O Ermitão do Muquém

PUBLICIDADE

 

Clique nos links abaixo para navegar no capítulo desejado:

POUSO SEGUNDO OS CHAVANTES
( CONTINUAÇÃO ):

CAPÍTULO V – O TRANSVIO

CAPÍTULO VI – NA LAPA

CAPÍTULO VII – A VOLTA

 

Bernardo Guimarães

AO LEITOR

Cumpre-me dizer duas palavras ao leitor a respeito da composição
do presente romance, o qual (seja dito de passagem) repousa sobre uma tradição
real mui conhecida na província de Goiás.

Consta este romance de três partes muito distintas, em cada uma das
quais forçoso me foi empregar um estilo diferente, visto como o meu
herói em cada uma delas se vê colocado em uma situação
inteiramente nova, inteiramente diversa das anteriores.

A primeira parte está incluída no Pouso primeiro, e é
escrita no tom de um romance realista e de costumes; representa cenas da vida
dos homens do sertão, seus folguedos ruidosos e um pouco bárbaros,
seus costumes licenciosos, seu espírito de valentia e suas rixas sanguinolentas.
É verdade que o meu romance pinta o sertanejo de há um século;
mas deve-se refletir que é só nas cortes e nas grandes cidades
que os costumes e usanças se modificam e transformam de tempos em tempos
pela continuada comunicação com o estrangeiro e pelo espírito
de moda. Nos sertões, porém, costumes e usanças se conservam
inalteráveis durante séculos, e pode-se afirmar sem receio que
o sertanejo de Goiás ou de Mato Grosso de hoje é com mui pouca
diferença o mesmo que o do começo do século passado.

Do meio dessa sociedade tosca e grosseira do sertanejo o nosso herói
passa a viver vida selvática no seio das florestas, no meio dos indígenas.
Aqui força é que o meu romance tome assim certos ares de poema.
Os usos e costumes dos povos indígenas do Brasil estão envoltos
em trevas, sua história é quase nenhuma, de suas crenças
apenas restam noções isoladas, incompletas e sem nexo. O realismo
de seu viver nos escapa, e só nos resta o idealismo, e esse mesmo mui
vago, e talvez em grande parte fictício. Tanto melhor para o poeta
e o romancista; há largas enchanças para desenvolver os recursos
de sua imaginação. O lirismo, pois, que reina nesta segunda
parte, a qual abrange os Pousos segundo e terceiro, é muito desculpável;
esse estilo um pouco mais elevado e ideal era o único que quadrava
aos assuntos que eu tinha de tratar, e às circunstâncias de meu
herói.

O misticismo cristão caracteriza essencialmente a terceira parte,
que compreende o quarto e último Pouso.

Aqui há a realidade das crenças e costumes do cristianismo,
unida à ideal sublimidade do assunto. Reclama, pois esta parte um outro
estilo, um tom mais grave e solene, uma linguagem como essa que Chateaubriand
e Lamartine sabem falar quando tratam de tão elevado assunto.

Bem sei que a empresa é superior às minhas forças;
bom ou mau, porém, aí entrego ao público o meu romance;
ele que o julgue.

Ouro Preto, 10 de novembro de 1858

O AUTOR – INTRODUÇÃO

As peregrinações devotas ou romarias são de uso imemorial
em todos os países católicos. Ora penduradas no cume de um rochedo
escarpado e quase inacessível, ora fundadas no seio de uma gruta natural,
ou em algum vale escuro e triste em meio de florestas ou montanhas alterosas,
em toda a parte do mundo cristão encontram-se disseminadas aqui e acolá
essas pequenas capelas ou ermidas, que de ordinário devem a sua fundação
a alguma lenda miraculosa, e que em épocas determinadas atraem a si
milhares de romeiros e peregrinos.

Há sem dúvida grande dose de superstição nessas
romarias, e o povo as tem feito perder muito da sua importância e prestígio,
multiplicando-as infinitamente, instituindo romarias a granel por toda parte;
todavia nem por isso deixam de ser uma das usanças mais poéticas
e tocantes do cristianismo.

O Rio de Janeiro possui em seus aprazíveis e magníficos arrabaldes
mais de uma ermida, que todos os anos em dias certos atrai imenso concurso de
romeiros. A nobre e altiva Paulicéa também todos os anos vê
saírem de seu seio milhares de habitantes, que em devota romaria vão
levar oferendas e votos à milagrosa Nossa Senhora da Penha, que se adora
em sua linda capela erigida a duas léguas da cidade em um risonho outeiro,
que domina as aprazíveis lezírias por onde remanseia o Tietê.

Em Minas quem não tem ouvido falar no irmão Lourenço, nesse
novo Paulo Eremita, que nos fraguedos da Serra do Caraça passou a vida
na prática do mais rigoroso ascetismo e da mais austera penitência,
e lá num recinto circundado de crespas e alterosas serranias erigiu um
templo com a invocação de Nossa Senhora Mãe dos Homens,
e lançou os fundamentos da grande instituição do seminário
Caraça, que devia servir de núcleo aos filhos de Vicente de Paula
para espalharem a luz da instrução e da fé por toda a província?
A capelinha de Nossa Senhora da Lapa, perto do arraial de Antônio Pereira,
a duas léguas de distância do Ouro Preto, cavada pela natureza
no flanco de uma montanha, é objeto também do fervoroso culto
dos fiéis, e da admiração dos curiosos.

Nas altas e escabrosas cumeadas de uma grande cordilheira campea o arraial de
S. Tomé das Letras com suas alvas casinhas, semelhando um bando de brancas
pombas pousadas sobre o teto do antigo templo derrocado e denegrido pelo tempo.
É crença do povo que o apóstolo S. Tomé viajou e
pregou na América, e a alguns sinais parecidos com letras, que se notam
em uma pedra, e que se acredita terem sido ali gravadas pelo apóstolo,
deve a povoação o seu nome.

Congonhas do Campo, com sua rica e formosa capela tendo por orago o Sr, Bom
Jesus do Matosinho, com seu vistoso adro de escadarias, povoado de profetas
de pedra (escultura curiosa de um homem mutilado da mão direita, e que
atava ao punho o instrumento com que trabalhava), atrai de imensas distâncias
os fiéis, que vêm pedir ao milagroso Jesus a cura de suas enfermidades,
ou cumprir piedosas promessas.

Há ainda inúmeras outras romarias disseminadas por toda a extensão
do império. A origem da fundação de todas essas capelas
é quase sempre a aparição miraculosa da imagem de algum
santo no interior de uma caverna, no seio de uma floresta, no leito de um córrego,
ou mesmo no côncavo de um tronco. Os filósofos do século,
os apóstolos da descrença riem-se com desdém dessas ingênuas
e tocantes crenças do povo. Todavia seus engenhosos raciocínios,
seus sistemas transcendentes, não podem substituir essa fé viva
e singela, que alenta e consola o homem do povo nos trabalhosos caminhos da
vida. Embora envolvida no cortejo de mil superstições grosseiras,
de mil tradições absurdas, deixemos-lhe essa fé, que o
acompanha desde o berço que bebeu com o leite materno, e que o consola
em sua hora extrema. Seja embora um erro, é um erro consolador, que em
nada prejudica ao indivíduo nem à sociedade; a esses filósofos
poderíamos responder parodiando aqueles versos que Camões põe
na boca do Adamastor: E que vos custa tê-los nesse engano, Ou seja sombra,
ou nuvem, sonho ou nada?…

Lá bem longe, no coração dos desertos, em uma das mais
remotas e despovoadas províncias do Império, existe uma das
mais notáveis e concorridas dessas romarias, notável, sobretudo,
se atendermos ao sítio longínquo e às enormes distâncias
que os romeiros têm de percorrer para chegarem ao solitário e
triste vale em que se acha erigida a capelinha de Nossa Senhora da Abadia
do Muquém na província de Goiás, cerca de oitenta léguas
ao norte da capital e a sete léguas da povoação de S.
José de Tocantins, à margem de um pequeno córrego que
tem o significativo nome de Córrego das Lágrimas. Das mais remotas
paragens acodem romeiros a essa isolada capelinha para implorar à santa
o alívio de seus padecimentos e trazer-lhe preciosas oferendas. Durante
alguns dias do ano aquele lôbrego e escuro sítio transforma-se
em uma ruidosa e festiva povoação; o Muquém é
sem contestação a romaria mais concorrida e a mais em voga do
interior.

Eis aqui por que ocasião e como nos foi contada a história da
fundação dessa importante romaria.

Viajávamos eu e mais dois companheiros vindos de Goiás, e atravessávamos
a província de Minas com direção à corte; acabávamos
de arranchar em um belo sítio nas campinas graciosamente acidentadas
do município do Patrocínio, junto à margem de um ribeirão,
chamado Rio de S. João. A paisagem era enlevadora, o tempo magnífico.

O rio corre escoltado em uma e outra margem por uma orla de árvores alterosas
e da mais formosa ramagem; o rancho está situado em um delicioso vargedo
cerca de duzentos passos de distância do leito do rio, cujo brando murmúrio…
não se ouvia, pois corre manso e silencioso como a jibóia escorregando
subtilmente pela vereda úmida dos brejos. O tope escuro dos arvoredos
destacava-se vivamente no horizonte inflamado pelos clarões do sol poente.

Enquanto os camaradas tratavam de pensar os animais, e preparava-se a comida
frugal e grosseira, mas suculenta, do viajante nessas paragens, eu e meus companheiros
pendurávamos dos esteios do rancho a nossa rede, essa companheira inseparável
do viandante do sertão, em cujo seio tanto lhe apraz embalar-se descansando
das fadigas da jornada, e cismando saudades do seu país. Já reclinados
a fumar nosso cigarro nos embalávamos indolentemente passeando olhares
saudosos por aqueles horizontes, dos quais meus companheiros se afastavam por
pouco tempo, e a que eu no íntimo da alma murmurava um adeus talvez eterno,
quando ouvimos na estrada a batida de um animal, e alguns segundos depois um
cavaleiro aparece e pára à porta do rancho.

— Senhores, nos diz ele depois de saudar-nos, se ainda há cômodo
para alguém no rancho, espero que me permitirão fazer-lhes companhia
de pouso por esta noite.

— Com muito gosto; o rancho é de todos os viandantes, e se a sua
comitiva não é muito grande, cremos que não ficará
mal acomodada.

Em poucos instantes descarregou-se a pequena bagagem do nosso novo companheiro
de pouso, o qual, como a sua comitiva constava de duas pessoas, ele e seu camarada,
aceitou o convite, que lhe fizemos, de jantar do nosso caldeirão.

Entre pessoas desconhecidas e que nada têm a se dizerem, de ordinário
a conversação se trava por perguntas. Começamos pois por
perguntar-lhe donde vinha.

— De bem longe, nos respondeu ele; venho da famosa romaria de Nossa Senhora
da Abadia do Muquém na província de Goiás, de que os senhores
decerto hão de ter notícia.

— Por certo, respondi-lhe eu; muito tenho ouvido falar nessa afamada romaria,
e, segundo tenho ouvido dizer, é uma das mais bonitas e concorridas que
temos.

— Sem dúvida alguma. É uma maravilha que é preciso
ver-se para dela formar uma perfeita idéia. Ainda que não seja
por devoção, mesmo por espírito de curiosidade vale a pena
fazer-se essa viagem para ver como aquele lugar completamente desabitado no
fundo dos sertões, onde apenas existe uma capelinha e um casebre sem
habitantes, converte-se de repente em uma cidade cheia de vida, de rumor e movimento,
composta de barracas, toldas, carros-de-bois, e ranchos cobertos de capim. Reúne-se
ali todos os anos, na época da festa, uma população de
cerca de dez mil pessoas, que vêm de distâncias enormes, até
do Pará e Rio Grande do Sul, umas por devoção e para cumprirem
promessas, outras para fazerem comércio, pois que nesses dias aquele
lugar torna-se uma feira imensa, onde se compra, vende-se e permuta-se toda
a qualidade de mercadorias. Aí os sertanejos do norte de Goiás,
e das extremas das províncias da Bahia, Pernambuco, Piauí e Maranhão,
vão-se prover de fazendas, quinquilharias, ferragens e vinhos que compram
aos negociantes de Meia Ponte e Goiás que conduzem daquele ponto essas
mercadorias. Os romeiros também vendem aos negociantes destas duas cidades,
e aos de Minas e S. Paulo, grande quantidade de couros, solas, animais cavalares,
redes fabricadas pelos índios, escravos, ouro em pó e diamantes.

A importância do produto da venda dos donativos feitos pelos romeiros
anda anualmente por 8 a 10 contos, não incluindo-se nessa quantia as
dádivas em dinheiro, que também muito avultam.

Mas todo esse movimento e animação dura apenas de seis a oito
dias, findos os quais desarmam-se as tendas dos peregrinos, e o Muquém,
como um acampamento abandonado, volta ao silêncio e à solidão,
ficando de novo a capelinha isolada em meio daqueles tristes e silenciosos ermos.

— E o senhor, disse-lhe eu, desculpe-me a curiosidade, o senhor foi
lá simplesmente por devoção e romaria, ou também
a negócio.

— O meu fim principal, respondeu, foi o cumprimento de uma promessa feita
por minha mulher, que se achando atacada de uma enfermidade cruel, que zombava
de todos os remédios e da ciência dos mais abalizados médicos,
lembrou-se de implorar a Nossa Senhora da Abadia remédio a um mal de
cuja cura os homens tinham desesperado. Pouca ou nenhuma fé eu tinha
então nessas promessas e romarias, que considerava como superstições
próprias somente do vulgo ignorante. Todavia minha mulher mostrava tanta
confiança e fé tão viva que eu nem de leve ousei contrariá-la
para não agravar-lhe os sofrimentos.

Prometermos vir ambos em romaria à capela de Nossa Senhora da Abadia
do Muquém trazer alguns donativos e adorar a santa em seu próprio
altar. Desde então começou minha mulher a melhorar sensivelmente,
e acha-se hoje quase completamente boa. Por prudência porém assentamos
que ela não viesse ainda este ano; vim eu somente cumprir parte das promessas;
mas para o ano, se Nossa Senhora da Abadia continuar a proteger-nos, voltarei
com ela, e enquanto eu for vivo, todas as vezes que as circunstâncias
o permitirem, hei de fazer uma peregrinação ao Muquém,
ainda que não seja senão para depor um simples ramo de flores
e rezar uma Salve-Rainha aos pés daquela milagrosa Senhora.

— Muito se fala por toda a parte, repliquei eu, nos milagres de Nossa
Senhora da Abadia do Muquém; mas o que acho aí de mais notável
e singular é que fossem edificar essa capela e fundar essa romaria lá
no fundo de um sertão remoto, podendo ser erigida em qualquer localidade
mais vizinha de povoados.

— Essa localidade não foi escolhida por ninguém, e segundo
conta a lenda, foi indicada pelo céu para nela se edificar a capelinha
que aí existe. O senhor, pelo que vejo, não sabe a história
de sua fundação.

— Não, senhor; apenas tenho ouvido alguma coisa de uns e outros
a esse respeito muito por alto e vagamente.

— Pois não deixa de ser curiosa e interessante essa história;
e se não se enfadam de escutar-me, eu a contarei com muito gosto, posto
que seja algum tanto longa.

— Ainda que a narração tenha de durar a noite inteira, não
nos enfadará, e o escutaremos com muito prazer.

Da minha parte perderia de bom grado duas noites de sono só para ouvir
essa história.

A proposição do viajante foi aceita pois por mim e por meus companheiros
com o mais vivo prazer. De feito, quem não gostará, ao descair
de uma noite pura e silenciosa, em um aprazível e tranqüilo pouso
em meio das solidões, recostado preguiçosamente em uma rede a
fumar um bom cigarro depois de ter saboreado uma xícara de café,
quem não gostará de escutar a narração de uma lenda
popular? O sol já tinha desaparecido inteiramente do horizonte; sombra,
fresquidão e melancolia desciam sobre a terra no manto cinzento do crepúsculo.

O nosso jantar estava pronto; improvisou-se a mesa sobre algumas canastras reunidas,
em torno das quais cada um acomodou-se do melhor modo que pôde, e serviu-se
o jantar, que consistia no infalível e patriarcal feijão com toucinho,
lingüiças assadas, arroz e outras coisas de que já me não
lembro, regando-se tudo com um cálix de aguardente de cana, que a natureza
parece ter criado de propósito nesses lugares para cortar os maus efeitos
desses alimentos pesados e gordurosos. Por fim tomou-se o café, não
essa tintura negra e detestável que se serve por aí nesses hotéis
e hospedarias com o nome de café, mas o verdadeiro café aromático
e balsâmico, tal como se sabe preparar em Minas, e cujos deliciosos vapores
aquecem o cérebro e expandem tão suavemente o coração.

Enfim, estando já tudo arranjado no rancho, assentamo-nos em nossas redes
aguardando a narração que o romeiro do Muquém nos prometera.
Tudo foi silêncio imediatamente; cessaram as vozerias e toques de violas
dos camaradas, e até os cães, deitados ao pé do fogo estendendo
o focinho por sobre as patas encruzadas, pareciam escutar com religiosa atenção
as palavras do narrador.

O nosso romeiro era natural dessa risonha e pitoresca região onde tem
o seu berço o majestoso e opulento Jequitinhonha, que rola suas águas
por sobre rubis e diamantes, dessas donosas campinas caprichosamente acidentadas,
e cortadas de cristalinos ribeirões, a cujos habitantes o céu
entornou no espírito as centelhas do engenho e da inspiração,
como alastrou-lhes o solo de brilhantes e preciosas pedrarias. Poderia ter trinta
e tantos anos; era de imaginação viva, inteligência clara,
e sua linguagem e maneiras revelavam um espírito cultivado e fina educação.

Nos olhos e na boca tinha notável expressão de bondade e franqueza;
sua voz era de um timbre claro e sonoro. Nada pois faltava ao nosso narrador
para prender todas as atenções.

Como o romeiro de Muquém tinha de seguir sua viagem por alguns dias na
mesma direção que nós levávamos, durante quatro
noites entreteve-nos ele os serões do pouso com a narração
da história que vamos reproduzir, e que por essa razão dividiremos
em quatro pousos.

POUSO PRIMEIRO O CRIME

CAPÍTULO I – O VALENTÃO

Na cidade de Goiás, antigamente Vila Boa, existia, há de haver
mais de um século, um moço que por suas turbulências e
espírito de valentia tinha adquirido a mais estrondosa nomeada por
todas aquelas paragens.

Era filho de pais abastados e de boa família; porém educado à
larga, abandonado desde a infância a si mesmo, sempre em meio de más
companhias, dotado além de tudo de índole inquieta e fogosa, este
rapaz, que poderia ser um homem de bem e útil à sociedade, se
uma educação regular tivesse dado salutar direção
aos instintos de sua natureza, foi-se tornando um valentão famoso, talhado
a molde para as galés ou para o patíbulo.

Gonçalo, que assim se chamava, aplicou-se com ardor desde criança
ao manejo de armas de toda a qualidade, a domar animais bravos, a caçar,
a nadar, enfim a toda sorte de exercícios do corpo os mais rudes e perigosos.

E de feito neste ponto sua educação foi completa; aos vinte anos
de idade, não havia em toda capitania quem com mais destreza esgrimisse
uma chavasca, quem tivesse olho mais certeiro para uma pontaria, quem melhor
se segurasse nos arreios, argüentando os corcovos do burro o mais xucro,
e quanto ao nadar, só poderia competir com ele a lontra, ou a capivara.

Era também agilíssimo no jogo da faca; com os pés atados
bem juntos e com uma faca em punho desafiava a qualquer, e com tal destreza
se defendia que nem assim o podiam tocar.

Era também hábil em manejar as armas dos índios, e sabia
atirar a flecha como o mais destro dos Caiapós ou dos Chavantes. Traçava
no chão um círculo de dois pés de diâmetro quando
muito, entesava o arco, e mandava às nuvens uma flecha; se o ar estava
tranqüilo vinha ela cravar-se infalivelmente dentro daquele círculo.
Causar-lhe-ia riso a façanha desse camponês da Suíça,
do qual se conta que por ordem de um tirano teve de atravessar com uma flecha
uma maçã colocada sobre a cabeça de seu filho; Gonçalo
teria atravessado um anel.

Mas em vez de pôr ao serviço da pátria e da liberdade sua
grande força e valentia, como aquele herói, Gonçalo, áspero
e turbulento por natureza e por mania, atirou-se em corpo e alma na carreira
da devassidão e tornouse um completo vadio, um famoso desordeiro.

Em todos os maus lugares, onde quer que houvesse uma orgia, um batuque, uma
algazarra qualquer, podiase jurar que lá se achava Gonçalo puxando
barulho, provocando desordens, só para ter ocasião de ostentar
sua bravura e fazer sentir a algum desgraçado o peso de seu braço-de-ferro.
Nisto consistia todo o seu orgulho, toda a sua glória. Quando em Goiás
aparecia algum desses valentões afamados, com um desses apelidos extravagantes
que por si sós fazem tremer, como Veneno, Jacaré, Tiracouro, Canguçu,
etc., bem barbudo, vestido de couro, armado até os dentes, lá
ia Gonçalo procurá-lo e não sossegava enquanto não
achasse ocasião de quebrar-lhe a proa.

Entretanto esse moço não era mau por natureza; tinha no fundo
excelentes qualidades e generosos instintos de coração, que teriam
feito dele um homem precioso, se não fosse a sua má educação
e a diabólica mania de querer passar pelo maior valentão do mundo.

Ainda para maior desgraça Gonçalo, antes de chegar aos vinte anos
de idade, tinha perdido pai e mãe.

Desde então senhor absoluto de suas ações e de uma tal
ou qual fortuna, não encontrou mais paradeiro a seus desvarios e paixões
desordenadas.

Um preto velho, famoso feiticeiro, respeitado e temido pelo vulgo, lhe tinha
dado certa mandinga ou caborje, amuleto temível e milagroso, que o
preto inculcava como um preservativo infalível contra balas, contra
raios, contra cobras e contra toda e qualquer espécie de perigos.

Gonçalo, supersticioso como todo o homem ignorante, acreditava piamente
em todas essas virtudes da mandinga, e a trazia cuidadosamente cosida em seu
cinturão de couro de lontra.

Gonçalo trazia também ao pescoço outro objeto de natureza
inteiramente diversa; era um rico relicário de ouro com uma imagem de
N. Sr.ª da Abadia, que sua mãe lhe dera em seu leito de morte recomendando
e aconselhando que tivesse por aquela imagem particular devoção,
e que invocasse sempre o seu patrocínio em todos os trabalhos e perigos
da vida. Com efeito Gonçalo tinha a mais viva fé naquela santa
imagem, e nunca em dias de sua vida deixou de beijá-la com fervorosa
devoção ao deitar-se e ao levantar-se da cama depois de ter rezado
uma ave-maria. Assim todas as vezes que se achava em apertos, com uma das mãos
apalpava o cinturão, em que trazia o talismã da superstição
africana, e com a outra levava aos lábios o relicário, confundindo
desta maneira em sua tosca imaginação o culto da mãe de
Deus com uma grosseira feitiçaria.

Apesar disso não se passava um só dia em que Gonçalo não
fizesse provar a algum pobre cristão a força de seu braço
rude e vigoroso. Cabeças e braços quebrados, narizes esmurrados,
caras esbofeteadas, costas derreadas, eram façanhas que todos os dias
aumentavam a fama e terror de seu nome.

Zombava da justiça, que naquele tempo e naquelas paragens parece que
nenhuma força tinha.

Gonçalo muitas vezes dispersou e espancou as milícias encarregadas
de prendê-lo por ocasião de alguma das suas falcatruas.

Ele as espalhava a pontapés, como quem arreda com a ponta do pé
um tropeço que encontra em seu caminho.

Demais, Gonçalo tinha por si grande número de parceiros, vadios
e bandidos como ele, que o temiam e respeitavam, e com os quais contava em ocasião
de aperto. Era uma malta de rapazes ociosos e devassos, da qual ele por sua
superioridade em forças e destreza e por sua riqueza e generosidade era
o chefe natural.

Posto que temido como uma onça e respeitado entre seus camaradas pela
sua valentia, Gonçalo não deixava de ser estimado, e em qualquer
folguedo a sua presença era indispensável, pois era o companheiro
mais alegre e folgazão que se conhecia. Ninguém com mais primor
sabia pontear uma viola, cantar modinhas e lundus ou sapatear com mais desgarro
e desenvoltura em uma sala de batuque. Gostava de moças, e com tais prendas
e uma bonita figura, bem se vê quanto devia ser querido delas.

Era ele pois parceiro infalível em todas as festas, batuques e partidas
de prazer, quaisquer que fossem.

À força de ser temido e respeitado, pois ninguém mais ousava
experimentar as forças de sua mão-de-ferro, a vida de Gonçalo
ia-se por fim monótona e sem acidentes, com o que andava ele mui desconsolado
e aborrecido.

Essa vida tranqüila, que ia passando, sem achar ocasião ao menos
de dar uns murros ou uns pontapés, o enjoava por tal sorte, que estava
resolvido a ir viajar pelos sertões em busca de quanto valentão
e facínora afamado por aí houvesse, medir suas forças com
eles, matá-los todos e trazer suas orelhas de mimo ao capitão-mor.
O destino porém ajeitou as coisas por tal modo, que não foi preciso
a Gonçalo sair de Goiás para que fossem completamente satisfeitos
os seus desejos.

Entre os comparsas de Gonçalo havia um que, além de ser seu particular
amigo, era o único que ousava rivalizar com ele em força e destreza.
Era um rapaz por nome Reinaldo, robusto e bem-feito, e geralmente estimado por
sua franqueza e lealdade, e que ainda não se tinha deixado inteiramente
eivar do espírito de desordem e devassidão dos seus companheiros.
Nos exercícios de luta, esgrima e outros era o que dava mais trabalho
a Gonçalo, e por vezes acontecia ficar indecisa a vitória. Como
era ainda muito moço tinha esperança de uma dia igualar, senão
exceder a seu amigo em vigor e agilidade. Os companheiros o aplaudiam e animavam
de propósito para humilhar a Gonçalo, cujo orgulho interiormente
desejavam ver abatido. Isto fazia espumar de raiva a Gonçalo. Nesses
momentos todo o sentimento de amizade desaparecia de seu coração,
e não poucas vezes suas lutas e exercícios se teriam transformado
em cenas de sangue e morte, se não interviessem os amigos de ambos. Gonçalo
tinha bom coração e era excelente amigo, mas prezava acima de
tudo a sua reputação de valentia. Esta singular mania encheulhe
de trabalhos e infortúnios o caminho da vida.

CAPÍTULO II O BATUQUE

Era um domingo. Por uma bela noite de luar, um desses batuques animados e
estrondosos, que são tão comuns nas povoações
do sertão, fazia retroar um dos mais retirados e silenciosos bairros
de Vila Boa. O chão tremia aos frenéticos sapateados dos dançadores;
o rumor das violas, dos pandeiros, dos adufos, as palmas compassadas, as cantigas
esgueladas retumbavam ao longe das margens do Rio Vermelho, e iam perder-se
em sons confusos pelas quebradas das montanhas vizinhas.

Todo esse rumor e vozerias partiam de uma casa térrea, porém espaçosa,
propriedade de mestre Mateus, velho caboclo, ferreiro de nomeada, o qual nessa
noite reunia em sua casa a mais luzida rapaziada da vila e da roça, e
as mais bonitas raparigas do lugar, a fim de festejar com batuque e folgança
os anos de uma de suas filhas, para o que tinha obtido licença expressa
do juiz ordinário. Mestre Mateus era um bom velho, de costumes pacíficos,
benquisto, alegre e amigo de folgar. Nada havia pois de recear de um tal folguedo,
sendo feito em sua casa, que nunca foi teatro de desordens.

Em uma grande sala alumiada por algumas candeias de ferro espetadas nas paredes,
e cuja mobília consistia em bancos, tamboretes, caixas, catres e cepos
semeados em desordens em roda da sala, estava a grande roda dos dançadores.

Eram guapos rapagões em trajos domingueiros, porém muito à
fresca em razão do imenso calor que faz naquela terra, uns em mangas
de camisa, outros descalços, porém todos de chapéu na cabeça,
cigarros na boca ou na orelha, e uma comprida faca na cintura.

Quanto às raparigas, como sempre se nota nesses folguedos, havia grande
variedade de cores e de figuras.

Ao par de uma branca de longos cabelos castanhos ou louros sapateava a crioula
de trunfa encarapinhada; junto de uma Megera desgrenhada e titubiante linda
mulata de olhos úmidos e lascivos se bambaleava airosamente enfunando
as amplas saias de seu vestido branco ou cor-de-rosa. Entre muitas papudas,
feias e desenxabidas viam-se algumas bonitas e roliças caboclas, cor
de rola, de cabelo negro e corrido, e de olhos brilhantes como carbúnculos.
Brilhavalhes com profusão no pescoço o fino ouro extraído
das ricas minas de Goiás, em rosários, cordões, caixilhos,
medalhas que lhes ocultavam quase completamente o seio.

A aguardente de cana e outros licores circulavam com abundância à
discrição dos convivas.

Uns a tomavam simples, ou da lisa, conforme a expressão do país;
outros preferiam a assada, isto é, aguardente queimada com açúcar.
As cabeças se atordoavam de mais a mais, o batuque fervia cada vez mais
animado, e os heróis da festa nessa dança doida e vertiginosa
ensopavam as camisas exalando pelos poros toda a cachaça que bebiam.

Entre as raparigas, que lá se achavam, havia uma que pelo seu garbo e
formosura era o desassossego de todos os corações, e o alvo de
todos os desejos. Era uma moreninha de dezessete a dezoito anos, travessa e
viva como uma lontra, bonita como seria difícil encontrar outra igual,
mas louca e leviana como uma criança. Tinha por nome Maria, que a gente
da família e depois também o povo trocou pelo apelido de Maroca,
pelo qual era geralmente conhecida.

Todos ardiam por obter um sorriso, um olhar, um pequeno sinal de preferência
daquela encantadora menina; porém nenhum ousava declarar-lhe seus sentimentos,
nem requestá-la mui abertamente, porque todos sabiam que Reinaldo, o
amigo de Gonçalo, que a tinha em casa em sua companhia, a amava extremosamente.
Ora Reinaldo, que era respeitado e estimado de todos, era além disso
ciumento como um tigre, e tinha a dupla vantagem de ser o amigo e o único
rival de Gonçalo. Eram motivos de sobejo para que ninguém nem
de leve ousasse tocar-lhe na corda a mais sensível do coração.
Portanto os convivas a tratavam com certo constrangimento e reserva, o que fazia
que ela tomasse parte pouco ativa na dança.

Maroca, naturalmente travessa e desenvolta, como um diabrete, não gostava
nada dessa reserva, que não lhe permitia sair sempre ao meio da sala
sapateando doidamente como as outras. Triste e amuada em um canto da sala com
os braços cruzados, via-se-lhe o peito moreno arfar de impaciência
e agitar-lhe a alva camisa, que inundada em suor se lhe colava aos seios, deixando
ver-lhe quase a nu as puras e voluptuosas formas, pois, como se sabe, por essas
terras de Goiás, talvez por causa do excessivo calor, os corpos dos vestidos
das senhoras não têm serventia alguma, e as mangas são verdadeiras
mangas perdidas. Corpo e mangas elas os deixam cair sobre a saia em forma de
aventais, ficando os seios a ondearem livres e desafogados, encobertos apenas
por alva e transparente camisa, a qual ainda quase sempre é entremeada
de crivos e rendas.

A Maroca, como já disse, pouco dançava; mas quando lhe cabia a
vez de sair ao meio da sala, com sua graça sedutora, com seu gentil balanceado
enfeitiçava a todo o mundo e arrancava estrondosos bravos a toda a rapaziada.

Reinaldo, que todo se embebia na contemplação dos encantos da
Maroca, e que a rodeava de seus ardentes olhares, como um jacaré vigiando
o ninho, não era dos mais alegres da festa.

Todavia o batuque continua, o frenesi recresce, as palmas fervem, e as umbigadas
estouram cada vez com mais furor. Um cavaleiro apeia-se à porta da sala
e bate.

Sem tomar a precaução de perguntar quem é, mestre Mateus
vai imediatamente abri-la. Um belo rapagão de botas com grandes esporas
de prata, chapéu à banda, chicote na mão e cigarro na
boca se apresenta no limiar da porta.

— Oh! viva! bradou mestre Mateus; seja muito bem-vindo, compadre Gonçalino;
já me tardava; por onde andou até agora? já não
gosta da casa deste seu velho compadre? — Entra, Gonçalo; ainda
vieste a tempo; já estavas nos fazendo falta.

— O Sr. Gonçalo anda-se vendendo muito caro; já não
há quem o veja; alguém o ofendeu nesta casa? — Gonçalo,
deixa de ouvir secas e cumprimentos; anda para cá; vamos a beber, folgar
e dançar.

Todos estes cumprimentos e outros ainda eram dirigidos quase a um tempo a Gonçalo,
que não podendo responder a todos assentou de si para si que era mais
cômodo não responder a nenhum. Mestre Mateus chegou-se para Gonçalo.

— Estás hoje de má cara, meu compadre! o que te aconteceu?…
Não queres tomar alguma coisa? da lisa ou da assada?… hem? —
Venha seja o que for, e deixem-me que estou cansado.

Dizendo estas palavras, o moço atira-se atabalhodamente no primeiro assento
que encontra fazendo um barulho dos diabos com as esporas, faca, garruchas,
e todo o trem bélico que trazia em si, joga o chapéu para um canto,
encosta-se à parede, estende as pernas para o meio da sala com toda sem-cerimônia,
boceja e fecha os olhos como quem quer dormir. Mestre Mateus volta daí
a um instante com um copo na mão.

— Toma lá da queimada, compadre. Oh! com os diabos!… queres dormir,
homem? — Ora vai-te com os diabos, compadre, que me não deixas
descansar. O que me queres? — É da queimada; não tomas?
e então fica-se aqui a dormir ou vai-se dançar? Gonçalo
sacudiu os ombros, e não respondeu, tomou alguns goles da assada, passeou
um olhar indiferente pela sala, e de novo inteiriçou-se em seu assento
a todo o comprimento do corpo com ares de quem estava soberanamente aborrecido.
E de feito desde manhã até aquela hora tinha ele rondado a vila
inteira, tinha penetrado em todos os recantos, botequins e casas de jogo, tomado
parte em todos os ajuntamentos onde houvesse algazarra e bebedeira, dito graças
pesadas a mais de uma moça bonita mesmo às barbas de seus amantes,
e nem assim tinha achado ensejo nem sequer de apalpar o cabo de sua faca, e
isto em pleno domingo, em uma vila de tanto povo, que se tem por valente e pouco
sofredor! Daquele dia em diante Goiás não era a seus olhos mais
do que um covil de aduladores, cobardes e poltrões, um curral de carneiros
indigno de ser pisado pelos pés de um homem de brio.

Decididamente não podia demorar-se por mais tempo em tão miserável
país, e estava disposto a abandoná-lo para sempre.

O compadre Mateus veio arrancá-lo a essas reflexões.

— Que diabo tens tu hoje, compadre?… dança-se, ou não
dança-se?… As moças estão ardendo por te verem na roda.
Olha a Calu como está te chamando com aquele olhar derretido!… A Zezinha
diz que não dança mais e vaise embora, se continuares dessa maneira;
a Maroca por te ver assim embezerrado está com medo que queiras fazer
algumas das tuas, e já foi ver o capote para escapulir-se. Ah! compadre,
isto não está bem; você, que é sempre o melhor companheiro
de folgança, há de ser hoje o nosso desmancha-prazeres! Oh! bravo!…
é a Maroca que sai a campo! é a rainha da festa. Olha, compadre,
como está linda aquela feiticeirinha! Bravo disso! bravo, Maroca! E a
Maroca, depois de ter feito os mais galantes e graciosos requebros sapateando
pela sala, girou como um corrupio sobre os talões, abaixou-se rapidamente
rente ao chão, deixando ver somente entre os tufos de suas alvas saias
enfunadas os braços e o rostinho cor de jambo, como uma rolinha deitada
em ninho de algodão batido.

— Bravo! bravíssimo! bradou Gonçalo levantando-se de um
salto, que retiniu com estrondo por toda a sala.

Depois continuou baixo voltando-se para mestre Mateus: — Agora sim, compadre,
sou da festa; a Maroca está aí, vai tudo bem. E o Reinaldo, onde
está ele? não veio?…

— Não enxergas!… Olha, lá está ele naquele canto,
e por sinal que está hoje triste e de viseira fechada, não sei
por quê.

— Bem! lá o vejo, disse Gonçalo, em cujos olhos reluzia
um prazer satânico, e continuou resmungando entre si: — Bem! muito
bem! aqui sim! tenho uma linda menina a quem posso fazer a corte, e ao lado
dela um valentão de primeira ordem a quem farei abaixar o topete. Ah!
Reinaldinho, meu amigo, eis aqui uma bela ocasião de mostrar, sem ser
por brincadeira, qual dos dois é mais valente, o tigre ou a onça,
e isto sem quebra de nossa amizade; para teu ensino quebrar-te-ei bem as costelas
diante de toda esta gente, e nem por isso deixaremos de continuar a ser bons
amigos como dantes. Não serás o primeiro amigo a quem dou uma
destas proveitosas lições.

Não se pense que estas palavras, que Gonçalo murmurava consigo,
eram um escárnio feroz, um sarcasmo filho do ódio; não,
elas eram a expressão sincera de seus sentimentos. Ele queria bem a Reinaldo,
e seria capaz de lançar-se por entre o ferro e o fogo para defendê-lo;
mas o que não podia levar a bem é que este tivesse a louca pretensão
de rivalizar com ele em valentia; por isso suspirava sinceramente por uma ocasião
de dar-lhe uma sova tal, que lhe desvanecesse de uma vez para sempre suas quiméricas
aspirações, e que enfim conhecendo Reinaldo o seu lugar, não
houvesse mais motivo de desavença entre eles. Quão mal conhecia
ele a esse amigo, medindo-o pela mesma bitola dos outros seus camaradas.

A rapariga, que nesse momento dançava, vendo Gonçalo já
em pé, dirigiu-se para ele e o tirou para o meio da sala.

— Sou daí! bradou ele com voz de atordoar.

Ganhou de um salto o meio da sala, e fazendo retinir suas grandes esporas depois
de ter feito em roda de toda a sala um frenético sapateado, passando
revista a todos aqueles rostos, estacou em frente da Maroca, e deitando braços
e cabeça para trás exclamou: — Ah! Maroca, meu amorzinho,
como estás encantadora! agora é contigo, minha rola; sai do ninho,
feiticeira! A Maroca não se enfadou com o gracejo, sorriu-se e deixando-se
arrebatar no rodopio da dança vertiginosa brilhou com a faceirice e graça
do costume.

Desde então Gonçalo e Maroca estavam sempre no meio da roda; eram
o rei e a rainha da festa. As moças à porfia tiravam Gonçalo
para o meio da roda; mas o endiabrado rapaz com o maior escândalo e do
mundo o mais inconveniente – se é que pode haver escândalo
e inconveniência em um batuque –, teimava em não se dirigir
senão à mimosa e gentil Maroca, como se só ela dançasse
naquela sala. Esta por sua parte não se mostrava enfadada, antes parecia
vaidosa com aquela preferência, e cada vez mais requintava em meneios
e requebros sedutores.

Reinaldo, porém, que se encostava a um canto para ocultar o furioso ciúme
que por dentro lhe lavrava o coração, rangia os dentes e mordia
os lábios observando com olhos turvos e chamejantes todos os movimentos
de sua amante e de Gonçalo. Este, se bem dançava, melhor falava
gritando uma algaravia infernal, chasqueando e dirigindo à Maroca os
mais atrevidos gracejos, que eram como setas envenenadas que iam varar o coração
do ciumento Reinaldo.

Se antes da chegada de Gonçalo o batuque corria animado e caloroso, agora
fervia como as caldeiras de Satanás.

Gonçalo por fim de contas, à força de dirigir à
faceira menina graças e galanteios, que não eram mal acolhidos,
foi-se deixando tomar de um verdadeiro amor por ela, ou pelo menos de um vivo
desejo de a possuir.

Ele, que a princípio só a procurava para provocar um ensejo de
travar-se de razões com Reinaldo e mostrar em público e raso sua
superioridade moendo-lhe os ossos ou quebrando-lhe a cara, agora fascinado pelos
encantos daquela beleza perigosa, seria capaz de sangrá-lo ali sem compaixão,
se se atrevesse a disputar-lha.

E também aquela bandoleira, seduzida a seu turno pelos requebros do
guapo mocetão, que era o alvo dos desejos de todas aquelas filhas do
bordel, nem olhava para Reinaldo, que com o inferno no coração
deixara a dança, e em pé junto a uma candeia fincada na parede
apertava com tremor convulsivo o cabo da larga faca, com que vagarosamente
picava fumo para o cigarro, relampeando de quando em quando olhares de fogo
ora sobre um, ora sobre outra, e ardendo por ver o fim daquela para ele odiosa
orgia.

CAPÍTULO III – DITO E FEITO

Enfim os dançantes, já esbaforidos e estafados dos pulos e
sapateados daquela dança doidejante, assentaram de tomar algum descanso.
Calaram-se as violas e os adufos, e os convivas se dispersaram pelas diversas
acomodações da casa a tomar licores e refrescos a fim de se
habilitarem para nova refrega.

Reinaldo respirou. Enrolou o seu cigarro, acendeu-o, e dirigindo-se para
a Maroca, que pela força do costume viera se assentar ao pé
dele, disse-lhe com ar sombrio: — Maroca, vamo-nos embora; este folguedo
não está com jeito de acabar bem; já é tarde,
e antes que aconteça alguma desgraça, vamos para casa.

— Pois já? tão cedo!… seria melhor então que
não tivéssemos vindo cá, respondeu a menina mostrando-se
contrariada e sem procurar disfarçar o seu descontentamento. Mestre
Mateus há de se enfadar se sairmos já; ainda é muito
cedo; logo mais iremos.

— Hum!… rugiu Reinaldo do fundo do peito. Estou hoje te desconhecendo,
minha amiga; quem virou-te assim essa cabecinha?… seria esse…

— Ora deixe-se de tolices, volve ela interrompendo-o com azedume; isso
não tem propósito nenhum. Se você não gosta destes
divertimentos, devia deixar-se ficar em casa, que eu por mim bem podia vir
sozinha.

Levanta-se dando um muxoxo, volta-lhe as costas e vai-se retirando com certo
ar de desdém. Estas palavras e este gesto doeram no coração
do pobre rapaz, como se um ferro agudo o tivesse atravessado. Brandiu convulsivamente
a faca, que ainda tinha na mão, e ia cravá-la… na pérfida
ou em si mesmo! vacilou, conteve-se, escondeu sua amargura no fundo da alma,
e tomando brandamente a Maroca pelo braço, chamou-a a si com carinho.

— Minha querida, lhe diz com voz meiga e suplicante, não sei
que mal te fiz eu para assim me tratares tão desabridamente, e me despedaçares
o coração com tanta crueldade. Acaso não me queres mais?…
se assim é, se és tão leviana e bandoleira, que foi bastante
uma só noite, um só momento para riscar do teu coração
o meu nome e o meu amor, eu te peço por piedade, fala, não me
encubras nada. Antes assim, do que viver iludido. Quero ouvir da tua própria
boca a sentença de minha condenação. Será este
o último favor que te peço, e te deixarei livre para ir bem
longe de teus olhos morrer de mágoa e desesperação.

No olhar e na voz do mancebo pintava-se uma dor tão sincera e tão
profunda, que Maroca, apesar de ter um coração leviano e pouco
sensível, não deixou de enternecer-se.

— Não te enfades comigo, meu Reinaldo, replicou com meiguice;
perdoa-me, se te agravei: eu sou uma estouvada, e já nem sei o que
te disse. Realmente eu estava com vontade de ficar por mais algum tempo; mas
se isso te incomoda, não ficarei mais nem um momento, e estou pronta
desde já para acompanhar-te.

— Não, meu amor, não quero estorvar-te em teus divertimentos,
diz Reinaldo já mais tranqüilizado; dança e folga, quanto
for do teu agrado. Mas por piedade, Maroca, mais reserva para com esse rapaz
, que se diz meu amigo, e que tanto te persegue com suas estouvadas galantarias:
ele parece que nos quer perder a todos três.

— Não te dê isso cuidado, disse ela; e dando um saltinho
deu um beijo e uma bofetadinha na face de Reinaldo, e leve como uma pena desapareceu
pelo interior da casa cantarolando e tocando castanhola nos dedos.

Esta cena não escapou ao matreiro Gonçalo, que estava na outra
extremidade da sala rodeado de comparsas, estendido em um banco a todo o comprimento,
tomando da assada, e vomitando chalaças e palavradas de arrepiar os
cabelos. Os ouvintes o aplaudiam vivamente e com as mais gostosas e retumbantes
gargalhadas.

— Bravo! o bicho está ferido, disse lá consigo Gonçalo
vendo o ar sombrio e misterioso de Reinaldo, que se sentara pensativo no tamborete
abandonado por Maroca, e levantando-se foi acender o cigarro na candeia que
estava junto ao seu amigo.

— Que diabo tens tu hoje, meu Reinaldinho, disse ele depois de ter
acendido o cigarro, que estás de cara tão fechada e trombudo
como uma anta? Quem te ofendeu, amigo? Fala, que quero já desagravar-te.

— Gonçalo, nem sempre a gente está para brincadeiras.
Se és deveras meu amigo, não estejas a provocarme com esses
gracejos de mau gosto; olha que há certas coisas, certos sentimentos,
com que não se pode brincar sem perigo.

— Perigo! algum dia me viste recuar diante de perigo algum, meu criançola?
diz antes que já te pesa a cabeça antes de tempo, e por isso
andas assim focinhudo e cabisbaixo.

— Gonçalo, tu estás de propósito a querer queimar-me
o sangue!… se continuas, estão rotos os laços de nossa amizade
desde este momento, e…

— E o quê?… cala-te, meu tolo; não te amofines por
tão pouca coisa. Aquela menina, por quem morres, se eu o quiser, posso
levá-la hoje mesmo na minha garupa para onde me aprouver.

— Disso não és tu capaz, Gonçalo; eu juro por
minha alma; antes que lhe ponhas a mão, cairás morto a meus
pés, ou deverás passar por cima de meu cadáver.

— Santo Deus! como está exaltado o homem! Para que fui eu pisar
no rabo do cascavel, que dormia! Perdão, meu Reinaldinho, continua
Gonçalo com ironia e em tom de conselho; perdão, eu não
te quero ofender; mas aqui entre nós, e como amigo, devo declarar-te
que não tens o direito de ser o único senhor e possuidor daquela
bonita jóia, senão no caso que ela muito de sua livre vontade
queira continuar a ser tua.

— Gonçalo, és um vil, um infame traidor! bradou Reinaldo
espumante e lívido de cólera. Nasceste para as galés
e para a forca, e não para viver entre homens, que se prezam e se respeitam.
Desprezo as tuas palavras como vindas de um ébrio; de um sandeu.

— Pelo que vejo, replica Gonçalo com um riso amarelo forcejando
por dissimular seu despeito, pelo que vejo não estás disposto
a ceder-me por modo nenhum a tua amada. Pois bem, eu a tomarei por força.

— Não a tomarás, Gonçalo; eu te juro.

— E quem me impedirá?…

— Eu! — Sai-te daí, criança; com um pontapé
te arredarei do meio do caminho.

Gonçalo pronunciou estas palavras com ar de desprezo e compaixão
e voltou as costas a Reinaldo. Este dá um pulo de tigre e agarrando
a Gonçalo pelo braço empuxa-o violentamente e brada:

— Aqui, Gonçalo, aqui! se não és um fanfarrão,
um cobarde, hás de pôr em execução as tuas ameaças,
e já! Gonçalo arranca o braço das mãos de Reinaldo,
de um salto tomando distância a três passos, já de faca
alçada, grita: — Arreda-te daí, atrevido, antes que te
ponha o bucho à mostra! — A mim, fanfarrão! vem, que eu
não arredarei um dedo; não temo as tuas bazófias.

Os dois contendores estavam em distância de quatro a cinco passos
um do outro; as facas brandidas convulsivamente relampeavam ameaçadoras
por cima de suas cabeças, rangiam-lhes os dentes, e nos olhos lhes
fuzilava um lume torvo como as chamas do inferno. Eram como dois canguçus
enciumados, que ao se encontrarem arreganham os dentes e rosnam furiosos antes
de se arrojarem um sobre o outro.

O negócio já cheirava a sangue, e aquela festa, começada
na paz e na alegria, estava prestes a ter o mais sanguinolento desfecho.

— Misericórdia! misericórdia! — que será
isto! — Virgem Santa! — bradava-se de todos os cantos.

Uma turba de homens e mulheres em gritos lançam-se afoitamente em
meio dos dois.

— Deixe, deixe esse maluco vir rasgar-me as tripas! vociferava Reinaldo
como querendo voar por cima deles e a muito custo o podiam conter.

— Chega-te, rapaz, rugia Gonçalo, chega-te para cá,
que quero aqui mesmo coser-te a facadas, e aliviar-te para sempre desse ciúme
danado que te ferve no coração.

Por alguns momentos durou esta cena sinistra, que teria tido o mais trágico
resultado, se a turba em uma gritaria imensa não se entrepusesse intrepidamente
entre as duas facas, que se agitavam fuzilando por cima daquela multidão
de cabeças, e já retiniam chocando-se uma na outra; até
que a muito custo conseguiu-se que se não travasse a luta.

O sossego restabeleceu-se finalmente; mas que sossego triste e desanimado!
que contraste entre o festival e alegre bulício e algazarra que ainda
há pouco reinavam naquela reunião e esse surdo e sinistro murmúrio
que agora rumorejava pelos ângulos da sala. Os convivas tinham perdido
toda a vontade de rir e divertir-se, e andavam em grupos pelos cantos conversando
em voz baixa debaixo da impressão de um invencível terror, fazendo
as mais temerosas reflexões sobre aquele triste incidente.

Em vão mestre Mateus com seu ar bonachão e jovial se esforçava
por desvanecer a terrível impressão que deixara nos ânimos
de todos aquela temerosa pendência; era tudo baldado. Os mais prudentes
ou medrosos foram-se pondo ao fresco, e a sala em poucos instantes ficou reduzida
a menos de metade dos comparsas.

— Vamos, minha gente! gritava mestre Mateus, que pasmaceira é
esta! aquilo foi uma ninharia, e uma travessura de rapazes; daqui a pouco
terão esquecido tudo, e estarão mais amigos do que dantes. Vamos,
rapaziada! ânimo! tomem da assada, e vamos com o folguedo acima.

Gonçalo, posto que não deixasse de sentir profundo abalo com
aquele conflito com o seu amigo, entendeu que faria um triste papel se continuasse
a ficar mudo e amuado; portanto, sopeando o mais que pôde sua emoção,
saltou logo na sala com o maior desembaraço exclamando: — Êh!
com mil diabos! tens razão, compadre; viva o prazer, leve o diabo a
tristeza, e vamos com a folia por diante. O que sucedeu foi uma bagatela sem
importância. Não é a primeira vez, nem será a última,
que se vê dois homens puxarem faca um contra outro; nós não
somos crianças; e se Reinaldo entende que eu o agravei, não
faltará ocasião nem lugar mais oportuno em que possa desagravar-se:
não é assim, Reinaldo? — Sem dúvida, rosnou Reinaldo
com voz carregada.

— Viva a paz! viva a alegria! exclamou mestre Mateus batendo palmas.
Falou quem pode: não há mais motivo de desgosto; toca a folgar.
Mas agora, camaradas, caluda sobre este negócio! Não quero por
modo nenhum que se saiba aí por essas ruas, que em minha casa, onde
nunca houve desordens, e sempre gozou de muito boa fama, puxaram-se facas,
e esteve-se em termos de ver correr sangue. O passado, passado; faça-se
de conta que nada houve e toca a folgar. Olá das violas, vamos com
isto!… um vai-de-roda bem esquentado! As violas ressoaram, e a dança
recomeçou, se bem que ainda um tanto fria e constrangida. Gonçalo
porém dançava, palrava e gritava por todos com a maior frescura
e desembaraço, como se nada tivesse acontecido.

Com o seu exemplo os outros também foram pouco a pouco se animando.
Quanto à Maroca, ia também gradualmente recuperando toda sua
desenvoltura natural, e alardeava de novo toda a sua graça e faceirice.

Só Reinaldo, triste e taciturno a um canto, não podia dissimular
a tremenda tempestade que lhe agitava o espírito, e devorava em silêncio
lágrimas de raiva e desesperação.

Gonçalo pela sua parte ia-se sentindo cada vez mais subjugado pelos
encantos da sedutora menina. Aquela triste pendência com um amigo, a
quem gratuitamente ofendera, longe de contê-lo em seus desmandos, não
foi mais que um novo incentivo que lhe fez mais vivamente cobiçar aquela
beleza tão ciosamente vigiada por seu amante.

Pela primeira vez em sua vida estava disposto a desenvolver toda sua força
de touro, toda sua bravura de leão, toda a sua destreza de onça,
não por um mero capricho ou ostentação de valentia, mas
para satisfazer uma paixão cega, que lhe rebentava na alma com a violência
de um vulcão.

Este amor fatal – se é que se pode chamar amor um desejo caprichoso
e brutal – junto à louca mania de querer provar a todos a força
e agilidade de seu braço, extinguiram ao menos naquela noite no coração
de Gonçalo todo o instinto de lealdade, todo o sentimento de amizade
que ainda votava a Reinaldo.

— A Maroca hoje há de ser minha, projetou consigo o diabólico
rapaz. A princípio dissera isto somente para lançar uma luva
de desafio a Reinaldo, com quem ardia por travar-se séria e publicamente;
mas agora era esse o mais ardente desejo de seu coração, para
cuja satisfação estava disposto a sacrificar tudo. Que viessem
estorvá-lo Reinaldo ou quem quer que fosse, ou toda aquela turba reunida,
que ele os dispersaria como quem sacode a poeira de suas botas.

A Maroca, ou porque era ainda muito criança, ou por ser de seu natural
leviana e bandoleira e não amar a ninguém, foi-se deixando facilmente
seduzir pela galhardia, bravura e talvez mais pela riqueza e liberalidade
de Gonçalo, que durante a dança lhe introduzira no dedo um rico
anel de brilhantes prometendo-lhe ainda em segredo maiores e mais magníficos
presentes.

O coração da Maroca era vário e leve, e portanto facilmente
esvoaçou de Reinaldo para Gonçalo. Este, seguro das boas disposições
da menina, forjou logo o mais atroz e sinistro projeto.

A noite já ia muito avançada; os galos, amiudando cada vez
mais seu canto, anunciavam que estava próximo o romper do dia.

Gonçalo, consultando o relógio, que trazia preso a uma grossa
cadeia de ouro, diz em voz alta: — Três horas em ponto, meus caros;
para quem mora a mais de légua de distância, já é
tempo de pôr-se a caminho.

E imediatamente sem mais cumprimentos, enquanto os outros se entretinham
em dançar, jogar ou conversar, abriu de manso a porta da rua, e desapareceu.

Reinaldo, que não dançava, nem bebia, nem jogava, mas acabrunhado
por uma multidão de pungentes e sombrios pensamentos se assentara a
um canto, viu com prazer a saída de Gonçalo. Seu peito respirou
mais desafogado com o desaparecimento daquele homem fatal, que se tornava
para ele um pesadelo, um espectro odioso.

Levanta-se e procura com os olhos pela sala a Maroca, a fim de também
convidá-la a retirar-se; por duas ou três vezes corre com a vista
toda a extensão da sala, e não a vê nem na roda dos que
dançavam, nem assentada em parte alguma: estremeceu, e bateu-lhe o
coração de modo estranho.

Depois pensou: — Decerto está lá pelo interior da casa,
e não tardará a aparecer. — Esperou alguns minutos aplicando
o ouvido e embebendo os olhos pelos corredores, pelas alcovas, por todos os
cantos, procurando vê-la ou ao menos ouvir-lhe a voz; mas debalde.

Esperou ainda na maior ansiedade; já não só ele, mas
muitas outras pessoas reparavam e estranhavam a demora da ausência de
Maroca.

— Maroca! Maroca! onde estás? gritavam todos uns para aqui,
outros para acolá; mas ninguém acudia de parte alguma.

— Querem ver que aquela sonsa foi sozinha para casa sem dar parte
a ninguém; dizia um.

— Quem sabe se a coitada teve algum ataque, e está caída
aí por algum canto? opinava outro.

— Ou está nalgum canto a dormir; pensava um terceiro.

— Ou eclipsou-se com alguém, acrescentava maliciosamente um
quarto.

Enfim todos se puseram em movimento dispostos a revistar e esquadrinhar
todos os recantos e dependências da casa, gritando sempre pelo nome
de Maroca.

— Maroca está aqui comigo! bradou uma voz retumbante, que partiu
do lado da rua. Jurei que havia de levá-la comigo e assim o cumpro.
Quem quiser, que venha tomá-la.

E ouviu-se o tropel de um animal, que partia a galope.

Todos ficaram como que petrificados.

Reinaldo, como se um raio o ferisse, caiu pálido e frio sobre um
banco, e ficou por alguns instantes como que aniquilado. Depois levantando-se
bruscamente e arrancando os cabelos com ambas as mãos, bate furioso
com o pé no chão.

— Oh! traição! traição infame! exclama;
meu cavalo! quero já e já meu cavalo! E com brusco movimento
abalroando a todos investe para a porta. Em vão os companheiros quiseram
detêlo e apaziguá-lo.

— Deixem-me, bradou com voz de trovão, e partiu a correr como
uma flecha para a casa.

CAPÍTULO IV A LOUCA

No outro dia já o sol andava alto, quando mestre Mateus e seus tresnoitados
companheiros da orgia da véspera abriram os olhos à luz do dia.
A primeira idéia que se lhes apresentou ao espírito ainda anuviado
pelo sono e pelos vapores das libações da noite, foi a função
da véspera, a briga terrível entre Gonçalo e Reinaldo,
a tremenda e desaforada traição de que este fora vítima.
A princípio pensaram que despertavam de um pesadelo, mas bem depressa
caíram em si, lembrando-se que desgraçadamente era tudo pura
realidade.

Mestre Mateus saltou da cama resmungando: — Um!… estes rapazes!
que doidos! meu Deus! o que terão feito! Atirou ao ombro a jaqueta,
pôs na cabeça o seu chapéu de couro, deitou na boca uma
masca de fumo, e sem mais perda de tempo, dirigiu-se o mais depressa que pôde
à casa de Reinaldo. Aí não encontrou senão uma
mulher velha, que morava com Reinaldo e lhe tratava da casa. Esta, que também
se mostrava aflitíssima, contou-lhe que pela madrugada Reinaldo sozinho
e arquejando de cansaço batera à porta, arreara o cavalo a toda
a pressa sem dizer palavra, por mais que ela lhe perguntasse o que tinha acontecido,
o que era feito de Maroca e onde ia àquelas horas; que resmungando
e praguejando sem a nada responder partira a toda a brida, sem que ela soubesse
que rumo levara.

Esta informação foi mais que suficiente para que mestre Mateus
compreendesse quantas desgraças não poderiam resultar, ou não
teriam já resultado daquela desastrada pendência, que vinha desacreditar
para todo o sempre a sua casa. Amaldiçoava a hora em que se lembrou
de fazer semelhante função, e dava aos diabos a Maroca, Gonçalo
e Reinaldo, que vieram deitar azar em sua casa, onde nunca houvera nem a mais
insignificante rusga.

Arrependeu-se mil vezes de não ter mandado amarrar aqueles dois malucos,
logo que começaram a brigar, e entregálos à justiça;
teria impedido uma desgraça, que já quase tinha como certa e
irremediável.

Contudo o bom do velho sem mais perda de tempo corre à casa de alguns
dos parceiros da véspera, amigos dos dois rapazes, dá-lhes conta
do que acaba de saber e das inquietações que tinha no espírito.

Estes também tinham acordado com a mesma preocupação,
e apenas viram mestre Mateus, perguntaram-lhe com sofreguidão se tinha
notícias de Reinaldo, de Gonçalo e da Maroca.

— Oh! se as tenho! e bem tristes. O Reinaldo é tão doido
como o outro. Ontem quando saiu da súcia, foi direto à casa,
montou a cavalo, e voou como uma flecha atrás de Gonçalo e de
Maroca. Agora vocês, que são seus amigos, o que devem fazer,
é irem já e já cada um arrear o seu animal e correrem
à fazenda de Gonçalo; não podiam ter tomado outro rumo.
Vão ver o que é feito daqueles doidos. Depressa! depressa! ah!
e queira Deus que já não seja tarde.

Mestre Mateus era respeitado e estimado dos rapazes, e seus conselhos eram
executados à risca, como se fossem ordens.

Foi dito e feito. Em menos de meia hora alguns moços, amigos dos
dois, galopavam à rédea solta caminho da casa de Gonçalo,
que morava em uma pequena fazenda de sua propriedade a légua e meia
da vila.

Teriam andado cerca de uma légua, quando divisaram a umas quinze
braças ao lado do caminho à beira de um pequeno capão
uma mulher assentada no chão e encostada ao tronco de uma árvore.
Correram a reconhecê-la.

Estava ela com a cabeça como que pregada ao tronco da árvore,
com ar de idiota, com os olhos muito abertos, parados e obstinadamente fitos
em um cadáver todo mutilado e ensangüentado, que estava estendido
diante dela. O capim em roda estava todo amassado e ensopado em sangue; o
sol abrasador ardia a pino; uma nuvem de insetos, moscas e maribondos esvoaçavam
sobre aquele lugar, e mais longe já pairavam alguns urubus atraídos
pelo cheiro da sangueira, que dali se exalava como se fosse um matadouro.

Os rapazes deram um grito de horror, e sentiram os cabelos se entesarem
como espetos na cabeça, quando na mulher reconheceram a Maroca e no
cadáver o desditoso Reinaldo.

A Maroca nem deu fé da chegada dos cavaleiros, e conservou-se imóvel
como uma estátua, sempre com os olhos desvairados fincados sobre aquele
corpo ensangüentado.

Chamaram-na pelo nome, sacudiram-na com força para ver se a arrancavam
daquele torpor, e se dizia alguma coisa da cena horrorosa que ali se passara.
Mas ela apenas olhava para eles como que pasmada, resmungava uns sons ininteligíveis,
e tornava a cravar olhos estatelados sobre o cadáver.

E aquela feiticeira menina, ainda nessa madrugada tão linda, tão
viva e travessa, agora descabelada, salpicada de sangue, com as feições
horrivelmente transtornadas, parecia um fantasma, e causava horror àqueles
fulminado a alma da infeliz rapariga, que caiu em um estado de idiotismo,
do qual nada pôde depois arrancá-la.

A pobrezinha tinha também os vestidos e as mãos salpicadas
de sangue, e parecia ferida, posto que ligeiramente, em uma ou outra parte
do corpo. Sem dúvida naquele trance horrível se lançara
entre os combatentes para os separar e se achara envolvida naquela temerosa
luta.

Os cavaleiros, à vista do que observaram, concluíram que o
combate tinha sido renhido, furioso e desesperado. O corpo de Reinaldo estava
todo contuso, cutilado e esfaqueado; na boca e nos dentes, onde espumava um
sangue negro, viam-se farrapos de pano, o que indicava que no último
trance o infeliz combatera até com os dentes. Tudo enfim revelava que
ali se passara uma cena pavorosa, da qual os vestígios mudos, que existiam,
falavam mais alto do que toda e qualquer narração.

Notaram depois os cavaleiros que pelo campo seguia uma batida, a qual ia
salpicada de um rastilho de sangue e que ia perder-se na estrada; daí
depreenderam que Gonçalo, gravemente ferido na luta, por aí
se retirara, naturalmente para sua casa. Dois dos companheiros seguiram aquele
trilho ensangüentado, a ver se encontravam Gonçalo vivo ou morto;
seguiram pela estrada até a fazenda do mesmo, mas não o encontraram
lá. A gente da casa não soube dizer o que era feito dele, posto
que percorressem toda aquela vizinhança em inúteis pesquisas
e indagações. Os outros se encarregaram de procurar meios de
transportar para a vila o cadáver de Reinaldo, e o corpo também
quase sem alma da infeliz Maroca.

Quanto a Gonçalo, nunca mais se pôde saber o destino que tomara,
nem se era vivo ou morto. A justiça e mesmo os particulares fizeram
por muito tempo grandes esforços para descobrir-lhe a pista. Mas tudo
foi baldado.

Seus amigos também fizeram por largo tempo ativas e perseverantes
pesquisas por toda a capitania sem poder obter dele nem a mais leve notícia.
Desanimados enfim de encontrá-lo descansaram na suposição,
aliás muito plausível, de que Gonçalo, gravemente ferido
na luta em que sacrificara o seu amigo, tinha morrido em alguma gruta oculta
e profunda, ou pelos matos em algum recanto, onde era impossível descobri-lo,
e que suas carnes tinham sido devoradas pelos corvos, e seus ossos arrebatados
pelas enxurradas.

Esse deplorável acontecimento, que causou geral assombro e consternação,
foi por largo tempo em Goiás objeto de conversação em
todos os círculos.

— Eis aí o que faz uma mulher má! dizia a tia Josefa,
velha companheira de mestre Mateus, anos depois daquele acontecimento, em
um dia em que mestre Mateus acabava de contar com todas as particularidades
aquele trágico sucesso a algumas pessoas que se achavam em sua casa.
Dois rapazes tão novos, tão bons, tão bemapessoados,
dois guapos mocetões, que mereciam cada um uma noiva de truz, foram
para o mato fora de horas esfaquearam-se como furiosos e matarem-se por amor
de uma perdida, que…

— Arre lá com isso, minha velha! atalhou mestre Mateus; não
te faz pena ao menos o triste estado em que até hoje se acha a coitadinha.
Maroca era uma simples criança, que não sabia o que fazia. Os
tais senhores mocetões é que eram dois loucos furiosos. Deus
os perdoe e se amerceie de suas almas. Ela era uma pobre menina, que ainda
não podia saber o que os homens são capazes de fazer por amor
de uma mulher bonita. Olha, Josefa, a coitadinha ainda está muda e
pateta assim mesmo como no dia em que aconteceu a desgraça.

— Foi castigo de Deus! resmungou a velha.

POUSO SEGUNDO OS CHAVANTES

CAPÍTULO I – O COMBATE

Nas margens do grande rio Tocantins, que banha o norte da província
de Goiás, e reunido ao Araguaia vai como que dar a mão ao rei
dos rios para entrar de par com ele no Atlântico, habita uma nação
indígena das mais ferozes e indomáveis que se conhecem, ainda
que também uma das mais valentes e industriosas. É a nação
dos Chavantes, que dominava uma larga zona em ambas as margens daquele rio,
cuja navegação tornava extremamente difícil e perigosa
para os Europeus. Sobretudo na época a que nos reportamos, o seu nome
era o terror dos habitantes de Goiás, ninguém ousava penetrar
naqueles sertões desconhecidos, infestados por essa e outras tribos
selvagens, que muitas vezes saíam do fundo de suas brenhas a exercerem
horríveis matanças, estragos e depredações nos
estabelecimentos e fazendas dos brancos. Algumas dessas expedições,
que se organizavam com o nome de bandeiras para rechaçá-los
ou exterminá-los, voltavam desanimadas e destroçadas sem nada
ter conseguido. Menos dóceis que os Caiapós e os Coroados, que
já se iam submetendo ao aldeamento e catequese, os Chavantes mal conheciam
os brancos, com quem não queriam relação alguma, e odiavam
do fundo da alma.

Quatro ou cinco anos depois dos tristes acontecimentos que deixei narrados
a noite passada, uma numerosa tribo daquela nação achava-se
estabelecida no barranco esquerdo do rio algumas dezenas de léguas
abaixo de S. José do Tocantins, pouco mais ou menos nas regiões
onde é hoje o município da Palma.

Seu arranchamento era uma longa fila de tabas ou cabanas cobertas de palmas
de coqueiro, disseminadas em pitoresca desordem ao longo da margem do rio
em uma extensão de cerca de meia légua, como um bando de aves
aquáticas pousadas à beira da torrente.

Era uma bela e calmosa sesta de Setembro. O índio naturalmente preguiçoso,
porque para prover as necessidades da vida simples que leva em meio dos desertos
não precisa de regar a terra com seu suor desde o nascer até
o pôr-do-sol, nessas horas de calma íntima sobretudo entrega-se
à sua natural indolência, e dorme ou se diverte.

Uma turba de meninos de ambos os sexos entre alegres algazarras patinhavam
na água à beira do rio adestrando-se na arte de nadar, tão
necessária ao selvagem. As mulheres assentadas em diversos grupos à
sombra da canjerana ou da copaíba secular, umas amamentavam suas crianças,
outras teciam por passatempo esteiras, redes ou cabazes de cipós ou
de palha de coqueiro; outras, deitadas em suas redes delicadamente tecidas
de fios de tucum e enfeitadas de penas, embalavam-se indolentemente olhando
as nuvens a passearem pelo céu, ou as águas do rio a correrem
silenciosas. Os poucos homens que nessa ocasião ali se achavam, pois
estavam pela maior parte dispersos pelas matas ao longo da margem do rio ocupados
em caçadas e pescarias, uns assavam peixe, ou muqueavam um lagarto,
um tatu ou uma paca em fogueiras acendidas fora das tabas; outros consertavam
suas armas, ou talhavam arcos e flechas, e os aparelhavam de vistosas penas;
um outro, deitado de costas no chão, e esticando o arco com os pés,
se divertia em mandar às nuvens uma flecha e vê-la voltar e cravar-se
no mesmo lugar donde partira; outros enfim, nada absolutamente querendo fazer,
dormiam a sesta, ou deixavam passar o tempo.

De repente ouviu-se de uma das extremidades do arraial dos índios
uma gritaria imensa, que se foi propagando e ecoando por toda a aldeia. Os
meninos saltaram ligeiramente fora da água e correram a se amoutar
nas tabas, as mulheres largaram suas ocupações, e olhavam espantadas
para todos os lados; os homens levantaram-se rapidamente com as armas na mão
e acudiram ao ponto onde começara o alarma. A causa daquele grande
alarido e celeuma era um homem de aspecto estranho que sozinho em uma canoa
vinha vogando rio abaixo.

A figura e os traços já esfarrapados desse homem causaram
grande estranheza e espanto aos selvagens.

Trajava um grande gibão de lã grossa apertado com um cinturão
de couro de lontra, ao qual se prendia uma comprida faca com cabo e bainha
guarnecida de prata, calças de algodão, e perneiras de couro
de mateiro; trazia a barba mui comprida e sobre os cabelos pretos e anelados
um pequeno chapéu de sola. Posto que sua tez naturalmente morena estivesse
tisnada ainda pelo sol, e viesse armado de arco e flechas, os selvagens apenas
o avistaram, exclamaram: — Imboaba! Imboaba! — e esta palavra
odiosa, passando de boca em boca em uma imensa vozeria, repercutiu como um
eco pelas ribanceiras do Tocantins.

O atrevido canoeiro ouviu toda aquela algazarra e logo compreendeu o iminente
perigo que o ameaçava; porém já lhe não era possível
recuar e continuou a vogar procurando avizinhar-se o mais possível
do barranco oposto às habitações dos índios, esperando
assim poder escapar à sua sanha e passar incólume. Mas a largura
do rio não era suficiente para pô-lo a salvo de suas flechadas,
e apenas achou-se em frente da aldeia, uma nuvem de flechas voou assobiando
sobre ele; mas o destro aventureiro, deitando-se imediatamente no fundo da
canoa e amparando-se com o seu largo remo, nem de leve foi tocado, antes achou-se
provido de grande munição de flechas, de que tinha precisão,
e que lhe iam ser de grande utilidade. Reenviou logo uma, e varou um cão,
que ladrava na praia; uma segunda cravou-se no braço de um indígena;
uma terceira levou a orelha de outro. E o afoito estrangeiro, entrincheirado
no fundo da canoa e fazendo escudo da larga pá de remo, ia deslizando
são e salvo pela torrente abaixo e fazendo estragos na linha dos inimigos
com as armas que estes mesmos lhe forneciam. Felizmente para ele não
tinham os selvagens ali à mão naquele momento uma canoa sequer.
Mais algumas flechadas felizes do arco do intrépido canoeiro caíram
sobre os índios e acabaram de os pôr em furor. Vendo que com
as flechas não era possível ofender o imboaba, lançaram-se
alguns ao rio armados de tacapes e dispostos a irem a nado atracar a canoa.
Fácil seria ao canoeiro escapar à força de remo, se a
multidão de flechas, que continuava a chover sobre a canoa, não
o impedisse de remar, dando-lhe apenas tempo de resguardar-se de seus tiros
e descochar de quando em quando uma ou outra flecha.

Já dois robustos nadadores com o tacape nos dentes estavam a poucas
braças da canoa; um deles enfim a alcança e lança mão
à borda. O canoeiro porém a corta imediatamente de um só
golpe com sua grande faca de mato.

O índio dando um grito horrível de dor desaparece deixando
um sulco ensangüentado à flor da água, e surge instantes
depois mais abaixo, rolando à mercê da corrente, enquanto os
peixes saltitando disputavam entre si a mão que se tinham lançado
ao rio, também não ousaram aproximar-se, temendo o mortífero
gume daquela formidável faca. O forasteiro por um momento julgou-se
salvo e fora de perigo. Mas eis que de súbito dá com os olhos
em duas canoas entulhadas de índios, que surgiam da volta do rio singrando
águas acima a todo remar.

Era uma turma de indígenas, que estando a pescar pelas proximidades
tinham ouvido o alarido que havia nas tabas, e julgando ser algum perigo,
acudiam em seu socorro. O canoeiro viu que a sua situação era
desesperada e sua morte inevitável, e que seu único recurso
era morrer como homem combatendo até o último alento.

À força de audácia e de esforços desesperados
conseguiu encostar a canoa ao barranco oposto; tomou à pressa todas
as suas armas, saltou em terra e embrenhou-se pelo mato, não para escapar
aos selvagens, pois bem via que seria uma tentativa inútil, mas para
escolher um lugar onde pudesse defender-se por mais tempo e vender mais cara
a sua vida. Os índios em número sempre crescente saltavam na
água e atravessavam o rio; os das canoas também se aproximavam
rapidamente. O forasteiro bem compreendeu que qualquer resistência seria
inútil, mas não era homem a deixar-se degolar como uma ovelha,
e preparou-se para combater até o último trance. Depois de ter-se
entranhado cerca de uns duzentos passos por um mato espesso e emaranhado,
abrindo caminho com a faca por entre taquaras e cipós, escolheu posição
para fazer frente aos inimigos junto a um corpulento tronco de peroba, que
lhe oferecia formidável baluarte. Por detrás desse tronco estendia-se
um espesso e impenetrável tabocal, que lhe protegia a retaguarda.

Ali encostou todo o seu arsenal de armas, que consistiam em um arco com
algumas flechas, uma grande faca, uma foice pequena, uma pistola de dois canos
e uma espingarda carregada com os últimos cartuchos que lhe restavam,
e que de propósito reservava para ocasiões difíceis.
Ali resolveu-se a resistir até às últimas aos seus selvagens
agressores.

Estes, seguindo a batida que o estrangeiro ia fazendo com sua pequena foice,
em breve chegaram a descobri-lo, e logo travou-se entre eles o combate o mais
temeroso e desigual que se pode conceber. As flechas dos índios iam-se
cravar no tronco, por trás do qual o imboaba se abrigava, ou entranhavam-se
pelo tabocal, onde se perdiam silvando. Avançando um a um pela estreita
picada praticada em um mato cerrado e atravancado de taquaras e cipós,
os selvagens iam caindo também um a um aos tiros certeiros do aventureiro,
que não perdia uma só flecha, nem um só tiro; aquele
em quem fazia a mira caía infalivelmente, ou morto ou gravemente ferido.
Os selvagens, cujo número de instante a instante se aumentava, atiravam-se
furiosos para o tronco por trás do qual se defendia aquele homem terrível
com a coragem do desespero; porém na confusão com que se precipitavam,
caíam uns sobre os outros embaraçados na multidão de
cipós e matos emaranhados que obstruíam aquele lugar.

Mais de um caiu aos pés do intrépido imboaba a um bem atirado
golpe de foice ou recuou rugindo de dor com a mão decepada ou com o
crânio escorchado. Parecia que o estrangeiro ia morrer oprimido debaixo
de tantos cadáveres, que ele mesmo amontoava em torno de si.

Nada mais terrível do que a onça, quando, sendo mal atirada,
se precipita abaixo do tronco em que é acuada pelos cães; assenta-se
sobre os quadris rosnando e apresentando as agudas e monstruosas presas, e
a cada bote que dá com as formidáveis patas atabafa e esmaga
um cão, e em poucos instantes se vê rodeada de um lastro de cadáveres.

Pois assim estava aquele sanhudo aventureiro ceifando e derribando a granel
os imprudentes selvagens que ousavam avizinhar-se-lhe. Estes, já transidos
de terror supersticioso, pensando que não combatiam contra um homem,
mas contra algum espírito ou ente sobrenatural, sentiam falecer-lhes
a coragem e começaram a recuar espavoridos diante de tão descomunal
denodo e valentia.

Um deles porém, que parecia comandar aos outros, com um grito fez
recuar todos aqueles combatentes estouvados e imprudentes, e seguido somente
de um companheiro avançou resolutamente para o tronco.

O estrangeiro já tinha descarregado todas as suas armas de fogo e
despedido todas as suas flechas. Este último combate portanto foi dado
corpo a corpo sobre cadáveres e em um lamaçal de sangue. Ainda
que extremamente fatigado e todo crivado de golpes, o forasteiro ainda deu
que fazer a seus adversários. Um golpe de tacape descarregado sobre
a nuca o fez titubear; outro imediatamente foi desfechado, e Gonçalo,
pois era ele, caiu sobre um lago de sangue por ele mesmo derramado.

CAPÍTULO II – A TABA DO CACIQUE

Uma prolongada e imensa grita aplaudiu aquela vitória a tanto custo
alcançada por uma multidão sobre um só homem. Os selvagens
em seu furor de vingança já iam arrojar-se sobre o cadáver,
esquartejá-lo e devorá-lo ali mesmo. Mas o jovem guerreiro que
descarregara o último golpe sobre Gonçalo, e que parecia ser
o chefe ou cacique daquela horda, opôs-se-lhes energicamente bradando
em voz irada: — Ai daquele que ousar tocar naquele corpo!… O cadáver
de um tão feroz e valente inimigo é um troféu, que deve
ser apresentado ao nosso velho e venerando chefe. Este espetáculo por
certo lhe aquecerá e regozijará o coração murchado
pelos anos. E quem vos diz que esse estrangeiro não está vivo
ainda?… Se assim é, se ainda temos de vê-lo tornar à
vida, acrescenta o jovem guerreiro em tom menos severo e quase risonho, mais
escolhida vítima, sacrifício mais excelente não poderá
ser oferecido a Tupá no dia de minha feliz união com a formosa
Guaraciaba, esse raio de luz descido do céu para iluminar-me o coração.

O chefe, que assim falava, e que tinha prostrado a golpes de tacape o sanhudo
imboaba, chamava-se Inimá.

A ele estava prometida a gentil e mimosa Guaraciaba, filha do velho e poderoso
cacique Oriçanga, e a mais encantadora dentre as filhas da floresta.

O fato de ter vibrado o golpe de morte sobre o formidável estrangeiro
era para Inimá uma proeza que ia ainda exaltar o seu merecimento e
enchê-lo de glória aos olhos do velho cacique, da donosa Guaraciaba
e da tribo inteira. Pelo menos ele assim o esperava, e já de antemão
se regozijava interiormente de seu triunfo.

— Foi Tupá, exclamava ele em transportes de alegria, foi Tupá
que aqui nos enviou este estrangeiro; e foi sua voz que me chamou para nos
libertar de um monstro, enviado por Anhangá para maquinar a nossa perdição.

Guerreiros, vamos dar graças aos céus e oferecer sacrifícios
aos manitós de nossas tabas por este sucesso de tão feliz agouro.

Inimá ajuntou as armas do aventureiro, contemplou-as com admiração
e curiosidade, e mandando conduzilas com o corpo de Gonçalo em uma
canoa, apressou-se em ir depor cheio de orgulho aqueles troféus, tão
facilmente conquistados, aos pés do poderoso Oriçanga e da formosa
Guaraciaba.

A taba do velho cacique Oriçanga, mais vasta e mais sólida
que todas as outras, com sua porta guarnecida de flechas e lanças enfeitadas
de vistosos penachos, com seu teto de palmas de baguçu tingidas de
oca e de urucu, mirava-se galhardamente na torrente do Tocantins, e elevava-se
entre as outras cabanas como a garça, rainha dos lagos, entre um bando
de pequenas aves. A noite se aproximava. Sentado à porta da taba sobre
a pele enorme de uma onça negra, Oriçanga esperava com impaciência
que lhe trouxessem vivo ou morto o audacioso estrangeiro que assim ousava
resistir a seus guerreiros, indignado de que tantos combatentes gastassem
tanto tempo e achassem tamanha dificuldade em matar ou prender um só
homem. Em pé junto dele, como tímida corça junto ao leão
deitado, a gentil Guaraciaba tinha também os olhos fitos com ansiosa
curiosidade nas canoas, que da outra margem vinham ligeiramente singrando.

Dentro em poucos minutos o corpo de Gonçalo inanimado e banhado em
sangue, conduzido em uma rede com todas as suas armas, foi posto aos pés
do velho cacique. Inimá e seus companheiros precediam o cadáver,
soltando clamores de feroz alegria. O cacique porém os recebeu com
semblante torvado, e ouviu com impaciência a narração
que lhe fez Inimá do combate e da desesperada resistência do
estrangeiro, e dos estragos que fez em sua gente. Depois abanando a cabeça
com ar descontente e gesto merencório exclamou: — Ah! Inimá!
Inimá! já não pareces o filho do valente e invencível
Iaboré! Quem diria que não ousaste ir sozinho arrostar a sanha
do estrangeiro, e que deixaste morrer teus companheiros como uma vara de caitetus
às garras da onça esfaimada!… Mancebos fracos e degenerados
de hoje, sois incapazes de encurvar o arco de vossos antepassados. Em outros
tempos, quando a idade não tinha ainda branqueado estes cabelos nem
quebrado estes pulsos, eu só ou qualquer dos meus valentes teria esmagado
esse mancebo com a mesma facilidade com que espedaço este cachimbo.
— E esmagou entre os dedos o canudo pelo qual aspirava a fumaça
da pituma.

A este gesto, a estas duras palavras bagas de suor frio escorregaram pela
testa do jovem guerreiro, que batendo os dentes como um queixada enfurecido,
com voz convulsa e abafada respondeu: — Oriçanga! Oriçanga!
não profiras tais palavras!… a cólera te cega, velho cacique,
e torna-te injusto. Não penses que esse estrangeiro que acabamos de
garrotear era um inimigo vulgar. Não; era um enviado de Anhangá,
e estou certo que com ele combatiam contra nós os manitós das
trevas ocultos entre os ramos da floresta. Se lá te acharas, se presenciasses
esse estranho combate e visses por que modo sobrenatural o maldito imboaba
se furtava a nossos golpes, por certo nos não julgarias com tão
injusto rigor. Mas seja como queres: ao que me parece esse temerário
estrangeiro não está morto ainda e é bem possível
que ainda volte à vida; de propósito sopeei a força de
meu pulso ao vibrar-lhe o último golpe. Procurem chamá-lo à
vida, curem-se suas feridas, e quando de todo tiver recobrado suas forças,
que venha medir suas armas comigo. Se aos primeiros botes eu não calcar-lhe
o peito debaixo de meu joelho, e não escachar-lhe o crânio com
um golpe deste tacape, possam os meus olhos nunca mais se encontrar com os
da formosa e incomparável Guaraciaba.

— Sejas como dizes, replicou Oriçanga; seja o estrangeiro recolhido
em um dos aposentos de minha taba; os pajés pensem suas feridas, e
ministrem-lhe todos os cuidados que reclama seu estado, e vejam se lhe restituem
a vida. Se ele recuperar os sentidos e viver, Inimá, será um
sacrifício de excelentes auspícios para o dia em que receberes
por esposa em tua taba a gentil Guaraciaba.

Ditas estas palavras, como descia a noite, o velho cacique levantou-se e
a passos lentos recolheu-se para o interior da cabana.

O espetáculo do corpo de Gonçalo todo ensangüentado e
crivado de golpes não fez mais impressão sobre o espírito
daqueles ferozes selvagens, do que o de uma fera que em uma partida de caça
acabassem de matar e arrastar para as tabas.

Mas não assim para Guaraciaba, que ao ver aquele belo e garboso mancebo,
em cujo rosto inanimado ressumbrava a altivez e galhardia, todo pisado e banhado
em sangue, sentiu agitar-lhe o seio um sentimento insólito de interesse
e compaixão.

Gonçalo, recolhido em um dos compartimentos da taba do cacique, foi
ali deitado sobre um leito de macias peles e confiado aos cuidados de Andiara,
o mais venerável e mais sábio dos pajés, e que primava
na arte de curar golpes e toda a qualidade de enfermidades. Guaraciaba prestou-se
graciosamente a auxiliá-lo, e quis ser ela mesma com encantadora solicitude
a enfermeira do prisioneiro ferido. Andiara examinou com atenção
o corpo de Gonçalo, e reconhecendo que a vida ainda não o tinha
de todo abandonado, administrou-lhe os primeiros cuidados e concebeu esperanças
de salvá-lo.

Inimá, sombrio e cabisbaixo, retirou-se no fundo de sua taba, ruminando
na mente as cruéis palavras de Oriçanga e entregue aos mais
sinistros pressentimentos.

Enquanto Gonçalo sem sentidos jaz entre a vida e a morte, entregue
aos cuidados do pajé e da mimosa Guaraciaba, vejamos o que fizera ele
depois da horrível e encarniçada luta em que matara seu amigo,
e por que série de acontecimentos viera ele cair nas mãos dos
ferozes Chavantes.

Gonçalo, crivado de graves e profundos golpes e perdendo muito sangue
depois daquele furioso e desesperado combate, desatinado e torturado pelas
dores do corpo e pelas tormentas da alma, dirigiu-se o mais depressa que pôde
para sua casa. Aí tratou de estancar o sangue das feridas e pensá-las
à pressa e do melhor modo que pôde; e como ali mais do que em
outra qualquer parte estaria em perigo a sua segurança, arrecadou todo
o dinheiro e objetos de valor que pudesse levar consigo, e sem nada dizer
a seus domésticos, abandonando a casa, escravos e haveres de toda espécie,
montou de novo a cavalo, e tomando por trilhos escusos e desconhecidos com
grande dificuldade pôde chegar exausto de força e quase desfalecendo
à casa de um velho caboclo, que lhe era muito afeiçoado e que
habitava um miserável ranchinho escondido entre matos em um sítio
retraído e ignorado. Aí esteve por muitos dias oculto curando-se
de suas feridas e recuperando suas forças. Por felicidade o caboclo
era grande curandeiro, e graças aos remédios que aplicou, e
que consistiam em ervas e raízes silvestres, cujas virtudes conhecia,
ao zelo e dedicação com que tratava o seu jovem hóspede,
e à admirável robustez da organização de Gonçalo,
este viu suas feridas irem-se prontamente cicatrizando, e seu vigor e saúde
de dia a dia restabelecer-se.

Entretanto em seu obscuro esconderijo Gonçalo não podia estar
muito tranqüilo. A justiça de Goiás ativava diligências
sobre diligências para descobri-lo. As milícias e esbirros passaram
algumas vezes por perto do pobre rancho do caboclo sem a mais leve suspeita
de que ali se achava aquele que com tanto afã procuravam por toda a
parte, e muitas vezes Gonçalo em seu leito de dores tinha de escutar
as ameaças, pragas e maldições com que aqueles homens
o acabrunhavam. O matreiro caboclo os acompanhava na ladainha das imprecações,
dando a todos os diabos o nome de Gonçalo, a quem mimoseava com os
mais horripilantes epítetos, chamando-o de Satanás, tigre, canguçu,
etc.

Outras vezes dando falsas informações e indícios por
ele mesmo excogitados iludia e desorientava completamente as diligências.

Por sua parte também as inumeráveis vítimas das valentias
de Gonçalo, que lhe guardavam secreto rancor, e os amigos de Reinaldo,
que os tinha muitos e dedicados, desejosos de vingá-lo, procuravam
Gonçalo por toda a parte e faziam altas diligências para descobri-lo,
dispostos a fazer pronta justiça por suas próprias mãos.

A vida de Gonçalo andava pois pendente de um fio.

Ele portanto, que avisado pelas próprias patrulhas que o procuravam,
não ignorava estas circunstâncias, logo que se sentiu com algumas
forças e em estado de poder montar a cavalo, depois de ter agradecido
e remunerado generosamente os serviços do bom caboclo, desapareceu,
e dirigindo-se para os sertões do norte, embrenhou-se pelas matas que
demoram entre a Serra Geral e o rio Tocantins.

Sozinho naqueles ermos sem recurso, vivendo de frutos silvestres, de mel
e de caça mal assada e sem adubo algum, pedindo raras vezes furtivamente
agasalho em alguma pobre choupana, sofrendo trabalhos e privações,
a que só sua robusta compleição podia resistir, foi-se
entranhando de mais em mais pelos sertões, procurando fugir para bem
longe de uma terra que se lhe tornara odiosa, e cuja lembrança lhe
oprimia o coração como um pesadelo. Com as mãos manchadas
no sangue de um amigo, a quem perfidamente assassinara, com a alma atassalhada
de remorsos e em um sombrio desespero, vagava a esmo pelos desertos esperando
morrer às garras de alguma fera ou entre as mãos dos gentios,
se não sucumbisse à mortal tristeza que por dentro o corroía.

Assim vagou por muito tempo até que chegou às margens do Tocantins,
onde sendo bem acolhido entre uma tribo de índios Coroados, foram-se
com o tempo acalmando as angústias que o flagelavam, viveu largo tempo
entre eles, adotou os seus costumes, aprendeu a sua língua, e já
por sua inteligência, já por sua grande força e destreza
no manejo de armas de qualquer espécie, gozou de grande respeito e
prestígio entre eles.

Decidido a romper completamente com a sociedade dos homens civilizados,
Gonçalo pôs-se ao serviço daquela nação.
Por mais de uma vez foi-lhe dado o comando de expedições destinadas
a debelar tribos inimigas, ou a fazer frente às bandeiras encarregadas
de submeter ou exterminar os índios, e sempre voltava vitorioso e carregado
de despojos.

Mas a inveja e a rivalidade de alguns dos principais da tribo, que viam
com maus olhos o ascendente que esse estrangeiro ia tomando sobre o chefe
e sobre a nação inteira, foram tornando por fim difícil
e espinhosa a situação de Gonçalo. De caráter
assomado e altivo, ele teve mais de uma vez de dar a alguns dos índios
as terríveis lições que costumava dar outrora em Goiás
a seus compatriotas. Demais, os Coroados começavam a entreter relações
de amizade e de comércio com os goianos. Algumas hordas destes selvagens
já começavam a ir a Goiás vender esteiras, peles, guaraná
e outros objetos e comprar armas, ferramentas, fazenda e quinquilharias. Estas
comunicações com seus patrícios não convinham
por maneira nenhuma a Gonçalo, que com razão receava que por
um acaso ou por uma traição de seus rivais da tribo fosse conhecida
em Goiás a sua existência entre aqueles indígenas. Portanto
resolveu-se a abandonar para sempre os Coroados, e ir procurar refúgio
em mais desertos e longínquos países. Ele bem sabia que ia arrostar
perigos e azares ainda maiores, e que daí em diante só encontraria
feras e gentios indomáveis; mas antes quereria morrer entre as garras
de um tigre ou trespassado pelas flechas dos selvagens, do que voltar a Goiás
ainda mesmo de seu moto próprio, quanto mais preso e entregue à
justiça.

Em uma noite pois, metido em uma canoa, em que embarcou suas armas e as
provisões que pôde, deixou furtivamente o arraial dos Coroados,
e abandonou seu destino à mercê da torrente do Tocantins. Assim
foi descendo através de mil dificuldades e perigos, que superava à
força de audácia, destreza e astúcia, em luta já
com as cachoeiras do rio, já com as hordas selvagens de ambas as margens,
já com a fome e privações de toda a sorte, até
que chegou ao lugar onde, depois de obstinada resistência, o vimos cair
como morto em poder dos Chavantes.

CAPÍTULO III – A ENFERMEIRA

Era alta noite ; o silêncio e o sono reinavam na taba do velho cacique,
o qual, depois de ter narrado aos amigos reunidos em torno do fogo algumas
das proezas de sua mocidade, adormecera suavemente entre a fumaça de
seu cachimbo e os vapores de um vaso de cauim sobre a sua enorme pele de onça.
Os fogos da taba se extinguiram; no meio daquele profundo silêncio ouvia-se
apenas só o resfolgar das pessoas adormecidas nos diversos aposentos
da vasta cabana.

Somente no quarto em que fora recolhido o infeliz Gonçalo alguém
velava. Era Guaraciaba, que à luz de um fogo que continuamente alimentava,
observava com ansiosa curiosidade e interesse o rosto do mancebo moribundo.

De vez em quando brandindo um tição se aproximava subtilmente
do leito do ferido a ver se em seu rosto se manifestavam já alguns
sinais de vida, avizinhava cautelosamente o ouvido como que procurando escutar-lhe
a respiração e o palpitar do coração. Curiosa
e inquieta não podia arredar sua atenção daquele leito,
em que jazia o mísero prisioneiro, e o sono se recusava a cerrar-lhe
as pálpebras mimosas. A pouca distância de Gonçalo, Andiara,
o pajé encarregado de sua cura, deitado em uma esteira de juncos, ressonava
profundamente.

Enfim lá pela madrugada Gonçalo fez um ligeiro movimento,
e um fraco gemido quase imperceptível escapou-lhe do peito. Guaraciaba
estremeceu e o coração pulsou-lhe com violência.

— Está vivo! murmurou com alegre sobressalto a filha da floresta,
e escutou ainda; mas não ouviu mais som, nem notou movimento algum.
Aproximou-se de novo ao leito, e cuidou notar um leve arquejar do peito do
prisioneiro; mas este, pálido e imóvel, não apresenta
ainda no semblante sinal algum de vida. Guaraciaba enfim afoita-se a pôr-lhe
de manso a mão sobre o coração. Gonçalo com o
frescor da madrugada e graças aos bálsamos eficazes que o experiente
pajé lhe vertera nas feridas, ia pouco e pouco recuperando os sentidos,
e acordava lentamente de seu longo desfalecimento. As idéias se despertavam
em sua alma como em um sonho nebuloso e vago, e duvidava se era ainda em corpo
e alma um habitante deste mundo, ou se já era um espírito errante
pelos limbos da eternidade. No meio porém daquele penível delírio
de suas confusas idéias ele sentiu a mão mimosa de Guaraciaba
pousar-lhe docemente sobre o coração; mas em vão tentou
abrir os olhos; suas pálpebras amortecidas e inertes não obedeceram
à sua vontade; quis falar, mas não lhe saiu do peito mais que
um ralido imperceptível. Este aflitivo pesadelo já há
alguns minutos o atormentava, quando Gonçalo ouviu confusamente uma
voz doce e infantil murmurando em língua indígena estas palavras
a espaços interrompidas: — Pobre mancebo! meus irmãos
foram bem cruéis em maltratá-lo assim! É bem triste ver
um guerreiro assim na flor da vida, tão belo e tão valente,
prostrado e morto a golpes de tacape, como se fora um jaguar! E por que havia
ele de ser tão louco e temerário! Se não resistisse,
acharia talvez entre nós agasalho amigo e franco. Como é gentil,
e diferente dos meus companheiros da floresta! seus cabelos negros e luzentes
como as penas do anu enroscam-se como serpentes em redor do pescoço,
seu porte é como o dos heróis; em sua larga frente ressumbra
como que alguma coisa de superior e de celeste. Entretanto, ai de mim! esse
belo estrangeiro é a vítima destinada a ser sacrificada a Tupá
no dia em que eu for entregue como esposa entre as mãos de Inimá
para tornar os manitós propícios à nossa união!
Se assim é, ó meu pai, ó Inimá, possa nunca mais
raiar esse dia de tão nefasto e abominável sacrifício!
Ao som deste suave monólogo o espírito de Gonçalo começava
a desnevoar-se pouco a pouco como aos acordes de uma música celestial.
Recorda-se então confusamente do medonho combate da véspera,
e pasma de se achar ainda no número dos vivos. Entretanto essa voz
suave, que com tanta ternura o lastima, anuncia-lhe também que ele
é prisioneiro, e que sua vida não é poupada senão
para que seja solenemente sacrificada em um dia de festins nupciais. Mas as
palavras desse ser desconhecido repassadas de piedosa doçura lhe ressoavam
aos ouvidos como um hino de esperança, e posto que nada pudesse ver,
seu coração como que adivinhava a presença de um anjo
salvador, que velava junto ao seu leito. Gonçalo faz um esforço
e consegue fazer um movimento e exala um fraco gemido.

Guaraciaba cala-se e suspende a respiração, como a rola assustada,
que interrompe o arrulho ao ouvir passos na floresta; retira-se um pouco,
espera um momento e de novo chega-se ao leito e interroga com os olhos o rosto
do ferido. Este sente-lhe os passos, enfim pode abrir os olhos e com voz débil
e sumida pronuncia em língua indígena estas palavras: —
Virgem da floresta, ou anjo do céu, como me pareces, que tanta compaixão
mostras pelo infeliz prisioneiro, dize-me, quem és tu, onde me acho
eu, e o que se pretende fazer de mim? — A filha de Oriçanga,
maravilhada de ouvir nos lábios do estrangeiro a língua de seus
pais, lhe responde comovida: — Tu te achas na taba de Oriçanga,
meu pai e cacique dos Chavantes, em cujo poder caíste prisioneiro.

Aqui ficarás até que sarem tuas feridas e recobres a saúde
e as forças.

— Para depois ser conduzido ao sacrifício, não é
assim, filha de Oriçanga? — Oh! quem to disse! atalhou ela vivamente,
e pensou consigo aterrada: acaso me teria ele ouvido? — Oh! sim! bem
o sei; continua Gonçalo animando-se; sei que me conservam a vida para
depois festejarem com a minha morte e consagrarem com meu sangue cobardemente
derramado tuas bodas com… mas não o conseguirão… com estes
dentes ainda posso arrancar as ataduras destas feridas e fazer correr por
elas todo o meu sangue, para que o não derrameis em vossas festas abomináveis.

— Ah! não! não faças tal; exclama aflita. Acalma-te;
nenhum perigo te ameaça… mas é lástima que sejas, como
pareces, um filho dos imboabas, desses cruéis inimigos e perseguidores
da raça dos adoradores de Tupá.

— Não o creias, filha de Oriçanga: eu sou como vós
outros filho das selvas livres; sei encurvar o arco e despedir a flecha de
meus antepassados, falo, como vês, a tua língua, e só
conheço o imboaba para odiar-lhe e beberlhe o sangue.

Gonçalo por uma prudente astúcia entendeu que devia nesta
conjuntura ocultar a verdade, e nem ele mentia totalmente, pois que voluntariamente
se havia seqüestrado da sociedade para viver entre os selvagens. Ao ouvir
estas palavras Guaraciaba não pôde conter um grito de surpresa
e satisfação.

— É verdade o que acabas de dizer, estrangeiro? quê!
tu não és imboaba!… tu és dos nossos! nesse caso tranqüiliza-te;
nada tens a temer aqui, é a filha de Oriçanga quem responde
pela tua vida.

— Anjo, exclama Gonçalo com voz sumida e angustiada, para que
queres poupar-me a vida?… Ah! tu não sabes quanto ela me é
odiosa e pesada… Mas tu não és por certo uma mulher… tu
és um manitó celeste enviado por Tupá para proteger-me
e consolar-me… ah! deixa-me beijar essa mão generosa…

— Cala-te, interrompeu ela levando-lhe os dedos à boca; o pajé
não quer que fales, pois isso te fará muito mal. Ah! imprudente
que eu fui em te fazer assim falar por tanto tempo.

A primeira claridade do dia já vinha frouxamente penetrando pelas
frestas da cabana. As selvas começavam a despertar aos mil rumores
que faziam uma multidão de aves esvoaçando, piando, grasnando
ou gorjeando entre os ramos orvalhados. Nuvens de papagaios, araras e periquitos
atravessavam o espaço enchendo os ares de sua incessante algazarra;
e enquanto o tucano, vaidoso de sua vistosa plumagem, fazia ouvir seu rouco
e ingrato grasnar, o sabiá do alto da peroba secular desprendia seus
cadenciados gorjeios. Guaraciaba desperta o pajé adormecido, e anuncia-lhe,
sem disfarçar sua alegria, que o estrangeiro recobrara os sentidos,
e com a maior instância lhe pede e recomenda que se desvele em tratá-lo
com todo o zelo que exige o seu estado melindroso.

Andiara votava paternal afeição à filha do cacique,
sobre cuja infância velara desde o berço com a mais terna solicitude.
Tendo ela ainda em tenra idade perdido sua mãe, a linda e donosa Naumá,
Andiara, parente e amigo fiel e extremoso de Oriçanga, a cuja família
julgava estar ligada a glória da nação dos Chavantes,
tomou a si o cuidado de educar e desenvolver os dotes do corpo e do espírito
da gentil menina, última progênie de uma raça de heróicos
caciques, e em quem repousava toda a esperança da tribo. Ele a tinha
sempre junto a si, e a conduzia pela mão em seus giros pelas florestas;
ele entretecia com suas próprias mãos vistosos canitares de
plumas ondulantes para sombrear-lhe a fronte, e lhe engastava o cinto da araçóia
de palhetas de ouro nativo e de brilhantes pedrarias.

Também a exercitava na arte de encurvar o arco, de brandir o tacape,
de fender com os ombros as águas das torrentes, ou impelir rapidamente
com o remo uma piroga a resvalar pelas ondas azuladas de seu rio natal; ensinavalhe
as danças e cantigas sagradas, e os hinos de guerra, dando-lhe uma
educação toda varonil na esperança de tornála
um dia uma heroína capaz de elevar a nação ao mais subido
auge de glória e de grandeza. Guaraciaba por seu lado respeitava e
queria ao velho pajé como a um outro pai; com docilidade e submissão
filial obedecia às suas ordens, escutava os seus conselhos, e retribuía-lhe
com afetuosa gratidão os afagos e cuidados que dele recebia.

Andiara pelo muito afeto que tinha à gentil menina, ou por uma natural
simpatia, deixou-se também penetrar do interesse que a ela inspirara
o malferido estrangeiro, e esforçou-se com desvelo e ardor em restituir-lhe
a vida e a saúde.

Tendo pois bem recomendado o enfermo aos cuidados do pajé, Guaraciaba
deixa a taba, corre à beira do rio, banha as faces e os olhos ardentes
de insônia na sua onda límpida e fresca, e com um pente de madeira
preciosa e aromática encrustado de lâminas de ouro desembaraça
e alisa os negros e luzidos cabelos, que se espalham como um véu sobre
os ombros e o seio. Vai depois pressurosa despertar seu pai, e com prazenteiro
e ingênuo sorriso diz-lhe: — Meu pai, ele vive! — Quem,
filha?… o imboaba? — Sim, o estrangeiro, meu pai; esta madrugada abriu
os olhos e falou…

— Bem, minha filha! dá graças a Tupá, que nos
envia um herói dos imboabas para ser imolado no dia em que eu te entregar
nos braços de Inimá como companheira de sua taba. Excelente
agouro, que promete a perpetuação dos heróicos caciques
do sangue de meus avós! O sacrifício desse sanhudo e valente
imboaba será mais grato a Tupá do que se imolássemos
um cento de vítimas ordinárias, e os céus serão
propícios à tua união.

— Mas, meu pai, tu te enganas, esse prisioneiro não é
um imboaba; ele é, como nós, filho e Tupá, fala a língua
das florestas, e odeia como nós a raça de nossos perseguidores.

— E que manitó celeste, ou que pajé inspirado revelou-te
esse mistério?…

— Ele; ele mesmo mo disse.

— E acreditaste!… não sabes que a mentira, o embuste, a traição
andam sempre nos lábios dessa gente pérfida e cruel? —
Oh! não… sua voz, suas falas, sua figura não são do
imboaba; nelas respira o espírito de verdade, e em seu rosto transluz
a altivez do filho das florestas.

— De feito, murmurou o velho chefe abanando a cabeça, quem
com tanta destreza encurva o arco e vibra tão mortíferas flechadas,
quem combate com tamanho denodo e valentia, não pode ser do sangue
vil do imboaba traiçoeiro. Mas seja como for, é sempre um inimigo
e um herói; e tu, minha encantadora e querida Guaraciaba, tu és
bem digna de que tua união seja consagrada com o sangue de um herói
soterrado pelas mãos de teu esposo.

— Ah! meu pai! se para que minha união seja feliz e agradável
aos céus, é mister que corra o sangue de um desgraçado
prisioneiro, perdoa-me, meu pai, eu não serei nunca a esposa de Inimá!

— Que dizes, filha! como queres menosprezar a velha e sagrada usança
de nossos antepassados? É sempre grato a Tupá o sangue do inimigo
vertido em honra sua, e cometeríamos um crime se poupássemos
a vítima que ele mesmo nos envia.

— Mas a vítima não é um inimigo, é um
infeliz foragido, que porventura procurava entre nós gasalhado e asilo,
e a quem recebemos com as armas na mão, como se fora um jaguar.

— Seja pois como dizes, prezada filha; quero ainda condescender com
teus caprichos de criança. Sare esse estrangeiro de suas feridas, e
quando o seu estado o permitir, seja conduzido à minha presença
para nos dizer quem é, e contar-nos a sua história; depois veremos
o que dele se fará. E ai dele se procurar enganar-me com seus embustes
e mentiras!

CAPÍTULO IV – O RESTABELECIMENTO

Gonçalo, graças ao acertado curativo do sábio e experiente
Andiara, e à desvelada solicitude com que o tratava a filha de Oriçanga,
foi mais depressa do que se podia esperar sarando de suas feridas e contusões,
e readquirindo seu antigo vigor. Para seu pronto restabelecimento sem dúvida
mais que tudo contribuiu a amável e interessante enfermeira que o assistia.
Guaraciaba, que em língua chavante significa – raio de luz –
era com efeito a mais gentil e graciosa dentre as filhas da floresta.

E não se pense que entre esses selvagens não se encontram
senão rostos grosseiros e estúpidos, instintos selváticos
e ferozes; não é muito raro ver-se entre eles, principalmente
entre certas tribos privilegiadas, feições bem modeladas, regulares
e expressivas, e nobres e generosos impulsos do coração; encontram-se
por vezes entre eles criaturas em que a obra de Deus faz lembrar ainda a perfeição
de sua celeste origem. Guaraciaba era o tipo da beleza indígena no
mais alto apuro de sua perfeição. Filha mimosa de um poderoso
cacique, criada com carinho à sombra da taba paterna, sua tez não
se crestara aos ardores do sol tropical, nem se lacerara nos espinhos das
selvas enredadas, e tinha em todo o seu frescor e pureza a delicada cor de
jambo. Seus cabelos negros, compridos e corridos ocultavamlhe quase completamente
os ombros, e algumas madeixas desgarradas desciam ondulando a beijar os puros
contornos dos seios virginais. Seus olhos pretos e oblongos ora eram meigos
e serenos como a superfície de um lago dormente em noite de luar, ora
cheios de vivacidade cintilavam como o carbúnculo. Seu porte, seus
ademanes tinham a flexibilidade e a graça da cecém, que ao sopro
das brisas matinais embala-se à beira da torrente. Ela se comprazia
muitas vezes com a turba de suas companheiras em banhar os mimosos membros
nas águas do seu pátrio rio, que ela fendia com a destreza e
rapidez da lontra. Também empunhava com graça e garbo senhoril
um arco trabalhado de primorosas esculturas, e um carcás trançado
de palhas de coqueiro imitando a pele escamosa e matizada de uma serpente
e bem provido de setas, com que fazia crua guerra às avezinhas, cujas
penas cobiçava para seus enfeites.

Guaraciaba e Andiara não poupavam desvelos e cuidados para que Gonçalo
recuperasse forças e saúde. Ela mesma trazia em vasos de concha
de tartaruga, ou de madeira esculpida, os selváticos manjares preparados
por suas próprias mãos. Ora o regalava com os mais saborosos
peixes e a caça a mais delicada, ora com os tenros palmitos ou a alva
mandioca embebida no delicioso mel de jataí, com ovos de tartaruga,
com frutos silvestres, e o suave licor extraído do tronco do buriti;
e Gonçalo como que ressurgia do túmulo vivificado pela mão
de um anjo.

Entretanto os Chavantes em diversos grupos se dispersavam pelas imensas
florestas que bordam as margens do Tocantins, em excursões mais ou
menos longínquas de caçadas e pescarias, ou em busca dos ingredientes
de que fabricam o precioso guaraná, de cuja composição
até hoje se ignora o segredo, ou em correrias pelas fazendas dos brancos,
onde iam exercer violências e rapinas.

Quanto a Inimá, profundamente ofendido com as cruéis palavras
com que Oriçanga o havia humilhado em presença de Guaraciaba
e de grande número de guerreiros, se embrenhava à testa de alguns
dos seus pelas florestas vizinhas para ocultar seu amargo despeito, e disposto
a não aparecer senão para lavar sua afronta no sangue do atrevido
forasteiro que dela fora a causa. Nas tabas pois com Oriçanga e sua
filha ficara apenas uma pequena parte da tribo, pela maior parte velhos, mulheres
e crianças, e uma escolta de guerreiros escolhidos eram como uma guarda
do velho cacique.

Logo que Gonçalo se achou fora de perigo e algum tanto restabelecido
de suas forças, foi conduzido pela gentil Guaraciaba à presença
do velho chefe, para narrar-lhe suas aventuras. Junto à margem do rio,
à sombra de uma colossal figueira silvestre, achava-se sentado o velho
cacique rodeado de alguns guerreiros veteranos, com os quais se comprazia
em rememorar as façanhas das eras de outrora, e com essas lembranças
do passado sua alma se expandia como o velho e carcomido tronco da floresta
já sem seiva nem folhagem, cujo calvo tope se enrama de viçosas
parasitas e floridas trepadeiras. Gonçalo se assentou no meio deles;
servia-lhe de assento a saliência de uma das enormes raízes do
tronco. A mimosa filha de Oriçanga apresentou a cada um dos circunstantes
um vaso de cauim, e um cachimbo aceso, que circulou de boca em boca, em sinal
de paz e boa amizade. Assentada sobre a relva a alguns passos em frente de
Gonçalo, com os pés encruzados, o braço pousado sobre
os joelhos e a face sobre a mão, Guaraciaba, que nesse momento oferecia
à estatuária o mais original e gracioso modelo, estava pronta
a escutar com a maior atenção e infantil curiosidade.

— Estrangeiro, diz Oriçanga, quem quer que tu sejas, ou descendas
do sangue maldito do imboaba, ou tenhas nascido neste país que Tupá
abençoou, já que o céu te fez cair em nosso poder, és
nosso escravo, e faremos de ti o que nos aprouver. Mas diz alguém que
não pertences à raça detestada de nossos perseguidores,
e que as tuas tristes aventuras obrigam-te a vaguear pelas selvas foragido
sem taba e sem manitós. Conta-nos pois com espírito de verdade
a história de teus infortúnios, e à vista dela veremos
qual a sorte que mereces.

Gonçalo, prevenido por Guaraciaba de que teria de contar ao pai dela
a história dos acontecimentos de sua vida , já tinha fantasiado
em seu espírito a narração que devia fazer ao velho cacique.
Não lhe era preciso inventar muitas fábulas, mas somente disfarçar
certas circunstâncias de sua vida mudando o nome de algumas pessoas
e lugares e ocultando a sua verdadeira nacionalidade, para tornar interessante
a sua narração. Assim pois misturando às vezes a história
real de sua vida, cheia de incidentes e trabalhos, com algumas fábulas
por ele mesmo ideadas, disse que pertencia à bela e formidável
tribo dos Guaicurus, que habitavam as remotas regiões banhadas pelos
rios Paraná e Paraguai. Seu pai era um cacique afamado naquelas paragens
por seu grande valor e poderio. Esse cacique à testa de seus valentes
guerreiros montados em grandes e velozes cavalos, percorriam as campinas de
seu país natal com a rapidez do tufão, e causavam estragos e
devastações imensas nos estabelecimentos dos brancos de quem
se tinham tornado implacáveis inimigos. Enfim, depois de uma guerra
desastrosa, ele, seu pai e toda a sua família tinham caído prisioneiros
em poder dos brancos; depois tinham sido conduzidos por seus senhores a Goiás,
onde foram vendidos e longo tempo gemeram vítimas de bárbaro
e violento cativeiro, e onde vira seu pai sucumbir ao peso de maus tratamentos
e excessivos trabalhos. Enfim crescendo em forças e idade, e não
podendo por modo algum resignar-se a suportar o jugo infame da escravidão,
conseguira evadir-se, e se refugiara nas matas do Alto Tocantins. Acolhido
entre os Coroados, que habitavam essas regiões, em breve adquiriu a
estima e apreço dos principais da tribo, que o escolheram para comandar
uma expedição que tinha de marchar a exercer vinganças
e depredações nas povoações dos imboabas. Aproveitou-se
com sofreguidão dessa ocasião para vingar a morte de seu pai,
matando com a própria mão o seu algoz e reduzindo a cinzas suas
fazendas. Em muitas outras ocasiões teve de prestar os mais importantes
serviços aos Coroados, quer expondo intrepidamente a sua vida na guerra,
quer ensinando-lhes diversos ofícios e artes, que aprendera durante
o seu cativeiro entre os brancos, quer enriquecendo-os com instrumentos, armas
e mil outros despojos de imenso valor, que saqueava das fazendas que destruía.
Mas enfim seus próprios feitos e serviços suscitaram-lhe uma
multidão de inimigos, excitando a inveja e descontentamento de muitos,
que tinham ciúme do brilho e lustre que seu nome ia adquirindo entre
eles. Seus rivais não ousavam guerreá-lo abertamente, mas urdiamlhe
ciladas de todo o gênero, e moviam-lhe uma perseguição
traiçoeira, à qual teria inevitavelmente sucumbido, se não
tivesse fugido ocultamente a favor da noite em uma canoa confiando sua vida
à mercê da corrente do rio sagrado, que o tinha conduzido até
ali, afrontando novos trabalhos e perigos em busca de um asilo em qualquer
canto do mundo. Chegando àquelas paragens eles Chavantes tomando-o
por um inimigo, ou imboaba, o tinham atacado tão bruscamente e com
tal sanha, que o colocaram na necessidade de defender-se com encarniçamento
até o último trance.

Enfim nenhuma inimizade ou indisposição tinha com os Chavantes,
de cujo poderio tinha muitas vezes ouvido falar, e cuja bravura ecoava até
as mais remotas regiões. Esperava que dali em diante não o considerassem
mais como um inimigo, nem como um estrangeiro, porém sim como um companheiro
de mais, um aliado fiel, que não aspira a outra coisa mais do que a
ter ocasião de expor sua vida e derramar seu sangue pela causa dos
valentes Chavantes, e de seu bravo e poderoso chefe.

Gonçalo entremeara nesta narração os inúmeros
e variados episódios de sua vida agitada e aventureira, envolvendo-os
em circunstâncias estranhas e fantásticas; pintava com modéstia,
porém com animação e calor, os renhidos combates em que
tinha suplantado seus inimigos e rivais, os rudes trabalhos e arriscadas aventuras
por que tinha passado, as proezas que praticou comandando os Coroados em suas
correrias pelas fazendas dos brancos, e assim teve por largo tempo presa a
atenção do cacique e mais ouvintes, que absortos e enlevados
não se fartavam de escutá-lo.

— Bem! Disse o velho caudilho apenas Gonçalo deu por terminada
a sua narração; os teus infortúnios me tocam, e tuas
palavras parecem-me ser inspiradas pelo espírito da verdade. Itajiba,
tu és um bravo, e as façanhas que tens praticado são
dignas dos mais valentes caciques. Mas antes de seres adotado em nossa tribo,
como pareces desejar, é mister que proves com os teus feitos e com
serviços reais, que não com meras palavras, a força de
teu braço, a valentia de teu ânimo, e a lealdade de teu coração.
Por agora porém cumpre que continues o teu curativo, e que recuperes
completamente com o sangue vazado por tantas e tão graves feridas a
saúde e as forças de que haverás mister para te sujeitares
a essas provações, e mostrares o que podes e sabes fazer. Não
serás mais tratado como prisioneiro; és livre; as florestas
e as campinas te são francas; podes por elas vagar e caçar a
teu sabor, como se estivesses em teu país natal, pois que essa formosa
criatura, a quem por felicidade tua soubeste inspirar interesse e piedade,
garante a sinceridade de tuas palavras, e a minha Guaraciaba, que conversa
com os manitós celestes, e escuta as falas dos sagrados pajés,
não costuma iludir-se.

Gonçalo ou Itajiba, como se chamou durante o tempo que esteve entre
os Chavantes, restituído à liberdade, e tratado com o mais carinhoso
desvelo na taba do velho Oriçanga, sentia de dia em dia renascerem-lhe
as forças e vigorar-se-lhe a saúde. Viu com prazer que todas
as suas armas lhe tinham sido fielmente conservadas. Mas suas armas de fogo
se lhe tornavam daí em diante completamente inúteis, pois estavam
vazias, e nenhuma munição lhe restava para de novo carregá-las;
isto causava-lhe bastante pesar, pois essas armas com suas temerosas detonações
e seu maravilhoso mecanismo seriam um objeto de assombro para aqueles selvagens
e mais um meio para atrair seu respeito e admiração, e dar a
Gonçalo ainda mais prestígio entre eles.

Notou ainda mais, com íntima satisfação, que lhe tinham
deixado intacto o sagrado talismã objeto de seu fervoroso culto, a
imagem de sua celestial protetora em todos os trabalhos e perigos da vida.
A curiosa Guaraciaba não pôde deixar de perguntar-lhe o que significava
aquele objeto com aquela linda imagenzinha de ouro, que sempre trazia pendente
ao pescoço.

— É um precioso e sagrado manitó, que me legaram meus
pais, respondeu-lhe Gonçalo, é ele quem me proteje, e noite
e dia vela sobre meus passos, e quem leva minhas rogativas até o trono
do Grande Tupá. Sem ele há muito teria sucumbido aos imensos
trabalhos e perigos que me têm atribulado a existência.

Dizendo isto Gonçalo levou aos lábios respeitosamente a santa
imagem, e a apresentou à filha de Oriçanga, para que fizesse
o mesmo. Guaraciaba imitou-o com gesto tímido, e disse: — Eu
também quisera ter um lindo manitó como este; mas dar-se-á
caso que ele também me proteja, como protege a ti? — E por que
não, uma vez que o veneres com sincero amor e respeito, e invoques
com fé viva a sua proteção? Se ele atende à rogativa
do infeliz foragido, a quem as paixões e os desatinos da mocidade arrojaram
num pego de desgraças, muito mais piedoso ouvido prestará sem
dúvida à tímida súplica da casta e formosa virgem
do deserto. Tu o terás um dia, eu to prometo, e sentirás os
salutares efeitos de sua miraculosa proteção.

Guaraciaba, que desde a primeira vista sentira pelo jovem estrangeiro uma
súbita e viva afeição, ingênua e singela como todas
as filhas da floresta, abandonava-se sem escrúpulo a esse sentimento,
de que apenas tinha consciência e nem procurava dissimulá-lo.
Sua união com Inimá, a quem ela não votava nem ódio
nem afeição, era apenas um projeto de família, de que
ouvia falar desde o berço, e do qual na infantil singeleza de sua alma
não compreendia ainda nem a importância nem o alcance, e assim
a inocente dando folgas a essa paixão, que começava a germinar
com intensidade em seu coração, mal pensava que criava um insuperável
obstáculo à sua união com o jovem cacique. Não
assim Gonçalo, que não podendo ser insensível a tão
casto e tão sincero amor da virgem indiana, bem previa que esse amor
devia tornar-se um dia a origem de tristes complicações e fatais
conflitos, e olhava com inquietação para o futuro, que antevia
eriçado de dificuldades e perigos; por isso quase sempre uma nuvem
de tristeza pairava em sua fronte grave e pensativa.

CAPÍTULO V O TRANSVIO

Logo que Itajiba mais vigoroso se achou em estado de encurvar um arco e ensaiar
seus passos pelas sendas da floresta, Guaraciaba, para distraí-lo de
sua inação e dos cuidados que pareciam atormentá-lo,
convidou-o a um passeio e caçada de aves pelas selvas circunvizinhas.
Itajiba teve logo ensejo de mostrar sua maravilhosa destreza em atirar a flecha,
com grande prazer de Guaraciaba, que saltava de contente conduzindo para a
sua taba uma chusma de avezinhas de variadas cores, derribadas pelas certeiras
flechadas de Itajiba.

As roupas velhas e dilaceradas, que Gonçalo trouxera consigo, já
não podiam servir a Itajiba; tendo de ser adotado na tribo dos Chavantes
forçoso lhe era que se trajasse à maneira dos selvagens. Guaraciaba,
auxiliada por suas companheiras, incumbiu-se de vesti-lo e armá-lo
com todo o esplendor do luxo selvático. Uma túnica, que lhe
descia até os joelhos, enfeitada de penas de brilhantes cores, lhe
rodeava a cintura; um carcás formado de pele de uma monstruosa jibóia
lhe pendia dos ombros recheado de mortíferas setas.

Em vez do chapéu de couro sombreava-lhe a fronte um diadema de plumas
ondulantes de vistosas e brilhantes cores. Um rico tacape e um bem trabalhado
arco, que Guaraciaba despendurou da sala de armas de seu pai, foram por ele
empunhados. Em forma de manto a pele mosqueada de um enorme jaguar lhe caía
pelas espáduas. A estes trajos selváticos Itajiba, pouco afeito
a trazer os membros expostos aos rigores do tempo, ajuntou uns borzeguins
ou polainas de pele de sucuri, impenetrável à umidade, agasalhou
os ombros e o peito com uma espécie de gibão estreito feito
de macias e finas peles, apertou o seu cinturão de couro de lontra,
ao qual prendeu a sua larga faca, e com estes trajos pareceu aos olhos de
todos garboso e belo como um verdadeiro príncipe das florestas.

Os passatempos e caçadas de Itajiba e Guaraciaba repetiam-se todos
os dias, e o tempo assim lhes corria suave, como as ondas serenas do pátrio
rio à sombra dos arvoredos seculares, e sua mútua afeição,
alimentada por aqueles solitários entretenimentos, de dia em dia se
aumentava, sem que eles se apercebessem, e se expandia como a flor ignorada
e sem nome, que exala seus perfumes na solidão. À medida que
cresciam as forças de Itajiba, esses passeios foram-se alargando a
maiores distâncias, já deslizando vagarosamente em uma leve piroga
ao longo das umbrosas ribanceiras, já pelas veredas escondidas da floresta;
e pelo caminho Itajiba fazia cair aos certeiros tiros de seu arco a arara
azul ou encarnada, a alva garça, rainha dos lagos, o róseo colhereiro,
cujas penas são tão estimadas, o tucano de enorme bico, cujo
peito rubro é procurado para enfeite da túnica das virgens,
o jaó, o inhambu, a capoeira, cujas carnes são tão tenras
e saborosas, e mil outras aves, de cujas lindas penas Guaraciaba com suas
hábeis mãos compunha vistosos ornatos para as armas de seus
guerreiros.

Guaraciaba tanto tinha de meiga e singela, como de alegre e trêfega;
ela se aprazia por vezes em perturbar com encantadoras travessuras as graves
e profundas cismas de seu amigo. Ora lesta e subtil como uma lebre sumia-se
entre as moitas da floresta, sem que Itajiba o pressentisse; este dando por
sua falta, olha inquieto para todos os lados , chama-a gritando seu nome uma
e muitas vezes, aplica o ouvido aos ecos; mas Guaraciaba não responde,
nem aparece em parte alguma. No auge da inquietação Itajiba
perplexo não sabe nem o que pensar nem o que fazer, quando sente por
detrás uma ligeiras mãozinhas a lhe tapar os olhos.

— Guaraciaba! lhe diz ele sorrindo, que susto me causaste! oh! não
brinques mais por essa forma, que me fazes mal.

— Perdoa-me, Itajiba; quis distrair-te de teus cuidados. Estavas tão
triste e pensativo! parece que tens muita saudade dos teus e do teu pai! —
Não; pura e formosa filha de Oriçanga, quando estou junto a
teu lado, que me importa o resto do mundo?…

Outras vezes com pena das pobres avezinhas, em que Itajiba fazia a mira,
ou lhe espantava a caça, ou lhe fazia perder o tiro tocando-lhe o braço
no momento de despedir a seta.

Uma vez ambos atravessavam o rio em uma canoa, que Itajiba remava; estavam
ainda longe da barranca oposta, quando Guaraciaba súbito dá
um grito, salta na água e desaparece. Itajiba pálido de susto
pensa que algum monstro do rio, algum jacaré ou sucuri, a arrebatou;
sem perder um momento salta na água com a faca em punho, mergulha e
surge de novo à tona da água, torna a mergulhar e a surgir,
e nada vê senão a canoa rodando rio abaixo sem governo.

Em desesperada ansiedade estava resolvido a morrer naquelas águas
antes do que sair delas sem Guaraciaba, quando uma gargalhada vibrante e harmoniosa
como o canto da siriema retroa no barranco vizinho. Era Guaraciaba, que de
propósito se lançara ao rio, e de um mergulho ganhara a margem.
Itajiba ganha de novo a canoa, e dirige-se para o barranco.

— Ó querida e formosa Guaraciaba, diz ele ao chegar entre risonho
e grave, por piedade, não brinques mais assim. Olha que um dia, assim
como hoje tomei um gracejo teu pela realidade, poderei tomar a realidade por
gracejo e faltar-te no perigo.

Um dia a alegria e contentamento, que sempre reinavam nas partidas de caça
dos dois selváticos amantes, foram perturbados por um triste, posto
que bem simples incidente. Itajiba avistara pousadas sobre um galho de uma
alta canjerana duas lindas e grandes juritis de luzidia plumagem, que se beijavam
e se afagavam com os encarnados biquinhos, arrulhando de prazer; imediatamente
embebe a seta e curva o arco.

— Pobrezinhas! exclama Guaraciaba correndo a estorvá-lo, não
as mate, não; deixa-as.

Mas o tiro tinha partido sibilando, e as duas amantes pombas caíram
varadas no coração pela mesma seta.

Uma nuvem de tristeza cobriu o coração de Guaraciaba, que
nesse dia não brincou nem sorriu mais, um funesto pressentimento a
afligia, e aquele acontecimento parecia-lhe um presságio sinistro,
mas não sabia de quê, Itajiba em vão procurava dissipar
a triste preocupação de sua amiga, já zombando daquela
pueril apreensão, já procurando desvanecê-la com razões
sérias. Guaraciaba resolveu-se a consultar os pajés sobre a
significação daquele nefasto acontecimento. O primeiro a quem
se dirigiu respondeu-lhe abanando a cabeça:

— Ah! filha de Oriçanga, semelhante sucesso não pode
ser de bom agouro. Resguarda bem teu coração das chamas do amor:
teu coração e o daquele a quem amares não poderão
ser unidos senão pela morte.

— Em que te pode afligir um fato tão simples, ó bela
e mimosa filha do mais poderoso dos caciques? disselhe o venerando Andiara,
a quem consultou depois. Essa seta traspassando ao mesmo tempo duas inocentes
pombas é o amor unindo para sempre duas almas puras.

Esta engenhosa e consoladora explicação calou no espírito
de Guaraciaba, e nesse mesmo dia se desvaneceram todos os seus sombrios pressentimentos.

Gonçalo, que no meio da sociedade civilizada só se tinha afeiçoado
por capricho e passageiramente a uma ou outra mulher, agora no meio das selvas
sentia brotar com energia em seu coração o gérmen de
uma paixão ardente e profunda pela mimosa e encantadora virgem dos
Chavantes. Posto que visse que esse sentimento era correspondido de um modo
inequívoco pela filha de Oriçanga, nem por isso o futuro se
lhe antolhava muito sereno e limpo de tormentas. Sabia que o velho cacique,
cioso do lustre de sua descendência, a destinava desde a infância
ao jovem e garboso guerreiro Inimá, que também de seu lado a
adorava extremosamente, e somente morto renunciaria ao seu amor. E Oriçanga,
os pajés, os veteranos da tribo, a nação inteira enfim
poderiam ver impassíveis a quebra de tão solenes promessas,
e consentiriam de bom grado que a ilustre e formosa noiva de Inimá
passasse aos braços de um obscuro estrangeiro, foragido e sem nome?
Em outros tempos Gonçalo sem deter-se um momento em nenhuma dessas
considerações a teria arrebatado à força de armas
e despeito de Oriçanga, de Inimá e dos Chavantes, e teria arrostado
o furor da tribo inteira só para possuí-la. Mas os longos infortúnios
e reveses por que passara tinham domado um pouco sua índole impaciente
e fogosa, tornando-o mais prudente e cauteloso.

Guaraciaba por sua parte ouvia com indiferença desde a infância
falar-se em sua futura união com Inimá, e nunca ao nome desse
guerreiro sentira palpitar-lhe mais rápido o coração.
Porém depois que conheceu o jovem estrangeiro, essa idéia tornou-se
um peso para sua alma, e não concebia como poderia ser mulher de Inimá
amando Itajiba. Mas seu coração, cheio da confiança que
a inocência inspira, repousava no porvir e esperava que o céu
aplainaria todas as dificuldades, e portanto abandonava-se sem reserva à
paixão que a dominava.

Inimá, retraído na profundez das selvas com alguns dos Chavantes
que lhe eram mais afeiçoados, continuava a viver afastado das tabas
e quase sem comunicação alguma com o resto da tribo, e o desgraçado
amante ignorava ainda que nesse mísero forasteiro, que deixara moribundo
e crivado de golpes e somente digno de lástima e piedade, surgia contra
ele um poderoso e formidável rival de glória e de amor.

Isolado no fundo das solidões procurava disfarçar o seu pesar
e abreviar o tempo ansiosamente esperado de lavar sua afronta, cevando o seu
furor nos fragueiros exercícios da caça, e perseguindo animais
ferozes, como o touro batido e expelido da manada, que desabafa as iras entre
rugidos furiosos escorchando troncos e rasgando a terra com as polidas pontas.

Um dia os dois amantes, enlevados em seus entretenimentos, transpondo arroios,
descendo grutas e galgando colinas, não dando fé das distâncias
que percorriam, nem das horas que se escoavam rapidamente, esquecidos das
tabas, do tempo e do mundo, foram-se alargando mais que de costume em seu
passeio pela floresta.

Quando enfim já fatigados e percebendo-se do tempo, que fugia, lembraram-se
de encaminhar seus passos de novo para as cabanas, acharam-se em considerável
distância, e com o dia já quase a terminar sua carreira. O sol
descambava rapidamente para o ocaso, e nuvens bronzeadas, que de espaço
em espaço enchiam-se de fogo como estofos de algodão ardente,
anunciavam iminente tempestade. Itajiba, que desconhecia aqueles lugares,
onde pela primeira vez penetrava, e que se achava algum tanto confundido pelos
giros e voltas que dera pela floresta, subiu a uma eminência a fim de
procurar orientar-se; mas o negrume do ocidente, impelido por uma rija ventania,
começava a apoderar-se de todo o horizonte; o sol se escondera completamente
entre um montão de negras e carregadas nuvens, e Itajiba, cercado por
todos os lados de horizontes nublados e morros cobertos de florestas, não
podia atinar com o rumo das habitações dos Chavantes.

Por si só nada receava Itajiba, afeito a assoberbar todos os contratempos
suscitados pelos homens ou pelos elementos; nem tão pouco sentia-se
sem coragem para proteger contra quaisquer azares naquelas solidões
a frágil e mimosa criatura que tão cheia de confiança
o acompanhava. Ele bastaria para Guaraciaba, como Guaraciaba era todo o seu
mundo ou antes o seu céu. Mas a sua longa ausência, o sol que
baixava, a tempestade e a noite, que se avizinhava, as suspeitas e susto de
Oriçanga e de todos os Chavantes crendo perdida sua Guaraciaba e talvez
roubada por ele, em quem tão generosamente se fiara, e sobre quem iam
recair ainda que por momentos suspeitas da mais negra deslealdade, tudo isto
eram reflexões que o enchiam da mais cruel inquietação.

O vento rugia cada vez com mais violência; o céu se abria em
cataratas de fogo, e a chuva começava a despejar-se em torrentes; açoitadas
pela refega as árvores vergavam-se rangendo e uivando horrivelmente,
e de tempos a tempos um tronco arrancado pelo temporal baqueava com temeroso
estrondo desabando pelos grotões profundos. Itajiba naquela cruel conjuntura,
já esquecido de todos os mais cuidados, só tratou de procurar
uma guarida, em que pudesse pôr a salvo de tão tremendo temporal
a sua amada Guaraciaba. Mas por toda a parte só via as selvas imensas,
que rugiam e curvavam-se ameaçadoras como querendo desabar sobre suas
cabeças, e as torrentes que estrugiam rolando troncos e rochedos pelas
quebradas inacessíveis. Tomando Guaraciaba pela mão e amparando-a
contra a fúria do vento, que parecia querer arrancá-la do solo
e arrebatá-la pelos ares, Itajiba foi descendo para um grotão,
no fundo do qual roncava um ribeirão encachoeirado entre rochedos.
Não longe da ribanceira enorme lajedo servia de teto a uma vasta e
profunda furna, cuja larga entrada se formava sobre uma esplanada, por baixo
da qual a torrente turva e espumosa rolava em catadupas. Essa furna medonha
à margem de um abismo, ninho talvez de panteras e serpentes, tornou-se
nesse dia como a alcova misteriosa que acolheu em seu seio dois amantes felizes,
que a tempestade surpreendeu desgarrados de seus lares, e os abrigou contra
a fúria dos elementos desencadeados. Entretanto Guaraciaba, perdida
no deserto com seu amante em meio daquela horrorosa borrasca, não mostrava
pavor nem inquietação alguma, e sorria-se ao perigo, como a
gaivota unindo seus alegres pios ao rugir do furacão dos mares. É
que ela se fiava na sua inocência e na eficaz proteção
de seu valente e dedicado amante. Ali no interior daquela furna os dois amantes
se assentaram ao lado um do outro sobre um musgoso banco de pedra talhado
pela natureza, esperando que a tormenta se amainasse. Itajiba enlaçava
o braço em torno do colo de Guaraciaba, e lhe apertava as mãos
entre as suas, enquanto esta fitava nele seus olhos negros cheios ao mesmo
tempo de amor e de timidez.

CAPÍTULO VI – NA LAPA

As paixões grandes gostam de expandir-se em ocasiões solenes
em face dos espetáculos grandiosos da natureza, em meio das solidões.
Itajiba, com o coração a transbordar de emoção
e de amor, pensou que o céu lhe enviara aquela tremenda tempestade
e lhe mostrara aquele recôndito e misterioso abrigo de propósito
para que tivesse ensejo de revelar à formosa filha de Oriçanga
toda a força e ardor imenso de sua paixão, e todos os cuidados
e desassossegos que o acompanhavam. Enquanto pois em roda e por fora da caverna
urravam os furacões, de instante a instante os raios estalavam, a torrente
entumecida despenhava-se com fragor na profundeza do abismo, e a tormenta
desabava furiosa dilacerando o manto verde-negro das florestas, uma paixão
imensa como os desertos onde engendrou-se, pura como a casta e inocente virgem
que dela era objeto, se desafogava em palavras repassadas de ternura no seio
da selvática beleza que a tinha sabido inspirar.

— Ó minha mui formosa e querida Guaraciaba, murmurava Itajiba
aos pés da filha de Oriçanga; se teu coração não
adivinhou nem compreendeu o puro e ardente afeto que do fundo da alma te consagro,
eu não sei por que maneira, nem com que palavras te possa explicá-lo,
pois nem na nossa linguagem das florestas, nem naquela que os imboabas nossos
perseguidores me ensinaram, não existem expressões que possam
dar idéia dos suaves transportes desta paixão imensa e profunda,
que tu, ó a mais formosa das filhas da floresta, só tu soubeste
inspirar me. Paixões como esta, que me devora, não as pode explicar
a língua dos homens; só os anjos do céu poderiam exprimi-las
em seus cantares de inefável harmonia. Ah! e como poderia eu não
amar-te, a ti, manitó celeste enviado por Tupá para velar sobre
meus dias, a ti, que com teus carinhosos desvelos, com teu divinal sorriso
me restituíste à vida, quando eu era já cadáver,
a ti enfim, que com teu amor tornando-me o mais feliz dos viventes, vens abrir-me
de novo as portas do porvir e da esperança!…

A estas palavras Itajiba cobriu de ardentes beijos as mãos de Guaraciaba,
que tinha entre as suas, levantou-se e assentou-se de novo ao lado dela, continuou
em tom mais grave: — Mas ah! minha querida Guaraciaba, quantos embaraços
e obstáculos invencíveis não vêm opor-se ao complemento
de nossa felicidade! e quão incerta é a nossa sorte no futuro!
Teu pai desde o berço destinou-te ao belo e valente Inimá, que
também te adora com extremo; e teu pai jamais consentirá em
quebrar tão sagrado compromisso. Os guerreiros de tua tribo de há
muito te consideram e aclamam à futura esposa desse brilhante chefe,
e sem dúvida se oporão resolutamente a que sejas entregue ao
obscuro estrangeiro foragido. Bem sei que as florestas imensas estão
à nossa disposição, e que em qualquer canto da terra,
sem nada mais que o nosso amor, seríamos felizes, como o somos agora
dentro desta lapa zombando das tormentas, que aí rugem pelo mundo.
Mas tu bem sabes, jurei lealdade e prometi meus serviços a Oriçanga
e à sua tribo, e a nossa fuga seria uma torpe traição,
em que nem eu nem tu consentiríamos jamais. Entretanto eu te amo com
amor inextinguível, e creio que nem na terra nem no céu há
poder para apagar esta chama viva e pura que arde-me no coração,
e nem de leve posso suportar a idéia desesperadora de perder-te um
dia. Ó Guaraciaba, minha doce e pura Guaraciaba! Pudessem estes momentos,
que aqui passamos sós nesta caverna ignorada, tendo aos pés
essa torrente, amparados por este penedo e guardados pela tempestade, pudessem
estes momentos prolongar-se por toda a eternidade! Estas palavras coavam docemente
pelos atentos ouvidos de Guaraciaba, e lhe ressoavam na alma como um hino
celestial. Ela sentia-se ao mesmo tempo enternecida e ufana por ouvir aquele
altivo e indômito guerreiro pronunciar a seus pés palavras do
mais submisso e mavioso amor, e respondeu-lhe cheia de emoção:
— Itajiba, tuas falas são mais doces para a minha alma do que
os favos da jataí, ou o suco delicioso do abacaxi. Elas fazem-me palpitar
o coração como a flor que estremece ao bafejo perfumado das
brisas da manhã. Tu me amas, bem o sei: e o amor que te consagro, também
não é para ti nenhum segredo, embora meus lábios não
o tenham revelado. A flor mesmo nas trevas se trai pelo seu perfume; a fonte
do deserto escondida entre os rochedos se revela por seu murmúrio ao
caminhante sequioso. Desde os primeiros momentos tu viste meu coração
abrir-se para ti, como a flor do manacá aos primeiros raios do sol.
Sinto que não poderei viver mais senão ao teu lado e à
tua sombra; se eles quiserem separar-me de ti, ah! morrerei como a flor que
da sombra orvalhada do bosque foi transplantada para os areais de fogo. Mas,
Itajiba, confiemos na proteção do céu; Tupá é
bom e ampara os amores puros. Inimá bem depressa se convencerá
de que o não posso amar, procurará esquecer-se de mim, e desistirá
de suas pretensões; e meu pai desligado de suas promessas abençoará
nosso amor. Amemo-nos, Itajiba, amemo-nos cada vez mais, se é possível,
e o céu encarregará de nosso futuro.

E dizendo estas palavras Guaraciaba lançava seus mimosos braços
ao colo de Itajiba e o bafejava com seu amor, como a baunilha que enlaça
seus tenros vimes ao robusto e altivo tronco do deserto, e lhe distila em
torno seu delicioso perfume.

Itajiba, bebendo com avidez as suaves falas de Guaraciaba, foi-se deixando
também enlevar pela ingênua e viva confiança que aquela
alma inocente depositava na proteção do céu. A tempestade
tinha sido tão violenta quanto passageira. O mesmo vento impetuoso
que a trouxera a varria rapidamente do firmamento e impelia as nuvens dilaceradas
para além das últimas montanhas do levante, como os esquadrões
em debandada de um exército derrotado, que foge atropeladamente diante
do inimigo vitorioso. O sol já quase tocando ao ocaso, desembaraçado
das nuvens que o afrontavam, vibrou subitamente seus raios horizontais por
entre os ramos orvalhados da floresta, e um brando clarão róseo
insinuando-se pela entrada da caverna iluminou-a de suave crepúsculo
e revestiu-a do aspecto fantástico de uma gruta de fadas.

— Olha, Itajiba, exclama sorrindo a filha de Oriçanga, Tupá
mandou-nos a tempestade e encaminhou nossos passos para esta caverna ignorada
pelos homens a fim de que as juras de nosso amor fossem proferidas longe de
vistas curiosas, e não ecoassem em ouvidos estranhos. Vê como
ele agora nos envia um raio de esperança e festeja nossa felicidade!…

Itajiba transportado de amor enlaçou ao peito a fronte radiante de
Guaraciaba; já seus lábios se tocavam nas delícias do
primeiro beijo de amor… súbito um rumor, que se avizinha, chega-lhes
aos ouvidos; ouvem-se gritos selváticos, latir de cães, sons
de borés e tropear de caçadores. Este estrugido se avizinhava
de mais em mais; um instante depois um ligeiro rumor se fez sentir mesmo ao
pé da entrada da furna; Itajiba e Guaraciaba sobressaltados olham para
aquele lugar e levantam-se de súbito dando um grito de terror . Uma
enorme canguçu negra se apresenta parada á porta da gruta com
os olhos chamejantes, rosnando e mostrando as agudas presas como que pasmada
e indignada de encontrar em seu covil aqueles estranhos hóspedes. Tão
perto deles se achava a fera, que Itajiba não tendo espaço suficiente
para enristar a flecha, brandiu contra ela o seu formidável tacape.
O monstro surpreendido por aquele brusco ataque recuou dois saltos e de novo
voltou a face ao seu agressor; este em pé à porta da gruta já
de arco feito procurava segurar a mira no coração da onça,
quando cheio de pasmo dá com os olhos em um guerreiro, que em pé
sobre a esplanada exterior da furna a uns dez passos de distância por
detrás da fera, igualmente de arco encurvado também a encarava
com assombro, e parecia como que a sua sombra ou o reflexo de sua figura.
Era Inimá, que seguido de alguns companheiros perseguia aquela onça
e de flecha feita igualmente fazia a mira… contra ele ou contra a fera,
que se interpunha entre os dois na mesma direção? Não
o pôde saber Itajiba, que em seu assombro esqueceu a fera, que diante
dele rugia apresentando as presas ameaçadoras e agitando a comprida
cauda a estorcer-se e bater-lhe os flancos como uma jararaca enfurecida. Tendo
em frente dois inimigos igualmente ferozes como que hesitava em qual dos dois
empregaria o primeiro tiro e aguardava o que primeiro atacasse. Inimá
porém, que entre as sombras da gruta entrevira Guaraciaba, espumava
e batia os dentes de furor, e na sofreguidão de sua cólera com
tal fúria esticou o arco, que este partiu em suas mãos, e a
flecha caiu-lhe inerte aos pés. A este rumor a onça, cujos olhos
até então estavam constantemente fixos em Itajiba, volta-se
rapidamente, em dois pulos se precipita sobre Inimá, tomba-o de costas,
calca-lhe o peito com as enormes patas, e apresenta aos cães, que começam
a assaltá-la, a boca escancarada guarnecida de buídos dentes,
à semelhança de um riso de feroz escárnio. Os companheiros
de Inimá, não podendo acompanhar de perto seu infatigável
e valente chefe, ainda não eram chegados; mais um instante só
e Inimá teria terminado ingloriamente a existência às
garras daquele feroz animal. Estava nas mãos de Itajiba o ver-se para
sempre livre de seu poderoso rival, sem que sua morte pudesse por maneira
alguma serlhe imputada. Mas tal pensamento nem por sombra lhe passou pelo
espírito, que a isso se recusava absolutamente seu coração
leal e generoso. Uma bem despedida seta partiu de seu arco e voou silvando
ao coração do monstro, que expirou estrebuchando em seu sangue.
Inimá levantou-se desfigurado e torvo, com o peito sangrento lacerado
pelas unhas da terrível canguçu. O peito lhe arquejava com violência
e seus olhos sanguíneos e desvairados procuravam Itajiba; apenas o
avista, grita-lhe com voz convulsa: — Bem lançada flecha, guerreiro!…
cumpriste com destreza o teu dever. Quando o canguçu acossado encontra-se
com o jaguar, este o mata, e oferece assim dobrada presa ao caçador.
O jaguar se refugia na toca do canguçu, onde o caçador o veio
surpreender. É pois forçoso agora que pelejemos. Miserável
forasteiro, que vieste trazer a zizânia e a discórdia a nossas
tabas, desta vez não me escaparás. Dize-me, insolente e traidor
imboaba, como ousaste roubar à taba do cacique essa virgem que te acompanha?
Contavas acaso conduzi-la a salvamento para o teu covil tenebroso?… Mas
tu vês; Tupá é justiceiro; foi ele que em seus ocultos
desígnios dirigiu para aqui meus passos, dando-me por guia essa fera,
que acaba de morrer às tuas mãos, como tu morrerás às
minhas em punição de teu infame atentado. E tu que fizeste,
desgraçada Guaraciaba, incauta pomba, que te deixaste enlear nos laços
da astuciosa serpente? como te animaste cobrir assim de vergonha e opróbrio
as cãs veneráveis de teu pai?… tu que eras o manitó
tutelar de nossa tribo, serás de hoje em diante a sua ignomínia,
e verás teu nome pronunciado com horror!…

A raiva, o pasmo, o ciúme de Inimá, vendo a sua adorada Guaraciaba
transviada e fugitiva por aqueles desertos em companhia de um estrangeiro,
que ele detestava, tinham-lhe ofuscado completamente o espírito, e
extinguido em seu coração todo o sentimento nobre, todo o instinto
de generosidade. Arrebatando um arco a um dos companheiros, que por fim vinham
chegando de tropel, embebe-lhe uma flecha e a dispara contra Itajiba, porém
com tal fúria e cegueira, que a flecha passou sibilando aos ouvidos
de Itajiba, roçou pelo cocar de plumas de Guaraciaba, que se achava
por detrás dele, e sem tocar em ninguém foi-se perder zunindo
lugubremente na profundez da furna.

Itajiba, que até aquele momento ouvira tudo com impassível
serenidade, e só tratava de guardar-se a si e a sua formosa companheira
da furiosa agressão do exasperado cacique, rompe enfim o silêncio:
— Inimá, brada ele, és um vil e um cobarde tu, que à
testa de tantos guerreiros não te pejas de insultar a um estrangeiro
só e sem outra defesa mais que as suas armas, e destilas de teus lábios
o veneno da calúnia contra a filha de teu chefe, contra uma virgem
adorável digna do respeito e do culto dos homens. És um vil
e um cobarde tu, que voltas tuas armas contra aquele que há poucos
instantes salvou-te a vida podendo te deixar morrer vilmente entre as garras
de uma fera…

Inimá espumando de raiva não o deixou prosseguir, lança-se
de um salto sobre Itajiba e atira-lhe um furioso golpe de tacape. Itajiba
destro como a onça desvia-se rapidamente dando um pulo para trás,
e com a faca em uma das mãos e o tacape na outra está pronto
e em atitude de pelejar.

Aquela caverna ia ser testemunha de uma luta tão feroz e sanguinolenta
como essa que Itajiba já tivera a sustentar ao chegar entre os Chavantes;
mas ah! desta vez ele não quereria morrer, pois o prendia com os mais
suaves laços ao mundo e à vida o amor da linda e inocente criatura
que ali se achava testemunhando todas aquelas cenas de horror. Entretanto
o combate era dos mais arriscados e desiguais; embora matasse Inimá,
Itajiba teria de travar-se depois com os cinco ou seis guerreiros da comitiva
daquele. Mas o ânimo não lhe franqueia, encomenda-se com mais
fervor que nunca à celestial protetora e resoluto aguarda novo ataque
de Inimá. Guaraciaba, porém, lança-se no meio dos dois
contendores, e voltando-se para Inimá com ar altivo e senhoril exclama:

— Detém-te, Inimá! que furor te cega? é com esse
procedimento atroz e indigno que esperas merecer um dia ter a teu lado, em
tua taba, a filha do nobre e valente Oriçanga? é assim que pretendes
tornar-te digno de comandar a heróica e generosa nação
dos Chavantes?… no furor insensato que te alucina, ousas lançar injúrias
e baldões contra a filha de teu chefe, e atentar contra a vida daquele
que a acompanha e protege por estas solidões! sabes acaso o motivo
que nos obrigou a procurar este abrigo, onde nos vieste encontrar? quem te
disse que fugimos oculta e traiçoeiramente da cabana de Oriçanga?…
Mas não é para contigo, Inimá, que devo justificar-me
desta singular ocorrência. Guerreiros, continua ela dirigindo-se aos
companheiros de Inimá, guiai-me a mim e a este estrangeiro às
nossas tabas e conduzi-nos à presença de meu pai; a ele e a
mais ninguém devo dar satisfação do meu procedimento.

Falando assim o peito de Guaraciaba ofegava de indignação,
seus olhos cintilavam como diamantes entre as sombras da caverna, e seu talhe
e colo elevavam-se garbosos como o da ema, rainha das campinas, quando irritada
se ergue contra aquele que pretende roubar-lhe o ninho. Em seu orgulhoso porte,
na altivez de sua nobre linguagem, revelava-se a descendente de heróicos
caciques, a verdadeira princesa das florestas. A estas nobres e severas palavras
de Guaraciaba Inimá sentiu gelar-se-lhe no coração toda
a sua cólera, e esteve a ponto de cair de rojo a seus pés suplicando-lhe
perdão; mas Itajiba ali estava, o orgulho o conteve e balbuciou apenas
timidamente estas palavras: — Perdoa-me, formosa filha de Oriçanga,
se te ofendi com minhas rudes falas; a cólera, o amor, o ciúme
me desvairam… Vai, gentil Guaraciaba , vai tranqüila recolher-te à
sombra da taba, onde sem dúvida teu pai te espera na mais ansiosa inquietação.
Mas esse vil forasteiro, que te acompanha, esse sedutor infame pertence-me;
há entre mim e ele um pleito de vida e morte, o qual é forçoso
que hoje mesmo fique decidido.

— Inimá, bradou ela com império, este estrangeiro acompanhou-me
por vontade minha, e deve comigo voltar às tabas. Itajiba, acompanha-me;
guerreiros, segui-me e guiai-nos à taba de meu pai.

Inimá, subjugado por aquelas imperiosas palavras, nada replicou;
receava mais a indignação daquela delicada virgem do que todo
o valor e destreza de seu audaz e intrépido rival. Comprimiu pois todo
o seu orgulho bem no fundo da alma, e acompanhou silenciosamente aos outros
sem nada compreender das intenções da filha de Oriçanga.
Mas aquela submissão e deferência já vinham tarde e de
nada já lhe podiam servir. A sentença do jovem cacique estava
irrevogavelmente lavrada no espírito de Guaraciaba.

CAPÍTULO VII – A VOLTA

Grande agitação e ansiedade reinava no arraial dos Chavantes.
Há muito que as sombras da noite tinham descido sobre a terra, e nem
Guaraciaba nem Itajiba, que desde pela manhã vagavam pelas florestas,
não apareciam.

Que grave acidente lhes teria sobrevindo, que assim os retinha à
noite pelos desertos? a tempestade tê-los-ia desorientado, e vagariam
perdidos pelas obscuras selvas sem acharem quem os guiasse às tabas?
ou talvez a cheia das torrentes tivesse arrebatado, o raio fulminado, ou as
feras devorado aqueles imprudentes e descuidados caçadores? ou talvez,
quem sabe? — e esta era a mais plausível e a mais cruel das conjecturas,
— talvez o astuto e fementido estrangeiro, tendo seduzido o singelo
coração de Guaraciaba, traindo infamemente as suas promessas,
pagasse a generosa proteção e hospitalidade que encontrara na
taba de Oriçanga, roubando-lhe a filha, último ramo de sua geração,
e única alegria e consolação de seus velhos dias? Entre
todas estas tristes apreensões se dividiam os espíritos preocupados
e inquietos com a estranha desaparição da filha do cacique,
e de seu hóspede. Já por ordem de Oriçanga grande número
de pessoas batiam as florestas por todos os lados à pista dos dois
amantes desgarrados ou fugitivos. E que ânsias, que dolorosas angústias
não dilaceravam o coração do idoso chefe, que se via
em trances de perder sua única e adorada filha, alegria e orgulho de
sua velhice! Desatinado e louco não parava um instante em parte alguma;
ora se assentava ao pé das cinzas de seu fogo extinto arrancando as
cãs, e proferindo imprecações; ora em pé à
porta da cabana olhava para todos os lados… a escuridão da noite;
escutava a todos os instantes… o silêncio das solidões; a cada
momento expedia mais um mais outro batedor para estes e aqueles sítios,
e já quase a tribo inteira, deixando desertas as tabas, percorria as
florestas em todas as direções em procura dos dois transviados.

Somente o velho Andiara parecia estar tranqüilo e pouco cuidadoso do
sucesso, que a todos preocupava. Esse sábio e experiente pajé,
que sabia ler no coração dos homens, bem tinha notado o ardente
e vivo amor que os dois jovens se votavam um a outro, e longe de condenar
esse amor e procurar estorvá-lo, ele o aprovava e aplaudia interiormente,
pois tinha em pouco apreço o jovem Inimá, que não julgava
digno do comando de sua nação, e concebera desde o começo
a mais sincera e profunda estima e admiração por Itajiba, e
tinha para si que ele seria capaz de elevar a nação ao mais
alto grau de poder e prosperidade.

Andiara pois, que observava e protegia os amores dos dois jovens, e que lia
claramente em seus corações, adivinhara o verdadeiro motivo
de sua demora, e procurando acalmar a inquietação do velho cacique
dizia-lhe: — Nada receies, Oriçanga, sobre a sorte dos dois jovens
passeadores. Sem dúvida procurando abrigar-se da tormenta, que os acolheu
longe daqui, asilaram-se no seio de alguma gruta, ou no côncavo de algum
velho tronco, e aí esperando que a tormenta amainasse, surpreendidos
pela noite adormeceram no sono descuidado da inocência, como duas aves
errantes, que ao cair das trevas pousam à sombra do primeiro tronco
que encontram em seu caminho.

Tranquiliza-te; Guaraciaba e Itajiba te amam e te veneram muito para te
fugirem traiçoeiramente. Eles se amam e Tupá vela sobre eles.

Enfim um murmúrio surdo começou a levantar-se na extremidade
das habitações, e brandões acesos ondearam através
da escuridão da noite. Um grupo de guerreiros avança pela frente
das tabas ao longo da margem do rio. No meio deles marchavam Guaraciaba e
Itajiba opressos de fadiga, mas com rosto tranqüilo e sereno. Atrás
do séquito um vulto silencioso e isolado seguia com ar sinistro; era
Inimá. Pelo caminho o séquito se engrossava cada vez mais e
agitava-se soltando grandes clamores. Estes clamores eram em grande parte
aclamações de alegria pelo feliz reaparecimento de Guaraciaba;
muitos deles porém eram também gritos ameaçadores e imprecações
contra aquele que eles julgavam ter desencaminhado e pretendido roubar deslealmente
a filha do cacique. Já os ânimos se amotinavam, e muitos guerreiros,
ignorando as circunstâncias daquele fatal sucesso, com gestos ameaçadores
estavam prestes a se lançarem sobre Itajiba. Felizmente chegaram sem
incidente algum à taba do velho cacique.

Guaraciaba saltou ao colo de seu pai, que a esperava à porta com
os braços estendidos e chorou de alegria apertandoa contra o peito.
Oriçanga ordenou que se retirasse a turba que se apinhava tumultuosa
à porta de sua cabana, e ficou com Guaraciaba e Itajiba.

— Querida filha, exclama ele, que mau espírito te desencaminhou
por essas selvas, e ia-te desgarrando da sombra da taba paterna?… Ah! quantas
angústias, quantos frios sustos não embebeste no coração
de teu velho pai, demorando-te assim até as horas mortas da noite entre
os perigos da floresta tenebrosa!… Esse estrangeiro, que te acompanha, por
que não te guiou ele mais cedo às nossas tabas? Oh! minha Guaraciaba,
por Tupá eu te peço, dizeme, não seria ele acaso quem
de propósito transviou-te procurando roubar vil e traiçoeiramente
a minha filha, único bem que o céu ainda me conserva, a Inimá
a esposa que eu lhe tinha prometido, e à tribo o último ramo
de um antigo e ilustre tronco de heróis já quase extinto?…
Ai dele se tal era seu louco intento! por enorme e cruel que seja não
haverá castigo que seja excessivo para punir tão nefanda traição.

— Tranqüiliza-te, meu pai, atalhou Guaraciaba, nem eu nem Itajiba
cometemos crime algum, nem praticamos ação de que possamos nos
envergonhar diante de ti. Eu vou contar-te fielmente a história dos
acontecimentos que nos detiveram na floresta até estas horas, e se
ainda me acreditas, meu pai, verás que somos inocentes e nos perdoarás.

Então Guaraciaba, com a franqueza e ingenuidade de uma alma pura,
referiu-lhe por miúdo o seu descaminho, a tempestade que os assaltou
e os obrigou a procurarem refúgio dentro de uma furna; pinta-lhe com
calor e vivacidade, como quem se achava ainda sob a impressão dos acontecimentos,
as terríveis cenas que ali tiveram lugar, e por fim em tom grave e
triste acrescentou estas palavras: — Agora, pai querido, forçoso
é revelar-te um sentimento, que não devo ocultar-te por mais
tempo; ah! e quanto me custa fazê-lo, pois sei que vou magoar-te o coração.

— Filha, se para repouso de teu coração é preciso
que me faças essa revelação, fala, que estou pronto a
ouvirte, embora isso deva doer-me como uma seta envenenada.

— Perdoa-me, meu pai, se vou de encontro às tuas vistas a meu
respeito; mas devo hoje declarar-te com franqueza, eu não devo jamais
ser esposa de Inimá.

— Que dizes, filha? pois queres que eu falte a minhas sagradas promessas?
— Mas, meu pai, se esse que destinais para meu companheiro e que deve
substituir-te no comando da tribo, tornar-se por suas ações
indigno dessa hora, se procede como um vil e vai deslustrar teu nome e tua
geração, desde esse momento estás desligado de tuas promessas.
Desde o berço ouço falar que sou destinada a Inimá, mas
posto que não lhe tivesse repugnância, contudo nunca ao seu nome
palpitou-me o coração, nem suspirou por essa união. Hoje,
porém, tudo mudou-se; sua presença me importuna, seu amor me
atormenta, e essa união, com que me acenam, tornou-se para mim uma
ameaça de morte. Se é a sucessão no governo da tribo
que ele ambiciona, dá-lha, meu pai, mas dá-lha sem mim, que
de bom grado a ela renuncio, e nem aspiro a outra felicidade senão
a que é dada pelo amor.

— Pelo amor! e acaso amas tu alguém, que não seja Inimá?
— Ah! meu pai! desde que meus olhos viram Itajiba, meu coração
voou para ele.

— Oh! sim! meu coração parece-me que já tinha
adivinhado esse fatal desvio de tuas afeições… e não
te envergonhas de amar um estrangeiro foragido, que o acaso arrojou em nossas
praias? — Não, meu pai; antes me ufano disso e me desvaneço
de ser por ele amada, pois que esse estrangeiro é um herói.

— Ah! Guaraciaba, minha querida, raio de luz que me alumias os tenebrosos
caminhos da vida, flor mimosa que embalsamas com teus aromas minha taba solitária,
em que cruel ansiedade vem colocar-me o teu imprudente amor! Devo eu despedaçar
teu coração contrariando tuas afeições, e impondo-te
um jugo que detestas? Ah! não; amo-te muito para poder fazê-lo.
Mas posso eu sem quebra de minha lealdade iludir as esperanças por
tão longo tempo alimentadas do jovem cacique, e faltar vergonhosamente
a meus sagrados compromissos?… nunca; antes a morte do que um tal opróbrio.
Minha mente vacila incerta entre esses dois tremendos escolhos. Só
a voz inspirada dos pajés que sondam os arcanos do porvir e interpretam
a vontade do céu, poderá guiar-me na penosa escuridão
do meu espírito. Amanhã, ao primeiro canto das aves na floresta,
eu os farei chamar na minha taba, e com seus sábios conselhos eles
me inspirarão por certo o modo mais acertado de proceder em tão
difícil conjuntura. Entretanto, cara filha, vai repousar das fadigas
e tribulações deste mal-agourado dia, enquanto eu velo sobre
tua sorte meditando os meios de torná-la feliz.

Inimá de volta às tabas, das quais vivia retirado desde o
dia em que trouxera Itajiba moribundo à presença de Oriçanga,
foi minuciosamente informado por seus amigos de tudo que nelas ocorrera durante
a sua ausência. A pretendida origem e nacionalidade de Itajiba, as singulares
aventuras de sua vida, que já andavam de boca em boca, seus oferecimentos
e a pretensão que manifestara de ser adotado na tribo, o agasalho e
cordial hospitalidade que encontrara na cabana do cacique, a viva simpatia
e interesse que inspirara a Guaraciaba, seus passeios e caçadas quotidianas
pelas selvas vizinhas, a cega condescendência de Oriçanga e a
proteção não disfarçada de Andiara para com os
dois amantes, tudo isso foi sabido nessa mesma noite por Inimá entre
transportes de indignação e furor.

As coisas tinham tomado uma fatal direção, que ele no fundo
de suas selvas estava bem longe de adivinhar.

Naquele mísero estrangeiro, que derrubara a um golpe de seu tacape,
e a quem de propósito procurara poupar a vida a fim de tornar mais
solene o seu triunfo sacrificando-o no dia de suas bodas, via surgir um temível
e poderoso rival a suas ambiciosas esperanças de amor e de poder. Inimá
bem o compreendeu, e tratou desde logo de estorvar por todos os meios o progresso
da fortuna daquele audaz aventureiro. Entregue à raiva e ao ciúme,
que lhe envenenava o coração, perturbava-lhe o espírito,
andava de taba atiçando o ódio e a zizânia, concitando
os ânimos dos Chavantes já predispostos pelos acontecimentos
do dia contra Itajiba, ao qual pintava como um embusteiro, um enviado dos
imboabas, que viera astutamente insinuar-se entre eles para entregá-los
traiçoeiramente aos seus perseguidores.

Comentando os acontecimentos mostrava-lhes como o ardiloso forasteiro, para
chegar a seus fins, com fingida humildade e submissão conseguira captar
a benevolência do velho e crédulo cacique, e procurara com suas
artes infernais seduzir sua filha para dela fazer um instrumento de suas abomináveis
maquinações e planos de traição. Fazia-lhes ver,
também, que Oriçanga, a quem o peso dos anos tornara imbecil
e caduco, com suas imprudentes complacências, com sua estulta credulidade,
deixava o campo inteiramente livre às pérfidas maquinações
do astuto forasteiro; que eles Chavantes nada podiam esperar mais de um chefe
que a idade tinha tornado idiota a tal ponto, que via sem indignação
sua filha entregar-se sem reserva a uma vergonhosa paixão pelo ignóbil
forasteiro, que sem injúria e desonra da briosa nação
dos Chavantes não podia nem mais um dia permanecer vivo entre eles.
Quanto a si, Inimá considerava-se instrumento escolhido por Tupá
para destruir os sinistros planos e punir a audácia do estrangeiro;
os acontecimentos até ali ocorridos bem o estavam revelando, e ele
contava com o valor e dedicação de seus bravos companheiros
para ajudá-lo a bem desempenhar sua missão.

Estas falas apaixonadas de Inimá caíram nos ânimos de
grande parte daqueles selvagens como a chama lançada em tórridas
macegas nos ardentes e ventosos dias de Agosto. Os amigos de Inimá
protestavam alto e bom som, que na aurora seguinte haviam de arrancar da taba
do cacique o traidor estrangeiro, arrastá-lo por diante das tabas,
arrancar-lhe os olhos e a língua, e atirá-lo no fundo do rio
com uma pedra atada ao pescoço.

Também Itajiba por sua parte já contava entre os Chavantes
não pequeno número de camaradas dedicados, dos quais soube granjear
a estima e afeição por seu caráter naturalmente bom e
generoso, e a quem por seus atos de valor, por sua força e destreza
inexcedíveis, inspirava respeito e admiração. Estes o
defenderiam com ardor a todo o trance, e se oporiam resolutamente à
execução do plano atroz de seus inimigos.

Os espíritos divididos se irritavam, e a noite, que se passou quase
toda sem dormir em roda das fogueiras em calorosas altercações,
parecia pressagiar para o dia seguinte graves e temerosos acontecimentos.

Veja também

Os Reis Magos

PUBLICIDADE Diz a Sagrada Escritura Que, quando Jesus nasceu, No céu, fulgurante e pura, Uma …

O Lobo e o Cão

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Encontraram-se na estrada Um cão e um lobo. …

O Leão e o Camundongo

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Um camundongo humilde e pobre Foi um dia …

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.