A Princesa de Babilônia (1768)

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Voltaire

Apresentação

“A princesa de Babilônia” é uma novela de leitura
agradável, além de extremamente instrutiva.

Voltaire apresenta, concomitantemente: amor ingênuo e puro, amor carnal,
fidelidade e traição, amizade, ódio, vingança,
inveja, prazer e dor, guerras, mortes, ressurreição, afeição
e respeito pelos animais.

O jovem herói Amazam se apaixona por Formosante, a princesa da Babilônia.
Julgando-se traído resolve correr o mundo e Formosante sai em busca
dele para desfazer o equívoco e comprovar sua fidelidade. É
o recurso que Voltaire emprega para descrever os costumes e instituições
de inúmeras nações e culturas da antigüidade e,
como sempre, criticá-las com ironia e acidez.

O autor, nesta obra, é um pouco parcimonioso em suas irreverências,
mas não deixa de ser cáustico algumas vezes.

Sobre as batalhas, tão freqüentes na antigüidade como hoje,
Voltaire é incisivo:

Os homens que comem carne e tomam beberagens fortes têm todos um sangue
azedo e adusto, que os torna loucos de mil maneiras diferentes. Sua principal
demência se manifesta na fúria de derramar o sangue de seus irmãos
e devastar terras férteis, para reinarem sobre cemitérios.
A respeito da ressurreição, tema que Voltaire tratava com desdém,
aqui fala com uma profundidade e percuciência dignas de meditação:

— A ressurreição, Alteza – disse-lhe a fênix,
– é a coisa mais simples deste mundo. Não é mais
surpreendente nascer duas vezes do que uma.

Tudo é ressurreição no mundo; as lagartas ressuscitam
em borboletas, uma semente ressuscita em árvore; todos os animais,
sepultados na terra, ressuscitam em ervas, em plantas, e alimentam outros
animais, de que vão constituir em breve uma parte da substância:
todas as partículas que compunham os corpos são transformadas
em diferentes seres. É verdade que sou o único a quem o poderoso
Orosmade concedeu a graça de ressuscitar na sua própria natureza.

A mesma fênix demonstra quão ridícula é a pretensão
humana de dominar o conhecimento sobre a origem dos homens e, enfim, de todas
as coisas:

— E tu – perguntou o rei da Bética à fênix,
– que pensas a respeito?

— Sire – respondeu a fênix, – sou ainda muito jovem
para estar informada da antigüidade. Não vivi mais que uns vinte
e sete mil anos; mas meu pai, que viveu cinco vezes essa idade, me dizia haver
sabido, por meu avô, que as regiões do Oriente sempre foram mais
povoadas e mais ricas que as outras. Sabia, por seus antepassados, que as
gerações de todos os animais tinham começado às
margens do Ganges. Quanto a mim, não tenho a vaidade de ser dessa opinião.
Não posso acreditar que as raposas de Albion, as marmotas dos Alpes
e os lobos das Gálias venham do meu país; da mesma forma, não
creio que os pinheiros e os carvalhos das vossas regiões descendam
das palmeiras e dos coqueiros da Índia.
— Mas de onde vimos então? – indagou o rei.

— Nada sei – respondeu a fênix. – Desejaria apenas
saber para onde poderão ir a bela princesa da Babilônia e o meu
querido amigo Amazan.
Insistindo sobre a fragilidade do conhecimento humano, Voltaire, pelas palavras
de milorde “What-then” (milorde Que Importa), habitante de Albion
(Inglaterra), afirma:

Com o mesmo espírito que nos fez conhecer e sustentar os direitos
da natureza humana, elevamos as ciências ao mais alto ponto a que possam
chegar entre os homens. Os vossos egípcios, que passam por tão
grandes mecânicos; os vossos hindus, a quem julgam tão grandes
filósofos; os vossos babilônios, que se vangloriam de haver observado
os astros durante quatrocentos e trinta mil anos; os gregos, que escreveram
tantas frases e tão poucas coisas, não sabem precisamente nada
em comparação com os nossos menores colegiais, que estudaram
as descobertas de nossos grandes mestres. Arrancamos mais segredos à
natureza no espaço de cem anos do que os descobriu o gênero humano
na multidão dos séculos.

Voltaire, finalmente, destila todo o amargor que sentia pelos ataques e
perseguições que sofreu, pedindo a proteção das
Musas:

Nem por isso, ó Musas, me havereis de proteger menos. Impedi que
os continuadores temerários estraguem com as suas fábulas as
verdades que ensinei aos mortais nesta fiel narrativa, assim como ousaram
falsificar Cândido, o Ingênuo, e as castas aventuras da casta
Joana que um ex-capuchinho desfigurou em versos dignos dos capuchinhos, em
edições batavas.

Ó Musas, imponde silêncio ao detestável Coger, professor
de parolagem no colégio Mazarino, que não ficou contente com
os discursos morais de Belisário e do imperador Justiniano e escreveu
infames libelos difamatórios contra esses dois grandes homens.

Musas, filhas do céu, vosso inimigo Larcher ainda faz mais: estende-se
em elogios à pederastia; ousa dizer que todos os bambinos do meu país
são sujeitos a essa infâmia. Pensa salvar-se aumentando o número
dos culpados.
Nobres e castas Musas, que detestais igualmente o pedantismo e a pederastia,
protegei-me contra mestre Larcher!

É mais um trabalho extraordinário de um dos maiores pensadores
que a História já registrou.

Nélson Jahr Garcia

CAPÍTULO I

O velho Belus, rei de Babilônia, julgava-se o primeiro homem do mundo,
pois todos os seus cortesãos lho diziam e os seus historiógrafos
lhe provavam. O que poderia desculpar-lhe esse ridículo era que, com
efeito, seus predecessores haviam construído Babilônia mais de
trinta mil anos antes, mas ele a havia embelezado. Sabe-se que o seu palácio
e o seu parque, situados a algumas parasangas de Babilônia, se estendiam
entre o Eufrates e o Tigre, que banhavam aquelas ribas encantadas. Sua vasta
residência, de três mil passos de fachada, elevava-se até
as nuvens. A plataforma era cercada de uma balaustrada de mármore branco
de cinqüenta pés de altura que sustentava as estátuas colossais
de todos os reis e de todos os grandes homens do Império. Essa plataforma,
composta de duas ordena de tijolos cobertos de densa camada de chumbo, continha
terra numa espessura de doze pés; e sobre essa terra havia erguido
florestas de oliveiras, laranjeiras, limoeiros, palmeiras, cravos e caneleiras,
que formavam alamedas impenetráveis aos raios do sol.

As águas do Eufrates, elevadas por bombas em cem colunas ocas, vinham
até esses jardins encher vastos tanques de mármore e, retombando
por outros canais, iam formar no parque cascatas de seis mil pés e
cem mil repuxos cuja altura mal se podia perceber: voltavam em seguida para
o Eufrates, de onde provinham. Os jardins de Semíramis, que espantaram
a Ásia vários séculos depois, não passavam de
uma fraca imitação dessas antigas maravilhas; pois, no tempo
de Semíramis, tudo começava a degenerar entre os homens e as
mulheres.

Mas o que havia de mais admirável em Babilônia, o que eclipsava
tudo o mais, era a filha única do rei chamada Formosante. Foi segundo
os seus retratos e estátuas que, séculos após, Praxíteles
esculpiu a sua Afrodite e aquela a que chamaram a Vênus das belas nádegas.
Que diferença, ó céus, do original para as cópias!
De modo que Belus era mais orgulhoso da sua filha que do seu reino. Tinha
esta dezoito anos: era preciso um esposo digno dela; mas onde encontrá-lo?
Ordenara um antigo Oráculo que Formosante só poderia pertencer
àquele que retesasse o arco de Nemrod. Esse Nemrod, o grande caçador
perante Deus, deixara um arco de sete pés babilônicos de altura,
de um ébano mais duro que o ferro do monte Cáucaso que se trabalha
nas forjas de Derbente; e nenhum mortal depois de Nemrod pudera distender
esse arco maravilhoso.

Fora ainda dito que o braço que distendesse esse arco mataria o leão
mais terrível e perigoso que fosse largado no circo de Babilônia.
Não era tudo: o lançador do arco, o vencedor do leão,
devia abater a todos os seus rivais; mas devia principalmente ter muita inteligência,
ser o mais magnífico dos homens, o mais virtuoso, e possuir a coisa
mais rara que existisse no universo inteiro.

Apresentaram-se três reis que se atreveram a disputar Formosante:
o faraó do Egito, o xá das Índias e o grande cã
dos citas. Belus marcou o dia e o local do combate, que era no extremo de
seu parque, no vasto espaço limitado pelas águas do Eufrates
e do Tigre reunidos. Ergueram em redor da liça um anfiteatro de mármore
que podia conter quinhentos mil espectadores. Defronte ao anfiteatro, ficava
o trono do rei que devia comparecer com Formosante, acompanhada de toda a
Corte; e à direita e à esquerda, entre o trono e o anfiteatro,
estavam outros tronos e outros assentos para os três reis e para todos
os outros soberanos que tivessem a curiosidade de vir assistir àquela
augusta cerimônia.

Em primeiro lugar, chegou o rei do Egito, montando o boi Apis e segurando
o sistro de Isis. Vinha seguido de dois mil sacerdotes vestidos de túnicas
de linho mais brancas que a neve, de dois mil eunucos, de dois mil mágicos
e de dois mil guerreiros.

Depois chegou o rei das Índias, num carro tirado por doze elefantes.
Tinha um séquito ainda mais numeroso e mais brilhante que o do faraó
do Egito.

O último que apareceu foi o rei dos citas. Não tinha junto
de si senão guerreiros escolhidos, armados de arcos e de flechas. Sua
montaria era um tigre soberbo que ele domara e que era tão alto quanto
os mais belos cavalos da Pérsia. O porte desse monarca, imponente e
majestoso, apagava o de seus rivais; seus braços nus, tão musculosos
quanto brancos, pareciam já retesar o arco de Nemrod.

Os três príncipes se prosternaram primeiro diante de Belus
e de Formosante.

O rei do Egito ofereceu à princesa os dois mais belos crocodilos
do Nilo, dois hipopótamos, duas zebras, dois ratos do Egito e duas
múmias, com os livros do grande Hermes, que ele julgava o que havia
de mais raro sobre a face da terra.

O rei das Índias ofereceu-lhe cem elefantes, que carregavam cada
um uma torre de madeira dourada, e depôs a seus pés o Veidam,
escrito pela mão do próprio Xaca.

O rei dos citas, que não sabia ler nem escrever, apresentou cem cavalos
de batalha, cobertos de xairéis e peles de raposas negras.

A princesa baixou os olhos diante de seus pretendentes e inclinou-se com
uma graça tão modesta quanto nobre.

Belus mandou conduzir os três monarcas aos tronos que lhes estavam
reservados.

— Quem me dera ter três filhas – disse-lhes, – e
eu faria hoje seis pessoas felizes.

Em seguida mandou tirar a sorte, para ver quem primeiro experimentaria o
arco de Nemrod. Puseram num capacete de ouro os nomes dos três pretendentes.
O do rei do Egito saiu em primeiro lugar; em seguida, o do rei das Índias.
O rei cita, olhando o arco e os seus rivais, não se queixou de ser
o terceiro.

Enquanto se preparavam essas brilhantes provas, vinte mil pajens e vinte
mil raparigas distribuíam com toda a ordem refrescos aos espectadores.
Todos confessavam que os deuses só haviam instituído os reis
para que dessem festas todos os dias, contanto que fossem variadas; que a
vida é demasiado curta para que a empreguemos de outra forma; que os
processos, as intrigas, a guerra, as disputas dos sacerdotes, que consomem
a vida humana, são coisas absurdas e horríveis; que o homem
nasceu para a alegria; que não amaria apaixonada e continuamente os
prazeres se não fora formado para eles; que essência da natureza
humana é deleitar-se, e todo o resto é loucura. Essa excelente
moral nunca foi desmentida senão pelos fatos.

Quando iam começar as justas que deviam decidir do destino de Formosante,
apresentou-se um jovem desconhecido montado num unicórnio, acompanhado
de seu escudeiro em igual montaria, e trazendo ao punho um grande pássaro.
Os guardas ficaram surpresos ao ver em tal equipagem um vulto que tinha um
ar de divindade. Era, como depois se disse, o rosto de Adonis sobre o corpo
de Hércules; era a majestade unida à graça. Suas sobrancelhas
negras e seus longos cabelos loiros, combinação de beleza desconhecida
em Babilônia, encantaram a assembléia; todo o anfiteatro ergueu-se
para melhor o contemplar; todas as mulheres da Corte fixaram nele olhares
atônitos. A própria Formosante, que sempre baixava os olhos,
ergueu-os e enrubesceu; os três reis empalideceram; todos os espectadores,
comparando Formosante com o desconhecido, exclamavam: “Não há
no mundo senão esse jovem que seja tão belo como a princesa”.

Os porteiros, espantados, perguntaram-lhe se ele era rei. O estrangeiro
respondeu que não tinha essa honra, mas que viera de muito longe, por
curiosidade, para ver se havia reis que fossem dignos de Formosante. Levaram-no
para a primeira fila do anfiteatro, a ele, ao seu valete, aos seus dois unicórnios
e ao seu pássaro. O jovem fez uma profunda saudação a
Belus, à. sua filha, aos três reis e a toda a assembléia.
Depois acomodou-se, corando. Seus dois unicórnios deitaram-se a seus
pés, o seu pássaro pousou-lhe no ombro, e seu valete, que carregava
um pequeno saco, postou-se a seu lado.

Começaram as provas. Retiraram de seu estojo de ouro o arco de Nemrod.
O mestre de cerimônias, seguido de cinqüenta pajens e precedido
de vinte trombetas, o apresentou ao rei do Egito, que o fez benzer por seus
sacerdotes; e, tendo-o colocado sobre a cabeça do boi Apis, não
mais duvidou de alcançar essa primeira vitória. Desce à
arena, experimenta o arco, esgota as suas forças, faz contorções
que provocam o riso do anfiteatro e até fazem Formosante sorrir.

Aproxima-se dele o seu grande esmoler, e lhe diz:
— Que Vossa Majestade renuncie a essas honras vãs, que não
são mais que as dos músculos e nervos: triunfareis no resto.
Vencereis o leão, pois tendes o sabre de Osiris. A princesa de Babilônia
deve pertencer ao príncipe que tenha mais inteligência, e já
tendes decifrado enigmas, Deve ela desposar o mais virtuoso, e vós
o sois, pois fostes educado pelos sacerdotes do Egito. O mais generoso deve
vencer, e vós lhe presenteastes os dois mais belos crocodilos e os
dois mais belos ratos que havia no Delta. Possuía o boi Apis e os livros
de Hermes, que são a coisa mais rara do universo. Ninguém vos
pode disputar Formosante.

— Tens razão – disse o rei do Egito, e voltou para o
trono.

Puseram o arco entre as mãos do rei das Índias, o qual ficou
com empolas por quinze dias, e consolou-se pensando que o rei dos citas não
seria mais feliz do que ele.

O cita manejou o arco por sua vez. Juntava a habilidade à força:
o arco pareceu adquirir alguma elasticidade em suas mãos; fê-lo
ceder um pouco, mas não conseguiu distendê-lo. O anfiteatro,
a quem o bom aspecto desse príncipe inspirava favoráveis inclinações,
lamentou seu pouco sucesso e julgou que a bela princesa jamais se casaria.

Então o jovem desconhecido desceu de um salto à arena e, dirigindo-se
ao rei dos citas:
— Não se espante Vossa Majestade – disse-lhe ele –
de não haver obtido inteiro sucesso. Esses arcos de ébano são
fabricados na minha terra: há determinado modo de os manejar. Tendes
muito mais mérito em havê-lo feito ceder do que eu possa ter
em retesá-lo. Em seguida tomou uma flecha, ajustou-a na corda, retesou
o arco de Nemrod e fez voar a flecha muito além das barreiras. Um milhão
de mãos aplaudiu esse prodígio. Babilônia reboou de aclamações,
e todas as mulheres diziam: – Que felicidade que tão belo rapaz
tenha tanta força!
Tirou em seguida do bolso uma lâmina de marfim, escreveu nela com um
estilete de ouro, prendeu a chapa de marfim ao arco, e apresentou tudo à.
princesa com uma graça que encantava a todos os assistentes. Depois
foi modestamente para o seu lugar, entre o seu criado e o seu valete. Babilônia
inteira estava no auge da surpresa, os três reis desconcertados, e o
desconhecido não parecia aperceber-se de nada disso.

Formosante ainda ficou mais espantada quando leu, na chapa de marfim presa
ao arco, estes versos em bela linguagem caldaica:

O arco de Nemrod é o arco da guerra.

Mas o arco do Amor é o da felicidade:
Contigo o tens, Princesa. E, na verdade,
E por isso que o Amor domina toda a terra.

De três gloriosos reis, cada qual se presume
Ser afinal teu único e ditoso rei.

A quem escolherás, Princesa? Apenas sei
Que o universo inteiro há de sentir-lhe ciúme.

Esse pequeno madrigal não incomodou a princesa. Foi criticado por
alguns senhores da antiga Corte, que disseram que outrora, nos bons tempos,
teriam comparado Belus ao sol e Formosante à lua, seu pescoço
a uma torre e seu colo, a um alqueire de trigo. Disseram que o estrangeiro
não tinha imaginação e que se afastava das regras da
verdadeira poesia; mas todas as damas acharam os versos mui galantes. Maravilhavam-se
de que um homem que tão bem manejava o arco tivesse tanto talento.
A dama de honor da princesa disse-lhe:
— Quantas qualidades em pura perda! De que servirá a esse jovem
o seu espírito e o arco de Belus?
— Servirá para que o admirem – retrucou a princesa.

— Ah! – disse a dama de honor entre dentes, – mais um
madrigal, e ele será então amado.

Belus, no entanto, depois de consultar a seus magos, declarou que, visto
que nenhum dos três reis pudera manejar o arco de Nemrod, nem por isso.
sua filha deveria deixar de casar-se e que pertenceria àquele que conseguisse
abater o grande leão a que vinham tratando expressamente para isso.
O rei do Egito, que fora educado com toda a sabedoria do seu país,
achou que era muito ridículo expor um rei às feras para o casar.
Confessava que a posse de Formosante era um grande prêmio; mas considerava
que, se o leão o estraçalhasse, jamais poderia ele desposar
essa bela babilônia. O rei das Índias foi do mesmo parecer que
o egípcio; concluíram que o rei de Babilônia estava fazendo
pouco de ambos; que era preciso mandar vir exércitos para o punirem;
que tinham bastante súditos que se considerariam muito honrados de
morrer a serviço de seus senhores, sem que isso custasse um fio de
cabelo às suas sagradas cabeças; que facilmente destronariam
o rei da Babilônia e em seguida tirariam à sorte a bela Formosante.

Feito esse acordo, os dois reis despacharam, cada um para o seu país,
uma ordem expressa de reunir um exército de trezentos mil homens, a
fim de raptar Formosante.

No entretanto, o rei dos citas desceu sozinho à arena, de cimitarra
em punho. Não estava perdidamente arrebatado pelos encantos de Formosante;
até então fora a glória a sua única paixão;
ela o conduzira até Babilônia. Queria mostrar que, se os reis
da Índia e do Egito eram bastante prudentes para que se comprometessem
com feras, era ele bastante corajoso para não desdenhar esse combate,
e que repararia a honra do diadema. Sua rara coragem não lhe permitiu
ao menos que se servisse do seu tigre. Avança sozinho, levemente armado,
com um capacete de aço guarnecido de ouro, ornado de três caudas
de cavalo brancas como a neve.

Largam contra ele o maior leão que jamais se criou nas montanhas
do Anti-Líbano. Suas terríveis garras pareciam capazes de estraçalhar
os três reis ao mesmo tempo, e sua vasta goela de os devorar. Seus horrendos
rugidos faziam reboar o anfiteatro. Os dois feros campeões precipitam-se
um contra o outro a passo rápido. O corajoso cita mergulha a espada
na boca do leão; mas a lâmina, encontrando um desses espessos
dentes que nada pode atravessar, quebra-se em estilhaços, e o monstro
das florestas, furioso com o seu ferimento, já imprimia as unhas sangrentas
nos flancos do monarca.

O jovem desconhecido, penalizado com o perigo de tão bravo príncipe,
lança-se na arena mais rápido que um relâmpago; corta
a cabeça do leão com a mesma destreza com que, em nossos carrosséis,
juvenis cavaleiros arrebatam cabeças de mouros ou anéis.

Depois, tirando uma pequena caixa, apresenta-a ao rei cita, dizendo-lhe:
— Vossa Majestade encontrará nesta caixinha o verdadeiro ditamno,
que cresce na minha terra. Vossos gloriosos ferimentos ficarão curados
num instante. Só o acaso vos impediu de triunfar do leão; nem
por isso é menos admirável a vossa coragem.

O rei cita, mais sensível ao reconhecimento que ao ciúme,
agradeceu a seu salvador e, depois de tê-lo abraçado efusivamente,
recolheu-se para aplicar o ditamno nos ferimentos.

O desconhecido entregou a cabeça do leão a seu valete; este,
depois de a lavar na grande fonte abaixo do anfiteatro e de lhe escorrer todo
o sangue, tirou um ferro de seu pequeno saco, arrancou os quarenta dentes
do leão, e pós em seu lugar quarenta diamantes de igual tamanho.

Seu senhor, com a costumeira modéstia, voltou para o seu lugar; e
entregou a cabeça do leão ao pássaro.

— Belo pássaro – disse ele, – vai depor aos pés
de Formosante esta singela homenagem.

O pássaro voa, carregando numa das garras o terrível troféu;
apresenta-o à princesa, baixando humildemente o pescoço e prosternando-se
ante ela. Os quarenta brilhantes deslumbraram todos os olhos. Ainda não
se conhecia tal magnificência na soberba Babilônia: a esmeralda,
o topázio, a safira, o piropo ainda eram considerados como os mais
preciosos ornamentos. Belus e toda a Corte estavam cheios de admiração.
Mais ainda os surpreendeu o pássaro que oferecia aquele presente. Era
do talhe de uma águia, mas os seus olhos eram tão suaves e ternos
quanto os da águia são altivos e ameaçadores. Seu bico
era cor-de-rosa e parecia ter algo da linda boca de Formosante. Seu pescoço
reunia todas as cores do arco-íris, porém mais vivas e brilhantes.
Em nuanças infinitas, brilhava-lhe o ouro na plumagem. Seus pés
pareciam uma mescla de prata e púrpura; e a cauda dos belos pássaros
que atrelaram depois ao carro de Juno não tinham comparação
com a sua. A atenção, a curiosidade, o espanto, o êxtase
de toda a Corte dividiam-se entre os quarenta diamantes e o pássaro.
Pousara este na balaustrada, entre Belus e a sua filha Formosante; ela falava-lhe,
acariciava-o, beijava-o. Ele parecia receber suas carícias com um prazer
mesclado de respeito. Quando a princesa lhe dava beijos, o pássaro
lhos devolvia e olhava-a em seguida ternamente. Recebia dela biscoitos e pistaches,
que apanhava com a sua pata purpúrea e argentada e levava ao bico com
inexprimível graça.

Belus, que considerava atentamente os diamantes, achava que toda uma das
suas províncias mal daria para pagar tão rico presente. Mandou
que preparassem para o desconhecido oferendas ainda mais magníficas
do que as que estavam destinadas aos três monarcas. “Esse jovem
– dizia ele consigo – deve ser filho do rei da China, ou dessa
parte do mundo que chamam Europa, de que ouvi falar, ou da África que
é, dizem, vizinha do reino do Egito”.

Mandou imediatamente o escudeiro-mor cumprimentar o desconhecido e perguntar-lhe
se era ele soberano de algum daqueles impérios e por que, possuindo
tão espantosos tesouros, viera apenas com um valete e com um pequeno
saco.

Enquanto o escudeiro-mor avançava pelo anfiteatro para desincumbir-se
da sua missão, chegou outro valete montado num unicórnio, e
que assim se dirigiu ao jovem:
— Ormar, vosso pai está para morrer, e eu vim avisar-vos.

O desconhecido ergueu os olhos ao céu, derramou algumas lágrimas
e só pronunciou esta palavra:
— Partamos.

O escudeiro-mor, depois de haver apresentado os cumprimentos de Belus ao
vencedor do leão, ao doador dos quarenta diamantes, ao dono do belo
pássaro, perguntou ao valete de que reino era soberano o pai daquele
jovem herói.

O valete respondeu:
— Seu pai é um velho pastor que é muito estimado no cantão.

Durante esse curto diálogo, o desconhecido já montara no seu
unicórnio. Disse ao escudeiro-mor:
— Senhor, dignai-vos pôr-me aos pés de Belus e de sua filha.
Ouso suplicar à princesa que tenha o maior cuidado com o pássaro
que eu lhe deixo; ele é único como ela.

Dizendo tais palavras, partiu como um relâmpago; os dois valetes o
seguiram; e perderam-nos de vista.

Formosante não pôde deixar de soltar um grande grito. O pássaro,
voltando-se para o anfiteatro onde estivera sentado o seu dono, pareceu muito
aflito de não mais o ver. Depois, fitando fixamente a princesa e esfregando
suavemente o bico na sua linda mão, pareceu significar-lhe que se votava
a seu serviço.

Belus, mais espantado do que nunca, ao saber que aquele jovem tão
extraordinário era filho de um pastor, não pôde acreditá-lo.
Mandou que os seguissem; mas logo lhe vieram dizer que os unicórnios
nos quais corriam aqueles três homens não podiam ser alcançados
e que, pelo galope em que iam, deviam fazer cem léguas por dia.

CAPÍTULO II

Todos discutiam aquele estranho caso e perdiam-se em vis conjeturas. Como
é que o filho de um pastor pode presentear quarenta enormes diamantes?
Por que anda montado num unicórnio? Ninguém atinava com coisa
alguma, e Formosante, acariciando o seu pássaro, achava-se mergulhada
em profunda cisma.

A princesa Aldéia, sua prima em segundo grau, que era muito bem feita
e quase tão bela quanto Formosante, lhe disse:
— Não sei, minha prima, se esse jovem semideus é filho
de um pastor; mas parece-me que preencheu todas as condições
para o casamento. Manobrou o arco de Nemrod, venceu o leão, tem bastante
talento, pois te compôs um lindo improviso. Depois dos quarenta enormes
diamantes que te deu, não podes negar que seja o mais generoso dos
homens. Possuía, com o seu pássaro, o que há de mais
raro na face da terra. Sua virtude não tem igual, pois, podendo permanecer
perto de ti, partiu sem hesitação logo que soube que o pai estava
doente. O oráculo está. cumprido em todos os pontos, exceto
no que exige que vença a seus rivais; mas ele fez mais, salvou a vida
do único concorrente a quem podia temer; e, quando se tratar de bater
os dois outros, creio que não duvidarás que o consiga facilmente.

— Tudo o que dizes é verdade – respondeu Formosante.
– Mas será possível que o maior dos homens, e talvez o
mais amável, seja filho de um pastor?
A dama de honor, metendo-se na conversa, disse que muitas vezes essa palavra
pastor era aplicada aos reis; que os chamavam de pastores, porque eles tosquiam
seu rebanho; que fora certamente um duvidoso gracejo do seu valete; que aquele
jovem herói viera tão mal acompanhado apenas para mostrar o
quanto o seu mérito estava acima do fausto dos reis, e para não
dever Formosante senão a si mesmo. A princesa só respondeu dando
mil carinhosos beijos no seu pássaro.

Entrementes, preparava-se um grande festim para os três reis e para
todos os príncipes que tinham comparecido à festa. A filha e
a sobrinha do rei deviam fazer-lhes as honras. Traziam para os reis presentes
dignos da magnificência de Babilônia. Belus, enquanto não
serviam, reuniu o conselho, para tratar do casamento da bela Formosante, e
assim falou como grande político:
— Estou velho, não sei mais que fazer, nem a quem dar minha filha.
Aquele que a merecia não passa de um vil pastor. O rei das Índias
e o do Egito são uns poltrões; o rei dos citas me conviria bastante,
mas não satisfez nenhuma das condições impostas. Enquanto
isto, deliberai, e nós concluiremos de acordo com o que disser o oráculo;
pois um rei não se deve conduzir senão por ordem expressa dos
deuses imortais.

Dirige-se então à sua capela; o oráculo responde-lhe
em poucas palavras, segundo o seu costume: Tua filha só se casará
depois que houver saído a correr mundo. Belus, atônito, volta
ao conselho e comunica tal resposta.

Todos os ministros votavam profundo respeito aos oráculos; todos
convinham, ou fingiam convir, em que os oráculos eram o fundamento
da religião; que a razão deve calar-se diante deles; que é
por eles que os reis governam os povos, e os magos os reis; que, sem os oráculos,
não haveria nem virtude nem descanso na terra. Enfim, após haver
testemunhado a mais profunda veneração pelos oráculos,
quase todos concluíram que aquele era impertinente e não se
lhe devia obedecer; que nada era mais indecente para uma moça, e sobretudo
para a filha do grande rei de Babilônia, sair a vaguear sem saber por
onde; que esse era o verdadeiro meio de não casar, ou de fazer um casamento
clandestino, vergonhoso e ridículo; que, numa palavra, esse oráculo
não tinha senso comum.

O mais jovem dos ministros, chamado Onadase, que tinha mais espírito
do que eles, disse que o oráculo queria significar, sem dúvida,
alguma peregrinação religiosa, e que ele se oferecia para ser
o condutor da princesa. O conselho concordou, mas cada qual queria servir
de escudeiro. O rei decidiu que a princesa poderia ir a trezentas parasangas,
no Caminho da Arábia, a um templo cujo padroeiro tinha reputação
de conseguir bons casamentos para as moças, e que seria o deão
do conselho quem a acompanharia. Depois dessa decisão, foram todos
cear.

CAPÍTULO III

Em meio dos jardins, entre duas cascatas, elevava-se um salão oval
de trezentos pés de diâmetro, cuja abóbada de lápislazúli,
semeada de estrelas de ouro, representava todas as constelações
com os planetas, cada qual no seu verdadeiro lugar, e essa abóbada
girava como o céu, por meio de máquinas tão invisíveis
como aquelas que dirigem os movimentos celestes. Cem mil archotes, encerrados
em cilindros de cristal de rocha, alumiavam o exterior e o interior da sala
de jantar. Um aparador em degraus sustentava vinte mil vasos ou pratos de
ouro; e defronte ao aparador havia outros degraus repletos de músicos.
Dois outros anfiteatros se achavam carregados, um com os frutos de todas as
estações, o outro de ânforas de cristal onde brilhavam
todos os vinhos da terra.

Os convivas acomodaram-se em torno à mesa, cujos assentos eram separados
por grinaldas de pedras preciosas, que figuravam flores e frutos. A bela Formosante
foi colocada entre o rei das Índias e o do Egito, a bela Aldéia
perto do rei dos citas. Havia cerca de trinta príncipes e cada um deles
se achava ao lado de uma das mais belas damas do palácio. O rei de
Babilônia, ao centro, defronte à filha, parecia dividido entre
o pesar de não a ter casado e o prazer de ainda a conservar consigo.
Formosante pediu licença para ficar com o pássaro a seu lado,
na mesa, o que o rei achou muito bem.

A música, que começou a tocar, deu a cada príncipe
inteira liberdade para entreter a sua vizinha. O festim pareceu tão
agradável quão magnífico. Tinham posto diante de Formosante
um petisco que o rei seu pai muito apreciava. A princesa disse que o deviam
levar a Sua Majestade. E imediatamente o pássaro se apodera do prato,
com maravilhosa destreza, e vai apresentá-lo ao rei. Nunca se espantaram
tanto numa ceia. Belus fez-lhe tantas carícias quanto a filha. O pássaro
retomou em seguida o vôo, a fim de voltar para junto desta. Desenrolava,
assim, tão linda cauda, suas asas distendidas ostentavam tão
brilhantes cores, tamanho fulgor lançava o ouro da sua plumagem, que
todos os olhos só se fixavam nele. Todos os músicos cessaram
de tocar e permaneceram imóveis. Ninguém comia, ninguém
falava, só se ouvia um murmúrio de admiração.
A princesa de Babilônia beijou-o durante toda a ceia, sem ao menos pensar
que havia reis neste mundo. O das Índias e do Egito sentiram redobrar
seu despeito e indignação, e cada qual prometeu a si mesmo apressar
a marcha de seus trezentos mil homens, para uma boa vingança.

Quanto ao rei dos citas, estava ocupado em conversar com a bela Aldéia:
seu coração altivo, desprezando sem despeito as desatenções
de Formosante, concebera por ela mais indiferença que cólera.

— Ela é bonita, confesso-o dizia ele. – Mas me parece
dessas mulheres que só se ocupam com a sua beleza, e que pensam que
o gênero humano lhes deve ficar muito agradecido quando se dignam deixar-se
ver em público. Não se adoram ídolos no meu país.
Eu preferia uma feiosa amável e prestativa, a essa bela estátua.
Quanto à senhora, tem tantos encantos como Formosante, e ao menos se
digna conversar com os estrangeiros. Confesso-lhe, com a franqueza de um cita,
que prefiro a senhora à sua prima.

Enganava-se, contudo, a respeito do caráter de Formosante: ela não
era tão desdenhosa como parecia; mas o cumprimento do rei foi muito
bem recebido pela princesa Aldéia. A conversa de ambos tornou-se muito
interessante: estavam muito satisfeitos e já seguros um do outro quando
se levantaram da mesa.

Após a ceia, foram passear pelos bosques. O rei dos citas e Aldéia
não deixaram de procurar um recanto solitário. Aldéia,
que era a franqueza em pessoa, assim falou àquele príncipe:
— Não odeio a minha prima, embora seja mais bonita do que eu
e esteja destinada ao trono de Babilônia: a honra de vos agradar me
serve de atrativos. Prefiro a Cítia convosco à coroa de Babilônia
sem vós; mas essa coroa me pertence de direito, se há direitos
no mundo: pois sou do ramo mais antigo de Nemrod, e Formosante do mais novo.
Seu avô destronou o meu e fe-lo morrer.

— Tal é então a força do sangue na casa de Babilônia!
– disse o cita. – Como se chamava o vosso avô?
— Chamava-se Aldéia como eu. Meu pai tinha o mesmo nome; foi
relegado para os confins do império, com a minha mãe; e Belus,
após a morte deles, nada temendo de mim, resolveu educar-me junto com
a sua filha. Mas decidiu que eu jamais me casasse.

— Quero vingar vosso pai, e vosso avô, e a vós –
disse o rei dos Citas. – Garanto-vos que casareis; virei raptar-vos
depois de amanhã, pela madrugada, pois amanhã devo jantar com
o rei de Babilônia, e voltarei para sustentar vossos direitos com um
exército de trezentos mil homens.

— Muito o desejo – disse a bela Aldéia. E, após
haverem trocado sua palavra, separaram-se.

Fazia muito que a incomparável Formosante fora deitar-se. Mandara
colocar junto ao leito uma pequena laranjeira num vaso de prata, para que
o seu pássaro ali repousasse. Os cortinados estavam fechados, mas a
princesa não tinha nenhuma vontade de dormir. Seu coração
e sua imaginação se achavam demasiado alerta para isso, O encantador
desconhecido estava diante de seus olhos; via-o disparar uma flecha com o
arco de Nemrod; via-o cortar a cabeça do leão; ela recitava
o seu madrigal; via-o enfim escapar-se da multidão, montado no seu
unicórnio; então rebentava em soluços e exclamava entre
lágrimas:
— Nunca mais o verei. Ele não voltará.

— Voltará, senhora – respondeu-lhe o pássaro,
do alto da sua laranjeira. – Pode-se acaso tê-la visto sem tornar
a vê-la?
— O céus! ó eternas potências! o meu pássaro
fala puro caldaico!
Dizendo tais palavras, ela abre os cortinados, estende-lhe os braços,
põe-se de joelhos no leito:
— Serás um deus descido à terra? Serás o grande
Orosmade oculto sob essa bela plumagem? Se és um deus, restitui-me
aquele lindo jovem.

— Eu não sou mais que um volátil – replicou o
outro. – Mas nasci no tempo em que todos os animais ainda falavam e
em que os pássaros, as serpentes, as mulas, os cavalos e os grifos
conversavam familiarmente com os homens. Não quis falar diante das
outras pessoas, de medo que as suas damas de honor me tomassem por um feiticeiro:
só quero entender-me com Vossa Alteza.

Formosante, interdita, aturdida, ébria de tantas maravilhas, agitada
da impaciência de fazer mil perguntas ao mesmo tempo, indagou primeiro
que idade tinha ele.

— Vinte e sete mil e novecentos anos e seis meses, Alteza. Sou do
tempo da pequena revolução celeste que os vossos magos chamam
a precessão dos equinócios e que se cumpre em cerca de vinte
e oito mil de vossos anos. Há revoluções infinitamente
mais longas, de modo que temos criaturas muito mais velhas do que eu. Faz
vinte e dois mil anos que aprendi caldaico em uma de minhas viagens. Sempre
conservei muito gosto pela língua caldaica, mas os outros animais meus
confrades desistiram de falar sob os vossos climas.

— E por que isso, meu divino pássaro?
— Ai! é porque os homens adquiriram por fim o hábito de
nos comerem, em vez de conversar e instruir-se conosco. Bárbaros! Não
deviam estar convencidos de que, tendo os mesmos órgãos que
eles, os mesmos sentimentos, as mesmas necessidades, os mesmos desejos, tínhamos
o que se chama uma alma, exatamente como eles, e que só deviam cozinhar
e comer aos maus? E tanto somos vossos irmãos, que o grande Ser, o
Ser eterno e criador, quando fez um pacto com os homens (1), nos incluiu expressamente
no tratado. Ele proibiu que vos alimentásseis de nosso sangue, e a
nós que sugássemos o vosso.

As fábulas de vosso antigo Locman, traduzidas em tantas línguas,
serão um testemunho eternamente válido das felizes relações
que outrora mantivestes conosco. Todas começam por estas palavras:
No tempo em que os animais falavam… É verdade que há entre
vós muitas mulheres que continuam falando a seus cães; mas estes
resolveram não responder, desde que os forçaram, a rêlho,
a ir à caça ser cúmplices do morticínio de nossos
velhos amigos comuns, os cervos, os gamos, as lebres e as perdizes.

Tendes ainda antigos poemas nos quais os cavalos falam. E todos os dias
os vossos cocheiros lhes dirigem a palavra, mas fazem-no com tamanha grosseria
e pronunciando palavras tão infames, que os cavalos, que tanto vos
amavam outrora, hoje vos detestam.

O país onde mora o seu encantador desconhecido, o mais perfeito dos
homens, é o único em que a sua espécie ainda sabe amar
a nossa e falar-lhe; e é a única região da terra onde
os homens são justos.

— E onde é esse país de meu caro desconhecido? Qual
é o nome desse herói? Como se chama o seu Império? Pois
já não creio agora que ele seja um pastor como não creio
que sejas um morcego.

— O seu país, Alteza, é o dos gangáridas, povo
virtuoso e invencível que habita a margem esquerda do Ganges. O nome
de meu amigo é Amazan. Não é rei, e mesmo não
sei se ele se baixaria a sê-lo; ama muito a seus compatriotas: é
pastor como eles. Mas não vá imaginar que esses pastores se
assemelham aos vossos, que, mal cobertos de trapos rotos, guardam ovelhas
infinitamente mais bem vestidas do que eles; que gemem sob o fardo da pobreza;
e pagam a um exator metade do pífio salário que recebem dos
amos. Os pastores gangáridas nascidos todos iguais, são donos
de inumeráveis rebanhos que cobrem os seus prados eternamente em flor.
Não os carneiam nunca; constitui ali um crime horrível matar
e comer a seu semelhante. Sua lã, mais fina e brilhante que a mais
bela seda, é o maior comércio do Oriente. Aliás, a terra
dos gangáridas produz tudo o que pode contentar os desejos dos homens.
Esses grandes diamantes que Amazan teve a honra de lhe oferecer são
de uma mina da sua propriedade, O unicórnio que Vossa Alteza o viu
cavalgar é a montaria comum dos gangáridas. É o mais
belo, o mais altivo, o mais terrível e o mais dócil animal que
orna a terra. Bastaria cem gangáridas e cem unicórnios para
debandar exércitos inumeráveis. Há cerca de dois séculos,
um rei das Índias foi bastante louco para querer conquistar aquela
nação: apresentou-se seguido de dez mil elefantes e de um milhão
de guerreiros. Os unicórnios atravessaram os elefantes tal como vi,
na sua mesa, cotovias enfiadas em espetos de ouro. Os guerreiros tombavam
debaixo do sabre dos gangáridas, como as searas de arroz ceifadas pelos
orientais. O rei foi feito prisioneiro, com mais de seiscentos mil homens.
Banharam-no nas águas salutares do Ganges; submeteram-no ao regime
do país, que consiste em comer apenas os vegetais prodigalizados pela
natureza para alimentar a tudo o que respira. Os homens que comem carne e
tomam beberagens fortes têm todos um sangue azedo e adusto, que os torna
loucos de mil maneiras diferentes. Sua principal demência se manifesta
na fúria de derramar o sangue de seus irmãos e devastar terras
férteis, para reinarem sobre cemitérios. Levaram seis meses
inteiros para curar da sua enfermidade ao rei das Índias. Quando julgaram
os médicos que ele tinha o pulso mais tranqüilo e o espírito
mais assentado, apresentaram o competente certificado ao conselho dos gangáridas.
Esse conselho, depois de ouvir a opinião dos unicórnios, mandou
humanamente de volta ao seu país o rei das Índias, e mais a
sua tola Corte e os seus imbecis guerreiros. Tal lição os tornou
sensatos e, desde essa época, os indianos têm respeitado os gangáridas,
como os ignorantes que desejam instruir-se respeitam, entre vós, os
filósofos caldeus, a que não podem igualar-se.

— A propósito, meu querido pássaro – Indagou a
princesa, – há uma religião entre os gangáridas?
— Se há uma religião? Todos os dias de lua cheia, nós
nos reunimos para dar graças a Deus, os homens num grande templo de
cedro, as mulheres em outro, para evitar distrações, bem como
todos os pássaros num bosque, e os quadrúpedes num belo prado.
Agradecemos a Deus todos os bens que nos proporcionou. Temos principalmente
papagaios, que pregam às mil maravilhas.

Tal é a pátria do meu caro Amazan, é lá que
eu resido; tanta amizade dedico a Amazan quanto amor ele inspirou a Vossa
Alteza. Por vontade minha, partiríamos juntos agora, e a princesa lhe
pagaria a visita.

— Bela ocupação a tua, meu querido pássaro –
respondeu, sorrindo, a princesa, que ardia de desejos de fazer a viagem, e
não ousava confessá-lo.

— Eu sirvo a meu amigo – disse o pássaro – e, depois
da felicidade de vos amar, a maior é a de servir a vossos amores.

Formosante não sabia mais onde se achava; julgava-se transportada
além da terra. Tudo o que tinha visto naquele dia, tudo o que via,
tudo o que ouvia, e principalmente o que sentia no coração,
mergulhava-a numa embriaguez que ultrapassava de muito ao que sentem hoje
os felizes muçulmanos quando, desenvencilhados de seus bens terrenos,
se vêem no nono céu entre os braços das suas huris, cercados
e penetrados da glória e da felicidade celestiais.

CAPÍTULO IV

Passou a noite inteira a falar de Amazan. Não o chamava senão
de seu pastor; é desde esse tempo que os nomes de pastor e enamorado
são sempre empregados um pelo outro em algumas nações.
Ora perguntava ao pássaro se Amazan tivera outras amadas. Este respondia
que não, e ela sentia-se no auge da alegria. Ora queria saber como
passava ele a vida, e ouvia, transportada, que a empregava a fazer o bem,
a cultivar as artes, a penetrar os segredos da natureza, e a aperfeiçoar
o espírito. Ora queria saber se a alma de seu pássaro era da
mesma natureza que a de seu amado; por que vivera o primeiro cerca de vinte
e oito mil anos, ao passo que o último não tinha mais que dezoito
ou dezenove. Fazia mil perguntas semelhantes, às quais o pássaro
respondia com uma discrição que lhe espicaçava a curiosidade.
Afinal o sono lhes fechou os olhos e entregou Formosante à doce ilusão
dos sonhos enviados pelos deuses, que ultrapassam às vezes a própria
realidade, e que toda a filosofia dos caldeus tem tanto trabalho em interpretar.

Formosante acordou-se muito tarde. Para ela ainda era cedo, quando o pai
entrou no seu quarto. O pássaro recebeu Sua Majestade com respeitosa
polidez, foi ao seu encontro, ruflou as asas, alongou o pescoço, e
voltou para a sua laranjeira. O rei sentou-se no leito da filha, a quem os
sonhos haviam tornado ainda mais bela. Sua grande barba branca aproximou-se
daquele lindo rosto e, depois de lhe dar dois beijos, ele lhe falou nos seguintes
termos:
— Ontem, minha filha, não pudeste achar um marido como eu desejava;
no entanto, precisas de um; assim o exige o futuro do Império. Consultei
o oráculo, que, como bem sabes, não mente nunca e dirige todos
os meus atos. Ele me ordenou que te fizesse correr mundo. É preciso
que viajes.

— Ah! Até aos gangáridas, com certeza! – exclamou
Formosante, que, enquanto deixava escapar tais palavras, compreendeu a sua
tolice. O rei, que nada sabia de geografia, perguntou o que entendia ela por
gangáridas. Ela logo achou uma saída. O rei comunicou-lhe que
era preciso fazer uma peregrinação; que já nomeara, para
a sua comitiva, o decano dos conselheiros de Estado, o esmoler-mor, uma dama
de honor, um médico, um boticário, e o seu pássaro, com
toda a criadagem necessária. Formosante, que jamais saíra do
palácio do rei seu pai, e que, até a chegada dos três
reis e de Amazan, levara uma vida muito insípida na etiqueta do fausto
e na aparência dos prazeres, ficou encantada com a peregrinação
em vista. “Quem sabe – dizia ela baixinho ao seu coração
– se os deuses não inspirarão ao meu querido gangárida
o mesmo desejo de ir à mesma capela, e se não terei a felicidade
de rever o peregrino?” Agradeceu carinhosamente ao pai, dizendo que
sempre tivera secreta devoção pelo santo ao qual a enviavam.

Belus ofereceu um excelente almoço a seus hóspedes; só
compareceram homens. Era tudo gente que não combinava: reis, príncipes,
ministros, pontífices, todos ciumentos uns dos outros, todos a pesarem
suas palavras, todos embaraçados com os vizinhos e consigo mesmos.
A refeição foi triste, embora bebessem muito. As princesas ficaram
nos seus aposentos, ocupadas com a partida. Comeram a sós. Formosante
foi em seguida passear pelos jardins com o seu querido pássaro que,
para a distrair, voava de árvore em árvore, ostentando a sua
soberba cauda e a sua divina plumagem.

O rei do Egito, que estava bastante animado pelo vinho, para não
dizer bêbedo, pediu um arco e flechas a um dos pajens. Esse príncipe
era na verdade o mais desajeitado arqueiro do seu reino. Quando atirava ao
alvo, o lugar onde se estava mais seguro era o ponto que ele visava. Mas o
belo pássaro, voando tão rápido como a flecha, apresentou-se
por si mesmo ao tiro, e tombou ensangüentado entre os braços de
Formosante. O egípcio retirou-se, a rir tolamente. A princesa feria
o céu com os gritos, chorava, lanhava as faces e o peito. O pássaro
moribundo disse-lhe baixinho: “Queima-me, e não deixes de levar
minhas cinzas para a Arábia Feliz, a leste da antiga cidade de Aden
ou Éden, e expô-las ao sol sobre uma pequena fogueira de cravo
e canela”. Dito isto, expirou. Formosante permaneceu por muito tempo
sem sentidos, e só voltou a si para romper em soluços. O pai,
partilhando da sua dor, e soltando imprecações contra o rei
do Egito, não teve dúvida em que aquele caso anunciava um sinistro
futuro. Foi logo consultar o oráculo da sua capela. O oráculo
respondeu:
Mistura de tudo; morto vivo, infidelidade e constância, perda e ganho,
calamidade e ventura. Nem o rei nem seu conselho nada puderam entender daquilo;
mas ele afinal estava satisfeito de haver cumprido com os seus deveres religiosos.

Enquanto o rei consultava o oráculo, a princesa, desolada, mandou
prestar ao pássaro as honras fúnebres que ele ditara, e resolveu
levá-lo para a Arábia, com perigo da própria vida. O
pássaro foi queimado em linho incombustível, juntamente com
a laranjeira em que pousara. Formosante recolheu-lhe as cinzas em um pequeno
vaso de ouro todo cravejado de carbúnculos e brilhantes retirados da
boca do leão. Pudesse ela, em vez de cumprir esse fúnebre dever,
queimar vivo o detestável rei do Egito! esse era todo o seu desejo.
No seu despeito, mandou matar os seus dois crocodilos, os seus dois hipopótamos,
as suas duas zebras, os seus dois ratos, e mandou lançar as suas duas
múmias no Eufrates; se tivesse à mão o boi Apis, não
o teria poupado.

O rei do Egito, furioso com tal afronta, partiu imediatamente para movimentar
seus trezentos mil homens. O rei das Índias, vendo partir o seu aliado,
regressou no mesmo dia, no firme propósito de juntar seus trezentos
mil indianos ao exército egípcio. O rei da Cítia fugiu
de noite com a princesa Aldéia, firmemente resolvido a combater por
ela à frente de trezentos mil citas, e restituir-lhe a herança
de Babilônia, que lhe era devida, por descender do ramo mais antigo.

Por seu lado, a bela Formosante pôs-se a caminho às três
horas da madrugada, com a sua caravana de peregrinos, esperando poder ir à
Arábia executar os últimos desejos de seu pássaro, e
que a justiça dos deuses imortais lhe devolvesse o seu querido Amazan,
sem o qual ela já não podia viver.

Assim, ao despertar, o rei da Babilônia não encontrou mais
ninguém. “Como terminam as grandes festas! – dizia ele
consigo. – E que espantoso vácuo nos deixam na alma, depois de
passada a sua animação!” Mas foi acometido de uma cólera
verdadeiramente real quando soube que haviam raptado a princesa Aldéia.
Deu ordem para que despertassem a todos os seus ministros e se reunisse o
conselho. Enquanto os esperava, não deixou de ir consultar o seu oráculo,
mas só lhe pôde arrancar estas palavras, tão famosas depois,
no universo inteiro: Quando não casam as moças, elas mesmas
se casam.

Logo foi expedida ordem de marcharem trezentos mil homens contra o rei dos
citas. Eis, pois, deflagrada de todos os lados a mais terrível das
guerras e que foi ocasionada pela mais bela festa que já se deu no
mundo. A Ásia ia ser assolada por quatro exércitos de trezentos
mil combatentes cada um. Bem se vê que a guerra de Tróia, que
estarreceu o mundo alguns séculos depois, não passava, em comparação,
de um brinquedo de criança; mas deve-se considerar que, na disputa
dos troianos, apenas se tratava de uma mulher já velha e muito libertina
que se fizera raptar duas vezes, ao passo que ora se tratava de duas moças
e um pássaro.

O rei das Índias ia esperar seu exército na grande e magnífica
estrada que se dirigia, numa reta, de Babilônia a Caxemira. O rei dos
citas corria com Aldéia pela bela estrada que levava ao monte Imaús.
Todos esses caminhos desapareceram depois, devido à má administração.
O rei do Egito marchara para o ocidente, e costeava o pequeno mar Mediterrâneo,
que os ignorantes hebreus chamaram depois o grande mar.

Quanto à bela Formosante, seguia a estrada de Baçorá,
bordada de altas palmeiras que forneciam uma sombra eterna e frutas em todas
as estações. O templo aonde ia em peregrinação
situava-se na própria Baçorá. O santo a quem fora dedicado
o templo era mais ou menos à moda, daquele que adoraram depois em Lâmpsaco.
Não só conseguia marido para as moças, mas muitas vezes
fazia papel de marido. Era o santo mais festejado de toda a Ásia.

Formosante não se preocupava absolutamente com o santo de Baçorá;
só invocava o seu caro pastor gangárida, o seu belo Amazan.
Contava embarcar em Baçorá para a Arábia, a fim de fazer
o que o pássaro lhe ordenara.

Na terceira pousada, mal entrara numa hospedaria onde os seus furriéis
lhe haviam preparado tudo, soube que o rei do Egito ali também chegava.
Informado, por seus espiões, da marcha da princesa, mudara imediatamente
de caminho, seguido de numerosa escolta. Chega; manda colocar sentinelas em
todas as portas; entra no quarto da bela Formosante e diz-lhe:
— Jovem, era a ti mesma que eu buscava; fizeste pouco de mim quando
eu estava em Babilônia; é justo punir as desdenhosas e as caprichosas:
vais ter a amabilidade de cear comigo esta noite; não terás
outro leito senão o meu, e eu me conduzirei contigo como bem me aprouver.
Formosante compreendeu que não era a mais forte; sabia que o bom senso
consiste em conformar-se com a situação; tomou o partido de
livrar-se do rei do Egito por meio de uma inocente esperteza; olhou-o com
o rabo do olho, o que vários séculos depois se chamou namorar;
e eis como lhe falou, com uma modéstia, uma graça, uma doçura,
um embaraço e uma multidão de encantos que teriam enlouquecido
o mais sábio dos homens e cegado o mais clarividente:
— Confesso, senhor, que sempre baixei os olhos perante vós quando
destes ao rei meu pai a honra de ir a seu palácio. Temia o meu coração,
temia a minha ingênua simplicidade: temia que meu pai e vossos rivais
se apercebessem da preferência que eu vos concedia e tanto merecíeis.
Posso agora entregar-me a meus sentimentos. Juro pelo boi Apis, que é,
depois de vós, o que mais respeito no mundo, que as vossas propostas
me encantaram. Já ceei convosco no palácio de meu pai; e de
novo o farei, sem a sua presença; só o que peço é
que o vosso esmoler-mor beba conosco; pareceu-me em Babilônia um esplêndido
conviva; tenho excelente vinho de Chiraz, quero que ambos o experimentem.
Quanto à vossa segunda proposta, é muito tentadora, mas não
convém, a uma moça bem nascida, falar em tais coisas; baste-vos
saber que eu vos considero como o maior dos reis e o mais amável dos
homens. Essa fala virou a cabeça do rei do Egito; concordou em que
o esmoler-mor fosse o terceiro à mesa.

— Desejo ainda outro favor – disse-lhe a princesa. – É
uma permissão vossa para que o meu boticário venha falar-me;
as moças sempre têm certos pequenos incômodos, que demandam
certos cuidados, como tonturas, palpitações, cólicas,
faltas de ar, em que é preciso pôr certa ordem em certas circunstâncias;
numa palavra, tenho urgente necessidade de meu boticário, e espero
que não me recusareis essa pequena demonstração de amor.

— Senhorita – respondeu-lhe o rei do Egito, – embora um
boticário tenha idéias exatamente opostas às minhas,
e o objeto de sua arte seja o contrário do de minha arte, sou bastante
complacente para não recusar tão justo pedido. Vou ordenar que
ele venha falar-te enquanto se prepara a ceia. Compreendo que devas estar
um pouco fatigada da viagem; deves também ter necessidade de uma criada
de quarto; podes mandar chamar a que melhor te agrade; aguardarei em seguida
as tuas ordens.

Ele retirou-se; chegaram o boticário e a criada de quarto, chamada
Irla, na qual a princesa depositava inteira confiança. Ordenou-lhe
que mandasse trazer seis garrafas de vinho de Chiraz para a ceia e servisse
outras tantas às sentinelas que vigiavam a seus oficiais. Recomendou
ao boticário que metesse em todas as garrafas certas drogas da sua
farmácia, que faziam dormir vinte e quatro horas, e de que .ele estava
sempre munido. Foi estritamente obedecida. Ao cabo de meia hora, voltou o
rei com o esmoler-mor: a ceia foi muito alegre; o rei e o sacerdote esvaziaram
as seis garrafas e confessaram que não havia um vinho igual no Egito;
a camareira teve o cuidado de dar de beber aos criados que haviam servido.
Quanto à princesa, absteve-se de beber, dizendo que o seu médico
a pusera em regime. Em breve estavam todos adormecidos.

O esmoler do rei do Egito tinha a mais bela barba que pudesse carregar um
homem da sua condição. Formosante cortou-a habilmente; depois,
mandando-a coser a uma fita, amarrou-a ao próprio queixo, envergou
a túnica do sacerdote, sem esquecer as insígnias da sua dignidade,
e vestiu a camareira de sacristã da deusa Isis. Tomando, enfim, a urna
e as pedras preciosas, saiu da hospedaria por entre os guardas, que dormiam,
como o seu senhor. A camareira tivera o cuidado de deixar dois cavalos selados
à porta. Não podia a princesa levar consigo nenhum dos oficiais
da sua comitiva: pois teriam sido presos pela guarda.

Formosante e Irla passaram por entre as fileiras dos soldados que, tomando
a princesa pelo grão-Sacerdote, a chamavam de Meu Reverendíssimo
Pai em Deus e lhe pediam a bênção. As duas fugitivas chegam
em vinte e quatro horas a Baçorá, antes que o rei houvesse despertado.
Deixaram então os disfarces, que poderiam despertar suspeitas. Fretaram
imediatamente um navio que as levou, pelo estreito de Ormuz, às belas
ribas do Éden, na Arábia Feliz. Desse Éden, cujos jardins
eram tão famosos, foi que se fez depois a morada dos justos: foram
o modelo dos Campos Elísios, dos jardins das Hespérides e dos
das Ilhas Afortunadas; pois, naqueles climas quentes, não imaginam
os homens maior beatitude que as sombras e o murmúrio das águas.
Viver eternamente com o Ser Supremo, ou ir passear pelo jardim no paraíso,
dava no mesmo para os homens, que falam sempre sem entender-se e ainda não
puderam ter idéias nítidas nem expressões justas.

Logo que ali se encontrou, o primeiro cuidado da princesa foi prestar ao
seu querido pássaro as honras fúnebres que este lhe exigira.
Suas belas mãos ergueram uma pira de cravo e canela. Qual não
foi a sua surpresa quando, depois de espalhar sobre essa lenha as cinzas do
pássaro, a viu acender-se por si mesma! Tudo se consumiu num instante.
Só ficou, no lugar das cinzas, um grande ovo, de que viu sair o seu
belo pássaro, mais esplêndido do que nunca. Foi o mais belo instante
que a princesa experimentou em toda a vida; não havia senão
outro que lhe pudesse ser mais caro: ela o desejava, mas não o esperava.

— Bem vejo – disse ela ao pássaro – que és
a fênix de que tanto me haviam falado. Estou prestes a morrer de espanto
e de alegria. Não acreditava na ressurreição; mas a minha
ventura convenceu-me.

— A ressurreição, Alteza – disse-lhe a fênix,
– é a coisa mais simples deste mundo. Não é mais
surpreendente nascer duas vezes do que uma. Tudo é ressurreição
no mundo; as lagartas ressuscitam em borboletas, uma semente ressuscita em
árvore; todos os animais, sepultados na terra, ressuscitam em ervas,
em plantas, e alimentam outros animais, de que vão constituir em breve
uma parte da substância: todas as partículas que compunham os
corpos são transformadas em diferentes seres. É verdade que
sou o único a quem o poderoso Orosmade concedeu a graça de ressuscitar
na sua própria natureza.

Formosante, que, desde o dia em que vira Amazan e a fênix pela primeira
vez, passara as horas a espantar-se, disse-lhe:
— Compreendo muito bem que o Ser Supremo tenha podido formar das tuas
cinzas uma fênix mais ou menos semelhante a ti; mas, que sejas precisamente
o mesmo ser, que tenhas a mesma alma, é coisa que eu não compreendo
claramente. Que era feito de tua alma, enquanto eu, te carregava no bolso,
após a tua morte?
— O meu Deus, Alteza! Pois não é tão fácil,
para o grande Orosmade, continuar a sua ação sobre uma pequena
fagulha de mim mesma, como principiar essa ação? Ele me concedera,
antes, o sentimento, a memória e o pensamento: ainda mos concede agora;
que haja arrancado esse favor a um átomo de fogo elementar oculto em
mim, ou ao conjunto de meus órgãos, isso no fundo nada quer
dizer: as fênix e os homens sempre ignorarão como se passa a
coisa; mas a maior graça que me concedeu o Ser Supremo foi a de fazer-me
renascer para a Princesa.

— Minha fênix – tornou a princesa, – considera que
as primeiras palavras que me disseste em Babilônia e que eu jamais esquecerei,
me encheram da esperança de tornar a ver aquele pastor a quem idolatro;
é preciso absolutamente partirmos para a terra dos gangáridas,
para que eu o traga de volta a Babilônia.

— É também o meu desejo – disse a fênix.
– Não há um momento a perder. É preciso ir buscar
Amazan pelo caminho mais curto, isto é pelos ares. Há na Arábia
Feliz dois grifos, meus amigos íntimos, que apenas moram a cinqüenta
léguas daqui: vou escrever-lhes pelos pombos-correios; eles chegarão
antes do anoitecer. Teremos tempo suficiente para mandar fazer um pequeno
canapé cômodo, com gavetas, onde colocar as provisões
de boca. A princesa estará perfeitamente à vontade nessa viatura,
com a sua camareira. Os dois grifos são os mais vigorosos da sua espécie;
cada um segurará um dos braços do canapé entre as garras.
Mas ainda uma vez: o tempo urge.

Foi imediatamente, com Formosante, encomendar o canapé a um marceneiro
seu conhecido. Ficou pronto em quatro horas. Puseram nas gavetas pãezinhos
da rainha, biscoitos melhores que os de Babilônia, cidras, ananases,
cocos, pistaches e vinho do Éden, que está para o de Chiraz
como o de Chiraz está acima do de Suresnes.

O canapé era tão leve quanto cômodo e sólido.
Os dois grifos chegaram ao Éden na hora justa. Formosante e Irla acomodaram-se
na viatura. Os dois grifos ergueram-na como uma pluma. A fênix ora voava
à frente, ora se empoleirava no espaldar. Os dois grifos rumaram para
o Ganges com a rapidez de uma flecha que fende os ares. Os viajantes só
repousavam alguns momentos à noite, para comer, e para dar um trago
aos dois carregadores.

Chegaram enfim à terra dos gangáridas. O coração
da princesa palpitava de esperança, de amor e de alegria. A fênix
faz parar a viatura defronte à casa de Amazan; pede para lhe falar;
mas fazia três horas que ele partira, sem que ninguém soubesse
aonde teria ido.

Não há, nem na própria língua dos gangáridas,
uma palavra que possa exprimir o desespero de Formosante.

— Ai! Eis o que eu temia – disse a fênix. – As três
horas que a princesa passou na hospedaria a caminho de Bacorá, com
esse desgraçado rei do Egito, arrebataram talvez para sempre a felicidade
de sua vida: tenho muito medo de havermos perdido Amazan irremediavelmente.

Perguntou então aos criados se se podia cumprimentar a senhora mãe
de Amazan. Responderam que, havendo morrido o seu esposo na ante-véspera,
não recebia ela ninguém. A fênix, que era muito considerada
na casa, não deixou de fazer entrar a princesa de Babilônia em
um salão cujas paredes eram revestidas de pau de laranjeira com filetes
de marfim; os subpastores e subpastoras, em longas túnicas brancas
com cintos cor de aurora, serviram-lhe, em cem travessas de simples porcelana,
cem iguarias deliciosas, entre as quais não se via nenhum cadáver
disfarçado: era arroz, sagu, sêmola, aletria, macarrão,
omeletes, ovos com molho branco, queijos, massas de toda espécie, legumes,
frutas de um perfume e de um sabor de que não se tem idéia em
outros climas; e havia uma profusão de licores refrigerantes, superiores
aos melhores vinhos.

Enquanto a princesa comia, estendida num leito de rosas, quatro pavões,
felizmente mudos, a abanavam com suas brilhantes asas; duzentos pássaros,
cem pastores e cem pastoras lhe deram um concerto de dois coros; os rouxinóis,
os canários, as toutinegras, os tentilhões faziam soprano com
as pastoras; os pastores faziam o contralto e o baixo: era em tudo a bela
e simples natureza. A princesa confessou que, se havia mais magnificência
em Babilônia, a natureza era mil vezes mais agradável entre os
gangáridas; mas, enquanto lhe ofereciam aquela música tão
consoladora e voluptuosa, derramava lágrimas e dizia à sua jovem
companheira Irla:
— Esses pastores e pastoras, esses rouxinóis e canários,
estão todos amando, enquanto me sinto privada do herói gangárida,
digno objeto dos meus mais ternos e impacientes desejos.

Enquanto assim fazia a sua refeição, e admirava, e chorava,
dizia a fênix à, mãe de Amazan:
— Senhora, não podeis deixar de ver a princesa de Babilônia;
bem sabeis que…

— Sei tudo – disse ela, – até a sua aventura na
hospedaria da estrada de Baçorá; um melro me contou tudo esta
manhã; e esse melro cruel foi o causante de que meu filho, desesperado,
ficasse como louco e abandonasse a casa paterna.

— Não sabeis então – tornou a fênix –
que a princesa me ressuscitou?
— Não,, meu filho; pelo melro, sabia eu que estavas morto, o
que me deixava inconsolável. Estava tão aflita com essa perda,
com a morte de meu marido e a súbita partida de meu filho, que proibira
toda e qualquer visita. Mas, já que a princesa de Babilônia me
dá a honra de vir visitar-me, faze-a logo entrar; tenho coisas da máxima
importância para lhe dizer, e quero que estejas presente.

Dirigiu-se em seguida a um outro salão, onde deveria encontrar-se
com a princesa. Não andava com facilidade: era uma dama de cerca de
trezentos anos; mas tinha ainda vestígios de beleza e bem se via que,
entre os duzentos e trinta e os duzentos e quarenta anos, fora mesmo encantadora.
Recebeu Formosante com uma nobreza respeitosa, a que se mesclava um ar de
interesse e de dor, e que causou à princesa uma viva impressão.

Formosante lhe apresentou primeiro as condolências pela morte do marido.

— Ah! – exclamou a viúva. – Deveis interessar-vos
pela sua perda mais do que pensais.

— Sem dúvida que me sinto abalada – disse Formosante.
– Ele era pai de…

A estas palavras, ela pôs-se a chorar:
— Eu não tinha vindo senão por causa dele, e através
de muitos perigos. Deixei, por ele, a meu pai e à mais brilhante Corte
do universo; fui raptada por um rei do Egito a quem detesto. Escapando a este,
atravessei os ares para ver aquele a quem amo; chego, e ele me foge!
As lágrimas e os soluços impediram-na de continuar.

— Alteza – disse-lhe então a mãe, enquanto orei
do Egito vos seqüestrava, enquanto ceavam ambos numa hospedaria da estrada
de Baçorá, quando as vossas belas mãos lhe serviam vinho
de Chiraz, não vos lembrais de ter visto um melro que revoava pela
sala?
— É verdade, vós me reavivais a memória; eu não
tinha prestado atenção; mas, concentrando-me, bem me lembro
que, no momento em que o rei do Egito se erguia da mesa para me dar um beijo,
o melro voou pela janela lançando um grito, e não mais reapareceu.

— Ai, Alteza! – suspirou a mãe de Amazan – Eis
exatamente a causa das nossas desgraças. O meu filho mandara esse melro
informar-se do vosso estado de saúde e de tudo o que se passava em
Babilônia; esperava regressar em breve para lançar-se a vossos
pés e consagrar-vos a vida. Nem sabeis a que ponto ele vos adora. Todos
os gangáridas são amorosos e fiéis; mas o meu filho é
o mais apaixonado e o mais constante de todas. O melro vos encontrou numa
estalagem, a beber alegremente com o rei do Egito e um maldito sacerdote;
ele vos viu enfim dar um terno beijo àquele monarca que matara a fênix
e ao qual meu filho tem invencível horror. A vista disso, o melro foi
tomado de justa indignação; voou amaldiçoando os vossos
funestos amores. Regressou hoje e contou tudo. Mas em que momento, meu Deus!
No momento em que meu filho chorava comigo a morte de seu pai e a da fênix,
no momento em que ele sabia, por mim, que é vosso primo!
— O céus! Meu primo! Será possível, senhora? E
por que aventura? Como? Então sou eu feliz a tal ponto?! E seria tão
desgraçada ao mesmo tempo, por havê-lo ofendido?!
— Meu filho é vosso primo – tornou a mãe, –
e já vos dou a prova; mas, tornando-vos parente minha, vós me
arrancais o filho; ele não poderá sobreviver à dor que
lhe causou vosso beijo ao rei do Egito.

— Ah! minha tia – exclamou a bela Formosante, – juro por
ele e pelo poderoso Orosmade que aquele beijo funesto, longe de ser criminoso,
era a mais forte prova de amor que eu poderia dar a vosso filho. Por causa
de Amazan, eu desobedecia a meu pai. Ia, por causa dele, do Eufrates ao Ganges.
Caída nas mãos do indigno faraó do Egito, não
podia escapar-lhe senão enganando-o. Atestam-no as cinzas e a alma
da fênix, que estavam então comigo; ela pode fazer-me justiça.
Mas como é que vosso filho, nascido às margens do Ganges, pode
ser meu primo, quando minha família reina há tantos séculos
nas margens do Eufrates?
— Não sabeis – tornou a venerável gangárida
– que o vosso tio-avô Aldéia era rei de Babilônia
e que foi destronado pelo pai de Belus?
— Sim, Senhora.

— Sabeis que seu filho Aldéia tivera de seu casamento a princesa
Aldéia, criada e educada na vossa Corte. Pois foi esse príncipe
que, perseguido por vosso pai, veio refugiar-se em nossa terra, sob um nome
suposto; foi ele quem me desposou; e dele tive o príncipe Aldéia-Amazan,
o mais belo, o mais forte, o mais corajoso, o mais virtuoso dos mortais, e
hoje o mais louco. Foi às festas de Babilônia levado por vossa
reputação de beleza: desde esse tempo ele vos idolatra, e eu
talvez nunca mais torne a ver o meu querido filho.

Fez então mostrar à princesa todos os títulos da casa
dos Aldéias; Formosante mal se dignou olhá-los.

— Ah! senhora! – exclamou. – Acaso a gente examina o que
deseja? Meu coração o crê de sobra. Mas onde está
Aldéia-Amazan? Onde está o meu parente, o meu amado, o meu rei?
Onde está a minha vida? Que caminho tomou? Iria procurá-lo em
todos os globos que o Eterno formou e de que ele é o mais belo ornamento.
Iria à estréia Canope, a Sheat, a Aldebarã; iria convencê-lo
do meu amor e da minha inocência.

A fênix absolveu a princesa do crime que lhe imputara o melro, de
haver dado um beijo de amor ao rei do Egito; mas era preciso desenganar Amazan
e trazê-lo de volta. Envia pássaros a todas as estradas, põe
em campo os unicórnios: vem dizer-lhe afinal que Amazan tomara o caminho
da China.

— Pois bem, vamos à China! – exclamou a princesa. –
A viagem não é longa; espero trazer vosso filho de volta, dentro
em quinze dias, o mais tardar.

A estas palavras, quantas lágrimas de ternura não lançaram
a mãe gangárida e a princesa de Babilônia! Quantos abraços!
Quantas efusões!
A fênix encomendou imediatamente uma carruagem de cem unicórnios.
A mãe forneceu duzentos cavalheiros e deu de presente à princesa,
sua sobrinha, alguns milhares dos mais belos diamantes do país. A fênix,
aflita com o mal que havia causado a indiscrição do melro, ordenou
a expulsão de todos os melros. É desde essa época que
não mais se encontram melros à margem do Ganges.

CAPÍTULO V

Em menos de oito dias, os unicórnios conduziram Formosante, Irla
e a fênix a Cambalu, capital da China. Era uma cidade maior que Babilônia,
e de uma espécie de magnificência completamente diversa. Aqueles
novos objetos, aqueles costumes novos, teriam distraído Formosante,
se ela se pudesse ocupar de outra coisa que não fosse Amazan.

Logo que o imperador da China soube que a princesa da Babilônia se
achava numa das portas da cidade, enviou a seu encontro quatro mil mandarins
em trajes de cerimônia; todos se prosternaram diante dela e cada um
lhe apresentou uma saudação escrita em caracteres de ouro sobre
seda purpúrea. Formosante lhes disse que, se tivesse quatro mil línguas,
não deixaria de responder imediatamente a cada um deles; mas, não
possuindo mais que uma, pedia-lhes para servir-se da mesma a fim de fazer
um agradecimento geral. Os mandarins conduziram-na respeitosamente à
presença do Imperador.

Era este o mais justo, mais polido e mais sábio monarca do mundo.
Foi ele quem, em primeiro lugar, lavrou um pequeno campo com as suas mãos
imperiais, para tornar a agricultura respeitável, ao povo. Foi quem
primeiro instituiu prêmios para a virtude. As leis, por toda parte aliás,
se restringiam vergonhosamente a punir os crimes. Esse imperador acabava de
expulsar de seus Estados um bando de bonzos estrangeiros que tinham vindo
dos confins do Ocidente, na insana esperança de forçar toda
a China a pensar como eles, e que, sob o pretexto de anunciar verdades, já
tinham adquirido riquezas e honrarias. Dissera-lhes, ao expulsá-los,
estas palavras textuais, registradas nos anais do império:
Poderíeis fazer aqui tanto mal quanto fizestes alhures: viestes pregar
dogmas de intolerância na nação mais tolerante da terra.
Mando-vos de volta para nunca me ver forçado a punir-vos. Sereis honrosamente
reconduzidos até as minhas fronteiras; ser-vos-á fornecido o
necessário para voltardes aos limites do hemisfério de onde
partistes. Ide em paz, se puderdes ir em paz, e nunca mais volteis.

Foi com alegria que a princesa de Babilônia soube desse julgamento
e dessas palavras; tanto mais certeza tinha de ser recebida na Corte, pois
estava muito longe de professar dogmas intolerantes. O imperador da China,
jantando a sós com ela, teve a gentileza de banir o embaraço
de qualquer etiqueta constrangedora. Ela apresentou-lhe a fênix, que
foi muito acariciada pelo imperador e se empoleirou na sua cadeira. Formosante,
no fim da refeição, confiou-lhe ingenuamente o motivo de sua
viagem, e pediu-lhe que mandasse procurar em Cambalu o belo Amazan, cuja aventura
lhe contou, sem nada lhe ocultar da fatal paixão de que se inflamara
por aquele jovem herói.

— A quem vindes falar! – exclamou o imperador da China. –
Ele deu-me o prazer de vir à Corte. Encantou-me, esse amável
Amazan; é verdade que está profundamente aflito; mas isso torna
as suas graças ainda mais tocantes. Nenhum de meus favoritos tem mais
espírito do que ele; nenhum mandarim togado tem mais vastos conhecimentos;
nenhum mandarim de espada tem o ar mais heróico e marcial; a sua extrema
juventude dá novo preço a todos os seus talentos: se eu fosse
tão desgraçado, tão desamparado do Tien e do Changti
para abalançar-me a fazer conquistas, pediria a Amazan que se pusesse
à frente de meus exércitos, e estaria certo de triunfar do universo
inteiro. É pena que o seu pesar às vezes lhe perturbe o espírito.

— Ah! Senhor – disse-lhe Formosante com ar arrebatado e um tom
de dor, de abalo e de censura, – por que não me fizestes cear
com ele? Vós me matais; mandai-o convidar agora mesmo.

— Ele partiu esta manhã, senhora, e não disse para que
região se dirigiam seus passos.

Formosante voltou-se para a fênix:
— Já. viste, minha fênix – disse ela, – uma
moça mais desgraçada do que eu? Mas, Senhor – continuou
ela, – como, e por que pôde ele deixar tão repentinamente
uma Corte assim refinada como a vossa e na qual me parece que se desejaria
passar a vida?
— Eis, Senhora, o que aconteceu. Uma princesa de sangue real, das mais
amáveis, apaixonou-se por ele, e marcou-lhe um encontro ao meio-dia;
ele partiu ao amanhecer, deixando este bilhete, que muitas lágrimas
custou à minha parente:
Bela princesa do sangue da China, mereceu um coração que nunca
tenha sido senão vosso; jurei aos deuses imortais só amar a
Formosante, princesa de Babilônia, e ensinar-lhe como podemos dominar
os desejos, em viagem; teve ela a desgraça de sucumbir com um indigno
rei do Egito: sou o mais infeliz dos homens; perdi meu pai e a fênix,
e a esperança de ser amado por Formosante; deixei minha mãe
aflita e minha pátria, sem poder mais viver um só momento no
lugar onde soube que Formosante amava a outro que não eu; jurei percorrer
o mundo e ser fiel. Vós me desprezaríeis, e os deuses me puniriam,
se eu violasse meu juramento; tomai um noivo, Senhora, e que possais ter uma
fidelidade igual à minha.

— Ah! deixai comigo essa admirável carta – disse a bela
Formosante, – ela será o meu consolo; sinto-me feliz no meu infortúnio.
Amazan me ama; Amazan renuncia, por mim, à posse das princesas da China;
só ele, no mundo, é capaz de tal vitória; dá-me
um grande exemplo; mas bem sabe a fênix que eu não precisava
disso; é muito cruel ver-se a gente privada de quem ama só por
causa do mais inocente dos beijos dado por pura fidelidade. Mas afinal, aonde
foi ele? Que caminho tomou? Dignai-vos dizer-me, e eu parto.

O Imperador da China respondeu que, pelos relatos que lhe haviam trazido,
seguira Amazan uma estrada que levava para a Cítia. Em seguida foram
atrelados os unicórnios, e a princesa, depois dos mais amáveis
cumprimentos, despediu-se do imperador, com a fênix, a camareira Irla,
e toda a comitiva.

Logo ao chegar à Cítia, viu, mais do que nunca, como os homens
e os governos diferem, e diferirão sempre, até que um dia um
povo mais esclarecido que os outros comunique a luz, de vizinho para vizinho,
após mil séculos de trevas, e quando se encontrem, em climas
bárbaros, almas heróicas que tenham a força e perseverança
de transformar os brutos em homens.

Nenhuma cidade havia na Cítia e, por conseguinte, nada de artes agradáveis.
Não se viam senão vastas planícies, e povos inteiros
debaixo de tendas ou em cima de carros. Tal aspecto causava terror. Formosante
Indagou em que tenda ou em que carreta se alojava o rei. Disseram-lhe que,
oito dias antes, se pusera em marcha à frente de trezentos mil cavaleiros,
para ir ao encontro do rei de Babilônia, a quem havia raptado a sobrinha,
a bela princesa Aldéia.

— Raptou minha prima?! – exclamou Formosante. – Por essa
nova aventura eu não esperava. Como! A minha prima, que se dava por
muito feliz em me fazer a corte, se tornou rainha, e eu ainda não me
casei!
Fez-se conduzir imediatamente às tendas da rainha.

Seu inesperado encontro naqueles remotos climas, as coisas singulares que
tinham mutuamente a contar-se, deram à sua entrevista um encanto que
as fez esquecer que jamais se haviam estimado; reviram-se com transporte;
uma suave ilusão tomou o lugar da verdadeira ternura; beijaram-se chorando;
e até cordialidade e franqueza houve entre ambas, uma vez que a entrevista
não se realizava num palácio.

Aldéia reconheceu a fênix e a confidente Irla; presenteou peles
de zibelina à prima, que, por sua vez, a presenteou com diamantes.
Falaram da guerra que os dois reis empreendiam; deploraram a condição
dos homens, que os monarcas, por fantasia, mandam entredegolar-se, devido
a diferenças que dois homens sensatos poderiam solucionar numa hora;
mas falaram principalmente do belo estrangeiro vencedor dos leões,
doador dos maiores diamantes do universo, autor dos madrigais, possuidor da
fênix, e tornado, por causa de um melro, o mais infeliz dos homens.

— É o meu querido irmão – dizia Aldéia.

— É o meu amado! – exclamava Formosante. Sem dúvida
o viste, talvez ainda esteja aqui, pois sabe que é teu irmão
e não haveria de deixar-te bruscamente, como deixou ao rei da China.

— Se eu o vi, meu Deus! – tornou Aldéia. – Passou
quatro dias inteiros comigo. Ah! minha prima, como o meu irmão é
digno de lástima! Uma falsa história o tornou inteiramente louco;
corre o mundo sem saber aonde vai. Imagina tu que levou a loucura a ponto
de recusar os favores da mais bela cita de toda a Cítia! Partiu ontem,
depois de lhe haver escrito uma carta que a deixou desesperada. Ele foi à
terra dos cimérios.

— Louvado seja Deus! – exclamou Formosante. – Mais outra
recusa em meu favor! Minha felicidade ultrapassou minha esperança,
como minha desgraça ultrapassou a todos os meus temores. Manda-me entregar
essa encantadora carta. Que eu parta, e o siga, com as mãos cheias
de seus sacrifícios. Adeus, minha prima: Amazan está entre os
cimérios, vou voando para lá.

Aldéia achou que a princesa sua prima estava ainda mais louca que
o seu irmão Amazan. Mas como já conhecia por experiência
própria os ataques dessa epidemia, como deixara as delicias e magnificências
de Babilônia pelo rei dos citas, como as mulheres sempre se interessam
pelas loucuras de que o amor é causa, enterneceu-se verdadeiramente
com o caso de Formosante, desejou-lhe feliz viagem, e prometeu servir a sua
paixão, se ela tivesse a felicidade de tornar a ver Amazan.

CAPÍTULO VI

Em breve a princesa de Babilônia e a fênix chegaram ao império
dos cimérios, na verdade muito menos povoado que a China, mas duas
vezes mais extenso, outrora semelhante à Cítia e agora, desde
alguns tempos, tão florescente como os reinos que. se vangloriavam
de instruir os outros Estados.

Após alguns dias de marcha, entraram numa grande cidade que a imperatriz
reinante mandava embelezar. Mas esta ali não se achava; viajava então,
das fronteiras da Europa às da Ásia, para. conhecer seus Estados
pelos seus próprios olhos, para julgar dos males e lhes aplicar os
remédios, para aumentar as vantagens já conseguidas, para semear
a instrução.

Um dos primeiros oficiais dessa antiga capital, informado da chegada, da
babilônia e da fênix, apressou-se em ir apresentar suas homenagens
à princesa e fazer-lhe as honras do país, certo de que a sua
soberana, que era a mais polida e magnifica das rainhas, lhe ficaria grata
por haver recebido tão alta dama com as mesmas atenções
que ela própria lhe prodigalizaria.

Alojaram Formosante no palácio, de que afastaram uma importuna multidão;
ofereceram-lhe festas engenhosas. O senhor cimério, que era um grande
naturalista, conversou muito com o pássaro enquanto a princesa se achava
retirada a seus aposentos. A fênix confessou-lhe que outrora viajara
muito entre os cimérios, mas que hoje não mais conhecia o país.

— Como é que tão prodigiosas mudanças –
dizia – puderam operar-se em tão curto prazo? Não faz
trezentos anos que vi aqui a natureza selvagem em todo o seu horror; e hoje
encontro aqui as artes, o esplendor, a glória e a polidez.

— Um único homem começou essa grande obra – respondeu
o cimério, – uma mulher a aperfeiçoou; uma mulher foi
melhor legisladora que a Isis dos egípcios e a Ceres dos gregos. A
maioria dos legisladores tiveram um gênio estreito e despótico,
que confinou sua visão aos países que governaram; cada qual
considerou seu povo como o único sobre a face da terra, ou como destinado
a ser inimigo do resto da terra. Formaram instituições para
esse único povo, introduziram usos para ele só, estabeleceram
uma religião só para ele. É assim que os egípcios,
tão famosos por montões de pedras, se embruteceram e desonraram
com as suas superstições bárbaras. Julgam profanas as
outras nações, não se comunicam com elas, e, com exceção
da Corte, que às vezes se eleva acima dos preconceitos vulgares, não
há um egípcio que queira comer num prato de que já se
haja servido um estrangeiro. Seus sacerdotes são cruéis e absurdos.
Melhor seria não ter leis e só escutar a natureza, que gravou
nos nossos corações os caracteres do justo e do injusto, do
que submeter a sociedade a leis tão insociáveis.

A nossa imperatriz alimenta projetos inteiramente opostos; considera o seu
vasto Estado, sobre o qual todos os meridianos vêm juntar-se, como correspondente
a todos os povos que habitam sob esses diversos meridianos. A primeira de
suas leis foi a tolerância de todas as religiões e a compaixão
por todos os erros. Seu poderoso gênio reconheceu que, se os ,cultos
são diferentes, a moral é por toda parte a mesma; por esse princípio,
ligou sua nação a todas as nações do mundo, e
os cimérios olham o escandinavo e o chinês como seus irmãos.
Fez mais: quis que essa preciosa tolerância, o primeiro elo dos homens,
se estabelecesse entre os Estados vizinhos; assim mereceu o título
de mãe da pátria, e terá o de benfeitora do gênero
humano, se perseverar.

Antes dela, homens infelizmente poderosos mandavam tropas de assassinos
devastarem populações desconhecidas, que assim regavam com o
seu próprio sangue a herança que haviam recebido dos pais; chamavam
a esses bandidos de heróis; a sua atrocidade chamava-se glória.
Outra glória tem a nossa soberana: fez marchar exércitos para
disseminar a paz, para impedir que os homens se prejudicassem, para os forçar
a suportarem-se uns aos outros; e seus estandartes foram os da concórdia
pública.

A fênix, encantada do que ouvia, disse ao seu interlocutor:
— Senhor, faz vinte e sete mil novecentos anos e sete meses que estou
neste mundo; e ainda nada vi que se compare ao que acaba de dizer-me.

Pediu-lhe novas de seu amigo Amazan; o cimério contou-lhe as coisas
que haviam dito à princesa entre os chineses e os citas. Amazan fugia
de todas as Cortes que visitava logo que alguma dama lhe marcava um encontro
a que temia sucumbir. A fênix logo informou a princesa dessa nova prova
de fidelidade que lhe dava Amazan, fidelidade tanto mais espantosa quanto
não podia ele suspeitar que a princesa viesse um dia a sabê-lo.

Partira para a Escandinávia. Foi nesses climas que novos espetáculos
o impressionaram. Aqui a realeza e a liberdade subsistiam juntas, por um acordo
que pareceria impossível em outros Estados: os agricultores tinham
parte na legislação, bem como os grandes do reino; e um jovem
príncipe dava as maiores esperanças de ser digno de governar
uma nação livre. E nisso havia algo de mais estranho: o único
rei que tinha direito despótico sobre a sua terra, por um contrato
formal com o seu povo era ao mesmo tempo o mais jovem e o mais justo dos reis.

Entre os sámatras, Amazan viu um filósofo no trono; podia
ser chamado o rei da anarquia, pois era chefe de cem. mil pequenos reis, um
só dos quais podia, com uma palavra, anular as resoluções
de todos os outros. Éolo não tinha mais dificuldade em contar
todos os ventos que se combatem incessantemente do que aquele monarca em conciliar
os espíritos; era um piloto cercado de eterna tempestade, e no entanto
o barco não se quebrava: pois o príncipe era um excelente piloto.

Percorrendo todos esses países tão diferentes da sua pátria,
Amazan evitava constantemente todas as aventuras galantes que se lhe apresentavam,
sempre desesperado com o beijo de Formosante ao rei do Egito, sempre firme
na sua inconcebível resolução de dar a Formosante o exemplo
de uma fidelidade única e inabalável.

A princesa de Babilônia, com a sua fênix, sempre lhe seguia
o rastro, nunca desencontrando-se de Amazan, a não ser por um dia ou
dois, sem que este jamais se cansasse de correr, nem ela de o seguir.

Atravessaram assim toda a Germânia; admiraram os progressos que faziam
no Norte a razão e a filosofia; todos os príncipes eram ali
instruídos, todos autorizavam a liberdade de pensamento sua educação
não fora confiada a homens que tivessem interesse em enganá-los
ou que estivessem eles próprios enganados; tinham-nos educado no conhecimento
da moral universal e no desprezo das superstições; haviam banido
de todos aqueles Estados um insensato costume que enervava e despovoava diversos
países meridionais: o de enterrar vivos, em vastos calabouços,
um número infinito de pessoas dos dois sexos, eternamente separados
um dos outros, e de os fazer jurar que nunca teriam relações.
Esse cúmulo da demência, respeitado durante tantos séculos,
tinha devastado o mundo da mesma forma que as guerras mais cruéis.

Os príncipes do Norte haviam compreendido que, para ter haras, não
se deviam separar das éguas os mais fortes cavalos. Tinham também
destruído erros não menos bizarros nem menos perniciosos. Afinal
os homens se atreviam a ser razoáveis naquelas vastas regiões,
enquanto que alhures ainda se acreditava que só podem ser governados
na medida da sua imbecilidade.

CAPÍTULO VII

Amazan chegou à terra dos batavos; em meio do seu pesar, suave alegria
lhe penetrou o coração ao encontrar ali como que uma pálida
imagem do país gangárida: a liberdade, a igualdade, a limpeza,
a abundância, a tolerância; mas as damas do país eram tão
frias que nenhuma lhe fez propostas, como acontecera em toda parte; ele não
teve o trabalho de resistir. Se quisesse atacar àquelas damas, tê-las-ia
subjugado uma após outra, sem ser amado por nenhuma; mas longe estava
de pensar em conquistas.

Formosante esteve a ponto de o alcançar nessa nação
insípida: foi questão de momentos. Ouvira Amazan tantos elogios,
entre os batavos, a certa ilha chamada Albion que resolveu tomar um navio
com os seus unicórnios, o qual, pegando vento favorável, o levou
em quatro horas às costas daquela terra mais formosa que Tiro e a ilha
Atlântida.

A bela Formosante, que o seguira até o Duína, o Vístula,
o Elba e o Véser, chega enfim às bocas do Reno, que despejava
suas águas rápidas no Mar Germânico.

E informada de que seu amado vogara para as costas de Albion; julga avistar
o seu navio; lança gritos de alegria, de que muito se surpreendem as
damas batavas, pois não imaginam possa um jovem causar tamanha alegria;
e, quanto à fênix, não lhe deram maior importância,
pois acharam que as suas penas não podiam provavelmente ser tão
bem vendidas como as dos patos e marrecos de seus banhados. A princesa de
Babilônia fretou dois navios para a transportarem, com toda a sua gente,
àquela ilha feliz que ia possuir o único objeto de todos os
seus desejos, a alma de sua vida, o deus de seu coração.

Um funesto vento do oeste ergueu-se de súbito no preciso instante
em que o fiel e infeliz Amazan desembarcava em Albion: os navios da princesa
de Babilônia não puderam partir. Um aperto de coração,
uma dor amarga, uma profunda melancolia apoderaram-se de Formosante; no seu
sofrimento, meteu-se no leito, à espera que o vento mudasse; mas este
soprou oito dias inteiros com uma violência desesperadora. A princesa,
durante aquele século de oito dias, fazia a camareira ler-lhe romances:
não que os batavos os soubessem fazer, mas, como eram os empreiteiros
do universo, vendiam o espírito das outras nações, assim
como os seus gêneros. A princesa mandou comprar no estabelecimento de
Marc-Michel Rey todas as histórias que haviam escrito entre os ausonianos
e velches, e cuja venda era sabiamente proibida nessas nações,
para enriquecer os batavos; esperava encontrar naquelas histórias alguma
aventura que se assemelhasse à sua e que: embalasse o seu pesar. Irla
lia, a fênix dava a sua opinião, e a princesa nada encontrava
na Camponesa Enriquecida, nem no Sofá, nem nos Quatro Facardenses,
que tivesse a mínima relação com as suas aventuras; a
todo instante interrompia e leitura para indagar de que lado soprava o vento.

CAPÍTULO VIII

Entrementes, já ia Amazan, a caminho da capital de Albion, na sua
carruagem de seis unicórnios, e pensava na sua princesa. Avistou uma
equipagem derribada num fosso; os criados se haviam afastado em busca de socorro;
o patrão permanecia tranqüilamente em seu carro, sem demonstrar
a mínima impaciência, e divertindo-se em fumar: pois então
se fumava; chamava-se milorde What-then, o que significa mais ou menos milorde
Que Importa, na língua para a qual traduzo estas memórias.

Amazan precipitou-se para auxiliá-lo; ergueu sozinho o carro, tão
superior era sua força à do comum dos homens. Milorde Que Importa
contentou-se em dizer: “Isso é que é força”.
Havendo acorrido alguns rústicos da vizinhança, zangaram-se
por haver sido chamados inutilmente, descarregando a cólera no estrangeiro;
ameaçaram-no, chamando-o de cão estrangeiro, e quiseram bater-lhe.

Amazan segurou dois deles em cada mão e arremessou-os a vinte passos
de distância; os outros criaram-lhe respeito, cumprimentaram-no e pediram-lhe
algum troco para beber:
Amazan lhes deu mais dinheiro do que eles jamais viram em toda a vida. Milorde
Que Importa disse-lhe:
— Estimo-o; venha jantar comigo na minha casa de campo, que só
fica a três milhas daqui. Subiu na carruagem de Amazan, porque a sua
ficara desarranjada com o choque.

Após um quarto de hora de silêncio, fitou um momento Amazan
e disse-lhe: How d’ye do?, literalmente: Como vos fazeis fazer?, e na
língua do tradutor: Como passa o senhor? Depois acrescentou: “O
senhor tem ai seis bonitos unicórnios” e recomeçou a fumar.

O viajante disse que os seis unicórnios estavam à sua disposição;
que vinha com ele do país dos gangáridas; e aproveitou a ocasião
para falar da princesa de Babilônia e daquele beijo fatal que ela dera
no rei do Egito: ao que o outro não replicou absolutamente nada, pouco
se lhe dando que houvesse no mundo um rei do Egito e uma princesa de Babilônia.
Esteve ainda um quarto de hora sem dizer coisa alguma; depois tornou a perguntar
ao companheiro como ele se fazia e se comiam bom roast-beef. O viajante respondeu-lhe
com a habitual polidez que nas margens do Ganges ninguém comia seus
irmãos. Explicou-lhe o sistema que foi, depois de tantos séculos,
o de Pitágoras, de Pórfiro, de Jâmblico, com o que o milorde
adormeceu e não fez mais que um sono até chegarem à sua
casa.

Tinha ele uma mulher jovem e encantadora, a quem a natureza dera uma alma
tão viva e sensível quanto a do marido era indiferente. Vários
senhores albionenses tinham ido jantar com ela naquele dia. Havia caracteres
de toda espécie; pois como o pais quase nunca fora governado a não
ser por estrangeiros, as famílias vindas com esses príncipes
tinham quase todas trazido costumes diferentes. Havia na companhia pessoas
muito amáveis, outras de espírito superior, outras de profundo
saber.

A dona da casa nada tinha desse ar postiço e esquerdo, dessa rigidez,
desse falso pudor que censuravam então nas jovens de Albion; não
ocultava, numa atitude desdenhosa e num silêncio afetado, a esterilidade
de suas idéias e o humilhante embaraço de não ter nada
que dizer: não havia mulher mais insinuante. Recebeu Amazan com a polidez
e graça que lhe eram naturais. A extrema beleza daquele estrangeiro,
e a súbita comparação que fez entre ele e seu marido,
logo a abalaram sensivelmente.

Foram para a mesa. Fez Amazan sentar-se a seu lado e serviu-lhe pudins de
toda espécie, pois soubera dele que os gangáridas não
se alimentavam de nada que houvesse recebido dos deuses o dom celestial da
vida. Sua beleza, sua força, os costumes dos gangáridas, o progresso
das artes, a religião e o governo, foram assunto de uma conversação
tão agradável quão instrutiva durante a refeição,
que durou até. a noite, e durante a qual milorde Que Importa bebeu
muito e não disse palavra.

Após o jantar, enquanto milady servia o chá e devorava o jovem
com os olhos, conversava este com um membro do parlamento, pois é sabido
que já então havia um parlamento e que se chamava Wittenagemot,
o que significa assembléia dos pessoas de espírito. Amazan informava-se
da constituição, dos usos e costumes, das leis, das forças,
das artes, que tão recomendável tornavam aquele país;
e o referido senhor falava-lhe nos seguintes termos:
— Por muito tempo andamos inteiramente nus, embora o clima não
seja quente. Durante muito tempo fomos tratados como escravos por gente vinda
da antiga terra de Saturno, regada pelas águas do Tibre. Mas a nós
mesmos temos causado maiores males do que os sofremos da parte de nossos primeiros
vencedores. Um de nossos reis levou a baixeza a ponto de se declarar súdito
de um sacerdote que também morava à margem do Tibre, e a quem
chamavam o Velho das Sete Colinas; de tal modo foi destino dessas sete montanhas
dominarem por muito tempo uma grande parte da Europa, habitada então
por brutos.

Após. esses tempos de aviltamento, vieram séculos de ferocidade
e anarquia. A nossa terra, mais tempestuosa que os mares que a cercam, foi
sacudida e ensangüentada por nossas discórdias. Vários
testas-coroadas pereceram no último suplício. Mais de cem príncipes
do sangue dos reis acabaram seus dias no cadafalso. Arrancaram o coração
a todos os seus adeptos e bateram-lhes com ele nas faces. Ao carrasco é
que competia escrever a história da nossa ilha, pois fora ele quem
terminara todas as grandes questões.

Não faz muito que, para cúmulo do horror, algumas pessoas
de manto negro e outros que usavam uma camisa branca por cima da jaqueta foram
mordidas por cães raivosos e acabaram comunicando a raiva à
nação inteira. Todos os cidadãos foram ou assassinos
ou vitimas, ou carrascos ou supliciados, ou depredadores ou escravos, em nome
do céu e em busca do Senhor. Quem diria que desse abismo temeroso,
desse caos de dissenções, de atrocidades, de, ignorância
e de fanatismo tenha resultado talvez o mais perfeito governo que hoje existe
no mundo? Um rei venerado e rico, todo poderoso para fazer o bem, impotente
para fazer o mal, está à frente de uma nação livre,
guerreira, comerciante e esclarecida. Os grandes de um lado, e os representantes
das cidades de outro, compartilham da legislação com o monarca.

Vira-se, por singular fatalidade, a desordem, as guerras civis, a anarquia
e a pobreza assolarem o país quando os reis exerciam o poder arbitrário.
A tranqüilidade, a riqueza, a felicidade pública, só reinaram
entre nós quando os reis reconheceram que não eram absolutos.
Tudo estava subvertido quando disputavam sobre coisas ininteligíveis;
tudo entrou em ordem depois que as desprezaram. Nossas frotas vitoriosas levam
a nossa glória a todos os mares, e as leis põem em segurança
as nossas fortunas; jamais um juiz as pode interpretar arbitrariamente; jamais
se dá uma sentença que não seja motivada. Puniríamos
como assassinos os juizes que ousassem condenar um cidadão à
morte sem invocar os testemunhos que o acusam e a lei que o condena.

E verdade que há sempre, entre nós, dois partidos que se combatem
com a pena e com intrigas; mas também se reúnem sempre que se
trata de pegar em armas para defender a pátria e a liberdade. Esses
dois partidos vigiam um ao outro; impedem-se mutuamente de violar o sagrado
depósito das leis; odeiam-se, mas amam o Estado: são amantes
ciumentos que servem à porfia a mesma amante.

Com o mesmo espírito que nos fez conhecer e sustentar os direitos
da natureza humana, elevamos as ciências ao mais alto ponto a que possam
chegar entre os homens. Os vossos egípcios, que passam por tão
grandes mecânicos; os vossos hindus, a quem julgam tão grandes
filósofos; os vossos babilônios, que se vangloriam de haver observado
os astros durante quatrocentos e trinta mil anos; os gregos, que escreveram
tantas frases e tão poucas coisas, não sabem precisamente nada
em comparação com os nossos menores colegiais, que estudaram
as descobertas de nossos grandes mestres. Arrancamos mais segredos à
natureza no espaço de cem anos do que os descobriu o gênero humano
na multidão dos séculos.

Eis na verdade o estado em que nos achamos. Não lhe ocultei nem o
bem, nem o mal, nem os nossos opróbrios, nem a nossa glória;
e nada exagerei.

Amazan, a tais palavras, sentiu-se penetrado do desejo de se instruir naquelas
sublimes ciências de que lhe falavam; e se a sua paixão pela
princesa de Babilônia, o seu filial respeito à mãe, a
quem deixara, e o amor à pátria, não lhe houvessem falado
fortemente ao coraçãatilde;o despedaçado, desejaria passar a
vida na ilha de Albion. Mas aquele desgraçado beijo da sua princesa
para o rei do Egito não lhe deixava suficiente liberdade de espírito
para estudar as altas ciências.

— Confesso – disse ele – que, tendo-me imposto a lei de
correr mundo e evitar-me a mim mesmo, teria curiosidade de ver essa antiga
terra de Saturno, esse povo do Tibre e das sete montanhas, a quem outrora
obedecestes; deve ser, sem dúvida, o primeiro povo da terra.

— Aconselho-o a fazer essa viagem – disse o albionense –
se aprecia a música e a pintura. Nós próprios vamos seguidamente
levar o nosso tédio às sete montanhas. Mas o amigo há
de ficar muito espantado quando vir os descendentes de nossos vencedores.

A conversação foi longa. O belo Amazan, embora tivesse o cérebro
um tanto perturbado, falava com tal graça, tão tocante era a
sua voz, tão nobre e amável a sua atitude, que a dona da casa
não pôde deixar, por sua vez, de conversar a sós com ele.
Enquanto lhe falava, apertava-lhe ternamente a mão, e fitava-o com
olhos úmidos e brilhantes que acordavam os desejos em todas as molas
vitais. Reteve-o para a ceia e a pousada. Cada instante, cada palavra, cada
olhar mais inflamavam a paixão da dama. Logo que todos se recolheram,
escreveu-lhe um bilhetinho, esperando que ele fosse fazer-lhe a corte no leito,
enquanto milorde Que Importa dormia no seu. Amazan teve ainda coragem de resistir,
tal o maravilhoso efeito que produz um grão de loucura numa alma forte
e profundamente atingida.

Amazan, segundo o seu costume, escreveu à dama uma resposta respeitosa,
em que alegava a santidade do seu juramento e a estrita obrigação
em que se achava de ensinar a princesa de Babilônia a dominar as suas
paixões. Depois mandou atrelar os unicórnios e regressou à
Batávia, deixando todos encantados com ele e a dona da casa desesperada.
No seu desespero, esqueceu-se ela de guardar a carta de Amazan; milorde Que
Importa leu-a na manhã seguinte. “Quanta baboseira!” –
disse ele, dando de ombros, e foi à caça da raposa com alguns
bêbedos da vizinhança.

Amazan já navegava em alto mar, munido de uma carta geográfica
que lhe presenteara o sábio albionense com quem conversara em casa
de milorde Que Importa. Via com surpresa uma grande parte da terra sobre uma
folha de papel. Seus olhos e sua imaginação perdiam-se naquele
pequeno espaço; olhava o. Reno, o Danúbio, os Alpes do Tirol,
designados então por outros nomes, e todos os países por onde
devia passar antes de chegar à cidade das sete montanhas; mas principalmente
olhava para a região dos gangáridas, para Babilônia, onde
vira a sua querida princesa, e para a fatal Baçorá, onde ela
beijara o rei do Egito. Suspirava, vertia lágrimas; mas reconhecia
que o albionense que lhe fizera presente do universo em miniatura não
deixava de ter razão quando afirmava que havia mil vezes mais instrução
às margens do Tâmisa do que às margens do Nilo, do Eufrates
e do Ganges.

Enquanto voltava ele para Batávia, corria Formosante para Albion
com os seus dois navios, que velejavam a todo o pano. O de Amazan e o da princesa
cruzaram-se, quase que se tocaram: os dois enamorados estavam perto um do
outro e não podiam suspeitá-lo. Ah, se o soubessem! Mas não
o permitiu o imperioso destino.

CAPÍTULO IX

Logo que desembarcou no solo raso e lamacento da Batávia, Amazan
partiu como um raio para a cidade das sete montanhas. Teve de atravessar a
parte meridional da Germânia. De quatro em quatro milhas, topava com
um príncipe e uma princesa, aias e mendigos. Espantava-se das galanterias
que aquelas damas e aias lhe faziam por toda parte, com a boa fé germânica;
e só lhes respondia com modestas recusas. Depois de franquear os Alpes,
atravessou o mar de Dalmácia, e desembarcou numa cidade que em nada
se parecia com o que vira até então. O mar formava as ruas,
as casas eram construídas n’água. As poucas praças
públicas que ornavam aquela cidade estavam cheias de homens e mulheres
que tinham um duplo rosto, o que a natureza lhes dera, e um rosto de cartão
mal pintado que aplicavam por cima; de maneira que a nação parecia
composta de espectros. Os recém-chegados começavam por comprar
um rosto, como em outros lugares se adquire um barrete ou um par de sapatos.
Amazan desprezou essa moda contra a natureza; apresentou-se tal como era.
Havia na cidade doze mil raparigas registradas na escrita da república:
raparigas úteis ao Estado, encarregadas do mais vantajoso e agradável
comércio que já enriqueceu uma nação. Os negociantes
comuns, com grandes gastos e riscos, enviavam estofos para o Oriente; aquelas
belas negociantes faziam, sem o mínimo risco, um sempre renovado tráfico
de seus encantos. Vieram todas apresentar-se ao belo Amazan e oferecer-lhe
a escolha. Ele escapou-se o mais depressa possível, pronunciando o
nome da incomparável princesa de Babilônia e jurando pelos deuses
imortais que ela era mais linda que todas as doze mil raparigas venezianas.
“Sublime traidora – exclamava ele nos seus transportes, –
eu te ensinarei a seres fiel!”
Afinal, as ondas amarelas do Tibre, pântanos empestados, habitantes
macilentos, descarnados e raros, cobertos de velhos mantos esburacados que
entremostravam a pele seca e curtida, se lhe apresentaram aos olhos, anunciando-lhe
que se achava às portas da cidade das sete montanhas, aquela cidade
de heróis e legisladores que haviam conquistado e civilizado grande
parte do mundo.

Tinha imaginado que veria à porta triunfal quinhentos batalhões
comandados por heróis e, no Senado, uma assembléia de semideuses
ditando leis à terra; como único e todo exército, achou
umas três dúzias de marotos montando guarda com um parassol,
com certeza por modo de se queimarem. Penetrando num templo que lhe pareceu
muito belo, mas menos que o de Babilônia, ficou muito surpreendido ao
ouvir uma música executada por homens que tinham voz de mulher.

— Que esquisito país esta antiga terra de Saturno! –
disse ele. – Vi uma cidade onde ninguém tinha o próprio
rosto, e agora vejo outra onde os homens não têm nem a respectiva
voz nem as respectivas barbas.

Disseram-lhe que aqueles cantores não eram mais homens, que os haviam
despojado de sua virilidade a fim de que mais agradavelmente entoassem loas
a uma prodigiosa quantidade de pessoas meritórias. Amazan nada compreendeu.
Os referidos senhores pediram-lhe que cantasse; ele cantou uma canção
gangárida com a sua graça ordinária. Tinha uma bela voz
de barítono.

— Ah! Monsignor – disseram eles, – que delicioso soprano
não daria! Ah! se…

— Se o quê? Que querem dizer?
— Ah, Monsignor!
— E daí?
— Se Monsignor não tivesse barba!
Explicaram-lhe então muito divertidamente e com gestos muito cômicos,
segundo o seu costume, de que coisa se tratava. Amazan ficou perplexo: “Tenho
viajado – disse ele, – mas nunca ouvira falar de tal fantasia”.

Depois de cantarem bastante, o Velho das Sete Colinas chegou, em pomposo
cortejo, à porta do templo; cortou o ar em quatro com o polegar erguido,
dois dedos estendidos e os dois outros dobrados, dizendo estas palavras em
uma língua que ninguém mais falava. À cidade e ao universo
(2). O gangárida não conseguia compreender que dois dedos pudessem
alcançar tão longe.

Viu logo desfilar toda a corte do senhor do mundo: compunha-se de graves
personagens, uns de vermelho, outros de violeta; quase todos fitavam o belo
Amazan com olhos dengosos; faziam-lhe reverências e diziam entre si:
San Martino, che bel ragazzo! San Pancratio, che bel fanciullo!
Os ardentes cujo ofício consistia em mostrar aos estrangeiros as curiosidades
da cidade, empenharam-se em fazê-lo ver construções onde
um arrieiro não desejaria passar a noite, mas que tinham sido outrora
dignos monumentos da grandeza de um povo-rei. Viu ainda quadros de duzentos
anos e estátuas de mais de vinte séculos, que lhe pareceram
obras-primas.

— Ainda fazem obras assim?
— Não, Excelência – respondeu-lhe um dos guias, –
mas desprezamos o resto do mundo porque conservamos essas raridades. Somos
uma espécie de adelos que nos orgulhamos das velhas roupas que ficaram
em nosso estabelecimento. Amazan mostrou desejo de ver o palácio do
príncipe; levaram-no até lá. Viu homens de violeta que
contavam o dinheiro das rendas do Estado: tanto de uma terra situada à
margem do Danúbio, tanto de outra à margem do Loire, ou do Guadalquivir,
ou do Vístula.

— Oh! Oh! – exclamou Amazan, após haver consultado a
sua carta geográfica, – o seu senhor possui então toda
a Europa, como esses antigos heróis das sete montanhas?
— Deve possuir o universo inteiro, por direito divino – respondeu-lhe
um dos violetas, – e até houve tempo em que os seus predecessores
se aproximaram da monarquia universal; mas os seus sucessores têm hoje
a bondade de contentar-se com algum dinheiro que os reis seus súditos
lhes pagam em forma de tributo.

— O seu senhor é então, de fato, o rei dos reis? Não
é esse o seu título?
— Não, Excelência, o seu título é servo dos
servos; é originariamente pescador e porteiro, e eis por que os emblemas
da sua dignidade são chaves e redes; mas continua dando ordens a todos
os reis. Não faz muito, enviou cento e um mandamentos a um rei do país
dos celtas, e o rei obedeceu.

— O seu pescador – disse Amazan – enviou então
quinhentos ou seiscentos mil homens para fazer executar as suas cento e uma
disposições?
— De forma alguma, Excelência; o nosso santo senhor não
é suficientemente rico para pagar dez mil soldados; mas dispõe
de quatrocentos a quinhentos mil profetas divinos distribuídos pelos
outros países. Esses profetas de todas as cores são, como é
razoável, alimentados à custa do povo de cada nação;
anunciam da parte do céu que o meu senhor, com as suas chaves, pode
abrir e fechar todos os cadeados, e principalmente os dos cofres fortes. Um
padre normando, que tinha junto ao rei de que lhe falo o cargo de confidente,
convenceu-o de que devia obedecer, sem tugir nem mugir, às cento e
uma deliberações de meu senhor; pois é bom saber que
uma das prerrogativas do Velho das Sete Colinas é a de ter sempre razão,
seja falando, seja escrevendo.

— Sim senhor! Que homem mais singular! – exclamou Amazan. –
Teria curiosidade de jantar com ele. – Ainda que Vossa Excelência
fosse rei, não poderia comer à sua mesa; o mais que ele poderia
fazer pelo senhor seria mandar servir-lhe uma a seu lado, menor e mais baixa
que a sua própria. Mas, se quiser ter a honra de lhe falar, solicitarei
audiência para o senhor, mediante a buona mancia que o senhor terá
a bondade de dar-me.

— Com muito gosto – respondeu o gangárida.

O violeta inclinou-se.

— Eu o introduzirei amanhã – disse ele. – O senhor
fará três genuflexões e beijará os pés do
Velho das Sete Colinas.

— A tais palavras, Amazan soltou tão prodigiosas gargalhadas
que quase sufocou; saiu segurando as ilhargas e riu até as lágrimas
durante todo o caminho para a hospedaria, onde riu ainda por muito tempo.

À mesa, apresentaram-se vinte homens sem barba e vinte violinos,
que lhe deram um concerto. Foi cortejado o resto do dia pelos senhores mais
importantes da cidade; fizeram-lhe propostas ainda mais esquisitas do que
a de beijar os pés do Velho das Sete Colinas. Como era extremamente
polido, julgou a princípio que aqueles senhores o tomavam por uma dama,
e os advertiu de seu engano com a mais circunspecta lisura. Mas, sendo assediado
um pouco vivamente por dois ou três dos mais decididos violetas, arremessou-os
pela janela, sem julgar fazer grande sacrifício à bela Formosante.
Deixou o mais depressa possível aquela cidade dos senhores do mundo,
onde se tinha de beijar um velho no artelho, como se a sua face estivesse
no pé, e onde só se abordavam os jovens com cerimônias
ainda mais estranhas.

CAPÍTULO X

De província em província, sempre repelindo provocações
de toda espécie, sempre fiel à princesa de Babilônia,
sempre em cólera contra o rei do Egito, chegou aquele modelo de constância
à nova capital das Gálias. Passara esta cidade, como tantas
outras, por todos os graus da barbárie, da ignorância, da tolice
e da miséria. O seu primeiro nome fora lama e excremento; depois tomara
o de Isis, do culto de Isis, que chegara até ela. Seu primeiro senado
fora uma companhia de barqueiros. Estivera por muito tempo escravizada aos
heróis depredadores das sete montanhas; e, alguns séculos depois,
outros heróis salteadores, vindos da margem ulterior do Reno, se haviam
apoderado de seu pequeno solo.

O tempo, que transforma tudo, fizera dela uma cidade cuja metade era muito
nobre e agradável, e a outra um pouco grosseira e ridícula:
eram os atributos de seus habitantes. Havia no seu recinto cerca de cem mil
pessoas pelo menos que não tinham nada que fazer senão jogar
e divertir-se. Esse povo de ociosos julgava as artes que os outros cultivavam.
Nada sabiam do que se passava na Corte; embora ficasse esta apenas a quatro
escassas milhas dali, era como se estivesse pelo menos a umas seiscentas milhas.
As doçuras da sociedade, a alegria, a frivolidade, eram o seu único
e importante negócio: governavam-nos como a crianças a quem
se enche de brinquedos para as impedir de chorar. Se lhes falavam dos horrores
que, dois séculos antes, haviam desolado a sua pátria e dos
espantosos dias em que metade da nação massacrava a outra por
causa de sofismas, diziam que na verdade aquilo não estava direito;
e depois punham-se a rir e a cantar.

Quanto mais corteses, divertidos e amáveis se mostravam os ociosos,
tanto mais triste era o contraste que se observava entre eles e os ocupados.

Havia entre esses ocupados, ou que pretendiam sê-lo, um bando de sombrios
fanáticos, meio absurdos, meio velhacos, cujo simples aspecto contristava
a terra, e que a teriam abalado, se pudessem, para conseguir um pouco de consideração.
Mas a nação dos ociosos, dançando e cantando, fazia-os
entrar nas suas cavernas, como os pássaros obrigam as corujas a voltar
para o esconderijo das ruínas.

Outros ocupados, em menor número, eram zeladores de antigas usanças
bárbaras contra as quais bradava a natureza; não consultavam
senão os seus registros roídos de traças. Se ali encontravam
algum costume Insensato e horrível, consideravam-no como uma lei sagrada.
Devido a esse covarde hábito de não ousarem pensar por si mesmos,
e de haurirem suas idéias nos destroços dos tempos em que não
se pensava, é que, na cidade dos prazeres, ainda existiam costumes
atrozes. É por esse motivo que não havia nenhuma proporção
entre os delitos e as penas. Faziam às vezes um inocente sofrer mil
mortes para obrigá-lo a confessar um crime que não havia cometido.
Puniam uma leviandade de rapaz como teriam punido um envenenamento os um parricídio.
Os ociosos lançavam gritos lancinantes e no dia seguinte não
pensavam mais no caso e só falavam em novas modas.

Esse povo vira escoar um século inteiro durante o qual as belas-artes
se elevaram a um grau de perfeição que jamais se ousaria esperar;
os estrangeiros vinham então, como a Babilônia, admirar os grandes
monumentos de arquitetura, os prodígios dos jardins, os sublimes esforços
da escultura e da pintura. Encantavam-se com uma música que ia direito
à alma sem espantar os ouvidos.

A verdadeira poesia, isto é, aquela que é natural e harmoniosa,
aquela que tanto fala ao coração como ao espírito, só
a conheceu a nação naquele venturoso século. Novos gêneros
de eloqüência ostentaram sublimes belezas. Os teatros, sobretudo,
ecoaram de obras-primas de que nenhum povo jamais se aproximou. O bom-gosto,
enfim, se espalhou por todas as profissões, a tal ponto que houve bons
escritores até mesmo entre os druidas.

Tantos louros, que se haviam erguido até as nuvens, em breve secaram
numa terra exausta. Não restou mais que um insignificante número,
cujas folhas eram de um verde pálido e moribundo. A decadência
foi produzida pela facilidade de fazer e a preguiça de fazer bem, pela
saciedade do belo e o gosto do excêntrico. A vaidade protegeu artistas
que faziam voltar os tempos da barbárie; e essa mesma vaidade, perseguindo
os verdadeiros talentos, forçou-os a deixar a pátria; os zangãos
fizeram desaparecer as abelhas.

Quase que não havendo verdadeiras artes, quase não havia gênio;
todo o mérito do século passado; o borrador das paredes de uma
taverna criticava sapientemente os quadros dos grandes pintores; os borradores
de papel desfiguravam as obras dos grandes escritores. A ignorância
e o mau gosto tinham outros borradores a seu serviço; repetiam-se as
mesmas coisas em cem volumes, sob títulos diferentes. Tudo era ou dicionário
ou brochura. Um gazeteiro druida escrevia duas vezes por semana os anais obscuros
de alguns energúmenos ignorados da nação e prodígios
celestes operados em águas-furtadas por pequenos maltrapilhos; outros
ex-druidas, vestidos de negro, prestes a morrer de raiva e de fome, queixavam-se
em cem escritos de que não mais lhes permitissem enganar os homens,
e que deixassem esse direito a bodes vestidos de cinzento. Alguns arquidruidas
imprimiam libelos difamatórios.

Amazan nada sabia disso tudo; e, mesmo que o soubesse, pouco lhe importaria,
tão ocupado tinha o espírito com a princesa de Babilônia,
o rei do Egito, e o seu inviolável juramento de desprezar as faceirices
das damas, em qualquer país onde o sofrimento lhe conduzisse os passos.

Todo o populacho leviano, ignorante, e sempre exagerado nessa curiosidade
peculiar ao gênero humano, se comprimiu por muito tempo em torno dos
seus unicórnios; as mulheres, mais sensatas, forçaram-lhe as
portas da moradia para contemplar a sua pessoa.

Testemunhou, no princípio, a seu hospedeiro, desejos de ir à
Corte; mas alguns ociosos da boa vida, que ali se encontravam por acaso, lhe
disseram que isso passara de moda, que os tempos eram outros e só havia
prazeres na cidade. Na mesma noite, recebeu convite para cear em casa de uma
dama cujo espírito e talentos eram conhecidos fora de sua pátria,
e que tinha viajado em alguns países por onde Amazan passara. Apreciou
muito aquela dama e a sociedade reunida em seus salões. A liberdade
era ali decente, a alegria não era ruidosa, a ciência nada tinha
de desgostante, nem o espírito nada de afetado. Viu que o nome de boa
sociedade não é um nome vão, embora seja muitas vezes
usurpado. No dia seguinte jantou numa sociedade não menos amável,
mas muito mais voluptuosa. Quanto mais satisfeito estava com os convivas,
tanto mais se agradavam dele. Sentia a alma abrandar e dissolver-se como os
arômatas de seu país se fundem suavemente a um fogo moderado,
exalando-se em perfumes deliciosos.

Após o jantar, levaram-no a um espetáculo encantador, condenado
pelos druidas, porque lhes roubava o auditório de que eram mais ciumentos.
Esse espetáculo era um conjunto de versos agradáveis, de cantos
deliciosos, de danças que exprimiam os movimentos da alma, e de perspectivas
que encantavam os olhos, iludindo-os. Esse gênero de espetáculo,
que reunia tantos gêneros, era conhecido sob um nome estrangeiro: chamava-se
ópera, o que significava outrora na língua das sete montanhas
trabalho, cuidado, ocupação, indústria, empresa, negócio.

Aquele negócio o encantou. Uma rapariga, sobretudo, fascinou-o com
a sua voz melodiosa e as graças que a acompanhavam; essa rapariga de
negócio foi-lhe apresentada após o espetáculo por seus
novos amigos. Ele lhe fez presente de um punhado de diamantes. Tão
reconhecida lhe ficou a rapariga que não o pôde deixar no resto
da noite. Ceou com ela, e durante a ceia, esqueceu a sua sobriedade; e, após
a ceia, esqueceu o seu juramento de se conservar sempre insensível
à beleza e inexorável ante as coqueterias. Que exemplo da fraqueza
humana!
A bela princesa de Babilônia chegava então com a fênix,
a sua camareira Irla, e seus duzentos cavaleiros gangáridas montados
em seus unicórnios. Foi preciso esperar muito até que abrissem
as portas. Ela perguntou primeiro se o mais belo, o mais corajoso, o mais
inteligente e o mais, fiel dos homens ainda não havia chegado àquela
cidade. Os magistrados logo compreenderam que queria referir-se a Amazan.
Fez-se conduzir onde ele se achava hospedado; entrou, com o coração
palpitante de amor: toda a sua alma estava penetrada da inexprimível
alegria de tornar a ver enfim, na pessoa do bem-amado, o modelo da constância.
Nada a pôde impedir de entrar no seu quarto; os cortinados estavam abertos:
ela viu o belo Amazan adormecido entre os braços de uma linda morena.
Tinham ambos grande necessidade de repouso.

Formosante lançou um grito de dor que ecoou por toda a casa, mas
que não pôde despertar nem a seu primo, nem à mulher de
negócio. Tombou desmaiada nos braços de Irla. Logo que recobrou
os sentidos, retirou-se daquele quarto fatal com um misto de dor e cólera.
Irla informou-se sobre quem era aquela que passava tão doces horas
com o belo Amazan. Disseram-lhe que era uma rapariga de negócio, muito
complacente, que reunia aos seus outros talentos o de cantar com muita graça.

— Ó céus! ó poderoso Orosmade! – exclamava,
chorando, a bela princesa de Babilônia. – Por quem sou eu traída,
e com quem! Então aquele que recusou por mim tantas princesas abandona-me
agora por uma farsante das Gálias! Não, não poderei sobreviver
a esta afronta!
— Eis, senhora – lhe disse Irla, – como são os rapazes,
de um extremo a outro do mundo. Ainda que estejam enamorados de uma beleza
descida do céu, podem ser-lhe infiéis, em certos momentos, com
uma criada de taverna.

— Está decidido – disse a princesa, – nunca mais
o verei em toda a vida; partamos imediatamente, e que atrelem meus unicórnios.

A fênix pediu-lhe para esperar ao menos que Amazan despertasse, a
fim de que lhe pudesse falar. – Amazan não merece que lhe fales
– disse a princesa, e assim me ofenderias cruelmente; julgaria ele que
eu te pedi para o censurares e que desejo reconciliar-me com ele. Se me estimas,
não acrescentes esta injúria à injúria que ele
me fez. A fênix, que afinal de contas devia a vida à filha do
rei de Babilônia, não pôde desobedecer-lhe.

— Para onde vamos, senhora? – perguntou-lhe Irla.

Não sei – dizia a princesa, – tomaremos o primeiro caminho
que encontrarmos: desde que me afaste para sempre de Amazan, estou satisfeita.

A fênix, mais sensata do que Formosante, porque era sem paixão,
consolava-a em caminho observava com brandura que era triste castigar-se pelas
faltas de outrem; que Amazan já lhe dera significativas e numerosas
provas de fidelidade para que lhe pudesse perdoar o haver-se esquecido um
momento; que era um justo a quem faltara a graça de Orosmade; que depois
disso tanto mais constante seria ele no amor e na virtude; que o desejo de
expiar a falta o faria exceder-se a si mesmo; que tanto mais feliz seria ela;
que várias princesas haviam perdoado semelhantes deslizes, com o que
se deram muito bem: citava-lhe exemplos; tal era a sua arte de contar, que
afinal o coração de Formosante ficou mais calmo e apaziguado;
ela desejaria não ter partido tão cedo; achava que os seus unicórnios
iam demasiado depressa, mas não ousava desandar o caminho; dividida
entre o desejo de perdoar e o de mostrar sua cólera, entre o amor e
a vaidade, deixava os unicórnios seguirem; ela corria o mundo, conforme
a predição do oráculo de seu pai.

Amazan, ao despertar, cientifica-se da chegada e partida de Formosante e
da fênix; sabe do desespero e da cólera da princesa; dizem-lhe
que ela jurou que nunca o perdoaria.

— Agora – exclamou ele – só me resta segui-la e
matar-me a seus pés!
Seus amigos da boa companhia dos ociosos acorreram ao rumor dessa aventura;
todos lhe demonstraram que era infinitamente melhor ficar com eles; que nada
era comparável à doce vida que levavam no seio das artes e de
uma voluptuosidade tranqüila e refinada; que vários estrangeiros,
e até reis, haviam preferido aquele repouso, tão agradavelmente
ocupado e tão encantador, à sua pátria e ao seu trono;
que aliás a sua carruagem se achava quebrada e um marceneiro lhe estava
fabricando outra do mais recente modelo; que o melhor alfaiate da cidade já
lhe cortara uma dúzia de roupas à última moda; que as
damas mais inteligentes e amáveis da cidade, em cuja casa representavam
muito bem, estavam cada qual com um dia marcado para lhe oferecerem festas.
A rapariga de negócios, durante esse tempo, tomava o seu chocolate
na alcova, ria, cantava e fazia mil negaças ao belo Amazan, que afinal
se apercebia de que ela não tinha mais senso do que um ganso.

Como a sinceridade, a cordialidade, a franqueza, bem como a magnanimidade
e a coragem compunham o caráter desse grande príncipe, já
havia ele contado as suas desgraças e viagens aos amigos; sabiam que
era primo da princesa; estavam informados do funesto beijo que ela dera no
rei do Egito.

— Perdoam-se essas pequenas extravagâncias, entre parentes –
lhes disseram eles, – sem o que teríamos de passar a vida em
eternas querelas.

Nada o demoveu da intenção de sair empós de Formosante;
mas, como o carro ainda não estivesse pronto, foi obrigado a passar
três dias com os ociosos, entre festas e prazeres. Afinal despediu-se
deles, beijando-os, fazendo-os aceitar os mais bem montados diamantes do seu
país, e recomendando-lhes que fossem sempre levianos e frívolos,
pois tanto mais amáveis e venturosos seriam. “Os germanos –
dizia ele – são os velhos da Europa; os povos de Albion são
os homens feitos; os habitantes das Gálias são as crianças,
e eu gosto de brincar com eles.”

CAPÍTULO XI

Os guias não tiveram dificuldade em seguir pista da princesa; não
se falava senão dela e do seu grande pássaro. Todos os habitantes
estavam ainda cheios de entusiasmo e admiração. Os povos da
Dalmácia e das Marcas d’Ancona não tiveram tão
deliciosa surpresa quando viram, mais tarde, uma casa voar; nas margens do
Loire, do Dordonha, do Garona, do Gironda, ainda ecoavam as aclamações.

Quando Amazan chegou ao sopé dos Pireneus, os magistrados e os druidas
do país obrigaram-no, contra a vontade, a dançar com um pandeiro;
mas, logo que franqueou os Pireneus, não viu mais alegria nem contentamento.
Se ouviu algumas canções de longe em longe, eram todas numa
toada triste: os habitantes caminhavam gravemente, de rosário, e punhal
à cinta. O povo, vestido de preto, parecia estar de luto. Se os criados
de Amazan interrogavam os passantes, estes respondiam por sinais; se entravam
numa estalagem, o proprietário informava em três palavras que
não havia nada no estabelecimento, e que podiam mandar buscar a algumas
milhas as coisas de que tinham necessidade urgente.

Quando perguntavam àqueles silenciários se tinham visto passar
a bela princesa da Babilônia, respondiam com menos laconismo:
— Nós a vimos, sim; ela não é tão bonita;
só os tipos trigueiros é que são bonitos; ela ostenta
um colo de alabastro que é a coisa mais desgostante do mundo e quase
não se encontra em nossos climas.

Amazan dirigia-se para a província regada pelo Bétis. Ainda
não haviam decorrido doze mil anos que essa região fora descoberta
pelos tírios, no mesmo tempo em que fizeram a descoberta da grande
ilha Atlântida, submersa alguns séculos depois. Os tírios
cultivaram a Bética, que os naturais da região deixavam ao Deus
dará, achando que não deviam meter-se em coisa alguma e que
era aos gauleses seus vizinhos que competia cultivar a sua terra. Os tírios
tinham levado consigo uns palestinos, que desde aquele tempo corriam todas
as terras, onde quer que houvesse algum dinheiro a ganhar. Esses palestinos,
emprestando a 50%, tinham acumulado em suas mãos quase todas as riquezas
do país. Isso fez crer aos povos da Bética que os palestinos
eram feiticeiros; e todos os palestinos acusados de magia eram queimados sem
misericórdia por uma companhia de druidas a quem chamavam os inquiridores
ou antropokaias. Esses sacerdotes lhes vestiam primeiro um hábito de
carnaval, apoderavam-se de seus bens, e recitavam devotamente as próprias
orações dos palestinos, enquanto os queimavam a fogo lento por
amor de Dios.

A princesa de Babilônia desembarcara na cidade a que chamaram depois
Sevilha. Sua intenção era seguir pelo Bétis para voltar
por Tiro à Babilônia, ver o rei Belus seu pai, e esquecer, se
pudesse, o seu infiel amado, ou então pedi-lo em casamento. Mandou
chamar dois palestinos que faziam os negócios da Corte. Deviam fornecer-lhe
três navios. A fênix fez com eles todos os arranjos necessários
e combinou o preço, depois de regatear um pouco.

A hospedeira era muito devota, e o seu marido, não menos devoto,
era familiar, Isto é, espião dos druidas inquiridores antropokaias;
não deixou de os avisar que havia em sua casa. uma feiticeira e dois
palestinos que negociavam um pacto com o diabo, disfarçado em grande
pássaro dourado. Os inquiridores, sabendo que a dama tinha uma prodigiosa
quantidade de diamantes, logo a declararam feiticeira; esperaram a noite para
prender os duzentos cavaleiros e os unicórnios que dormiam em vastas
estrebarias: pois os inquiridores são poltrões.

Após haverem barricado fortemente as portas, apoderaram-se da princesa
e de Irla; mas não puderam apanhar a fênix, que saiu voando a
vôo solto: bem esperava encontrar Amazan no caminho das Gálias
para Sevilha.

Encontrou-o na fronteira da Bética e comunicou-lhe o desastre da
princesa. Amazan nem pôde falar, tão impressionado e enfurecido
ficou. Arma-se de uma couraça de aço damasquinada de ouro, de
uma lança de doze pés, de duas azagaias e de uma cortante espada
chamada a fulminante, que podia fender, de um só golpe, árvores,
rochedos e druidas; cobre a bela cabeça com um capacete de ouro sombreado
de plumas de garça e de avestruz. Era a antiga armadura de Magog, que
sua irmã Aldéia lhe dera de presente em sua viagem à
Cítia; os poucos companheiros que o seguiam montam, igualmente, cada
um o seu unicórnio.

Amazan, abraçando sua querida fênix, não lhe diz mais
que estas tristes palavras:
— A culpa é minha; se eu não houvesse pernoitado com uma
mulher de negócios, na cidade dos ociosos, não se acharia a
bela princesa de Babilônia nesta espantosa situação; corramos
aos antropokaias.

Entra logo em Sevilha: mil e quinhentos aguazis guardavam as portas do recinto
onde os duzentos gangáridas e os seus unicórnios estavam presos
sem comer; achava-se tudo preparado para o próximo sacrifício
da princesa de Babilônia, da sua camareira Irla e dos dois ricos palestinos.

O grande antropokaia, cercado de seus pequenos antropokaias, já se
encontrava em seu tribunal sagrado; uma, multidão de sevilhanos, com
as contas enfiadas à cinta, juntava as duas mãos sem dizer palavra;
e conduziam a bela princesa, Irla e os dois palestinos, as mãos atadas
às costas, e com hábitos de carnaval.

A fênix entra por uma lucarna na prisão, cujas portas Já
começavam a ser forçadas pelos gangáridas. O invencível
Amazan as investe por fora. Saem todos armados, cada qual no seu unicórnio;
Amazan posta-se à frente deles. Não tem dificuldade em derribar
os aguazis, os familiares, os sacerdotes antropokaias; cada unicórnio
espetava dúzias deles ao mesmo tempo. A fulminante de Amazan cortava
em dois todos aqueles que se lhe deparavam; o povo fugia com suas capas negras
e golas sujas, tendo sempre na mão as contas bentas por amor de Dios.

Amazan abotoa o grande inquiridor no seu tribunal e lança-o sobre
a fogueira que estava preparada a quarenta passas; ali também lançou,
de um em um, os outros pequenos inquiridores. Prosterna-se em seguida aos
pés de Formosante
— Ah! como sois encantador – disse ela. – E como eu vos
adoraria se não me tivésseis feito uma infidelidade com uma
mulher de negócio!
Enquanto fazia as pazes com a princesa, enquanto os gangáridas empilhavam
na fogueira os corpos de todos os antropokaias e as chamas se elevavam até
as nuvens, viu Amazan, ao longe, como que um exército que se aproximava.
Um velho monarca, com a coroa na. cabeça, avançava num carro
puxado por oito mulas atreladas com cordas; seguiam-se cem outros carros.
Eram acompanhados por graves personagens de trajes pretos com gargantilhas,
montados em belos cavalos; seguia-os uma multidão de gente a pé,
silenciosa e de cabelos engordurados.

Amazan dispôs em torno de si os seus gangáridas e avançou
de lança em riste. Logo que o rei o avistou, tirou a coroa, desceu
do carro, beijou o estribo de Amazan e disse-lhe:
— Homem enviado de Deus, sois o vingador do gênero humano, ó
libertador de minha pátria, o meu protetor. Esses monstros sagrados
de que purgastes a terra eram os meus senhores em nome do Velho das Sete Colinas;
via-me obrigado a suportar seu criminoso poder. Se pretendesse ao menos moderar
as suas abomináveis atrocidades, o meu povo me teria abandonado. Hoje
eu respiro, eu reino, e a vós o devo.

Em seguida beijou respeitosamente a mão de Formosante e pediu-lhe
que subisse, com Amazan, Irla e a fênix, no seu carro de oito mulas.
Os dois palestinos, banqueiros da Corte ainda prosternados de terror e reconhecimento,
afinal se ergueram; e a tropa dos unicórnios escoltou o rei da Bética
até o palácio.

Como a dignidade do rei de um povo grave exigia que suas mulas marchassem
a passo, Amazan e Formosante tiveram tempo de contar-lhe as suas aventuras.
Ele também conversou com a fênix, admirou-a, e beijou-a mil vezes.
Reconheceu quanto eram ignorantes, brutais e bárbaros os povos do Ocidente,
que comiam os animais e não mais compreendiam a sua linguagem; que
só os gangáridas haviam conservado a natureza e a dignidade
primitiva dos homens; mas convinha sobretudo em que os mais bárbaros
dos mortais eram aqueles inquiridores antropokaias de que Amazan acabava de
purgar o mundo. Não cessava de o abençoar e agradecer-lhe. A
bela Formosante esquecia já a aventura da mulher de negócio
e só tinha a alma cheia do valor daquele herói que lhe salvara
a vida. Amazan, ciente da inocência do beijo dado no rei do Egito e
da ressurreição da fênix, experimentava uma pura alegria
e estava embriagado do mais violento amor.

Jantaram em palácio e passaram muito mal. Os cozinheiros da Bética
eram os piores da Europa. Amazan aconselhou que os mandassem buscar nas Gálias.
Os músicos do rei executaram durante a refeição aquela
peça famosa que foi chamada, no decorrer dos séculos, as Loucuras
da Espanha. Depois da refeição, falaram de negócios.

O rei perguntou ao belo Amazan, à bela Formosante e à bela
fênix o que pretendiam fazer.

— Quanto a mim – disse Amazan – a minha intenção
– é voltar à Babilônia, de cujo trono sou herdeiro
presuntivo, e pedir a meu tio Belus a mão de minha prima, a incomparável
Formosante, a menos que ela prefira viver comigo entre os gangáridas.

— O meu desejo – disse a princesa – é certamente
jamais me separar de meu primo. Mas creio conveniente ir ter com meu pai,
tanto mais quanto ele só me deu licença para ir em peregrinação
a Baçorá, e eu saí a correr mundo.

— Quanto a mim – disse a fênix, – seguirei por toda
parte esses dois ternos e generosos amantes.

— Tem razão – disse o rei da Bética, – mas
o regresso a Babilônia não é tão fácil como
pensam. Todos os dias tenho notícias desse país, pelos navios
tírios e por meus banqueiros palestinos, que mantêm correspondência
com todos os povos da terra. Tudo está em pé de guerra para
as bandas do Eufrates e do Nilo. O rei da Cítia reclama a herança
de sua mulher, à frente de trezentos mil guerreiros a cavalo. O rei
do Egito e o rei das Índias assolam também as margens do Tigre
e do Eufrates, cada um à frente de trezentos mil homens, para vingar-se
de haverem zombado deles. Enquanto o rei do Egito se acha fora de seu país,
o rei da Etiópia depreda o Egito com trezentos mil homens; e o rei
de Babilônia só tem seiscentos mil homens de prontidão.

Confesso – continuou o rei – que, quando ouço falar –
desses prodigiosos exércitos que o Oriente vomita de seu seio, e da
sua espantosa magnificência; quando os comparo a nossos pequenos corpos
de vinte a trinta mil soldados, tão difíceis de vestir e alimentar,
sou tentado a crer que o Oriente foi feito muito tempo antes do Ocidente.
Parece que saímos anteontem do caos, e ontem da barbárie.

— Sire – disse Amazan, -: os últimos a chegar ganham
às vezes dos que entraram primeiro na corrida. Pensam no meu país
que o homem é originário da Índia, mas eu não
tenho certeza alguma.

— E tu – perguntou o rei da Bética à fênix,
– que pensas a respeito?
— Sire – respondeu a fênix, – sou ainda muito jovem
para estar informada da antigüidade. Não vivi mais que uns vinte
e sete mil anos; mas meu pai, que viveu cinco vezes essa idade, me dizia haver
sabido, por meu avô, que as regiões do Oriente sempre foram mais
povoadas e mais ricas que as outras. Sabia, por seus antepassados, que as
gerações de todos os animais tinham começado às
margens do Ganges. Quanto a mim, não tenho a vaidade de ser dessa opinião.
Não posso acreditar que as raposas de Albion, as marmotas dos Alpes
e os lobos das Gálias venham do meu país; da mesma forma, não
creio que os pinheiros e os carvalhos das vossas regiões descendam
das palmeiras e dos coqueiros da Índia.

— Mas de onde vimos então? – indagou o rei.

— Nada sei – respondeu a fênix. – Desejaria apenas
saber para onde poderão ir a bela princesa da Babilônia e o meu
querido amigo Amazan.

— Duvido muito – observou o rei – de que, com os seus
duzentos unicórnios, possa ele atravessar tantos exércitos de
trezentos mil homens cada um.

— Por que não? – disse Amazan.

O rei da Bética sentiu o sublime do por que não?; mas achou
que só o sublime não bastava contra exércitos inumeráveis.

— Aconselho-vos – disse ele – a procurardes o rei da Etiópia;
mantenho relações com esse príncipe negro por intermédio
de meus palestinos. Dar-vos-ei cartas para ele. Como é inimigo do rei
do Egito, há de sentir-se muito feliz de se ver fortalecido pela vossa
aliança. Posso auxiliar-vos com dois mil homens muito sóbrios
e muito bravos; só dependerá de vós engajardes outros
tantos entre os povos que moram, ou antes, que saltam, ao pé dos Pireneus,
e a quem chamam vascos ou vasconços. Manda um de teus guerreiros, num
unicórnio, com alguns diamantes, e não haverá vasco que
não deixe o castelo, isto é, a choupana de seu pai, para servir-te.
São infatigáveis, corajosos e alegres; ficarás muito
satisfeito com eles. Enquanto não chegam, nós vos ofereceremos
festas e vos aprestaremos navios. Para o serviço que me prestastes,
todo reconhecimento é pouco. Amazan desfrutava do prazer de haver reencontrado
Formosante e de gozar em paz, na sua conversação, todos os encantos
do amor reconciliado, que quase valem os do amor nascente.

Em breve chegou uma tropa vigorosa e alegre de vasconços, dançando
ao som dos pandeiros; outra tropa vigorosa e séria de guerreiros da
Bética se achava a postos. O velho rei trigueiro abraçou ternamente
os dois enamorados. Mandou carregar seus navios de armas, leitos, jogos de
xadrez, trajos negros, gorjeiras, cebolas, carneiros, galinhas, farinha e
bastante alho, desejando-lhes feliz travessia, um amor constante e vitórias.

A frota ancorou à margem onde se diz que, tantos séculos depois,
a fenícia Dido, irmã de Pigmalião, esposa de Siqueu,
tendo deixado a cidade de Tiro, foi fundar a soberba cidade de Cartago, cortando
um couro de boi em loros, segundo o testemunho dos mais graves autores da
antigüidade, os quais nunca contavam fábulas, e de acordo com
os professores que escrevem para meninos; embora jamais tivesse havido ninguém
em Tiro que se chamasse Pigmalião, ou Dido, ou Siqueu, que são
nomes inteiramente gregos, e embora não houvesse rei em Tiro naquele
tempo.

A soberba Cartago não era ainda um porto de mar; não havia
ali senão alguns númidas que secavam peixe ao sol. Costearam
Bizacene e Sirtes, as férteis plagas onde existiram mais tarde Cirene
e a grande Quersoneso.

Chegaram enfim à. primeira embocadura do rio sagrado do Nilo. Era
na extremidade dessa terra fértil que o porto de Canope já recebia
os navios de todas as nações comerciantes, sem que se soubesse
se o Deus Canope fundara o porto, ou se os habitantes haviam fabricado o deus,
nem se a estrela Canope dera seu nome à cidade, ou se a cidade dera
o seu à estrela. Só o que se sabia é que a cidade e a
estrela eram muito antigas e é só o que se pode saber da origem
das coisas, qualquer que seja a natureza delas.

Foi lá que o rei da Etiópia, tendo assolado todo o Egito,
viu desembarcar o invencível Amazan e a adorável Formosante.
Pensou que ele fosse o deus dos combates e ela a deusa da beleza. Amazan apresentou-lhe
a carta de recomendação do rei da Espanha. O rei da Etiópia
começou dando festas admiráveis, segundo o indispensável
costume dos tempos heróicos; em seguida falaram de ir exterminar os
trezentos mil homens do rei do Egito, os trezentos mil do imperador das Índias
e os trezentos mil do grande Kan dos citas, que cercavam a imensa, a altiva,
a voluptuosa cidade de Babilônia.

Os dois mil espanhóis que Amazan trouxera consigo disseram-lhe que
não precisavam do rei da Etiópia para socorrer Babilônia;
que era suficiente que seu rei lhes houvesse ordenado que a fossem libertar;
que bastavam eles para tal expedição.

Quanto aos vasconços, disseram que já tinham feito muitas
daquelas; que bateriam sozinhos os egípcios, os indianos e os citas,
e que só marchariam com os espanhóis sob a condição
de que estes ficassem à retaguarda.

Os duzentos gangáridas puseram-se a rir das pretensões de
seus aliados e garantiram que, apenas com cem unicórnios, fariam fugir
todos os reis da terra. A bela Formosante os apaziguou com a sua prudência
e as suas encantadoras falas. Amazan apresentou ao monarca negro os seus gangáridas,
os seus unicórnios, os espanhóis, os vascos e o seu belo pássaro.

Em breve tudo estava preparado para marchar por Mênfis, Heliópolis,
Arsínoe, Petra, Artemite, Sora, Apaméia, a fim de ir atacar
aos três reis e dar início a essa guerra memorável, diante
da qual todas as guerras que os homens fizeram depois não foram mais
que rinhas de galos e codornizes.

Todos sabem como o rei da Etiópia se enamorou da bela Formosante
e como a foi surpreender no leito, quando um suave sono lhe fechava os longos
cílios. Recorda-se que Amazan, testemunha daquele espetáculo,
julgou ver o dia e a noite deitados juntos. Não se ignora que Amazan,
indignado com a afronta, sacou de súbito a sua fulminante, cortou a
cabeça perversa do insolente negro e expulsou todos os etíopes
do Egito. Pois não estão esses prodígios registrados
no livro de crônicas do Egito? A fama espalhou com as suas mil bocas
as vitórias que ele obteve sobre os três reis, com os seus espanhóis,
seus vascos e seus unicórnios. Entregou a bela Formosante ao pai; libertou
todo o séquito da sua amada, que o rei do Egito reduzira à escravidão.
O grande cã dos citas se declarou vassalo, vendo confirmado o seu casamento
com a princesa Aldéia. O invencível e generoso Amazan, reconhecido
herdeiro do reino de Babilônia, entrou na cidade, em triunfo, com a
fênix, na presença de cem reis tributários. A festa de
seu casamento ultrapassou em tudo a que o rei Belus oferecera. Foi servido
à mesa o boi Apis assado. O rei do Egito e o das Índias serviram
bebidas aos dois esposos. E essas núpcias foram celebradas por quinhentos
grandes poetas de Babilônia.

Ó Musas, a quem sempre invocam no princípio das obras, somente
no fim eu vos imploro. É em vão que me censuram dar graças
sem ter dito o benedicite. Nem por isso, ó Musas, me havereis de proteger
menos. Impedi que os continuadores temerários estraguem com as suas
fábulas as verdades que ensinei aos mortais nesta fiel narrativa, assim
como ousaram falsificar Cândido, o Ingênuo, e as castas aventuras
da casta Joana que um ex-capuchinho desfigurou em versos dignos dos capuchinhos,
em edições batavas. Que não causem tal transtorno a meu
tipógrafo, encarregado de numerosa família, e que mal possui
com que adquirir caracteres, papel e tinta.

Ó Musas, imponde silêncio ao detestável Coger, professor
de parolagem no colégio Mazarino, que não ficou contente com
os discursos morais de Belisário e do imperador Justiniano e escreveu
infames libelos difamatórios contra esses dois grandes homens.

Ponde uma mordaça no pedante Larcher que, sem saber uma palavra do
antigo babilônio, sem ter viajado, como eu, pelas margens do Eufrates
e do Tigre, teve a imprudência de sustentar que a bela Formosante, e
a princesa Aldéia, e todas as mulheres daquela respeitável Corte,
iam dormir, por dinheiro, com todos os palafreneiros da Ásia, no grande
templo de Babilônia, devido a princípios religiosos. Esse libertino
de colégio, vosso inimigo e inimigo do pudor, acusa as belas egípcias
de Mendes de só terem amado os bodes, tencionando secretamente, sob
esse exemplo, fazer uma viagem ao Egito, para conseguir afinal aventuras galantes.
Como não conhece nem o moderno nem o antigo, insinua, na esperança
de se introduzir junto a alguma velha, que a nossa incomparável Ninon,
na idade de oitenta anos, dormiu com o padre Gédoin, da Academia Francesa
e da Academia de Inscrições e Belas Letras. Nunca ouviu falar
do padre de Châteauneuf, que toma pelo padre Gédoin. Não
conhece mais Ninon que as mulheres de Babilônia.

Musas, filhas do céu, vosso inimigo Larcher ainda faz mais: estende-se
em elogios à pederastia; ousa dizer que todos os bambinos do meu país
são sujeitos a essa infâmia. Pensa salvar-se aumentando o número
dos culpados.

Nobres e castas Musas, que detestais igualmente o pedantismo e a pederastia,
protegei-me contra mestre Larcher!

E vós, mestre Aliboron, mais conhecido por Fréron, ex-pseudo-jesuíta,
vós, cujo Parnaso ora está no manicômio, ora na taverna
da esquina; vós, a quem fizeram tanta justiça em todos os teatros
da Europa, na honesta comédia da Escocesa; vós, digno filho
do padre Desfontaines, que nascestes de seus amores com um desses belos efebos
que trazem a lança e a venda, como o filho de Vênus, e que se
alçam como ele aos ares, embora nunca tenham ido além do alto
das chaminés; meu caro Aliboron, por quem sempre tive tamanha ternura,
e que me fizestes rir um mês inteiro no tempo dessa Escocesa, eu vos
recomendo a minha Princesa de Babilônia; dize bastante mal dela, a fim
de que a leiam.

Não vos esquecerei aqui, gazeteiro eclesiástico, ilustre orador
dos convulsionários, membro da igreja fundada pelo padre Bécherand
e por Abraham Chaumeix; não deixeis de dizer nas vossas gazetas, tão
pias quão eloqüentes e sensatas, que a Princesa de Babilônia
é herética, deísta e atéia. Tratai sobretudo de
induzir o senhor Riballier a fazer condenar a Princesa de Babilônia
pela Sorbona; causareis assim grande prazer a meu livreiro, a quem dei esta
pequena história como presente de Ano Bom.

NOTAS

(1) – Vide o capítulo 9 do Gênesis e os capítulos
3, 18 e 19 do Eclesiastes
(2) – Em latim: Urbi et orbi.

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