no trem dois sujeitos. Aproximei-me e ouvi: – "Anda a vida
cheia de contos de Maupassant; infelizmente há pouquíssimos
Guys…" – "Por que Maupassant e não Kipling, por exemplo?"
– "Porque a vida é amor e morte, e a arte de Maupassant é
nove em dez um enquadramento engenhoso do amor e da morte. Mudam-se os cenários,
variam os atores, mas a substância persiste – o amor, sob a única
face impressionante, a que culmina numa posse violenta de fauno incendido
de luxúria, e a morte, o estertor da vida em transe, o quinto ato,
o epílogo fisiológico. A morte e o amor, meu caro, são
os dois únicos momentos em que a jogralice da vida arranca a máscara
e freme num delírio trágico." – "Não te rias.
Não componho frases. Justifico-me. Na vida, só deixamos de ser
uns palhaços inconscientes a mentirmos à natureza quando esta,
reagindo, põe a nu o instinto hirsuto ou acena o ‘basta’ final que
recolhe o mau ator ao pó. Só há grandeza, em suma, e
‘seriedade’, quando cessa de agir o pobre jogral que é o homem feito,
guiado e dirigido por morais, religiões, códigos, modas e mais
postiços de sua invenção – e entra em cena a natureza
bruta." – "A propósito de que tanta filosofia, com este calor
de janeiro?…" O comboio corria entre São José e Quiririm.
Região arrozeira em plena faina do corte. Os campos em sega tinham
o aspecto de cabelos louros tosados à escovinha. Pura paisagem européia
de trigais.

A espaços feriam nossos olhos quadros de Millet, em fuga lenta, se
longe, ou rápida, se perto. Vultos femininos de cesta à cabeça,
que paravam a ver passar o trem. Vultos de homens amontoando feixes de espigas
para a malhação do dia seguinte. Carroções tirados
a bois recolhendo o cereal ensacado. E como caía a tarde e a Mantiqueira
já era uma pincelada opaca de índigo a barrar a imprimadura
evanescente do azul, vimos em certo trecho o original do "Angelus"…

– "Já te digo a propósito de que vem tanta filosofia."
E, enfiando os olhos pela janela, calou-se. Houve uma pausa de minutos. Súbito,
apontando um velho saguaraji avultado à margem da linha e logo sumido
para trás, disse: – "A propósito dessa árvore que
passou. Foi ela comparsa no ‘meu conto de Maupassant"’.

– "Conta lá, se é curto." O primeiro sujeito não
se ajeitou no banco, nem limpou o pigarro, como é de estilo. Sem transição
foi logo narrando.

– "Havia um italiano, morador destas bandas, que tinha vendola na estrada.
Tipo mal-encarado e ruim. Bebia, jogava, e por várias vezes andou às
voltas com as autoridades. Certo dia – eu era delegado de polícia –
uns piraquaras vieram dizer-me que em tal parte jazia o ‘corpo morto’ de uma
velha, picado à foice.

Organizei a diligência e acompanhei-os. ‘É lá naquele
saguaraji’, disseram ao aproximarem-se da árvore que passou. Espetáculo
repelente! Ainda tenho na pele o arrepio de horror que me correu pelo corpo
ao dar uma topada balofa num corpo mole. Era a cabeça da velha, semi-oculta
sob folhas secas. Porque o malvado a decepara do tronco, lançando-a
a alguns metros de distância.

Como por sistema eu desconfiasse do italiano, prendi-o.

Havia contra ele indícios fortes. Viram-no sair com a foice, a lenhar,
na tarde do crime.

Entretanto, por falta de provas, foi restituído à liberdade,
mau grado meu, pois cada vez mais me capacitava da sua culpabilidade. Eu pressentia
naquele sórdido tipo – e negue-se valor ao pressentimento! – o miserável
matador da pobre velha".

– "Que interesse tinha no crime?" – "Nenhum. Era o que alegava.
Era como argumentava a logicazinha trivial de toda a gente. Não obstante,
eu o trazia de olho, certo de que era o homicida." O patife, não
demorou muito, traspassou o negócio e sumiu-se. Eu do meu lado deixei
a polícia e do crime só me ficou, nítida, a sensação
da topada mole na cabeça da velha.

Anos depois o caso reviveu. A polícia obteve indícios veementes
contra o italiano, que andava por São Paulo num grau extremo de decadência
moral, pensionista do xadrez por furtos e bebedices. Prenderam-no e remeteramno
para cá, onde o júri iria decidir da sua sorte.

– "Os teus pressentimentos…" O sujeito sorriu com malícia
e continuou.

– "Não resistiu, não reagiu, não protestou. Tomou
o trem no Brás e veio de cabeça baixa, sem proferir palavra,
até São José; daí por diante (quem o conta é
um soldado da escolta) metia amiúde os olhos pela janela, como preocupado
em ver qualquer coisa na paisagem, até que defrontou o saguaraji. Nesse
ponto armou um pincho de gato e despejou-se pela janela fora. Apanharam-no
morto, de crânio rachado, a escorrer a couve-flor dos miolos perto da
árvore fatal." – "O remorso!" – "Está aqui
o ‘meu conto de Maupassant’. Tive a impressão dele nas palavras do
soldado da escolta: ‘veio de cabeça baixa até São José,
daí por diante enfiou os olhos pela janela até enxergar a árvore
e pinchou-se’. No progresso ingênuo da narrativa, li toda a tragédia
íntima daquele cérebro, senti todo um drama psicológico
que nunca será escrito…" – "É curioso!", comentou
o outro, pensativamente.

Mas o primeiro sujeito acendeu o cigarro e concluiu sorridente, com pausada
lentidão: – "O curioso é que mais tarde um dos piraquaras
denunciadores do crime, e filho da velha, preso por picar um companheiro a
foiçadas, confessou-se também o assassino da velhinha, sua mãe…"

"Meu caro, aquele pobre Oscar Fingall O’Flahertie Wills Wilde disse
muita coisa, quando disse que a vida sabe melhor imitar a arte do que a arte
sabe imitar a vida."

Nota: Na primeira edição de Urupês, o trabalho "Meu
Conto de Maupassant" tinha o artigo precedendo o possessivo: "O
Meu Conto de Maupassant".

"Pollice verso"

Dos dezesseis filhos do coronel Inácio da Gama, cedo revelou o caçula
singulares aptidões para médico. Pelo menos assim julgara o
pai, como quer que o encontrasse na horta interessadíssimo em destripar
um passarinho agonizante.

– Descobri a vocação do Nico, disse o arguto sujeito à
mulher. Dá um ótimo esculápio. Inda agorinha o vi lá
fora dissecando um sanhaço vivo.

Hão de duvidar os naturalistas estremes que o homem dissesse dissecar.
Um coronel indígena falar assim com este rigor de glótica é
coisa inadmissível aos que avaliam o gênero inteiro pela meia
dúzia de pafurícios agaloados do seu conhecimento. Pois disse.
Este coronel Gama abria exceção à regra; tinha suas luzes,
lia seu jornal, devorara em moço o Rocambole, as Memórias de
um Médico e acompanhava debates da Câmara com grande admiração
pelo Rui Barbosa, o Barbosa Lima, o Nilo e outros. Vinha-lhe daí um
certo apuro na linguagem, destoante do achavascado ambiente glóssico
da fazenda, onde morava.

Quem nada percebeu foi dona Joaquininha, a avaliar pelo ar emparvecido que
deu à cara.

– Dissecando – explicou superiormente o marido – quer dizer destripando.

– E deixou você que ele cometesse semelhante malvadeza? – exclamou
a excelente senhora, compadecida.

– Lá vens com a pieguice!… Deixa-o brincar, que é da idade,
eu em pequeno fazia piores e nem por isso virei nenhum ogre.

(Outra vez! "Ogre!" O homem nascera precioso. Este ogre devia
ser reminiscência do Ogre da Córsega, Napoleão chamado.
Perdoem-lho à guisa de compensação à parcimônia
da esposa, cujo vocabulário era dos mais restritos.) Dona Joaquina
fechou a cara, e quando o pequeno facínora entrou no quintal pediu-lhe
contas da perversidade, asperamente. O coronel, que nesse momento lia na rede
as folhas recém-chegadas, houve por bem interromper a ingestão
de um flamante discurso sobre a questão do Amapá para acudir
em apoio ao fedelho.

– Uma vez que será médico, não vejo mal em ir-se familiarizando
com a anatomia…

– A anatomia está ali! – rematou a encolerizada senhora apontando
a vara de marmelo oculta atrás da porta.

– Eu que saiba que o senhor me anda com judiarias aos pobres animaizinhos,
que te disseco o lombo com aquela anatomia, ouviu, seu carniceiro? o menino
raspou-se; o coronel retomou resignado o fio do discurso; e o caso do sanhaço
ficou por ali.

Mas não ficou por ali a malvadez do Nico. Acautelava-se agora. Era
às escondidas que "depenava" moscas, brinquedo muito curioso,
consistente em arrancar-lhes todas as pernas e asas para gozar o sofrimento
dos corpinhos inertes. Aos grilos cortava as saltadeiras, e ria-se de ver
os mutilados caminharem como qualquer bichinho de somenos.

Gatos e cães farejavam-no de longe, aterrorizados. Fora ele quem
cortara o rabo ao mísero Joli da agregada Emiliana, e era quem descadeirava
todos os gatos da fazenda.

Isso, longe. Em casa, um anjinho. E assim, anjo internamente e demônio
extramuros, cresceu até a mudança de voz.

Entrou nesse período para um colégio, e deste pulou para o
Rio, matriculado em medicina.

O emprego que lá deu aos seis anos do curso soube-o ele, os amigos
e as amigas. Os pais sempre viveram empulhados, crentes de que o filho era
uma águia a plumar-se, futuro Torres Homem de Itaoca, onde, vendida
a fazenda, então moravam. Nesta cidade tinham em mente encarreirar
o menino, para desbanque dos quatro esculápios locais, uns onagros,
dizia o coronel, cuja veterinária rebaixava os itaoquenses à
categoria de cavalos.

Pelas férias o doutorando aparecia por lá, cada vez "mais
outro", desempenado, com tiques de carioca, "ss" sibilantes,
roupas caras e uns palavreados técnicos de embasbacar.

Quando se formou e veio de vez, estava já definitivo, nos vinte e
quatro anos. Não se lhe descreve aqui a cara, porque retratos por meio
de palavras têm a propriedade de fazer imaginar feições
às vezes opostas às descritas. Dirse-á unicamente que
era um rapaz espigado, entre louro e castanho, bonito mas antipático
– com o olhar do Stuart Holmes, diziam as meninas doutoras em cinemas. No
queixo trazia barba de médico francês, coisa que muito avulta
a ciência do proprietário. Doentes há que entre um doutor
barbudo e um glabro, ambos desconhecidos, pegam sem tir-te no peludo, convictos
de que pegam no melhor.

O doutor Inacinho, entretanto, aborrecia aquele meio acanhado "onde
não havia campo – "Isto aqui", contava em carta aos colegas
do Rio, "é um puro degredo. Clínica escassa e mal pagante,
sem margem para grandes lances, e inda assim repartida por quatro curandeiros
que se dizem médicos, perfeitas vacas de Hipócrates, estragadores
de pepineira com suas consultinhas de cinco mil réis. O cirurgião
da terra é um Doyen de sessenta anos, emérito extrator de bichos-de-pé
e cortador de verrugas com fio de linha. Dá iodureto a todo o mundo
e tem a imbecilidade de arrotar ceticismo, dizendo que o que cura é
a Natureza. Estes rábulas é que estragam o negócio",
etc.

Negócio, pepineira, grandes lances – está aqui a psicologia
do novo médico. Queria pano verde para as boladas gordas.

– "Além disso", continuava, É-me insuportável
a ausência de Yvonne e de vocês. Não há cá
mulheres, nem gente com quem uma pessoa palestre. Uma pocilga! As boas pândegas
do nosso tempo, hein?" Ora aqui está: Yvonne, os amigos, as pândegas
foram o melhor do curso. Com mão diurna e noturna manuseou-os a estes
tratadistas de anatomia, da fisiologia, da calaçaria, e agora torturavam-no
saudades.

Yvonne voltara à pátria, deixando cá a meia dúzia
de amantes que depenara a morrerem de saudades dos seus encantos. Antes de
ir-se, deu a cada parvo uma estrelinha do céu, para que, a tantas,
se encontrassem nela os amorosos olhares. Os seis idiotas todas as noites
ferravam os olhos, um no "Taureau" (ela distribuíra as constelações
em francês), outro na "Écrevisse", outro na "Chevelure
de Bérenice", o quarto, no "Bélier", o quinto
em "Aritarés", e o derradeiro na "Épi de la Vièrge".

A garota morria de rir no colo dum apache monmartrino, contando-lhe a história
cômica dos seis parvos brasileiros e das seis constelações
respectivas. Liam juntos as seis cartas recebidas a cada vapor, nas quais
os protestos amorosos em temperatura de ebulição faziam perdoar
a ingramaticalidade do francês antártico. E respondiam de colaboração,
em carta circular, onde só variava o nome da estrela e o endereço.

Esta circular era o que havia de terno. Queixava-se a rapariga de saudades,
"essa palavra tão poética que fora aprender no Brasil,
o belo país das palmeiras, do céu azul, e dos michês".
Acoimava-os de ingratos, já em novos amores, ao passo que a pobrezinha,
solitária e triste "comme la juriti", consagrava os dias
a rememorar o doce passado.

Eis explicada a razão pela qual, nas noites límpidas, ficava
Inacinho à janela, pensativo, de olhos postos na "Chevelure de
Bérenice".

o sonho do moço era enriquecer às rápidas para reatar
a gostosura do idílio interrompido.

– Paris!… – balbuciava a meia-voz nos momentos de devaneio, semicerrando
os olhos no antegozo do paraíso.

Sonhava-se lá, riquinho, com Yvonne pelo braço, flamando no
"Bois", tal qual nos romances; e a realização deste
sonho era o alvo de todos os seus anelos. Jurara à amiga ir ter com
ela logo que a prosperidade lhe abastasse meios. O tempo, entretanto, corria
sem que nenhuma piabanha de vulto lhe caísse na rede. Tardava a boiada…

Entre os médicos antigos de Itaoca, o doutor Inacinho gozava péssimo
renome – se renome péssimo pode ser coisa de gozo.

– Uma bestinha! – dizia um. – Eu fico pasmado mas é de saírem
da Faculdade cavalgaduras daquele porte! É médico no diploma,
na barbicha e no anel do dedo. Fora d’aí, que cavalo! – E que topete!
– acrescentava outro. – Presumido e pomadista como não há segundo.
Não diz humores ou sífilis; é mal luético. Eu
o que queria era pilhá-lo numa conferência, para escachar…

O pai, já viúvo então, esse babava-se d’orgulho. Filho
médico, e ainda por cima destabocado e bem falante como aquele… Era
de moer de inveja aos mais. Enlevava-o, sobretudo, aquele modo aicandorado
de exprimir-se. Revia-se no filho, o coronel…

– A terminologia inteira da ciência alopata, coisas em grego e latim,
circunvolve naquela cabecinha – disse ele uma vez ao vigário, que o
olhou de revés, por cima dos óculos, ao som daquele mirífico
circunvolve.

E assim corria o tempo; entre as diatribes das duas ciências, a moça
e velha, com entremeio dos belos vocábulos que o coronel nunca perdia
de meter na falação.

Entrementes adoeceu o major Mendanha, capitalista aposentado com trezentas
apólices federais, o Rockefeller de Itaoca. Deu-lhe uma súbita
aflição, uma canseira, e a mulher alvoroçou-se.

– Não é nada, isto passa, acalmou ele.

– Passará ou não!… O melhor é chamar um médico.

– Qual, médico! Isto é nada.

Não era tão nada assim, como pretendia. À noite agravou-se-lhe
o mal-estar, e o velho, apreensivo, cedeu às instâncias da esposa.
Chamar a qual deles, porém? – Pois o Moura, disse a mulher, para quem
o da sua confiança era este Moura.

– Deus me livre! – retrucou o doente. – Aquilo é homem mal-azarado.
Pois não foi quem tratou o Zeca, o Peixoto, o Jerônimo? E não
esticaram a canela todos três? – O doutor Fortunato, então…

– O Fortunato! Já esqueceu você do que me ele fez por ocasião
do júri, o tranca? Cobrar cinqüenta mil réis por um atestado
falso? Não me pilha mais um vintém, o pirata…

No doutor Elesbão não se falou: era adversário político.

– Chama-se o Galeno…

– É tão mosca-morta o Galeno… – gemeu o doente com cara
de desconsolo. – Andou anos a tratar o Faria do Hotel como diabético,
e já o dava por morto quando um curandeiro da roça o pôs
saníssimo com um coco da Bahia comido em jejum. Eram solitárias
o diabetes do homem…

Só se viver o filho do Inácio?! Aqui foi a mulher quem protestou.

– Eu, a falar a verdade, prefiro a ruindade do Galeno, a má sorte
do Moura, e até o Elesbão…

– Esse, nunca!… – interrompeu o velho, num assomo de rancor político.

– … do que a antipatia do tal doutorzinho. Os outros ao menos têm
a experiência da vida, ao passo que este…

– Este, quê? – Este, Mendanha, é moço bonito, que o
que quer é dinheiro e pândega, você não vê?
– Qual!… – emberrinchou o teimoso. – Sempre há de saber um pouco
mais que os velhos; aprendeu coisas novas.

No caso de Nhazinha Leandro, não a pôs boa num ápice?
– Também que doença! Prisão de ventre…

URUPÊS 93

– Seja prisão ou soltura, o caso foi que a curou. Mande chamar o menino.

– Olhe, olhe! Depois não se arrependa!…

– Mande, mande chamá-lo e já, que não me estou sentindo
bem.

Inacinho veio. Interrogou detidamente o major, tomoulhe o pulso, auscultou-o
com o semblante carregado e disse, depois de longa pausa: – Não diagnostico
por enquanto, porque não sou leviano como "certos" por aí.
Sem auscultação estetoscópica nada posso dizer. Voltarei
mais tarde.

– Vê? – disse Mendanha à esposa logo que o moço partiu.
– Fosse o Moura, ou qualquer dos tais, e já dali da porta vinha berrando
que era isto mais aquilo. Este é consciencioso. Quer fazer uma auscultação,
quê? – Estereoscópica, parece.

– Seja o que for. Quer fazer a coisa pelo direito, é o que é.

Voltou o moço logo depois e com grande cerimonial aplicou o instrumento
no peito magro do doente. Vincou de novo a fisionomia das rugas da concentração
e concluiu com imponente solenidade.

– É uma pericardite aguda agravada por uma flegmasia hepático-renal.

O doente arregalou o olho. Nunca imaginara que dentro de si morassem doenças
tão bonitas, embora incompreensíveis.

– E é grave doutor? – perguntou a mulher, assustada.

– É e não é! – respondeu o sacerdote. – Seria grave
se, modéstia de lado, em vez de me chamarem a mim chamassem a um desses
matassanos que por aí rabulejam.

Comigo é diferente. Tive no Rio, na clínica hospitalar, numerosos
casos mais graves e a nenhum perdi. Fique descansada que porei o seu marido
completamente são dentro de um mês.

– Deus o ouça! – rematou a mulher, acompanhando-o até a porta
e já meio reconciliada com a "antipatia".

– Então? – perguntou-lhe o doente. – Fiz ou não fiz bem em
chamar este moço? – Parece… Deus queira tenhamos acertado, porque
isto de médicos é sorte.

– Não é tanto assim – reguingou o velho. – Os que sabem, conhecem-se
por meia dúzia de palavras, e este moço, ou muito me engano
ou sabe o que diz. Fosse o Fortunato…

E riu-se lá consigo ao imaginar as doencinhas caseiras que o Fortunato
descobriria nele…

A doença do major Mendanha ninguém soube qual fosse. O lindo
diagnóstico de Inacinho não passava de mera sonoridade pelintra.
Bacorejara ao moço que o velho tinha o coração fraco
e qualquer maromba no fígado. Isto porque lhe doía, a ele, aqui
no "vazio"; aquilo por ser natural.

Confessá-lo com esta sem-cerimônia, porém, seria fazer
clínica à moda do Fortunato, e desmoralizar-se. Além
do mais, quem sabe lá se não estaria ali o sonhado lance? Prolongar
a doença… Engordar a maquia…

Inácio não enxergava em Mendanha o doente, mas uma boiada
maior ou menor, conforme a habilidade do seu jogo.

A saúde do velho importava-lhe tanto como as estrelas do céu
– exceção feita à "Cabeleira de Berenice".
Como desadorasse a medicina, não vendo nela mais que um meio rápido
de enriquecer, nem sequer lhe interessava o "caso clínico"
em si, como a muitos. Queria dinheiro, porque o dinheiro lhe daria Paris,
com Yvonne de lambuja. Ora, o major tinha trezentas apólices… Dependia
pois da sua artimanha malabarizar aquele fígado, aquele coração,
aquelas palavras gregas e, num prestidigitar manhoso, reduzir tudo a uns tantos
contos de réis bem sonantes.

Mandou carta à francesinha: "Os negócios melhoraram.

Estou metido em uma empresa que se me afigura rendosa.

Saindo tudo a contento, tenho esperanças de inda este ano beijar-te
sob a luz da terna confluente dos nossos olhares…" O velho piorou com
a medicação. Injeções hipodérmicas, cápsulas,
pílulas, poções, não houve terapêutica que
se não experimentasse desastrosamente.

-É mais grave o caso do que eu supunha – disse o doutor à
mulher – e os escrúpulos do meu sacerdócio aconselham-me a pedir
conferência médica. Os colegas da terra são o que a senhora
sabe; entretanto, submeto-me a ouvi-los.

– Não, doutor! Mendanha não quer ouvir falar nos seus colegas;
só tem confiança no doutor Inácio Gama.

– Nesse caso…

Inacinho voltou para casa esfregando as mãos. Estava só em
campo, com todos os ventos favoráveis. Paris corrialhe ao encontro…

Mau grado seu, na semana seguinte, inesperadamente, o raio do major apresentou
melhoras. Sarava, o patife! E a Inácio palpitou que com mais uma quinzena
daquela arribação o homem se punha de pé.

Fez os cálculos: trinta visitas, trinta injeções e
tal e tal: três contos. Uma miséria! Se morresse, já o
caso mudava de figura, poderia exigir vinte ou trinta.

Era costume dos tempos fazerem-se os médicos herdeiros dos clientes.
Serviços pagos em caso de cura aí com centenas de mil réis,
em caso de morte reputavam-se em contos. Se os interessados relutavam no pagamento,
a questão subia aos tribunais, com base no arbitramento. Os árbitros,
mestres do mesmo ofício, sustentavam o pedido por coleguismo, dizendo
em latim: Hodie mihi, cras tibi, cuja tradução médica
é: prepare-se você para me fazer o mesmo, que também pretendo
dar a minha cartada.

Inácio ponderou tudo isto. Mediu prós e contras. Consultou
acórdãos. E tão absorvido no problema andou que à
noite se deixava ficar à janela até tarde, mergulhado em cismas,
sem erguer os olhos para a Berenice estelar.

O que a sua cabeça pensou ninguém o saberá jamais.

Têm as idéias para escondê-las a caixa craniana, o couro
cabeludo, a grenha: isso por cima; pela frente têm a mentira do olhar
e a hipocrisia da boca. Assim entrincheiradas, elas, já de si imateriais,
ficam inexpugnáveis à argúcia alheia. E vai nisso a pouca
de felicidade existente neste mundo sublunar. Fosse possível ler nos
cérebros claros como se lê no papel e a humanidade crispar-se-ia
de horror ante si própria…

Positivo como era Inacinho, supomos que meteu em equação o
problema das duas vidas.

Primeira hipótese: Cura do major = três contos.

Três contos = Itaoca, pasmaceira, etc…

Segunda hipótese: Morte do major = trinta contos.

Trinta contos = Paris, Yvonne, "Bois"…

Depois desta sólida matemática, esta anavalhante filosofia.
"A morte é um preconceito. Não há morte. Tudo é
vida.

Morrer é transitar de um estado para outro. Quem morre, transforma-se.
Continua a viver inorganicamente, transmutado em gases e sais, ou organicamente,
feito lucílias, necróforas e uma centena de outras vidinhas
esvoaçantes. Que importa para a universal harmonia das coisas esta
ou aquela forma? Tudo é vida. A vida nasce da morte. Eu preciso, eu
‘quero’ viver a minha vida. Há óbices no caminho? Afasto-os…"
Fiquemos por aqui. Não há tempo para filosofias, porque o major
Mendanha piorou subitamente e lá agoniza.

Morreu.

O atestado de óbito deu como causa mortis flegmatite complicada com
necrose elipsoidal. Podia batizá-la de embolia estourada, nó
cego na tripa, tuberculose mesentérica, estupor granuloso peristáltico
ou qualquer outro dos cem mil modos de morrer à grega.

Morreu, e está dito tudo. Morreu, e o doutor Inacinho apresentou
no inventário uma conta de chegar: trinta e cinco contos de réis.

Os herdeiros impugnaram o pagamento. Move-se a traquitana da Justiça.
Mói-se o palavreado tabelionesco. Saem das estantes carunchosos trabucos
romanos. Procede-se ao arbitramento.

Os árbitros são Fortunato e Moura, os quais disseram entre
si: – Que grande velhaco! Mata o homem e ainda por cima quer ficar-se herdeiro!
O tratamento, alto-e-meio, não vale cem mil réis. Que valha
duzentos. Que valha um conto ou três. Mas trinta e cinco? É ser
ladrão!…

No laudo, entretanto, acharam relativamente módico o pedido – sem
dizer relativo a quê.

A Justiça engoliu aquele papel, gestou-o com outros ingredientes
da praxe e, a cabo de prazos, partejou um monstrozinho chamado sentença,
o qual obrigava o espólio a aliviar-se de trinta e cinco contos de
réis em proveito do médico, mais custas da esvurmadeia forense.
Inacinho, radiante, embolsou os cobres e reconciliou-se com os dois colegas
que, afinal de contas, não eram os cretinos que supusera.

– Colegas, o passado, passado; agora, para a vida e para a morte! – Pois
está visto! – disse Fortunato. – Tolo andou você em abrir luta
com os que ajudam o negócio. O coleguismo: eis a nossa grande força!…

– Tem razão, tem razão. Criançada minha, ilusões,
farofas que a idade cura…

Que mais? Que voou a Paris? É claro. Voou e lá está
sob o pálio da grenha astral, a passear com a Yvonne no "Bois".
k Ao pai escreveu: – Isto é que é vida! Que cidade! Que povo!
Que civilização! Vou diariamente à Sorbonne ouvir as
lições do grande Doyen e opero em três hospitais. Voltarei
não sei quando. Fico por cá durante os trinta e cinco contos,
ou mais, se o pai entender de auxiliar-me neste aperfeiçoamento de
estudos.

A Sorbonne é o apartamento em Montmartre onde compartilha com o apache
da Yvonne o dia da rapariga. Os três hospitais são os três
cabarés mais à mão.

Não obstante, o pai cismou naquilo cheio d’orgulho, embora pesaroso:
não estar viva a Joaquininha para ver em que altura pairava o Nico
– o Nico do sanhaço estripado…

Em Paris! Na Sorbonne!… Discípulo querido do Doyen, o grande, o
imenso Doyen!…

Mostrou a carta aos médicos reconciliados.

– Isso de hospitais – gemeu o invejoso Fortunato – é uma mina. Dá
nome. Para botar nos anúncios é de primeiríssima.

– E o Doyen? – murmurou, baboso, o embevecido pai.

– Não há como a gente apropinquar-se das celebridades…

– É isso mesmo, concluiu o Moura, relanceando um olhar ao Fortunato
num comentário mudo àquele mirífico apropinquamento.
E os dois enxugaram, à uma, os copos da cerveja comemorativa mandada
abrir pelo bem-aventurado coronel.

Bucólica

Tanta chuva ontem!… O cedrão do pasto fendido pelo raio – e hoje,
que manhã! A natureza orvalhada tem a frescura de uma criancinha ao
deixar o banho. Inda há rolos de cerração vadia nas grotas.
O sol já nado e ela com tanta preguiça de recolher os véus
de neblina… A vegetação toda a pingar orvalho, bisbilhante
de gotas que caem e tremelicam, sorri como em êxtase. Há em cada
vergôntea folhinhas de esmeralda tenra brotadas durante a noite. A mão
de quem passa não resiste: colhe-as de alcance, porque é um
gosto mordiscar-lhe a polpa macia.

Meu Deus! O que vai de aranhóis pela relva – nos galhinhos de joveva,
nas flechas de capim, grandes e pequeninos, todos mimosos de desenho, tecidos
a fio de seda…

Compraz-se a noite em agrumar neles milhões de diamantezinhos que
a luz da manhã irisa. Malmequeres por toda a parte – amarelos, brancos.
E tanta flor sem nome…

– Flor à-toa, diz a gente roceira.

São, coitadinhas, a plebe humílima. A nobreza floral mora
nos jardins, esplendendo cores de dança serpentina sob formas luxuriosas
de odaliscas. A duquesa Dália, sua majestade a Rosa, o samurai Crisântemo
– que fidalguia! Bem longe estão destas aqui, azuleguinhas, um pouco
maiores do que uma conta de rosário.

Não obstante, vejo nestas mais alma. Leio mil coisas na sua modéstia.
Lutaram sem tréguas contra o solo tramado de raízes concorrentes,
contra as lagartas, contra os bichos que pastam. Que tenacidade, que prodígio
de economia não representam estas iscas de pétalas, e o perfume
agreste que as oloriza, e a cor – tentativa de azul – com que se enfeitam,
as feiticeirinhas! São belas, sim – da sua beleza, a beleza selvática
das coisas que jamais sofreram a domesticação do homem.

As flores de jardim: escravas de harém… Adubo farto, terra livre,
tutores para a haste, cuidados mil – cuidados do homem para com a rês
na ceva… As agrestes morrem livres no hastil materno; as fidalgas, na guilhotina
da tesoura. Fábula do lobo e do cão…

Que ar! A gente das cidades, afeita a sorver um indecoroso gás feito
de pó em suspensão num misto de mau azoto e pior oxigênio,
ignora o prazer sadio que é sentir os pulmões borbulhantes deste
fluido vital em estado de virgindade. O oxigênio fresquinho foi elaborado
naquele momento pela vegetação viçosa. Respirá-lo
é sorver vida à nascente.

Ali, o rio. Ingazeiros desgalhados pendem sobre ele as franças, cujas
pontas lhe arrepiam o espelho das águas.

Caem na corrente flores mortas. O movediço esquife condulas com mimo
até a barulhenta corredeira próxima; lá irritado, amarfanha-as,
fá-las pedaços – e as coitadinhas viram babugem.

Margeia o rio a estrada, ora d’ocre amarelo, ora roxoterra; aqui, túnel
sob a verdura picada no alto de nesgões de luz; além, escampa.
Nos barrancos há tocos de raízes decepadas pelo enxadão
e covas de formigueiros mortos onde as corruíras armam ninho.

Surgem casebres de palha.

Lá na aguada bate roupa uma mulher.

Rumor no mato… Sai dele, de lenha ao ombro, uma cabocla.

– Sirinh’Ana, bom dia! Que é do Luiz? – No eito, coitado.

– Sarou bem? – Chê que esperança! Melhorzinho. Panarício
é uma festa!… Baitacas em bando, bulhentas, a sumirem-se num capão
d’anjico. Borboletas amarelas nos úmidos. Parece um debulho de flores
de ipê.

Uma preá que corta o caminho.

– Pega, Vinagre! Outra casinha, lá longe. E a toca do Urunduva, caboclo
maleiteiro. Este diabo tem no sítio a coisa mais bela da zona – a paineira
grande. Dirijo-me para lá. Um carreirinho entre roças, a pinguela,
um valo a saltar… Ei-la! Que maravilha! Derreada de flores cor-de-rosa,
parece uma só imensa rosa crespa. Beija-flores como ali ninguém
jamais viu tantos. Milheiros não digo – mas centenas, uma centena pelo
menos lá está zunindo. Chegam de longe todas as manhãs
enquanto dura a festa floral da paineira mãe. Voejam rápidos
como o pensamento, ora librados no ar, sugando uma corola, ora riscando curvas
velocíssimas, em trabalhos de amor.

Que lindo amor – alado, rutilante de pedrarias! Respiro um ar cheiroso,
adocicado, e fico-me em enlevo a ver as flores que caem regirantes. Se afia
mais forte a brisa, despegam-se em bando e recamam o chão. Devem ser
assim as árvores do país das fadas…

O Urunduva? É ele mesmo. Amarelo, inchado a arrastar a perna…

– Então, meu velho, na mesma? – Melhorzinho. A quina sempre é
remédio.

– Isso mesmo, quina, quina.

– É… mas está cara, patrão! Um vidrinho assim, três
cruzados. Estou vendo que tenho de vender a paineira.

– Não vê que o Chico Bastião dá dezoito mil réis
por ela – e inda um capadinho de choro. Como este ano carregou demais, vem
paina p’r’arrobas. Ele quer aproveitar; derruba o…

Derruba!…

– Derruba e…

– Por que não colhe a paina com vara, homem de Deus? – Não
vê que é mais fácil de derrubar…

– Derruba!…

Fujo dali com este horrível som a azoinar-me a cabeça.

Aquela maleita ambulante é "dona" da árvore. O Urunduva
está classificado no gênero "Homo". Goza de direitos.
É rei da criação e dizem que feito à imagem e
semelhança de Deus.

Roças de milho. A terra calcinada, com as cinzas escorridas pelo
aguaceiro da véspera, inça-se de tocos carbonizados, e árvores
enegrecidas até meia altura, e paulama em carvão. Entremeio,
covas de milho já espontando folhinhas tenras.

– Derruba!…

Adiante, feijão. O terreno varrido, cor de sépia, pontilhado
pelo verde das plantas recém-vindas, lembra chita de velha: as velhas
gostam de chitas escuras com pintas verdes.

É aqui o sítio da Maria Veva. Tem ruim fama esta mulher papuda.
Má até ali, dizem.

O marido – coitado – um bobo que anda pelo cabresto – Pedro Suã.
Ganhou este apelido desde o célebre dia em que a mulher o surrou com
um suã de porco. Lá vem ele, de espingardinha…

– Vai caçar? – Antes fosse. Vou cuidar do enterro.

– Enterro?…

– Pois morreu lá a menina, a Anica.

– Pobrezinha! De quê? – A gente sabe? Morreu de morte…

Estúpido! Sem querer, dirijo-me para a casa dele. Não gosto
da Veva. É horrenda, beiço rachado, olhar mau – e aquele papo!
– Então, Nhá, morreu a menina? Soube-o inda agora pelo Suã…

– É.

Que resposta seca! – E de que morreu? – Deus é que sabe.

Peste! E como a atrevidaça me olha duro! Sinto-me mal em sua presença.

– Adeus, Sicorax! Para alguma coisa sirva a literatura…

Arrepio caminho, entristecido. A manhã vai alta, já crua de
luz. O sol, estúpido; o azul, de irritar. Que é dos aranhóis?
Sumiram-se com o orvalho que os visibiliza. Estão agora invisíveis,
a apanhar insetinhos incautos que Nhá Veva Aranha devora. A paisagem
perdeu o encanto da frescura e da bruma. Está um lugar comum. Não
vejo flores nem pássaros. O excesso de luz dilui as flores, o calor
esconde as aves. Só um caracará resiste ao mormaço, empoleirado
num tronco seco de peroba. Está de tocaia aos pintos do Urunduva, o
rapinante.

Um vulto… É mulher… Será a Inácia? Vem de trouxa
à cabeça. É ela mesma, a preta agregada aos Suãs.

– Então, rapariga? – Ai, seu moço, vou-me embora. Alguém
há de ter dó da velha. Na casa da peste papuda, nem mais um
dia! Antes morrer de fome…

– Que coisa houve? – Não sabe que morreu a aleijadinha? Pois é,
morreu.

Morreu, a pobre, só porque ontem esta sua negra foi no bairro do
Libório e a chuva me prendeu lá. Se eu pudesse adivinhar…

– Mas de que morreu a menina, criatura? – Sabe do que morreu? Morreu…
de sede! Morreu, sim, eu juro, um raio me parta pelo meio se a coitadinha
não morreu…

Aqui soluços de choro cortaram-lhe a voz.

– … de seeeede! Meu Deus do céu, o que a gente não vê
neste mundo! A menina era entrevada e a mãe, má como a irara.
Dizia sempre: Pestinha, por que não morre? Boca à-toa, a comer,
a comer. Estica o cambito, diabo! Isto dizia a mãe – mãe, hein?
A Inácia, entretanto, morava lá só para zelar da aleijadinha.
Era quem a vestia, e a lavava, e arrumava o pratinho daquele passarico enfermo.
Sete anos assim. Excelente negra! – Coisa de três dias ‘garrou uma doencinha,
dor de cabeça, febre. Dei chá de hortelã; nada. Dei cidreira;
nada.

Sempre a quentura da febre. Disse comigo: "Vou lá no bairro
e trago uma dose." Fui, é longinho, três quartos de légua.
O curador me deu a dose, mas quem disse de poder voltar? Uma chuvarada…
Pousei no Libório. Hoje, manhãzinha, vim.

Entrei alegre, pensando: a coitadinha vai sarar. Eu que pisei na alcova,
dou com a menina espichada na esteira, fria. Anica! Anica! Quando vi bem que
estava morta de verdade, ah, seu moço, berrei como nunca na minha vida.

– "Nhá Veva, de que jeito morreu Anica, conte, conte!"
Nhá Veva quieta, repuxando a boca. Uma pedra! Caí em cima da
menina, beijei, chorei. Nisto, uma cutucada era o Zico, aquele negrinho, sabe?
Olhei p’ra ele: fez jeito de me falar longe da taturana. Lá fora me
contou tudo. A menina, des’que eu saí piorou. Mas quietinha sempre.
Noite alta, gemeu.

– "Cala a boca, peste!", gritou do outro quarto a mãe –
mãe, veja! – "Quero água, nhá mãe."
– "Cala a boca, peste!" A menina calou. Mais tarde gemeu outra vez,
baixinho.

– "Quero água! Quero água!" Ninguém se mexeu.

– "E tu, negrinho safado, por que não acudiu a menina?"
– "Não vê! Eu conheço Nhá Veva!…" Seu
Pedro, aquele trapo, esse estava na pinga de todo dia. Ninguém na casa
para chegar uma caneca d’água à boca da doentinha. Ela, um chorinho
ainda; depois, mais nada. De manhã…

Lágrimas escorriam a fio pela cara da preta e soluços de dor
cortavam-lhe as palavras.

– De manhã foram encontrar a menina morta na cozinha, rente ao pote
d’água. Arrastou-se até lá, o anjinho que nem se mexer
na cama podia – e morreu de sede diante da água!…

– Quem sabe se…

– Não bebeu, não! O pote, em cima da caixa, ficava alto, e
a caneca estava tal e qual no lugarzinho do costume.

Não bebeu, não! Morreu de sede, o anjo! Enxugou as lágrimas
na manga.

– Agora vou no Libório. Se ele me quiser, fico. Se não, sou
bem capaz de me pinchar nesse rio. Este mundo não paga a pena…

Sol a pino. Desânimo, lassidão infinita…

O mata-pau

Píncaros arriba e pirambeiras abaixo, a serra do Palmital escurece
de mataria virgem, sombria e úmida, tramada de taquaruçus, afestoada
de taquaris, com grandes árvores velhas de cujos galhos pendem cipós
e escorrem barbas-depau e musgos..

Quem sobe da várzea, depois de transpostas as capoeiras da raiz,
ao emboscar-se de chofre no frio túnel vegetal que é ali a estrada,
inevitavelmente espirra. E se é homem das cidades, pouco afeito aos
aspectos bravios do sertão, depois do espirro abre a boca, pasmado
da paulama. Extasia-se ante a graciosa copa dos samambaiuçus, ante
as borboletas azuis, ante as orquídeas, os liquens, tudo.

Sofrea o animal sem o sentir mas não pára. Vai parar diante,
na Volta Fria, onde um broto d’água gelada, a fluir entremeio às
pedras, o tenta a sorver um gole aparado em folha de caeté. Bebida
a água, e dito que nas cidades não há daquilo, leva-lhe
a vista o soberbo mata-pau que domina o grotão.

– Que raio de árvore é esta? – pergunta ele ao capataz, pasmado
mais uma vez.

E tem razão de parar, admirar e perguntar, porque é duvidoso
existir naquelas sertanias exemplar mais truculento da árvore assassina.

Eu, de mim, confesso, fiz as três coisas. O camarada respondeu à
terceira; – Não vê que é um mata-pau.

– E que vem a ser o mata-pau? – Não vê que é uma árvore
que mata outra. Começa, quer ver como? – disse ele escabichando as
frondes com o olhar agudo em procura dum exemplar típico. Está
ali um! – Onde? – perguntei, tonto.

– Aquele fiapinho de planta, ali no gancho daquele cedro – continuou o cicerone,
apontando com dedo e beiço uma parasita mesquinha grudada na forquilha
de um galho, com dois filamentos escorridos para o solo. – Começa assinzinho,
meia dúzia de folhas piquiras; bota p’ra baixo esse fio de barbante
na tenção de pegar a terra. E vai indo, sempre naquilo, nem
p’ra mais nem p’ra menos, até que o fio alcança o chão.
E vai então o fio vira raiz e pega a beber a sustância da terra.
A parasita cria fôlego e cresce que nem embaúva. O barbantinho
engrossa todo dia, passa a cordel, passa a corda, passa a pau de caibro e
acaba virando tronco de árvore e matando a mãe, como este guampudo
aqui – concluiu, dando com o cabo do relho no meu mata-pau.

– Com efeito! – exclamei admirado. – E a árvore deixa? – Que é
que há de fazer? Não desconfia de nada, a boba. Quando vê
no seu galho uma isca de quatro folhinhas, imagina que é parasita e
não se precata. O fio, pensa que é cipó. Só quando
o malvado ganha alento e garra de engrossar, é que a árvore
sente a dor dos apertos na casca.

Mas é tarde. O poderoso daí por diante é o mata-pau.
A árvore morre e deixa dentro dele a lenha podre.

Era aquilo mesmo! O lenho gordo e viçoso da planta facinorosa envolvia
um tronco morto, a desfazer-se em carcoma. Viam-se por ele arriba, intervalados,
os terríveis cíngulos estranguladores; inúteis agora,
desempenhada já a

missão constritora, jaziam frouxos e atrofiados.

Imaginação envenenada pela literatura, pensei logo nas serpentes
de Laocoonte, na víbora aquecida no seio do homem da fábula,
nas filhas do rei Lear, em todas as figuras clássicas da ingratidão.
Pensei e calei, tanto o meu companheiro era criatura simples, pura dos vícios
mentais que os livros inoculam. Encavalgamos de novo e partimos.

Não longe dali a serra complana-se em rechã e a mata mingua
em capoeira rala, no meio da qual, em terreiro descoivarado, entremostra-se
uma tapera. Esverdece o melão-de-são-caetano por sobre o derruído
tapume do quintalejo, onde laranjeiras com erva-de-passarinho e uma ou outra
planta doméstica marasmam agoniadas pelo mato sufocante.

– Antigo sítio do Elesbão do Queixo d’Anta, explicou o camarada.

– Largado? – perguntei.

– Há que anos! Des’que mataram o homem ficou assim.

Bacorejou-me história como as quero.

– Mataram-no? Conte lá isso como foi.

O camarada contou a história que para aqui traslado com a possível
fidelidade. O melhor dela evaporou-se, a frescura, o correntio, a ingenuidade
de um caso narrado por quem nunca aprendeu a colocação dos pronomes
e por isso mesmo narra melhor que quantos por aí sorvem literaturas
inteiras, e gramáticas, na ânsia de adquirir o estilo. Grandes
folhetinistas andam por este mundo de Deus perdidos na gente do campo, ingramaticalíssima,
porém pitoresca no dizer como ninguém.

Elesbão morava com o pai no Queixo d’Anta, onde nascera. Quando a
puberdade lhe engrossou a voz, disse ao velho: – Meu pai, quero casar.

O pai olhou para o filho pensativamente; em seguida falou: – Passarinho
cria pena é para voar. Se você já é homem, case.

O rapaz pediu-lhe que pusesse em prova a sua virilidade.

O pai refletiu e disse: – Derrube o jataí da grotinha, sem tomar
fôlego.

Elesbão afiou o machado, arregaçou as mangas e feriu o pau.
Em toada de compasso, bateu firme a manhã inteira.

À hora do almoço, o pan pan continuava sem esmorecimento.
Só quando o sol aprumou no pino é que a madeira gemeu o primeiro
estalido.

– Está no chão – disse o pai, que se acercara do filho exausto
mas vitorioso. – Pode casar. É homem.

Elesbão trazia d’olho uma menina das redondezas, filha do balaieiro
João Poca, a Rosinha, bilro sapiroquento de treze anos, feiosa como
um rastolho.

– Meu pai, eu quero a Rosinha Poca.

– Case. Mas ouça o que digo. Os Pocas não são boa gente.
Os machos ainda servem – o João é um coitado, o Pedro não
é má bisca; mas as saias nunca valeram nada. A mãe da
Rosa é falada. Laranjeira azeda não dá laranja-lima.

Você pense.

– Meu pai, o futuro é de Deus. Eu quero casar com a Rosinha.

– Pois case.

Deliberado com tal firmeza, Elesbão tratou de sitiar-se.

Arrendou a rechã da tapera, roçou, derrubou, queimou, plantou,
armou a choça. Barreadas que foram as paredes, pediu a menina e casou-se.

Rosa só o era no nome. No corpo, simples botão inverniço,
desses que melam aos frios extemporâneos de maio.

Olhos cozidos e nariz arrebitado, tal qual a mãe. Feia, mas da feiúra
que o tempo às vezes conserta. Talvez se fiasse nisso o noivo.

Elesbão, rijo no trabalho, prosperou. Aos três anos de labuta
era já sitiante de monjolo, escaroçador e cevadeira, (1) com
dois agregados no eito.

Prole, até esse tempo nenhuma; e isso entristecia a casa.

Mas resignavam-se já ao vazio da esterilidade quando certa noite
soou choro de criança no terreiro.

Não se conta o terror de ambos – aquilo era na certa alma penada
de criança morta pagã. Como, entretanto, a pobre alma berrasse
com pulmões muito da terra, e cada vez mais, Elesbão duvidou
do bruxedo e, acendendo uma braçada de palha, lançou-a fora
pela janela. O terreiro clareou até longe e eles viram, a pouca distância,
uma criaturinha de gatas a berrar com desespero de quem é absolutamente
deste mundo.

– E não é que é uma criança de verdade? – exclamou
ele, saído de um assombro e entrado noutro. – E agora? – Pois é
recolhê-la, disse Rosa, cujo instinto de mulher só via no caso
um pobre enjeitadinho ao léu, a reclamar conchego.

Recolheu-o Elesbão, depondo o chorincas no colo da esposa. Rosa o
estreitou ao seio, acalmando-o, ao mesmo tempo que "assentava" o
marido.

– Se não aparecer a mãe, cria-se o aparecido. Faz tanta falta
um chorinho por aqui…

No dia seguinte bateram nas vizinhanças em indagações,
sem nada colherem explicativo do estranho caso. Resolveram, pois, adotar o
pequeno.

o pai de Elesbão, consultado, ponderou: – Não presta criar
filho alheio.

Mas como o consulente armasse cara de vacilação, remendou
logo a sua filosofia: – Também não é caridade enjeitar
um enjeitado – e ficou-se nisso.

Rosa conservou o pequeno e deu com ele criado à força de leite
de cabra e caldinhos.

À medida, porém, que medrava, o menino punha a nu a má
índole congenial. Não prometia boa coisa, não.

– Eu avisei, recordou o velho, como Elesbão se queixasse um dia da
ruim casta do recolhido.

– Meu pai disse também que não era caridade enjeitar um enjeitado…

– É verdade, é verdade… – confirmou o filósofo de
péno-chão, e calou-se.

Manuel Aparecido era o nome do rapazinho. Como tivesse olhos gateados e
cabelos louros de milho, denunciadores de origem estrangeira, puseram-lhe
os vizinhos a alcunha de Ruço.

Ganhou fama de madraço, e o era perfeito, inimigo de enxada e foice,
só atento a negociatas, barganhas, espertezas. Amado pela Rosa como
filho, livrava-o ela da sanha do esposo escondendo suas malandragens, porque
Elesbão vivia ameaçando endireitá-lo a rabo de tatu.

Não endireitou coisa nenhuma. Com dezoito anos era o Ruço
a peste do bairro, atarantador dos pacíficos e traiçoeiro para
com os escoradores.

– É ruim inteirado! – dizia o povo.

Por esse tempo navegava Rosa na casa dos trinta anos.

Como a não estragaram filhos, nem se estragou ela em grosseiros trabalhos
de roça, valia muito mais do que em menina. O tempo curou-lhe a sapiroca,
e deu-lhe carnes a boa vida. De tal forma consertou que todo o mundo gabava
o arranjo.

– Ninguém perca a esperança. Olhem a mulher do Elesbão,
aquela Poquinha sapiroquenta, como está chibante!…

A sua boniteza residia na saúde dos olhos e na gordura.

Na roça, gordura é sinônimo de beleza – gordura e "olhos
azuis que nem uma conta"…

Além disso, Rosinha cuidava de si. Virou faceira. Sempre limpa, vestida
de boas chitas da sua cor, cabelos bem alisados para trás, torcidos
em pericote lustroso à força de pomada de lima, não havia
na serra pimpona assim nem moça de fazenda com pai coronel.

Suas relações com o Ruço, maternais até ali,
principiaram a mudar de rumo, como quer que espigasse em homem o menino. Por
fim degeneraram em namoro – medroso no começo, descarado ao cabo. A
má casta das Pocas, desmentida no decurso da primavera, reafirmava-se
em plena sazão calmosa. O verão das Pocas! Que forno…

Tudo transpira. Transpirou nas redondezas a feia maromba daqueles amores.
Boas línguas, e más, boquejavam o quase incesto.

Quem de nada nunca suspeitou foi o honradíssimo Elesbão; e
como na porta dos seus ouvidos paravam os rumores do mundo, a vida das três
criaturas corria-lhes na toada mansa a que se dá o nome de felicidade.

Foi quando caiu de cama o pai de Elesbão, doente de velhice.

Mandou chamar o filho e falou-lhe com voz de quem está com o pé
na cova: – Meu filho, abra os olhos com a Poca…

– Por que fala assim, meu pai? O velho ouvira o zunzum da má vida;
vacilava, entretanto, em abrir os olhos ao empulhado. Correu a mão
trêmula pela cabeça do filho, afagou-a e morreu sem mais palavra.
Sempre fora amigo de reticências, o bom velho.

Elesbão regressou ao sítio com aquele aviso a verrumarlhe
os miolos. Passou dias de cara amarrada, acastelando hipóteses.

Vendo o marido assim demudado, casmurro, de prazenteiro que era, Rosa caiu
em guarda. Chamou de banda o Ruço e disse-lhe: – Lesbão, des’que
morreu o pai, anda amode que ervado. Mas não é sentimento, não.
Ele desconfia… As vezes pega de olhar para mim dum jeito esquisito, que
até me gela o coração…

Manuel segurou o queixo e refletiu. Continuar naquela vida era arriscado.
Ir-se, pior; nada possuía de seu e trabalhar para outrem não
era com ele. Se Elesbão morresse…

Não se sabe se houve concerto entre os amásios. Mas Elesbão
morreu. E como! Certa vez, de volta da vila próxima ali pelo escurecer,
caiu de borco na Volta Fria, barbaramente foiçado na nuca.

Descobriram-lhe o cadáver pela manhã, bem rente ao mata-pau.

A justiça, coitadinha, apalpou daqui e dali, numa cegueira… Desconfiou
do Ruço – mas cadê provas? Era o Ruço mais fino que o
delegado, o promotor, o juiz – mais até que o vigário da vila,
um padre gozador da fama de enxergar através das paredes…

A viúva chorou como mamoeiro lanhado – fosse de sentimento, de remorso
ou para iludir aos outros. Talvez sem cálculo nenhum pelos três
motivos.

Manuel permaneceu na casa. Viviam como filho e mãe, dizia ela; como
marido e mulher, resmungava o povo.

O sítio, porém, entrou logo a desmedrar. Comiam do plantado,
sem lembrança de meter na terra novas sementes.

O moço ambicionava vender as benfeitorias para mergulhar no Oeste,
e como Rosa relutasse deu de maltratá-la.

Estes amores serôdios são como a vide: mais judiam deles, mais
reviçam. Às brutalidades do Ruço respondia a viúva
com redobros de carinho. Seu peito maduro, onde o estio no fim anunciava o
inverno próximo, chamejava em fogo bravo, desses que roncam nas retranças
dos taquaruçuzais. E isso vingava Elesbão, esse amor sem jeito,
sem conta, sem medida, duas vezes criminoso sobre sacrílego e, o que
era pior, aborrecido pelo facínora, já farto.

– Coroca! Sapicuá de defunto! Cangalha velha! Não havia insulto
com o pião do veneno plantado na nota da velhice que lhe não
desfechasse, o monstro.

Rosa depereceu a galope. Adeus, gordura! Boniteza outoniça, adeus!
Saias a ruflar tesas de goma, pericote luzidio recendente a lima, quando mais?
– O Ruço dá cabo dela, como deu cabo do marido – e é
bem-feito.

Voz do povo…

Um dia o Ruço ameaçou de largá-la, se não vendesse
tudo, já e já; e a pobre mulher deu ao bandido essa derradeira
prova de amor. Vendeu por uma bagatela o que restava acumulado pelo esforço
do defunto – a moenda, o monjolo, a casa, o canavial em soca. E combinaram
para o outro dia o ambicionado mergulho na terra roxa.

Nessa noite Rosa despertou sufocada por violenta fumaceira. A casa ardia.
Saltou como louca da enxerga e berrou pelo Ruço.

Ninguém lhe respondeu.

Atirou-se contra a porta: estava fechada por fora. O instinto fê-la
agarrar o machado e romper a furiosos golpes as tábuas rijas. Escapa-se
da fornalha, rola para o terreiro com as vestes em fogo, precipita-se no tanque
e, livre das chamas, cai inerte para um lado – justamente onde vinte anos
atrás vira o enjeitadinho chorando ao relento…

Quando de manhã passantes a recolheram, estava d’olhos pasmados,
muda. Levaram-na em maca para o hospital, onde sarou das queimaduras, mas
nunca mais do juízo.

Foi feliz, Rosa. Enlouqueceu no momento preciso em que seu viver ia tornar-se
puro inferno.

– E o Ruço? – Abalou com o dinheiro…

Aí parava a história do Elesbão, como a sabia o meu
camarada. Um crime vulgar como os há na roça às dezenas,
se a lembrança do mata-pau o não colorisse com tintas de símbolo.

– Não é só no mato que há mata-paus!… – murmurei
eu filosoficamente, à guisa de comentário.

O capataz entreparou um momento, como quem não entende. Depois abriu
na cara o ar de quem entendeu e gostou.

– Não é por gabar, mas vosmecê disse aí uma palavra
que merece escrita. É tal e qual…

E calou-se, de olho parado, pensativo.

1915

Nota: Ceifadeira: Aparelho rústico de ralar mandioca.

Bocatorta

A quarto de légua do arraial do Atoleiro começam as terras
da fazenda de igual nome, pertencente ao major Zé Lucas. A meio entre
o povoado e o estirão das matas virgens dormia de papo acima um famoso
pântano. Pego de insidiosa argila negra fraldejado de velhos guaiambés
nodosos, a taboa esbelta cresce-lhe à tona, viçosa na folhagem
eréctil que as brisas tremelicam. Pela inflorescência, longas
varas soerguem-se a prumo, sustendo no ápice um chouriço cor
de telha que, maturado, se esbruga em paina esvoaçante. Corre entre
seus talos a batuíra de longo bico, e saltita pelas hastes a corruíra-do-brejo,
cujo ninho bojudo se ouriça nos espinheiros marginais. Fora disso,
rãs, mimbuias pensativas e, a rabear nas poças verdinhentas
de algas, a traíra, esse voraz esqualozinho do lodo. Um brejo, enfim,
como cem outros.

Notabiliza-o, porém, a profundidade. Ninguém ao vê-lo
tão calmo sonha o abismo traidor oculto sob a verdura.

Dois, três bambus emendados que lhe tentem alcançar o fundo
subvertem-se na lama sem alçar pé.

Além de vários animais sumidos nele, conta-se o caso do Simas,
português teimoso que, na birra de salvar um burro já atolado
a meio, se viu engolido lentamente pelo barro maldito. Desd’aí ficou
o atoleiro gravado na imaginativa popular como uma das bocas do próprio
inferno.

Transposto o abismo, a vegetação encorpa, até formar
a mata por cujo seio corre a estrada mestra da fazenda.

Na manhã daquele dia passara por ali o trole do fazendeiro, de volta
da cidade. Além do velho, de sua mulher Don’Ana e de Cristina a filha
única, vinha a passeio o bacharel Eduardo, primo longe e noivo da moça.
Chegaram e agora ouviam na varanda, da boca do Vargas, fiscal, a notícia
do sucedido durante a ausência. Já contara Vargas do café,
da puxada dos milhos e estava na criação.

– Porcos têm sumido alguns. Uma leitoa rabicó e um capadete
malhado dos "Polancham", há duas semanas que moita. Para
mim – ninguém me tira da cabeça – o ladrão foi o negro,
inda mais que essa criação costumava se alongar das bandas do
brejo. Eu estou sempre dizendo: é preciso tocar de lá o raio
do maldelazento. Aquilo, Deus me perdoe, é bicho ruim inteirado. Mas
não "querem" me acreditar…

O major sorriu àquele "querem". Vargas, com ojeriza velha
ao mísero Bocatorta, não perdia ensanchas de lhe atribuir malefícios
e de estumar o patrão a corrê-lo das terras que aquilo, Nossa
Senhora! até enguiçava uma fazenda…

Interessado, o moço indagou da estranha criatura.

– Bocatorta é a maior curiosidade da fazenda, respondeu o major.
Filho duma escrava de meu pai, nasceu, o mísero, disforme e horripilante
como não há memória de outro. Um monstro, de tão
feio. Há anos que vive sozinho, escondido no mato, donde raro sai e
sempre de noite, O povo diz dele horrores – que come crianças, que
é bruxo, que tem parte com o demo. Todas as desgraças acontecidas
no arraial correm-lhe por conta. Para mim, é um pobre-diabo cujo crime
único é ser feio demais. Como perdeu a medida, está a
pagar o crime que não cometeu…

Vargas interveio, cuspilhando com cara de asco: – Se o doutorzinho o visse!…
É a coisa mais nojenta deste mundo.

– Feio como o Quasímodo? – Esse não conheço, seu doutor,
mas estou aqui estou jurando que o negro passa diante do… como é?
Eduardo apaixonava-se pelo caso.

– Mas, amigo Vargas, feio como? Por que feio? Explique-me lá essa
feiúra.

Grande parola quando lhe davam trela, Vargas entreparou um bocado e disse:
– O doutor quer saber como é o negro? Venha cá.

Vossa Senhoria ‘garre um juda de carv&aatilde;o e judie dele; cavoque o buraco
dos olhos e afunde dentro duas brasas alumiando; meta a faca nos beiços
e saque fora os dois; ‘ranque os dentes e só deixe um toco; entorte
a boca de viés na cara; faça uma coisa desconforme, Deus que
me perdoe.

Depois, como diz o outro, vá judiando, vá entortando as pernas
e esparramando os pés. Quando cansar, descanse.

Corra o mundo campeando feiúra braba e aplique o pior no estupor.
Quando acabar ‘garre no juda e ponha rente de Bocatorta. Sabe o que acontece?
O juda fica lindo!…

Eduardo desferiu uma gargalhada.

– Você exagera, Vargas. Nem o diabo é tão feio assim,
criatura de Deus! – Homem, seu doutor, quer saber? Contando não se
acredita. Aquilo é feiúra que só vendo! – Nesse caso
quero vê-la. Um horror desse naipe merece uma pernada.

Nesse momento surgiu Cristina à porta, anunciando café na
mesa.

– Sabe? – disse-lhe o noivo. – Temos um belo passeio em perspectiva: desentocar
um gorila que, diz o Vargas, é o bicho mais feio do mundo.

– Bocatorta? – exclamou Cristina com um reverbero de asco no rosto. – Não
me fale. Só o nome dessa criatura já me põe arrepios
no corpo.

E contou o que dele sabia.

Bocatorta representara papel saliente em sua imaginação. Pequenita,
amedrontavam-na as mucamas com a cuca, e a cuca era o horrendo negro. Mais
tarde, com ouvir às crioulinhas todos os horrores correntes à
conta dos seus bruxedos, ganhou inexplicável pavor ao notâmbulo.
Houve tempo no colégio em que, noites e noites a fio, o mesmo pesadelo
a atropelou. Bocatorta a tentar beijá-la, e ela, em transes, a fugir.
Gritava por socorro, mas a voz lhe morria na garganta. Despertava arquejante,
lavada em suores frios.

Curou-a o tempo, mas a obsessão vincara fundos vestígios em
su’alma.

Eduardo, não obstante, insistia.

– É o meio de te curares de vez. Nada como o aspecto cru da realidade
para desmanchar exageros de imaginação.

Vamos todos, em farrancho – e asseguro-te que a piedade te fará ver
no espantalho, em vez dum monstro, um simples desgraçado digno do teu
dó.

Cristina consultou-se por uns momentos e: – Pode ser – disse. – Talvez vá.
Mas não prometo! Na hora verei se tenho coragem…

A maturação do espírito em Cristina desbotara a vivacidade
nevrótica dos terrores infantis. Inda assim vacilava.

Renascia o medo antigo, como renasce a encarquilhada rosa de Jericó
ao contato de uma gota d’água. Mas vexada de aparecer aos olhos do
noivo tão infantilmente medrosa, deliberou que iria; desde esse instante,
porém, uma imperceptível sombra anuviou-lhe o rosto.

Ao jantar foram o assunto as novidades do arraial – eternas novidades de
aldeias, o Fulano que morreu, a Sicrana que casou. Casara um boticário
e morrera uma menina de quatorze anos, muito chegada à gente do major.
Particularmente condoída, Don’Ana não a tirava da idéia.

– Pobre da Luizinha! Não me sai dos olhos o jeito dela, tão
galante, quando vinha aqui pelo tempo das jabuticabas.

Ali, naquela porta – "Dá licença, Don’Ana!" – tão
cheia de vida, vermelhinha do sol… Quem diria…

– E ainda por cima a tal história de cemitério… interveio
Cristina. Papai soube? Corriam no arraial rumores macabros. No dia seguinte
ao enterramento o coveiro topou a sepultura remexida, como se fora violada
durante a noite; e viu na terra fresca pegadas misteriosas de uma "coisa"
que não seria bicho nem gente deste mundo. Já duma feita sucedera
caso idêntico por ocasião da morte da Sinhazinha Esteves; mas
todos duvidaram da integridade dos miolos do pobre coveiro sarapantado. Esses
incréus não mofavam agora do visionário, porque o padre
e outras pessoas de boa cabeça, chamadas a testemunhar o fato, confirmavam-no.

Imbuído do ceticismo fácil dos moços da cidade, Eduardo
meteu a riso a coisa muita fortidão de espírito.

– A gente da roça duma folha d’embaüva pendurada no barranco
faz logo, pelo menos, um lobisomem e três mulas-sem-cabeça. Esse
caso do cemitério: um cão vagabundo entrou lá e arranhou
a terra. Aí está todo o grande mistério! Cristina objetou:
– E os rastos? – Os rastos! Estou a apostar como tais rastos são os
do próprio coveiro. O terror impediu-lhe de reconhecer o molde do casco…

– E o padre Lisandro? – acudiu Don’Ana, para quem um testemunho tonsurado
era documento de muito peso.

Eduardo cascalhou uma risada anticlerical e, trincando um rabanete, expectorou:
– Ora, o padre Lisandro! Pelo amor de Deus, Don’Ana! O padre Lisandro é
o próprio coveiro de batina e coroa! A propósito…

E contou a propósito vários casos daquele tipo, os quais no
correr do tempo vieram a explicar-se naturalmente, com grande cara d’asno
dos coveiros e lisandros respectivos.

Cristina ouviu, com o espírito absorto em cismas, a bela demonstração
geométrica. Don’Ana concordou da boca para fora, por delicadeza. Mas
o major, esse não piou sim nem não. A experiência da vida
ensinara-lhe a não afirmar com despotismo, nem negar com "oras
– Há muita coisa estranha neste mundo… – disse, traduzindo involuntariamente
a safada réplica de Hamlet ao cabeça forte do Horacio.

Zangara o tempo quando à tarde o rancho se pôs de rumo ao casebre
de Bocatorta.

Ventava. Rebojos de nuvens prenhes sorviam as últimas nesgas do azul.

Os noivos breve se distanciaram dos velhos que, a passos tardos, seguiam
comentando a boa composição do futuro casal. Não havia
nisso exagero de pais. Eduardo, embora vulgar, tinha a esbelteza necessária
para ouvir sem favor o encômio de rapagão, e Cristina era um
ramalhete completo das graças que os dezoito anos sabem compor.

Donaire, elegância, distinção… pintam lá vocábulos
esbeiçados pelo uso esse punhado de quês particularíssimos
cuja soma a palavra "linda" totaliza? Lábios de pitanga,
a magnólia da pele acesa em rosas nas faces, olhos sombrios como a
noite, dentes de pérola…

as velhas tintas de uso em retratos femininos desde a Sulamita não
pintam melhor que o "linda!" dito sem mais enfeites além
do ponto de admiração.

Vê-la mordiscando o hastil duma flor de catingueiro colhida à
beira do caminho, ora risonha, ora séria, a cor das faces mordida pelo
vento frio, madeixas louras a brincarem-lhe nas têmporas, vê-la
assim formosa no quadro agreste duma tarde de junho, era compreender a expressão
dos roceiros: Linda que nem uma santa.

Olhos, sobretudo, tinha-os Cristina de alta beleza. Naquela tarde, porém,
as sombras de sua alma coavam neles penumbras de estranha melancolia. Melancolia
e inquietação. O amoroso enlevo de Eduardo esfriava amiúde
ante suas repentinas fugas. Ele a percebia distante, ou pelo menos introspectiva
em excesso, reticência que o amor não vê de boa cara. E
à medida que caminhavam recrescia aquela esquisitice. Um como intáctil
morcego diabólico riscava-lhe a alma de voejos pressagos. Nem o estimulante
das brisas ásperas, nem a ternura do noivo, nem o "cheiro de natureza"
exsolvido da terra, eram de molde a esgarçar a misteriosa bruma de
lá dentro.

Eduardo interpelou-a: – Que tens hoje, Cristina? Tão sombria…

E ela, num sorriso triste: – Nada!.. Por quê? Nada… É sempre
nada quando o que quer que é lucila avisos informes na escuridão
do subconsciente, como sutilíssimos ziguezagues de sismógrafo
em prenúncio de remota comoção telúrica. Mas esses
nadas são tudo!…

– À esquerda, pelo trilho! A voz do major chamou-os à realidade.
Um carreiro mal batido na macega esgueirava-se coleante até a beira
dum córrego, onde se reuniram de novo.

O major tomou a frente, e guiou-os floresta adentro pelos meandros duma
picada. Era ali o mato sinistro onde se alapavam Bocatorta e o seu cachorro
lazarento, Merimbico, nome tresandante a satanismo para o faro do poviléu.

Às sextas-feiras, na voz corrente do arraial, Merimbico virava lobisomem
e se punha de ronda ao cemitério, com lamentosos uivos à lua
e abocamentos às pobres almas penadas – coisa muito de arrepiar.

O sombrio da mata enoiteceu de vez o coração de Cristina.

– Mas, afinal, para onde vamos, meu pai? Afundar no atoleiro, como o Simas?
Meu pai já fez o testamento? – Já, minha filha – chasqueou o
major -, e deixo o Bocatorta para você…

Cristina emudeceu. Retransia-a em doses crescentes o velho medo de outrora,
e foi com um estremecimento arrepiado que ouviu o ladrido próximo de
um cão.

– É Merimbico – disse o velho. – Estamos quase.

Mais cem passos e a mata rasgou-se em clareira, na qual Cristina entreviu
a biboca do negro. Fez-se toda pequenina e achegou-se a Don’Ana, apertando-lhe
nervosamente as mãos.

– Bobinha! Tudo isso é medo? – Pior que medo, mamãe; é…
não-sei-quê! Não tinha feição de moradia
humana a alfurja do monstro. À laia de paredes, paus-a-pique mal juntos,
entressachados de ramadas secas. Por cobertura, presos, com pedras chatas,
molhos de sapé no fio, defumado e podre. Em redor, um terreirinho atravancado
de latas ferrujentas, trapos e cacaria velha. A entrada era um buraco por
onde mal passaria um homem agachado.

– Olá, caramujo! Sai da toca que estão cá o sinhô
moço e mais visitas! – gritou o major.

Respondeu de dentro um grunhido cavo. Ao ouvir tão desagradável
som, Cristina sentiu correr na pele o arrepio dos pesadelos antigos, e num
incoercível movimento de pavor abraçou-se com a mãe.

O negro saiu da cova meio de rastos, com a lentidão de monstruosa
lesma. A princípio surgiu uma gaforinha arruçada, depois o tronco
e os braços e a traparia imunda que lhe escondia o resto do corpo,
entremostrando nos rasgões o negror da pele craquenta.

Cristina escondeu o rosto no ombro de Don’Ana – não queria, não
podia ver.

Bocatorta excedeu a toda pintura. A hediondez personificara-se nele, avultando,
sobretudo, na monstruosa deformação da boca. Não tinha
beiços, e as gengivas largas, violáceas, com raros cotos de
dentes bestiais fincados às tontas, mostravam-se cruas, como enorme
chaga viva. E torta, posta de viés na cara, num esgar diabólico,
resumindo o que o feio pode compor de horripilante. Embora se lhe estampasse
na boca o quanto fosse preciso para fazer daquela criatura a culminância
da ascosidade, a natureza malvada fora além, dando-lhe pernas cambaias
e uns pés deformados que nem remotamente lembravam a forma do pé
humano. E olhos vivíssimos, que pulavam das órbitas empapuçadas,
veiados de sangue na esclerótica amarela. E pele grumosa, escamada
de escaras cinzentas. Tudo nele quebrava o equilíbrio normal do corpo
humano, como se a teratologia caprichasse em criar a sua obra-prima.

À porta do casebre, Merimbico, cachorro à-toa, todo ossos,
pele e bernes, rosnava contra os importunos.

Don’Ana e a filha afastaram-se, engulhadas. Só os homens resistiram
à nauseante vista, embora a Eduardo o tolhesse uma emoção
jamais experimentada, misto de asco, piedade e horror. Aquele quadro de suprema
repulsão, novo para seus nervos, desnorteava-lhe as idéias.
Estarrecido como em face da Górgona, não lhe vinha palavra que
dissesse.

O major, entretanto, trocava língua com o monstro, que em certo ponto,
a uma pergunta alegre do velho, arregaçou na cara um riso. Eduardo
não teve mão de si. Aquele riso naquela cara sobreexcedia a
sua capacidade de horripilação. Voltou o rosto e se foi para
onde as mulheres, murmurando: – É demais! É de fazer mal a nervos
de aço…

Seus olhos encontraram os de Cristina e neles viram a expressão de
pavor da preá engrifada nas puas da suindara – o pavor da morte…

Quando deixaram a floresta, morria a tarde sob o chicote dum vento precursor
de chuva.

– Foi imprudência, Cristina, vires sem um xalinho de cabeça
ao menos!… Queira Deus…

A moça não respondeu. D’olhos baixos, retransida, respirava
a largos haustos, para desafogo dum aperto de coração nunca
sentido fora dos pesadelos.

Generalizara-se o silêncio. Só o major tentava espanejar a
impressão penosa, chasqueando ora o terror da filha, ora o asco do
moço; mas breve calou-se, ganho também pelo mal-estar geral.

Triste anoitecer o daquele dia, picado a espaços pelo surdo revôo
dos curiangos. O vento zunia, e numa lufada mais forte trouxe da mata o uivo
plangente de Merimbico.

Ao ouvi-lo, um comentário apenas escapou da boca do major: – Diabo!
Fechara-se a noite e vinham as primeiras gotas de chuva quando pisaram no
alpendre do casarão.

Cristina sentiu pelo corpo inteiro um calafrio, como se a sacudisse a corrente
elétrica.

No dia seguinte amanheceu febril, com ardores no peito e tremuras amiudadas.
Tinha as faces vermelhas e a respiração opressa.

O rebuliço foi grande na casa.

Eduardo, mordido de remorsos, compulsava com mão nervosa um velho
Chernoviz, tentando atinar com a doença de Cristina; mas perdia-se
sem bússola no báratro das moléstias. Nesse em meio,
Don’Ana esgotava o arsenal da medicina anódina dos símplices
caseiros.

O mal, entretanto, recalcitrava às chasadas e sudoríferos.
Chamou-se o boticário da vila. Veio a galope o Eusébio Macário
e diagnosticou pneumonia.

Quem já não assistiu a uma dessas subitâneas desgraças
que de golpe se abatem, qual negro avejão de presa, sobre uma família
feliz, e estraçoam tudo quanto nela representa a alegria, e esperança,
o futuro? Noites em claro, o rumor dos passos abafados… E o doente a piorar…
O médico da casa apreensivo, cheio de vincos na testa… Dias e dias
de duelo mudo contra a moléstia incoercível… A desesperança,
afinal, o irremediável antolhado iminente; a morte pressentida de ronda
ao quarto…

Ao oitavo dia Cristina foi desenganada; no décimo o sino do arraial
anunciou o seu prematuro fim.

– Morta!…

Eduardo escondia as lágrimas entre as almofadas do leito, repetindo
cem vezes a mesma palavra.

Alcançava-lhe o significado tremendo e, no entanto, quantas vezes
a ouvira como a um som oco de sentido! A imagem de Cristina morta, a esfervilhar
na dissolução dentro da terra gelada, contrapunha-se às
visões da Cristina viva, toda mimos d’alma e corpo, radiosa manhã
humana de cuja luz toda se impregnara sua alma. Cerrando os olhos, revia-se
durante o passeio fatal, envolta nas brumas de vagos pressentimentos. Vinham-lhe
à memória as suas palavras dúbias, a sua vacilação.
E arrepelava-se por não ter adivinhado na repulsa da moça os
avisos informes de qualquer coisa secreta que tenazmente a defendia. Tais
pensamentos, enxameantes como moscas em torno à carne viva da dor de
Eduardo, coavam nele venenos cruéis.

Fora, o sol redoirava cruamente a vida.

Brutalidade!…

Morria Cristina e não se desdobravam crepes pelo céu, nem
murchavam as folhas das árvores, nem se recobria de cinzas a terra…

Espezinhado pela fria indiferença das coisas, fechou-se na clausura
de si próprio, torvo e dolorido, sentindo-se amarfanhar pela pata cega
do destino.

Correram horas. Noite alta, acudiu-lhe a idéia de ir ao cemiterinho
beijar num último adeus o túmulo da noiva.

Por sobre a vegetação adormecida coava-se o palor cinéreo
da minguante. Raras estrelas no céu, e na terra nenhum rumorejo além
do remoto uivar de um cão – Merimbico talvez – a escandir o concerto
das untanhas que coaxavam glu-glus nas aguadas.

Eduardo alcançou o cemitério. Estava encadeado o portão.
Apoiou a testa nos frios varões ferrujentos e mergulhou os olhos queimados
de lágrimas por entre os carneiros humildes, em busca do que recebera
Cristina.

No ar, um silêncio de eternidade.

Brisas intermitentes carreavam o olor acre dos cravos-de-defunto floridos
na tristeza daquele cemitério da roça.

Seu olhar pervagava de cruz em cruz na tentativa de atinar com o sítio
onde Cristina dormia o grande sono, quando um rumor suspeito lhe feriu os
ouvidos. Direis um arranhar de chão em raspões cautelosos, ao
qual se casava o resfolego duma criatura viva.

Pulsou-lhe violento o sangue. Os cabelos cresceram-lhe na cabeça.
Alucinação? Apurou os ouvidos: o rumor estranho lá continuava,
vindo de um ponto sombreado de ciprestes. Firmou a vista: qualquer coisa agachava-se
na terra.

Súbito, num relâmpago, fulgurou em sua memória a cena
do jantar, o caso de Luizinha, as palavras de Cristina.

Eduardo sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos e, ganho dum pânico desvairado,
deitou a correr como um louco rumo à fazenda, em cujo casarão
penetrou de pancada, sem fôlego, lavado em suor frio, despertando de
sobressalto a família.

Com gritos de espanto, que o cansaço e o bater dos dentes entrecortavam,
exclamou entre arquejos: – Estão desenterrando Cristina… Eu vi uma
coisa desenterrando Cristina…

– Que loucura é essa, moço? – Eu vi… – continuava Eduardo
com os olhos desmesuradamente abertos. – Eu vi uma coisa desenterrando Cristina…

O major apertou entre as mãos a testa. Esteve assim imóvel
uns instantes. Depois sacudiu a cabeça num gesto de decisão
e, horrivelmente calmo, murmurou entre dentes, como em resposta a si próprio:
– Será possível, meu Deus? Vestiu-se de golpe, meteu no bolso
o revólver e atirando três palavras enigmáticas à
estarrecida Don’Ana, gritou para Eduardo com inflexão de aço
na voz: – Vamos! Magnetizado pela energia do velho, o moço acompanhou-o
qual sonâmbulo.

No terreiro apareceu-lhes o capataz.

– Venha conosco. A "coisa" está no cemitério.

Vargas passou mão de uma foice.

– Vai ver que é ele, patrão, até juro! O major não
respondeu – e os três homens partiram a correr pelos campos em fora.

A meio caminho, Eduardo, exausto de tantas emoções, atrasou-se.
Seus músculos recusaram-lhe obediência. Ao defrontar com o atoleiro,
as pernas lhe fraquearam de vez e ele caiu, ofegante.

Entrementes, o major e o feitor alcançavam o cemitério, galgavam
o muro e aproximavam-se como gatos do túmulo de Cristina.

Um quadro hediondo antolhou-se-lhes de golpe: um corpo branco jazia fora
do túmulo – abraçado por um vulto vivo, negro e coleante como
o polvo.

O pai de Cristina desferiu um rugido de fera, e qual fera mal ferida arrojou-se
para cima do monstro. A hiena, mau grado a surpresa, escapou ao bote e fugiu.
E, coxeando, cambaio, seminu, de tropeços nas cruzes, a galgar túmulos
com agilidade inconcebível em semelhante criatura, Bocatorta saltou
o muro e fugiu, seguido de perto pela sombra esganiçante de Merimbico.

Eduardo, que concentrara todas as forças para seguir de longe o desfecho
do drama, viu passar rente de si o vulto asqueroso do necrófilo, para
em seguida desaparecer mergulhando na massa escura dos guaiambés.

Voando-lhe no encalço, viu passar em seguida o vulto dos perseguidores.

Houve uma pausa, em que só lhe feriu o ouvido o rumor da correria.
Depois, gritos de cólera, d’envolta a um grunhir de queixada caído
em mundéu – e tudo se misturou ao barulho da luta que o uivo de Merimbico
dominava lugubremente.

O moço correu a mão pela testa gelada: estaria nas unhas dum
pesadelo? Não; não era sonho. Disse-lho a voz alterada do feitor,
esboçando o epílogo da tragédia: – Não atire,
major, ele não merece bala. P’ra que serve o atoleiro? E logo após
Eduardo sentiu recrudescer a luta, entre imprecações de cólera
e os grunhidos cada vez mais lamentosos do monstro. E ouviu farfalhar o mato,
como se por ele arrastassem um corpo manietado, a debater-se em convulsões
violentas. E ouviu um rugido cavo de supremo desespero. E após, o baque
fofo de um fardo que se atufa na lama.

Uma vertigem escureceu-lhe a vista; seus ouvidos cessaram de ouvir; seu
pensamento adormeceu…

Quando voltou a si, dois homens borrifavam-lhe o rosto com água gelada.
Encarou-os, marasmado. Ergueu-se, mal firme, apoiado a um deles. E reconheceu
a voz do major, que entre arquejos de cansaço lhe dizia: – Seja homem,
moço. Cristina já está enterrada, e o negro…

– … está beijando o barro, concluiu sinistramente o Vargas.

Ao raiar do dia, Merimbico ainda lá estava, sentado nas patas traseiras,
a uivar saudosamente com os olhos postos no sítio onde sumira o seu
companheiro.

Nada mais lembrava a tragédia noturna nem denunciava o túmulo
de lodo açaimador da boca hedionda que babujara nos lábios de
Cristina o beijo único de sua vida.

O comprador de fazendas

Pior fazenda que a do Espigão, nenhuma. Já arruinara três
donos, o que fazia dizer aos praguentos: Espiga é o que aquilo é!
O detentor último, um Davi Moreira de Souza, arrematara-a em praça,
convicto de negócio da China; já lá andava, também
ele, escalavrado de dívidas, coçando a cabeça, num desânimo…

Os cafezais em vara, ano sim ano não batidos de pedra ou esturrados
de geada, nunca deram de si colheita de entupir tulha. Os pastos ensapezados,
enguanxumados, ensamambaiados nos topes, eram acampamentos de cupins com entremeios
de macegas mortiças, formigantes de carrapatos. Boi entrado ali punha-se
logo de costelas à mostra, encaroçado de bernes, triste e dolorido
de meter dó.

As capoeiras substitutas das matas nativas revelavam pela indiscrição
das tabocas a mais safada das terras secas.

Em tal solo a mandioca bracejava a medo varetinhas nodosas; a cana-caiana
assumia aspecto de caninha, e esta virava um taquariço magrela dos
que passam incólumes entre os cilindros moedores.

Pioravam os cavalos. Os porcos escapos à peste encruavam na magrém
faraônica das vacas egípcias.

Por todos os cantos imperava o ferrão das saúvas, dia e noite
entregues à tosa dos capins para que em outubro se toldasse o céu
de nuvens de içás, em saracoteios amorosos com enamorados savitus.

Caminhos por fazer, cercas no chão, casas d’agregadores engoteiradas,
combalidas de cumeeira, prenunciando feias taperas. Até na moradia
senhorial insinuava-se a broca, aluindo panos de reboco, carcomendo assoalhos.
Vidraças sem vidro, mobília capengante, paredes lagarteadas…

intacto que é que havia lá? Dentro dessa esborcinada moldura,
o fazendeiro avelhuscado por força das sucessivas decepções
e, a mais, roído pelo cancro feroz dos juros, sem esperança
e sem conserto, coçava cem vezes ao dia a coroa da cabeça grisalha.

Sua mulher, a pobre dona Isaura, perdido o viço do outono, agrumava
no rosto quanta sarda e pé-de-galinha inventam os anos de mãos
dadas à trabalhosa vida.

Zico, o filho mais velho, saíra-lhes um pulha, amigo de erguer-se
às dez, ensebar a pastinha até às onze e consumir o resto
do dia em namoricos mal-azarados.

Afora este malandro tinham a Zilda, então nos dezessete, menina galante,
porém sentimental mais do que manda a razão e pede o sossego
da casa. Era um ler Escrich, a moça, e um cismar amores de Espanha!…

Em tal situação só havia uma aberta: vender a fazenda
maldita para respirar a salvo de credores. Coisa difícil, entretanto,
em quadra de café a cinco mil réis, botar unhas num tolo das
dimensões requeridas. Iludidos por anúncios manhosos alguns
pretendentes já haviam abicado ao Espigão; mas franziam o nariz,
indo-se a arrenegar da pernada sem abrir oferta.

– De graça é caro! – cochichavam de si para consigo.

O redemoinho capilar do Moreira, a cabo de coçadelas, sugeriu-lhe
um engenhoso plano mistificatório: entreverar de caetés, cambarás,
unhas-de-vaca e outros padrões de terra boa, transplantados das vizinhanças,
a fímbria das capoeiras e uma ou outra entrada acessível aos
visitantes.

Fê-lo, o maluco, e mais: meteu em certa grota um paud’alho trazido
da terra roxa, e adubou os cafeeiros margeantes ao caminho suficiente para
encobrir a mazela do resto.

Onde um raio de sol denunciava com mais viveza um vício da terra,
ali o alucinado velho botava a peneirinha…

Um dia recebeu carta de um agente de negócios anunciando novo pretendente.
"Você tempere o homem, aconselhava o pirata, e saiba manobrar os
padrões que este cai.

Chama-se Pedro Trancoso, é muito rico, muito moço, muito prosa,
e quer fazenda de recreio. Depende tudo de você espigá-lo com
arte de barganhista ladino." Preparou-se Moreira para a empresa. Advertiu
primeiro aos agregados para que estivessem a postos, afiadíssimos de
língua. Industriados pelo patrão, estes homens respondiam com
manha consumada às perguntas dos visitantes, de jeito a transmutar
em maravilhas as ruindades locais.

Como lhes é suspeita a informação dos proprietários,
costumam os pretendentes interrogar à socapa os encontradiços.
Ali, se isso acontecia – e acontecia sempre, porque era Moreira em pessoa
o maquinista do acaso – havia diálogos desta ordem: – "Geia por
aqui?" – "Coisinha, e isso mesmo só em ano brabo." -"O
feijão dá bem?" -"Nossa Senhora! Inda este ano plantei
cinco quartas e malhei cinqüenta alqueires. E que feijão!"
– "Berneia o gado?" – "Qual o quê! Lá um ou outro
carocinho de vez em quando. Para criar, não existe terra melhor. Nem
erva nem feijão-bravo. (1) O patrão é porque não
tem força. Tivesse ele os meios e isto virava um fazendão."
Avisados os espoletas, debateram-se à noite os preparativos da hospedagem,
alegres todos com o reviçar das esperanças emurchecidas.

– Estou com palpite que desta feita a "coisa" vai! disse o filho
maroto. E declarou necessitar, à sua parte, de três contos de
réis para estabelecer-se.

– Estabelecer-se com quê? – perguntou admirado o pai.

– Com armazém de secos e molhados na Volta Redonda…

– Já me estava espantando uma idéia boa nessa cabeça
de vento. Para vender fiado à gente da Tudinha, não é?
O rapaz, se não corou, calou-se; tinha razões para isso.

Já a mulher queria casa na cidade. De há muito trazia d’olho
uma de porta e janela, em certa rua humilde, casa baratinha, d’arranjados.

Zilda, um piano – e caixões e mais caixões de romances…

Dormiram felizes essa noite e no dia seguinte mandaram cedo à vila
em busca de gulodices de hospedagem – manteiga, um queijo, biscoitos.

Na manteiga houve debate.

– Não vale a pena! – reguingou a mulher. – Sempre são seis
mil réis. Antes se comprasse com esse dinheiro a peça de algodãozinho
que tanta falta me faz.

– É preciso, filha! As vezes uma coisa de nada engambela um homem
e facilita um negócio. Manteiga é graxa e a graxa engraxa! Venceu
a manteiga.

Enquanto não vinham os ingredientes, meteu dona Isaura unhas à
casa, varrendo, espanando e arrumando o quarto dos hóspedes; matou
o menos magro dos frangos e uma leitoa manquitola; temperou a massa do pastel
de palmito, e estava a folheá-la quando: – "Ei, vem ele!"
– gritou Moreira da janela, onde se postara desde cedo, muito nervoso, a devassar
a estrada por um velho bin&oacoacute;culo; e sem deixar o posto de observação
foi transmitindo à ocupadíssima esposa os pormenores divisados.

– É moço… Bem trajado… Chapéu panamá…
Parece o Chico Canhambora…

Chegou, afinal, o homem. Apeou-se. Deu cartão: Pedro Trancoso de
Carvalhais Fagundes. Bem-apessoado. Ares de muito dinheiro. Mocetão
e bem-falante, mais que quantos até ali aparecidos.

Contou logo mil coisas com o desembaraço de quem no mundo está
de pijama em sua casa – a viagem, os acidentes, um mico que vira pendurado
num galho d’embaúva.

Entrados que foram para a saleta de espera, Zico, incontinenti, grudou-se
de ouvido ao buraco da fechadura, a cochichar para as mulheres ocupadas na
arrumação da mesa o que ia pilhando à conversa.

Súbito, esganiçou para a irmã, numa careta sugestiva:
– É solteiro, Zilda! A menina largou disfarçadamente os talheres
e sumiu-se.

Meia hora depois voltava trazendo o melhor vestido e no rosto duas redondinhas
rosas de carmim.

Quem a ess’hora penetrasse no oratório da fazenda notaria nas vermelhas
rosas de papel de seda que enfeitavam o Santo Antônio a ausência
de várias pétalas, e aos pés da imagem uma velinha acesa.
Na roça, o ruge e o casamento saem do mesmo oratório.

Trancoso dissertava sobre variados temas agrícolas.

– O canastrão? Pff! Raça tardia, meu caro senhor, muito agreste.
Eu sou pelo Poland Chine. Também não é mau, não,
o Large Black. Mas o Poland! Que precocidade! Que raça! Moreira, chucro
na matéria, só conhecedor das pelhancas famintas, sem nome nem
raça, que lhe grunhiam nos pastos, abria insensivelmente a boca.

– Como em matéria de pecuária bovina – continuou Trancoso
-‘ tenho para mim que, de Barreto a Prado, andam todos erradíssimos.
Pois não! Er-ra-dís-si-mos! Nem seleção, nem cruzamento.
Quero a adoção i-me-di-a-ta das mais finas raças inglesas,
o Polled Angus, o Red Lirtcoln.

Não temos pastos? Façamo-los. Plantemos alfafa. Penemos.

Ensilemos. O Assis (2) confessou-me uma vez…

O Assis! Aquele homem confessava os mais altos paredros da agricultura!
Era íntimo de todos eles – o Prado, (3) o Barreto, (4) o Cotrim…
(5) E de ministros! "Eu já aleguei isso ao Bezerra… (6) Nunca
se honrara a fazenda com a presença de cavalheiro mais distinto, assim
bem relacionado e tão viajado.

Falava da Argentina e de Chicago como quem veio ontem de lá. Maravilhoso!
A boca de Moreira abria, abria, e acusava o grau máximo de abertura
permitida a ângulos maxilares, quando uma voz feminina anunciou o almoço.

Apresentações.

Mereceu Zilda louvores nunca sonhados, que a puseram de coração
aos pinotes. Também os teve a galinha ensopada, o tutu com torresmos,
o pastel e até a água do pote.

– Na cidade, senhor Moreira, uma água assim, pura, cristalina, absolutamente
potável, vale o melhor dos vinhos.

Felizes os que podem bebê-la! A família entreolhou-se; nunca
imaginaram possuir em casa semelhante preciosidade, e cada um insensivelmente
sorveu o seu golezinho, como se naquele instante travassem conhecimento com
o precioso néctar. Zico chegou a estalar a língua…

Quem não cabia em si de gozo era dona Isaura. Os elogios à
sua culinária puseram-na rendida; por metade daquilo já se daria
por bem paga da trabalheira.

– Aprenda, Zico – cochichava ela ao filho -‘ o que é educação
fina.

Após o café, brindado com um "delicioso!", convidou
Moreira o hóspede para um giro a cavalo.

– Impossível, meu caro, não monto em seguida às refeições;
dá-me cefalalgia.

Zilda corou. Zilda corava sempre que não entendia uma palavra.

À tarde sairemos, não tenho pressa. Prefiro agora um passeiozinho
pedestre pelo pomar, a bem do quilo.

Enquanto os dois homens em pausados passos para lá se dirigiam, Zilda
e Zico correram ao dicionário.

– Não é com s – disse o rapaz.

– Veja com C – alvitrou a menina.

Com algum trabalho encontraram a palavra cefalalgia.

– "Dor de cabeça!" Ora! Uma coisa tão simples…

À tarde, no giro a cavalo, Trancoso admirou e louvou tudo quanto ia
vendo, com grande espanto do fazendeiro que, pela primeira vez, ouvia gabos
às coisas suas. Os pretendentes em geral malsinam de tudo, com olhos
abertos só para defeitos; diante de uma barroca, abrem-se em exclamações
quanto ao perigo das terras frouxas; acham más e poucas as águas;
se enxergam um boi, não despregam a vista dos bernes.

Trancoso, não. Gabava! E quando Moreira, nos trechos mistificados,
com dedo trêmulo assinalou os padrões, o moço abriu a
boca.

– Caquera? mas isto é fantástico!…

Em face do pau-d’alho culminou-lhe o assombro.

– é maravilhoso o que vejo! Nunca supus encontrar nesta zona vestígios
de semelhante árvore! – disse, metendo na carteira uma folha como lembrança.

Em casa abriu-se com a velha.

– Pois, minha senhora, a qualidade destas terras excedeu de muito à
minha expectativa. Até pau-d’alho! Isto é positivamente famoso!…

Dona Isaura baixou os olhos. A cena passava-se na varanda. Era noite. Noite
trilada de grilos, coaxada de sapos, com muitas estrelas no céu e muita
paz na terra. Refestelado numa cadeira preguiçosa, o hóspede
transfez o sopor da digestão em quebreira poética.

– Este cri-cri de grilos, como é encantador! Eu adoro as noites estreladas,
o bucólico viver campesino, tão sadio e feliz…

– Mas é muito triste!… – aventurou Zilda.

– Acha? Gosta mais do canto estridente da cigarra, modulando cavatinas em
plena luz? – disse ele, amelaçando a voz. – É que no seu coraçãozinho
há qualquer nuvem a sombreá-lo…

Vendo Moreira assim atiçado o sentimentalismo, e dessa feita passível
de conseqüências matrimoniais, houve por bem dar uma pancada na
testa e berrar: "Oh, diabo! Não é que ia me esquecendo
do…" Não disse do que, nem era preciso. Saiu precipitadamente,
deixando-os sós.

Prosseguiu o diálogo, mais mel e rosas.

– O senhor é um poeta! – exclamou Zilda a um regorjeio dos mais sucados.

– Quem o não é debaixo das estrelas do céu, ao lado
duma estrela da terra? – Pobre de mim! – suspirou a menina, palpitante.

Também do peito de Trancoso subiu um suspiro. Seus olhos alçaram-se
a uma nuvem que fazia no céu as vezes da Via Láctea, e sua boca
murmurou em solilóquio um rabo-d’arraia desses que derrubam meninas.

– O amor!… A Via Láctea da vida!… O aroma das rosas, a gaze da
aurora! Amar, ouvir estrelas… Amai, pois só quem ama entende o que
elas dizem.

Era zurrapa de contrabando; não obstante, ao paladar inexperto da
menina soube a fino moscatel. Zilda sentiu subir à cabeça um
vapor. Quis retribuir. Deu busca aos ramilhetes retóricos da memória
em procura da flor mais bela. Só achou um bogari humílimo: –
Lindo pensamento para um cartão-postal! Ficaram no bogari; o café
com bolinhos de frigideira veio interromper o idílio nascente.

Que noite aquela! Dir-se-ia que o anjo da bonança distendera suas
asas de ouro por sobre a casa triste. Via Zilda realizar-se todo o Escrich
deglutido. Dona Isaura gozava-se da possibilidade de casá-la rica.
Moreira sonhava quitações de dívidas, com sobras fartas
a tilintar-lhe no bolso.

E imaginariamente transfeito em comerciante, Zico fiou, a noite inteira,
em sonhos, à gente da Tudinha, que, cativa de tanta gentileza, lhe
concedia afinal a ambicionada mão da pequena.

Só Trancoso dormiu o sono das pedras, sem sonhos nem pesadelos. Que
bom é ser rico! No dia imediato visitou o resto da fazenda, cafezais
e pastos, examinou criação e benfeitorias; e como o gentil mancebo
continuasse no enlevo, Moreira, deliberado na véspera a pedir quarenta
contos pela Espiga, julgou de bom aviso elevar o preço. Após
a cena do pau-d’alho, suspendeu-o mentalmente para quarenta e cinco; findo
o exame do gado, já estava em sessenta. E quando foi abordada a magna
questão, o velho declarou corajosamente, na voz firme de um alea jacta:
– Sessenta e cinco! – e esperou de pé atrás a ventania.

Trancoso, porém, achou razoável o preço.

– Pois não é caro – disse -, está um preço bem
mais razoável do que imaginei.

O velho mordeu os lábios e tentou emendar a mão.

– Sessenta e cinco, sim, mas.., o gado fora!…

– é justo, respondeu Trancoso.

– … e fora também os porcos!…

– Perfeitamente.

– … e a mobília! – É natural.

O fazendeiro engasgou; não tinha mais o que excluir e confessou de
si para consigo que era uma cavalgadura. Por que não pedira logo oitenta?
Informada do caso, a mulher chamou-lhe pax vobis.

– Mas, criatura, por quarenta já era um negocião! justificou-se
o velho.

– Por oitenta seria o dobro melhor. Não se defenda. Eu nunca vi Moreira
que não fosse palerma e sarambé. É do sangue. Você
não tem culpa.

Amuaram um bocado; mas a ânsia de arquitetar castelos com a imprevista
dinheirama varreu para longe a nuvem. Zico aproveitou a aura para insistir
nos três contos do estabelecimento – e obteve-os. Dona Isaura desistiu
de tal casinha. Lembrava agora outra maior, em rua de procissão – a
casa do Eusébio Leite.

– Mas essa é de doze contos, advertiu o marido.

– Mas é outra coisa que não aquele casebre! Muito mais bem
repartida. Só não gosto da alcova pegada à copa; escura…

– Abre-se uma clarabóia.

– Também o quintal precisa de reforma; em vez do cercado das galinhas…

Até noite alta, enquanto não vinha o sono, foram remendando
á casa, pintando-a, transformando-a na mais deliciosa vivenda da cidade.
Estava o casal nos últimos retoques, dorme-não-dorme, quando
Zico bateu à porta.

– Três contos não bastam, papai, são precisos cinco.
Há a armação, de que não me lembrei, e os direitos,
e o aluguel da casa, e mais coisinhas…

Entre dois bocejos, o pai concedeu-lhe generosamente seis.

E Zilda? Essa vogava em alto-mar dum romance de fadas. Deixemo-la vogar.

Chegou enfim o momento da partida. Trancoso despediu-se. Sentia muito não
poder prolongar a deliciosa visita, mas interesses de monta o chamavam. A
vida do capitalista não é livre como parece… Quanto ao negócio,
considerava-o quase feito; daria a palavra definitiva dentro de semana.

Partiu Trancoso, levando um pacote de ovos – gostara muito da raça
de galinhas criada ali; e um saquito de carás – petisco de que era
mui guloso. Levou ainda uma bonita lembrança, o rosilho do Moreira,
o melhor cavalo da fazenda. Tanto gabara o animal durante os passeios, que
o fazendeiro se viu na obrigação de recusar uma barganha proposta
e dar-lho de presente.

– Vejam vocês! – disse Moreira, resumindo a opinião geral.
– Moço, riquíssimo, direitão, instruído como um
doutor e no entanto amável, gentil, incapaz de torcer o focinho como
os pulhas que cá têm vindo. O que é ser gente! À
velha agradara sobretudo a sem-cerimônia do jovem capitalista. Levar
ovos e carás! Que mimo! Todos concordaram, louvando-o cada um a seu
modo.

E assim, mesmo ausente, o gentil ricaço encheu a casa durante a semana
inteira.

Mas a semana transcorreu sem que viesse a ambicionada resposta. E mais outra.
E outra ainda.

Escreveu-lhe Moreira, já apreensivo e nada. Lembrou-se dum parente
morador na mesma cidade e endereçou-lhe carta pedindo que obtivesse
do capitalista a solução definitiva. Quanto ao preço,
abatia alguma coisa. Dava a fazenda por cinqüenta e cinco, por cinqüenta
e até por quarenta, com criação e mobília.

O amigo respondeu sem demora. Ao rasgar do envelope, os quatro corações
da Espiga pulsaram violentamente: aquele papel encerrava o destino de todos
quatro.

Dizia a carta: "Moreira. Ou muito me engano ou estás iludido.
Não há por aqui nenhum Trancoso Carvalhais capitalista. Há
o Trancosinho, filho de Nhá Veva, vulgo Sacatrapo. É um espertalhão
que vive de barganhas e sabe iludir aos que o não conhecem. Ultimamente
tem corrido o Estado de Minas, de fazenda em fazenda, sob vários pretextos.
Finge-se às vezes comprador, passa uma semana em casa do fazendeiro,
a caceteá-lo com passeios pelas roças e exames de divisas; come
e bebe do bom, namora as criadas, ou a filha, ou o que encontra – é
um vassoura de marca! – e no melhor da festa some-se. Tem feito isto um cento
de vezes, mudando sempre de zona. Gosta de variar de tempero, o patife. Como
aqui Trancoso só há este, deixo de apresentar ao pulha a tua
proposta. Ora o Sacatrapo a comprar fazenda! Tinha graça…" O
velho caiu numa cadeira, aparvalhado, com a missiva sobre os joelhos. Depois
o sangue lhe avermelhou as faces e seus olhos chisparam.

– Cachorro! As quatro esperanças da casa ruíram com fragor,
entre lágrimas da menina, raiva da velha e cólera dos homens.

Zico propôs-se a partir incontinenti na peugada do biltre, a fim de
quebrar-lhe a cara.

– Deixe, menino! O mundo dá voltas. Um dia cruzo-me com o ladrão
e justo contas.

Pobres castelos! Nada há mais triste que estes repentinos desmoronamentos
de ilusões. Os formosos palácios d’Espanha, erigidos durante
um mês à custa da mirífica dinheirama, fizeram-se taperas
sombrias. Dona Isaura chorou até os bolinhos, a manteiga e os frangos.

Quanto a Zilda, o desastre operou como pé-de-vento através
de paineira florida. Caiu de cama, febricitante. Encovaram-se-lhe as faces.
Todas as passagens trágicas dos romances lidos desfilaram-lhe na memória;
reviu-se na vítima de todos eles. E dias a fio pensou no suicídio.

Por fim, habituou-se a essa idéia e continuou a viver.

Teve azo de verificar que isso de morrer de amores, só em Escrich.

Acaba-se aqui a história – para a platéia; para as torrinhas
segue ainda por meio palmo. As platéias costumam impar umas tantas
finuras de bom gosto e tom muito de rir; entram no teatro depois de começada
a peça e saem mal as ameaça o epílogo.

Já as galerias querem a coisa pelo comprido, a jeito de aproveitar
o rico dinheirinho até o derradeiro vintém. Nos romances e contos,
pedem esmiuçamento completo do enredo; e se o autor, levado por fórmulas
de escola, lhes arruma para cima, no melhor da festa, com a caudinha reticenciada
a que chama "nota impressionista", franzem o nariz. Querem saber
– e fazem muito bem – se Fulano morreu, se a menina casou e foi feliz, se
o homem afinal vendeu a fazenda, a quem e por quanto.

Sã, humana e respeitabilíssima curiosidade! – Vendeu a fazenda
o pobre Moreira? Pesa-me confessá-lo: não! E não a vendeu
por artes do mais inconcebível qüiproquó de quantos tem
armado neste mundo o diabo – sim, porque afora o diabo, quem é capaz
de intrincar os fios da meada com laços e nós cegos, justamente
quando vai a feliz remate o crochê? O acaso deu a Trancoso uma sorte
de cinqüenta contos na loteria. Não se riam. Por que motivo não
havia Trancoso de ser o escolhido, se a sorte é cega e ele tinha no
bolso um bilhete? Ganhou os cinqüenta contos, dinheiro que para um pé-atrás
daquela marca era significativo de grande riqueza.

De posse do bolo, após semanas de tonteira, deliberou afazendar-se.
Queria tapar a boca ao mundo realizando uma coisa jamais passada pela sua
cabeça: comprar fazenda. Correu em revista quantas visitara durante
os anos de malandragem, propendendo, afinal, para a Espiga. Ia nisso, sobretudo,
a lembrança da menina, dos bolinhos da velha e a idéia de meter
na administração ao sogro, de jeito a folgar-se uma vida vadia
de regalos, embalado pelo amor de Zilda e os requintes culinários da
sogra. Escreveu, pois ao Moreira anunciando-lhe a volta, a fim de fechar-se
o negócio.

Ai, ai, ai! Quando tal carta penetrou na Espiga houve rugidos de cólera,
entremeio a bufos de vingança.

– É agora! – berrou o velho. – O ladrão gostou da pândega
e quer repetir a dose. Mas desta feita curo-lhe a balda, ora se curo! – concluiu,
esfregando as mãos no antegozo da vingança.

No murcho coração da pálida Zilda, entretanto, bateu
um raio de esperança. A noite de su’alma alvorejou ao luar de um "Quem
sabe?" Não se atreveu, todavia, a arrostar a cólera do
pai e do irmão, concertados ambos num tremendo ajuste de contas. Confiou
no milagre. Acendeu outra velinha a Santo Antônio…

O grande dia chegou. Trancoso rompeu à tarde pela fazenda, caracolando
o rosilho.

Desceu Moreira a esperá-lo embaixo da escada, de mãos às
costas.

Antes de sofrear as rédeas, já o amável pretendente
abria-se em exclamações.

– Ora viva, caro Moreira! Chegou enfim o grande dia.

Desta vez, compro-lhe a fazenda.

Moreira tremia. Esperou que o biltre apeasse e mal Trancoso, lançando
as rédeas, dirigiu-se-lhe de braços abertos, todo risos, o velho
saca de sob o paletó um rabo de tatu e rompe-lhe para cima com ímpeto
de queixada.

– Queres fazenda, grandíssimo tranca? Toma, toma fazenda, ladrão!
– e lepte, lepte, finca-lhe rijas rabadas coléricas.

O pobre rapaz, tonteando pelo imprevisto da agressão, corre ao cavalo
e monta às cegas, de passo que Zico lhe sacode no lombo nova série
de lambadas de agravadíssimo ex-quase-cunhado.

Dona Isaura atiça-lhe os cães: – Pega, Brinquinho! Ferra,
Joli! O mal-azarado comprador de fazendas, acuado como raposa em terreiro,
dá de esporas e foge à toda, sob uma chuva de insultos e pedras.
Ao cruzar a porteira inda teve ouvidos para distinguir na grita os desaforos
esganiçados da velha: – Comedor de bolinhos! Papa-manteiga! Toma! Em
outra não hás de cair, ladrão de ovo e cará!…

E Zilda? Atrás da vidraça, com os olhos pisados do muito chorar,
a triste menina viu desaparecer para sempre, envolto em uma nuvem de pó,
o cavaleiro gentil dos seus dourados sonhos.

Moreira, o caipora, perdia assim naquele dia o único negócio
bom que durante a vida inteira lhe deparara a Fortuna: o duplo descarte –
da filha e da Espiga…

Notas: 1. Feijão-bravo: Plantas venenosas para o gado.

2. Assis Brasil; 3. Antônio Prado; 4. Luiz Pereira Barreto; 5. Eduardo
Cotrim, homens de muita autoridade em assuntos de pecuária, na época;
6. José Bezerra, ministro da Agricultura.

O estigma

Fui um dia a Itaoca levado pelas simples indicações do sujeito
que me alugou a cavalgadura.

– Não tem errada, é ir andando. Em caso de dúvida,
pegue a trilha dos carros que vai certo.

Assim fiz e lá cheguei sem novidade.

No dia da volta, porém, choveu à noite como só chove
por aqueles socavões, e na primeira encruzilhada parei desnorteado.

Como o enxurro houvesse diluído todos os sulcos da carraria, ali
fiquei alguns minutos feito o asno de Buridan, à espera d’algum passante
que me abrisse os olhos.

Não apareceu viv’alma, e minha impaciência empurrou-me ao acaso
por uma das pernas do V embaraçador. Caminhei cerca de hora na dúvida,
até que a vista duma fazenda desconhecida me deu a certeza do transvio.

Resolvi portar. Abeiro-me do portão e grito o "ó de casa".
Abre-mo um negro velho, ocupado em abanar feijão no terreiro.

– O patrãozinho é lá em cima, na casa-grande.

Dirijo-me para lá, depois de entregue o cavalo, e subo a escadaria
de pedra fronteiriça ao casarão senhorial.

Um grupo de crianças brincava por ali, em torno de uma fogueirinha
de cavacos fumarentos.

– Fumaça para lá, santinha para cá! Ao avistarem-me,
calaram-se e fugiram, com exceção da mais taluda, que permaneceu
no lugar, esfregando os olhos avermelhados e lacrimosos do fumo.

– Papai está? Estava e ia chamá-lo respondeu, esgueirando-se
pela casa adentro.

As outras, com o dedinho na boca, via-as a me espiarem da porta, à
qual logo assomou esbelta menina aí entre quatorze e dezesseis anos,
de avental azul e corada como quem esteve a lidar em forno.

– Faça o favor de entrar! – disse-me com linda voz, sorridente, de
passo que seus olhos vivos todo me examinavam d’alto a baixo, num relance.

– Sente-se e espere um bocadinho.

– A menina é filha do…

– Não, senhor. Prima. Mas moro aqui des’que morreram meus pais.

– Tão nova e já órfã!…

– De pai e mãe. Tinha seis anos quando os perdi na febre amarela
de Campinas. O primo trouxe-me de lá e…

Aqui rangeu a porta e enquadrou-se nela o dono da casa.

Reconhecemo-nos incontinenti, com igual espanto.

– Bruno! – berrou ele. – Que milagre! – E tu, Fausto, onde te vim desentocar,
eu que esperava ver surgir um matutão desconfiado! Abraços,
explicações, perguntas atropeladas.

Fausto não cessava de admirar a coincidência.

– Há quantos anos não nos vemos? Dez, no mínimo…

– Desd’a opa da colação de grau. Como passa o tempo!…

Pois, meu caro, prendo-te por cá. Já não te vais daqui
sem conhecer o meu seio de Abraão e matar bem matadas as saudades.

Durante estas expansões, a menina do avental não arredou pé
da sala, e eu, volta e meia regalava meus olhos na linda criatura que ela
era.

Fausto, percebendo-o, apresentou-ma.

– Laurita, minha prima…

– Já nos conhecemos – disse eu.

– Donde? – exclamou Fausto surpreso.

– Daqui mesmo, de há cinco minutos.

– Farsista! Olha, Laura, vê lá que nos tragam o café
para aqui! A menina, ao retirar-se, pôs no andar esse requebro que o
instinto aconselha às moças na presença de um homem casadoiro.

– Galantinha, hein? – disse Fausto, mal se fechou a porta.

– Linda! – exclamei, carregando com fúria o i. – Que frescura! Que
corado! – O corado corre à conta do forno. Estão lá todos
a assar bolinhos de milho. Não conheces minha mulher? Família
Leme, da Pedra Fria. Casei-me logo depois de formado, e aqui vivo alternando
seis meses de roça com outros tantos de capital.

– Excelente vida! É o sonho de toda a gente.

– Não me queixo, nem quero outra.

– Colheste, então, o pomo da felicidade? Fausto não respondeu,
e como o café entrasse no momento, a conversa mudou de rumo. Trouxe-o
Laura, com bolinhos quentes.

– Estou adivinhando, dona Laurita, que este foi enrolado pelas suas mãos!
– galanteei eu, tomando um deles.

– Qual? – acudiu a menina. – Esse que tem marca de carretilha? – Sim! Ela
desferiu a mais sonora das risadinhas.

– Justamente os que têm marca são da Lucrécia…

– Ora você, cascalhou Fausto, a confundir as artes da prima com as
da preta! – Os meus são estes – disse Laura, apontando os não
carretilhados.

Provei um, e: – Realmente, a diferença é enorme.

Novo pizzicato da menina.

– Pois a massa é a mesma e tudo tempero da Lucrécia…

Fausto pôs fim aos meus desazos convidando-me para sair.

– Estás muito chucro no galanteio. Vem daí ver a criação,
que é o melhor.

Saímos e percorremos toda a fazenda, o chiqueirão dos canastrões,
o cercado das aves de raça, o tanque dos Pekins; vimos as cabras Toggenburg,
o gado Jersey, a máquina de café, todas essas coisas comuns
a todas as fazendas e que no entanto examinamos sempre com real prazer.

Fausto era fazendeiro amador. Tudo ali demonstrava logo dispêndio
de dinheiro sem a preocupação da renda proporcional; trazia-a
no pé de quem não necessita da propriedade para viver.

Ao jantar apresentou-me a sua mulher.

Não condisse com o molde que cá tenho de boa mulher a esposa
do meu amigo. De feições duras, olhar d’ave de rapina, nariz
agudo, era positivamente feia e provavelmente ma.

Compreendi o caso do meu Fausto: casara rico. A fazenda viera-lhe às
mãos por intermédio da esposa.

Na presença dela Fausto mudava de tom. De natural brincalhão,
embezerrava-se numa sisudez que me era estranha; isso me disse que casaram
os bens, os corpos, mas não as almas.

Também Laurita se coibia, e as crianças mostravam um odioso
bom comportamento de meter dó. A mulher gelava-os a todos com o olhar
duro e mau de senhora absoluta.

Foi um alívio o erguer-nos da mesa. Fausto lembrara um giro pelos
cafezais e como já estivessem arreadas as cavalgaduras, partimos. Sem
demora voltou o meu amigo à expansibilidade anterior, com a alegre
despreocupação dos anos acadêmicos. A conversa correu
por mil veredas e por fim embicou para o tema casamento.

– Aquele nosso horror à coleira matrimonial! Como esbanjávamos
diatribes contra o amor sacramento, benzido pelo padre, gatafunhado pelo escrivão…
Lembras-te? – E estamos a pagar a língua. É sempre assim na
vida: a libérrima teoria por cima e a trama férrea das injunções
por baixo. O casamento!… Não o defino hoje com o petulante entono
de solteiro. Só digo que não há casamento – há
casamentos. Cada caso é um especial.

– Tendo aliás de comum – disse eu – um mesmo traço: restrição
da personalidade.

– Sim. é mister que o homem ceda cinqüenta por cento e a mulher
outros tantos para que haja o equilíbrio razoável a que chamamos
felicidade conjugal.

– "Felicidade conjugal", dizes bem, restringindo com o adjetivo
a amplidão do substantivo.

A vista do cafezal interrompeu-nos as confidências. Era setembro,
e o aspecto das árvores estrelejadas de florinhas dava uma sensação
farta de riqueza e futuro. Corremo-lo em parte, gozando o "prazer paulista"
de ver ondular por espigões e grotas a onda verde-escura dos cafeeiros
alinhados.

– No teu caso – perguntei – foste feliz? Fausto retardou a resposta, mastigando-a.

– Não sei. Cedi os cinqüenta, e espero que minha mulher imite
a minha abnegação. Ela porém, mais tenaz, embirra em
não chegar a tanto. Procuramos o equilíbrio ainda…

– E Laura? – perguntei estouvadamente…

Fausto voltou-se de golpe, ferido pela pergunta. Encarou-me a fito, vacilante
em revelar-me o fundo de sua alma.

Depois, como atravessássemos um sombrio trecho de caminho, com, barrancos
acima, avencas viçosas, samambaias e begônias agrestes, disse
apontando para aquilo: – Sabes o que é uma face noruega? Cá
tens uma. Não bate o sol. Muita folha, muito viço, verdes carregados,
mas nada de flores ou frutas. Sempre esta frialdade úmida. Laura…
É como um raio de sol matutino que folga e ri na face noruega da minha
vida…

Calou-se, e até à casa não mais pronunciou uma só
palavra. Compreendi a situação do meu querido Fausto, e não
lhe invejei as riquezas adquiridas por semelhante preço.

Deixei o Paraíso, que assim se chamava a fazenda, com três
impressões n’alma: deliciosa, a da menina dos bolinhos, no seu avental
azul, corada como as romãs; penosa, a da megera entrevista na criatura
feia e má, rica o suficiente para adquirir marido como quem adquire
um animal de luxo. A terceira não a define aí qualquer adjetivo
espipado – complexa, sutil em demasia para caber em moldes vulgares. Era o
vago pressentir duma equação sentimental cujos termos o raio
de sol, a face noruega e o meu Fausto – vagamente perambulavam dentro da minha
imaginativa, às cabriolas.

Nunca tornei àquelas bandas, nem o acaso me fez encontradiço
com qualquer das três personagens.

Este mundo, entretanto, é uma bola pequenina. Volvidos vinte anos,
estava eu parado diante duma vitrina no Rio de Janeiro, quando alguém
me cutucou as costelas.

– Tu, Fausto! – Eu sim, Bruno! Envelhecera Fausto quarenta anos naqueles
vinte de desencontro, e o tempo murchara-lhe a expansibilidade folgazã.
Enquanto palestrávamos, uma a uma subiam-me à tona da memória
as cenas e pessoas do Paraíso, a fascinante Laurita à frente.
Perguntei por ela em primeiro.

– Morta! – foi a resposta seca e torva.

Como nas horas claras do verão nuvem erradia tapando às súbitas
o sol põe na paisagem manchas mormacentas de sombras, assim aquela
palavra nos velou a ambos a alegria do encontro.

– E tua mulher? Os filhos? – Também morta, a mulher. Os filhos, por
aí, casados uns, o último ainda comigo. Meu caro Bruno, o dinheiro
não é tudo na vida, e principalmente não é pára-raios
que nos ponha a salvo de coriscos a cabeça. Moro na rua tal; aparece
lá à noite que te contarei a minha história – e gaba-te,
pois serás a única pessoa a quem revelarei o inferno que me
saiu o Paraiso…

Eis o que ouvi: – Quando a febre amarela em Campinas orfanou Laurita, eu,
como o parente mais bem condicionado, trouxe-a a morar conosco. Tinha ela
cinco anos e já prenunciava nas graças infantis a encantadora
menina que seria.

Eu estava casado de fresco e errara no casamento. Minha mulher – não
o suspeitaste naquele jantar? – era uma criatura visceralmente má.

O "má" na mulher diz tudo; dispensa maior gasto de expressões.
Quando ouvires de uma mulher que é má, não peças
mais: foge a sete pés. Se eu fora refazer o Inferno, acabaria com tantos
círculos que lá pôs o Dante, e em lugar meteria de guarda
aos precitos uma dúzia de megeras.

Haviam de ver que paraíso eram, em comparação, os círculos…

Confesso que não casei por amor. Estava bacharel e pobre. Vi pela
frente o marasmo da magistratura e a vitória rápida do casamento
rico. Optei pela vitória rápida, descurioso de sondar para onde
me levaria a áurea vereda. O dote, grande, valia, ou pareceu-me valer,
o sacrifício. Errei.

Com a experiência de hoje, agarrava a mais reles das promotorias.
O viver que levamos não o desejo como castigo ao pior celerado.

– A face noruega!…

– Era exata a comparação, gélida como nos corria o
viver conjugal no período em que, iludidos, contemporizávamos,
tentando um equilíbrio impossível. Depois tornou-se-nos infernal.

Laura, à proporção que desabrochava, reunia em si quanta
formosura de corpo, alma e espírito um poeta concebe em sonhos para
meter em poemas. Conluiava-se nela a beleza do Diabo, própria da idade,
com a beleza de Deus, permanente – e o pobre do teu Fausto, um exilado em
fria Sibéria matrimonial, coração virgem de amor, não
teve mão de si, sucumbiu. No peito que supunha calcinado viçou
o perigosíssimo amor dos trinta anos.

O vê-la deslizando por ali como a fada mimosa da triste mansão,
ora a florir um vaso, ora a ameigar os pequenos, já curando os doentes
pobres da fazenda, sempre irradiando beleza, felicidade e graça, foi-se-me
tornando a razão do viver. Todas as generosidades e todas as coragens
dos anos adolescentes borbulharam em meu peito. Compreendi a minha desgraça:
era um cego a quem restituíam os olhos e que, deslumbrado, via do fundo
de um cárcere, através das reixas encruzadas, a aurora, a luz,
a vida, tudo inacessível…

Vitimava-me a pior casta de amor – o amor secreto…

Correram meses.

Ao cabo, ou porque me traísse o fogo interno ou porque o ciúme
desse à minha mulher uma visão de lince, tudo leu ela dentro
de mim, como se o coração me pulsasse num peito de cristal.
Conheci, então, um lúgubre pedaço de alma humana: a caverna
onde moram os dragões do ciúme e do ódio. O que escabujou
minha mulher contra os "amásios"! A caninana envolvia no
mesmo insulto a inocência ignorante e a nobreza dum sentimento puríssimo,
recalcado no fundo do meu ser.

Intimou-me a expulsá-la incontinenti.

Resisti.

Afastaria Laura, mas não com a bruteza exigida e de modo a me trair
perante ela e todo o mundo. Era a primeira vez que eu depois de casado resistia,
e tal firmeza encheu de assombro a "senhora". Tenho cá na
visão o riso de desafio que nesse momento lhe crispou a boca, e tenho
n’alma as cicatrizes das áscuas que espirraram aqueles olhos.

Apanhei a luva.

Estas guerras conjugais portas adentro!… Não há aí
luta civil que se lhe compare em crueza. Na frente de estranhos, de Laura
e dos filhos, continha-se. Maltratava a pobre menina, mas sem revelar a verdadeira
causa da perseguição.

A sós comigo, porém, que inferno! Durou pouco isso. Escrevi
a parentes, e dava os primeiros passos para a arrumação de Laura,
quando…

Não te recordas do bosque de pinheiros plantados em seguimento ao
pomar? – O pinhal d’Azambuja! – Foi o nome que lhe pus, como andassem uns
lagartões, seus fregueses, a me pilharem as capoeiras. Esse pinhal
era o passeio favorito de Laura. Emboscava-se nele com um livro, ou com a
costura, e dess’arte sossegava um momento da inferneira doméstica.

Um dia em que saí à caça, menos pela caçada
do que para retemperar-me da guerra caseira na paz das matas, ao montar a
cavalo vi-a dirigir-se para lá com o cestinho de costura.

Demorei-me mais do que o usual, e em vez de paca trouxe uma longa meditação
desanimadora, feita de papo acima, inda me lembro, sob a fronte de enorme
guabirobeira.

Ao pisar no terreiro, vi as crianças a me esperarem na escada, assustadinhas.

– "Papai não viu Laura?" – "Laura?" Estranhei
a pergunta, e mais ainda vendo aproximar-se a velha Lucrécia, que disse:
– "Não vá ter acontecido alguma para Nhá Laurita,
patrão! Saiu cedo, antes do café, já é quase noite
e nada de voltar." – "A senhora…", comecei eu a perguntar
não sabia ainda o que.

– "Sinhá está no quarto. Andou pelo pomar, voltou e se
trancou por dentro. Não quer enxergar ninguém, parece que comeu
cobra…" O coração palpitou-me violento e saí em
procura de Laurinha. Indaguei no terreiro: ninguém a vira. Lembreime
do pinhal e organizei uma alvoroçada batida ao bosque.

Com fachos incendidos de galhaça morta quebramos a escuridão
reinante.

– "Nada!" Eu desanimava já de encontrá-la por ali,
quando um capataz, desgarrado à frente, gritou: – Certo bosque de Portugal
onde se juntavam bandidos.

– "Está aqui um cestinho!" Corremos todos. Estava lá
o cestinho de costura, mais adiante… o corpo frio da menina.

Morta, à bala! A blusa entreaberta mostrava no entresseio uma ferida:
um pequeno furo negro donde fluía para as costelas fina esfria de sangue.
Ao lado da mão direita inerte, o meu revólver.

Suicidara-se…

Não te digo o meu desespero. Esqueci mundo, conveniências,
tudo, e beijei-a longamente entre arquejos e sacões de angústia.

Trouxeram-na a braços. Em casa, minha mulher, então grávida,
recusou-se a ver o cadáver com pretexto do estado, e Laura desceu à
cova sem que ela por um só momento deixasse a clausura. Note você
isto: "Minha mulher não viu o cadáver da menina.

Dias depois, humanizou-se. Deixou a cela, voltando à vida do costume,
muito mudada de gênio, entretanto. Cessara a exaltação
ciumosa do ódio, sobrevindo em lugar um mutismo sombrio. Pouquíssimas
palavras lhe ouvi daí por diante.

A mim, o suicídio de Laura, sobre sacudir-me o organismo como o pior
dos terremotos, preocupava-me como insolúvel enigma.b

Não compreendia aquilo..

Suas últimas palavras em casa, seus últimos atos, nada induzia
o horrível desenlace. Por que se mataria Laura? Como conseguira o revólver,
guardado sempre no meu quarto, em lugar só de mim e de minha mulher
sabido? Uma inspeção nos seus guardados não me esclareceu
melhor; nenhuma carta ou escrito judicioso.

Mistério! Mas correram os meses e um belo dia minha mulher deu à
luz um menino.

Que tragédia! Dói-me a cabeça o recordá-la.

A velha Lucrécia, auxiliar da parteira, foi quem veio à sala
com a notícia do bom sucesso.

– "Desta vez foi um meninão!", disse ela. "Mas nasceu
marcado…" – "Marcado?" – "Tem uma marca no peito, uma
cobrinha coral de cabeça preta." Impressionado com a esquisitice,
dirigi-me para o quarto. Acerquei-me da criança e desfiz as faixas
o necessário para examinar-lhe o peitinho. E vi… vi um estigma que
reproduzia com exatidão o ferimento de Laurinha: um núcleo negro,
imitante ao furo da bala, e a "cobrinha", uma estria enviesada pelas
costelas abaixo.

Um raio de luz inundou-me o espírito. Compreendi tudo. O feto em
formação nas entranhas da mãe fora a única testemunha
do crime e, mal nascido, denunciava-o com esmagadora evidência.

– "Ela já viu isto?" – perguntei à parteira.

– "Não! Nem é bom que veja antes de sarada." Não
me contive. Escancarei as janelas, derramei ondas de sol no aposento, despi
a criança e ergui-a ante os olhos da mãe; dizendo com frieza
de juiz: – "Olha, mulher, quem te denuncia!" A parturiente ergueu-se
de golpe, recuou da testa as madeixas soltas e cravou os olhos no estigma.
Esbugalhouos como louca, à medida que lhe alcançava a significação.

Depois ergueu-se de golpe, e pela primeira vez aqueles olhos duros se turvaram
ante a fixidez inexorável dos meus.

Em seguida moleou o corpo, descaindo para os travesseiros, vencida.

Sobreveio-lhe uma crise à noite. Acudiram médicos. Era febre
puerperal sob forma gravíssima. Minha mulher recusou obstinadamente
qualquer medicação e morreu sem uma palavra, fora as inconscientes
escapas nos momentos de delírio…

Mal concluíra Fausto a confidência daqueles horrores, abriu-se
a porta e entrou na sala um rapazinho imberbe.

– Meu filho – disse ele -, mostra ao Bruno a tua cobrinha.

O moço desabotoou o colete; entreabriu a camisa. Pude então
ver o estigma. Era perfeita ilusão: lá estava a imagem do orifício
aberto pelo projétil e o do fio de sangue escorrido.

Veja você, concluiu o meu triste amigo, os caprichos da Natureza…

– Caprichos de Nêmesis… – ia eu dizendo, mas o olhar do pai cortou-me
a palavra: o moço ignorava o crime de que fora ele próprio eloqüente
delator.

Prefácio da 2ª edição de URUPÊS

Esgotada num mês a primeira edição deste livro, sai agora
a segunda, aumentada, revista e com vários pronomes recolocados pelo
sr. Adalgiso Pereira, excelente amigo que ainda a enriqueceu de numerosas
vírgulas, aspas, hífens e outras miudezas cuja ausência
empobrecia o original.

E para ela entra mais uma, como direi? – o gênero é inclassificável
– uma "indignação": "Velha praga". E também
o artigo "Urupês".

Explica-se. "Velha praga" é a verdadeira mãe deste
livro, e não seria justo separar a mãe do filho.

Foi assim o caso. Em 1914, nos primeiros meses da guerra, o autor não
passava de humilde lavrador, incrustado na serra da Mantiqueira. Terrível
ano de seca foi aquele! O fogo lavrou durante dois meses a fio, com fúria
infernal.

céu toldado, o ar espesso, o crepitar permanente das matas em chama,
a fumarada invadindo a casa, os olhos a arderem…

Um fim de mundo.

E sempre notícias más, a toda hora.

– Rebentou outro fogo no Varjão! – vinha dizer um agregado.. (1)
Mal se ia aquele, vinha outro: – Patrão, o Trabiju está queimando!
– Então, já seis? – É verdade. Há o fogo do Teixeirinha,
o fogo do Maneta, o fogo do Jeca…

– Fogos signés!… Que patifes! Mas hão de pagar. Denuncio-os
todos à polícia.

O capataz sorriu.

– Não vale a pena. São eleitores do governo; o patrão
não arranja nada.

– Mas não haverá ao menos um incendiário oposicionista
que possa pagar o pato? – Não vê! Caboclo é ali firme
no governo justamente p’r’amor do fogo.

Tinha razão o homem. Eram todos do governo. E o eleitor da roça,
em paga da fidelidade partidária, goza-se do direito de queimar o mato
alheio.

Impossibilitado de agir contra eles por meio da justiça, o pobre
fazendeiro limitou-se a "tocar" alguns que eram seus agregados e…
a "vir pela imprensa". Escreveu e mandou para as "Queixas e
Reclamações" d’O Estado de S.

Paulo, a tal catilinária mãe dos "Urupês".
Esse jornal, publicando-a fora da seção de queixas, estimulou
o fazendeiro a reincidir. Reincidiu. E quando deu acordo de si, virara o que
os noticiaristas gravemente chamam um "homem de letras".

Ora aí está como as coisas se arrumam, e como, por obra e
graça de meia dúzia de Neros de pé-no-chão, entra
a correr mundo mais um livro.

Setembro, 1918

Nota: Agregado: Categoria dos que lavram por conta própria um pedaço
de terra duma fazenda, pagando o uso do terreno com porcentagem nas colheitas;
meeiro.

Velha praga

O artigo "Velha praga" com que o tal fazendeirinho "veio pela
imprensa", era o seguinte:

Andam todos em nossa terra por tal forma estonteados com as proezas infernais
dos belacíssimos "vons" alemães, que não sobram
olhos para enxergar males caseiros.

Venha, pois, uma voz do sertão dizer às gentes da cidade que
se lá fora o jogo da guerra lavra implacável, fogo não
menos destruidor devasta nossas matas, com furor não menos germânico.

Em agosto, por força do excessivo prolongamento do inverno, "von
Fogo" lambeu montes e vales, sem um momento de tréguas, durante
o mês inteiro.

Vieram em começos de setembro chuvinhas de apagar poeira e, breve,
novo "verão de sol" se estirou por outubro adentro, dando
azo a que se torrasse tudo quanto escapara à sanha de agosto.

A serra da Mantiqueira ardeu como ardem aldeias na Europa, e é hoje
um cinzeiro imenso, entremeado aqui e acolá de manchas de verdura –
as restingas úmidas, as grotas frias, as nesgas salvas a tempo pela
cautela dos aceiros. Tudo o mais é crepe negro.

À hora em que escrevemos, fins de outubro, chove. Mas que chuva cainha!
Que miséria d’água! Enquanto caem do céu pingos homeopáticos,
medidos a conta-gotas, o fogo, amortecido mas não dominado, amoita-se
insidioso nas piúcas, (1) a fumegar imperceptivelmente, pronto para
rebentar em chamas mal se limpe o céu e o sol lhe dê a mão.

Preocupa à nossa gente civilizada o conhecer em quanto fica na Europa
por dia, em francos e cêntimos, um soldado em guerra; mas ninguém
cuida de calcular os prejuízos de toda sorte advindos de uma assombrosa
queima destas. As velhas camadas de húmus destruídas; os sais
preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via
oceano; o rejuvenescimento florestal do solo paralisado e retrogradado; a
destruição das aves silvestres e o possível advento de
pragas insetiformes; a alteração para o pior do clima com a
agravação crescente das secas; os vedos e aramados perdidos;
o gado morto ou depreciado pela falta de pastos; as cento e uma particularidades
que dizem respeito a esta ou aquela zona e, dentro delas, a esta ou aquela
"situação" agrícola.

Isto, bem somado, daria algarismos de apavorar; infelizmente, no Brasil
subtrai-se; somar ninguém soma…

É peculiar de agosto, e típica, esta desastrosa queima de
matas; nunca, porém, assumiu tamanha violência, nem alcançou
tal extensão, como neste tortíssimo 1914 que, benza-o Deus,
parece aparentado de perto como o célebre ano 1000 de macabra memória.
Tudo nele culmina, vai logo às do cabo, sem conta nem medida. As queimas
não fugiram à regra.

Razão sobeja para, desta feita, encararmos a sério o problema.
Do contrário, a Mantiqueira será em pouco tempo toda um sapezeiro
sem fim, erisipelado de samambaias esses dois términos à uberdade
das terras montanhosas.

Qual a causa da renitente calamidade? É mister um rodeio para chegar
lá.

A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra,
peculiar ao solo brasileiro como o Argas o é aos galinheiros ou o Sarcoptes
mutans à perna das aves domésticas.

Poderíamos, analogicamente, classificá-lo entre as variedades
do Porrigo decalvans, o parasita do couro cabeludo produtor da "pelada",
pois que onde ele assiste (2) se vai despojando a terra de sua coma vegetal
até cair em morna decrepitude, nua e descalvada. Em quatro anos, a
mais ubertosa região se despe dos jequitibás magníficos
e das perobeiras milenárias – seu orgulho e grandeza, para, em achincalhe
crescente, cair em capoeira, passar desta à humildade da vassourinha
e, descendo sempre, encruar definitivamente na desdita do sapezeiro – sua
tortura e vergonha.

Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem
baldio, seminômade, inadaptável à civilização,
mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças.

A medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano,
o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em
silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau (3) e o
isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna.

Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se.

É de vê-lo surgir a um sítio novo para nele armar a
sua arapuca de "agregado"; nômade por força de vagos
atavismos, não se liga à terra, como o campônio europeu
"agrega-se" tal qual o "sarcopte", pelo tempo necessário
à completa sucção da seiva convizinha; feito o que, salta
para diante com a mesma bagagem com que ali chegou.

Vem de um sapezeiro para criar outro. Coexistem em íntima simbiose;
sapé e caboclo são vidas associadas. Este inventou aquele e
lhe dilata os domínios; em troca, o sapé lhe cobre a choça
e lhe fornece fachos para queimar a colméia das pobres abelhas.

Chegam silenciosamente, ele e a "sarcopta" fêmea, esta com
um filhote no útero, outro ao peito, outro de sete anos à ourela
da saia – este já de pitinho na boca e faca à cinta.

Completam o rancho um cachorro sarnento – Brinquinho -a foice, a enxada,
a pica-pau, o pilãozinho de sal, a panela de barro, um santo encardido,
três galinhas pevas e um galo índio. Com estes simples ingredientes,
o fazedor de sapezeiros perpetua a espécie e a obra de esterilização
iniciada com os remotíssimos avós.

Acampam.

Em três dias uma choça, que por eufemismo chamam casa, brota
da terra como um urupê. Tiram tudo do lugar, os esteios, os caibros,
as ripas, os barrotes, o cipó que os liga, o barro das paredes e a
palha do teto. Tão íntima é a comunhão dessas
palhoças com a terra local, que dariam idéia de coisa nascida
do chão por obra espontânea da natureza – se a natureza fosse
capaz de criar coisas tão feias.

Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a sentença
de morte daquela paragem.

Começam as requisições. Com a pica-pau, o caboclo limpa
a floresta das aves incautas. Pólvora e chumbo adquire-os vendendo
palmitos no povoado vizinho. É este um traço curioso da vida
do caboclo e explica o seu largo dispêndio de pólvora; quando
o palmito escasseia, rareiam os tiros, só a caça grande merecendo
sua carga de chumbo; se o palmital se extingue, exultam as pacas: está
encerrada a estação venatória.

Depois ataca a floresta. Roça e derruba, não perdoando ao
mais belo pau. Árvores diante de cuja majestosa beleza Ruskin choraria
de comoção, ele as derriba, impassível, para extrair
um mel-de-pau escondido num oco.

Pronto o roçado, e chegado o tempo da queima, entra em funções
o isqueiro. Mas aqui o "sarcopte" se faz raposa.

Como não ignora que a lei impõe aos roçados um aceiro
de dimensões suficientes à circunscrição do fogo,
urde traças para iludir a lei, cocando dest’arte a insigne preguiça
e a velha malignidade.

Cisma o caboclo à porta da cabana. (4) Cisma, de fato, não
devaneios líricos, mas jeitos de transgredir as posturas com a responsabilidade
a salvo. E consegue-o. Arranja sempre um álibi demonstrativo de que
não esteve lá no dia do fogo.

Onze horas.

O sol quase a pino queima como chama. Um "sarcopte" anda por ali,
ressabiado. Minutos após, crepita a labareda inicial, medrosa, numa
touça mais seca; oscila incerta; ondeia ao vento; mas logo encorpa,
cresce, avulta, tumultua infrene e, senhora do campo, estruge fragorosa com
infernal violência, devorando as tranqueiras, esturricando as mais altas
frondes, despejando para o céu golfões de fumo estrelejado de
faíscas.

É o fogo-de-mato! E como não o detém nenhum aceiro,
esse fogo invade a floresta e caminha por ela adentro, ora frouxo, nas capetingas
(5) ralas, ora maciço, aos estouros, nas moitas de taquaruçu;
caminha sem tréguas, moroso e tíbio quando a noite fecha, insolente
se o sol o ajuda.

E vai galgando montes em arrancadas furiosas, ou descendo encostas a passo
lento e traiçoeiro até que o detenha a barragem natural dum
rio, estrada ou grota noruega. (6) Barrado, inflete para os flancos, ladeia
o obstáculo, deixa-o para trás, esgueira-se para os lados –
e lá continua o abrasamento implacável. Amordaçado por
uma chuva repentina, alapa-se nas piÚcas quieto e invisível,
para no dia seguinte, ao esquentar do sol, prosseguir na faina carbonizante.

Quem foi o incendiário? Donde partiu o fogo? Indaga-se, descobre-se
o Nero: é um urumbeva qualquer, de barba rala, amoitado num litro (7)
de terra litigiosa.

E agora? Que fazer? Processá-lo? Não há recurso legal
contra ele. A única pena possível, barata, fácil e já
estabelecida como praxe, é "tocá-lo".

Curioso este preceito: "ao caboclo, toca-se Toca-se, como se toca um
cachorro importuno, ou uma galinha que vareja pela sala. E tão afeito
anda ele a isso, que é comum ouvi-lo dizer: "Se eu fizer tal coisa,
o senhor não me toca?" Justiça sumária – que não
pune, entretanto, dado o nomadismo do paciente.

Enquanto a mata arde, o caboclo regala-se.

– Eta fogo bonito! No vazio de sua vida semi-selvagem, em que os incidentes
são um jacu abatido, uma paca fisgada n’água ou o filho novimensal,
a queimada é o grande espetáculo do ano, supremo regalo dos
olhos e dos ouvidos.

Entrado setembro, começo das "águas", o caboclo
planta na terra em cinzas um bocado de milho, feijão e arroz; mas o
valor da sua produção é nenhum diante dos males que para
preparar uma quarta de chão ele semeou.

O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cinqüenta alqueires
de terra para extrair deles o com que passar fome e frio durante o ano. Calcula
as sementeiras pelo máximo da sua resistência às privações.
Nem mais, nem menos.

"Dando para passar fome", sem virem a morrer disso, ele, a mulher
e o cachorro – está tudo muito bem; assim fez o pai, o avô; assim
fará a prole empanzinada que naquele momento brinca nua no terreiro.

Quando se exaure a terra, o agregado muda de sítio. No lugar, ficam
a tapera e o sapezeiro. Um ano que passe e só este atestará
a sua estada ali; o mais se apaga como por encanto. A terra reabsorve os frágeis
materiais da choça e, como nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada
mais lembra a passagem por ali do Manoel Peroba, do Chico Marimbondo, do Jeca
Tatu ou outros sons ignaros, de dolorosa memória para a natureza circunvizinha.

Notas: 1. Piúcas: Tocos semicarbonizados.

2. Assiste: Reside; está estabelecido.

3. Pica-pau: Espingarda de carregar pela boca.

4. Cabana: Verso de Ricardo Gonçalves.

5. Capetingas: Capins de mato dentro, sempre ralos, magrelas.

6. Grota noruega: Grota fria onde não bate o sol.

7. Litro: A terra se mede pela quantidade de milho que nela pode ser plantada;
daí, um alqueire, uma quarta, um litro de terra.

Urupês

Esboroou-se o balsâmico indianismo de Alencar ao advento dos Rondons
que, ao invés de imaginarem índios num gabinete, com reminiscências
de Chateaubriand na cabeça e a Iracema aberta sobre os joelhos, metem-se
a palmilhar sertões de Winchester em punho.

Morreu Peri, incomparável idealização dum homem natural
como o sonhava Rousseau, protótipo de tantas perfeições
humanas, que no romance, ombro a ombro com altos tipos civilizados, a todos
sobreleva em beleza d’alma e corpo.

Contrapôs-lhe a cruel etrologia dos sertanistas modernos um selvagem
real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante, tão incapaz. muscularmente,
de arrancar uma palmeira, como incapaz, moralmente, de amar Ceci.

Por felicidade nossa-e de D. Antônio de Mariz – não os viu
Alencar; sonhou-os qual Rousseau. Do contrário, lá teríamos
o filho de Araré a moquear a linda menina num bom brasileiro de pau-brasil,
em vez de acompanhá-la em adoração pelas selvas, como
o Ariel benfazejo do Paquequer.

A sedução do imaginoso romancista criou forte corrente.

Todo o clã plumitivo deu de forjar seu indiozinho refegado de Peri
e Atala. Em sonetos, contos e novelas, hoje esquecidos, consumiram-se tabas
inteiras de aimorés sanhudos, com virtudes romanas por dentro e penas
de tucano por fora.

Vindo o público a bocejar de farto, já cético ante
o crescente desmantelo do ideal, cessou no mercado literário a procura
de bugres homénicos, inúbias, tacapes, bonés, piagas
e virgens bronzeadas. Armas e heróis desandaram cabisbaixos, rumo ao
porão onde se guardam os móveis fora de uso, saudoso museu de
extintas pilhas elétricas que a seu tempo galvanizaram nervos. E lá
acamam poeira cochichando reminiscências com a barba de D. João
de Castro, com os frankisks de Herculano, com os frades de Garrett e que tais…

Não morreu, todavia.

Evoluiu.

O indianismo está de novo a deitar copa, de nome mudado.

Crismou-se de "caboclismo". O cocar de penas de arara passou a
chapéu de palha rebatido à testa; o ocara virou rancho de sapé:
o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda troxada;
o boné descaiu lamentavelmente para pio de inambu; a tanga ascendeu
a camisa aberta ao peito.

Mas o substrato psíquico não mudou: orgulho indomável,
independência, fidalguia, coragem, virilidade heróica, todo o
recheio em suma, sem faltar uma azeitona, dos Peris e Ubirajaras.

Este setembrino rebrotar duma arte monta inda se não desbagou de
todos os frutos. Terá o seu "IJuca-Pirama", o seu "Canto
do Piaga", e talvez dê ópera lírica.

Mas, completado o ciclo, virão destroçar o inverno em flor
da ilusão indianista os prosaicos demolidores de ídolos – gente
má e sem poesia. Irão os malvados esgaravatar o ícone
com as curetas da ciência. E que feias se hão de entrever as
caipirinhas cor de jambo de Fagundes Varela! E que chambões e sornas
os Peris de calça, camisa e faca à cinta! Isso, para o futuro.
Hoje ainda há perigo em bulir no vespeiro: o caboclo é o "Ai
Jesus!" nacional.

É de ver o orgulho entono com que respeitáveis figurões
batem no peito exclamando com altivez: Sou raça de caboclo! Anos atrás,
o orgulho estava numa ascendência de tanga, inçada de penas de
tucano, com dramas íntimos e flechaços de curare.

Dia virá em que os veremos, murchos de prosápia, confessar
o verdadeiro avô: – um dos quatrocentos de Gedeão trazidos por
Tomé de Souza (1) num barco daqueles tempos, nosso mui nobre e fecundo
Mayflower.

Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz,
formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígine
de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz
de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna,
nada a põe de pé.

Quando Pedro I lança aos ecos o seu grito histórico e o país
desperta estrovinhado à crise duma mudança de dono, o caboclo
ergue-se, espia e acocora-se de novo.

Pelo 13 de Maio, mal esvoaça o florido decreto da Princesa e o negro
exausto larga num uf! o cabo da enxada, o caboclo olha, coça a cabeça,
‘magina e deixa que do velho mundo venha quem nele pegue de novo.

A 15 de Novembro, troca-se um trono vitalício pela cadeira quadrienal.
O país bestifica-se ante o inopinado da mudança. (2) O caboclo
não dá pela coisa.

Vem Floriano; estouram as granadas de Custódio; Gumercindo bate às
portas de Roma; Incitátus derranca o país. (3) O caboclo continua
de cócoras, a modorrar…

Nada o esperta. Nenhuma ferrotoada o põe de pé. Social, como
individualmente, em todos os atos da vida, Jeca, antes de agir, acocora-se.

Jeca Tatu é um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome
de carne onde se resumem todas as características da espécie.

Ei-lo que vem falar ao patrão. Entrou, saudou. Seu primeiro movimento
após prender entre os lábios a palha de milho, sacar o rolete
de fumo e disparar a cusparada d’esguicho, é sentar-se jeitosamente
sobre os calcanhares. Só então destrava a língua e a
inteligência.

– "Não vê que…

De pé ou sentado, as idéias se lhe entnamam, a língua
emperra e não há de dizer coisa com coisa.

De noite, na choça de palha, acocora-se em frente ao fogo para "aquentá-lo",
imitado da mulher e da prole.

Para comer, negociar uma barganha, ingerir um café, tostar um cabo
de foice, fazê-lo noutra posição será desastre
infalível. Há de ser de cócoras.

Nos mercados, para onde leva a quitanda domingueira, é de cócoras,
como um faquir do Bramaputra, que vigia os cachinhos de brejaúva ou
o feixe de três palmitos.

Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade! Jeca
mercador, Jeca lavrador, Jeca filósofo…

Quando comparece às feiras, todo o mundo logo adivinha o que ele
traz: sempre coisas que a natureza derrama pelo mato e ao homem só
custa o gesto de espichar a mão e colher – cocos de tucum ou jiçara,
guabirobas, bacuparis, maracujás, jataís, pinhões, orquídeas;
ou artefatos de taquarapoca – peneiras, cestinhas, samburás, tipitis,
pios de caçador; ou utensílios de madeira mole – gamelas, pilõezinhos,
colheres de pau.

Nada mais.

Seu grande cuidado é espremer todas as conseqüências da
lei do menor esforço – e nisto vai longe.

Começa na morada. Sua casa de sapé e lama faz sorrir aos bichos
que moram em toca e gargalhar ao joão-de-barro.

Pura biboca de bosquímano. Mobília, nenhuma. A cama é
uma espipada esteira de peri posta sobre o chão batido.

Às vezes se dá ao luxo de um banquinho de três pernas
– para os hóspedes. Três pernas permitem equilíbrio; inútil,
portanto, meter a quarta, o que ainda o obrigaria a nivelar o chão.
Para que assentos, se a natureza os dotou de sólidos, rachados calcanhares
sobre os quais se sentam? Nenhum talher. Não é a munheca um
talher completo – colher, garfo e faca a um tempo? No mais, umas cuias, gamelinhas,
um pote esbeiçado, a pichorra e a panela de feijão.

Nada de armários ou baús. A roupa, guarda-a no corpo.

Só tem dois panelhos; um que traz no uso e outro na lavagem.

Os mantimentos apaiola nos cantos da casa.

Inventou um cipó preso à cumeeira, de gancho na ponta e um
disco de lata no alto: ali pendura o toucinho, a salvo dos gatos e ratos.

Da parede pende a espingarda pica-pau, o polvarinho de chifre, o São
Benedito defumado, o rabo de tatu e as palmas bentas de queimar durante as
fortes trovoadas. Servem de gaveta os buracos da parede.

Seus remotos avós não gozaram maiores comodidades.

Seus netos não meterão quarta perna ao banco. Para quê?
Vive-se bem sem isso.

Se pelotas de barro caem, abrindo seteiras na parede, Jeca não se
move a repô-las. Ficam pelo resto da vida os buracos abertos, a entremostrarem
nesgas de céu.

Quando a palha do teto, apodrecida, greta em fendas por onde pinga a chuva,
Jeca, em vez de remendar a tortura, limita-se, cada vez que chove, a aparar
numa gamelinha a água gotejante…

Remendo… Para quê? se uma casa dura dez anos e faltam "apenas"
nove para que ele abandone aquela? Esta filosofia economiza reparos.

Na mansão de Jeca a parede dos fundos bojou para fora um ventre empanzinado,
ameaçando ruir; os barrotes, cortados pela umidade, oscilam na podriqueira
do baldrame.

A fim de neutralizar o desaprumo e prevenir suas conseqüências,
ele gnudou na parede uma Nossa Senhora enquadrada em moldurinha amarela –
santo de mascate.

– "Por que não remenda essa parede, homem de Deus?" – "Ela
não tem coragem de cair. Não vê a escora?" Não
obstante, "por via das dúvidas", quando ronca a trovoada,
Jeca abandona a toca e vai agachar-se no oco dum velho embiruçu do
quintal – para se saborear de longe com a eficácia da escora santa.

Um pedaço de pau dispensaria o milagre; mas entre pendurar o santo
e tomar da foice, subir ao morro, cortar a madeira, atorá-la, baldeá-la
e especar a parede, o sacerdote da Grande Lei do Menor Esforço não
vacila. É coerente.

Um terreirinho descalvado rodeia a casa. O mato o beira.

Nem árvores frutíferas, nem horta, nem flores – nada revelador
de permanência.

Há mil razões para isso; porque não é sua a
terra; porque se o "tocarem" não ficará nada que a
outrem aproveite; porque para frutas há o mato; porque a "criação"
come; porque…

– "Mas, criatura, com um vedozinho por ali… A madeira está
à mão, o cipó é tanto…" Jeca, interpelado,
olha para o morro coberto de moirões, olha para o terreiro nu, coça
a cabeça e cuspilha.

– "Não paga a pena." Todo o inconsciente filosofar do caboclo
grulha nessa palavra atravessada de fatalismo e modorra. Nada paga a pena.
Nem culturas, nem comodidades. De qualquer jeito se vive.

Da terra só quer a mandioca, o milho e a cana. A primeira, por ser
um pão já amassado pela natureza. Basta arrancar uma raiz e
deitá-la nas brasas. Não impõe colheita, nem exige celeiro.
O plantio se faz com um palmo de rama fincada em qualquer chão. Não
pede cuidados. Não a ataca a formiga. A mandioca é sem-vergonha.

Bem ponderado, a causa principal da lombeira do caboclo reside nas benemerências
sem conta da mandioca. Talvez que sem ela se pusesse de pé e andasse.
Mas enquanto dispuser de um pão cujo preparo se resume no plantar,
colher e lançar sobre brasas, Jeca não mudará de vida.
O vigor das raças humanas está na razão direta da hostilidade
ambiente. Se a poder de estacas e diques o holandês extraiu de um brejo
salgado a Holanda, essa jóia do esforço, é que ali nada
o favorecia. Se a Inglaterra brotou das ilhas nevoentas da Caledônia,
é que lá não medrava a mandioca.

Medrasse, e talvez os víssemos hoje, os ingleses, tolhiços,
de pé no chão, amarelentos, mariscando de peneira no Tâmisa.

Há bens que vêm para males. A mandioca ilustra este avesso
de provérbio.

Outro precioso auxiliar da calaçaria é a cana. Dá rapadura,
e para Jeca, simplificador da vida, dá garapa. Como não possui
moenda, torce a pulso sobre a cuia de café um rolete, depois de bem
macetados os nós; açucara assim a beberagem, fugindo aos trâmites
condutores do caldo de cana à rapadura.

Todavia, est modus in rebus. E assim como ao lado do restolho cresce o bom
pé de milho, contrasta com a cristianíssima simplicidade do
Jeca a opulência de um seu vizinho e compadre que "está
muito bem". A terra onde mora é sua. Possui ainda uma égua,
monjolo e espingarda de dois canos. Pesa nos destinos políticos do
país com o seu voto e nos econômicos com o polvilho azedo de
que é fabricante, tendo amealhado com ambos, voto e polvilho, para
mais de quinhentos mil réis no fundo da arca.

Vive num corrupio de barganhas nas quais exercita uma astúcia nativa
muito irmã da de Bertoldo. A esperteza última foi a barganha
de um cavalo cego por uma égua de passo picado. Verdade é que
a égua mancava das mãos, mas inda assim valia dez mil réis
mais do que o rocinante zanaga.

Esta e outras celebrizaram-lhe os engrimanços potreiros num raio
de mil braças, granjeando-lhe a incondicional e babosa admiração
do Jeca, para quem, fino como o compadre, "home"… nem mesmo o
vigário de Itaoca! Aos domingos, vai à vila bifurcado na magreza
ventruda da Serena; leva apenso à garupa um filho e atrás o
potrinho no trote, mais a mulher, com a criança nova enrolada no xale.
Fecha o cortejo o indefectível Brinquinho, a resfolgar com um palmo
de língua de fora.

O fato mais importante de sua vida é, sem dúvida, votar no
governo. Tira nesse dia da arca a roupa preta do casamento, sarjão
funadinho de traça e todo vincado de dobras; entala os pés num
alentado sapatão de bezerro; ata ao pescoço um colarinho de
bico e, sem gravata, ringindo e mancando, vai pegar o diploma de eleitor às
mãos do chefe Coisada, que lho retém para maior garantia da
fidelidade partidária.

Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a pena no livro eleitoral,
arabescando o aranhol de gatafunhos a que chama "sua graça".

Se há tumulto, chuchurreia de pé firme, com heroísmo,
as porretadas oposicionistas, e ao cabo segue para a casa do chefe, de galo
cívico na testa e colarinho sungado para trás, a fim de novamente
lhe depor nas mãos o "dipeloma".

Grato e sorridente, o morubixaba galardoa-lhe o heroísmo, flagrantemente
documentado pelo latejar do couro cabeludo, com um aperto de munheca e a promessa,
para logo, duma inspetoria de quarteirão.

Representa este freguês o tipo clássico do sitiante já
com um pé fora da classe. Exceção, díscolo que
é, não vem ao caso. Aqui tratamos da regra e a regra é
Jeca Tatu.

O mobiliário cerebral de Jeca, à parte o suculento recheio
de superstições, vale o do casebre. O banquinho de três
pés, as cuias, o gancho de toucinho, as gamelas, tudo se reedita dentro
de seus miolos sob a forma de idéias: são as noções
práticas da vida, que recebeu do pai e sem mudança transmitirá
aos filhos.

O sentimento de pátria lhe é desconhecido. Não tem
sequer a noção do país em que vive. Sabe que o mundo
é grande, que há sempre terras para diante, que muito longe
está a Corte com os graúdos e mais distante ainda a Bahia, donde
vêm baianos pernósticos e cocos.

Perguntem ao Jeca quem é o presidente da República: – "O
homem que manda em nós tudo?" – "Sim" – "Pois de
certo que há de ser o imperador." Em matéria de civismo
não sobe de ponto.

– "Guerra? T’esconjuro! Meu pai viveu afundado no mato p’ra mais de
cinco anos por causa da guerra grande. (4) Eu, para escapar do "reculutamento",
sou inté capaz de cortar um dedo, como o meu tio Lourenço…"
Guerra, defesa nacional, ação administrativa, tudo quanto cheira
a governo resume-se para o caboclo numa palavra apavorante – "reculutamento".

Quando em princípio da Presidência Hermes andou na balha um
recenseamento esquecido a Offenbach, o caboclo tremeu e entrou a casar em
massa. Aquilo "haverá de ser reculutamento", e os casados,
na voz corrente, escapavam à redada.

A sua medicina corre parelhas com o civismo e a mobília – em qualidade.
Quantitativamente, assombra. Da noite cerebral pirilampejam-lhe apózemas,
cerotos, arrobes e eletuários escapos à sagacidade cômica
de Mark Twain.

Compendia-se um Chernoviz não escrito, monumento de galhofa onde
não há rir, lúgubre como é o epílogo. A
rede na qual dois homens levam à cova as vítimas de semelhante
farmacopéia é o espetáculo mais triste da roça.

Quem aplica as mezinhas é o "curador", um Eusébio
Macário de pé no chão e cérebro trancado como
moita de taquaruçu. O veículo usual das drogas é sempre
a pinga – meio honesto de render homenagem à deusa Cachaça,
divindade que entre eles ainda não encontrou heréticos.

Doenças haja que remédios não faltam.

Para bronquite, é um porrete cuspir o doente na boca de um peixe
vivo e soltá-lo: o mal se vai com o peixe água abaixo…

Para "quebranto de ossos", já não é tão
simples a medicação.

Tomam-se três contas de rosário, três galhos de alecrim,
três limas de bico, três iscas de palma benta, três raminhos
de arruda, três ovos de pata preta (com casca; sem casca desanda) e
um saquinho de picumã; mete-se tudo numa gamela d’água e banha-se
naquilo o doente, fazendo-o tragar três goles da zurrapa. É infalível!
O específico da brotoeja consiste em cozimento de beiço de pote
para lavagens. Ainda há aqui um pormenor de monta; é preciso
que antes do banho a mãe do doente molhe na água a ponta de
sua trança. As brotoejas saram como por encanto.

Para dor de peito que "responde na cacunda", cataplasma de "jasmim
de cachorro" é um porrete.

Além desta alopatia, para a qual contribui tudo quanto de mais repugnante
e inócuo existe na natureza, há a medicação simpática,
baseada na influição misteriosa de objetos, palavras e atos
sobre o corpo humano.

O ritual bizantino dentro de cujas maranhas os filhos do Jeca vêm
ao mundo, e do qual não há fugir sob pena de gravíssimas
conseqüências futuras, daria um in-fólio d’alto fôlego
ao Sílvio Romero bastante operoso que se propusesse a compendiá-lo.

Num parto difícil, nada tão eficaz como engolir três
caroços de feijão-mouro, de passo que a parturiente veste pelo
avesso a camisa do marido e põe na cabeça, também pelo
avesso, o seu chapéu. Falhando esta simpatia, há um derradeiro
recurso: colar no ventre encruado a imagem de São Benedito.

Nesses momentos angustiosos, outra mulher não penetre no recinto
sem primeiro defumar-se ao fogo, nem traga na mão caça ou peixe:
a criança morreria pagã. A omissão de qualquer destes
preceitos fará chover mil desgraças na cabeça do chorincas
recém-nascido.

A posse de certos objetos confere dotes sobrenaturais. A invulnerabilidade
às facadas ou cargas de chumbo é obtida graças à
flor da samambaia.

Esta planta, conta Jeca, só floresce uma vez por ano, e só
produz em cada samambaial uma flor. Isto à meia-noite, no dia de São
Bartolomeu. É preciso ser muito esperto para colhê-la, porque
também o diabo anda à cata. Quem consegue pegar uma, ouve logo
um estouro e tonteia ao cheiro de enxofre – mas livra-se de faca e chumbo
pelo resto da vida.

Todos os volumes do Larousse não bastariam para catalogar-lhe as
crendices, e como não há linhas divisórias entre estas
e a religião, confundem-se ambas em maranhada teia, não havendo
distinguir onde pára uma e começa outra.

A idéia de Deus e dos santos torna-se jeco-cêntrica. São
os santos os graúdos lá de cima, os coronéis celestes,
debruçados no azul para espreitar-lhes a vidinha e intervir nela ajudando-os
ou castigando-os, como os metediços deuses de Homero. Uma torcedura
de pé, um estrepe, o feijão entornado, o pote que rachou, o
bicho que arruinou – tudo diabnuras da corte celeste, para castigo de más
intenções ou atos.

Daí o fatalismo. Se tudo movem cordéis lá de cima,
para que lutar, reagir? Deus quis. A maior catástrofe é recebida
com esta exclamação, muito parenta do "Allah Kébir"
do beduíno.

E na arte? Nada.

A arte rústica do campônio europeu é opulenta a ponto
de constituir preciosa fonte de sugestões para os artistas de escol.
Em nenhum país o povo vive sem a ela recorrer para um ingênuo
embelezamento da vida. Já não se fala no camponês italiano
ou teutônico, filho de alfobres mimosos, propícios a todas as
florações estéticas. Mas o russo, o hirsuto mujique a
meio atolado em barbárie crassa. Os vestuários nacionais da
Ucrânia nos quais a cor viva e o sarapantado da ornamentação
indicam a ingenuidade do primitivo, os isbás da Lituânia, sua
cerâmica, os bordados, os móveis, os utensílios de cozinha,
tudo revela no mais rude dos campônios o sentimento da arte.

No samoieda, no pele-vermelha, no abexim, no papua, um arabesco ingênuo
costuma ornar-lhes as armas – como lhes ornam a vida canções
repassadas de ritmos sugestivos.

Que nada é isso, sabido como já o homem pré-histórico,
companheiro do urso das cavernas, entalhava perfis de mamutes em chifres de
rena.

Egresso à regra, não denuncia o nosso caboclo o mais remoto
traço de um sentimento nascido com o troglodita.

Esmenilhemos o seu casebre: que é que ali denota a existência
do mais vago senso estético? Uma chumbada no cabo de relho e uns ziguezagues
a canivete ou fogo pelo roliço do porretinho de guatambu. É
tudo.

Às vezes surge numa família um gênio musical cuja fama
esvoaça pelas redondezas. Ei-lo na viola: concentra-se, tosse, cuspilha
o pigarro, fere as cordas e "tempera". E fica nisso, no tempero.

Dirão: e a modinha? A modinha, como as demais manifestações
de arte popular existentes no país, é obra do mulato, em cujas
veias o sangue recente do europeu, rico de atavismos estéticos, borbulha
d’envolta com o sangue selvagem, alegre e são do negro.

O caboclo é soturno.

Não canta senão rezas lúgubres.

Não dança senão o cateretê aladainhado.

N&atildatilde;o esculpe o cabo da faca, como o cabila.

Não compõe sua canção, como o felá do
Egito.

No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores,
onde os ipês floridos derramam feitiços no ambiente e a infolhescência
dos cedros, às primeiras chuvas de setembro, abre a dança dos
tangarás; onde há abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras,
sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachôo
permanente, o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar
silencioso no recesso das grotas.

Só ele não fala, não canta, não ri, não
ama.

Só ele, no meio de tanta vida, não vive…

Notas:

1. Tomé de Souza veio ao Brasil com um carregamento de 400 degregados
e uns tantos jesuítas.
2. Aristides Lobo: "O país assistiu bestificado à proclamação
da República."
3. O Presidente Hermes da Fonseca! 4. Guerra grande: Guerra do Paraguai.

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