Dias de Roça

Lima Barreto

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(Carta)

Meu caro amigo. V. me perguntou o que faço nestas paragens que não te mando o manuscrito prometido. A bem dizer, não faço nada; mas, por isso mesmo, ainda não dei começo ao trabalho que tratei contigo fazer.

Imagina tu que estou aqui há bem um mês e ainda não pude ler convenientemente, para convenientemente dar noticia de dois livros. Um é do Mário Sete, autor do formoso Rosas e Espinhos; é um romance que tem andado aqui de mão em mão e não sai de uma delas sem os maiores gabos e sem sugerir aos leitores reflexões sobre os encantos da vida roceira sobre a da cidade. Pois, ainda, como já disse a V., não pude ler o Senhora de Engenho. É este o título do romance de Mário Sete; entretanto, apesar de ser a negação para o gênero, a pedido de “várias famílias”, já escrevi uma conferência literária que, pela circunspeção e seriedade, vou pedir ao meu Félix Pacheco que a publique no Jornal do Comércio. Tem ela por tema – “O destino da Literatura”. Merece ou não o Jornal do Comércio? Espero que ela será muito apreciada pelos conspícuos acadêmicos Afrânio Peixoto e Hélio Lôbo, embora, sem discordarem, tenham ambos dos fins da literatura, idéias muito diferentes das minhas, se é que tenho algumas.

Um outro livro que, para aqui trouxe, a fim de estudá-lo convenientemente, é o de Gastão Cruís Coivara. É um livro de Contos que todos aí conhecem. Quero muito falar , desse livro em que o autor, apesar de médico, abandona o pseudo clássico de Aloísio, escreve como eu ou como o Cardim do Jornal do Comércio, mas se revela um temperamento complexo de pensador-homem de letras.

Mas que diabo V. faz – dirá o amigo – que não escreve ao menos isso? Passeio e converso. Mirassol não é uma paisagem. É muito pobre a esse respeito. Faltam-lhe água e montanha. O horizonte é igual e unido; e as florestas de perobeiras já fugiram para longe do povoado, deixando das derrubadas e das queimadas conseqüentes, em pé, altos troncos carcomidos e enegrecidos pelo fogo, como para significar o seu protesto e clamar, sem cessar, aos céus de dia e de noite, contra a violência que sofreram. O caboclo passa por eles, e nem os olha, quanto mais os ouve…

Ele marcha para o conto, para o conto de réis. Aqui só se fala em conto de réis; as grandes notas de cem, duzentos e quinhentos mil-réis são comuns.

Letras, hipotecas e anticreses são termos e instrumentos de créditos familiares a todos; e até a conta de pares o é.

Sente-se que o “rush” da população para aqui, não só paulista, mas brasileira, com a sua natural mescla de imigrantes de várias proveniências, não tem em grande conta a terra e as suas árvores. Ela corre atrás desse demônio do café que vejo pequenino, de dois e três anos, a crescer sobre as recentes derrubadas, com ar tímido de criança sonsa. Este pequeno de fisionomia verde-chumbo vai ser o diabo…

Constituída assim a povoação do lugar, é um gozo observá-la em todas as camadas. Sem propósito algum, converso com este ou aquele e me edifico. Um curioso tipo de plantador, a não sei que propósito, disse-me um dia destes:

— Moço: a pior, a mais baixa profissão desta vida é a de advogado; depois, a de soldado; depois, é a de oficial de justiça.

Há aqui intermináveis questões de terras, devido à falsificação de títulos de posse, a que chamam – “grilos”. Essas complicações, ao que parece, fazem as delicias dos advogados e são o pesadelo dos agricultores. Dai, a opinião do fazendeiro que ouvi

Há coisas dolorosas provocadas por essa história de “grilo” que sociólogos da escola do super-homem já elogiaram no Rio de Janeiro. Deixemos isso para mais tarde…

É, mais ou menos com isto, meu caro amigo, que me ocupo aqui onde estou. São os meus dias de roça.

À noite, vou ao cinema, coisa que não fazia aí, no Rio; e vou de graça, como representante da imprensa carioca. Evite os protestos…

De V. etc. etc.

Careta, 14-5-1921

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