As Jóias da Coroa

PUBLICIDADE

Clique nos links abaixo para navegar no capítulo desejado:

Raul Pompéia

Capítulo I

– Ah, ah! Ah, ah!… É o que você pensa. Ninguém se arroja
a uma empresa destas, sem saber o terreno em que vai pisar. Eu sou um jogador
que sempre conhece as cartas de que dispõe e as do seu adversário…
É o que faltava… Um homem habituado às dificuldades de todas
as empresas espinhosas …

– É exato, o senhor tem dado provas do que é capaz… aquele
escandalozinho da rua… que se abafou tão bem, aquela caçada
da Milica… Sem a sua habilidade as coisas não iriam tão macias,
mas…

– Mas… que?! Pois você quer pôr em dúvida a minha confiança?!
Garanto-lhe que o negócio não trará compromisso a ninguém…
Você já tem cinco anos de serviço, tem garantias… Cá
para mim, provoco os céus e a terra a virem estremecer a minha influência
neste paraíso de bambus…

– É exato, ele precisa do senhor… quem ficará mal hei de
ser eu. Se vou para a rua sem mais nem menos…

– Se é este o seu receio, eu o tranqüilizo… Assino, se você
quiser, um papel de dívida, comprometendo-me a dar a mesma recompensa,
seja qual for o resultado no negócio… Ora, imagine que nos venha
daí um bolo de 600 contos… Dar-lhe-ia boa porção. Todos
lucraremos maravilhosamente… Se não conseguirmos nada, ainda assim
você estará perfeitamente, porque, se a coisa for impossível,
não ficarão vestígios da tentativa, e, se formos surpreendidos…
Não! Não seremos! O êxito é certo… As jóias
do duque estão depositadas numa sala grande do lance esquerdo do palácio,
num armário envidraçado. Se você continua teimando em
não querer…

– Teimar não! eu estou apresentando dúvidas, porque ninguém
deve…

– Não quero saber de doutrinas. Aceita ou não aceita? Responda
já, sem muitas histórias… Está caindo a noite… Ou
fazemos hoje ou nunca! Amanhã podem ter sido retiradas as jóias.
Vamos deixar fugir a mais risonha fortuna… É impossível…
Se você não aceita meu convite para acompanhar-me, eu irei só…

– Realmente não há muito tempo para reflexões e o negócio
convida…

– Então?… O que decide?…

– Eu… Eu…

– Vamos!…

– Aceito,aceito.

– Ora graças! É preciso ser-se bastante idiota para hesitar
tanto num caso destes. Ter nas mãos uma riqueza e temer perigos…
Ora, Inácio, você não merece a sorte que lhe está
reservada…

– Ainda veremos, sr. Pavia…

Esta conversa se travara no interior da vasta quinta do duque de Bragantina.

Um dos interlocutores era um indivíduo todo de branco, baixote, gordo,
peludo na cara como um cachorro d’água, de fisionomia um tanto indistinta
naquela hora, que ia adiantando o crepúsculo e os objetos começavam
a esfuminhar-se na uniformidade da noite.

A pessoa com quem ele falava era um sujeito em mangas de camisa, fino, comprido,
teso como um soldado, de cara rapada, olhar habitualmente baixo e movimentos
receosos, denunciando que todo aquele retesamento era teatral; aquela espinha,
tão enrijada para trás, caía muitas vezes para a frente
em profundas continências, e aqueles ombros, que pareciam feitos para
dragonas, apenas carregavam librés.

Este indivíduo era um criado, evidentemente; o outro, saberemos em
breve quem era.

Os dois conversavam sobre um negócio importantíssimo. Tratava-se
de adquirir da noite para o dia uma enorme fortuna. Um símile da sorte
grande de jogatina legal.

Achavam-se ao portão de uma espécie de jardim sem cultivo,
no fundo do qual elevava-se uma boa casa, através de cujas venezianas
se distinguia a claridade das luzes que se acendiam lá dentro por causa
da hora.

– Posso, pois, contar com seu auxílio? – perguntou o homem de branco
ao criado.

– Sim, senhor. Desde que o senhor nada teme, eu também nada quero
nada temer…

– Muito bem! Isto é o que se exige. Tenha confiança em mim
e ajude-me que teremos sucesso…

– Mas diga-me primeiro o que devo fazer…

– Precisamos conversar…

– Preciso de ordens…

– Mas está serenando aqui… entremos para casa…

Pavia e Inácio atravessaram o jardim na direção da
casa. Subiram os quatorze degraus de uma escada dupla, que levava à
porta da entrada, e desapareceram no vão escuro que a porta fazia.

A noite caíra.

A quinta do duque passara insensivelmente das vacilações do
crepúsculo para as trevas decididas das sete horas de um dia curto.

As moitas de bambus condensavam-se em amontoados impenetráveis de
escuridão; os gramados do parque alargavam-se, confundindo-se com as
alamedas de areia numa vasta toalha de crepe; para longe, recortavam-se as
montanhas negras. Dir-se-ia que a natureza acabava de cobrir-se de lutuosos
merinós, se não fosse o cetim azulado do firmamento, e se não
chovesse o riso das estrelas.

Entretanto, reinava movimento no meio da noite. Os numerosos habitantes
da quinta do duque, lacaios e protegidos, recolhiam-se naquela ocasião
às suas habitações agrupadas em aldeia, nos fundos do
palácio. Consumiam a última atividade do diário, preparando-se
para o repouso confortante da noite. Na massa de habitações
acumuladas ao norte do parque, que fundiam-se com a noite, começavam
a aparecer pontos luminosos. Era a candeia de um sótão, o bico
de gás de uma sala de jantar ou a vela de um quartinho.

Quando acabaram de acender-se as luzes também o movimento cessou.
Principiaram-se os serões.

Levemos o leitor a um deles.

Uma rua, ou melhor, um estreitíssimo beco, esmagado entre duas paredes
crivadas de janelas iluminadas ou não, é o caminho que conduz
ao coração desse povoado da quinta.

No extremo dessa viela úmida e escura está uma porta aberta.
Entremos…

É uma sala miserável, pobremente mobiliada. Das paredes caem
flâmulas de papel descolado e no meio da casa gemem míseros trastes,
sobrecarregados de ninharias. Pelas mesas há vasos de fantasia arabescados
de rachas e esfoladuras sobre uns tapetes de lã felpudos e muito anchos;
pelas cadeiras, retalhos de pano e objetos de costura.

A um canto, conversam baixinho um velho e uma velha. Estão sentados
em cadeiras, ao lado de uma pequena mesa. Sobre a mesa há uma vela
que bate-lhes no rosto e clareia a toda a luz as rugas das duas fisionomias.

Trocam vivamente palavras.

O velho, com dedo médio unido ao polegar, como apertando uma pitada,
faz gestos de quem sabe o que diz, e a velha encara-o através de uns
grandes óculos de aros pretos, aprovando com a cabeça,e fala
de vez em quando, agitando a agulha que tem na destra e a costura que sustenta
na mão esquerda.

Em outro lado da sala vê-se, toda encurvada sobre si uma mocinha.
Acha-se sobre um banco com os joelhos cruzados, repuxando-lhe muito o vestido
que comprime-lhe as formas. Dedilha febrilmente um cabo de crochet de osso
branco. De tempos a tempos levanta o rosto com os olhos semicerrados e sacode
para trás a vasta cabeleira negra e esparsa, que quer escorregar-lhe
para o crochet.

É uma formosa criaturinha, feições de criança,
ar distraído, um tanto carnuda sob uma epiderme sem irritações.
Parece não ter quatorze anos ainda e podia usar vestido curto.

Eis mais ou menos o que diziam os velhos:
– Sim, sim, – falava o marido -, é preciso garantirmos o futuro daquela
menina. Se não aceitássemos os oferecimentos do Pavia cometeríamos
um crime.

– Um verdadeiro crime – afirmou a velha.

– Por um tolo escrúpulo não se há de perder um bom
dinheiro…

– Tão bom dinheiro… – reforçou a velha, batendo com a cabeça.

– Demais, o lucro não será só para nossa afilhada,
o nosso netinho terá o seu quinhão…

– Sim senhor… Sim senhor…

– Já vê que fiz bem em responder ao Pavia que sim…

– Muito bem. A nossa afilhada assim terá um futuro garantido. A proteção
do sr. Duque não é qualquer coisa… Ah! quem me dera que eu
ainda fosse fresquinha como antigamente…

Capítulo II

O velho não deu atenção ao honesto suspiro da digna
esposa; ficou por alguns segundos remexendo o queixo escalavrado pelos anos
e salpicado de raros fios de barba retorcida e branca. Os olhinhos castanhos
piscavam-lhe vivamente, testemunhando o fervet opus de raciocínios
que trabalhavam naquele crânio de setenta anos.

Depois, a fim de reatar a conversação, voltou-se para a velha:
– Não acha?… Demais, a gratidão nos obriga… Por nosso filho
ter sido empregado do duque, não se pode dizer que este tenha o dever
de nos dar casa e alimento até o fim da vida… Os favores escravizam
um pouco a gente… E de que se trata? Não há nenhum sacrifício…
É só vencer um escrúpulo… Isto para nós… A
idiota da nora não tem energia para se opor, nem entenderá o
riscado. Quanto à menina…

– Fale baixo… ela pode estar escutando e não há necessidade…
Olhe que noite bonita! Veja ali pela janela…

– Como está estrelado o céu!… E está fresco…parece
que o mau tempo acabou… Quanto à menina… O que vai sofrer?… As
doces torturas que nós sabemos e depois levar a vida tranqüila
de quem tem certeza de ser amparada em qualquer dia de necessidade… Suponho
que as grandes chuvas, que tanto nos têm incomodado, cessaram de uma
vez… Ela vai morar com o Pavia algum tempo, diverte-se, sai a passeio com
a gente dele, vai ao teatro, coisa que ela nunca provou… Um belo dia, quando
estiver sonhando alegrias nos cômodos agasalhos que lhe reserva o Manuel
de Pavia, será visitada por uma sombra… Conversarão durante
várias entrevistas, etc, etc. Há de ser bonito… garanto que
a Conceição não chorará.

– O que é que tem a Conceição? – gritou a voz fina
e esperta da mocinha que fazia crochet, sentada no banco. – Vovô agora
anda só falando em mim… Eu estou aqui afastada por causa do fresco
que vem da porta, mas… estou ouvindo, estou ouvindo…

– Nem há segredo, minha filha. Estou falando em você mesma…
É tempo de pensar no seu futuro…

– Aposto que quer me casar!
– Eu e a Dindinha estamos muito velhos…

– Com quem vão me casar?
– Sua mãe vive tão prostrada… sempre naquela tristeza…

– Digam, digam quem vai ser meu marido… Olhem que eu quero um marido rico
e bonito…

O vovô tossia uma risada tratante de quem não sabe o que há
de dizer…

A Dindinha olhava por cima dos óculos para o marido, a ver como ele
saía da alhada.

O velho achou um recurso. Meteu a mão no bolso do paletó de
brim pardo e puxou um vasto lenço de rapé, com que assoou-se
demoradamente…

– Ah! ainda não há noivo? Valha-me isso. Eu não tenho
muito jeito para andar de braço com um maridinho… Gosto mais de pular
corda… Vovô, uma moça casada pode pular na corda?… Dindinha
pulava?
– Menina, não faça perguntas desaforadas à sua madrinha…

– Menina? Eu já não sou menina… Vovô já não
está preparando meu casamento?
– Quem falou em casamento, Conceição? – perguntou o avô.

– Vovô mesmo!… Quem foi que disse, outro dia, que o melhor futuro
de uma moça era um bom casamento?… Vovô não está
tratando do meu futuro?
– Sim, do seu futuro, mas não é já de seu casamento…
O sr. Manuel de Pavia disse-me que a mulher dele gostava muito de você
e perguntou-nos por que não deixávamos você passar alguns
dias com ela…

– Vovô deixa?
– Você quer?…

– Oh! se quero… também eu brinco tanto com a Claudina no parque…
Não sei por que não poderei passar uns dias com a mãe
dela…

– Pois disto é que eu falo… Se você alguma vez precisar…
diga-me… não será muito bom que um homem como o sr. Pavia…
goste de você?…

– Mas para que estar pensando nessas coisas…

– É preciso pensar no futuro…

– Dindinha deixa-me?…

– Deixo, deixo… Por minha parte, não ponho dúvidas. Até
se você quisesse morar lá…

– Isso não! Gertrudes, a minha licença não vai tão
longe… Consinto só que Conceição passe lá alguns
dias, para não contrariar a vontade da mulher do Pavia, que é
tão boa senhora e tão amiga de beneficiar os que gostam dela…

– Então amanhã…- disse sorrindo engraçadamente Conceição
-, amanhã…

– Sim, menina, amanhã você pode ir visitar a sua amiga Claudina…

Conceição, que deixara o banquinho, aproximou-se da madrinha
e, mostrando o seu trabalho de crochet, disse:
– Veja, Dindinha, quanto trabalhei hoje, depois do jantar…

– Sim, senhora, hoje sim!… Tem bastante direito de ir passear amanhã…

– E noite, Dindinha, que eu na casa do sr. Pavia hei de fazer crochet…
não sou nenhuma preguiçosa…

– É assim que se deve ser… – falou sentenciosamente o marido de
Gertrudes.

Terminado este diálogo, apareceu na sala uma mulher alta, de vestidos
sujos, cara chupada, olhar doentio e triste. Era a nora dos dois velhos protegidos
do duque de Bragantina. Fora casada com um dos numerosos homens do serviço
do duque. Morrendo-lhe o marido, continuara na quinta, na residência
que fora cedida ao marido. Era ela que provia as necessidades domésticas:
cuidava atentamente de um filho, que lhe deixara o esposo, e de Conceição,
pobre menina de origem suspeita que, havia muitos anos, fora confiada sem
mais declarações àquele servidor do duque.

Naquela ocasião, a laboriosa mulher vinha convidar os sogros e Conceição
para o chá que estava servindo.

Conceição, muito satisfeita pela permissão alcançada
de passar dias fora de casa, correu diligentemente a fechar a janela e a porta
da sala, indo em seguida oferecer o ombro para apoio do avô, que se
erguia dificilmente da sua velha poltrona, ajudado pelos inválidos
esforços da idosa Gertrudes e de uma veneranda bengala.

Instantes depois, estava toda a família instalada na pequena sala
de jantar circulando a mesa de refeições.

Por esse tempo terminara o conciliábulo havido entre Inácio,
criado do duque de Bragantina, e o interessante Manuel de Pavia.

O criado se fora da residência de Pavia, e este, um quarto de hora
depois, saiu de casa também.

As noites escuras foram feitas para as empresas secretas. Pavia passeou
um olhar em torno de si e sorriu. Aquela escuridão convinha extraordinariamente.
Pena era que não se enfarruscasse o firmamento com os mais tempestuosos
vapores e se fizesse mais absoluta a treva…

Mas aquilo já servia…

Encaminhou-se para a esquerda, olhando para o céu, como se contasse
os astros. Soube-lhe gostosamente aquela contemplação. As profundidades
siderais apareceram-lhe na imaginação como uma grande bolsa
aberta para baixo a vazar tesouros.

As estrelas eram-lhe como uma chuva de pedras preciosas suspensas sobre
a cabeça. Tudo aquilo, cintilante, prometedor, parecia destacar-se
do infinito e cair para ele como a lúcida poeira das apoteoses.

E cada vez mais a imaginação fugia-lhe doida, para os espaços,
ávida de brilhantes, sedenta de douradas orgias.

Assim meditando, chegou Pavia ao lugar onde se achavam acumuladas as habitações
dos povoadores da quinta.

À entrada do beco estreito, de que temos falado ao leitor, o nosso
personagem parou. Espiou. A porta dos velhos estava fechada. Naquela ocasião,
ninguém havia pelo sítio; o beco estava escuríssimo.
A luz das janelas iluminadas não descia até o chão. Pavia
meteu-se no beco e foi cautelosamente colocar-se à porta da morada
dos velhos.

Escutou à fechadura. Na casa, não havia rumor notável.
Percebia-se apenas um sussuro afastado de vozes e certo barulho de talheres.

– Estão ceando ainda – disse Pavia a meia-voz.

Algum tempo passou. Fez-se então no interior da casa o ruído
de cadeiras arrastadas e de pessoas caminhando.

– Levantaram-se da mesa – murmurou Pavia.

Ao ruído, seguiu-se o mais completo silêncio. Uma claridade
brilhou no buraco da fechadura, denunciando que alguém acendera luz
na sala.

– O homem não se esqueceu… Não deve tardar em abrir a porta.

Enquanto assim pensava o nosso Pavia, sentiu-se como que um mover de ferrolhos
pela parte inferior da porta.

E a porta abriu-se.

Capítulo III

Entre os portais desenhou-se a figura encarquilhada do velho que o leitor
conhece, arrimado ao seu bastão, como uma ruína à sua
escora.

– Já está por aqui? – exclamou ele.

– Já aqui estou, sr. Januário… Não sou sujeito de
faltar às horas, nem aos compromissos…

– Entre, entre, sr. Pavia…

Pavia entrou e, amparando o velho, foi com ele tomar lugar num sofá
decrépito, que espreguiçava a sua idade e as suas palhas arrebentadas
ao longo de uma das paredes da sala.

Pavia rompeu a conversa:
– Estamos bem aqui?…

O velho compreendeu.

– Estamos – disse. – A família toda está-se acomodando lá
fora para os fundos… Foram deitar-se… Eu, que durmo aí nessa alcova
próxima, posso ficar na sala sem causar-lhes estranheza… Podemos
conversar… Um pouco baixinho… por prudência…

– Diga-me… o que conseguiu?
– Tudo.

– Então ela vai?
– Está morta por ir…

– Bem lhe disse eu que, quando você falasse na amizade de Claudina
e em passar alguns dias com a minha mulher, ela não se recusaria…

– Ah! os planos do sr. Pavia são sempre bem feitos…

– A Conceição di-lo-á daqui a dias…

O vento da noite barafustava pela porta e lambia as paredes da sala, fazendo
estalitar alegremente as flâmulas de papel pendentes. O fogo da vela
que clareava o lugar, agitava-se impaciente ao redor do pavio, dando uma luz
incerta…

– A menina – continuava Pavia – vai ser recebida na palma das mãos;
vai dormir num gabinete azul, todo cheio de cortinas transparentes, no meio
de perfumes que provocam sonhos… Ao amanhecer, será visitada por
minha mulher ou minha filha… Será vestida como uma boneca, penteada
como uma rainha… Sairá a passeio e tal… E o fim há de chegar
insensivelmente…

– Uma pergunta… se não é ousadia… – disse receosamente
Januário – mas o senhor desculpará… Sabe que eu quero bem
à minha afilhada…

– O que deseja saber?…

– O sr. duque…

– Que tem o sr. duque?
– É… é…

– É o quê?…

– … muito violento…

– Pelo contrário, é macio como pelica… É um pouco
ardente talvez, mas isso é quando já não há necessidade
do contrário… O homem sabe insinuar-se.

– Olha que a Conceição é viva como cobra… e ele…

– Não se arreceie… ninguém resiste facilmente ao sr. duque…
Ele tem um olhar que penetra e imobiliza… Não fala muito… Fitando,
ele faz mais do que falando… As crianças são tímidas
em geral… E a Conceiçãozinha é um pouco criança
ainda…

– Bem… eu faço o negócio com o senhor… não sei
se é coisa limpa… mas desde que à menina não resulte
mal…

– Deixa de partes, meu velho… vamos concluindo a coisa… Aqui tem o cobre…

O vento continuava a penetrar na sala, e as flâmulas de papel riam
com risadinhas de Mefistófeles.

Januário estendeu a mão magra, comprida, branca, trêmula,
e recebeu um embrulho de papel que Pavia apresentou-lhe. Não disse
palavra. Misturou apenas aos sulcos que os anos lhe haviam aberto na face
as contrações de um sorriso baixo.

– Veja se amanhã mesmo faz a Conceição aparecer por
lá…

– Já estava convencionado com ela… Há de ir…

– Apesar de tudo?…

– Apesar de coisa nenhuma… Quando conversamos, outro dia, sobre este negócio,
eu disse ao senhor que não havia obstáculo…

– Talvez haja…

– Que obstáculo?… Não vejo…

– A sua nora…

– Ah! ah! Aquela idiota?!
– Idiota?!… Você é muito velho, não é muito vivo…
Não sabe quem é aquela santinha de cara chupada e olhos de irmã
de caridade.

– Eu sei que ela tem seu gênio; mas não usa dele… No tempo
do marido, ela às vezes tinha seus arrebatamentos… Depois, tornou-se
completamente mansa. Aquele ar tristonho, que cobre-lhe a fisionomia desde
o casamento de meu filho, isto é, desde que eu a conheço, não
se modifica mais com as iras que lhe conheci há tempos… Atualmente
está branda, branda como uma idiota…

– Mau sinal…

– Por quê?…

– Tenho medo das mulheres tristes…

– Qual! a minha nora é mais idiota do que triste…

– Portanto a menina não falta…

– Não falta. O sr. duque não terá o desgosto de ver
perdida uma esperança do seu coração…

– Seria a primeira…

– Não será… pode o senhor ficar sossegado…

– Perfeitamente… Vou tranqüilo…

Continuava o riso mefistofélico das flâmulas de papel. E Pavia
levantou-se. Foi até junto da vela, consultou o relógio. Eram
onze horas mais ou menos.

– Ainda é cedo, murmurou.

E, voltando-se para Januário, que se erguera depois dele, disse-lhe:
– Até outra vez. Boa-noite.

O velho respondeu ao cumprimento, e viu-o mergulhar na escuridão
do beco.

Não havia ainda fechado a porta, quando sentiu-se agarrado freneticamente
pela gola do paletó:
– Miserável! – dizia a voz de uma mulher.

Essa voz tinha uma energia selvagem, e era ao mesmo tempo comprimida na
garganta de quem falava.

Januário sentiu o pescoço ferido pelas unhas de quem o prendia.
Puxaram-no. Ele perdeu o equilíbrio. Tentando agrarrar-se à
parede, abriu as mãos. A bengala escapou-lhe e caiu no soalho, ressoando
longamente pelos cantos da casa o rumor da queda. As mãos não
encontraram saliência na parede, a que se agarrassem. Foi lançado
ao chão. Arrastaram-no…

Quando o desgraçado pôde respirar, viu-se frente a frente com
a nora.

A terrível mulher o levara de rastos até uma cadeira, e ficara
em pé diante dele.

– Miserável… eu vi o que acabaste de fazer.

– Emília!… Emília!…

– Velho bandalho! Patife que estás apodrecendo debaixo desses cabelos
brancos… Ainda cometer crimes… Não te enforco…

– Emília!
– … não te sufoco entre os meus dedos, porque Deus te vai afogar
em breve na lama de uma vala… Quantas vezes vendestes tuas filhas?… Quanto
recebeu-te o negócio, velho desavergonhado?… Pois não repetirás
o comércio!… O que fizestes aos teus não farás aos
dos outros. Tinhas o direito de vender o teu; não venderás o
alheio!…

A nora de Januário falava com os punhos cerrados, perto da cara do
velho. As palavras saíam-lhe dos lábios faiscantes e caíam
chiando sobre a cabeça do sogro…

– Escute-me, Emília! – balbuciava ele. – Escute-me!
Mas Emília estava surda de ira.

Apenas vestindo uma saia curta e uma camisa larga, que lhe fugia pelos seios
abaixo; cabelos soltos, caindo-lhe secos pelos olhos e pelas costas; braços
nus, clavículas à mostra, em toda a fealdade da magreza e da
tensão dos músculos, aquela mulher fazia medo. Os impropérios
ferviam-lhe na garganta e elas os soltava sobre Januário.

O velho estava aturdido.

A atitude repentina e inesperada da nora fazia-lhe o efeito de muitas cacetadas
ao mesmo tempo.

Felizmente, a falta de resistência acalmou um pouco os furores de
Emília.

– Eu ouvi daquela alcova a negociação que fizeste com o outro
infame, aquele demônio barbado… Eu já esperava por essa entrevista.
Contava com a fatalidade. Cá, na quinta, corre tudo como num matadouro:
cada vitela tem o seu dia de ver o machado sobre a nuca!… Tu não
tiveste, miserável, um pouco de coração, nem um pouco
de vergonha… foste fazendo o negócio…

– É para o teu filho mesmo, Emília… o meu neto…

– Não digas… não digas… Meu filho não precisa do
preço de torpezas. Dá-me esse dinheiro, dá-me, desgraçado…
quero queimá-lo naquela chama… Estás ouvindo? Este dinheiro
nunca será para meu filho!
Januário apertava involuntariamente contra o peito o dinheiro que recebera
de Pavia e metera no bolso.

– Não mo dás? – vociferava Emília. – Guarda para tua
avareza. Come-o!… Quem vai perder é aquele demônio que saiu
daqui… Minha… minha Conceição não entrará
em casa dele!… Come o dinheiro, se quiseres…

E, bruscamente, da mesma maneira por que entrara, Emília retirou-se
da sala.

Capítulo IV

No meio do populoso arrabalde de Santo Cristo, abre-se uma espaçosa
superfície de terreno coberta de arvoredo e de grama, arrebicada de
quantos prodígios possui a arte e quantos esplendores a natureza pode
ostentar.

Há por aí florestas escuras por onde circulam virações
perfumadas, ricas de oxigênio e de poesia; avenidas de bambus por onde
fogem amores e murmúrios suaves de folhagens; cascatas e grutas que
têm por lambrequins os volumosos cones estalactíticos e por telhado
zimbórios de pedra e incrustações de cimento; a água
corre com a serenidade dos sonhos gostosos e vai insensivelmente passando
por sob o arqueado das pontes.

O sol brinca como um menino nesses lugares. Recreia-se brejeiramente no
alto do arvoredo, requeimando os brotos novos, e escorrega para o chão
a dar cintilações coloridas aos bichinhos e a aquecer os camaleões
vivazes e ariscos.

Se atira-se aos lagos, cobre-os de palhetas de luz; se passa pela pulverização
da chuva das cascatas, pinta arco-íris no ar e leva o dia na faina.

À noite… se não há lua, uma treva compacta, cheia
de aromas acres, penetra os balcedos e derrama-se pelos declives relvosos
que se vão espalmando para a beira dos lagos; formam-se pirâmides
sombrias no lugar das casuarinas e dos eucaliptos; avolumam-se negros maciços
nos bosquetes de mangueiras e nos cerrados de bambus. Todas essas negruras,
entretanto, têm vida. Quem alongar a vista pelas várzeas, distinguirá
sombras deslizando em segredo através da noite. Quem escutar a voz
das lezírias ao pé dos agrupamentos de árvores há
de perceber palavras que voam deliciosamente por entre as begônias.

Dos antros trevosos das grutas escavadas na pedra não partem rugidos
dos monstros apocalípticos das cavernas. De lá do fundo sobem
ruídos semelhantes aos da bolha de ar rebentando a flor das águas;
parece estar-se ouvindo o rumorejar de beijos. São umas trevas encantadoras
aquelas das noites sem lua, nessas paragens.

Se vem o luar… tudo se multiplica. Em vez de negrores, flutua pelo espaço
toda a transpiração da terra banhada de fosforescências
argentinas. A meia-luz deleitosa invade os recantos do jardim; passa devagarinho
como uma nuvem de sílfides por meio dos fustes das palmeiras, voa por
cima dos gramados, levando no vôo todas as borboletas notívagas;
estende as roupagens alvacentas por entre os renques de coqueiros; balança
indolências nos liames de cipó recurvado em festões; entra
nos riachos e mostra aos céus a sua nudez casta e branca.

A floresta goza uns estremecimentos sensuais, que passam-se em silêncio
como o adejar das corujas. Os poucos lampiões que se acendem por aí
parecem olhos fitando com inveja os poemas vivos que correm de todos os lados…

Também como nas noites escuras, estas noites claras do parque não
são vazias nem ermas. As ruas areentas, desenroladas como alvos tapetes
através do campo, não estão desertas. Há casais
passeando, com os olhos pregados no céu e os braços em amplexo;
as sedas roçam as casimiras, produzindo choques magnéticos da
eletricidade de Cupido.

Nos bancos, escondidos, à sombra recôndita de qualquer copa
frondosa, repetem-se episódios do paraíso.

A vida real desses lugares é verdadeiramente à noite. Os dias
se passam, radiosos, iriados, entregues ao sol e aos insetos; as noites correm
no meio da escuridão ou dos luares, entregues a Vênus e ao silêncio.

No âmago desse jardim vasto e delicioso levanta-se sobre um oiteiro,
como um templo antigo, o vulto monumental de um palácio. A luz das
auroras despedaça-se de encontro aos vidros de suas mil janelas, envolvendo-o
pela manhã numa atmosfera rutilante; os seus torreões empinam-se
vitoriosos no cimo de largas muralhas alastradas de heras, os seus pára-raios
vão espetar as nuvens como lanças enristadas para o infinito;
o seu todo é grande, imponente, majestático.

Muitas vezes, à noite, o palácio toma uma fisionomia fantástica;
ostenta as paredes de trevas e janelas de fogo. Supõe-se que seja um
incêndio. É um baile. Ao clarão de mil bicos de lustres
rodam nas valsas reputações e galanteios, marcham nas quadrilhas
temeridades e finanças…

Aí não mora Sardanapalo.

Esse parque e esse palácio pertencem ao duque de Bragantina. O duque
cede esses domínios aos prazeres da numerosa roda de fidalguia que
o cerca a todo instante.

É por isso que, quando o duque de Bragantina está ausente,
esmorece completamente a febre silenciosa e fecunda das noites da quinta.
Faltam os fidalgos.

Aos fundos do palácio, para a banda do norte, como sabe o leitor,
ficam as habitações da vassalagem imediata do duque. Aí
é que mora, pois, o velho Januário e sua gente.

Deixando a casa de Januário, Manuel de Pavia encaminhou-se para as
proximidades do palácio do duque. Não caminhava à toa.
Seguia devagar, mas com um destino certo.

Acompanhou a espécie de estrada margeada de espaçados lampiões,
que vai dar a um dos portões da quinta, junto do qual está o
famoso retiro reservado à jovem afilhada de Januário, mas, antes
de lá chegar, dobrou para a direita e em linha reta para o palácio.

Na linha dos muros que guarnecem a colina sobre a qual foi construído
o edifício, o excursionário noturno parou.

Examinou o lugar e murmurou:
– Não há ninguém… Mas é muito cedo… Ele não
pode ter chegado… Também não há pressa…

Pôs-se então a passear ao longo dos muros, muito preocupado
com ocultar-se na sombra que a elevação deles espalhava por
volta.

Por fim sentiu passos. As estrelas davam luz bastante para se ver o necessário.
Pavia distinguiu o vulto de um homem que se avizinhava.

Um vago sentimento de temor estremeceu-lhe o sistema nervoso. Aquele vulto
não podia ser ele.

Se não fosse ele, se fosse um inimigo, se Inácio o tivesse
traído?… Aquele vulto podia ser o espantalho de sua fortuna. A riqueza
fabulosa, que ali de cima mesmo, daquelas janelas, parecia sorrir-lhe nos
reflexos luminosos das vidraças que dominavam o muro, ia talvez fugir-lhe
por causa daquele homem…

Manuel de Pavia, que não era suscetível de medrosas palpitações,
ao menos dentro dos limites da quinta, sentia que o coração
abria-se-lhe em violentos diástoles…

– Aqui estou – disse o vulto a pouca distância.

– Oh, Inácio! – disse Pavia.

Capítulo V

Era , de fato, Inácio, o criado do duque, que o leitor viu no princípio
desta narrativa a conversar com Manuel de Pavia. O inescrupuloso arranjador
do negócio da Conceição conversara longamente com Inácio
a respeito de umas jóias do duque de Brangantina. A primeira das conseqüências
dessa entrevista era o encontro alta noite, à base dos muros que protegem
o torreão do lance esquerdo do palácio.

No ponto marcado, encontravam-se os dois.

Antes de darmos conta ao leitor do que se passou em seguida ao encontro
no lugar marcado, devemos informá-lo de uma circunstância de
alta monta.

Na rua. no. … há uma grande loja de ourivesaria. Três grandes
vitrinas de cristal abrem-se para o público, apresentando o mais ofuscante
e precioso conjunto de ouro e pedrarias que s e pode imaginar. Sobre luxuosos
lençóis de veludo de carregadas cores, amontoam-se incríveis
porções de esmeraldas, sem engaste, rubis, safiras, diamantes
espalhados como se fossem grãos de milho, mostrando com orgulho as
mais delicadas clivagens e as mais finas cintilações prismáticas
que a imaginação concebe.

No interior da loja, luzem pelas prateleiras os mais belos produtos de ourivesaria,
jóias de um valor inapreciável, fabulosas pratarias…

O dono desse Eldorado é um negociante forte.

Disfarçada, a um dos ângulos da loja, entre dois belos armários
de madeira preta recortada em flores, e luzidamente lustrada, existe uma pequena
porta que apresenta à vista o aspecto de um espelho encostado à
parede. Entra-se por aí para os compartimentos íntimos da loja.
Logo depois da porta, encontra-se um pequeno escritório, biombo de
madeira em volta, mobiliado por uma escrivaninha, algumas cadeiras e uma grande
burra sólida, pesada e impenetrável como um monólito
egipciano.

Coa-se para esse lugar a claridade de uma área próxima. A
essa luz frouxa escreve o guarda-livros da casa, agente de quase todos os
negócios do proprietário do estabelecimento e, nesse caráter,
homem da mais provada confiança para o ourives.

Enquanto este, trajando como um gentleman, saboreia preciosos charutos no
meio dos lúcidos efeitos das mercadorias do seu aristocrático
negócio, indolentemente arrimando os cotovelos aos caixilhos envernizados
dos mostradores, ou ao tapete escovado dos balcões, crivando de moderados
apartes a conversação entusiasta do grupo de políticos
seus amigos, que vêm todos os dias palestrar-lhe às soleiras…
no escritório por trás da porta de espelho, o guarda-livros
entabula as suas negociações.

Este empregado é um sujeito prático, inteligente, fino e,
além de tudo, tem um curso bem acabado de mineralogia. É de
pequena estatura, nervoso, tendências dominadoras, voz enérgica,
linguagem rápida, acompanhada de sons guturais, irônicos, significativos.
É feio de cara. Nariz fino, olhos pequenos e espertos, pouca barba.
Tipo, fuinha; espírito, raposa. Chama-se Aleixo de tal.

Em noite de 11 de março de 18… duas conversas importantíssimas
travaram-se na grande ourivesaria.

Junto dos mostradores a balava-se a golpe de alevantada retórica
o ministério do tempo. Muitas vezes estremeceram de susto os castiçais
de prata e as badejas, os tinteiros de ouro, as medalhas com as iniciais de
brilhantes, as pulseiras, os colares, os brincos, as abotoaduras, as alegres
fantasias… Eram os murros da eloqüência dos políticos
esborrachados sobre o balcão, por não poderem chegar à
cara de qualquer ministro ou chefe de partido contrário ao do orador.

Os circunstantes ou riam estrondosamente daquela energia caricata, ou protestavam
contra as asserções que se faziam.

No escritório do sr. Aleixo havia coisa mais interessante. Conversava-se
com tanto fogo como na loja; porém as palavras não faziam estrépito.

A pouca distância da escrivaninha, Aleixo prestava atenção
ao que dizia um sujeito moreno muito barbado de óculos azuis. O bico
de luz que alumia o escritório deixa-nos reconhecer o sujeito. É
o nosso Manuel Pavia, ligeiramente disfarçado. Ouçamos o que
ele diz:

-… Assim , vê o senhor que não haverá dificuldade…
Não há muito risco para mim em levar a cabo a empresa e nenhum
para o senhor em prestar-me um serviço que lhe dará tanto lucro.

Fez-se uma pausa, durante a qual se ouviu uma gargalhada sonora dos políticos
que discutiam na loja. Depois Aleixo começou:
– Disse-me o senhor que conta absolutamente com o auxílio de um criado
que reside no palácio… o duque vai ao baile, dorme, como costuma,
no palacete do marquês, vai depois, sem voltar ao palácio, para
a quinta de verão de Anatópolis. A duquesa acompanha-o, sem
levar, necessariamente, as jóias com que se apresentará no baile…
ficam as condecorações do duque, etc… Toda essa riqueza vai
provisoriamente para um armário antes de ser guardada definitivamente
na burra… muito bem… sabe que o particular do duque pretende aproveitar
a ausência deste para estar algum tempo com a família, que não
mora na quinta… não é assim?…

– Sim, senhor.

– E o senhor aproveita-se da ausência dele… Acha fácil a
coisa… Mas ainda não refletiu nas averiguações que
há de fazer a polícia…

– Já pensei, já pensei…

– Olhe que o negócio não é o mesmo daquelas jóias
que filaste à Milica, quando ela perdeu as graças do duque e
foi para a rua…

– Isso sei eu melhor do que o senhor – interrompeu Pavia, movendo o queixo
num gesto nervoso e impaciente. – Por isso, o senhor há de dar desta
vez mais alguma coisa pelas pedras do que deu pelas de Milica…

– Não seja esta a dúvida… a coisa é a polícia…
a polícia.

– Não morra de temores da polícia. Asseguro-lhe que ela não
fará coisa alguma… Se aparecer, perderá seu tempo. Ficará
nas interrogativas. Terá suspeitas apenas… Suspeitará de mim
como suspeitará de vários outros… mas suspeita nunca foi base
para uma condenação…

– Mas a casa que o senhor alugou na Tijuca é um indício…

– Como?… Se eu não me retiro da quinta?! Conservo-me nas mãos
da polícia até que ela se convença da minha inocência?!…
Quem será capaz de imaginar que as jóias roubadas estão
em casa de tal ourives… aqui em sua casa… Se alguém tivesse reparado
na minha entrada hoje aqui, e alguém notar a minha saída, se
as minhas barbas tivessem a mesma cor das que eu trago, se estes óculos
azuis fossem de meu uso… seriam indicações possíveis
à polícia, caso ela desconfiasse deste estabelecimento… o
que fora loucura!… Mas felizmente…

– Certamente tudo é favorável. Todavia, que lhe garante que
não haverá testemunhas no jardim do palácio?
– Isto é um caso possível, mas não é provável…
Quando o duque está fora… a quinta é pouco freqüentada…
Os que lá moram, recolhem-se todos e abandonam o parque… não
é provável… E se não houver testemunhas, se não
se encontrarem vestígios dos objetos subtraídos, o que se há
de fazer?
– É fato…

– Demais, eu estou convencido de que, se, apesar de todas as minhas precauções,
a coisa transparecer, terei por mim o duque, que não quer perder-me
e aprecia-me… A tal duquesa vota-me um ódio de morte… Talvez se
lembre de acusar-me, mas é uma velhinha que não tem voz ativa
na casa… Tem-me ódio, por ter ciúmes do marido.

O guarda-livros aplaudiu com a sua risadinha habitual e observou:
– Na verdade, se o senhor conta com a proteção infalível
da sua própria vítima, eu sou o primeiro a responder pelos resultados
da empresa…

– Deixe a coisa andar..

– Até desejo muito a sua felicidade, porque não sei se se
lembra de umas jóias que nos levou daqui, há dias, para uma
nova menina que andava em vésperas…

– Lembro-me. Ainda não as paguei, mas pago. Aí está…
Do dinheiro que o senhor me der, eu desconto…

– É exatamente o que queremos… é o que nos convém…

– Deixe a coisa andar… – brejeirou Pavia.

– E há de andar como um patim, estou certo…

– Mande, pois, uma pessoa de confiança, ou vá pessoalmente,
na noite de 13 para 14, esperar pelo resultado da minha campanha e pelas jóias…

– Hei de ir eu mesmo…

– Acho melhor assim… Não devemos envolver muita gente… nem todos
são discretos, e… não há também… tanta riqueza
que chegue para muitos… nada!… Se fosse possível irmos só,
os dois… dispensando auxílio de criados…

– Se são imprescindíveis…

– … não há remédio… – concluiu Pavia, estremecendo
o queixo, segundo o seu frenético costume.

Na loja, ressoavam ainda as exclamações dos conversadores.

– Estamos convencionados – disse Aleixo, como para encerrar os tratos. –
Depois d’amanhã vou postar-me onde… Ainda não me disse o lugar,
creio…

– É verdade… É preciso determinar um ponto.

– Mas, qualquer…

– No matadouro…

– Bem… Coloco-me junto de um dos pilares do portão… espero pela
sua chegada até o romper do dia… Vê que tenho boa vontade…
Avalio o tesouro com a honradez que sabe… e, conforme os valores, arranjo
um negócio muito ao sabor dos nossos interesses…

– É rigorosamente o que eu desejo.

Depois desta frase de Manuel de Pavia, seguiu-se um silêncio profundo.
Pavia, com os olhos cravados no chão, absorvia-se em meditações.

Passados alguns momentos, sorriu de um modo estranho e levantou o olhar
para o guarda-livros. Aleixo firmava a vista naquele honrado depositário
da confiança de um rico e poderoso duque, e assistia às cambiantes
de expressão que davam-lhe à fisionomia os arroubos da meditação.
Quando Pavia ergueu a cara, o seu olhar e o de Aleixo cruzaram-se faiscando
como os floretes de dois dignos adversários que medem distâncias.

Ambos os adversários, depois de se medirem, trocaram risos que traduziam
claramente a compreensão que tinham um do outro.

– Não devo sair enquanto estiverem aí esses maçantes…

– Eles não se demoram. Às nove, fecha-se a casa. São
oito e trinta e cinco… Daqui a pouco o patrão deita-os no meio da
rua…

– Quando forem fechar a porta, eu retiro-me… haverá menos gente
na rua…

Ouviu-se uma risada na loja. Aleixo deixou Pavia no escritório e
foi espiar à fechadura da porta de espelho.

– Já vão, já vão! – disse, voltando-se para
Pavia. – Não!… Ainda ficou um… Que ostra!… Ora, até que
enfim… Lá se foi o último! Se quiser sair agora…

– Já vou – disse Pavia.

– Portanto, até depois d’amanhã… portão do matadouro…
lá para uma ou duas da madrugada.

– Sim.

E Aleixo passou com Pavia para a loja.

Pavia despediu-se dele, cumprimentou ligeiramente o dono do estabelecimento,
que estava em uma porta a olhar para a rua com as mãos cruzadas sobre
as abas do fraque, e foi-se.

Capítulo VI

Três dias depois da conferência com o guarda-livros do rico ourives,
realizava-se o contrato de Manuel de Pavia com o criado Inácio, e os
dois cúmplices encontraram-se fora de horas para levar a efeito o projetado
roubo.

Certificado de que a pessoa que tinha em frente era na verdade Inácio,
Manuel de Pavia, com a voz comprimida por precaução, perguntou-lhe:
– Fez tudo o que eu lhe disse?…

– Fiz…

– Tem os formões? O macete forrado de pano? Tirou a corda que eu
deixei no meu jardim, perto da cancela?…

– Não esqueci nenhuma de suas considerações… Quando
saí de sua casa, fui à sala do armário, sem que se notasse
a minha entrada no palácio… O armário é muito fácil
de se arrombar, como bem me disse o senhor… A porta do jardim, abrindo-se
o trinco por dentro, não oferece resistência… Só mesmo
o seu dinheiro e as suas promessas poderiam fazer um sujeito depositar uma
fortuna daquelas em tal lugar…

Pavia riu-se orgulhosamente da observação de Inácio:
– Quando eu o aconselhei a ter toda a confiança em mim, bem sabia por
que falava…

– Pois eu, antes de ir deitar-me, abri o trinco da porta, certo de que o
particular do duque, não sabendo do imprudente depósito das
jóias, e apressado em ir dormir com a família, não se
demoraria a examinar… Fui deitar-me muito calado… Ainda há pouco,
saí do meu quarto, subi à sala grande, puxei a porta do jardim…
não custou muito… Deu um pequeno estalo que ninguém devia
ter ouvido… Aberta a porta, saí para o parque… fui ao seu jardim…
tirei a corda que estava escondida no mato e aqui está na minha mão…
Ah! ia-me esquecendo… Fui ali às obras que se estão fazendo
perto da entrada da quinta, apanhei este formão e este macete… Nessa
ocasião quase acordei um sujeito que ali dorme para vigiar as ferramentas…

– Guarneceu de pano o macete?…

– Aqui o tem preparadinho…

– Portou-se muito bem… Podemos principiar a coisa…

Os dois ladrões dirigiram-se, pé ante pé, para uma
escadinha de pedra que conduz a um jardim, graciosamente plantado sobre a
muralha junto da qual estivera Pavia esperando; saltaram uma pequena grade
de ferro; subiram a escada e foram até a porta do palácio, aberta
pelo criado.

A porta estava apenas encostada… Pavia empurrou-a e entrou. Inácio
entrou depois dele. A porta tornou a fechar-se.

A sala do palácio estava de uma escuridão impermeável.

O menor ruído provocava a ressonância imponente dos lugares
grandes e vazios. Os dois atrevidos criminosos sentiam-se impressionados com
aquela escuridão e aquela ressonância de catacumba.

– É preciso luz – disse Pavia baixinho.

As palavras, ressoando frouxamente nos ângulos da sala, zumbiram-lhe
aos ouvidos por muito tempo…

– Eu me esqueci da vela – objetou Inácio.

– Eu a trouxe…

E Pavia, como que temendo iluminar o seu crime, tirou com a mão trêmula
uma caixa de fósforos e uma vela de que se munira, mas hesitou em ferir
fogo…

– Não achou a vela? -informou-se o criado do duque.

-Achei… aqui tem… segure, para eu riscar o fósforo.

Inácio tateou pelo ar até encontrar a mão de Pavia
e tomou a vela. Pavia riscou o fósforo. O fósforo falhou.

– Diabo! Estou trêmulo…

Pavia riscou de novo. Riscou terceira vez. Toda a escuridão da sala
fugiu à explosão do fulminante.

Os ladrões tinham certeza de que aquela porção do palácio
devia estar sem viva alma. O particular do duque, que habitava um compartimento
vizinho da sala do armário, achava-se fora. Os criados alojavam-se
no pavimento inferior. Não havia, pois, quem ouvisse os rumores feitos
na sala.

Entretanto, quando a chama do fósforo brilhou, os bandidos estremeceram
como que de susto e lançaram instintivamente um rápido olhar
indagador aos quatro lados da sala.

Era um espaçoso aposento sem utilidade especial. Parecia servir apenas
de passagem para o jardim. Não tinha móveis ao centro. Filas
de cadeiras de grandes encostos, espichando para o teto uns florões
medievais, antigos como a genealogia dos Bragantinas, bordavam as paredes,
afetando altivamente a sua imobilidade nobre, estúpida, militar. Da
ombreira das portas desabavam reposteiros verdes, pesados como chumbo.

No ar pairavam cheiros de mofo e de pó; no teto, revoluteavam uns
dourados de mau gosto, como serpentes amarelas, enroscadas pelos estuques…
Pavia e Inácio viram que não havia, além deles, pessoa
alguma no lugar.

No fundo da sala, havia um grande armário envidraçado por
dois largos espelhos. Aí, estavam as desejadas preciosidades.

Pavia imaginava estar vendo as pedrarias estrelando o fundo de um bonito
cofre de madeira lavrada… ali ao alcance da mão.

Ao receio de uma surpresa sucedera um íntimo prazer avarento, à
vista de um montão de riquezas…

A vela refletia-se no espelho do armário… Pavia espantou-se…
Pareceu-lhe que havia gente lá dentro…

– Que poltrão! – disse ele -. Estou com medo de mim mesmo.

E os dois chegaram ao depósito do tesouro…

Estava ali o sonho… e não havia dragões a guardarem-no.

Os ladrões começaram.

Manuel de Pavia sabia que as jóias estavam num escaninho à
direita.

– Elas estão por aqui… Quebrar o espelho é fazer muito barulho
e… depois, a madeira é fraca…

Enquanto falava, Pavia bateu com a mão no ângulo direito do
armário como que avaliando a espessura da tábua. Pediu em seguida
o formão a Inácio, tomou o macete e encostou o corte do seu
instrumento no armário.

Começaram então umas pancadinhas abafadas pelo pano que envolvia
o macete… A sala enchia-se de sonoridades surdas como as de um tambor em
que se toca levemente.

O trabalho foi demorado.

Afinal, um grito alegre como a detonação de um foguete escapou
dos lábios de Pavia:
– Entrou! – exclamou ele com as feições alargadas na mais expansiva
satisfação.

Tinha entrado o formão.

Deste momento em diante, todo o trabalho consistia em fazer rachar-se a
tábua do arm&aacaacute;rio.

Pavia calcou sobre o formão como sobre uma alavanca. A madeira estalou…
Inácio substituiu a Pavia no trabalho; meteu as mãos na abertura
que o companheiro fizera e completou a obra.

Estava feita a passagem.

Manuel de Pavia apanhou a vela que o cúmplice deixara no soalho e
iluminou o interior do armário. Mal chegou a chama à abertura
do arrombamento, mil cintilações brilharam…

– O cofre!…

Os dois ladrões sentiram-se chocados. Toda a emoção
traduziu-se-lhes por um silêncio absoluto.

Inácio quis retirar o cofre… Pavia, com medo talvez de ser roubado
pelo companheiro, desviou-lhe as mãos do buraco do armário.

Inácio cravou-lhe um olhar afiado, terrível. Dir-se-ia que
passava pelo espírito do criado um meio muito simples de assenhorear-se
daquilo que o cúmplice queria para si.

Pavia tirou o cofre e, voltando-se para Inácio:
– Está feito o mais difícil! Agora convém… convém…
disfarçar a coisa…

– Será para isso que quer esta corda?
– Para isso mesmo!… Vamos abrir os trinchos de várias janelas para
se acreditar que houve descuido do fechador… De uma das janelas atiraremos
a corda por cima da hera da parede… Se houver indagações da
polícia, esta corda pode fazer uma embrulhada… A polícia é
estúpida… dirá que o ladrão veio de fora… tanto que
serviu-se de uma corda… A questão é achar onde se prenda um
nó… Vamos ver…

Pavia, seguido pelo companheiro, afastou-se do armário, sobraçando
o cofre e atravessou a sala em direção às janelas.

Abriram cuidadosamente algumas. Espiaram para fora e examinaram.

– Esta serve! – disse Pavia, à terceira janela aberta… – Não
dá para o jardim… E tem aqui um bom gancho…

Havia de fato no peitoril da janela um gancho de ferro, destinado naturalmente
a sustentar um globo de luminária. Não era forte, mas servia
para quem quisesse arriscar-se. E os ladrões arriscam-se.

Atando-se ao gancho a corda, era possível escorregar até embaixo
da muralha que sustentava o jardim, de sorte que parecia que os ladrões
não tinham passado pela porta da sala.

Pavia amarrou uma das pontas da corda e atirou a outra para o parque…

– Bem – disse depois. – Agora eu vou ver se ponho a salvo o cofre… Você
deixe cerradas estas três janelas… Feche cuidadosamente a porta, fazendo
entrar a lingüeta e prendendo os trincos… E… vá para o seu
quarto… Quando levantar-se… levante-se cedo como costuma… quando sair
da cama venha logo a esta sala e dê sinal de alarma, faça barulho…

– E depois…

– Eu respondo, pelo resto… Apareça ou não a polícia,
asseguro-lhe que não nos sucederá coisa alguma… Neste negócio
a polícia há de fechar os olhos… Você verá…
E, para tranqüiliza-lo de todo… Eu sou um homem indispensável
ao duque… Ele não me fará mal algum, por conseguinte não
fará aos meus companheiros de pândega… Fique sossegado…

E Manuel de Pavia, sempre como o seu cofre, saiu para o jardim, deixando
Inácio na sala. Quando este ia fechar a porta, o ladrão inclinou-se
para ele e disse, à meia-voz:
– Não haverá nada… O homem tem medo de mim.

Capítulo VII

Não tivemos ainda a honra, nem a ocasião de apresentar ao leitor
o milionário senhor da quinta de Santo Cristo, o sr.duque de Bragantina.

Agora que vamos encontrá-lo figurando ativamente nas meadas da nossa
narrativa, apressamo-nos em fazer a necessária cerimônia.

Atravessemos, embalados maciamente na arfagem sonolenta de uma barca a vapor,
as ondulações bonançosas da vasta e serena baía
de Paranaguá.

Galguemos a encosta daquelas montanhas alterosas, denteadas, que mordem
o firmamento ao longe. Penetremos os cerrados de floresta que aveludam de
verde o esqueleto rude, vulcânico, daquelas cordilheiras.

Quando estivermos perto daqueles vapores que vestem-se de ouro a romper
do dia e que choram sangue ao fugir da tarde: logo que sentirmos a frescura
invernal das serras penetrar-nos o tecido da roupa; quando sentirmos intensamente
o perfume da mataria a deliciar-nos o olfato, subindo das grotas no meio de
lufadas de nevoeiro como do fundo de enormes turíbulos… nessa ocasião,
atravessemos um olhar por entre os arvoredos, que havemos de lobrigar, estendida
no meio de um vale, no lugar onde devera existir antes a fita cristalina de
um regato, sorrindo aos ventos que a bafejam e às flores que as matas
atiram sobre ela, havemos de ver um retiro de prazeres, que se chama uma cidade.

É aí Anatópolis.

Um outro parque de Santo Cristo. Anatópolis é a continuação
da quinta do duque de Bragantina. Quando há muito calor no palácio
da quinta, o duque de Bragantina passa a baía de Paranaguá e
vai buscar refrigério em Anatópolis.

Ao tombar do dia ou pela manhã, um homem aparece, em tempos de verão,
a passear pelas arejadas ruas da cidade.

Vai todo de branco, coberto por um amplo chapéu de Chile, fresco
como o vestuário. É de uma estatura bonita e excepcional. É
velho. As barbas envolvem-lhe o rosto em flocos admiráveis de nevada
brancura. O rosto possui ainda uns matizes róseos de mocidade. Tem
os olhos pequenos e azuis e usa óculos, uns veneráveis óculos
de grossos aros de tartaruga.

Ao redor desse homem, apertam-se muitos amigos, desfazendo-se em cortesias
e obséquios.

Se a um destes o leitor perguntar quem é aquele velho, ele dirá
espantado:
– Oh, não conhece! É o senhor duque de Bragantina!
É o duque exatamente. Vai caminhando pela rua satisfeito, dirigindo
aos que o cercam gracejos e pilhérias, com a voz aflautinada que o
caracteriza.

Quando passa por alguma rapariguinha gentil que lhe sorri de uma janela,
ele faz-lhe um cumprimento bem desenhado, vai dissertando sobre um assunto
qualquer. Ou seja a explicação pela física da propriedade
que tem a água de molhar, ou a virtus dormitiva do ópio. Não
gosta dos assuntos transcendentais nem de objeções impertinentes;
discute para conversar, só para isso. E os amigos o compreendem, não
o contrariam.

Por alguns momentos de observação pode-se saber quem é
o duque de Bragantina. A roda de amigos que o envolve diz-nos que ele é
rico e poderoso; o cumprimento galante à rapariguinha da janela indica-nos
que ele é inclinado ao sexo das belas; a sua conversa mostra-nos, pelo
objeto, que ele gosta da ciência; pela dissertação, que
ele não a cultiva; pelo ar de imposição com que fala,
conhece-se que ele não admite obstáculo diante de si.

E tudo é verdade. Herdeiro do sangue orgulhoso de uma extensa cadeia
genealógica de requintada fidalguia , nasceu o duque da Bragantina
com todas as predisposições para o mando. Seu pai foi um cavalheiro
educado nas páginas dos Lusíadas; lera o poema dos lusos e decorara
o canto nono; daí a vida que levara de bravuras épicas e galantes
e fora um Leonardo que nunca deixara escaparem Efires.

Filho de tal pai e continuador de tais fidalguias, era impossível
que no caráter do duque de Bragantina não se fundissem os arrojos,
as sensualidades paternas com as arrogâncias da raça.

Na idade de quatorze anos, tendo perdido o pai aos cinco, depois de uma
educação viciada pela flexibilidade bajulatória de alguns
dos seus eduvadores e pela violência ofensiva de outros, que deram ao
menino uma duplicidade de gênio, ora arrogante para uns, ora humilde
para outros, começou a imiscuir-se o jovem fidalgo na gerência
da sua vida e dos seus haveres.

A fortuna do duque era colossal. Facilitava-lhe uma vida principesca. Conseguindo
libertar-se dos tais educadores impertinentes, viu-se o moço entregue
à própria natureza e às adulações dos seus
áulicos.

Brilhante correu-lhe a existência. Fortaleceram-se os sentimentos
despóticos que lhe haviam plantado n’alma as adulações
corruptoras dos seus primeiros mestres, ao passo que não desaparecia
o gérmen da falsidade que se criara da necessidade de iludir aqueles
a quem o duque temia em pequeno.

Qual foi a conseqüência?
A conseqüência foi que derramaram-se precoces as alvuras do encanecimento
por sobre a cabeça do duque; e, quando, em momento de rápida
meditação, o fidalgo se concentrava para fazer um exame de si
mesmo, reconhecia-se vazio dos recursos de que necessitava para apresentar-se
em rodas ilustradas, onde queria figurar, ao mesmo passo que, pensando na
vida, achava-se intimamente parecido com o retrato moral de seu pai que lhe
pintavam as tradições de família, exceção
feita das aventuras heróicas e dos rasgos de franqueza.

Por isso é que contavam à boca pequena uns episódios
grotescos do duque de Bragantina em várias sociedades científicas
e literárias, onde costumava apresentar-se; por isso, também,
o arrabalde de Santo Cristo ressoava surdamente com os boatos tímidos
das façanhas amorosas de certo homem de barbas brancas.

Por felicidade do duque ele unira a sua existência à de uma
generosa fidalga, que sabia amargar em silêncio todas as brincadeiras
do esposo e distraía-se dos sofrimentos domésticos, entregando-se
de corpo e alma à mais antiga prática da caridade para com os
que necessitavam dela.

Os moradores da pequena aldeia consagravam à duquesa uma verdadeira
adoração. Raro era aquele que não a tinha visto à
sua porta, indagando do estado de qualquer enfermo, aconselhando o uso de
um medicamento, ou dando disfarçadamente uma esmola…

Esta santa senhora esforçava-se por contrabalançar com as
suas virtudes os excessos do duque.

Em atenção a ela, algumas pessoas de consideração
permaneciam na roda perigosa do marido. Por essa razão, os amigos do
duque não eram todos da ordem dos alegres companheiros de passeio pelas
ruas de Anatópolis.

A estes, costumava o grande fidalgo dar a honra da sua companhia durante
o verão. Aos sábados, porém, vinha só, ou com
a duquesa, visitar a quinta de Santo Cristo.

Na época que começavam os sucessos da nossa história,
apesar do estio, não se achava o duque em Anatópolis.

Viera de lá por um dos sábados.

Tinha de voltar na segunda-feira e já o povo anatopolitano se preparava
para recebê-lo, entre regozijos e foguetes. Mas o duque, não
apareceu. Era uma grave contrariedade para aqueles felizes desocupados. Tinham
talvez de passar uma semana sem ver na rua a esplêndida e branca figura
do fidalgo de chapéu Chile.

Um desgosto para eles e um motivo de tristeza para a cidade.

Faltar aos seus habituais não era regra do duque. Pelo contrário.
Ele era o que se pode chamar a pontualidade em pessoa. A pontualidade, porém,
possui um sério inimigo que, aliás, não é incompatível
com ela: o capricho.

O duque era um homem caprichoso. Ainda uma conseqüência do servilismo
dos maus educadores.

Como homem caprichoso, não era de admirar que deixasse uma vez de
se apresentar em Anatópolis conforme o costume.

O duque de Bragantina tivera na verdade um dos seus caprichos.

Tinha dito na quinta que, depois do baile do marquês de ***, em cujo
palácio passaria a noite, iria diretamente a Anatópolis, sem
voltar a Santo Cristo. Um motivo qualquer ou mesmo motivo nenhum o fizera
resolver o contrário.

Parece que o capricho explicava-se por uma incumbência de que o duque
encarregara o seu íntimo Manuel de Pavia…

Por um motivo ou outro, o fato era que, no dia seguinte ao baile do marquês
de ***, às dez horas da manhã, subia o duque as avenidas do
palácio de Santo Cristo, contra toda a expectativa.

Nessa manhã, gravíssimas coisas se haviam passado.

O palácio do duque era um inferno. Uma atividade doentia se apoderara
da mordomia, da criadagem, de todos os que residiam no palácio ou na
quinta.

Viam-se os criados correndo pelos corredores. O particular do duque, que
saíra do palácio na véspera, fora chamado a toda pressa.
Os habitantes da aldeia situada ao norte do parque afluíam às
portas do palácio. Perguntava-se, procurava-se, indagava-se, discutia-se,
contrariava-se; havia exacerbações, impertinências, iras,
temores, dúvidas, interrogações.

O palácio era um inferno, dissemos.

Imagine-se.

Acabava de ser invadido pela polícia.

Haviam comparecido delegados, inspetores, a polícia toda, simbolizada
pelo ativo e enérgico sr. dr. Louro Trigueiro. A invasão do
palácio não se fizera, porém, em nome da lei, contra
a vontade de seus moradores. Muito diverso disso. As autoridades tinham sido
chamadas pela gente da casa.

Apenas assomou ao portão o duque de Bragantina, correram a ele, brancos,
lívidos de contrariedade, de receio e de indecisão, todos os
que estavam na quinta. O mordomo vinha tremendo como um gotoso; os criados
vinham pálidos como se caminhassem para uma guilhotina; o particular
não teve ânimo de apresentar-se. Ficou prostrado em um dos aposentos.

À frente da multidão, que foi encontrar o duque, notavam-se
o chefe de polícia e o marquês d’Etu, filho único do duque
de Bragantina.

O chefe de polícia era o dr. Trigueiro, a quem já nos temos
referido; o marquês de d’Etu era o proprietário de um belo palácio
no pitoresco arrabalde das Bananeiras e de numerosas coleções
de quartos para morada de pobres, às quais se dá geralmente
o nome de cortiços.

Se aludimos a estas propriedades do marquês é porque falar
no filho do duque de Bargantina, sem tocar nos tais cortiços, fora
deixar incompleto um retrato.

O marquês d’Etu era apelidado o príncipe dos cortiços
pela maledicência dos círculos aristocráticos. Em verdade
a mofa da alcunha era justiceira. O marquês era um produto abortivo
do tronco dos Bragantinas. Um gentilhomme profundamente bourgeois. Mas o seu
burguesismo dava somente para atribuir maior importância a uma conta
de açougue, com alguns tostões de menos, do que a quantos documentos
nobiliárquicos em regra fossem necessários para ligá-lo
à família dos Bragantinas.

Estes instintos de avareza não se enquadravam perfeitamente com as
orgulhosas liberdades do duque. Em razão disso, pouco aparecia o marquês
d’Etu na quinta do Santo Cristo. O pai e o filho não alimentavam estreitas
relações. E, só uma causa séria podia levar o
marquês ao palácio do seu ilustre pai.

Tinha, por conseguinte, uma importante significação a presença
do marquês em Santo Cristo.

Demais, o marquês, um homem de boas cores e militar que se gloriava
de alguns contestados mais brilhantes feitos bélicos, dirigia-se ao
encontro do duque com o rosto desfeito, o olhar desorientado e alguma umidade
lacrimosa pelas pálpebras. Pobre soldado!
O duque de Bragantina achou esquisito aquele bando de gente que se aproximava
dele.

Aquele monte de librés verdes manchadas de amarelo, botões
azinhavrados, sobrecasacas pretas, jaquetas rústicas; aquelas caras
amedrontadas, a maneira de andar daquela gente, a gesticulação
desesperada do marquês d’Etu, a presença extraordinária
deste fidalgo em sua casa, o ar atrapalhado, cheio de risos verdes, azuis,
brancos e amarelos do chefe de polícia… aquela multidão, aquelas
fisionomias, tudo tão fora do comum… Para um homem como o duque,
que vivia bocejando nos grandes salões e na monotonia dos dias da quinta,
aquele aspecto extraordinário causava um íntimo prazer. A curiosidade,
aguçada pela presença do filho, que havia muito não o
visitava, pela presença da polícia, pelo rebuliço daquele
povo à sua chegada, causava-lhe gostosas titilações no
espírito.

O duque, entretanto, amestrado proficientemente na arte de fingir, aparentou
simplesmente admiração.

– Que quer dizer esta revolução? – perguntou, como se falasse
consigo mesmo.

– Houve alguma coisa no palácio – disse, arregalando os olhos, um
amigo que ia ao lado do duque.

– Que há de ser, meu Deus? -murmurou assustada a duquesa, que seguia
apoiada no braço do marido…

Quem chegou primeiro foi o marquês d’Etu. À medida que adiantava-se,
o marquês precipitava os passos. Por fim, lançou-se para o pai,
gritando:
– Roubado! Roubado!…

O príncipe dos cortiços esqueceu-se de saudar a duquesa e
de apertar a mão do duque.

– Roubado! – exclamava, com os lábios esticados e o peito arquejante.

– Bom-dia, marquês! – disse-lhe friamente o duque.

– Roubado! – repetiu inconscientemente o marquês.

– O que explica a sua agradável presença em nossa casa?…
Então…

– Roubado! – insistia o príncipe.

– Acalme-se, marquês! – aconselhou pausadamente o sr. de Santo Cristo.
– Conversemos em primeiro lugar. Depois…

– Fui roubado!
– Prenderam o ladrão?
– Sr. duque.

– Oh! Sr. dr. Louro!… explique-me o motivo por que o vejo aqui hoje…
Que negócio de roubo é este?…

– Roubaram-me! – interrompeu, fora de si, o marquês d’Etu.

– Sr. d’Etu, tranqüilize-se, havemos de descobrir…

– Sr. duque – começou o chefe de polícia.

– Roubaram-me – cortou o marquês -, roubaram o anel de minha mulher!
– Conte, dr. Louro… – pediu o duque.

– Dr. Trigueiro, conte – repetiu o marquês.

– Dr. Louro, estou curioso…

– Dr. Trigueiro, estou desesperado…

– Ora, sr. marquês… – disse com impertinência o duque – sossegue!
Deixe-me conversar com o doutor chefe de polícia… Havemos de achar
o anel.

– Um anel de quinhentos mil réis!… – gemeu prolongadamente o marquês.

– Sr. marquês – disse o chefe de polícia -, as jóias
hão de se encontrar.

– As jóias? – interrogou o duque. – Então não se trata
só do anel do sr. marquês?
– De minha mulher! – corrigiu o marquês d’Etu, no seu tom lamuriante.

– Sr. duque, o negócio é muito mais grave – disse o chefe
de polícia.

O fidalgo coçou o queixo com o indicador, mergulhando a mão
nas alvas barbas e disse, distraidamente:
– Sim?!…

E, voltando-se para um criado, que estava por trás dele, perguntou:
– O cocheiro já entrou com o carro?…

– Como o sr. duque disse que queria subir a pé…

– Já sei… Já sei… Diga-me se ele já recolheu o
carro…

– Sim, senhor!
– Previna-lhe então para que não se esqueça de ver por
que está mancando aquele cavalo…

O lacaio fez uma continência e retirou-se apressadamente.

O duque, do alto da sua estatura, deitou majestosamente por cima da cabeça
dos circunstantes um vagaroso olhar para os gramados do parque verdejante
à luz da formosa manhã; depois de algum tempo, voltou-se para
o filho e para o chefe de polícia e disse-lhes muito friamente:
– Se o negócio é grave, é melhor conversarmos dentro
de casa…

O chefe de polícia, meio enfiado por ver o pouco caso com que o duque
tratava um negócio considerado grave pela polícia, teve de abrir
passagem para o senhor de Bragantina, que, havendo parado com a chegada do
marquês d’Etu, punha-se de novo a caminho para o palácio.

O príncipe dos cortiços, sempre exaltado e nervoso, teve de
interromper umas coisas que dizia vivamente o dr. Trigueiro, para igualmente
deixar seguir o duque.

Formou-se logo uma espécie de caravan imensa, que se foi alongando
na direção da morada do duque de Bragantina.

À vanguarda, caminhavam os senhores da quinta, o marquês d’Etu,
o dr. Louro Trigueiro, o mordomo do palácio e o amigo inseparável
do duque, o seu médico, o dr. Jassey. Seguiam-se dois delegados de
polícia, soldados, criados e trabalhadores e, no extremo da marcha,
um bando de mulheres, tagarelando muito, com uns filhinhos redondos e sujos
enganchados ao quadril e outros agarrados às saias.

Por cima da procissão, nadava um zumzum enorme e confuso.

O duque caminhava em silêncio, olhando tranqüilamente para o
arvoredo do parque, acompanhando com a vista as linhas caprichosas que as
andorinhas traçavam no céu. A duquesa, com a dificuldade própria
dos anos, aumentada pelos padecimentos, suspendia-se aos braços do
esposo e olhava para o chão, seguindo calada como o duque.

No pórtico do palácio a caravan dividiu-se: os que iam à
frente entraram no palácio. Os da retaguarda ficaram quase todos parados
em grupos, diante das escadarias do edifício.

Havia lacaios do duque, jardineiros do parque e moradores da aldeola da
quinta.

Falavam muito, mas à meia-voz, como em respeito ao palácio.

– Digam lá o que bem quiserem… Para mim, o ladrão das jóias
é gente da casa – afirmava uma mocetona robusta e feia, remexendo os
ombros e as gordas cadeiras…

– Eu também acho – concordava receosamente outra mulher de seus quarenta
anos, com as mãos cruzadas sobre o ventre e um lenço amarrado
à cabeça.

– Mas a corda da janela? – objetou de mau humor um lacaio.

– Ora, a corda! – replicou a mocetona. – A corda está lá porque
a penduraram!
– Quem pendurou? Não foi quem teve necessidade de subir pela janela
aberta?
– Ora qual, seu José, então de dentro não se podia atirar
a corda?… Até aquele nó que lá está, não
era possível que se desse, sem se achar muito à vontade debruçado
na janela.

– Mas quem lhe disse, sua bruxa…

– Bruxa… Olha lá, hein!…

– Quem lhe disse que o ladrão deu o nó, estando cá
embaixo?… Antes de dar o nó forte, ele atirou a corda, que é
bem comprida, passou uma das pontas por cima do gancho, deu uma laçada
com as duas porções, para a corda não escorregar; trepou
até o peitoril…

– É uma história muito bonita, é; mas eu não
acredito nada.

– Ao menos foi a explicação que deu o Inácio, quando
descobriu o roubo – disse um velho jardineiro, entrando na conversa.

– Eu não quero falar mal dos outros – replicou ainda a teimosa mocetona
– mas isto até faz desconfiar que um ladrão de fora havia de
saber onde estavam as jóias?
– Isto lá não – contestou a mulher de lenço na cabeça,
com o seu ar toleirão -, isso lá não… os ladrões
sempre sabem onde estão as coisas; a prova é que roubam… Isso
lá não
– Isso, isso, o quê, minha tola? – interrompeu a mocetona. – Você
não sabe o que está dizendo… Não se meta aqui…

– Ah! sinhá Chica, não seja tão malcriada com a gente…

– Pois eu tenho culpa de que você seja idiota?…

– Idiota, não!… Por causa de umas sirigaitas sem coração
é que a pobre da Emília está lá para morrer…
Todo o mundo também a chamava de idiota… mas eram os malvados…

– Ora, é muito boa! – tornou a sinhá Chica, pondo as mãos
na cintura como as asas de uma jarra. – É muito boa a Emília
estar atrapalhada com a sua tísica! Não sei como se há
de culpar os outros…

– Você não se lembra daquela vez que ela chorou por causa da
Conceição?…

– Pois a Conceição veio cá com desaforos comigo…
apanhou…

– É! É!… Mas se o seu Januário não fosse um
pobre velho, você não havia de fazer mal à criança…

– Vejam só!… ah! ah!… O seu Januário é o primeiro
a xingar a nora de maluca e a descompor a Conceição… Demais,
a Conceição não tem nada com a Emília… Não
é filha… Não é sobrinha… Ainda se eu desse no menino…

– Está bom! Está bom!… Não quero questões
com a senhora…

– Que me importa!…

Enquanto as duas mulheres discutiam a sua questão pessoal, em outros
grupos ainda se debatia vivamente o negócio do roubo.

A crença geral era que o ladrão das jóias não
viera do exterior.

Contra esta suposição protestavam, irritados, os lacaios do
palácio. Ninguém, todavia, deixava-se levar pelos seus argumentos
em defesa da classe, os quais se reduziam todos mais ou menos à história
da corda explicada por Inácio, o descobridor do crime.

– Nada! Nada! – diziam. – Como é que um ladrão da rua poderia
saber que o lacaio que saiu do palácio do marquês de ***, depois
da reunião, levava uma riquíssima porção de jóias?
E, caso soubesse, por que não lhe havia tomado o cofre, aproveitando
a falta de polícia de qualquer esquina sombria.

Capítulo VIII

A festa do marquês de *** terminara cedo.

Às onze horas, o pequeno número de pessoas, que tinham concorrido
a ela, começava a retirar-se.

Não tinha sido verdadeiramente um baile. Fora um pretexto para algumas
horas de alegre palestra.

Os vizinhos, acostumados àquelas breves reuniões do marquês,
não admiraram de ver cessarem antes da meia-noite os rumores festivos
das salas iluminadas do fidalgo.

Os duques de Bragantina não haviam faltado ao especial convite que
lhes fora dirigido. Mais ou menos às oito horas, apareceu na porta
da sala principal do marquês o senhor de Santo Cristo apertado na mais
rigorosa etiqueta. Ostentava no largo peito algumas das inúmeras condecorações
de que se fizera merecedor pelos auxílios pecuniários que largamente
distribuía.

Pelo braço, trazia a duquesa, séria, mas ricamente vestida
e enfeitada de jóias de fabuloso valor. Trazia um colar de diamantes,
cheio de enormes pedras de uma pureza incomparável, que constituía
o mais precioso legado da fortuna dos primeiros antepassados da duquesa.

Entre os outros adereços, havia um anel pertencente à duquesa
d’Etu, que se achava por um motivo qualquer na caixa de jóias da sra.
de Bragantina e fora por ela casualmente trazido.

Começou a festa. As moças dançaram. Cantou-se. Houve
excelente música e melhor palestra.

No fim de tudo, antes de se recolherem aos aposentos que lhes eram destinados,
o duque e a duquesa despiram-se das jóias que traziam.

A duquesa condicionou-as cuidadosamente em um bonito cofre lustrosamente
envernizado que o marquês forneceu.

Como o duque de Bragantina tencionava partir com a esposa no dia seguinte,
diretamente para Anatópolis, resolveu mandar as jóias para o
palácio.

Um criado de sua confiança, que o acompanhara à festa do marquês,
foi incumbido de as levar. O homem tomou o cofre, montou o cavalo e, às
11 horas e meia da noite, entrava no palácio de Santo Cristo.

Na quinta, já todos dormiam àquela hora. Apenas uns criados
conversavam à porta do palácio. O lacaio pediu-lhes que vigiassem
o cavalo, enquanto ia guardar umas coisas, e entrou no edifício.

Foi até a sala grande do lance esquerdo da casa.

– Vou fazer um grande favor, deixa estar – murmurou ele.

E com o cofre que lhe havia sido confiado, dirigiu-se para o armário
de espelhos, que se via na sala.

Na fechadura do armário via-se uma pequena chave. O criado deu-lhe
volta. Um dos espelhos deslocou-se.

– À direita – murmurou o lacaio -, à direita… segundo o
trato…

E colocou no canto direito da primeira prateleira do armário o preciosíssimo
cofre…

– Agora, corre por conta dele – balbuciou ainda… – A chave eu levo…
direi que não vi o particular, que é quem deve vigiar estas
coisas…

Assim falando, o lacaio trancou a porta e guardou a chave. Apagou em seguida
o gás e deixou a sala.

Ao sair do palácio, enfiava o pé no estribo do cavalo em que
devia voltar para a casa do marquês, despediu-se dos homens que estavam
à porta:
– Podem ir dormir… o sr. duque não volta hoje; vai amanhã
para Anatópolis. Boa-noite.

Os criados seguiram o conselho do companheiro e, quando o viram desaparecer
no escuro do parque, recolheram-se e trancaram as sólidas portas do
palácio…

Uma hora depois, só duas pessoas andavam acordadas por esses lugares:
Manuel de Pavia e Inácio.

No dia imediato à noite em que o leitor viu empenhados na sua empresa
criminosa os dois homens de serviço do duque de Bragantina, foi Inácio
a primeira pessoa que entrou na grande sala do armário.

A claridade pálida das cinco horas invadia o salão e iluminava
modestamente as paredes. Estavam três janelas abertas.

Inácio corre para fora, gritando:
– Três janelas abertas! – exclamaram espantados os dois criados.

– Não é isso só!… Vejam aqui o armário arrombado…
furtaram alguma coisa…

– Roubaram! Roubaram!
Mais outros criados se apresentaram.

– É preciso acordar o mordomo – dizia um.

– É preciso chamar o particular do duque que passou a noite fora
do palácio.

– É preciso! – afirmava fortemente Inácio. – É preciso
saber-se o que roubaram e quem foi o ladrão!
– Vamos acordar o mordomo.

– Chamem o particular.

Em poucos instantes, apresentou-se o mordomo assustadíssimo, metido
num enxovalhado robe de chambre de grandes ramagens cor de rapé, com
os olhos cerrados ainda pelo chumbo da soneira da manhã e a cara amarrotada
de quem não se lavou ainda.

O mordomo levantou-se para acudir ao chamado insistente de um criado, que
o fora prevenir de que tinham entrado ladrões no palácio.

– Oh! Como deixaram abertas as janelas? – gritou ele, dirigindo-se aos criados.

– Eu pensei que elas estivessem fechadas – respondeu Inácio com voz
um pouco alterada. – Demais, quem costuma fechar este lado do palácio
não sou eu… Quando examinei, as portas estavam encostadas… Esqueci-me
de ver os trincos…

A voz de Inácio, comovia pelo medo que ele tinha de se ver apertado
num interrogatório, foi-lhe útil, porque o mordomo supôs
que aquilo fosse receio de ser despedido.

– Pois você está arranjado, meu amigo… Devia ter examinado…
Está arranjado…

– Mas, sr. mordomo…

– Não sei… Você vai pagar caro o descuido.

– Olhem esta corda!… – gritou uma pessoa que fora procurar pelas janelas
vestígios dos ladrões. – Olhem a corda!
Todos, inclusive o mordomo e Inácio, correram para a janela.

– Os tratantes! – disse sem mais exame o mordomo. – Subiram por esta corda!
Que atrevidos!… E vocês não ouviram barulho?
– Nós dormimos lá embaixo… Além disso, os reposteiros
não deixam ouvir-se o barulho que se faz na sala.

– O que dirá o sr. duque?… – diziam todos olhando para a corda
que desaparecia pela hera da parede.

Aquele fato da escalada às janelas e do arrombamento do armário
incomodava extraordinariamente o mordomo. Não menos incomodados se
achavam os criados, certos de que seriam eles os responsabilizados…

Sem saber que resolução tomar, olhavam para a cara do mordomo.

O mordomo estava lívido.

– Ainda precisamos verificar o que é que os ladrões levaram
– disse o mordomo. – Só o particular poderá nos informar…
Foram já chamá-lo?
– Sim, senhor – responderam simultaneamente vários criados.

Como para confirmar esta resposta, fez-se uma grande bulha num aposento
vizinho e precipitou-se na sala, arquejante, o particular do duque.

Era um pobre velho de mais de sessenta anos, que estava desde longa data
a serviço do duque.

Sempre que este fazia qualquer viagem, o particular retirava-se do palácio
e ia passar algum tempo com a família, que residia no arrabalde de
Santo Cristo, a alguma distância da quinta.

Como o duque dissera na véspera que, da casa do marquês de
***, seguiria para Anatópolis, o particular, apenas o amo saiu com
a duquesa para o baile, abandonou o palácio e seguiu para a casa da
família.

Nenhum crime havia no procedimento do particular. A sua presença
na quinta só era necessária quando aí estava o duque.

E se, por um motivo qualquer, como, por exemplo, para guardar as jóias
que os duques mandassem da casa do marquês, a fim de não levá-las
para Anatópolis; se, por uma circunstância superveniente, ele
se tornasse necessário, um criado iria chamá-lo…

Um criado apareceu-lhe na porta, conforme fora previsto.

Infelizmente, o motivo do chamado era mui diverso de quantas hipóteses
pudera imaginar o particular.

– Entraram ladrões no palácio!… – foi o grito que o pobre
velho ouviu, ao acordar.

– Um criado está aí dizendo que houve um roubo no palácio!
– disse a pessoa que foi ao quarto desapertá-lo.

O particular saltou da cama, vestiu-se às pressas, desesperou-se
com a franqueza da sua idade, que não lhe permitia maior agilidade;
passou um pouco d’água no rosto e foi ter com o criado.

O criado contou a surpresa da manhã.

– Estou perdido! – exclamou o velho. – Estou perdido! Que confiança
poderá mais depositar em mim o sr. duque?
E, sem despedir-se dos filhos, que o cercavam fitando-o com os olhos espantados,
saiu para a rua.

O criado que dera a notícia afagou carinhosamente os cabelos em desalinho
das crianças, cumprimentou a assustada esposa do particular, dirigindo-lhe
algumas palavras tranqüilizadoras, e saiu em seguimento do velho.

O pobre homem, por um incrível esforço, vencia o peso dos
anos e corria como um desassisado para a quinta do duque…

Estava encantador o dia… Uma transparente manhã difundia-se no
ar. A perspectiva das ruas afunilava-se distintamente através da limpidez
da atmosfera. As casas ainda tinham fechadas as janelas, como se temessem
a inundação da luz. Sobre os telhados os gatos arqueavam a espinha
nuns demorados espreguiçamentos matutinos. No fundo dos quintais os
galos solfejavam a música risonha dos cacarejos. Nas árvores
dos jardins, pingava o orvalho das folhas. As chaminés começavam
a sacudir para o céu uns lenços diáfanos de fumaça
azulada. O estômago dessas casas acordava primeiro que o rosto. Pelos
passeios corriam criados e criadas levando nos braços cestos de compras,
enfeitados de molhos verdes de couves e franjas de cebolas; pelo céu,
corriam pedaços de nuvens com as bordas douradas pelo fogo da aurora.

Uma brisa sem rumo passeava à toa ao longo das paredes…

O particular do duque atravessava pelo meio de todo aquele admirável
amanhecer como atravessaria uma tempestade: possuído da sua idéia,
chegar ao palácio.

Andava sem ver, senão o chão que tinha de pisar.

As pessoas que estavam na quinta o viram passar apressado como se fosse
acudir a alguém que pedisse socorro. Eram moradores da aldeia e trabalhadores
do parque. Reconheceram o particular do duque e o acompanharam.

O particular subiu de um pulo as escadas do palácio e entrou na sala
do armário, na ocasião mesmo em que o mordomo perguntava por
ele.

Entretanto, o boato do roubo se espalhava, e toda a gente da quinta agrupava-se
sob as janelas encontradas abertas, ou procurava entrar no palácio
para ver com os próprios olhos o arrombamento do móvel.

– O que aconteceu, sr. mordomo? – perguntou o particular, logo que respirou…

– Veja este armário arrombado!
O particular sentiu que ia cair e agarrou-se ao armário de que se aproximara,
trêmulo, mais morto que vivo.

O silêncio dos circunstantes deixou que se lhe ouvisse um grito surdo:
– Roubaram as jóias!
O mordomo amparou o pobre homem:
– O que diz? – perguntou com susto.

– Roubaram as jóias!… Aqui é que elas se guardam, antes
de ir para a burra… Eu sabia que o duque ia mandar as jóias, como
sempre faz, quando vai com a duquesa a alguma reunião donde tem de
seguir para Anatópolis… A culpa é minha, que retirei-me do
palácio antes de receber o criado que devia chegar com as jóias…

Estas palavras, pronunciadas a meio pelo particular, deixaram todos aterrados.

– É uma desgraça! – repetia o mordomo. – É uma desgraça!
– Estou perdido! – clamava o particular. – Levaram o colar da sra. duquesa…
Vou verificar que jóias faltam na burra da coroa…

A burra chamava-se da coroa, não sabemos ser por ter na porta uma
placa em forma de brasões, se por guardar uma maravilhosa coroa do
duque cravejada de brilhantes, emblema da família Bragantina. Nessa
burra guardava-se o que os duques possuíam em ouro e pedrarias. Por
um dengue de vaidade fidalga estas riqiezas não se diziam pertencentes
ao duque ou à duquesa, mas simplesmente à coroa.

O particular, acompanhado pelo mordomo, foi ao gabinete onde estava colocada
a burra e examinou as jóias da coroa.

O resultado do exame foi desanimador. Faltavam os melhores adereços
da duquesa, faltavam diversas condecorações do duque, e entre
as jóias da marquesa d’Etu, que estavam guardadas na burra da coroa
talvez porque o marquês a considerava mais segura do que a sua, faltava
um rico anel de brilhantes…

O particular ficou atordoado. Aquilo era uma catástrofe. Quando ele
e o mordomo reapareceram na sala do armário, os criados viram-lhe os
olhos rasos de lágrimas.

Entristecia ver-se o pobre homem.

Estava desvairado; não sabia para onde voltar-se. Sofria como se
visse no remorso do seu descuido uns vigamentos de forca.

Ficou prostrado em poucos minutos, como se houvesse passado por uma crise
de febre.

O mordomo, que resistia melhor ao peso da responsabilidade que lhe cabia,
teve energia para tomar algumas providências.

Mandou imediatamente um recado ao palácio dos Bananeiras, narrando
a descoberta do roubo e pedindo ao marquês d’Etu que mandasse dizer
que procedimento devia ter em tais emergências; mandou outro portador
ao palacete do marquês de *** a fim de, no caso de não haver
ainda o duque partido para Anatópolis, dar-lhe notícia do ocorrido.

O primeiro portador chegou ao palácio com o marquês d’Etu,
que quisera acompanhá-lo.

O segundo voltou dizendo que o sr. duque resolvera, por se achar um pouco
incomodado, adiar a partida para Anatópolis, e estaria em Santo Cristo
antes do meio-dia. À vista disso, julgara inútil incomodar o
amo com a notícia.

O mordomo aprovou a iniciativa do criado, principalmente porque se achava
em Santo Cristo o marquês d’Etu e substituiria perfeitamente o duque,
para resolver conforme o caso exigia.

O portador que fora ter com o sr. d’Etu não pudera informá-lo,
por não saber das jóias que faltavam. Um terrível pressentimento,
porém, avisou ao príncipe dos cortiços de que ele também
fora vítima dos ladrões.

Mandou aprontar, com a maior brevidade, o carro, meteu-se nele, mal disfarçando
a meia toillette de manhã, e foi chegar à quinta de Santo Cristo
ao mesmo tempo que o portador que o visitara.

A entrada do marquês no palácio do pai foi como a de uma bala
na torre de um couraçado.

Sem encontrar degraus nem dificuldades, o marquês chegou à
sala do armário como que de um salto. Os que aí estavam, assustaram-se
com a sua entrada. Passou-lhes repentinamente pelo cérebro a idéia
de um assalto no palácio.

Não era, felizmente, coisa tão medonha.

Quando, depois de um estrondo, o reposteiro da entrada ergueu-se bruscamente,
não foi uma horda vandálica que invadiu o salão, foi
simplesmente o filho do duque de Bragantina.

– Roubaram-me alguma jóia? – exclamou ele, caindo sobre o mordomo
como uma onça.

– Sim, sr. marquês – respondeu o mordomo, com a voz tímida
e recuando instintivamente.

– Que foi?… – rugiu o marquês. – O que me roubaram?
– Um anel de brilhantes!
– Um anel de brilhantes! – explodiu o fidalgo.

– Sr. marquês!… – ponderou o mordomo. – É cedo talvez para
V. Exa. incomodar-se.

– Por quê?… Por quê?… – interrogou furioso o sr. d’Etu.

– Porque eu falo unicamente por suposições.

– Então como tem a ousadia?!…

– Perdão… mas, suposições bem fundadas…

– Explique-se! Não me enfureça!
– Perdoe-me, vossa excelência, se o desgosto…

– Diga-me por que são fundadas…

– São fundadas… porque os srs. duques, quando vão a alguma
festa, tencionando depois seguir para Anatópolis, sem retornar aqui
ao palácio, mandam, para guardarmos, as melhores jóias.

– E o meu anel?
– O anel de vossa excelência é das melhores jóias…

– E o que tem isso?…

– A sra. duquesa, tendo o levado, necessariamente mandou-o entre as jóias
que vieram ontem.

– Entre as jóias roubadas!… – bradou o marquês, dolorosamente.

Os criados continuavam enchendo a sala, como que esperando ordens.

O marquês, como se notasse repentinamente a presença deles,
voltou-se ex-abrupto e gritou:
– O que querem vocês aqui?
Os criados, movidos por uma só mola, baixaram um cumprimento e, com
a sua seriedade obediente e servil, afastaram-se de costas alguns passos,
saindo depois todos por um dos lados da sala.

O particular do duque, que estivera inertemente encostado a uma janela,
fugiu para o seu aposento.

O marquês ficou só com o mordomo, que já completara
o vestuário, deixando o robe de chambre.

O fidalgo teve, então, um acesso de furor. Começou a trocar
largas passadas pelo soalho como um andarilho mecânico a que se tivesse
dado corda.

– Roubado! – repetia. – Roubado!
Quando passou-lhe o acesso de raiva ambulante, o marquês assumiu um
ar de desconsolação:
– Uma jóia de tal preço!… É possível?!
Depois de ter respeitado por algum tempo o desespero do marquês, o mordomo
perguntou receosamente:
– Que acha V. Exa., que eu devo fazer?
O marquês não deu resposta imediatamente. Esteve abstrato alguns
segundos e depois perguntou:
– O que está dizendo?
– V. Exa. ordena que se chame a polícia?
– Ah! Pois ainda não chamou?
– Queria antes aconselhar-me…

– Ora, aconselhar-se!…

– Vou mandar chamar o chefe de polícia…

– Mande!… Mande!… Mande!…

O mordomo retirou-se. O marquês foi até uma das janelas da
sala.

O sol acabava de levantar-se e trespassava o arvoredo do parque com largas
lâminas de luz vermelha. Na espaçosa sombra que projetava o palácio,
estava muita gente olhando para cima, na direção da corda pendurada
ao gancho da janela.

O marquês olhou na mesma direção e descobriu a corda.

– Ah! – disse consigo. – Por ali subiram os miseráveis!
Depois voltou a vista para curiosos do parque e pôs-se a procurar involuntariamente
o ladrão naquela multidão. Cada cara embasbacada afigurava-se-lhe
a de um malfeitor disfarçado.

– Ah! Se o apanho! – murmurou.

E, tendo ouvido passos na sala, saiu da janela.

Era o mordomo.

– O chefe de polícia vem? – perguntou-lhe o marquês.

– Vai chegar em um momento.

– Bem. Veremos se esta polícia serve para alguma coisa.

– Creio que a polícia descobrirá tudo…

Passado algum tempo, um criado apareceu na sala e anunciou o sr. doutor
Louro Trigueiro, chefe de polícia.

– Diga-lhe que entre – mandou o marquês.

O criado retirou-se.

Impaciente, o sr. d’Etu deixou o mordomo e correu ao encontro do chefe de
polícia. Meteu uma cabeçada no reposteiro para não perder
tempo em afastá-lo…

– Vi! – exclamou involuntariamente.

Acabava de dar um encontrão em alguém. Do lado oposto do reposteiro
ouviram-se algumas pragas mal contidas.

As mãos de duas pessoas levantaram a mesma ponta de pano, e o marquês
esbarrou no chefe de polícia.

Não move tempo para explicações a propósito
da cabeçada.

– A sua presença é necessária aqui, sr. doutor.

– Sr. marquês -, respondeu graciosamente o chefe, para tudo…

– Houve um roubo no palácio!… Roubaram-me um anel, um anel, sr.
doutor!
– E muitas jóias do sr. duque – concluiu o mordomo, notando que o marquês
só se incomodava consigo.

– É grave – disse o chefe de polícia, abandonando o sorriso
cortês de que se revestira ao entrar, e tomando uma seriedade de Javert.

– Gravíssimo! – superlativou o marquês -, pois um anel!…

– E tantos adereços!… – emendou ainda o mordomo.

– Onde está o armário que disseram-me que se arrombara?…

O marquês e o mordomo mostraram ao Dr. Louro o arrombamento, as janelas
que haviam aparecido abertas, a corda…

– Um caso de roubo… – murmurou o chefe de polícia, diagnosticando
com uns ares de quem entende…

– De quem se desconfia? – interrogou ele, voltando-se para o mordomo.

– Sr. doutor, não quero aventurar…

– Eu desconfio de todos! – exclamou precipitadamente o marquês.

– Como não há criminoso apontado por sérias aparências,
vejamos os primeiros responsáveis… mas… antes disso… o sr. duque
de Bragantina partiu para Anatópolis?…

– Não, senhor, – respondeu o mordomo.

– Não partiu? – perguntou admirado o marquês.

– Não, senhor… O sr. duque resolveu adiar a viagem…

– Então já lhe comunicaram?… – perguntou o chefe de polícia.

-O sr. duque está em casa do sr. marquês de *** e como deve
chegar daqui a uma ou duas horas pareceu-me bom não incomodá-lo
com…

– Seria, na verdade, inútil… – concordou o chefe.

– Mas, antes da chegada do sr. duque, devemos… – começou o mordomo.

– Sim, devemos quais são os primeiros culpados de se haver dado o
roubo – concluiu pausadamente o chefe de polícia.

O mordomo ofereceu cadeiras ao marquês e ao sr. Louro Trigueiro e
conservou-se respeitosamente de pé.

O marquês sentou-se e cravou os cotovelos nos joelhos, apertando a
cabeça entre as mãos. Nesta posição conservou-se
imóvel.

O chefe de polícia, depois de refletir alguns momentos, olhou para
o mordomo, e, com uma toada de inquisidor, perguntou:
– Quem é o encarregado de guardar as jóias do sr. duque?
– É o seu particular…

– Onde são guardadas as jóias?
– As jóias da coroa guardam-se numa burra. Quando, porém, o
particular não vai guardá-las, à burra, são depositadas
provisoriamente naquele armário, que é lugar seguro; porque,
a não ser em caso extraordinário, só pessoas de confiança
têm estrada nesta sala…

– Que pessoas de confiança?…

– O particular, o criado Inácio ou o Joaquim que varrem e espanam
o palácio…

– São estes criados os encarregados do fechamento das janelas…
não é assim?
– Sim, senhor.

– Bem… Agora, diga-me: quem foi que guardou no armário, ontem à
noite, as jóias do sr. duque?…

– Foi um criado de muita confiança a quem, por estar com o amo em
casa do sr. marquês de ***, o sr. duque entregou as jóias e mandou…

– Este criado entregou as jóias ao particular?
– Não, senhor. O particular tinha saído do palácio, o
criado entrou e depositou, segundo o costume, as jóias no armário…

O mordomo não sabia se era exato aquilo que estava dizendo, mas,
como não queria manifestar descuido de suas obrigações,
improvisava conforme o mais provável. Involuntariamente dizia a verdade.

– Pelas suas supostas – disse o chefe de polícia, respirando largamente
-, eu descubro quatro pessoas responsáveis pelo crime…

O mordomo arregalou os olhos e ficou pálido. Imaginou-se no número
de responsáveis.

– Em primeiro lugar – enumerou o Dr. Louro -, o criado que guardou as jóias
no armário, sem prevenir ao particular; depois, o particular que devia
estar no palácio para receber as jóias; em terceiro lugar, os
dois criado que deviam ser mais zelosos para que não ficassem janelas
abertas.

O mordomo, muito satisfeito por não ter sido incluído no rol
dos responsáveis, perguntou apressadamente ao chefe de polícia:
– V. Exa. quer que eu chame essa gente?…

– Homem… eu hei de interrogá-los, mas desejo primeiro conversar
com o sr. duque; contudo parece-me que não seria mau trocar algumas
palavras com o criado que trouxe as jóias…

– Agora não é possível… O criado voltou à
casa do marquês de ***…

– Deve, portanto, chegar daqui a pouco com o sr. duque…

– Infalivelmente.

– … Eu esperarei pelo sr. duque – terminou o chefe de polícia.

– Ah! o meu anel! – suspirou o marquês na sua cadeira.

– Havemos de encontrá-lo, sr. marquês – disse o mordomo.

Nessa ocasião levantou-se o reposteiro de uma das portas da sala,
em um criado de libré apresentou-se anunciando:
– Está servido o café.

Capítulo IX

No movimento que abalou a aldeola situada nos terrenos da quinta quando espalhou-se
a notícia do roubo do palácio não tomaram parte os moradores
daquela casinha do fim do beco, onde já esteve conosco o leitor.

Apenas a velha mulher de Januário esticara o comprido pescoço
rugoso por uma janela, para ver qual a causa de tanto falatório, e
a jovem Conceição perguntara a uma companheira o que tinha sucedido.

Logo que tiveram uma vaga informação do sucesso contentaram-se
com isso. Havia em casa motivo de maior preocupação para eles
do que em todos os tumultos de fora.

Era o caso que naquela manhã aparecera gravemente enferma a nora
de Januário.

A pobre Emília padecia uma enfermidade que desde muitos anos aniquilava-a
lentamente.

Além da moléstia, uma dor violentíssima atormentava-lhe
o íntimo d’alma. A razão deste sofrimento era um mistério.

Tinham-na visto, um dia, os mais antigos moradores da aldeia, aparecer casada
com um criado do duque de Bragantina.

Já era aquela mulher triste e doentia.

Os anos que rodaram dessa época até os dias da nossa narrativa
não lhe furtaram mais que os últimos vestígios de beleza
e mocidade que ela trouxera.

Emília passava a existência mergulhada num eterno desgosto.

Tinha, às vezes, uns sorrisos que entristeciam a quem os visse.

Outras vezes, sem motivo aparente, cresciam-lhe as lágrimas nos olhos,
e a pobre Emília chorava como uma louca.

Acontecia isto, em geral, quando ela fitava a Conceição, a
rir infantilmente por qualquer coisa, ou a trabalhar muito animada na tarefa
de crochet que lhe marcava a madrinha.

Assim que Conceição percebia que estavam olhando para ela,
Emília voltava o rosto e disfarçava.

Na casa de Januário, pouca atenção davam ordinariamente
a Emília. O desespero com que ela se atirava ao trabalho fazia com
que a fossem considerando a criada da casa; e, como criada, tratavam-na. Emília
não reparava. Demais, que importava isso à viúva de um
criado?…

Como tratavam bem ao seu filhinho e Conceição, de quem gostava
muito, Emília aturava todos os desprezos com uma indiferen&cceccedil;a
dolorosa, sem reações.

Foi, por isso, extraordinário o movimento de furor com que a vimos
no princípio desta história acometer o velho Januário.

Com o ouvido atilado que ela tinha e a prevenção em que andava,
não lhe passaram despercebidos uns rumores suspeitos na sala, seguidos
do murmúrio de uma conversação em voz baixa.

Emília estava já na cama. Levantou-se e foi, nas pontinhas
dos pés, escutar o que se dizia na sala. Encostou-se a um dos portais
da última porta do corredor, e escutou…

Falavam dois homens.

Um, o velho Januário, o outro…

– O miserável… – murmurou ela com os dentes cerrados.

Foi ouvindo a conversa.

Trançava-se uma infâmia.

Emília sentiu o peito inchar-se-lhe de indignação.

– Vão infamar uma inocente! – murmurou tremendo.

Cada palavra daquela conversa entrava-lhe no coração como
um punhal em brasa.

Era horrível o que aqueles miseráveis combinavam. Um laço
de perdição para um anjo. Vendia-se a dinheiro a pureza de uma
criança. Um comprava como se fosse uma ave no mercado, e outro vendia,
como se a mercadoria lhe pertencesse. Não havia ali só infâmia;
havia infâmia e ladroeira. Tinha razão. O açougueiro não
consulta a vitela sobre as condições de venda. Torpeza. Não!
Ela não podia deixar de intervir…

A conversa acabou. Selaram-se as convenções e uma das partes
contratantes retirou-se, muito à vontade e satisfeita com a transação.

Emília não se conteve um instante. Ardendo em febre e em ódio,
atirou-se como uma harpia e agarrou Januário com as unhas…

Passou-se a cena violenta do nosso terceiro capítulo e Emília
retirou-se para o quartinho, onde dormia, jurando que não se havia
de fazer a vontade dos dois perversos.

Caiu na cama prostrada e soluçando. Um cansaço enorme acabrunhava-a,
conseqüência do esforço que provocara a revolução
da sua energia, por tanto tempo em letargo.

Sentiu ao mesmo tempo que o fresco da noite fizera-lhe mal.

Um calor intenso de febre escaldava-lhe o corpo. Emília estirou-se
os membros por entre os grosseiros lençóis da sua marquesa e
ficou a refletir na conversa que ouvira. Repassou na memória cada uma
daquelas frases, e a recordação causava-lhe estremecimentos
e provocava mais lágrimas.

No meio da escuridão do cubículo, ouvia-se-lhe o respirar
ofegante e os soluços convulsivos…

Quando clareou o dia, ainda não conseguira dormir um só instante.

Amanheceu abatida como uma moribunda.

Fez falta ao serviço da manhã. A mulher de Januário
foi ver o que ela tinha.

– Estou doente – respondeu Emília com voz cava e fraca.

A pobre mulher tinha as feições cavernosas como um rosto de
caveira. Estava lívida e profundamente acabrunhada. Nos olhos, entretanto,
havia uns reflexos vítreos, contrastando com o amortecimento do corpo.

A mulher de Januário não pôde conter um movimento de
contrariedade.

Doente Emília, ficava-lhe o peso do serviço e ela era tão
velha… Ah! Tinha Conceição… Mas Conceição
estava atualmente destinada a outro serviço absolutamente indispensável…
o diabo!… Era necessário tirar Emília da cama quanto antes!
Por isso é que a moléstia da nora preocupava mais a mulher de
Januário que o roubo do palácio.

Conceição tinha uma simpatia especial por aquela mulher a
quem o vovô e a Dindinha chamavam de nora e tratavam como escrava. Achava
docemente atrativa a tristeza eterna de Emília. As almas ingênuas
agradam-se facilmente das almas tristes. No meio de sua alegria gárrula,
involuntária, constante, tinha sempre um sorriso especial para suavizar
a tristeza dolorida de Emília.

Demais, além da simpatia, tinha motivos de gratidão.

Lembrava-se que, desde muito pequena, sempre recebera afagos daquela mulher.
Notava que só era acariciada quando não havia testemunhas e
que, quanto mais ela crescia, tanto mais raros eram os testemunhos de amizade
que lhe dava Emília. Contudo, sentia que era a mulher triste a única
que amava-a, verdadeiramente.

Quando soube que Emília havia amanhecido incomodada, correu a visitá-la.

A prostração da doente comoveu-a em extremo.

Conceição não pôde conter as lágrimas
e sentou-se junto do leito a contemplar entristecida o semblante de Emília.
A atitude da mocinha desgostou cruelmente a enferma.

Conceição viu-a voltar-se na cama e apertar o rosto nas dobras
de um lençol. Pareceu-lhe que Emília chorava desesperadamente.

Naquela ocasião, Emília e Conceição achavam-se
sós no quarto.

A mulher de Januário, atribuindo à fraqueza o incômodo
de Emília, fora preparar-lhe um caldo.

– Está chorando, mamãe?! – exclamou Conceição,
debruçando-se por cima do leito de Emília e cingindo-a entre
os braços. – É por minha causa que chora?…

Como que as exclamações de Conceição causaram
um prazer dulcíssimo a Emília!
A nora de Januário descobriu o rosto e enlaçou com os ossos
descarnados dos braços a cinturinha elegante da donzela.

– Não estou chorando, pobre criança! – disse. – Veja que estou
me rindo…

No semblante cadavérico de Emília havia realmente a luz doce
de um sorriso, misturando-se às mais ardentes lágrimas em iriações
de uma alegria celeste…

Foi um abraço longo…

Emília sentia como um transbordamento do coração, apertando
contra o peito aquela mocinha.

Conceição reparou que nunca estivera tão alegre a nora
de Januário.

Orgulhava-se generosamente de ter causado tanto prazer.

– Já não chora mais? – perguntou, sorrindo, à doente.

– Agora estou ficando boa… – respondeu Emília, que, depois do abraço,
ficara segurando a mão da moça.

Conceição deu uma risadinha graciosa e acariciadora:
– Ah! Está ficando boa com o meu abraço?…

– Foi um santo remédio! – disse sorrindo a doente.

Na verdade era sensível o bem que aquela expansão de amizade
fizera a Emília. A voz tornou-se-lhe mais forte e mais clara, um fortalecimento
geral percorreu-lhe os músculos.

Quando a mulher de Januário entrou com o caldo no quarto, achou Emília
sentada na cama.

– Já está boa, Dindinha! – gritou-lhe Conceição.

– Sim, senhora! Isto sim! – disse a velha com um carinho fingido. – Beba
este caldo e saia a passear, que daqui a pouco está boazinha que nem
eu…

Emília tomou o caldo e, meia hora depois, estava fora da cama, a
andar pela casa, um pouco fraca ainda, porém, sentindo-se mais disposta.

Todos julgaram na boa e Emília mesmo sentiu-se sem a opressão
do peito, que tanto a atormentara durante a noite. Tirou da cama o filho e
foi à cozinha ajudar a velha sogra, que, por uma grande generosidade,
tomara a si a parte mais pesada do serviço daquele dia.

Não fora só Emília que havia passado mal a noite. Januário
apenas pôde conciliar o sono pela madrugada. Levara a pensar na agressão
inesperada da nora.

Lembrou-se das palavras fatídicas de Manuel de Pavia, quando dissera
que tinha medo das mulheres tristes. Depois começou a esgravatar nos
recantos do seu velho cérebro uma razão para o procedimento
da nora.

De fato. Emília não mostrava grande amor à Conceição.
Ao menos ele nunca a vira fazer-lhe agrados… Emília não gostava
que Conceição a chamasse de mãe, e, afinal de contas,
a rapariga não passava de uma enjeitada, trazida para casa pela generosidade
de seu filho…

A que vinha a raiva daquela jararaca triste, por um negócio que não
lhe dizia respeito?…

Dava que pensar…

E Januário pensou toda a noite; e a madrugada veio surpreendê-lo
a pensar ainda…

Por isso acordou-se muito tarde.

Quando abriu os olhos e lembrou-se do acontecimento da véspera, julgou
que tivesse sido vítima de um pesadelo. Depois de levantar-se, vendo
na gaveta o dinheiro recebido de Pavia certificou-se de que foram muito reais
os trambolhões que lhe dera a nora.

Ao sair de sua alcova mastigava nas desdentadas gengivas um plano de vingança:
mandar incontinenti a rapariguinha à casa do Pavia…

– Hoje vosmecê levantou-se muito cedo, meu garoto – disse-lhe a mulher
em tom de chacota. – São horas de almoço….

Capítulo X

Entretanto no palácio, recolheram-se os duques aos seus aposentos…

Num espaçoso salão que abre as janelas para a escadaria do
edifício ficaram o marquês d’Etu, o chefe de polícia,
o dr. Jassey e todos os que haviam chegado com o fidalgo de Santo Cristo.

Ao retirar-se, o duque de Bragantina, com certa desatenção
ostentosa, atirara-lhes uma única palavra:
– Esperem…

O marquês de d’Etu fez uma interessante careta de desgosto, como achando
a pílula amarga.

O dr. Louro Trigueiro sentiu o rosto crescer de despeito e olhou com uma
expressão idiota de enfiado para os que o cercavam. Aquela palavrinha
magra, de entonação feminina, com um som desafinado de requinta,
causou-lhe cólica. Torceu-se o amor-próprio do chefe de polícia,
torceu-se a avareza do príncipe dos cortiços.

– É assim que este homem trata os negócios graves… – murmurou
insofridamente o dr. Trigueiro, dirigindo-se ao marquês.

– Que quer?! É poderoso!… – responde este, batendo o pé
com impaciência.

O dr. Jassey e os outros adivinharam as frases dos despeitados e trocaram
entre si uns sorrisos cruéis.

O marquês devorou-os com o olhar.

Muito tempo esperaram, reunidos, dizendo pequenas palavras, mascando, surdamente,
impaciências. Quando acharam demais, dispersaram-se pelo salão
e cada um foi para a sua janela contemplar o parque em falta de outra distração.

Os pássaros recreavam-se ao belo sol da manhã, pulando de
galho em galho na ramagem dos pés de magnólia, dando gritos
miúdos e batendo céleres as pequenas asas pardas; os beija-flores
passavam como agulhas cintilantes, riscando no ar um trilho de faíscas
coloridas, ou pairavam imóveis violando lubricamente o nectário
das rosas.

E a gente da sala bocejava, menos o marquês, que se desesperava em
silêncio, fungando significativamente, e o dr. Louro, que, descansando
os cotovelos num peitoril, olhava abstrato, engolfado na estupidez da mais
bovina resignação às agruras do seu cargo.

Entretanto, a chamado do sr. duque de Bragantina, um homem viera ao palácio
pela entrada dos fundos. Barafustara familiarmente até os íntimos
aposentos do duque e fora encontrá-lo no seu gabinete.

Merece especial descrição esse compartimento do palácio.

É uma pequena sala de quatro portas, uma em cada parede, das quais
duas comunicam com o museu e a biblioteca do duque e as outras com o quarto
de dormir e uma sala de espera, por onde se passa para as peças anteriores
do edifício.

Tem um aspecto extravagante. As paredes são forradas de papel cor
de borra de vinho, semeado de grandes desenhos da mesma cor, porém
desmaiada, com uns traços de ouro a esmo. Sobre as portas desdobram-se
espessos reposteiros da cor sombria do papel. Há pouca mobília:
uma grande mesa de escritório pesada e firme sobre quatro bojudas pernas
feitas a torno, uma cadeira de braços girando em parafuso sobre uma
sólida tripeça, formada por três garras de leão
em feixe, duas outras cadeiras comuns, um armário envidraçado
e uma longa espreguiçadeira almofadada de peludos coxins com umas depressões
marcadas pelo seu uso freqüente.

Sobre a mesa amontoam-se papéis de várias naturezas, jornais,
livros; no meio, está uma escrivaninha de prata, com a coroa e iniciais
do duque gravadas num medalhão, algumas canetas deitadas sobre ganchos
de descanso e um lápis vermelho entre as canetas.

Em cima das pilhas de papel vê-se uma caveira denegrida pela idade;
não tem a maxila inferior e crava a dentuça proeminente no papel
sobre que se acha, rindo-se com as cavernas da face como uma estátua
irônica da morte.

No meio dos papéis da mesa há um pequeno folheto de capa amarela,
de que se pode apenas ler metade do título:

… OS DIVINOS.

Pouco acima da mesa, há diversos papéis suspensos por uma mãozinha
dourada: o primeiro que aparece tem este curioso e terrível dístico:

A DESMORALIZAR

seguido de uma lista de nomes. Inimigos do duque.

Em um dos ângulos do gabinete há dois ganchos. De um deles
pende uma enorme coleção de jornais de todos os títulos;
do outro ainda uma coleção de jornais, mas ilustrados com caricaturas.
O mais visível apresenta a crítica dos episódios de uma
viagem, em que o viajante cai muitas vezes da cavalgadura.

A luz do dia entra maciamente pelo vidro fosco de uma clarabóia no
meio do teto, e abre um cone de branda claridade por cima de tudo, desde a
caveira tétrica, que lembra o pulvis es, até a preguiçosa
com os seus coxins deliciosos amassados, como parece em convulsões
de gozo.

Fora do alcance da luz mais forte, clareados, apenas pelos reflexos que
sobem do chão e pela difusão do dia, circula pelas paredes do
gabinete uma fileira de retratos, entre os quais se vê um todo envolvido
em crepe finíssimo, através do qual se divisam as lindíssimas
feições de uma distinta moça.

Neste aposento, estava constantemente o duque, quando se achava em Santo
Cristo.

Gostava do seu gabinete. Ali ficava à vontade. Ninguém penetrava
naquele recinto senão o seu particular e um único criado. A
própria duquesa havia muitos anos que não visitava o gabinete.
Em compensação, algumas fidalgas da intimidade do duque, e consideradas
por ele, conseguiam, de vez em quando, espiar o misterioso aposento…

Manuel de Pavia também ali aparecia freqüentemente.

Naquele gabinete, onde o grande duque ocultava os maiores dissabores e os
seus prazeres medrosos, afogado em eterno crepúsculo, no meio do qual
se passam idílios cheios de sorrisos e beijos, furores, cheios de imprecações
e ameaças, ouviam-se muitas vezes diálogos interessantes travados
entre o duque de Bragantina e o seu íntimo Manuel de Pavia.

Foi a uma destas entrevistas que compareceu Pavia, chamado pelo duque.

Pavia pediu licença por formalidade, à porta que dava para
o museu, e foi entrando.

– Sabe para o que o chamei? – perguntou o duque com uma voz complacente.

– Suponho que sei, sr. duque…

– Deve saber… Lembra-se da sua promessa?
– Perfeitamente… Garanti que hoje começaria e de fato comecei.

– Conseguiu?
– As suas ordens são executadas sempre, sempre, apesar de tudo…

– Adiei a minha ida para Anatópolis, com o fim de vê-la hoje
mesmo – disse o duque, sem olhar para Pavia.

– Ela estará em nossa casa para receber…

– Vou visitá-la à noite…

– Quando queira… As portas estão abertas para V. Exa. a qualquer
hora…

Manuel de Pavia se tinha conservado de pé, a alguma distância
do duque. O fidalgo falava sem virar-se. À última palavra de
Pavia, fez girar a cadeira sobre o parafuso e voltou-se de frente para o íntimo.

Pavia, quando se dispunha a pedir licença para retirar-se, viu-o
franzir a testa em rugas horizontais. O duque ia fazer alguma pergunta. Pavia
esperou, prevendo alguma coisa grave.

O senhor de Bragantina, depois de um instante de reflexão, dirigiu-lhe
um olhar atravessado e perguntou de modo irresistivelmente inquisitivo:
– Que história de roubo é essa que tanto barulho tem feito hoje
nesta casa?…

– Da burra?
– Creio que não; ali não entra qualquer mão como numa
gaveta e…

– Já sei… Não seria do armário, onde as jóias
ficam às vezes?
– Naturalmente… Não tenho certeza, porque até a pouco estive
em casa e, só quando vinha para aqui, me deram a notícia…

O duque soltou uma pequena risada, levantou a cabeça sorrindo, e
encarou o íntimo. O olhar do fidalgo foi como uma sonda até
o fundo da alma de Manuel. O íntimo sentiu um arrepio correr-lhe pela
espinha dorsal, mas afrontou heroicamente o olhar e sorriso do seu amo. Dir-se-ia
que na pele morena do rosto quebraram-se-lhe esse sorriso e esse olhar, como
duas lanças numa couraça.

– Então, sr. Manuel, o senhor não me pode informar…

– Dentro de um minuto, posso alcan…

– Já sei… E se eu lhe disser que você, desde ontem, sabe
de tudo?
– Desde ontem?… Não compreendo o que V. Exa. quer dizer…

– Eu quero dizer o que disse… você, desde ontem, sabe de tudo…

– Juro que… nem vi chegar o homem que devia trazer do palácio do
sr. marquês de *** as jóias…

Nova risada esperta do duque.

– Não vejo motivos para o sr. duque supor que eu minto…

– Ora… ora… Eu bem sei que você é a criatura mais santa
que o céu cobre…

– Lá isto, nem o sr. duque… – aventurou Pavia, entre sorrisos.

O senhor de Bragantina não deu ouvido à insolência açucarada
do seu servidor…

– Pois eu digo que o sr. Manuel de Pavia, meu veterano confidente de segredos,
sabe de tudo, desde ontem e, mais ainda, sabe onde estão as jóias
desaparecidas…

– V. Exa. me chama simplesmente de ladrão…

– Ladrãozinho só – pilheriou o duque.

– Ladrão! – murmurou Pavia, afetando-se penalizado.

– Então, meu Pavia, você pensa que eu não o conheço?
– Se o sr. duque me conhece, por que deposita confiança num ladrão?…

– Num ladrãozinho – retificou o duque, no tom de chacota que assumira.
– Depositei confiança em você, porque… é preciso que
haja gente para tudo…

– O sr. duque fala de mim como um limpador de esgotos…

– Quase…

– Mas, sr. duque, perdoe-me a pergunta… Não tenho sido o maior
fiel servidor de V. Exa? Não tenho buscado sempre satisfazer aos seus
desejos? Não me tenho dedicado ao serviço sem olhar perigos?
Cegamente, devotadamente… Não tenho até amargado vergonhas
por causa de V. Exa?… Quem será capaz de prestar-lhe os meus serviços
com maior limpeza e habilidade?
– Já sei!… Já sei! Mas a que vem isso?
– São títulos à confiança que mereço…
Demais, quando roubei? O que tenho roubado?
– Ora, Manuel, cale esse bico… Você canta muito bem, mas não
me ilude com os trinados… Lembre-se que eu não o conheço de
ontem… Diga-me lá que você é um bom servidor… diga-me
que sabe tratar as avezinhas como um temível caçador… que
o seu emprego o expõe a vergonhas e sovas; diga-me enfim que os moleques
dão um nome feio à gentinha preciosa de seu ofício…
deite todas as cantinelas; mas não me pergunte o que roubou!… Você
sabe que sou rico e não me enfureço, como o marquês meu
filho, porque os ratos dão no saco de farinha… O que você tira
eu dou-lhe de presente… não brigo… mas não quero que se
faça de ingênuo… guarde a ingenuidade para enganar as meninas
tolas… não a gaste comigo… Quando quiser saber o que tirou contra
a vontade do dono, pergunte pelo piano da duquesa, pergunte pelas jóias
de uma mocinha…

– Sr. duque, o senhor está cobrindo-me de insultos…

– Deixe-se de fingimentos, Manuel… Se estas coisas o ofendessem, você
não seria o mesmo homem e eu saberia desde logo que você não
servia para o emprego…

– Se tem necessidade de mim, aceite-me tal como sou, porém não
me lance em rosto.

Pavia falava queixosamente, mas deixando entrever a ponta de uma ameaça.

– Eu o aceito tal e qual… Não pretendo reformá-lo, acredite.
Quero apenas mostrar que o conheço profundamente… E, por isso, garanto
que você sabe onde estão as jóias…

– Fui eu, então, o ladrão?…

– Você o disse…

– Sr. duque, vejo-me forçado a retirar-me do serviço de V.
Exa.

– Quem o força?
– A minha honra…

– Palhaço! – exclamou o duque sorrindo de pouco caso. – Honra de…

– Todos têm sua honra, sr. duque… não é privilégio
dos fidalgos, que aliás muitas vezes fazem dela vestimenta de gala
para os dias de festa…

– Escute, Manuel, com paciência e não recalcitre. Quem se mete
n’água tira a roupa. Cada um prepara-se conforme as exigências
daquilo que vai fazer. Eu bem sei que todos têm amor à vida,
entretanto, quem quer o soldo e as medalhas de campanha põe de parte
esse amor. Todos têm sua honra, é verdade. Mas há serviços
que não se dão bem com ela. A roupa não deixa nadar;
a honra impede…

– À vista disto… Sou mil vezes pior que um limpador de esgotos…

O duque abriu uma gargalhada, que concluía brilhantemente a argumentação
desenvolvida contra o íntimo, e que caiu-lhe no rosto como uma bofetada.

Manuel de Pavia não se indignou; considerou-se apenas derrotado pela
lógica e não repetiu a palavra honra.

– Você deixará o meu serviço… para fugir… não
por…

– Fugir! – gritou Pavia seriamente zangado. – Fugir!
– Não me fale alto… Isto não lhe pode servir… A polícia
não está longe de nós…

– E eu tenho medo de polícia? Se o sr. duque quiser, denuncie-me!…
Entregue-me!
– Baixo…

– Falarei bem alto!
Pavia estava exaltado:
– O sr. duque entrega-me à polícia, mas eu entrego-o ao público.
Contarei as suas vergonhas… Partilhei-as, conheço-as todas como cúmplice,
mas eu não tenho um nome; o sr. duque não se acha no meu caso!
Não terei escrúpulos por mim. Apontarei uma por uma as suas
amantes; narrarei as caçadas; darei conta das minhas incumbências;
lançarei à rua os mistérios do meu ofício como
quem faz um despejo. Cairei na lama, mas terei a satisfação
de salpicar com o baque a sua coroa de duque…

Venha a polícia… Hão de acorrentar-me os punhos e os tornozelos,
mas ninguém me soldará os lábios! Vossa Excelência
aponta-me à polícia, eu aponto-lhe as suas misérias íntimas…
Fui comparado ao homem dos esgotos… pois o esgoto não cheira a rosas…
eu arranco-lhe a tampa! Contra a justiça que os duques compram a peso
de ouro, eu oponho somente uma força: a minha língua!…

Pavia bateu com o dedo numa pontinha de língua que lhe saiu por entre
os dentes, ameaçadora como um punhal sangrento:
– O sr. duque faça o que entender – concluiu pesadamente.

Durante a enxurrada de ameaças de Manuel, o duque guardou uma serenidade
enigmática, profunda. Tendo-se voltado para a mesa, pusera-se a coçar
o bigode, fitando sem atenção as órbitas vazias da caveira,
que lhe ficava em frente.

Quando Pavia calou-se, o duque começou, sem mostrar ressentimento,
como se as palavras do íntimo não tivessem sido dirigidas a
ele:
– Por mais que você fale, Manuel, por mais que se esforce, não
poderá dar me uma nova amostra do que você vale. Remexa, revolva
e excrete tudo o que tem de asqueroso nessa cabeça e nesse coração,
que eu só direi no fim: é exatamente o meu Manuel de Pavia!…
Então supõe que quando eu o achei com cara de servir-me, não
sabia perfeitamente que você se havia de acreditar poderoso, por conhecer
a minha vida secreta?! Não pense, entretanto, que eu o julgo estúpido…
É muito canalha para sê-lo… A razão das suas ameaças,
eu bem sei, é a esperança que você tinha de amedrontar-me
com um escândalo… Isto prova que você não me conhece…
Você não sabe que um duque de Bragantina não pode ter
medo de um lacaio? Está vendo aquela lista de nomes ali… na parede?
São os tolos que se lembram de meter-se no meu caminho… cada um deles
conte-se como um homem esmagado. Pois, se eles não têm força
para resistir-me… um criado muito reles é que… Olhe, Pavia, no
dia em que a minha latrina se revoltar, eu mando meter-lhe o machado nas tábuas…

A calma de esfinge com que o duque falava, fazia um efeito terrível
sobre Manuel de Pavia. O íntimo caíra subitamente da sua alucinação
ameaçadora. Como que sentia na nuca o peso do calcanhar do duque. Por
baixo da tez morena espalhou-se-lhe uma fugitiva palidez de medo.

Pavia, que falara numa postura declamatória, inclinou para o chão
a cabeça e curvava-se como se se fosse pôr de joelhos. Não
achou réplica para as palavras do duque.

– Sabe – concluiu o fidalgo, aproximando das sobrancelhas o couro cabeludo,
num ríctus formidável que ele possuía para os momentos
de amedrontar -, sabe, Manuel, para que serviram as suas ameaças vis?…
Valeram uma denúncia… Verificou-se a minha suspeita… O ladrão
das jóias… é você!…

As últimas palavras do duque foram pronunciadas secamente, rapidamente,
pesadas como a fórmula de um veredicto, o tom feminino da voz transformou-se-lhe
nuns sons enérgicos, agudos, penetrantes.

Pavia reuniu o que lhe restava de coragem, e arriscou:
– Sr. duque, juro…

Não pôde continuar.

O duque levantou-se e cortou-lhe a palavra:
– Siga-me! – disse-lhe.

Pavia considerou-se perdido. Lembrou-se de confessar o crime e pedir perdão,
lembrou-se de correr pela porta do museu e saltar de uma janela para fugir
da quinta. Mas não era possível. Faltavam certas providências
que ele não tomara, por não prever uma tão positiva e
inesperada acusação. Demais, uma espécie de magnetismo
fatal o impossibilitava de escapar.

– Siga-me! – repetiu fortemente o duque.

Pavia seguiu-o. E os dois saíram pela porta que dava passagem para
a frente do palácio.

No seu gabinete privado, entre aquela caveira secular e aquela preguiçosa
lasciva; nesse aposento recatado, que era ao mesmo tempo gruta sombria e casta
de monge, pelo crânio, e alcova perfumosa e brilhante de harém,
pelos coxins; ali, à vista de Sócrates e de Epicuro, o duque
de Bragantina criou um tribunal por sua conta e condenou Manuel de Pavia.

Veremos o peso desta condenação.

Depois da sua longa ausência, reapareceu o duque aos que haviam ficado
à espera, sem dar-lhes explicação nem pedir desculpas…

– Graças a Deus!… – disse o marquês d’Etu ao ouvido do chefe
de polícia, vendo entrar o pai.

Logo em seguida ao duque apareceu Manuel de Pavia.

Todos se espantaram com isso. O que significava a presença daquele
indivíduo?
O duque explicou:
– Sr. dr. Louro – disse ele dirigindo-se ao chefe de polícia -, entrego-lhe
este homem. Tenho sérios motivos para mandar prendê-lo. O senhor
há de conhecê-los em breve. Prenda-o, e cuidemos de verificar
quais são os culpados do roubo das jóias.

– Sr. dr. delegado – disse o chefe de polícia, voltando-se para um
dos delegados presentes -, queira levar este homem para a detenção.

– Sr. doutor, mando vir o carro celular…

– É inútil! É inútil! – interveio o duque com
a sua vozinha fina. – Nada de escândalos aqui em casa… Qualquer carro
serve… Garanto-lhes que o preso não tentará fugir… Ele sabe
que, se quiser fugir deita tudo a perder… pode levá-lo em qualquer
veículo…

– A vontade do sr. duque será feita – respondeu o delegado, curvando-se
como um homem polido e como um lacaio.

Encaminhou-se para Manuel de Pavia:
– Está preso! – disse, pousando-lhe a mão no ombro.

Vendo-se preso, o íntimo do duque de Bragantina não reagiu.
Não lhe passara sem reparo o modo singular por que o duque pedira sua
prisão. Refletiu que não estava de todo perdido, como se supusera
um momento.

– Das duas, uma – pensou ele. – Ou o duque, apesar de todas as basófias,
tem medo da minha língua, ou pretende entrar em negociações
comigo, certo como está de que sou eu o ladrão do tesouro. Em
qualquer dos casos, estou muito bem. Deixemos a coisa correr… Demais, as
delícias que lhe reserva a minha conquista da Conceição,
hão de fazer-lhe pensar em mim… Não há perigo… A
menos que o Inácio ou o outro faça alguma asneira comprometedora.

O duque se afastara de todos que o haviam rodeado quando entrou na sala,
e conversara em voz baixa com o chefe de polícia.

Manuel de Pavia, em tom de súplica, pediu ao delegado que perguntasse
ao duque se permitia que ele fosse despedir-se da família.

O delegado perguntou. O duque voltou-se para Pavia, fitou-o longamente com
um olhar cheio de desafios, e disse:
– Vá…

E falando ao delegado:
– Não o perca de vista. As despedidas hão de ser feitas em sua
presença, embora dando-se ao preso a liberdade de dizer o que quiser.

O delegado e Pavia retiraram-se do palácio.

Em frente à escadaria já não havia a multidão
que aí estivera a dar de língua a propósito do roubo.
Pouco e pouco, cada um se fora para sua casa ou para seu trabalho, jurando
consigo mesmo que o ladrão das jóias era um criado qualquer
do palácio, talvez mesmo aquele que havia dado com o roubo e tanta
bulha fizera com a descoberta.

A maliciosa mocetona gorda, que não dera crédito à
famosa explicação da corda, deixara todos irem, e ficara perto
de uma das colunas do edifício a conversar com um lacaio que vivia
namorando-a. Queria ver que valor tinha um palpite que lhe viera à
toa.

– Neste negócio – dissera ela – anda alguém um poucochinho
maior do que um criado. Tenho para mim que toda essa baralhada vai acabar
em muito segredo ou em muita porcaria…

O lacaio, encantado pela voz do seu ídolo, nem pensou nas palavras
pronunciadas.

Logo que a mocetona viu sair Manuel de Pavia acompanhado de um delegado,
não quis fazer a menor indagação; gingou grosseiramente
com os ombros e disse entusiasmada ao seu idólatra:
– Então?!… bem eu dizia, bem eu dizia!…

O lacaio, derretido com aquele arrebatamento, revirou uns olhos idiotas,
de namorado…

Capítulo XI

O chefe de polícia deu ao duque informações de tudo
quanto sabia, inclusive a descoberta de um formão e um macete forrado
de pano, pertencentes a uns operários, que trabalhavam pelas proximidades
da quinta. Os operários, não achando as ferramentas, e ouvindo
falar de um arrombamento no palácio, vieram ter com o mordomo do duque.
Antes mesmo que tivessem contado o furto de que haviam sido vítimas,
apareceu um criado e apresentou o formão e o macete, declarando que
os havia apanhado no parque, exatamente abaixo das janelas amanhecidas abertas.

Soube assim o senhor de Bragantina a desagradável surpresa de Inácio,
encontrando três janelas abertas no salão do armário e
o armário arrombado; as providências do mordomo, o susto do particular
e a sua prostração subseqüente, a chamada do marquês
d’Etu, a fúria do príncipe dos cortiços, a chamada do
dr. Louro Trigueiro, as indagações a que procedera na qualidade
de chefe de polícia…

Soube mais: que dessas indagações o chefe de polícia
concluíra a existência de quatro culpados, aos quais não
interrogara, por não querer adiantar-se muito na diligência,
sem primeiro entender-se com o duque.

– Andou muito bem – aflautinou o fidalgo -, seria uma imprudência
de sua parte adiantar-se muito em um negócio que só a mim diz
respeito…

– Perdão – ousou contestar o chefe de polícia -, a V.Exa.
e à lei…

– Ora!… a lei, alei… Está-me agora o senhor com a lei, como certo
sujeitinho que eu conheço, com a honra… Quer saber o que é
a lei? Dux prudens imperat, disse não sei que escritor latino, creio
que Anabasis; o capitão prudente manda; também já vi
um político traduzir: O poder é o poder… Pois isto é
que é a lei… Quem pode, alisa-lhe a barriga… Cá para nós;
a lei nunca me preocupou… Não me fale muito, nessa senhora…

O chefe de polícia, abafando uns pequenos protestos das suas recordações
da artinha, deu uma risadinha amável de quem sabe viver, e concordou
tacitamente.

Deste modo terminou a conversa particular do duque com o dr. Louro Trigueiro.

O marquês d’Etu estava frenético, porque o duque, apresentando-se
na sala, não fora imediatamente consolá-lo da desventura de
haver perdido um anel de brilhantes.

Consolou-se um pouco, vendo o duque em seguida à conversação
que mantivera em voz baixa com o chefe de polícia, mandar chamar os
quatro indivíduos a quem se atribuía a responsabilidade do roubo.

O primeiro que apareceu foi o criado fiel a quem tinham sido confiadas as
jóias, em casa do marquês de ***.

O criado veio tranqüilo, como se o houvessem chamado para dar uma ordem.
A sua fisionomia calma arredava toda a suspeita de que aquele homem fosse
cúmplice de um ladrão.

– Sr. duque, sr. dr. chefe de polícia – disse ele gravemente, com
uns gestos de homem de sociedade – quando me foram entregues as jóias,
dirigi-me incontinenti para aqui. O meu cavalo veio depressa. Reparei bem
que ninguém deu atenção à minha carga. Mesmo as
ruas estavam quase ermas… Aqui chegando, procurei o sr. particular para
dar-lhe o cofre. Não o encontrei. À vista disso tranquei por
minha conta as jóias no armário e voltei imediatamente à
casa do sr. marquês.

– E o que fez da chave do armário? – perguntou o dr. Trigueiro.

– Levei-a comigo e hoje, quando aqui cheguei, acompanhando o sr. duque,
entreguei-a ao sr. mordomo.

O mordomo que estava presente afirmou a veracidade do fato.

– O que diz o sr. dr. chefe de polícia deste depoimento? – perguntou
o duque, examinando o semblante do funcionário.

– O que diz V.Exa.?
– Digo que é a garantia da inocência deste homem em todo o negócio…

– Também o digo…

– E acrescento: que patenteia a culpabilidade do particular…

– Realmente… conquanto me pareça que o lacaio podia ter ido à
casa do particular, parece-me também que este não devia faltar
à hora do serviço…

– Sim, senhor! Houve incúria excessiva… Há motivo de grave
suspeita… Ele há de ser preso.

– Será!… – reforçou o dr. Trigueiro fazendo salamaleques…
– E será!…

– Agora, ouçamos aquele marmanjo – disse o duque, olhando para a
porta da sala que dava para o interior.

Acabava de aparecer um criado de grande estatura; reforçado, figura
de tambor de porta-machados. Era Inácio.

Parou diante do duque, com um estremecimento nervoso agitando-lhe os dedos.
Estava impressionado.

O chefe de polícia, graças ao faro do ofício, começou
a desconfiar daquele sujeito.

O duque tomou a palavra:
– Quem foi que ontem fez o fechamento do lance esquerdo do palácio?
O criado titubeou dois segundos e respondeu com uma voz trêmula:
– Eu…

– E por que deixou abertas as três janelas?
– As janelas estavam cerradas… supus que os trincos estivessem corridos.

– Supôs?… Devia ter verificado…

– Devia! – disse o chefe de polícia.

– Devia!… – gritou o marquês d’Etu, que acompanhava com grande interesse
o interrogatório…

– Suspeito muito desse descuido… – falou o senhor de Bragantina.

– Eu também… – ajudou o chefe de polícia, como quem diz
ora pro nobis.

– Também eu! – tornou a gritar o príncipe dos cortiços.

– Sr. dr. Louro – disse o duque -, este criado deve ser detido como suspeito…

– Assim me parece…

– Assim deve ser… – afirmou o marquês d’Etu. – Já disse ao
sr. Trigueiro que desconfio de todos; desconfio muito particularmente deste
senhor e do tal particular, que nem ânimo tem de apresentar-se.

Em seguida, o chefe de polícia ordenou a prisão de Inácio,
confiando-o à guarda do delegado presente e disse que estava livre
o primeiro criado interrogado.

Pouco depois de Inácio apresentara-se o criado Joaquim, encarregado
como ele pelo fechamento do palácio. Como, porém, o serviço
do lance esquerdo não correra por sua conta na véspera, foi
inútil interrogá-lo.

Chegou a vez do particular.

O velho sexagenário entrou na sala. Tinha os olhos injetados ainda
de choro. O seu andar era trôpego como se houvesse sofrido um acréscimo
de dez anos de idade..

Todos os que se achavam no lugar sentiram no peito um pancada de compaixão.

Ser-se severo com aquele homem era uma crueldade!
O particular encaminhou-se trêmulo, cambaleante, para o duque.

Ia pedir perdão. Ia declarar-se culpado, mil vezes culpado, arremessar
aos pés do amo toda a sua grande existência de atenções
contínuas para com ele; fazer dos seus cabelos brancos tapete para
todas as iras do fidalgo, rastejar no chão, chato como a humildade,
não para que o não punissem, punissem-no duramente; mas, para
que o duque de Bragantina perdoasse a ofensa que lhe fizera a sua incúria.

O particular tinha pelo amo uma veneração que tocava as raias
do amor.

Este sentimento começara pela gratidão de um coração
profundamente, infantilmente terno. Fora recrudescendo com o tempo, e era
então uma espécie de apaixonamento doentio. A vida que levava,
fácil e passiva, concorrera muito para este estado de espírito.
Desagradar ao duque era coisa que o horrorizava. Imagine-se as torturas que
esmagavam-lhe o coração, desde a notícia que recebera
pela manhã. Pouco se lhe dava que o demitissem, que a falta de pão
reduzisse-lhe a família à esmola; pouco lhe importava, mesmo,
que o metessem num cárcere… Queria apenas que o amo não o
ficasse odiando pela incúria que dera lugar ao crime…

Era preciso que o duque o perdoasse… Este pensamento lia-se-lhe nos traços
dolorosos do rosto…

– Aí vem o mais culpado – disse o duque ao chefe de polícia,
vendo aproximar-se o particular. – Não há mais perguntas a fazer,
prenda-o e leve-o daqui.

O tom das palavras do senhor de Bragantina não admitia réplicas.

O dr. Louro Trigueiro desdobrou uma das costumadas zumbaias e marchou ao
encontro do particular.

– Preso – disse-lhe. – O senhor está preso!
O velho quis falar, mas um violento soluço atravancou-lhe a voz. Pôde
apenas dizer doloridamente:
– Preso!
E cobriu os olhos com as mãos.

Nesse momento o duque perguntava ao mordomo:
– Então quando se almoça hoje?
– Esperava apenas – respondeu o mordomo – que o interrogatório terminasse
para anunciar a V.Exa. que o almoço está servido.

O chefe de polícia, apesar da rijeza de coração, peculiar
aos instrumentos da justiça pública, sentiu-se comovido à
vista do sofrimento do particular.

– Venha almoçar, dr. Louro… – disse-lhe o duque retirando-se para
o interior do palácio.

O sofrimento daquele pobre ancião, incapaz de causar o menor dano,
aquela voz ardente desfazendo-se no pranto que saía-lhe por entre os
dedos ressequidos da mão com que cobria o rosto, as lágrimas
pungentes daquela boa criança de sessenta anos, tudo era digno de uma
delicadeza filial, mesmo da parte de um representante da Justiça. Mas
o duque acabava de chamar-lhe para o almoço…

O dr. Louro Trigueiro teve pois de entregar ao seu delegado o novo preso
como entregara Inácio.

O delegado retirou-se com os presos e foi encontrar o colega, que por essa
ocasião voltava com Manuel de Pavia das despedidas que esse fora fazer.

Minutos depois, dois carros saíam pelo portão principal da
quinta de Santo Cristo.

Um dele transportava Manuel de Pavia e Inácio, guardados por um dos
delegados e um policial disfarçado; o outro levava o velho particular,
vigiado, ou melhor, sustentado para não cair no tapete do veículo,
pelo segundo delegado.

Iam para a casa de detenção.

Em caminho, Manuel de Pavia e Inácio trocaram olhares expressivos,
enquanto os homens da polícia se distraíam vendo os basbaques
que paravam nos passeios para espiar o interior do carro. Inácio, que
sentira um violento susto ao ver que o ladrão das jóias fora
preso, percebeu que aqueles olhares significavam que tudo ia bem. Tranqüilizou-se…

O carro do particular parecia mais rodar para um hospital com um doente
do que para uma repartição de polícia com um criminoso.

Capítulo XII

Sem novidade passou-se o dia. Depois dos interrogatórios, caiu a brisa
do extraordinário e a vida do palácio voltou à calmaria
podre da sua insipidez eterna.

Findo o almoço, o marquês d’Etu e o chefe de polícia,
deixaram a morada do senhor de Bragantina.

– Deixo tudo nas poderosas mãos de V. Exa., – disse o chefe de polícia,
ao despedir-se do duque. – Confesso a minha impotência neste emaranhado
negócio. Diante de certas dificuldades, não há remédio
senão confessar-se a gente obtuso… Juro-lhe que aquela corda do gancho
lança-me num oceano de dúvidas e hipóteses que confundem-me
toda a perspicácia… Mas o que para mim é um obstáculo,
pode não sê-lo para a perspicácia de Vossa Excelência…
Realmente entre nós, permitindo a familiaridade, entre nós há
a distância que vai de soberbo carvalho para o débil trigo…
Desde que Vossa Excelência deseja honrar a polícia, revestindo-se
do caráter dela, nada mais tenho a fazer do que curvar-me à
imerecida honraria e fico inteiramente sossegado. Há de fazer o carvalho
o que não pôde o trigo…

Estes cumprimentos eram a conclusão e a conseqüência de
uma conversa que houvera durante o almoço do duque.

Estavam dois carros na larga avenida de frente do palácio. Um deles
pertencia ao marquês d’Etu, o outro esperava pelo chefe de polícia.

Antes de se separarem o marquês e o chefe, o príncipe dos cortiços,
que não estava mais tranqüilizado, apesar da certeza que o duque
lhe dera de que haviam de ser achadas as jóias, disse ao funcionário
em despedida:
– Vejam lá!… Vejam lá!… a época não está
boa… eu levanto os aluguéis…

A duquesa fora informada de tudo o que tivera lugar no palácio. O
roubo das jóias não lhe causou maior abalo do que ao duque.
Incomodou-a unicamente o fato de se achar entre as jóias roubadas o
anel da nora. Apesar disto ninguém ouviu-lhe uma palavra de censura
contra os descuidados servidores de seu marido. A perda das jóias não
lhe deu que pensar, e a duquesa, comprometendo-se consigo mesma a fazer presente
de algum adereço de valor à nora, voltou-se para as ligeiras
atenções domésticas que a ocupavam.

Quando o sol resvalava pelas montanhas do ocidente saiu a fidalga a um dos
habituais passeios da tarde.

A essa hora, já não se lembrava dos sucessos da manhã.

Outro também era, então, o alvo dos pensamentos do duque.
No seu misterioso gabinete, ruminava uma idéia alegre, juvenil: visitar
à noite um menina.

Havia tempos que certa formosa imagem se lhe gravara na retina e no cérebro.
Era um capricho excepcional.

Passeando, uma vez, pela quinta, vira a brincarem pela relva do parque duas
meninas. Andavam pelos quatorze ou quinze anos. Duas avezinhas arrulhantes,
graciosas, correndo pela grama, arrancando flores aos canteiros e pétalas
às flores, para cobrirem o lago de mimosas canoinhas, que o menor vento
carregava logo para as criptas escuras de rochedos artificiais, onde mal se
viam, como roscas de serpentes adormecidas, as raízes das árvores
que sombreavam as águas.

Depois de muito brinquedo, uma delas sentou-se à beira do gramado
e cruzou os pés; a outra sentou-se ao lado da companheira.

Conversaram; falaram das canoinhas de pétalas; uma das canoas, até,
levara a bordo uma linda aranha microscópica de cor vermelha; esta
fora a de Claudinha; a da Conceição levara uma formiga muito
preta que andava à roda com medo de cair no lago, agitando dois cabelinhos
compridos, que tinha na cabeça. Falaram das nuvens, que formavam bichos
nos ares; riram de ver uma nuvem que parecia dois gatos brigando…

Depois de algum tempo, uma das meninas deitou a cabeça no colo da
outra.

Não tinham visto o duque que se aproximava, passeando e observando-as.

Uma das donzelinhas enfiou uma palha no ouvido da amiga que estava deitada
no seu colo. Esta deu uma grande risada e moveu o corpo nervosamente, rolando
no chão.

– Faz cócega, Conceição? – perguntou a que estava sentada.

A que estava deitada, a mais bonita das duas, não respondeu, mas
rolou de novo para junto da companheira, como pedindo mais cócega…

A companheira repetiu o brinquedo. O fio da palha lá foi ao fundo
da concha do ouvido fazer rir a amiguinha. Nova risada de criança ressoou
no jardim. Pela segunda vez rolou a alegre menina pela grama.

Nessa ocasião, passou por elas o duque. A que estava sentada, que
ria-se da amiga, ficou muito séria. A outra, vendo que o duque olhava
para ela, ergueu-se toda enrubescida em sentou-se depressa, puxando o vestido
para cobrir a alvura das meias que o brinquedo descobrira…

O duque de Bragantina prosseguiu, sorrindo; e várias vezes voltou
a cabeça para observar as rolinhas que continuavam a divertir-se no
parque, aproveitando as últimas claridades do belo dia.

Desde essa ocasião, uma idéia fogosa se enroscara à
espinha dorsal do senhor de Bragantina. Era uma coisa irresistível
como um sopro de Mefistófeles; o duque não sossegava… Conversara
com o seu confidente Pavia; não conseguira sossego…

Era isto o que pretendia em profundas cogitações o fidalgo
de Bragantina no seu gabinete.

Foi-se a tarde. Veio a noite. A noite adiantou-se. Quando era bem tarde
o duque saiu de seu gabinete. Deixou depois o palácio e foi para o
parque.

Ninguém estranhou a saída do duque. Quando tinha motivos de
preocupação, ele costumava expor o crânio aos resfriamentos
da noite.

Julgava-se que ele estava preocupado com o negócio dos povos… Pouco
de estranhar, portanto, a saída fora de horas…

Estava uma noite olímpica.

As estrelas mantinham-se no espaço como um turbilhão pasmoso
de luminosa poeira, levantada por furacões desconhecidos…

Uma aragem igual e constante passava pelas árvores, produzindo um
rumor comparável ao de muitos regatos ciciando em coro. Os lagos do
parque afetavam um negror profundo, cortado de vez em quando pelo ziguezague
sinuoso e brilhante do reflexo dos lampiões, dispersos nas alamedas
como sentinelas perdidas.

Com toda a escuridão, a noite estava formosíssima e tinha
apreciáveis encantos.

Sentiam-se perfumes, ninguém via as flores; ouvia-se um chocalhar
que fazia sede, ninguém via a cascata; cantavam grilos, ninguém
via os insetos…

Reinava a noite em toda a sua majestade. Somente resistiam-lhe os lampiões,
os reflexos do lago, o turbilhão dos astros e uma chusma brincalhona
de pirilampos que cabriolavam no mato como estrelas fugidas do céu…

O duque errou durante algum tempo pelo parque, embebido em pensamentos que
lhe traziam sorrisos à flor do rosto. Refletia na sua força
que o fazia triunfar dos homens e das mulheres. Era como um rei: rei pelo
dinheiro e rei pelo sangue. Não havia conta para aqueles que o rodeavam
como miríades de satélites, cada qual mais empenhado em causar-lhe
alegria. Tinha visto o curioso espetáculo de todas as coisas que o
comum dos homens apelida sagradas prostituírem-se-lhe aos pés.
Vira a justiça despedaçar a venda dos olhos para buscar a que
seria agradável a ele; vira a honra entreguar-se-lhe como uma taverneira
sem vergonha; vira a dignidade feita baixeza; a honestidade feita impudor;
a virtude feita hipocrisia; a hipocrisia feita descaramento; o descaramento
feito arma de vitória… Vira o mundo transformado em torno dele…
tudo somente pelo poder do seu nome! Era bem forte!
Contava mais vitórias do que Napoleão. E somente havia uma diferença
entre o conquistador e ele. É que Napoleão triunfara da força
e o duque triunfara da fraqueza. Os principais feitos do general se haviam
passado no campo das batalhas e os do duque no segredo das alcovas.

Apesar de seus brilhantes precedentes, o fidalgo não estava totalmente
seguro dos resultados dos cometimento que ia levar a cabo.

O Manuel fizera-lhe saber que a caça era arisca; tinha uma inocência
petulante e esquiva, capaz de frustar a mais juanesca estratégia…

Muitas vezes, é certo, havia encontrado a inocência no seu
caminho, mas conseguira levá-la de vencida com palmadinhas e sorrisos,
achando por fim como última resistência algumas lágrimas
sem significação.

Desta vez, contudo, o caso afigurava-se-lhe um pouco mais árduo;
a inocência vinha armada de brejeirice e sarcasmo; com certeza seria
difícil. Há, porém, frutos pelos quais se dá de
boa vontade o incômodo de trepar à árvore. Quantas vezes
não se fere a gente em espinhos para tirar uma rosa?
Impelido por esta idéia, o duque de Bragantina tomou resolutamente
a direção da casa do seu íntimo Manuel de Pavia.

De longe, pelo ar, vinham notas de bronze, sonolentas como bocejos… Marcavam
meia-noite…

Capítulo XIII

Vejamos o que ia pela casa do velho Januário…

Por volta das duas horas da tarde, aparecera Claudina, a filha de Pavia
e camarada de Conceição convidando a amiga a ir à casa
dela. Januário exultou, vendo que Pavia por seu lado trabalhava para
facilitar o negócio. Apressou-se em fazer Conceição sair,
admirando-se muito de não ser impedido pela resistência de Emília,
com que contava. A nora mudara de modo de pensar… Conceição,
muito alegre por haver curado a boa Emília com seus carinhos, achou
muito a propósito um passeio à casa da amiga Claudina…

Não se preocupou mais com a doença da nora de Januário.

E foi-se, rindo de prazer, de mãos dadas com Claudina, prelibando
as agradáveis surpresas que reservava-lhe o passeio…

Pelo resto do dia, Emília não sentia-se tão boa como
esperava. Começou a sentir uma debilidade que dizia-lhe que as melhoras
experimentadas haviam sido fictícias… Não quis admitir. A
fraqueza progredia e ela resistia-lhe com todas as energias. Não quis
afastar-se do serviço em que auxiliava a velha sogra. Trabalhou. Mas
a fraqueza continuava, cada vez mais profunda, Reagiu ainda; não pôde
com a moléstia.

Ocultou, enquanto pôde, o mal que a prostrava. Afinal sucumbiu.

– Precisava estar boa por amor da minha Conceição! – murmurou
ela, ao voltar para o leito…

Com a recaída de Emília, voltaram os cuidados da mulher de
Januário em relação ao peso do serviço com que
se ia ver atrapalhada, caso morresse a sirigaita…

Tranqüilizou-se, porém, com esta reflexão:
– A Conceição já foi… o dinheiro está seguro…
Teremos quem nos sirva…

À tardinha, a caridosa duquesa, visitando os moradores da aldeia
da quinta, foi bater à porta dos velhinhos do beco.

A mulher de Januário correu a buscar um xale novo e veio pressurosa
abrir, enquanto o velho marido ia preparar uma fatiota mais asseada. A duquesa
entrou sem repugnância no casebre dos velhos, respondendo com generosas
palavras às cortesias que lhe dirigiam os moradores do pardieiro, que
elevavam-na à categoria de santa…

– Onde está a senhora Emília? – perguntou logo que os cumprimentos
acabaram.

A duquesa sempre se interessara pela pobre Emília. Conhecia-a de
muito tempo e não se lembrava de tê-la visto sorrir, senão
por triste cortesia, ou em resposta a qualquer coisa amável que se
lhe dissesse. Adivinhava que aquela mulher sofrera muito e sofria ainda essa
espécie de indiferença dolorida que fica depois dos longos padecimentos
morais. Desejava conhecer o segredo daquela melancolia, para ver se podia
consolar. Emília tinha, em compensação, uma profunda
amizade à generosa fidalga. Sempre que a duquesa apresentava-se era
ela a primeira a ir recebê-la e beijar-lhe as mãos.

A ausência de Emília foi que provocou a pergunta da senhora
de Bragantina.

-Ah!… a pobre Emília!… Está muito doente, minha boa senhora
– respondeu a mulher de Januário. – Levantou-se hoje incomodada, melhorou
um pouco durante o dia, mas à tarde recaiu.

– Quero vê-la – disse a duquesa.

– Com licença…

– Qual, não é preciso arrumar coisa alguma… Sabem que eu
não reparo, mesmo porque, com os anos, vai-se ficando cega… Diga-me
onde está a Emília…

E assim falando, a duquesa, que não se sentara ainda, foi-se dirigindo
para o interior da casa. A mulher de Januário precedeu-a e foi mostrando
o caminho, fechando portas, para ocultar os quartinhos mal arranjados.

Emília estava acondicionada em uma pequena alcova que dava para a
sala de jantar. A escuridão do crepúsculo valia de noite na
alcova.

– Acenda uma vela – disse baixinho a duquesa a Januário.

Com o brilho da luz, Emília moveu-se na cama onde jazia.

Estava com o rosto para a parede. O cuidado com que todos entraram no quarto
fê-la crer que só entrara na alcova a sogra.

Vendo luz acesa, quis verificar quem era.

De um olhar, reconheceu a duquesa…

– Senhora duquesa! – disse com visível espanto.

– Como vai a senhora? – perguntou docemente a fidalga penalizada de ver
o estado da pobre mulher.

Emília tentou erguer-se para saudar a duquesa, mas o esforço
perdeu-se-lhe pelo delgado colchão da enxerga…

– Não se incomode! não se incomode! – pediu a duquesa, dando
a mão à doente.

Emília, com um movimento custoso, tomou aquela mão e cerrou-a
contra os lábios. Uma pequena lágrima imperceptível nasceu
no canto das pálpebras da duquesa…

A senhora de Bragantina sentiu que as mãos de Emília, secas
como o pergaminho, queimavam como brasa, e os lábios estavam frios.

O quarto de Emília era um insignificante aposento atulhado de caixas
e móveis, mais ou menos inválidos. Aqui uma cadeira sem encosto,
ali um banco com três pernas, a um canto uma cômoda macróbia,
pilhas de caixas e caixões recheados de quanto farrapo pode a miséria
acumular… As paredes eram simplesmente caiadas; o tempo e a fumaça
tinham-nas pintado de negro. Havia um asseio relativo no lugar. Por uma grande
janela, cuja vidraça estava meio suspensa, calçada por uma garrafa
vazia, entrava a viração da noite.

Por uma rápida inspeção a duquesa reconheceu que Emília
estava mal. Depois de sentar-se numa cadeira que lhe haviam colocado ao pé
da cama, a senhora de Bragantina conversou com a mulher de Januário
sobre o incômodo que a doente sentira pela manhã.

– É necessário chamar um médico – disse no fim da conversa…

– Não, senhora – disse Emília – para que chamar médico?…
Eu não sofro nada…

Depois acrescentou:
– É só esta fraqueza… esta fraqueza…

– É por causa desta fraqueza mesmo – disse a duquesa.

E fez um gesto a Januário para que fosse ver o médico.

– Chame-o em meu nome – disse.

Januário saiu e foi à casa de um médico que tinha grande
clínica na quinta.

– Então? Não está-me parecendo que a tal minha nora
bate a bota?! – disse ele em caminho – Tenho visto muita gente acabar assim…

– Desde quando sofre esta fraqueza? – perguntou a senhora de Bragantina
a Emília.

– Ih!… é coisa velha – disse Emília com uma voz suspirosa
e suave. – Há muitos anos que padeço este abatimento, esta perda
progressiva de forças… Hoje, depois do acesso da madrugada, que me
prostrou muito… hoje foi o dia que melhor tenho passado, de um certo tempo
para cá… Passei mesmo muito bem hoje… Acreditei até que
estava completamente boa… Não sei por que motivo… aí pela
tarde adiante, comecei a sentir um cansaço… que não pude mais…
Tanto que desejava conversar com a senhora duquesa…

– Comigo?… Sobre o quê?…

– Sobre coisas muito graves…

– Graves…

À duquesa pareceu lobrigar uma pontinha erguida do segredo da melancolia
de Emília.

– São gravíssimas… Eu pretendia dirigir-me a V.Exa., logo
que soubesse da sua chegada de Anatópolis… Soube que não tinha
partido hoje, mas não me foi possível sair… Deus quis que
a caridade de V.Exa. a trouxesse ao nosso casebre…

– Vim passear…

– … Não quero guardar comigo um segredo que pode causar uma desgraça
terrível… A minha fraqueza me faz recear…

A duquesa, até então interessada por uma curiosidade simplesmente
generosa, sentiu-se presa de uma necessidade imprescindível de conhecer
o segredo de Emília…

A sua imaginação desprendida pôs-se a criar castelos
de sangue, mistérios trágicos, crimes ocultos, coisas hediondas
de que fora vítima, ou quem sabe? autora aquela mulher calada e sombria…

A duquesa teve medo; mas sentia ao mesmo tempo a vertigem da curiosidade,
que arrastava-a para aquele segredo formidável… Além disso,
que desgraça era esta que a doente temia?… Seria tudo aquilo delírio.
Mas não! A enferma apresentava uma firmeza de idéias que não
fazia supor que delirasse…

– A senhora revela o segredo… não é? – perguntou a duquesa,
para ver se a resposta da doente destoava das suas primeiras palavras.

– Revelo, senhora duquesa – respondeu serenamente Emília – mas somente
quando aqui não houver gente demais…

A mulher de Januário não ouviu o que disse a enferma, ou fez-se
desentendida…

A duquesa voltou-se para ela e disse:
– Tenha a bondade de retirar-se, porque a senhora Emília precisa falar-me
em particular…

– Pois não! pois não, senhora duquesa!… Já que ela
não quer que esta pobre velhinha lhe conheça os segredos…

– Estamos agora sós – falou a duquesa, vendo sair a velha -, pode
contar…

Emília fez um grande esforço e sentou-se na cama.

– Quero falar sentada, sim.

A duquesa amontoou alguns travesseiros, e a doente encostou-se neles, olhando
para a janela. Esteve por momentos perdida numa espécie de abstração,
sem dar mostras de que lhe fosse pelo cérebro o menor pensamento tempestuoso.

A duquesa encarava religiosamente aquela mulher de faces lívidas,
escavernadas, e olhos cheios de um brilho forte, mas calmo como o luar. Parecia-lhe
que ia ouvir uma moribunda. A sra. de Bragantina aguardou em silêncio
que Emília quisesse começar…

A doente sorriu, como se ouvisse alguma palavra agradável, e perguntou:
– A sra. duquesa não ignora talvez, que há nesta casa uma linda
mocinha, afilhada de meus sogros…

– Sei… A Conceição? não?… E onde está ela?…
não a via hoje…

– Está fora… V.Exa. não simpatiza com ela?… Oh! Aquela
menina é uma pérola… tão boazinha!… tão alegre…
Leva sempre a rir… alegrando a gente… Pois não há quem saiba
a verdadeira origem desta criança encantadora…

– Ninguém?!…

– Ninguém… menos eu e um indivíduo que mora aí na
quinta… Ai! meu Deus, aquilo não é um homem, é pior
do que o sapo, é pior do que a víbora…

Emília passou a mão pela fronte e continuou:
– Ninguém mais sabe; ninguém mais pode saber!… É o
segredo de uma vergonha… É uma história que arrasta na lama
o nome de uma miserável…

A duquesa percebeu que Emília se fatigava, falando…

– Olhe… a senhora está se cansando… não fale mais… quando
estiver melhor, a senhora conta…

– Não, sra. duquesa… não paro… Vou contar toda a história…
Não me canso, porque, juro-lhe que o peso do meu segredo é mil
vezes maior… Quero revelá-lo para ver se durmo… se fico ao menos
aliviada… Há mais de quatorze anos que esta história esmaga-me
a vida dia por dia, hora por hora…

… Havia em ***, uma moça, filha de pais remediados, donos de um
pequeno sítio fora da cidade… Um dia passou pelo lugar um grande
fidalgo cuja chegada foi ansiosamente esperada na cidade, e chegou no meio
de festas e foguetaria… Era um grande fidalgo brilhantemente acompanhado…
Um homem maduro, forte, corado de vida, ardente como um mancebo… Uma jovem
de populaça, uma louquinha sorriu para o fidalgo ao vê-lo passar
na cidade… julgou-se feliz, vendo que não ficara sem ser notado o
seu sorriso…

Emília fez uma pausa, e respirou largamente como quem acaba de escalar
um monte. Depois, prosseguiu:
… Essa louquinha era a filha dos donos do sítio… Fora à
cidade por causa da festa… Não me demorarei nas minúcias…
Na mesma noite da chegada do fidalgo a moça teve um sonho horrível…
Fora deitar-se pensando na atenção que lhe dera o fidalgo…
Muita gente dizia-lhe que ela era bonita… aquela atenção parecia
confirmar… A vaidade da pobrezinha fora lisonjeada… Adormeceu…: via
no sono dois olhos do fidalgo fitando-a como de dia na cidade, fitando com
uns olhos que pareciam bocas abertas para devorar…

"De súbito, percebeu que suspendiam por fora a vidraça
de uma janela do quarto, que dava para o telheiro de uma estrebaria. Por não
sei que circunstâncias as abas da janela estavam abertas… A noite
estava escura como breu, o quarto tinha a luz indecisa de uma lamparina…
A moça viu além da vidraça vultos movendo-se… O medo
fê-la enrelegar-se no leito… De um momento para outro… a desgraçada
viu dois homens embuçados em grandes capas negras, chapéus enormes
na cabeça; silenciosos como cadáveres, próximos da cama…
ameaçadores… Teve medo; atirou-se para fora do leito… Os dois homens,
rápidos como demônios, prenderam-na… Dedos rijos como tenazes
seguraram-lhe a garganta… Os gritos de socorro ficaram estrangulados…
Então, um dos homens, uma espécie de gigante muito barbado,
apoderou-se dela e disse ao companheiro:
"- Deixe-a comigo…"
"A infeliz reagiu, bracejou, arcou com o gigante, cravou-lhe os dentes,
deu-lhe com as mãos no rosto, segurou-lhe as barbas, tudo em vão…
As dentadas não passaram da lã do capote, e o gigante agarrou
a vítima pelos dois braços, vergou-a, torceu-a como se a fosse
partir!… Foi um sonho horrível!… A moça, antes de poder
soltar um grito, viu-se arremessada sobre o leito d’onde fugira… Foi então
uma brutalidade!… A desventurada sentiu faltar-lhe a respiração,
e, sufocada, mordida, contusa, esmagada, macerada com se a houvessem arrastado
por cima de um chão pedregoso, desfaleceu num estado miserável…
miserável, sra. duquesa!…"
Neste ponto da narrativa, Emília inclinou a cabeça para o peito.
Uns soluços convulsivos, sem lágrimas, subiram-lhe do peito
com uma violência atroz e ferveram-lhe na garganta, imprimindo fortes
estremecimentos a todo o corpo como vascas de dor.

A duquesa, sem poder articular uma palavra, cobriu os olhos com um lenço…

Passaram-se alguns momentos.

– Ai meu Deus! – disse Emília com a voz cansada. – Tenho medo de
não poder chegar… ao fim… Estou me sentindo muito mal… Faltam-me
as forças… é esquisito… parece que estou muito pior…

– Tranqüilize-se, minha filha – disse comovida a duquesa. – Tranqüilize-se…
não se morre assim…

Um sorriso angélico, que não significava alegria, passou como
um relâmpago pelos lábios de Emília…

Já havia acabado a exaltação que a fizera soluçar.
Com a serenidade ligeiramente queixosa que revelara no princípio a
doente recomeçou:
– Dentro de pouco tempo as coisas se encaminharam por tal forma que a vítima
daquele horrendo sonho teve de fugir… fugir de casa corrida de vergonha
e de infâmia… Um cartão que tinha gravado um nome poderoso
e uma coroa ilustre, encontrado casualmente pela moça, era a sua única
esperança. Este cartão continha uns oferecimentos que fariam
corar, se o caso não fosse extremo… A pobre fugitiva recorreu àquela
imunda salvação… Graças ao cartão… a filha
dos proprietários do sítio de ***, a vítima daquele sonho
brutal, a mísera criatura, que fugia diante da sua vergonha, fez uma
longa viagem e veio ter ao palácio de Santo Cristo…

A duquesa estava como que atordoada, sofria duramente com a narração
de Emília…

– … veio ao palácio de Santo Cristo, porque a coroa do cartão
era uma coroa de duque e o nome era o do senhor de Bragantina… porque era
este senhor o fidalgo viajante que dera à mocinha do povo que sorrira…
porque o gigante feroz do sonho fora ainda o senhor de Bragantina…

– O duque?!…

– Ah! minha boa senhora, ela merece o seu perdão, recorreu ao seu
marido porque ia ser mãe. Não tinha direito de afogar um filho
em qualquer pântano, suicidando-se… Veio pedir abrigo… Teve um cochilo
aí no arrabalde…

"…Passados tempos, contratava-se o seu casamento com um sujeito de
ínfima classe… Era a proteção generosa do sr. duque…
O tal sujeito recebeu indiferentemente a carga que lhe atiravam e uma criaturinha
recém-nascida que a mulher que lhe davam criava com muito afeto e cuja
proveniência ordenaram-lhe que não indagasse…

Essa criaturinha, improvisada pelo sr. duque de Bragantina, essa excrescência
no lar para um indivíduo que não passava de seu humilde lacaio,
essa coisa estranha, essa verruga, era a linda Conceição, que
a sra. duquesa conhece e a esposa que se dava ao lacaio era eu!…

– A Conceição – exclamou a duquesa – é, portanto, filha…

– Da minha vergonha – murmurou Emília…

A pobre nora de Januário sentiu um desfalecimento profundo. Ao pronunciar
a última palavra escorregou pelos travesseiros a que se arrimava e
caiu no leito como morta…

A duquesa acudiu assustada. Verificou que fora uma conseqüência
da debilidade da enferma…

– Quer ficar deitada, ou deseja que eu a sente como estava?
– Rogo-lhe que me sente – respondeu Emília, com a voz balbuciante.
– Tenho ainda a dizer alguma coisa… quero morrer tranqüila… Não
peço que mande chamar um padre… porque não chegaria a tempo…
E é preciso aproveitar os momentos que me restam… prevenir a desgraça…
prevenir a fatalidade…

A duquesa, que se esquecera das primeiras palavras de Emília, por
causa da sua curiosa narrativa, lembrou-se de que tudo o que se dissera não
passava de preâmbulo ao assunto grave…

– Não quero que se chame um padre – continuava a doente – porque
seria perder grandes momentos… sra. duquesa, rogo-lhe que me ouça
bem… Sou uma pobre moribunda… Vou confiar-lhe a miserável herança…
Recomendo-lhe a minha Conceição, a linda bastardinha inocente…
Tenho um filho, o filho do meu infame casamento… É pequenino, mas
tem os avós que o adoram… A desamparada é Conceição…
É a filha da minha vergonha, mas tem um grande sangue nas veias…
Não! não é a filha de um lacaio que aceita por servilismo
uma vagabunda sem honra… Nunca admiti que chamassem minha filha, porque
eu era a mulher de um miserável… Conceição é
a relíquia da minha pureza despedaçada… Eu adorei-a sempre…
Agora vou morrer… Não pensava que fosse tão cedo, mas adivinho
que não falta muito… Vou deixar a vida… não quero que ela
me vá cuspir na cova por eu ter sido a autora da sua desgraça.
Aproxime-se bem de mim, sra. duquesa… A voz me vai… faltando de todo…
não perca uma palavra…

Sentia-se uma transformação no semblante da moribunda. Percebia-se-lhe
nos olhos alguma coisa de fazer calafrios, como se a morte estivesse a espiar
por eles.

– Preciso de ar… levante ali a janela…

A duquesa correu à vidraça e suspendeu-a, voltando para junto
de Emília.

O ar impregnado de perfumes campestres entrou em turbilhões, fazendo
vacilar a luz da vela que clareava o quarto e agitando os cabelos desgrenhados
e secos da moribunda…

– Está bom o fresco – disse Emília sorrindo tristemente…

Depois, com grande espanto da duquesa, perguntou cheia de gravidade:
– Conhece Manuel de Pavia?…

– Conheço este desgraçado.

– Diz bem… um desgraçado… Este homem que foi cúmplice
do duque na minha ruína… Ah! eu bem o reconheci… Este homem acaba
de comprar ao meu sogro a honra de minha filha para oferecê-la ao duque…

A duquesa apertou a fronte entre as mãos para que não arrebentasse.
O coração palpitava-lhe com uma violência mortal…

– Ah! sra. duquesa, é um belo presente para um pai!…

– Perdoe-me, pobre senhora! perdoe-me! – exclamou a duquesa abraçando
e cobrindo de lágrimas a moribunda. Desatinava como se fosse enlouquecer…

– Mas o duque!… – exclamou com a voz angustiada, sem saber o que falar.

– O duque – disse a doente -, o duque ignora… O perigo é enorme.
Rogo-lhe que salve minha filha… Ela está em casa de Pavia… Foi
hoje… deixei-a ir, porque enquanto o duque estiver ausente… Salve-a…
Entrego-lha.

– Ah! meu Deus! meu Deus! -exclamou a duquesa…

Acabava de ver um tremor agitar os olhos de Emília e a cabeça
tombar-lhe para os seios, em toda a flacidez da inércia.

A mãe de Conceição lançara o derradeiro olhar
ao retalho de noite que se via pela janela aberta e, fitando saudosamente
uma estrela, inclinara a cabeça ao peso da morte.

Na estrela que viu por último, deixou escrito um adeus para aqueles
que havia quatorze anos não sabiam dela.

Capítulo XIV

A chegada de Conceição casa de Pavia foi uma festa.

Houve tanto prazer que ninguém acreditaria que o chefe daquela família
fora preso. É que Manuel de Pavia dissera à mulher coisas tranqüilizadoras…

Cada um cuidava apenas em fazer agrados à companheira de Claudina.
As horas correram insensivelmente. Houve um jantar que surpreendeu a Conceição.
Iguarias nunca vistas; vinhos nunca sonhados.

Foi notável o interesse com que a mulher de Pavia serviu de bebidas
a linda hóspede. Conceição, com a sua rusticidade descerimoniosa,
foi provando de tudo que lhe davam.

Ao fim do jantar, sentiu-se presa de uma sonolência estranha. Quis
retirar-se. Todos protestaram, dizendo que ela não iria para sua casa,
senão no dia seguinte.

Conceição ficou.

Muito cedo começou a família de Pavia a preparar-se para dormir.

Conceição foi conduzida pela dona da casa ao esplêndido
aposento que lhe era destinado. Um Éden de perfumes e tapeçaria.
Clareava-o brandamente uma pequena lâmpada de porcelana, a desferir
luares rosados para os largos espelhos que adornavam o quarto, nos intervalos
de luxuosos móveis de toilette. Duas grande janelas, veladas sob alvíssimos
panos de renda pendentes de maçanetas douradas, davam passagem às
aragens frescas que circulavam por fora. Erguendo-se estas cortinas, viam-se,
a entrar pelas janelas, debruçados indiscretamente sobre o peitoril,
frondosos ramos de jasmineiros, que alastravam de flores o peitoril e desprendiam
aromas, nocivos talvez àquela hora, mas de uma doçura celestial,
enervante. Era indescritível a luta silenciosa mas renhida, desses
aromas com a perfumaria dos frascos perdidos pelo boudoir.

Conceição, ao entrar, sentiu-se atordoada por aquela orquestra
viva de fragrâncias. Morta de sono, como se achava, não levou
grande tempo a reparar nos esplendores do ninho que entregavam. Procurou a
cama. Era um prodígio de marcenaria que nem de longe recordava o seu
leito da casa de Januário. Conceição não gastou
um momento de admiração daquelas rosetas de madeira lavrada,
daquele precioso cortinado escapando-se de uma elegante cúpula de cetim
azul e derramando à farta torrentes de vaporozas gazes por volta da
cama…

Depois que a mulher de Pavia despiu-a e adormou-a sedutoramente com uma
impalpável camisinha de cambraia cor de neve, a moça deixou-se
cair sobre o colchão fofo, que fugia-lhe sob o corpo ao menor movimento,
e formava-lhe sempre um berço cavado muito macio, desafiando sonhos
etéreos, fazendo-a supor-se balançada numa rede de nuvens entre
as estrelas.

Conceição volveu-a durante algum tempo, provando com o corpo
a frescura dos lençóis; depois, cedeu ao sono. Mergulhou segundo
seu hábito, os braços debaixo do travesseiro e ficou imóvel.

Quando a mulher de Pavia veio ao aposento, trazendo à hóspede
uma xícara de chá com biscoitos, achou Conceição
dormindo a sono solto…

Não a despertou. Demorou sobre ela um olhar e um sorriso misterioso
e foi-se para o seu quarto, tendo o cuidado de deixar aberta, numa saleta
contígua ao aposento da hóspede, uma porta por onde se entrava
do jardim.

A necessidade desta providência era a visita do senhor de Bragantina,
que viria à sua entrevista, sem incomodar os que dormiam em outros
aposentos.

Quando o relógio que fazia parte dos adornos do dormitório
da moça tilintou meia-noite no tímpano oculto por trás
de uma requebrada Psique, toda risonha da sua nudez lustrosa de bronze, nessa
hora de caminhadas românticas à cata do ideal vedado, surgiu
o duque de Bragantina à porta do ninho de Conceição.

Vinha trêmulo de sensualidade. Penetrou no seu pomar de luxúria,
medroso como um menino perdido no bosque. Os perfumes do ambiente embriagaram-no.

A luz lasciva da lamparina não iluminava coisa alguma distintamente.
Todos os objetos pareciam feitos de nuvem. A meia-sombra, carregada pelo azul-escuro
do papel das paredes, aumentava as proporções do lugar, emprestando-lhe
uns ares de imensidade.

Envolvido naquele mundo de coisas fantásticas, impregnado, até
o âmago dos pulmões de cheiros inebriantes, o duque julgava-se
como que suspenso numa alvorada… O seu olhar ia direto a um ponto e absorvia-se
todo, sem deixar um relance para sentir a realidade…

Ela estava a dormir… Os lençóis cercavam-na como um ninho
de édredon. Além de pequenina, ela encolhia-se com uma timidez
infantil. Cabia toda num beijo. A respiração, compassada pelo
tique-tique do relógio de bronze, fugia-lhe tranqüilamente pelas
narinas, soando no meio do silêncio da noite como o adejo afastado de
um beija-flor. Através da cambraia da camisa que a cobria como uma
lâmina transparente de neve sentia-se passar o fogo de um vulcão
de puberdade. Pela gola rendada saía até a raiz dos pequenos
seios, um busto fidiano de mármore cor-de-rosa, animado pela circulação
ardente que formigava-lhe nos veios.

À beira daquele abismo de juventude e sedução, o duque
cambaleava de vertigem…

Cada passo que dava era um arrependimento e uma vontade de fugir. A posição
inocente da mocinha adormecida causava-lhe terror. Não era seu hábito
porém tanta candura fazia-lhe medo. Era pavorosa aquela virgindade.

Mas cada vacilação de fidalgo era um recuo de maré
crescendo. Fugia da virgindade, e a sedução arrastava-o. Marchava
para a frente como um soldado covarde, aguilhoado pela disciplina. A atração
do precipício era irresistível.

O duque chegou até a cama. Inclinou-se para a frente, eriçado
como uma hiena. Era terrível aquele velho, inflamado de voracidade.
Todo ele estremecia como se houvesse lavas a ferverem-lhe no íntimo.
A violência da respiração arquejante ouvia-se-lhe como
o chiar interrompido da válvula de uma caldeira. As narinas abriam-se-lhe
e baixavam, recolhendo todas as emanações cálidas que
subiam do leito…

Contemplou assim, por momentos, a moça adormecida.

Em seguida ajoelhou-se na pele de onça, estendida como um tapete
aos pé da cama, pousou os cotovelos no chão, cruzou as mãos
e sobre elas deitou as barbas. Era cruel para consigo mesmo. Queria prolongar,
isto é, multiplicar a própria ansiedade.

Os cabelos soltos da moça esparramavam-se abundantes pelos travesseiros
emoldurando-lhe em ébano o rosto níveo, vagamente risonho.

Este rosto estava voltado para fora, na beirinha do leito, quase pendente,
assim como um fruto que vai cair de maduro. Juntinho deste semblante, castamente
fechado como certas flores que se contraem durante a noite, estava a fisionomia
esbraseada do ardente fidalgo. Era já um delícia incalculável
para o duque a respiração morna daquele sono.

Entretanto, uma pessoa que penetrara no quarto muito antes do duque e, sentada
num dos ângulos da sala, vira-o chegar, sem que o duque desse pela sua
presença, levantou-se da cadeira que ocupava e aproximou-se silenciosamente
dele.

O êxtase do fidalgo não o deixou perceber a pessoa que fizera
ficar de pé por trás dele.

No momento em que o duque, sem mais poder conter-se, levantava-se do tapete,
sentiu um peso sobre os ombros e tornou a cair de joelhos.

– Não te levantes – ordenou-se uma voz meio contida, mas ferozmente
enérgica.

Aterrado, o sr. de Bragantina levantou a cabeça…

Era a duquesa!
– Não te levantes – dizia ela nervosamente. – Pede perdão a
tua filha.

– Minha filha! – gaguejou o duque, fulminado pela aparição
da mulher.

– Sim, tua filha, desgraçado!… a mãe acaba de morrer miseravelmente,
viúva de um dos teus lacaios…

Daí a sete dias, dava-se liberdade a Manuel de Pavia e aos indivíduos
suspeitos do crime.

A língua do boato murmurava que, no dia seguinte ao da descoberta
do crime, o duque se levantara acabrunhado como um doente; que recebera a
visita do dr. Louro Trigueiro; que começara-se a dizer então
que as jóias tinham sido encontradas.

Era o caso, que o chefe de polícia, visitando Pavia na casa de detenção,
ameaçara-o com a energia do duque, que o reduziria à última
miséria, se não revelasse o lugar onde estavam depositadas as
jóias. O criminoso, exigindo garantias de impunidade, confessou tudo
e declarou que o tesouro da coroa estava enterrado num lugar que ele mostraria…
Senhor destas disposições de Pavia, dr. Trigueiro correu a comunica-las
ao duque.

Encontrou o fidalgo de mau humor como nunca lhe encontrara. Com as novidades
do chefe de polícia, o duque ficou mais sereno. É que o sr.
de Bragantina, profundamente abalado com a surpresa que tivera em casa de
Pavia, temia que a permanência deste em detenção desse
lugar a comentários, os quais, somando-se aos murmúrios necessariamente
provocados pelo procedimento da duquesa, levantariam um rumor terrível
ao redor do seu nome…

– Participe ao Pavia – disse rapidamente o duque ao chefe de polícia
– que, daqui a sete dias, ele está livre e virá desenterrar
as jóias… É só o tempo de se buscar provas de culpabilidade
e inocência… Isto é o que o senhor dirá, se por acaso
algum estranho perguntar por que estiveram presos tão pouco tempo…
Por fim de contas, não foram as provas que fizeram conhecer-se o criminoso…
Foi uma suspeita que ninguém teria o direito de levantar… A polícia
fui eu. Depois… o negócio acabou maravilhosamente… Para dar algum
colorido característico, eu expulso de meu serviço o particular
e o Inácio… Ao patife do Pavia, o mais que posso fazer-lhe é
deixá-lo no ofício para que um dia um cacete honesto esmague-lhe
a nuca, aí em qualquer esquina do arrabalde… Veja que sou justo…

Tempos mais tarde, apresentou-se na quinta um caixeiro, procurando sequiosamente
pelo sr. Manuel de Pavia e apresentando um cartão de visita com o nome
de Aleixo de tal…

Mais tarde ainda, numa pequena festa que houve na aldeola da quinta, por
ocasião de um casamento de um lacaio do duque de Bragantina, a noiva,
uma mocetona rechonchuda e corada, conversando com as amigas sobre o roubo
das jóias da coroa, remexia os olhos e os ombros, a falar:
– o meu minguinho não me enganou… Eu assegurava que o negócio
havia de dar em muita porcaria ou em muito silêncio… Digam lá
vocês se no palácio mexe-se mais no negócio dos ladrões…
Depois da morte de sinhá Emília, que Deus guarde na sua glória…
Coitada, morreu nos braços da sra. duquesa, que fugiu da casa da Gertrudes
como uma doida… só muito depois disso é que me contaram em
segredo que as jóias tinham sido achadas no quintal de seu Mané
de Pavia e que o sr. marquês d’Etu andou muito contente abraçando
os inquilinos dos cortiços feito maluco…

Eu bem dizia… eu bem dizia…

FIM

Veja também

Os Reis Magos

PUBLICIDADE Diz a Sagrada Escritura Que, quando Jesus nasceu, No céu, fulgurante e pura, Uma …

O Lobo e o Cão

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Encontraram-se na estrada Um cão e um lobo. …

O Leão e o Camundongo

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Um camundongo humilde e pobre Foi um dia …

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.