Inimiga Pessoal da Mulher

Nelson Rodrigues

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Não sei se repararam, mas há qualquer coisa de alucinatório no Galeão. Os idiotas da objetividade dirão que se trata de um aeroporto, como outro qualquer. Engano. Há fatos e tipos que só acontecem no Galeão. Vamos supor: — acaba de descer um jato.

Ora, o jato entrou para a nossa rotina visual. Já o vimos às centenas, aos milhares. Mas o importante no jato não é o jato, e sim o seu elenco singularíssimo. Quando ele pousa, ainda saturado de infinito, estejam certos de que tudo é possível. Coloca-se a escadinha e abre-se a pequena porta. E, então, os passageiros começam a sair.

Descem rajás, mágicos, domadores, mímicos, profetas, bailarinos, e até brasileiros. Quanto aos brasileiros, já os conhecemos e passemos aos demais. Falei nas velhas internacionais que qualquer jato traz e qualquer jato leva? E, se duvidarem, até vampiros desembarcam dos prodigiosos aviões. Ou comedores de orelhas ou o índio que devora giletes.

Mas não falei de uma figura que é de uma singularidade ainda mais impressionante do que as citadas. Refiro-me à sra. Betty Friedan, líder feminista norte-americana. Digo “líder feminista” e começam as minhas dúvidas. Sempre escrevo que ninguém enxerga o óbvio, ou por outra: — só os profetas o enxergam. Pois é óbvio que a sra. Friedan não tem nada a ver com a mulher. E pelo contrário: — é uma inimiga pessoal das mulheres.

Não sei se sabem, mas a mulher tem vários inimigos pessoais. Um deles, e dos mais cruéis, são os grandes costureiros. É claro que os pequenos também. Mas dou um destaque especial aos costureiros célebres, que inventam modas, que milhões de mulheres seguem, em todos os idiomas, com uma docilidade alvar. A única coisa que os move, e os inspira, é a intenção evidente e obsessiva de extinguir toda e qualquer feminilidade.

Imagino o escândalo do leitor: — “Mas por quê, ora pinóia?” (“pinóia” é a gíria finada que acabo de exumar). Aí está um mistério nada misterioso. O autor dos vestidos vê a mulher corno a rival que o há de perseguir, do Paraíso ao Juízo Final. E, por isso, o empenho com que trata de transformar a mulher numa figura cômica.

Corno são desinteressantes as mulheres que se vestem bem. E o pior é que os costureiros, com diabólico engenho, atingem em cheio os seus objetivos. Realmente, nunca a mulher foi menos amada. Outro dia, remexendo nos meus velhos papéis, descobri uma crônica de dois anos atrás, em que eu próprio escrevia: — “Nunca a mulher foi tão pouco mulher, nunca o homem foi tão pouco homem”. O raciocínio é simples: — se a mulher é menos mulher, o homem será menos homem.

Há, sim, de um sexo para outro, um tédio recíproco, que já não permite nenhum disfarce. Eu disse, certa vez, que a lua-de-mel começa depois da lua-de-mel. Hoje, diria que a lua-de-mel acaba antes da lua-de-mel. Por outras palavras: — não há mais a lua-de-mel.

O que a sra. Friedan quer é, justamente, liquidar a mulher como tal. Se vocês espremerem tudo o que ela diz, ou escreve, descobrirão que a nossa ilustre visita pensa assim, mais ou menos assim: — “A mulher é um macho mal-acabado, que precisa voltar à sua condição de macho”. Dirão vocês que estou abusando do direito de interpretar e fazendo um exagero caricatural. Pelo contrário: — estou sendo fidelíssimo ao sentido dos seus textos, de todas as entrevistas que concedeu, em todos os continentes.

Temos aqui em O Globo uma repórter adolescente e linda. Mas adolescente e linda pode parecer pouco para a reportagem. Acrescentarei que, além disso, é inteligentíssima. A sra. Friedan recebeu a nossa imprensa em entrevista coletiva. Não sei se foi coletiva. Só sei que recebeu a nossa menina e disse o que lhe veio à cabeça, com uma audácia, com perdão da palavra, cínica.

Para a líder do antifeminismo, a mulher não tem nenhuma dessemelhança com o homem. Nenhuma? Nenhuma. Nem anatômica? Se ela não faz a ressalva, vamos concluir: — nem anatômica. E essa coisa misteriosa e irresistível que nós chamamos “feminilidade”? A entrevistada tem todas as respostas na ponta da língua, e não precisa nem pensar. Responde: — “A feminilidade não existe”.

A sra. Friedan é um ser todo feito de certezas. Jamais lhe ocorre uma única e escassa dúvida. Eis o que afirma: — a “feminilidade” é uma ilusão, ou uma impostura inventada por uma “sociedade de consumo”. Hoje, não há idiota que, aqui ou em qualquer idioma, não explique com a “sociedade de consumo”, todos os mistérios do céu e da terra. Com a tal “feminilidade” a mulher tem que comprar cílios postiços, maquilagem, vestidos, sapatos, lingerie etc. etc.

Shakespeare, no seu Hamlet diz, pela boca de Horácio, que “há mais coisa entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”. Mas Shakespeare não conhecia a “sociedade de consumo”, que é, hoje, a chave de todas as dúvidas. A menina de O Globo não se conteve e disse: — “Pois eu me sinto muito feminina”. Segundo presunção dos presentes, a entrevistada não gostou de ser contestada. Com surda irritação, retrucou: — “Você pensa que é ‘feminina’, mas não passa de uma vítima da ‘sociedade de consumo’ “.

E, durante toda a entrevista, a boa sra. Friedan se limitou a fazer variações em torno da idéia fixa: — “A mulher tem que deixar de ser mulher”. E mais: — o homem é o macho perfeito e a mulher o “macho mal-acabado”. O ideal é que, no fim de tudo, tenhamos dois machos.

A nossa menina não se intimidou. Disse mais: — “Pois eu sou boneca, e estou muito satisfeita de ser boneca, e não quero outra coisa, senão ser boneca”. No fim, os colegas e a própria sra. Friedan queriam entrevistar “a boneca”.

A “boneca” voltou para a redação com um divertido horror. E o pior vocês não sabem. Quem está por trás da líder antifeminista? Quem prestigia e aplaude a sua cruzada contra a mulher, contra o casamento e contra a família? Uma série de progressistas da Igreja. Esses elementos a tratam a pires de leite como a uma úlcera.

Mas vejam vocês como vivemos numa época em que tudo se faz e tudo se diz. Há pouco tempo, ninguém teria a coragem de, alçando a fronte, declarar: — “A feminilidade não existe”. Diz mais: — que a mulher para viver dignamente precisa estar acima de “definições sexuais” como “mãe e esposa”. Para a pobre senhora a maternidade é um fato apenas físico, como se a mulher fosse uma gata vadia de telhado. Nem desconfia que sexo, para o ser humano, é amor. Há dez anos, ela não diria isso. E se o dissesse a família trataria de, piedosamente, amarrá-la num pé de mesa; e ela teria que beber água de gatinhas, numa cuia de queijo Palmira. Hoje, porém, pode sair por aí a dizer, pela Europa, América, Oceania etc. etc., afirmando que a mulher é mulher não porque o seja, não porque Deus a fez, não porque a natureza tivesse raspado a sua barba antes de apresentá-la ao homem. A mulher é mulher — afirma a sra. Friedan — porque a “sociedade de consumo” assim o quis. Entendem? Não Deus ou a natureza, mas a “sociedade de consumo”.

Mas e os sacerdotes que estão metidos com a santa senhora e a promovendo? Meu Deus, no mundo em geral e no Brasil em particular só um vendaval de patetas está varrendo tudo. A sra. Friedan só seria viável não numa “sociedade de consumo”, mas num sinistro mundo de idiotas.

[17/4/1971]

 

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