Literatura militante

Lima Barreto

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Conheci O Sr. Carlos Malheiro (eu queria por o s) há dias, por apresentação de João Luso.

Tive a mais bela impressão e o Sr. Carlos M. Dias pode ficar certo de que a idéia que eu fazia dele era muito diferente.

Acreditava-o um literato janota, desses das montras para uso das damas alambicadas; e o notável romancista que aprecio e admiro, surgiu-me como a pessoa mais simples deste mundo.

Falou-se muito naturalmente e o homem que eu pensava ter todo o escrúpulo em trocar quatro palavras comigo, em plena via pública, pareceu-me querer que me demorasse com ele a conversar. Agradecido.

A vida tem dessas coisas; e, diz o povo, que não há como os homens conversarem, para se entenderem.

Espero, justamente, que ele não leve a mal uns reparos que vou fazer sobre um seu recente artigo no O País intitulado – À margem do último livro de Anatole France.

O que me feriu logo nele foi o primeiro período. Diz o autor da Paixão de Maria do Céu:

“A aura gloriosa e nos nossos tempos incomparável de Anatole France servirá grandemente aos historiadores futuros para comporem uma opinião judiciosa sobre o bom gosto das élites sociais nossas contemporâneas e digo sociais, porque seria prova de inépcia imaginar que as centenas de milhares de volumes das suas obras foram exclusivamente adquiridas pelos literatos aprendizes, militantes e honorários.”

Pelo que aí diz o Sr. Malheiro Dias não sei por que despreza os aprendizes literatos, militantes e honorários.

Como eu sempre falei em literatura militante, se bem me julgando aprendiz, mas não honorário, pois já tenho publicado livros, tomei o pião na unha.

A começar por Anatole France, a grande literatura tem sido militante.

Não sei como o Sr. Malheiro Dias poderá classificar a Ilha dos Pingüins, os Bergeret, e mais alguns livros do grande mestre francês, senão dessa maneira.

Eles nada têm de contemplativos, de plásticos, de incolores. Todas, ou quase todas as suas obras, se não visam a propaganda de um credo social, tem por mira um escopo sociológico. Militam.

Isto em geral dentro daquele preceito de Guyau que achava na obra de arte o destino de revelar umas almas às outras, de restabelecer entre elas uma ligação necessária ao mútuo entendimento dos homens.

Eu chamo e tenho chamado de militantes, às obras de arte que têm semelhante escopo.

Quando disse que o Sr. Júlio Dantas ou o Sr. Antero de Figueiredo não mereciam esse “engagement” que estamos tendo por eles é que eles não mereciam, no Brasil, a influência que vão tendo.

O Brasil é mais complexo, na ordem social econômica, no seu próprio destino, do que Portugal.

A velha terra lusa tem um grande passado. Nós não temos nenhum; só temos futuro. E é dele que a nossa literatura deve tratar, da maneira literária. Nós nos precisamos ligar; precisamos nos compreender uns aos outros; precisamos dizer as qualidades que cada um de nós tem, para bem suportarmos o fardo da vida e dos nossos destinos. Em vez de estarmos aí a cantar cavalheiros de fidalguia suspeita e damas de uma aristocracia de armazém por atacado, porque moram em Botafogo ou Laranjeiras, devemos mostrar nas nossas obras que um negro, um índio, um português ou um italiano se podem entender e se podem amar, no interesse comum de todos nós.

A obra de arte, disse Taine, tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Eles estão aí, à mão, para nós fazermos grandes obras de arte.

Eu me atrevo a lembrar ao Sr. Malheiro Dias que a grande força da humanidade é a solidariedade.

Hoje, quando as religiões estão mortas ou por morrer, o estímulo para elas é a arte. Sendo assim, eu como literato aprendiz que sou, cheio dessa concepção, venho para as letras disposto a reforçar esse sentimento com as minhas pobres e modestas obras.

O termo “militante” de que tenho usado e abusado, não foi pela primeira vez empregado por mim.

O Eça, por quem não cesso de proclamar a minha admiração, empregou-o, creio que nas Prosas Bárbaras, quando comparou o espírito da literatura francesa com o da portuguesa.

Pode-se lê-lo lá e lá o encontrei. Ele mostrou que desde muito as letras francesas se ocuparam com o debate das questões da época, enquanto as portuguesas limitavam-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da idealização da natureza Aquelas eram – militantes, enquanto estas eram contemplativas e de paixão.

Creio que temo não amar, tendo por ideal de arte essa concepção. Brunetière diz em um seu estudo sobre a literatura que ela tem por fim interessar, pela virtude da forma, tudo o que pertence ao destino de todos nós; e a solidariedade humana, mais do que nenhuma outra coisa, interessa o destino da humanidade.

Um doido que andou na moda e cujo nome não cito, proclamou a sua grande admiração pelos leões, tigres e jaguares; mas, à proporção que essas feras desaparecem, os homens, os bois e os carneiros conquistam o mundo com a sua solidariedade entre eles.

É de Fouillée a segunda parte do período.

Ligeiramente, fazendo todas as citações de memória, é o que posso dizer sobre o que seja literatura militante.

A.B.C., 7-9-1918

 

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