Caiu o Mistério – França Junior

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França Junior

PERSONAGENS

Um vendedor de bilhetes de loteria
Primeiro vendedor de jornais
Segundo idem
Terceiro idem
Quarto idem
DR. RAUL MONTEIRO
ERNESTO
GOULARTE
PEREIRA
DESEMBARGADOR ANASTÁCIO FLORINDO FRANCISCO COELHO
BARBARA COELHO, sua mulher
MARIQUINHAS, sua filha
FELICIANINHA
FILOMENA
BEATRIZ
FILIPE FLECHA
MR. JAMES
CONSELHEIRO FELÍCIO DE BRITO, presidente do Conselho
MINISTRO DA GUERRA
MINISTRO DO IMPÉRIO
MINISTRO DE ESTRANGEIROS
MINISTRO DA JUSTIÇA
DR. MONTEIRINHO, ministro da marinha
SENADOR FELIZARDO
PEREIRA
INÁCIO
ARRUDA
RIBEIRO
AZAMBUJA

ATO PRIMEIRO

O teatro representa parte da rua do Ouvidor. Ao fundo a redação
do Globo, a casa imediata, a confeitaria do Castelões e o armarinho
vizinho. O interior destes estabelecimentos deve ser visto pelos espectadores.
Ao subir o pano a escada que comunica o pavimento inferior do escritório
do Globo com o superior deve estar ocupada por muitos meninos, vendedores
de gazetas; algumas pessoas bem vestidas conversam junto ao balcão.
Em casa do Castelôes muita gente conversa e come. No armarinho grupos
de moças, encostadas ao balcão, conversam e escolhem fazendas.
Grande movimento na rua.

CENA I

Um vendedor de bilhetes de loteria, 1°, 2°, 3° e 4° VENDEDORES

DE JORNAIS, DOUTOR RAUL MONTEIRO e ERNESTO

VENDEDOR DE BILHETES – Quem quer os duzentos contos? Os duzentos contos do
Ipiranga!

1° VENDEDOR DE JORNAIS – A Gazeta da Tarde, trazendo a queda do ministério,
a lista da loteria, também trazendo a crônica parlamentar.

2° VENDEDOR – A Gazeta de Notícias. Traz a carta do Doutor Seabra.

3° VENDEDOR – A Gazetinha.

4°- VENDEDOR – A Espada de Dâmocles, trazendo o grande escândalo
da Câmara dos Deputados, a história do ministério, o movimento
do porto, e também trazendo o assassinato da rua do Senado.

3° VENDEDOR – A Gazetinha e o Cruzeiro.

RAUL MONTEIRO (Que deve estar parado à porta do Globo a ler os telegramas;
voltando-se e vendo Ernesto, que sai do Castelões.) – Oh! Ernesto,
como vais?

ERNESTO – Bem. E tu?

RAUL – Então? Nada ainda?

ERNESTO – Ouvi dizer agora mesmo no Bernardo que foi chamado para organizar
o ministério o Faria Soares.

RAUL – Ora! Ora! O Soares partiu ontem com a família para Teresópolis.

ERNESTO – É verdade; porém disseram-me que ontem mesmo recebeu
o telegrama e que desce hoje. Aí vem o Goularte.

RAUL – Homem, o Goularte deve estar bem informado.

CENA II
OS MESMOS e GOULARTE

RAUL – Oh! Goularte, quem foi o chamado?

GOULARTE – O Silveira d’Assunção.

RAUL – O que estás dizendo?

GOULARTE – A pura verdade.

ERNESTO – Com os diabos! Por esta não esperava eu. Estou aqui, estou
demitido.

RAUL – Mas isto é de fonte pura?

GOULARTE – E até já está organizado o ministério.

RAUL – Quem ficou na Fazenda?

GOULARTE – O Rocha.

RAUL – E na Justiça?

GOULARTE – O Brandão. Para a Guerra entrou o Felício; para
a Agricultura o Barão de Botafogo.

ERNESTO – O Barão de Botafogo?

GOULARTE – Sim, pois não o conheces! É o Ladislau Medeiros.

ERNESTO – Ah! já sei.

GOULARTE – Para Estrangeiros o Visconde de Pedregulho; para a pasta do Império
o Serzedelo.

RAUL – Misericórdia!

GOULARTE – E para a Marinha o Lucas Viriato.

RAUL – Lucas Viriato?! Quem é?

ERNESTO – Não o conheço.

GOULARTE – Eu também nunca o vi mais gordo, mas dizem que é
um sujeito muito inteligente.

CENA III
OS MESMOS e COMENDADOR PEREIRA

PEREIRA – Bom dia, meu senhores. (Aperta-lhes as mãos.)

RAUL – Ora viva, Senhor Comendador.

PEREIRA – Então, já sabem?

RAUL – Acabamos de saber agora mesmo. O presidente do Conselho é o
Silveira d’Assunção.

PEREIRA – Não há tal, foi chamado, é verdade, mas não
aceitou.

GOULARTE – Mas, Senhor Comendador, eu sei…

PEREIRA – Também eu sei que o homem esteve cinco horas em São
Cristóvão, e que de lá saiu à meia-noite, sem
se haver decidido coisa alguma.

RAUL (Vendo Anastácio entrar pela direita.) – Ora aí está
quem nos vai dar notícias frescas.

ERNESTO – Quem é?

RAUL – O Conselheiro Anastácio, que ali vem. (Seguem para a direita,
e formam um grupo.)

GOULARTE – Chama-o.

CENA IV
OS MESMOS, ANASTÁCIO e vendedores

VENDEDOR DE BILHETES (Que juntamente com os outros tem passado pela rua,
vendendo ao povo os objetos que apregoam durante as cenas anteriores.) – Quem
quer os duzentos contos do Ipiranga!

1° VENDEDOR – A Gazeta da Tarde, a 40 réis.

2° VENDEDOR – A Gazeta de Notícias.

3° VENDEDOR – A Gazetinha. Traz a queda do ministério. (Saem os
vendedores.)

RAUL – Senhor Conselheiro, satisfaça-nos a curiosidade. Quem é
o homem que nos vai governar?

ANASTÁCIO – Pois ainda não sabem?

GOULARTE – São tantas as versões,..

ANASTÁCIO – Pensei que estivessem mais adiantados. Ora ouçam
lá. (Tira um papelinho do bolso; todos preparam-se para ouvi-lo com
atenção.) Presidente do Conselho, Visconde da Pedra Funda; ministro
do Império, André Gonzaga.

GOULARTE – Bem bom, bem bom.

ANASTÁCIO – Da Marinha, Bento Antônio de Campos.

RAUL – Não conheço.

ERNESTO – Nem eu.

GOULARTE – Nem eu.

PEREIRA – Nem eu.

ANASTÁCIO – Eu também não sei quem seja. Ouvi dizer
que é um sujeito dos sertões de Minas.

RAUL – E por conseguinte muito entendido em coisas de mar.

ANASTÁCIO – Ministro da Fazenda, o Barão do Bico do Papagaio.

RAUL – Para a Fazenda?!

ANASTÁCIO – Sim, senhor.

RAUL – Porém este homem nunca deu provas de si. É pouco conhecido…
Nas circunstâncias em que se acha o pais.

GOULARTE Não diga isto, e aquele à parte que ele deu ao Ramiro…
Lembra-se, Senhor Conselheiro?

ANASTÁCIO – Não.

GOULARTE – Um à parte dado na questão do Xingu.

RAUL – Era melhor que o tivessem deixado à parte. Vamos adiante.

ANASTÁCIO – Ministro da Guerra, Antônio Horta.

ERNESTO – Magnífico!

RAUL – Qual magnífico.

ANASTÁCIO – Da Agricultura, João Cesário, e fica na
pasta dos Estrangeiros o presidente do Conselho.

RAUL – Lá estão pondo um telegrama na porta do Globo. Vamos
ver o que é. (Dirigem-se à porta do Globo, ao redor da qual
reúnem-se todos que estão em cena, e depois retiram-se. Ernesto
entra no Globo.)

CENA V
DONA BÁRBARA COELHO e MARIQUINHAS

DONA BÁRBARA (Entrando com Mariquinhas pela esquerda.) – Que maçada.
Se eu soubesse que esta maldita rua estava hoje neste estado, não tinha
saído de casa.

MARIQUINHAS – Pois olhe, mamãe; é assim que eu gosto da rua
do Ouvidor.

DONA BÁRBARA – Tomara eu já que se organize o ministério,
só para assim ver se teu pai sossega. Encasquetou-se-lhe na cabeça
que há de ser por força ministro.

MARIQUINHAS – E por que não, mamãe? Os outros são melhores
do que ele?!

DONA BÁRBARA – E vive há três dias encerrado em casa,
como um verdadeiro maluco. Por mais que lhe diga – seu Chico, vá para
a Câmara, contente-se em ser deputado, que não é pouco,
e o homem a dar-lhe. Já quando caiu o outro ministério foi a
mesma coisa. Passa o dia inteiro a passear de um lado para o outro; assim
que ouve o ruído de um carro, ou o tropel de cavalos corre para a janela,
espreita pelas frestas da veneziana, e começa a dizer-me todo trêmulo:
– E agora, é agora, Barbinha, mandaram-me chamar. De cinco em cinco
minutos pergunta ao criado: – Não há alguma carta para mim?
Que aflição de homem, Santo Deus! Aquilo já é
moléstia! Parece que se ele não sair ministro desta vez, arrebenta!

MARIQUINHAS – Faz papai muito bem. Se eu fosse homem também havia
de querer governar.

DONA BÁRBARA – Pois eu se fosse homem acabava com câmaras, com
governo, com liberais, conservadores e republicanos e reformava este país.

CENA VI
AS MESMAS e FELICIANINHA

MARIQUINHAS – Gentes, Dona Felicianinha por aqui!

FELICIANINHA (Com embrulhos.) – É verdade. Como está, Dona
Bárbara? (Aperta a mão de Bárbara e de Mariquinhas e
beijam-se.)

MARIQUINHAS – Como vai a Bibi? A Fifina está boa? Há muito
tempo que não vejo a Cocota.

FELICIANINHA – Todos bons. Eu é que não tenho andado muito
boa. Só a necessidade me faria sair hoje de casa.

DONA BÁRBARA – É o mesmo que me acontece.

FELICIANINHA – Fui ao Palais-Royal experimentar um vestido, fui depois ao
dentista, entrei no Godinho para ver umas fitas para o vestido da Chiquinha…

MARIQUINHAS – Nós também estivemos no Godinho. Não viu
a Filomena Brito com a filha?

FELICIANINHA – Vi, por sinal que tanto uma como a outra estavam caiadas que
era um Deus nos acuda.

DONA BÁRBARA – Andam constantemente assim. E a sirigaita da filha
a estropiar palavras em francês, inglês, alemão e italiano,
para mostrar aos circunstantes que já esteve na Europa.

FELICIANINHA – Eu acho uma coisa tão ridícula! E o que quer
dizer vestir-se a mãe igual à filha!

DONA BÁRBARA – E moda cá da na terra. Andam as velhas por aí
todas pintadas, frisadas, esticadas e arrebicadas, à espera dos rapazes
pelas portas dos armarinhos e das confeitarias. Cruz, credo, Santa Bárbara!
Só se benzendo a gente com a mão canhota. Olhe, lá em
Minas nunca vi disto e estou com cinqüenta anos!

CENA VII
DONA BÁRBARA, MARIQUINHAS, FELICIANINHA, FILOMENA e BEATRIZ

MARIQUINHAS – Lá vem a Filomena com a filha.

DONA BÁRBARA – Olhem só que sirigaitas!

FILOMENA (Saindo com Beatriz do armarinho do fundo.) – Como está,
Dona Bárbara? (Cumprimentam-se todas, beijando-se.)

DONA BÁRBARA – Como está, minha amiga?

MARIQUINHAS (Para Beatriz.) – Sempre bonita e interessante.

DONA BÁRBARA (Para Filomena.) – E a senhora cada vez mais moça.

FILOMENA – São os seus olhos.

FELICIANINHA (Para Beatriz.) – Como tem passado?

BEATRIZ – Assim, assim. Çá vá doucement, ou como dizem
os alemães: so, so.

DONA BÁRBARA (Baixo a Mariquinhas.) – Começa ela com a algaravia.

BEATRIZ – Não tive o prazer de vê-la no último baile
do Cassino. Esteve ravissant, esplendide. O high-life do Rio de Janeiro estava
representado em tudo quanto possui de mais recherchè. O salão
iluminado a giorno, e a last fashion exibia os seus mais belos esplendores.
Prachtvoll, ausgezeichnet, como dizem os alemães.

DONA BARBÁRA (Baixo a Mariquinhas.) – Olha só para aquilo.
Ausgetz… Parece que tem um pedaço de cará fervendo na boca.

FILOMENA – A Beatriz causou sensação. Não leram a descrição
da sua toilette?

DONA BÁRBARA – Ouvi dizer alguma coisa a respeito.

FILOMENA – Pois saiu em todos os jornais, no Globo, na Gazetinha, na Gazeta
da Tarde, na Gazeta de Notícias…

BEATRIZ – O corpinho estava come ci, come cá. A saia é que
estava ravissant! Era toda bouilloné, com fitas veill’or e inteiramente
curta.

FELICIANINHA – Vestido curto para baile?

BEATRIZ – É a última moda.

MARIQUINHAS – Onde mandou fazê-lo?

FILOMENA – Veio da Europa.

BEATRIZ – E foi feito pelo Worth.

DONA BÁRBARA (Baixo a Mariquinhas.) – Com toda a certeza foi feito
em casa, com aviamentos comprados em algum armarinho muito cangueiro.

FILOMENA – Mas não vale a pena mandar vir vestidos da Europa. Chegam
por um dinheirão, e aqui não apreciam essas coisas.

BEATRIZ – O que aqui apreciam é muita fita, muitas cores espantadas…
enfim, tout ce qu’il y a de camelote.

FELICIANINHA – Não é tanto assim.

BEATRIZ – Agora mesmo acabamos de encontrar com as filhas do Trancoso, vestidas
de um modo…

FILOMENA – É verdade, vinham muito ridículas.

BEATRIZ – Escorridas, coitadas, que pareciam um chapéu de sol fechado.
Sapristi!

FILOMENA – E onde é que foi a mulher do Seabra buscar aquele vestido
branco todo cheio de fofinhos e crespinhos!

BEATRIZ – Parecia que estava vestida de tripas. C’est incroyable.

DONA BÁRBARA – Deixe estar que na Europa também se há
de ver muita coisa ridícula. Não é só aqui que…

BEATRIZ – Disto lá nunca vi; pelo menos em Paris.

DONA BÁRBARA (Á parte.) – Desfrutável! (Para Mariquinhas,
alto.) Menina, vamos embora, que já é tarde.

MARIQUINHAS – Adeus, Dona Beatriz.

BEATRIZ – Addio. (Beijam-se todas reciprocamente.)

FILOMENA (Para Dona Bárbara.) – Apareça; sabe que sou, fui
e serei sempre sua amiga.

DONA BÁRBARA – Da mesma forma. E se assim não fosse também
dizia-lhe logo; eu cá sou muito franca.

FILOMENA – É por isso é que a estimo e considero. (Saem Dona
Bárbara, Mariquinhas e Felicianinha.)

CENA VIII
BEATRIZ e FILOMENA

BEATRIZ (Vendo Mariquinhas.) – Olhe só como vai aquele chapéu
especado no alto da cabeça.

FILOMENA – E a mãe cada vez se veste pior. Não parece que já
tem vindo ao Rio. Viste o Doutor Raul?

BEATRIZ – Não senhora.

FILOMENA – É singular! Por que desapareceu ele lá de casa?

BEATRIZ – Não sei! Alguma intriga talvez. Sou tão infeliz…

FILOMENA – Pois olha, aquele era um excelente partido. Moço, talentoso.

BEATRIZ – Tout a fait chique.

FILOMENA – E tout a fait, (Faz sinal de dinheiro.) que é o principal.

BEATRIZ – Se papai fosse chamado agora para o ministério…

CENA IX
AS MESMAS, RAUL e GOULARTE

RAUL (Entrando do fundo com Goularte e vendo Beatriz e Filomena.) – Oh! diabo!
lá está a mulher do Conselheiro Brito com a filha… Se me descobrem
estou perdido.

GOULARTE – Por quê?

RAUL – Por quê? Porque a filha namora-me, desgraçado, julga-me
muito rico, e noutro dia no Cassino, caindo eu na asneira de dizer-lhe que
era bela, encantadora, essas banalidades, tu sabes, que costumamos dizer às
moças nos bailes, o diabinho da rapariga fez-se vermelha, abaixou os
olhos, e disse-me: – Senhor Doutor Raul, por que não me pede a papai?

GOULARTE – Pois pede-lhe.

RAUL – Nessa não caio eu! É pobre como Jó, e mulher
sem isto (Sinal de dinheiro.) está se ninando. Vamos embora. (Saem.)

CENA X
FILOMENA, BEATRIZ, MISTER JAMES e PEREIRA

FILOMENA – E Mister James? Não me disseste que ele também?…

BEATRIZ – Faz-me a corte, é verdade; porém aquilo é
pássaro bisnau, e não cai assim no laço com duas razões.

FILOMENA – Dizem que é o inglês mais rico do Rio de Janeiro.

BEATRIZ – Isto sei eu.

MR. JAMES (Saindo do Castelões com Pereira e vendo as duas.) – How?
Mim não póde fica aqui; vai embora depressa, Senhor Comendador.

PEREIRA – Por quê?

MR. JAMES – Semana passada, mim estar na baile de Cassino, diz aquele menina,
que ele estar bonita; menina estar estúpida, e diz a mim – How? Por
que voucê não mi pede a papai?

PEREIRA – Bravo! E por que não ~e casa com ela?

MR. JAMES – Oh! no; mim não estar vem a Brasil pra casa. Mim vem aqui
pra faz negócia. Menina não tem dinheiro, casamento estar mau
negócia. No, no, no quer. Eu vai embora. (Sai para um lado, e Pereira
para outro.)

FILOMENA (Tirando uma carteirinha do bolso.) – Vejamos o que há ainda
a fazer.

BEATRIZ – Vamos à Notre-Dame ver os colarinhos e ao Boulevard do Manuel
Ribeiro.

FILOMENA – É verdade; vamos Já. (Saem.)

CENA XI
ERNESTO e FILIPE FLECHA

FILIPE (Saindo do armarinho com uma caixa de papelão debaixo do braço,
a Ernesto, que sai do Globo.) – Senhor Ernesto, vê aquela mulher?

ERNESTO – Qual delas? Uma é a senhora do Conselheiro Brito, a outra
é a filha.

FILIPE – Aquela mulher é a minha desgraça.

ERNESTO – Quem?… A filha?

FILIPE – Ela sim! Por causa dela já não durmo, já não
como, já não bebo. Vi-a pela primeira vez, há uma semana,
no Castelões. Comia uma empada! Com que graça ela segurava a
apetitosa iguaria entre o fura-bolo e o mata-piolho, assim, olhe. (Imita.)
Vê-la e perder a cabeça foi obra de um momento.

ERNESTO – Mas, desventurado, não sabes?…

FILIPE – Já sei o que vai dizer-me. Que sou um simples caixeiro de
armarinho e que não posso aspirar à mão daquele anjo.
Mas dentro do peito deste caixeiro pulsa um coração de poeta.
Não pode imaginar as torturas por que tenho passado desde o instante
em que a vi… Vi-a pela primeira vez no Castelões…

ERNESTO – Comia uma empada. Já me disseste.

FILIPE – Mas o que ainda não lhe disse é que por causa dela
tenho chuchado as maiores descomposturas dos patrões, e que em um belo
dia ficarei na rua a tocar leques com bandurras. A sua imagem não me
sai um só instante da cabeça. Estou no armarinho; se me encomendam
linha dou marcas de lamparinas; se gritam retrós preto trago sabonetes;
a um velho que me pediu ontem suspensórios meti-lhe nas mãos
uma bisnaga! O homem gritou, o patrão chamou-me de burro, os fregueses
tomaram pagode comigo. Estou desmoralizado.

ERNESTO – Está bom, já sei.

FILIPE – Não pode saber, seu Ernesto.

ERNESTO – Olha, se o patrão te vê de lá a conversar aqui,
estás arranjado.

FILIPE – Noutro dia à noite, quando os outros caixeiros dormiam, eu
levantei-me, acendi a vela, e escrevi este soneto. (Tira um papel do bolso
e lê.) Ouça só o princípio:

Quando te vejo radiante e bela,
Por entre rendas, filós e escumilha
Meu coração ardente se humilha,
E minha alma murmura é ela!

ERNESTO – Magnífico! Está muito bom.

FILIPE – Mandei-o para a Gazetinha. Pois querem saber o que fizeram? (Tirando
a Gazetinha do bolso e mostrando.) Leia. É aqui na correspondência.

ERNESTO (Lendo.) – “Sr. P. F.”.

FILIPE – Filipe Flecha, sou eu.

ERNESTO (Lendo.) – “Os seus versos cheiram a metro e a balcão;
o poeta não passa talvez de um caixeiro de armarinho.” (Rindo.)
É boa! É boa!

FILIPE – O maldito filó e a escumilha comprometeram-me. Não
leio mais este papelucho. (Sobe.) Lá está ela parada à
porta do Farani.

CENA XII
OS MESMOS, 1° VENDEDOR, 2° VENDEDOR, 3° IDEM, 4° IDEM (Saindo
do Globo.)

1° VENDEDOR – O Globo da tarde a 40 réis.

2° VENDEDOR – O Globo, trazendo o ministério e a lista da loteria.

3° VENDEDOR – O Globo.

4° VENDEDOR – O Globo a 40 réis.

ERNESTO – Vejamos se já há alguma coisa de novo. (Compra. Para
Filipe.) Não queres saber quem foi chamado para o ministério?

FILIPE – Que me importa o ministério? O meu ministério é
ela! Olhe, quando a vi pela primeira vez foi no Castelões. Ela comia…

ERNESTO – Uma empada, com os diabos, já sei; não me amoles.
(Sai.)

CENA XIII
FILIPE e VENDEDOR DE BILHETES

VENDEDOR DE BILHETES – A sorte grande do Ipiranga!… Quem quer os duzentos
contos!

FILIPE – Oh! Como te amo!

VENDEDOR (Para Filipe.) – Não quer os duzentos contos?

FILIPE – Deixa-me.

VENDEDOR – Fique com este número que é o último.

FILIPE – Não quero..

VENDEDOR – Eu tenho um palpite de que o senhor apanha a taluda.

FILIPE – Homem, vá-se embora.

VENDEDOR – Veja só o número.

FILIPE (À parte.) – Quem sabe se não está aqui a minha
felicidade?!

VENDEDOR – Então, não se tenta?

FILIPE (Á parte, tirando dinheiro do bolso.) – Lá se vão
os últimos vinte e cinco mil réis, que me restam do ordenado
deste mês. (Alto.) Tome. Não quero ver o número. (Sai
o vendedor.) Lá seguiu ela para a rua dos Ourives. (Sai correndo.)

CENA XIV
MISTER JAMES e RAUL

RAUL (Saindo da direita e lendo o Globo.) – “À hora em que entrou
a nossa folha para o prelo, ainda não se sabia…” (Continua a
ler baixo.)

MR. JAMES (Que vem lendo também o Globo, entrando por outro lado.)
– “Os últimos telegramas da Europa anunciam. (Continua a ler baixo,
encontrando-se com Raul.)

RAUL – Oh! Mister James! Como está?

MR. JAMES – How, Senhor Raul, como tem passada?

RAUL – Então sabe já alguma coisa acerca do ministério?

MR. JAMES – Não estar já bem informada. É difícil
este crise. Neste país tem duas cousas que não estar bom; é
criadas e ministéria. Criadas não quer pára em casa,
e ministéria dura três, quatro meses, bumba! Vai em terra. Brasileira
não pode suporta governo muite tempa. Quando ministra começa
a faz alguma cousa, tudo grita – No presta, homem estar estúpida, homem
estar tratanta…

RAUL – Infelizmente é a pura verdade.

MR. JAMES – Quando outra sobe diz mesma cousa, muda presidenta de província,
subdelegada, inspetor de quarteirão, e país, em vez de anda,
estar sempre parada.

RAUL – A verdade nua e crua.

MR. JAMES – Voucê escusa, se mim diz isto. Tudo quanto faz neste terra
não é pra inglês ver?

RAUL – Assim dizem.

MR. JAMES – Pois então mim estar inglês, mim estar na direita
de faz crítica do Brasil.

RAUL – A maldita política é que tem sido sempre a nossa desgraça.

MR. JAMES – Oh! Yes. Vem liberal, faz couse boe, vem conservador desmanche
couse boe de liberal.

RAUL – E vice-versa.

MR. JAMES – Oh! Yes.

RAUL – E os republicanos?

MR. JAMES – How! Não fala em republicanas. Estar gente toda very good.
Mas mim não gosta de republicana que faz barulha no meio da rua; governo
dá emprega e republicana cala sua boca.

RAUL – Mas no número destes que calam a boca com empregos não
se compreendem os republicanos evolucionistas; aqueles que, como eu, querem
o ideal dos governos sem sangue derramado, sem comoções sociais…

MR. JAMES – Oh! Republicana evolucionista estar a primeira de todos republicanas.
Espera de braço cruzado que república aparece; e enquanto república
não aparece, republicana estar ministra, deputada, senador, conselheira,
tuda. Republicana evolucionista estar partida que tem por partida tira partida
de todas as partidas.

RAUL – Não é nos partidos que está o nosso mal.

MR. JAMES – Sua mal de voucês está no língua. Brasileira
fala muito, faz discursa very beautiful, mas país não anda pra
adiante com discursa.

RAUL – Tem razão.

MR. JAMES – País precisa de braças, de comércia, de
indústria, de estradas de ferro…

RAUL – É verdade, e a sua estrada para o Corcovado?

MR. JAMES – Mim estar em ajuste com companhia. Mas quando pretende compra
estrada e que tem promessa de governa pra privilégia, maldita governa
cai, e mim deixa de ganha muita dinheira.

RAUL – Mas pode obter o privilégio com esta gente.

MR. JAMES – Oh! Yes! Para alcança privilégia em que ganha dinheira
mim faz tudo, tudo.

RAUL – Se eu pudesse alcançar também…

MR. JAMES – Uma privilégia?

RAUL – Não; contento-me com um emprego.

RAUL – Mas esta notícia é verdadeira?

ERNESTO – Está à porta de todos os jornais. Na Gazetinha, na
Gazeta de Notícias..

GOULARTE – Na Gazeta da Tarde, no Cruzeiro… no Jornal do Commercio…

RAUL – Lá estão pregando um papel no Globo (Reúnem-se
todos junto ao Globo, menos Raul, Filipe e Mister James, que ficam no proscênio.)

RAUL (À parte.) – Beatriz julga-me rico, ofereço-lhe a mão,
que aliás ela já pediu, e apanho um emprego.

MR. JAMES (À parte.) – Filha de presidenta de conselha estar apaixonada
por mim; mim com certeza apanha privilégia.

FILIPE (À parte.) – Eu amo-a, adoro-a cada vez mais. Ah! que se eu
apanho a sorte grande!!

RAUL – Está chovendo. (Abre o chapéu-de-chuva.)

MR. JAMES – É verdade. (Abre o guarda-chuva. Todos abrem guarda-chuvas,
menos Filipe.)

FILIPE (À parte.) – Lá vem ela!

RAUL (À parte.) – Ela!

MR. JAMES (Vendo Beatriz.) – How! (Ao entrar em cena Beatriz, acompanhada
de Filomena, Raul dá-lhe o braço e cobre-a com o chapéu,
James dá o braço a Filomena e cobre-a.)

RAUL – Dou-lhe os meus sinceros parabéns.

MR. JAMES – Minhas felicitaçãos.

FILOMENA – Obrigada.

FILIPE (Tomando os embrulhos de Filomena e Beatriz) – Façam o favor,
minhas senhoras!

BEATRIZ – Não se incomode.

FILIPE (À parte.) – Que mão, Santo Deus! Estou aqui, estou-lhe
em casa.

(Fim do primeiro ato.)

ATO SEGUNDO

Sala elegantemente mobiliada. Portas ao fundo e laterais.

CENA I
ERNESTO e FILIPE

ERNESTO (Entrando, a Filipe, que deve estar tomando notas em uma pequena
carteira.) – Filipe?! Por aqui?!

FILIPE – E então?

ERNESTO – És também pretendente?

FILIPE – Não; sou repórter.

ERNESTO – Repórter?

FILIPE – É verdade. O amor ou é a minha perdição
ou há de ser talvez a causa da minha felicidade. Venho aqui todos os
dias, extasio-me diante daquelas formas divinas… Olhe, quando a vi pela
primeira vez foi no Castelões, ela…

ERNESTO – Comia uma empada.

FILIPE – Ah! Já lhe disse?

ERNESTO – Milhares de vezes; já sei esta história de cor e
salteado. Mas como diabo te fizeste repórter?

FILIPE – Desde o dia em que tive a felicidade de encontrar essa mulher na
estrada sinuosa, espinhosa, lacrimosa da existência, tornei-me completamente
outro homem. A atmosfera do armarinho pesava-me, o balcão acachapava-me,
o metro desmoralizava-me, e a idéia de ter um patrão encafifava-me…
Eu sentia dentro de mim um não sei quê que me dizia: – Filipe
Flecha, tu não nasceste para vender agulhas, alfazema e lamparinas
marca de pau, ergue a cabeça…

ERNESTO – E ergueste-a.

FILIPE – Não, abaixei-a para evitar um cascudo que o patrão
pretendia dar-me em um belo dia em que estava a olhar para a rua, em vez de
servir as freguesas, e não voltei mais à loja. Achando-me só,
sem em prego, disse com os meus botões: – é preciso que eu faça
alguma coisa. Escrever para o público, ver o meu nome em letra redonda,
o senhor sabe, foi sempre a minha cachaça. Fiz-me repórter,
nas horas vagas escrevo versos, e daqui para jornalista é um pulo.

ERNESTO – És mais feliz do que eu.

FILIPE – Por quê?

ERNESTO – Porque não pretendes sentar-te a uma grande mesa que há
neste país, chamada do orçamento, e onde, com bem raras exceções,
todos têm o seu talher. Nesta mesa uns banqueteiam-se, outros comem,
outros apenas lambiscam. E é para lambiscar um bocadinho, que venho
procurar o ministro.

FILIPE – Ele não deve tardar.

ERNESTO – Fui classificado em primeiro lugar no último concurso da
secretaria.

FILIPE – Então está com certeza nomeado.

ERNESTO – Se a isso não se opuser um senhor de baraço e cutelo,
chamado empenho, que tudo ata e desata nesta terra, e a quem até os
mais poderosos curvam a cabeça.

FILIPE – Aí vem o ministro.

CENA II
OS MESMOS, CONSELHEIRO FELÍCIO DE BRITO

ERNESTO (Cumprimentando.) – Às ordens de Sua Excelência.

FILIPE (Cumprimentando.) – Excelentíssimo.

BRITO – O que desejam?

ERNESTO – Vinha trazer esta carta para Sua Excelência e implorar-lhe
a sua valiosa proteção.

BRITO (Depois de ler a carta.) – Sim, senhor. Diga ao Senhor Senador que
hei de fazer todo o possível por servi-lo. Vá descansado.

ERNESTO – Eu tenho a observar a Sua Excelência…

BRITO – Já sei, já sei.

ERNESTO – Que fui classificado em primeiro lugar.

BRITO – Já sei, já sei. Vá. (Ernesto cumprimenta e sai.
A Filipe, que deve estar a fazer muitos cumprimentos.) O que quer? Ah! É
o senhor?

FILIPE – Humilíssimo servo de Sua Excelência. Desejava saber
se já há alguma coisa de definitivo.

BRITO – Pode dizer na sua folha que hoje mesmo deve ficar preenchida a pasta
da Marinha; que o governo tem lutado com dificuldades… Não, não
diga isto.

FILIPE – E essas dificuldades devem ter sido bem grandes; porque há
quinze dias que o ministério está organizado, e ainda não
se pôde achar um ministro para a Marinha.

BRITO – O verdadeiro é não dizer nada. Venha cá logo,
e comunicar-lhe-ei então tudo o que houver ocorrido.

FILIPE (À parte.) – Onde estará ela?

BRITO – Vá, vá, venha logo.

FILIPE (À parte.) – Se eu pudesse vê-la. (Alto.) Excelentíssimo.
(Cumprimenta e sai.)

CENA III
BRITO, FILOMENA e BEATRIZ

BRITO (Toca a campainha; aparece um criado.) – Não deixe ninguém
entrar nesta sala. (O criado inclina-se.)

FILOMENA (Que entra com Beatriz, pela esquerda.) – E as minhas visitas?

BEATRIZ – E as minhas, papai? Voyons. Ça ne se fait pas.

BRITO – Porém, minha querida Beatriz, espero aqui os meus colegas,
temos que tratar de negócios do Estado, que são negócios
muito sério.

BEATRIZ – Ça ne fait rien.

FILOMENA – Ao menos dê ordem para que deixem entrar Mr. James.

BEATRIZ – E o Senhor Raul também.

BRITO – Valha-me Deus! Vocês alcançam de mim tudo ó que
querem. (Para o criado.) Quando o Senhor James e o Senhor Raul chegarem, manda-os
entrar. (O criado cumprimenta e sai.) Estão satisfeitas?

BEATRIZ – I love you, meu querido papai.

FILOMENA (Reparando a sala.) – E então? A sala já não
parece a mesma!

BEATRIZ – E as cortinas estão assorti com a mobília, Mas este
tapete é um escarro.

FILOMENA – É verdade. Felício, precisamos comprar um tapete.
Vi ontem um muito bonito no Costrejean.

BRITO – Não compro mais coisa alguma, minha senhora. A senhora pensa
porventura que eu aceitei esta prebenda para ainda em cima arruinar-me?

FILOMENA – Quando se está em certa posição, não
se deve fazer figura ridícula.

BEATRIZ – Noblesse oblige, papai.

FILOMENA – Não sei o que quer dizer ser ministro e andar de bonde
como os outros, ter uma casa modestamente mobiliada, como os outros, não
receber, não dar bailes, não dar jantares, como os outros, vestir-se
como os outros…

BEATRIZ – É verdade. C’est ridicule.

BRITO – Mas, minhas filhas, não há ninguém por aí
que não saiba que tenho poucos recursos, que vivo apenas dos meus ordenados.
A vida de um homem de Estado é devassada e esmerilhada por todos, desde
os mais ínfimos até os mais elevados representantes da escala
social. O que dirão se me virem amanhã ostentando um luxo incompatível
com os meus haveres?

FILOMENA – Se a gente for dar satisfações a tudo o que dizem…

BRITO – E olha que aqui não se cochila para dizer que um ministro
é ladrão. O que mais querem vocês de mim? Já obrigaram-me
a alugar esta casa em Botafogo.

FILOMENA – Devíamos ficar morando em Catumbi?

BRITO – E o que tem Catumbi?

BEATRIZ – Ora papai.

BRITO – Sim, o que tem?

BEATRIZ – Não é um bairro como il faut.

BRITO – Obrigaram-me a assinar o Teatro Lírico e… camarote.

FILOMENA – Está visto. Havia de ser interessante ver a família
do presidente do Conselho sentada nas cadeiras…

BEATRIZ – Como qualquer Sinhá Ritinha da Prainha ou da Gamboa… Dieu
m’en garde! Eu preferiria lá não ir.

BRITO – Obrigaram-me mais a ter criados estrangeiros de casaca e gravata
branca, quando eu podia perfeitamente arranjar a festa com o Paulo, o Zebedeu
e a Maria Angélica.

BEATRIZ – Pois não, são frescos, sobretudo o Zebedeu. No outro
dia, à mesa de jantar, mamãe disse-lhe: – Vá buscar lá
dentro uma garrafa de vinho do Porto, mas tome cuidado, não a sacuda.
Quando chegou com a garrafa, mamãe perguntou-lhe: – Sacudiu? – Não
senhora, diz ele, mas vou sacudir agora. E começa, zás, zás,
zás. (Faz menção de quem sacode.) Quelle ímbecile.
Aquilo é que os alemães chamam – ein Schafskopf!

BRITO – Até a minha roupa vocês querem reformar.

FILOMENA – Com franqueza, Felício, a tua sobrecasaca já estava
muito sebosa!

BEATRIZ – Papai quer fazer a mesma figura que faz o ministro do Império?

BRITO – É um homem muito inteligente. Tem um grande tino administrativo.

BEATRIZ – Tem, sim, senhor; mas era melhor que ele tivesse um paletó
na razão direta da inteligência. E depois, como come, Santo Deus!
Segura na faca assim, olhe, (Mostra.) e mete-a na boca até o cabo,
toda atulhada de comida. Choking.

BRITO – Em compensação o ministro de Estrangeiros.

BEATRIZ – É o melhorzinho deles. Mas não sabe línguas.

BRITO – Estás enganada, fala muito bem francês.

BEATRIZ – Muito bem, muito bem, lá para que digamos não senhor.
Diz monsíù, negligè, bordó, e outras que tais.

BRITO – Enfim há quinze dias apenas que subi ao poder e já
estou cheio de dívidas!

FILOMENA – Não é tanto assim.

BRITO – Só ao compadre Bastos devo dez contos de réis.

FILOMENA – E se não fosse ele, estaríamos representando um
papel bem triste.

BEATRIZ – Não poderíamos receber às quintas-feiras o
high life do Rio de Janeiro.

BRITO – Sim, esse high lífe que aqui vem dançar o cotillon,
ouvir boa música, saborear-me os vinhos; e que abandonar-me-á
com a mesma facilidade com que hoje me adula, no dia em que eu não
puder mais dispor dos empregos públicos.

BEATRIZ – Papai não tem razão.

BRITO – Pois bem, minha filha, quer tenha ou não razão, só
te peço uma coisa, e faço igual pedido à tua mãe.
Não exijam de mim impossíveis. Vocês sabem que nada lhes
posso negar. (Tirando o relógio e vendo as horas.) Os meus companheiros
não tardam. Vou ao meu gabinete; já volto.

CENA IV
FILOMENA, BEATRIZ e MISTER JAMES

BEATRIZ (Sentando-se e lendo um livro, que deve trazer na mão.) –
É muito bem escrito este romance de Manzoni.

FILOMENA – Um tapete novo aqui deve fazer um vistão. Não achas?

MR. JAMES (Com um rolo debaixo do braço.) – Mim pode entra?

FILOMENA – Oh! Mr. James!

MR. JAMES – Como está, senhorra? (Para Beatriz.) Vosmecê vai
bem?

FILOMENA – Pensei que não viesse.

MR. JAMES – Oh! mim dá palavra que vem; mim não falta sua palavra.

BEATRIZ – Assim deve ser.

FILOMENA – Trouxe os seus papéis?

MR. JAMES – Oh! Yes.

BEATRIZ – O seu projeto é a great attraction do dia.

MR. JAMES – Projeto estar muita grandiosa. (Desenrola o papel e mostra.)
Carros sai daqui de Cosme Velha, e sobe Corcovada em vinte minutas.

BEATRIZ – E estes cachorros que estão aqui pintados?

MR. JAMES – Senhorras não entende deste cousa: mim fala com pai de
vosmecê, explica o que é todos esses cachorras.

FILOMENA – Tudo quanto temos de bom devemos aos senhores estrangeiros.

BEATRIZ – C’est vrai. Os brasileiros, com raras exceções, não
se ocupam destas coisas.

MR. JAMES – Brasileira estar muito inteligenta; mas estar também muito
preguiça. Passa vida no rua do Ouvidor a fala de política, pensa
só de política de manhã até a noite. Brasileira
quer estar deputada, juiz de paz, vereador… Vereador ganha dinheira?

FILOMENA – Não, senhor; é um cargo gratuito.

MR. JAMES – Então mim não sabe como tudo quer ser vereador.
Senhorra já fala com sua marida a respeita de minha projeta?

FILOMENA – Não, senhor, mas hei de falar-lhe.

MR. JAMES – Sua marida estar engenheira ou agricultor?

BEATRIZ – Papai é doutor em Direito.

MR. JAMES – É ministra de Império?

BEATRIZ – Também doutor em Direito.

MR. JAMES – Ministra d’Estrangeiras?

FILOMENA – Doutor em Direito.

MR. JAMES – How! Toda ministéria estar doutor em direita?

BEATRIZ – Sim, senhor.

MR. JAMES – Na escola de doutor em direita estuda marinha, aprende planta
batatas e café, e sabe todas essas cousas de guerra?

FILOMENA – Não, senhor.

BEATRIZ – Estudam-se leis.

MR. JAMES – No Brasil estar tudo doutor em direita. País no indireita
assim. Mim não sabe se estar incomodando senhora. (Sentam-se.)

BEATRIZ – Oh! o senhor nunca nos incomoda, dá-nos sempre muito prazer.

MR. JAMES – Pois mim tem também multo prazer em conversa com vosmecê;
(Para Beatriz) pois eu gosta muito de brasileiras.

BEATRIZ – Mas as inglesas são very beautiful. Eu vi em Londres, no
Hyde-Park, verdadeiras formosuras.

MR. JAMES – Oh! yes. Inglesas estar muito bonitas, mas brasileira tem mais…
tem mais… Como chama este palavra… Eu tem no ponta da língua…
Brasileira tem mais pasquim.

FILOMENA – Pasquim?!

MR. JAMES – No, no, como chama este graça de brasileira?

BEATRIZ – Ah! quindins.

MR. JAMES – Oh! yes, very well. Quindins.

FILOMENA – Muito bem, Mr. James. Falta agora que o senhor confirme o que
acaba de dizer casando-se com uma brasileira.

MR. JAMES – Mim no pode casa, por ora, porque só tem cinqüenta
mil libras sterlinas; mas se mim arranja este privilégia, dá
palavra que fica em Brasil e casa com brasileira.

FILOMENA – Pelo que vejo já está enfeitiçado pelos quindins
de alguma?

MR. JAMES – Não duvida, senhora, e crê que feitiça não
estar muito longe daqui. (Olha significativamente para Beatriz.)

BEATRIZ – (À parte.) – Isto já eu sabia.

FILOMENA (À parte.) – É a sorte grande!

CENA V
OS MESMOS e BRITO

BRITO (Vendo o relógio.) Ainda nada. Oh! Mister James. Como está?

MR. JAMES – Criada de Sua Excelência. (Conversa com Beatriz.)

FILOMENA (Levando Brito para um lado.) – Este inglês possui uma fortuna
de mais de quinhentos contos, parece gostar de Beatriz… Se nós soubermos
levá-lo, poderemos fazer a felicidade da menina.

BRITO – E o que queres que faça?

FILOMENA – Que lhe concedas o privilégio que ele pede.

BRITO – Mas, senhora, estas questões não dependem só
de mim. Eu não quero comprometer-me.

FILOMENA – Então para que te serve ser presidente do Conselho?

BRITO – Mas eu não posso nem devo dispor das coisas do Estado para
arranjos de família. A senhora já me endividou e quer agora
desacreditar-me.

FILOMENA – Pois isto há de se fazer. Mr. James, meu marido quer conversar
com o senhor a respeito do seu negócio.

BRITO – Estarei às suas ordens, Senhor James; porém um pouco
mais tarde. Espero os meus colegas.

Ma. JAMES – A que horas mim pode procura Sua Excelência?

BRITO – Às duas horas.

MR. JAMES – Até logo. (Cumprimenta e sai.)

CENA VI
OS MESMOS, menos MISTER JAMES

BRITO – A senhora ainda há de comprometer-me. (Saí.)

FILOMENA – Dizem todos que é um projeto grandioso.

BEATRIZ – Vou acabar a leitura deste romance.

FILOMENA – Eu vou dar as ordens para a partida desta noite.

CENA VII
DONA BÁRBARA, CRIADO e o DESEMBARGADOR FRANCISCO COELHO

CRIADO – Sua Excelência não está em casa.

COELHO – Quero falar com as senhoras. Aqui tem o meu cartão. (Criado
cumprimenta e sai.)

DONA BÁRBARA – Está em casa com toda a certeza; mas negou-se.

COELHO – Isto sei eu; e por isso é que entrei.

DONA BÁRBARA – Eu não devia vir. Estas sirigaitas aborrecem-me
extraordinariamente.

COELHO – Mas, minha filha, tu pensas que em política a gente sobe
unicamente por seus belos olhos? Não sou rico, já estou velho,
não tenho pai alcaide, se deixar fugir as ocasiões, quando serei
ministro?

DONA BÁRBARA – E para que você quer ser ministro, seu Chico?

COELHO – Ora, tens às vezes certas perguntas? Para quê? Para
governar, para fazer o que os outros fazem.

DONA BÁRBARA – Você não tem sabido governar a fazenda,
e quer governar o Estado!

COELHO – A senhora não entende destas coisas.

DONA BÁRBARA – Ora, diga cá! Suponha que você é
nomeado ministro.

COELHO – Sim, senhora.

DONA BÁRBARA – Perde a cadeira na Câmara. Tem de sujeitar-se
a uma nova eleição.

COELHO – E o que tem isto?

DONA BÁRBARA – O que tem?! É que se você cair nesta asneira,
seu Chico, toma uma derrota, tão certo como eu chamar-me Bárbara
Benvinda da Purificação Coelho.

COELHO – Eu, ministro, derrotado?

DONA BÁRBARA – E por que não? Você é melhor do
que os outros?

CENA VIII
OS MESMOS, RAUL, BEATRIZ e FILOMENA

RAUL – Senhor Desembargador.

COELHO – Senhor doutor.

RAUL – Minha senhora.

FILOMENA – Fiz-lhe esperar muito?

BEATRIZ (Para Raul.) – Não sabia que estava também aqui.

COELHO – O conselheiro não está em casa?

FILOMENA – Está no seu gabinete.

DONA BÁRBARA (Baixo.) – O que te dizia eu?

FILOMENA – Quer falar-lhe?

COELHO – Se fosse possível.

FILOMENA – Entre.

COELHO – Com licença. (Sai.)

CENA IX
RAUL, BEATRIZ, DONA BÁRBARA e FILOMENA

DONA BÁRBARA – Como vão os seus pequenos?

FILOMENA – O Chiquinho vai bem; a Rosinha é que tem passado mal.

BEATRIZ (A Raul.) – Por que não tem aparecido?

RAUL – Sabe que o meu desejo era viver sempre a seu lado.

BEATRIZ – Está nas suas mãos.

RAUL – Se fosse possível…

DONA BÁRBARA – Quem sabe se ela não sofre de vermes?

FILOMENA – O próprio médico não sabe o que é.
Sente umas coisas que sobem e descem; às vezes fica meia apatetada.

DONA BÁRBARA – Querem ver que é mau olhado!

FILOMENA – Ora, a senhora acredita nessas coisas?!

DONA BÁRBARA – É porque a senhora ainda não viu o que
eu presenciei com estes que a terra há de comer.

FILOMENA – Ah! ah! ah! O senhor crê em mau olhado, Senhor Raul?

RAUL – Não, minha senhora; apenas no bom olhado de uns olhos feiticeiros.
(Olha para Beatriz significativamente.)

DONA BÁRBARA – Pois eu vi lá em Minas uma criatura, que estava
bem atacada. E em dez minutos ficou boa.

FILOMENA – Com a homeopatia?

DONA BÁRBARA – Com uma oração.

FILOMENA – Ah! E como é esta oração?!

DONA BÁRBARA – A mulher chamava-se Francisca. Molharam um ramo de
arruda em água benta e rezaram-lhe o seguinte: “Francisca, se
tens mau olhado, ou olhos atravessados, eu te benzo em nome do Padre, do Filho
e do Espírito Santo. Deus te olhe e Deus te desolhe, e Deus te tire
essa mau olhado, que entre a carne e os ossos, tens criado; que saia do tutano
e vá para os ossos, que saia dos ossos e vá para a carne, que
saia da carne e vá para a pele, E que daí saia, e vá
para o Rio Jordão, onde não faça mal a nenhum cristão.”
É infalível. Experimente.

BEATRIZ (Baixo a Raul.) – Quelle bêtise.

RAUL – Não acredita na influência dos olhos?

BEATRIZ – Sim; mas não creio na eficácia daquelas orações.

RAUL – E sabe ler neles?

BEATRIZ – Quelque chose.

RAUL – O que lhe dizem os meus?

BEATRIZ – Que o senhor é um grande bandoleiro.

RAUL – Não, não é isto o que eles dizem.

BEATRIZ – O que dizem então? Voyons.

RAUL – Que aqui dentro há um coração que pulsa pela
senhora e só para a senhora.

BEATRIZ – Non lo credo.

RAUL – Dona Beatriz, se estivesse em condições de fazê-la
feliz, hoje mesmo dirigia-me a seu pai, e pedia-lhe o que mais ambiciono neste
mundo – a sua mão.

BEATRIZ – E o que lhe falta para tornar-me feliz?

RAUL – Uma posição social.

BEATRIZ – O senhor não é bacharel em Direito?

RAUL – É verdade.

BEATRIZ – Alors…

RAUL – Porém, se o ser bacharel em Direito fosse um emprego, haveria
muito pouca gente desempregada no Brasil. Seu pai está hoje no governo,
poderia lançar as suas vistas sobre mim. Como seríamos felizes
um ao lado do outro.

BEATRIZ – Eu vou falar com mamãe. Comunicar-lhe-ei as suas intenções
a meu respeito, e dar-lhe-ei a resposta.

RAUL – Advogue bem a minha causa, ou antes a nossa causa.

BEATRIZ – Sim. (À parte.) E eu que o julgava desinteressado. Oh! les
hommes! les hommes!

FILOMENA – Por que não veio à nossa última partida,
Senhor Raul?

BEATRIZ (Para Raul.) – Dançamos um cotillon que durou quase duas horas.

RAUL – Quem marcava?

BEATRIZ – O ministro da Bélgica. Oh! que j’aime le cotillon

DONA BÁRBARA – O que vem a ser isto de cotiáo?

BEATRIZ – Uma dança arrebatadora.

CENA X
OS MESMOS e COELHO

COELHO (Zangado.) – Vamos embora.

FILOMENA – Já?!

DONA BÁRBARA (Baixo a Coelho.) – Então; o que arranjaste?

COELHO (Baixo.) – O que arranjei?! Nada; mas ele arranjou uma oposição
de arrancar couro e cabelo. Hei de mostrar-lhe o que valho. Estão aqui
estão na rua.

DONA BÁRBARA (Baixo.) – Bem feito.

COELHO (Baixo.) – Vamos embora.

FILOMENA (Para Coelho e Bárbara, que se despedem.) – Espero que apareçam
mais vezes.

COELHO – Obrigado, minha senhora. (Saem.)

RAUL – Há de permitir-me também…

FILOMENA – Então até a noite.

RAUL – Até a noite. (Sai.)

CENA XI
FILOMENA e BEATRIZ

BEATRIZ – O Senhor Raul acaba agora mesmo de pedir-me a mão.

FILOMENA – Agora mesmo?

BEATRIZ – Mas sob uma condição.

FILOMENA – Qual é?

BEATRIZ – De arranjar-lhe com papai um emprego. Veja só a senhora
o que são os homens de hoje!

FILOMENA – E que lhe respondeste?

BEATRIZ – Que havia de falar com vosmecê e que dar-lhe-ia depois a
resposta.

FILOMENA – Muito bem. Não lhe digas nada, por ora, enquanto não
se decidir o negócio do inglês. Tenho mais fé em Mr. James.
Aquilo é que se pode chamar um bom partido.

BEATRIZ – E ele quererá casar comigo?

FILOMENA – Ora, não quer ele outra coisa.

CENA XII

CRIADO, MINISTRO DA GUERRA, MINISTRO DA JUSTIÇA, MINISTRO DO IMPÉRIO,
MINISTRO DE ESTRANGEIROS, FILOMENA e BEATRIZ

CRIADO (Na porta.) – Sua Excelência o Senhor Ministro da Guerra.

MINISTRO DA GUERRA – Minhas senhoras. (Cumprimenta Beatriz.)

FILOMENA (Para o criado.) – Vá chamar seu amo. (O criado sai pela
porta da esquerda.)

BEATRIZ – Como está sua senhora?

MINISTRO DA GUERRA – Bem, obrigado, minha senhora.

FILOMENA (Despedindo-se.) – Com licença. (Sai com Beatriz.)

CENA XIII
OS MESMOS e BRITO, menos FILOMENA e BEATRIZ

BRITO – Meu caro conselheiro. Os outros colegas ainda não vieram?

MINISTRO DA GUERRA – Aí está o ministro da Justiça.

MINISTRO DA JUSTIÇA – Conselheiro…

MINISTRO DA GUERRA – E do Império. (Entra o ministro do Império.)

MINISTRO DA JUSTIÇA – O nosso colega de Estrangeiros aí vem.

BRITO – Ei-lo. (Entra o ministro de Estrangeiros.) Meus senhores, precisamos
conjurar seriamente as dificuldades que nos cercam.

MINISTRO DA GUERRA – Apoiado.

BRITO – Há quinze dias apenas que subimos ao poder, e já se
notam muitos claros nas fileiras da maioria.

MINISTRO DA JUSTIÇA – A oposição se engrossa a olhos
vistos.

BRITO – Agora mesmo acaba de sair daqui o Desembargador Coelho. É
mais um descontente que passa para o outro lado.

MINISTRO DA JUSTIÇA – O Coelho? Ainda ontem, pode-se dizer, aspirava
a ser o líder da maioria.

BRITO – É verdade! Porém suspira por uma pasta, e nas circunstâncias
atuais não é possível.

CENA XIV

O CRIADO, BRITO, MINISTRO DA GUERRA, MINISTRO DA JUSTIÇA, MINISTRO
DO IMPÉRIO, MINISTRO DE ESTRANGEIROS, CONSELHEIRO FELIZARDO e DOUTOR
MONTEIRINHO

CRIADO (À parte.) – O Senhor Conselheiro Felizardo.

BRITO – Oh! Senhor Conselheiro. (Cumprimentam-se todos.) Esperava ansiosamente
por Vossa Excelência.

FELIZARDO – Estou às ordens de Vossa Excelência.

BRITO – O seu nome, o prestígio de que goza, a sua dedicação
às idéias dominantes, são títulos que muito o
habilitam.

FELIZARDO – Bondade de meus correligionários.

MINISTRO DO IMPÉRIO – Pura justiça.

BRITO – Precisamos do apoio de Vossa Excelência, como do ar que respiramos.
A pasta da Marinha ainda está vaga.

FELIZARDO – Já estou velho…

BRITO – Não nos animamos a oferecê-la. Longe de nós semelhante
pensamento! O lugar de Vossa Excelência é na presidência
do Conselho.

FELIZARDO – Se Vossas Excelências permitem, dou um homem por mim.

MINISTRO DO IMPÉRIO – Basta ser de sua confiança…

BRITO – Para ser recebido de braços abertos.

FELIZARDO (Apresentando o Doutor Monteirinho.) – Aqui está o homem,
o Doutor Monteiro, meu sobrinho, filho de minha irmã Maria José;
e que acaba de chegar da Europa, razão pela qual ainda não tomou
assento na Câmara.

BRITO (Admirado.) – Senhor Doutor, folgo muito de conhecê-lo. (Baixo
a Felizardo.) Acho-o, porém, tão mocinho.

FELIZARDO – Formou-se o ano passado em São Paulo. (Baixo.) Que inteligência,
meu amigo!

DR. MONTEIRINHO – Saí apenas dos bancos da academia, é verdade,
meus senhores; mas tenho procurado estudar com afinco todas as grandes questões
sociais que se agitam atualmente. A minha pena já é conhecida
no jornalismo diário e nas revistas científicas. Na polêmica,
nas questões literárias, nos debates políticos, nas diversas
manifestações, enfim, da atividade intelectual, tenho feito
o possível por criar um nome.

FELIZARDO (Baixo.) – É muito hábil.

BRITO (Baixo.) – É verdade.

FELIZARDO (Baixo.) – É um canário.

DR. MONTEIRINHO – Se não fossem as influências mesológicas
assaz acanhadas, em que vivem nesta terra as inteligências que procuram
abrir a corola aos raios ardentes da luz, eu já teria talvez aparecido,
a despeito dos meus verdes anos.

BRITO (Baixo a Felizardo.) – Que idade tem?

FELIZARDO – Que idade tens, Cazuza?

DR. MONTEIRINHO – Vinte e dois anos.

MINISTRO DA JUSTIÇA – O Senhor Doutor Monteiro não é…

FELIZARDO – Chame-o Doutor Monteirinho. É o nome por que ele é
conhecido.

MINISTRO DA JUSTIÇA – O Doutor Monteirinho não é o autor
da célebre poesia O grito da escravidão, que veio publicada
no Correio Paulistano?

DR. MONTEIRINHO – E que foi transcrita em todos os jornais do Império.
Um seu criado. Já cultivei a poesia em tempos que lá vão.
Hoje, em vez de tanger a lira clorótica do romantismo ou de dedilhar
as cordas, afinadas ao sabor moderno, dos poetas realistas, leio Spencer,
Schopenhauer, Bückner, Littré, todos esses grandes vultos, que
constituem o apostolado das sociedades modernas.

FELIZARDO (Baixo, a Brito.) – Este rapaz vai fazer um figurão no ministério.

BRITO – Creio. Terá, porém, ele a experiência dos negócios
públicos?

FELIZARDO – Não lhe dê cuidado. Fica sob as minhas vistas: eu
saberei guiá-lo.

DR. MONTEIRINHO – A grande naturalização é uma das questões
atuais mais importantes para o Brasil.

BRITO – Podemos contar, portanto, com o apoio decidido de Vossa Excelência.

FELIZARDO – Se até aqui eu quebrava lanças por este ministério…

BRITO – Lá isso é verdade.

FELIZARDO – Imagine agora… (Olhando para Monteirinho.) O meu Cazuzinha!

DR. MONTEIRINHO – E a questão das terras? Já leram a Questão
Irlandesa, de Henry George? É um livro admiravelmente escrito. Um livro
do futuro!

BRITO – Senhor Doutor Monteirinho, temos a honra de considerar Vossa Excelência
no número dos nossos colegas.

DR. MONTEIRINHO – Oh! Senhor Conselheiro.

FELIZARDO – Cazuza, faz por seguir o caminho de teu tio. Vou correndo para
a casa. Que alegrão vai ter a Maria José. (Sai.)

CENA XV
OS MESMOS e JAMES, menos FELIZARDO

BRITO – Vamos para o gabinete.

MR. JAMES (Aparecendo na porta.) – Duas horas em ponta.

BRITO (À parte.) – Que maçada. Não me lembrava mais
dele. (James entra. Alto.) Meus senhores, apresento-lhes Mr. James, que requer
um privilégio que parece ser de grande utilidade.

DR. MONTEIRINHO – Vejamos.

MR. JAMES (Desenrolando o papel e mostrando.) – Aqui tem, senhoras.

DR. MONTEIRINHO – O que vem a ser isto?

BRITO – Uma estrada especial para o Corcovado.

MR. JAMES – Maquinisma estar muito simples. Em vez de duas trilhas, ou de
três trilhas, como tem sistema adotada, mim coloca uma só trilha
larga, de meu invenção.

DR. MONTEIRINHO – É bitola estreita?

MR. JAMES – Oh! estreitíssima! É bitola zero.

DR. MONTEIRINHO – E como se sustém o carro?

MR. JAMES – Perfeitamente bem.

DR. MONTEIRINHO – O sistema parece ser facílimo.

MR. JAMES – E estar muito econômica, senhorr.

MINISTRO DA JUSTIÇA – Mas não vejo máquina, vejo apenas
cachorros. O que quer dizer isto?

MR. JAMES – Ai é que está tuda.

BRITO – Não compreendo. Tenha a bondade de explicar-me.

MR. JAMES – Idéia estar aqui completamente nova. Mim quer adota sistema
cinófero. Quer dizer que trem sobe puxada por cachorras.

DR. MONTEIRINHO – Não era precisa a explicação. Nós
todos sabemos que cinófero vem do grego cynos, que quer dizer cão,
e feren, que significa puxar, etc.

MR. JAMES – Muito bem, senhorr.

DR. MONTEIRINHO Agora o que se quer saber é como é que os cachorros
puxam.

MR. JAMES – Cachorra propriamente no puxa. Roda é oca. Cachorra fica
dentro de roda. Ora, cachorra dentro de roda, no pode estar parada. Roda ganha
impulsa, quanto mais cachorra mexe, mais o roda caminha!

DR. MONTEIRINHO – E de quantos cachorros precisa o senhor para o tráfego
dos trens diários do Cosme Velho ao Corcovado?

MR. JAMES – Mim precisa de força de cinqüenta cachorras por trem;
mas deve muda cachorra em todas as viagens.

MINISTRO DA JUSTIÇA – Santo Deus! É preciso uma cachorrada
enorme.

MR. JAMES – Mas eu aproveita todas as cachorras daqui e faz vir ainda muitas
cachorras de Inglaterra.

BRITO – Mas se estes animais forem atacados de hidrofobia não há
perigo para os passageiros?

DR. MONTEIRINHO – Eu entendo que não se pode conceder este privilégio,
sem se ouvir primeiro a junta de higiene.

MR. JAMES – Oh! senhorr, não tem a menor periga. Se cachorra estar
danada, estar ainda melhor, porque faz mais esforça e trem tem mais
velocidade.

BRITO – Em resumo, qual é a sua pretensão?

MR. JAMES – Mim quer privilégia para introduzir minha sistema em Brasil,
e estabelecer primeira linha em Corcovada, com todas as favores de lei de
Brasil para empresa de caminha de ferro.

BRITO – Mas o cachorro não está ainda classificado como motor
na nossa legislação de caminhos de ferro.

DR. MONTEIRINHO – Neste caso deve levar-se a questão ao poder legislativo.

BRITO – Está bem: nós vamos ver e resolveremos como for de
justiça.

MR. JAMES – Em quanto tempa decide este negócia?

DR. MONTEIRINHO – Vamos resolver.

MINISTRO no IMPÉRIO – Tenha paciência, espere.

BRITO – Às suas ordens. (Despede-se, os outros despedem-se de James
e saem pela esquerda.)

CENA XVI
JAMES, só

MR. JAMES – Tem paciência, espera! Sistema de brasileira. Time is money.
Eu fala com mulher, e arranja tuda. (Sai.)

CENA XVII
BEATRIZ e depois FILIPE

BEATRIZ – Vejamos se aqui posso concluir sossegada a leitura deste romance.
(Lê.)

FILIPE – Ela?! Oh! Eu atiro-me e confesso tudo. Ora adeus! (Tropeça
em uma cadeira.)

BEATRIZ (Revolvendo-se.) – Quem é?

FILIPE – Filipe Flecha, um criado de Vossa Excelência. Sou repórter.

BEATRIZ – Papai está agora em conselho com os outros ministros.

FILIPE – Como é bela! (Beatriz continua a ler.)

BEATRIZ (À parte.) – Este estafermo pretenderá ficar aqui.
Que bruta faccia.

FILIPE – Eu atiro-me-lhe aos pés. Coragem! (Encaminha-se para Beatriz.)

BEATRIZ – Quer alguma coisa?

FILIPE (Tirando uma carteira.) – O senhor seu pai onde nasceu, minha senhora?

BEATRIZ – No Pará.

FILIPE (Escrevendo na carteira.) – Onde formou-se?

BEATRIZ – Em Pernambuco.

FILIPE (Escrevendo.) – Que empregos tem exercido? Que condecorações
tem?

BEATRIZ – Mas para que o senhor quer saber tudo isto? Oh! qu’il est drole!

FILIPE – É que quando ele morrer a notícia para o jornal já
está pronta. (À parte.) Oh! que diabo de asneira!

BEATRIZ – O senhor está doido?

FILIPE (Ajoelhando-se.) – Sim, doido, minha senhora, doido varrido. Quando
a vi pela primeira vez foi no Castelões. A senhora comia uma empada..
. (Beatriz procura tocar a campainha.) O que vai fazer?

BEATRIZ – Chamar alguém para pô-lo daqui para fora.

FILIPE – Pelo amor de Deus, não faça escândalo. (Levantando-se.)
Eu vou, eu vou, mas creia que ninguém no mundo a idolatra como eu!
(Sai olhando amorosamente para Beatriz.)

BEATRIZ – Pobre louco! Mas este ao menos não me falou em emprego nem
em privilégio! (Senta-se e continua a leitura.)

(Cai o pano.)

(Fim do segundo ato.)

ATO TERCEIRO

Sala de espera em casa do Conselheiro Brito

CENA
BRITO e FILOMENA

FILOMENA – Podias ter decidido o negócio perfeitamente sem levá-lo
às Câmaras.

BRITO – Como?

FILOMENA – Como? Colocassem-me na Presidência do Conselho, que eu te
mostraria.

BRITO – Mas, Filomena, tu não sabes que se tratava de uma espécie
completamente nova, que o governo…

FILOMENA – Tanto melhor! Se a espécie era completamente nova, o governo
devia resolver por si e não abrir o mal precedente de consultar a Câmara.

BRITO – Olha, queres saber de uma coisa? Eu merecia que me vestissem uma
camisola de força, por me haver metido em semelhante entrosga.

FILOMENA – Ora, qual entrosga! O negócio era muito simples. Tratava-se
de uma estrada para o Corcovado…

BRITO – Mas de uma estrada especial, com carros movidos por cachorros…

FILOMENA – E o que tem os cachorros?

BRITO – É que levantou-se a dúvida se o cachorro podia ser
considerado motor, se a estrada estava nas condições da lei.

FILOMENA – Pois eu presidente do Conselho cortava a dúvida, dizendo:
– o cachorro é motor, e concedia o privilégio.

BRITO – Tu não entendes destas coisas.

FILOMENA – E o que se lucrou em consultar a Câmara? Em assanhar a oposição,
e formar no seio do parlamento dois partidos, o dos cachorros e o dos que
se batem, como leões, contra os cachorros.

BRITO – E que partidos!

FILOMENA – E lá se vai o privilégio, falto à palavra
que dei ao inglês, e o casamento da menina, víspora!

BRITO – Mas o que queres que faça?

FILOMENA – Que envides todos os esforços para que o projeto passe!
Hoje é a última discussão…

BRITO – E o último dia talvez do ministério.

FILOMENA – Quais são os deputados que votam contra?

BRITO – Uma infinidade.

FILOMENA – O Elói é cachorro?

BRITO – Sim, senhora.

FILOMENA – O Azambuja?

BRITO – Cachorro.

FILOMENA – O Pereira da Rocha?

BRITO – Este é de fila.

FILOMENA – O Vicente Coelho?

BRITO – Era cachorro; mas passou anteontem para o outro lado.

FILOMENA – E o Barbosa?

BRITO – Está assim, assim. Talvez passe hoje para cachorro.

FILOMENA – Ah! Que se as mulheres tivessem direitos políticos e pudessem
representar o país…

BRITO – O que fazias?

FILOMENA – O privilégio havia de passar, custasse o que custasse.
Eu é que devia estar no teu lugar, e tu no meu. És um mingau,
não nasceste para a luta.

BRITO – Mas com a breca! Queres que faça questão de gabinete?

FILOMENA – Quero que faças tudo, contanto que o privilégio
seja concedido.

BRITO (Resoluto.) – Pois bem; farei questão de gabinete, e assim fico
livre mais depressa desta maldita túnica de Nessus.

CENA II
OS MESMOS e o DOUTOR MONTEIRINHO

DR. MONTEIRINHO (Cumprimentando Filomena.) – Minha senhora. (Para Brito.)
Vamos para a Câmara, conselheiro. É hoje a grande batalha.

BRITO – Estou às suas ordens.

DR. MONTEIRINHO – Havemos de vencer, custe o que custar.

FILOMENA – Doutor Monteirinho, empregue todo o fogo de sua palavra.

DR. MONTEIRINHO – Fique descansada, minha senhora. Levo o meu discurso na
ponta da língua. Hei de tratar a parte técnica, sobretudo, com
o maior cuidado. Na discussão deste projeto ou conquisto os foros de
estadista, ou caio para nunca mais erguer a fronte.

FILOMENA – Bravo! Bravo!

BRITO – Vamos, conselheiro, são horas.

FILOMENA (Para Brito.) – Vai. Que Deus te inspire. (Saem Monteiro e Brito.)

CENA III
FILOMENA e BEATRIZ

FILOMENA – Que boa madrugada! Onze horas!

BEATRIZ (Beijando Filomena.) – Não posso acordar-me cedo, por mais
esforços que faça. Vosmecê não sai hoje?

FILOMENA – Não. Estou muito nervosa.

BEATRIZ – É mais uma razão para sair.

FILOMENA – Se cai o projeto e com ele o ministério…

BEATRIZ – Estamos arranjadas.

FILOMENA – Lá se vai o inglês.

BEATRIZ – E o Sr. Raul também. (À parte.) Se ao menos aquele
pobre doido que ofereceu-me o coração… (Alto.) Ora, será
o que Deus quiser. (Mirando-se ao espelho, canta.)

La donna é mobile
Qual piuma al vento.
Muta d’accento
E di pensiero.

O paquete francês deve chegar hoje?

FILOMENA – Creio que sim.

BEATRIZ – Estou ansiosa por ver os vestidos de verão que encomendamos.

CENA IV
BEATRIZ, FILOMENA e CRIADO

CRIADO (Com uma gaiola com papagaio.) – Veio da parte do Senhor Tinoco, com
esta carta. (Entrega a carta a Filomena.)

FILOMENA (Depois de ler a carta.) – Estes pretendentes entendem que devem
encher-me a casa de bichos. Leva para dentro. (O criado sai.)

BEATRIZ – E coisa célebre, pelos presentes pode-se conhecer a que
província ou a que lugar pertencem os pretendentes. Os do Ceará
mandam corrupiões; os do Pará redes, paus de guaraná
e macacos de cheiro; os de Pernambuco, cajus secos e abacaxis; os de São
Paulo, formigas vestidas, figos em calda.

FILOMENA – E arapongas. Se o pretendente é do Maranhão, a mulher
do ministro não passa sem lenço de labirinto.

BEATRIZ – E se é da Bahia, lá vêm as quartinhas, o azeite
de cheiro e os sagüis.

FILOMENA – Os do Rio Grande do Sul exprimem a gratidão com línguas
salgadas e origones.

BEATRIZ – E os de Minas com queijos e rolos de fumo. Mas, coitados! Muito
sofrem! Só a lida em que eles vivem – Venha hoje, venha amanhã,
espere um pouco, agora não é possível!

FILOMENA – É para admirar que a esta hora já não esteja
a sala cheia deles.

BEATRIZ – É verdade.

CENA V
FILOMENA, BEATRIZ e DONA BÁRBARA

DONA BÁRBARA – Desculpe-me se fui entrando sem anúncio prévio.

FILOMENA – A Senhora Dona Bárbara é sempre recebida com prazer
a qualquer hora.

DONA BÁRBARA – E é por saber disto que vim vê-la, apesar
do que se tem passado.

FILOMENA – Creio que entre nós nada se tem passado que possa porventura
interromper, sequer de leve, as nossas relações amistosas.

DONA BÁRBARA – Quero dizer do que se tem passado entre os nossos maridos.

FILOMENA – Também não sei o que possa ter havido entre eles.
Pertencem ao mesmo credo político, ainda ontem para bem dizer, eram
amigos…

DONA BÁRBARA (À parte.) – Se não digo na bochecha desta
emproada tudo quanto sinto, estouro. (Alto.) Eram amigos, é verdade,
porém… meu marido tem razões especiais… Ele está
na Câmara cumprindo o seu dever.

FILOMENA – Faz muito bem.

DONA BÁRBARA – Não é hoje que se discute um célebre
privilégio de uma estrada para o Corcovado?

FILOMENA – Creio que sim.

DONA BÁRBARA – Não sabia; passando por acaso pela rua do Ouvidor…

BEATRIZ – Como é fingida esta vecchía strega!

DONA BÁRBARA – Ouvi os garotos apregoarem a Gazeta da Tarde, traz
a notícia da grande patota dos cachorros! E por entre os grupos dos
indivíduos que conversavam no ponto dos bondes, pude distinguir estas
frases, cujo sentido não compreendi bem: arranjos de família,
ministro patoteiro, casamento da filha com o inglês…

FILOMENA – É verdade, minha senhora; mas o que não sabe é
que por entre aqueles grupos estava a mulher despeitada de um ministro gorado
e que era esta a que mais gritava.

DONA BÁRBARA – Um ministro gorado?!

BEATRIZ – Sim. Un ministre manqué.

DONA BÁRBARA (Para Beatriz.) – Minha senhora, tenha a bondade de falar
em português, se quer que a entenda.

FILOMENA – Eu falarei português claro. O ministro gorado é…

BEATRIZ – Seu marido… voila tout.

FILOMENA – E a mulher despeitada…

DONA BÁRBARA – Sou eu?!

BEATRIZ – Sans doute.

DONA BÁRBARA (À parte.) – Eu arrebento. (Alto.) Pois já
que as senhoras são tão positivas dir-lhes-ei que meu marido
nunca teve a idéia de fazer parte de semelhante ministério.
Ele é um homem de muito bom senso e sobretudo de muita probidade.

FILOMENA – Observo à senhora que estou em minha casa.

BEATRIZ (À parte.) – C’est incroyable! Dreadful.

DONA BÁRBARA – Foi a senhora a primeira que esqueceu esta circunstância.

FILOMENA – Não me obrigue…

DONA BÁRBARA – Eu retiro-me para nunca mais pôr os pés
aqui.

FILOMENA – Estimo muito.

DONA BÁRBARA – E fique sabendo que o Chico…

FILOMENA (Com dignidade.) – Minha senhora. (Cumprimenta e sai.)

BEATRIZ – Au revoir. (Sai.)

DONA BÁRBARA – Emproada, sirigaita, patoteira! Hei de tomar uma desforra.
(Sai zangada.)

CENA VI
PEREIRA, INÁCIO, ARRUDA, RIBEIRO, AZAMBUJA, mais pessoas e o CRIADO

CRIADO – Sua Excelência não está. Os senhores que quiserem
esperar podem ficar nesta sala.

PEREIRA – O homem está em casa.

INÁCIO – Eu cá hei de falar-lhe hoje, por força, haja
o que houver.

ARRUDA – E eu também. Só se ele não passar por aqui.

RIBEIRO – O que é bem possível, porque a casa tem saída
para outra rua.

AZAMBUJA – Há quatro meses que ando neste inferno.

RIBEIRO – Console-se comigo, que ando pretendendo um lugar há cinco
anos, e ainda não mo deram.

ARRUDA – Há cinco anos?!

RIBEIRO – Sim, senhor.

AZAMBUJA – E tem esperanças de obtê-lo?

RIBEIRO – Olé! Já atravessei seis ministérios. Venho
aqui duas vezes por dia.

INÁCIO – E eu que vim dos confins do Amazonas; e aqui estou há
seis meses a fazer despesas, hospedado na casa do Eiras, com uma numerosa
família, composta de mulher, seis filhos, duas cunhadas, três
escravas, quatorze canastras, um papagaio e um corrupião!

CENA VIII
OS MESMOS e ERNESTO

ERNESTO – Meus senhores.

PEREIRA – Oh! Senhor Ernesto.

ERNESTO – Como está, Senhor Pereira?

PEREIRA – O seu negócio? Ainda nada?

ERNESTO – Qual! Trago agora aqui uma carta… Vamos ver se com esta arranjo
o que quero. É de um deputado mineiro governista.

PEREIRA – É bom empenho?

ERNESTO – Quem me arranjou foi um negociante da rua dos Beneditinos, em cuja
casa acha-se hospedado o tal deputado.

RIBEIRO – Meu amigo, vá à fonte limpa, procure um deputado
da oposição e digo-lhe desde já que está servido.

ERNESTO – Muito se sofre!

AZAMBUJA – É verdade.

CENA VIII
OS MESMOS e FILIPE

FILIPE – Adeus, Senhor Ernesto.

ERNESTO – Adeus, Filipe.

FILIPE – Ainda perde seu tempo em vir por aqui?

ERNESTO – Por quê?

FILIPE – Porque o ministério está morto!

PEREIRA – Caiu?!

FILIPE – A esta hora já deve ter caído. A rua do Ouvidor está
assim. (Fechando a mão.) Não se pode entrar na Câmara.
Há gente nas galerias como terra.

ERNESTO – O partido dos cachorros está bravo?

FILIPE – Os cachorros?! Estão danados! A tal estrada não passa,
não, mas é o mesmo. O Doutor Monteirinho levantou-se para falar…

ERNESTO – Ah! Ele falou hoje?

FILIPE – Qual! Não pôde dizer uma palavra. Rompeu uma vaia das
galerias, mas uma vaia de tal ordem, que foi preciso entrar a força
armada na Câmara.

PEREIRA – Lá se vai o meu lugar da Alfândega.

AZAMBUJA – E o meu.

RIBEIRO – E o meu.

FILIPE (Levando Ernesto para um lado.) Ainda não a vi hoje.

ERNESTO – Mas é verdade tudo isto?

FILIPE – Como é bela!

ERNESTO – Com os diabos! que transtorno!

FILIPE – Quando a vi pela primeira vez foi no Castelões…

ERNESTO – Comia uma empada, comia uma empada…

FILIPE – É isso mesmo.

ERNESTO – Irra! Não me amoles.

PEREIRA (Para Ernesto.) – O senhor quer saber onde está a minha esperança?

ERNESTO – Onde?

PEREIRA (Tirando um bilhete de loteria do bolso.) – Aqui neste bilhete do
Ipiranga.

FILIPE – Eu também tenho um. (Vendo na carteira.) Querem ver que o
perdi! Não, cá está. A esta hora já deve ter andado
a roda. Com a breca, nem me lembrava! (Olhando para dentro.) Se pudesse ao
menos ver-lhe a pontinha do nariz.

PEREIRA – Vou ver o que tirei. (Sai.)

FILIPE – E eu também. Mas qual! Sou de um caiporismo horrendo. Adeus,
Senhor Ernesto. (Olhando para todos os lados.) Onde estará ela?! (Sai.)

CENA IX
OS MESMOS, menos PEREIRA e FILIPE e DOUTOR RAUL

ERNESTO – Esta notícia veio transtornar-me os planos.

AZAMBUJA – Talvez seja mentira.

ERNESTO – As más novas são sempre verdadeiras.

RAUL – Ora, vivam, meus senhores!

ERNESTO – Doutor Raul, o que há acerca do ministério?

RAUL – Dizem que está em crise.

ERNESTO – Mas há esperanças?

RAUL – Hum!… Não sei. Vejo as coisas muito embrulhadas.

CENA X
OS MESMOS e MISTER JAMES

RAUL – Oh! Mr. James! Fazia-o pela Câmara.

MR. JAMES – Mim só sai de casa hoje pra vem aqui…

RAUL – Os negócios estão feios.

MR. JAMES – Oh! Yes, muito feias.

RIBEIRO (A Ernesto.) – Este é o tal inglês da patota de que
os jornais falam hoje?

ERNESTO – É o bicho.

MR. JAMES – Você quer sabe de uma cousa. Mim estar muito stupíde.

RAUL – Por quê?

MR. JAMES – Eu já deve saber que este ministéria não
pode dura muite tempo, e mim cai na asneira de faz negócia com ele.

RAUL – Mas em que se fundava para saber disto?

MR. JAMES – Ora escuta vosmincê, presidenta de Conselho onde estar
nascida?

RAUL – No Pará.

MR. JAMES – Ministra de Império?

RAUL – Em São Paulo.

MR. JAMES – Ministra de Justiça?

RAUL – Creio que é de Piauí.

MR. JAMES – No senhor; de Paraíba.

RAUL – Ou isso.

MR. JAMES – Ministra de Marinha estar de Alagoas, ministra de Estrangeiros…

RAUL – Este é do Paraná.

MR. JAMES – Yes. Ministra de Guerra estar de Maranhão, de Fazenda,
Rio de Janeiro.

RAUL – Mas o que tem isto?

MR. JAMES – Não tem uma só ministra de Bahia. E ministéria
sem baiana – estar defunta logo, senhor.

RAUL – Tem razão.

MR. JAMES – Baiana estar gente muito poderosa. Não se pode esquece
dela.

RAUL – O ministério estava fraco, lá isso é verdade.

MR. JAMES – E tem inda mais; Ministra da Marinha…

RAUL – O Doutor Monteirinho?

MR. JAMES – Yes. Ministra da Marinha estar muito pequenina.

RAUL – Muito moço é que o senhor quer dizer?

MR. JAMES – All right. No pode ser estadista e governa pais logo que sai
de escola. É preciso aprende primeiro, aprende muito, senhor. Todo
mundo estar caçoanda, e chama ministra de Cazuzinhe. O senhor sabe
dizer o que é Cazuzinhe?

RAUL – É um nome de família.

MR. JAMES – How? Mas família fica em casa, e no tem nada com ministéria.
Vosmecês aqui têm costume de chama homem de estado de Juquinha,
Lulu, Fernandinha. Governa estar muito sem-cerimônia.

CENA XI
OS MESMOS, BEATRIZ e FILOMENA

MR. JAMES – Como está, senhorra?

RAUL – Minhas senhoras.

FILOMENA – Veio da Câmara?

MR. JAMES – No senhorra.

FILOMENA – Pois não foi lá? No dia em que se deve decidir o
seu negócio…

BEATRIZ (A Raul.) – Mamãe ainda não teve tempo de falar com
papai acerca da sua pretensão.

MR. JAMES – Meu negócia estar perdida.

FILOMENA – Tenho fé que não.

MR. JAMES – Oh! Yes.

CENA XII
OS MESMOS e FELIZARDO

FELIZARDO (Entrando apressado.) – Caiu o ministério!

FILOMENA – Caiu! Ai! Falta-me a luz! (Cai desmaiada em uma cadeira.)

BEATRIZ (Correndo.) – Mamãe.

RAUL – Dona Filomena!

MR. JAMES (Para todos.) – Ó no incomoda! Vai passa já.

ERNESTO – Ora sebo! (Sai.)

INÁCIO – Ora bolas. (Sai.)

ARRUDA – Ora pílulas. (Sai.)

RIBEIRO – Ora, com os diabos. (Sai.)

AZAMBUJA – Ora… (Sai.)

MR. JAMES (Vendo Filomena levantar-se.) – Estar pronta, já passou.

FELIZARDO – E o pobre do Cazuzinha que tinha tanta coisa que fazer! Também
lhes digo, que se ele consegue falar, a despeito das vaias da galeria, o mínistério
tinha vida por cinco anos, pelo menos.

RAUL – Deveras?

FELIZARDO – É um rapaz muito hábil. O senhor não imagina
que discurso tinha ele preparado. Ontem recitou-mo todo. Sabia-o na ponta
da língua.

RAUL – Foi uma pena! (À parte.) E lá se foi o meu emprego,
que é o que mais sinto.

FELIZARDO – Como não vai ficar a Maria José quando souber da
notícia!

RAUL (A Beatriz.) – Minha senhora; creio estar desligado dos compromissos
que contraí para com Vossa Excelência.

BEATRIZ – Eu já o sabia; não era preciso mo dizer. O que o
senhor doutor queria era uma posição social e não a minha
mão!

RAUL (À parte.) – Façamos cara de não ter compreendido.

CENA XIII

FELIZARDO, RAUL, BEATRIZ, FILOMENA, MISTER JAMES, BRITO e DOUTOR MONTEIRINHO

BRITO (Abraçando Filomena.) – Minha Filomena, tenho necessidade de
abraçar-te. Vem cá, Beatriz, abraça-me também.
(Beatriz abraça.) Foram vocês que me perderam; mas como isto
é bom.

MR. JAMES – Mim sente muito derrota de Vossa Excelência; agradece tudo
que faz pela minha privilégia e pede desde já a Vossa Excelência
um apresentação para nova mínistéria que tem de
subir.

FELIZARDO (Que deve estar abraçado com Monteirinho.) -Ah! Cazuza!
Não há gosto perfeito neste mundo!

DR. MONTEIRINHO – E mamãe, que não teve a ventura de me ver
de fardão!

FELIZARDO – Mas há de tê-la muito breve; eu te prometo.

CENA XIV
OS MESMOS e CRIADO

CRIADO – Trouxeram estes jornais e esta carta. (Sai.)

BRITO – O que será? (Vendo o sobrescrito da carta, para Filomena.)
É para ti.

FILOMENA (Abrindo a carta e lendo.) – “Minha senhora, tenho a honra
de enviar a Vossa Excelência o último número da Espada
de Dâmocles, que acaba de sair agora mesmo e de chamar a atenção
de Vossa Excelência para a notícia, publicada sob o titulo À
última hora. Sua veneradora e criada, Bárbara Coelho.”
(Fecha a carta.) Que infame!

BRITO – Lê. (Filomena quer rasgar o jornal.) Lê, eu terei a coragem
de ouvir.

FILOMENA (Lendo.) – “Caiu finalmente o ministério das patotas.
Parabéns aos nossos concidadãos, estamos livres do homem que
mais tem sugado os cofres públicos em proveito dos seus afilhados.”

BRITO – Saio do ministério mais pobre do que entrei, porque estou
crivado de dívidas, e com a pecha de ladrão!

FILOMENA – E o que pretendes fazer?

BRITO – Nada neste país, infelizmente, esta é a sorte de quase
todos que descem do poder.

CENA XV

FILOMENA, RAUL, DOUTOR MONTEIRINHO, BEATRIZ, MISTER JAMES, FELIZARDO,
BRITO e FILIPE

MR. JAMES (A Filipe que entra às carreiras, ofegante, e cai-lhe desmaiado
nos braços.) – How! Tudo estar desmaia nesta casa!

FILOMENA – Vão ver depressa vinagre. (Raul corre para dentro.)

BEATRIZ – Como ele está pálido! Vou buscar água de Colônia.
(Corre para dentro.)

MR. JAMES – Oh! nó, nó, é melhor traz cognac.

DR. MONTEIRINHO – Vou buscá-lo. (Sai correndo.)

BRITO (Batendo-lhe nas mãos.) – Senhor, senhor! É o pobre do
repórter!

BEATRIZ – Aqui está. (Põe água de Colônia no lenço
e chega-lhe ao nariz. Filipe abre os olhos.) Ça y est! Il est gueri!

FILIPE – Onde estou? Ah! (Saí dos braços de Mister James.)

DR. MONTEIRINHO – Cá está o conhaque. Já não
é preciso?

BRITO – O que tem?

FILIPE (Não podendo falar.) – Comprei este bilhete. (Mostra-o, tirando-o
do bolso.) Vou ver a lista…

MR. JAMES – Branca.

FILIPE – E tirei duzentos contos!

FILOMENA – Duzentos contos!

BEATRIZ – Ah! Bah!

FILIPE (Ajoelhando-se aos pés de Beatriz.) – Minha senhora, eu adoro-a,
idolatro-a. Quando a vi pela primeira vez foi no Castelões, a senhora
comia uma empada. Quer aceitar a minha mão?

BEATRIZ – De tout mon coeur.

MR. JAMES – All right! Boa negócia.

(Cai o pano.)

(Fim do terceiro ato.)

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