No Século XX – Rui Barbosa

Rui Barbosa

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Para se orientar na sua passagem momentânea pela imensidade dos tempos, balizou o homem essas vastas divisões da história, à extrema das quais se debruça de uma para outra com as impressões de um mundo que acaba e outro que principia, como se as nossas demarcações coincidissem com os momentos da Providência, e as fases da nossa evolução respeitassem a uniformidade geométrica da nossa cronologia. A luz e as trevas ensinaram-nos o dia e a noite, o nictêmero invariável, cujas vinte e quatro horas distribuem de meridiano em meridiano a claridade e as trevas. As fases da lua indicaram-nos, talvez, as semanas. Sugeriu-nos os meses a revolução sinódica do satélite da Terra. Nos movimentos celestes fomos buscar a medida dos anos. Mas com os séculos começa o domínio das convenções humanas, arbitrárias na sua relatividade e indiferentes à marcha dos sucessos.

Quando nós traçamos os nossos círculos na esfera infinita, temos os astros, imutáveis e inconfundíveis, para os pontearem de focos rutilantes. Quando baixamos com o compasso das amplidões siderais à superfície do globo, as nossas curvas imaginárias assinalam zonas, climas, hemisférios, diversidades naturais e situações perpetuamente distintas, do Levante ao Ocidente, do Equador aos Pólos. Mas, quando lançamos ao passado e ao futuro as nossas linhas seculares, tentamos no futuro o desconhecido, infringimos, no passado, a verdade.

Aqui a simetria constante dessas divisórias intercepta cegamente a continuidade a uma cadeia indivisível de fatos. Ali agrupa, mistura e amalgama entre as mesmas fronteiras cronológicas acontecimentos antagônicos e inconciliáveis, que a harmonia das causas e efeitos obrigaria a classificação a inscrever no pretérito, ou no porvir. Não há, pois, de que nos comovermos tão profundamente, ao transpor essas barreiras, como se penetrássemos numa região nova de maravilhas e imprevistos. O curso dos nossos destinos tem alhures, nos segredos indevassáveis do tempo, os seus marcos reais, aqueles por onde efetivamente se discriminam os estádios sucessivos do progresso. Essas delimitações fictícias assinam datas: nada mais. O desenvolvimento humano, nas suas tendências sucessivas, procede por durações irregulares, vagas, indefinidas, que não cabem nos quadros prefixos da nossa mnemotecnia.

Se houvéssemos de extremar as idades segundo as grandes mutações morais do nosso planeta, o século dezenove se abriria em 1776, com a independência americana, ou em 1789, com a Revolução Francesa. Desses dois grandes termos nasce o problema contemporâneo da emancipação exterior e interior das nações, que agitou, numa série de revoluções nacionais e internacionais, até 1870, os dois continentes.

Mas, assim como a era das reivindicações separatistas e da liberdade política verdadeiramente se instaura no antepenúltimo lustro da centúria passada, o século vinte, se os séculos se discernissem pela irradiação de novos signos na órbita do mundo, dataria do antepenúltimo decênio do atual. É de então, após as vitórias alemãs, que assomaram claramente no horizonte as duas questões, os dois perigos e os dois enigmas, em cujo circulo de tormentas vai entrar o gênero humano: o socialismo e o imperialismo. São as duas idéias fixas da civilização moderna: a primeira sob a forma de um pesadelo cruciante; a segunda com as seduções de uma atração irresistível.

Tirante a Áustria, encerrada nos Balcãs, todas as demais potências, na Europa e na América, se abrasam na aspiração expansionista. A Itália não renunciou com o desastre de Adua e o malogro do seu império no Mar Vermelho, o espírito da sucessão de Roma, Gênova e Veneza, os seus direitos adquiridos à sucessão dos imperadores e dos doges. Massuah e Ópia não a consolam da usurpação francesa, que lhe roubou o Mediterrâneo. A Alemanha estende-se pela África Oriental; pelo Tratado de Berlim em 1878, pela aliança com Abdul-Hamid, pela viagem de Guilherme II ao Oriente em 1898, pelas homenagens da romaria imperial ao Santo Sepulcro e ao túmulo de Saladino, firma uma importante posição econômica no Levante; no Extremo Oriente põe a mão sobre o Celeste Império, ocupa Kiaotcheo, enceta a exploração das riquezas de Shantung; adquire as Carolinas, as Marianas, Palaos, Samoa. A França, mutilada na Alsácia, reconstitui um império francês maior que o império alemão; conquista a Tunísia e a Indochina; por ai penetra nalgumas das mais ricas províncias chinesas; possui Madagascar; absorve o Noroeste africano; envolve, pelo deserto, Marrocos; exerce sobre o mundo árabe uma espécie de suserania política e moral. A Rússia, depois de aniquilar as liberdades polacas, aniquila as liberdades finlandesas; depois de esmagar os elementos alemães nas províncias bálticas, favorece a exterminação da autonomia armênia pela Turquia; estende em todas as direções estratégicas as suas imensas ferrovias: a Transiberiana para Pequim, a Transcaucásia para o Golfo da Pérsia, a Transcaspiana para a Índia; cresce, num impulso contínuo, por um movimento análogo ao dos glaciares, com a massa incomparável dos seus cento e vinte milhões de almas, para o Mar Negro, para Constantinopla, para o Eufrates, para o Golfo de Oman, para a Manchúria, a Coréia, abrangendo no traçado assombroso do pan-eslavismo a Europa e a Ásia, dos Dardanelos ao Oceano Índico e ao Oceano Pacífico.

Mas nada se compara à dilatação da Inglaterra. Seu imperialismo liberal abarca os continentes. Todas as suas rivais uma a uma involuntariamente a vão servindo: a França, em 1840, quando impele Mehemet Ali à conquista da Síria e da Ásia Menor; em 1869, quando inaugura o Canal de Suez; a Rússia, em 1853, quando ameaça Istambul e os Estreitos, assim como depois quando transmonta o Ararat, e arremessa os seus exércitos até o Mar de Mármara, em San Stefano; a Alemanha, afinal, em 1899, quando, abrindo mão das suas afinidades holandesas e das suas simpatias pelos vencedores de Jameson, entrega os bôeres à desgraçada fortuna das resistências suicidas. Na América abraça o Canadá, a Terra Nova, a Guiana, a Jamaica e as mais ricas das pequenas Antilhas. Ocupa a foz do Níger e do Hinterland até ao Lago Tchad. Ninguém se lhe atravessa no seu caminho da Índia. Imensos tentáculos do seu domínio universal, as suas forças navais enlaçam os oceanos; as suas vias férreas alongam os sulcos pelo Afeganistão e a Pérsia Meridional, pelo Tibete, pela Birmânia e a China, através dos desfiladeiros do Lan-Tan, para o Yunnan e o Yangtze Kiang; as suas linhas de navegação estendem-lhe o comércio, a influência e o poder até aos mares chineses, de Hong Kong a Weihaiwei, até Melbourne e Sydney, na Austrália, e do Cairo ao Cabo, das fontes do Nilo à Zambézia, à Rodésia, pelas costas africanas. De Natal a Calcutá, de Calcutá a Pequim, de Pequim a Auckland, de Auckland a Quebec, de Quebec ao estuário do Tâmisa, das margens do Tâmisa ao vértice do Himalaia, esse colosso, em cujo seio se abriga uma civilização inteira, derrama a universalidade da sua raça, do seu idioma, das suas instituições e das suas armas.

Mas, como se a arena já não transbordasse, um gigante de proporções incalculáveis invade inopinadamente a cena. Em cinqüenta anos se improvisou a Austrália. Em trinta, o Japão. O advento da soberba potência norte-americana conta menos de um lustro. Há dois anos a Espanha lhe deixava nas mãos as últimas jóias do seu império colonial, os derradeiros retalhos da sua antiga majestade: Cuba, Porto Rico, as Filipinas. Em fevereiro de 1898 desembarcam nas Ilhas de Hawaii as primeiras tropas yankees. Em março Dewey incendeia a esquadra de Montojo no porto de Cavite. Em julho se destrói a de Cervera, ao sair de Santiago. A Alemanha sente para logo, em Manila, o orgulho da embriaguez, em que a loucura das conquistas estonteia a nova potestade militar. Se uma esquadra americana imediatamente se não mostra em pleno Mediterrâneo aos europeus, bombardeando o litoral ibérico, é que a vencida capitula, e se apressa em tratar. Mas logo depois os seus soldados se encontram com os da Europa no Império do Meio, e a espada, que Washington embainhara, para não sair à luta senão em defesa da liberdade, vai disputar à avidez ocidental, nas costas chinesas, o seu quinhão régio nos despojos do Oriente.

Eis como madruga para nós o século vinte. A guerra sino-japonesa, a guerra hispano-americana, a guerra anglo-bôer, três guerras de ambição, três guerras de conquista, três guerras de aniquilamento, esboçam os pródromos do mais desmarcado conflito, a que nunca assistiu a espécie humana. As grandes nações aprestam recursos inauditos, para concorrer à divisão dos países semicivilizados, e ocupar os últimos lugares vagos na área terrestre. A teoria da absorção dos fracos pelos fortes legitima de antemão a hipótese iminente. Não resta às nacionalidades ameaçadas senão apelarem para a sua própria energia, a rápida educação dos seus elementos humanos na escola da guerra. E, enquanto esta liquidar até nas profundezas submarinas, a vindoira carta política do globo, o espectro social lhe terá semeado à retaguarda procelas e revoluções, de cujo embate não se sabe como sairá esse progresso cristão, que dezenove séculos de lavragem tormentosa tem custado ao Evangelho.

Para nós os desta parte do orbe terrestre não é também desnublado o crepúsculo desta manhã. Ao raiar do século, que ontem expirou, sentíamos o presságio da redenção. Começamos o século dezenove as nações das duas Américas, sacudindo o cativeiro colonial. Agora que a reação colonial torna a soprar sobre o mundo, não desses estreitos recantos de Portugal e Castela, mas por assim dizer de todos os pontos do firmamento, não podemos estar seguros de que no primeiro ou segundo quartel do século entrante não tenhamos de volver à defesa destas paragens contra a cobiça estrangeira. Desabou o frágil refúgio da doutrina de Monroe, e a sorte dos povos americanos, como a dos africanos e asiáticos, há de liquidar-se, sem barreiras continentais, no teatro do mundo, ao arbítrio dos interesses e das forças, que se medirem na campanha mais cedo ou mais tarde ferida entre os poderosos.

Debalde os votos dos filantropos, os sonhos dos idealistas e as esperanças dos cristãos, evocam, no limiar desta idade, a imagem benfazeja da paz. A realidade ilacrimável há de respondar-lhe como Frederico o Grande, no século dezoito, às desequilibradas impaciências de Rousseau: “Quer ele que eu celebre a paz: não lhe conhece o bom do homem a dificuldade.” Nunca esse desideratum esteve mais longe de nós que após o congresso de Haia. Verdade é que dele saiu preconizado o princípio da justiça internacional pelo arbitramento. Mas esta instituição divina terá de passar por muitas repulsas, e sofrer, como as mais belas divindades antigas, muitas feridas, quando o delírio das batalhas arremessar umas contra as outras essas medonhas moles armadas.

Apressemo-nos, entretanto, em atalhar equívocos, que a nossa opinião não subscreve. Se propendemos para Maquiavel em desconfiar da nossa mácula primitiva, em acreditar que a humanidade está sempre vizinha da corrupção natural, em recear nos homens, por mais longas aparências de sublimidade que apresentem, o reproduzir-se da mesma natureza, reproduzidas as mesmas ocasiões, longe estamos de contestar, duvidar ou amesquinhar a obra progressiva das idéias e dos costumes. Ainda no terreno do mal se destacam os progressos inegáveis do bem. Ao alvorar do século dezenove, Napoleão transpunha como o raio o Grande S. Bernardo, dava a Batalha de Marengo, e, subjugando a Itália, de um golpe, anunciava o eclipse do mundo no disco de um gênio. Durante quinze anos a estrela de um homem foi a estrela da civilização européia. Hoje as figuras, que se desenham no campo visual do nosso destino, são as nações e as raças. Aquelas grandes ditaduras acabaram. Os povos obedecem às suas vontades. Tudo está em saber que leis, ou que arcanos supremos animarão essas correntes vivas, e preservarão de terminar em catástrofes os seus encontros formidáveis.

Como quer que for, porém, não regateemos a esse magnífico período secular o seu rnerecimento. Seu caráter foi, em geral, magnânimo e radioso. Aboliu a escravidão. Resgatou, na família européia, quase todas as nacionalidades opressas. Generalizou o governo do povo pelo povo. Elevou os direitos da consciência a uma altura sagrada. Depurou a liberdade, a justiça e a democracia. Criou a opinião pública, e deu-lhe a soberania dos Estados. Entronizou a igualdade legal. Fundou a educação popular. Extraiu da ciência benefícios e portentos, que deslumbram a fantasia. Mudou a paz e a guerra. Transfigurou a face dos continentes e dos mares.

Mas até onde tocou o coração do homem, só Deus o sabe, e o saberemos nós, quando a centelha atmosférica inflamar os combustíveis, cuja aglomeração silenciosa inquieta os grandes e apavora os pequenos. Então os que assistirem ao espetáculo, poderão dizer se a um século, em que a ciência serviu principalmente à força, terá sucedido um século, em que a força se incline, afinal, ao direito.

Entrementes vamo-nos dando ao ingênuo prazer, ou à vaidade inofensiva de sentirmo-nos entre os mortais, a quem tocou o privilégio de assistir a um dos centenários da humanidade. Os marinheiros de primeira viagem recebem alegremente o batismo náutico, ao cruzarem a vez primeira o círculo equinocial. Este círculo do tempo não se transpõe duas vezes. Digamos, pois, adeus a esta baliza da eternidade, com o sentimento de um encontro que se não repete.

 

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