O Matuto – Franklin Távora

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Franklin Távora

Capítulo I

Pasmado é uma velha povoação, outr’ora aldeia
de índios, duas léguas ao norte de Iguarassú, na estrada
de Goiana. É célebre por seus ferreiros, ou mais especialmente
pelas facas de ponta que estes fabricam, as quais passam pelas melhores de
Pernambuco onde têm estendida e tradicional nomeada. Não há
terra que se não distinga por usança, defeito, qualidade ou
particularidade local, que vem a ser o seu como traço característico,
a sua feição dominante. Quem passa por Tigipió, na estrada
de Jaboatão, encontra a cada canto tocadores de viola que vêm
alegres, e pé no mato pé no caminho. Dos casebres do Barro o
que logo se mostra aos olhos do viandante são mulheres metediças,
com as cabeças cobertas com flores, os cabeções arrendados
e decotados, os seios quase de fora. Costumes dos povoados onde ainda não
tiveram grande entrada o trabalho e a instrução.

Passando-se por Goiana ouve-se daqui uma trompa, dali um baixo, adiante um
pistom, além um trombone, uma clarineta, uma flauta, um assobio, uma
harmonia ou uma melodia qualquer, e não se vê sala nem corredor
que não tenha nas paredes uma, duas ou três ordens de gaiolas
com passarinhos cantadores e chilreadores. Há ai o instinto musico
da Bohemia.

Quem atravessa Pasmado pela primeira vez, tem a ilusão de que todas
as arapongas da mata próxima estão ali a soltar seus estrídulos
acentos. Mas logo vê homens tisnados batendo com o martelo sobre a bigorna,
foles assopradores, carvões ardentes e flamejantes. Então a
ilusão muda. O que parece é que todas as forjas de Vulcano foram
transportadas para aquele imenso laboratório de instrumentos mais destruidores
do que conservadores da vida e do sossego alheio.

Neste particular, o de ser largo e opulento mercado de armas malfazejas,
talvez Pasmado só possa contar em todo o império brasileiro
uma rival – a côrte do sobredito império, na qual a navalha do
capoeira disputa a primazia, em gênero, numero e caso, á faca
do matuto do norte. A côrte e a província neste ponto cortam-se
bem. Uma não tem que falar da outra. No que Pasmado se parece com todos
os velhos povos, é em ter casas esburacadas; entulhos e matos pelo
meio das ruas; aqui uma baixa, ali um barreiro, onde, de inverno, coaxam os
sapos dia e noite, respondendo á vozeria desentoada dos seus semelhantes
que moram nas moitas formadas por dentro dos largos, sem licença nem
proibição da municipalidade. A rua mais pública e principal
da povoação é aquela por onde corre a própria
estrada. Perto ficam os olhos-d’água nativa onde os moradores
vão prover-se da de que precisam, quando não aparam, por sua
comodidade, como costumam, em potes e gamelas a que cai das biqueiras da casa
durante as chuvas. O certo é que, ou indo busca-la nas fontes ou aparando-a
na porta da casa, não curtem sede os moradores de Pasmado dias e noites,
ainda de verão, como curte a pobreza deste esplendida e orgulhosa cidade
– primeira capital da América do Sul.

Em um rancho ou garapeira que se via algumas dezenas de passos antes da povoação,
estavam reunidos, por uma noite de 1706, á roda de um fardo de fazendas,
vários matutos que voltavam do Recife, onde tinham ido vender algodão.
Entre eles havia dois almocreves das proximidades de Goiana, um por nome Francisco,
o outro Victorino.

O rancho não era mais do que o prolongamento da garapeira, com a qual
tinha comunicação interior. Era, como são tais pontos,
apenas envarado até meia altura e coberto de telhas. De um lado estava
a longa manjedoura em que os cavalos dos rancheiros passavam a noite aproveitando,
de mistura com alguns pés de capim, cortados de tarde, os talos e retraços
que nela tinham deixado os cavalos dos rancheiros na noite anterior. Do outro
lado o alpendre mostrava-se inteiramente livre, como convinha, a fim de terem
os hospedes espaço para as suas redes, que eles armavam de um enchamel
para outro, e donde a qualquer hora da noite podiam ver os seus animais alguns
passos de distância, comendo se havia o que, ou estudando como muitas
vezes acontecia. O dono da garapeira, responsável pela segurança
dos animais, fechava as portas do puxado quando via os rancheiros recolhidos,
e só reaparecia ai de madrugadinha para receber destes a respectiva
paga. Muitas vezes, estava ele ainda deitado quando ouvia uma voz que lhe
dizia:

– Aqui fica o dinheiro, seu Ignacio.

Era a voz do rancheiro, o qual punha por baixo da porta a quantia devida.
Nunca nenhum se ausentou sem ter primeiro cumprido o seu dever, com a proverbial
probidade do matuto e do sertanejo do norte.

No tocante ao traje, ver um dos matutos era o mesmo que ver os demais. Camisa
por cima de ceroulas de algodão – eis em que ele consistia.

Todos tinham os pés nus, e quase todos por cima do cós das
ceroulas o longo cinto de fio, cofre portátil onde traziam o dinheiro,
terminando em cordões com bolotas nas pontas, os quais serviam para
dar muitas voltas em torno da cintura antes do laço final. Metida entre
o cinto e o cós guardava cada um sua faca de ponta presa pela orelha
da bainha. Da arma só aparecia o cabo, figurando a cabeça de
uma serpente que tinha o restante do corpo oculto.

Já era noite, e dentro do rancho lançava crepuscular claridade
o candeeiro de azeite, que pendia, por uma corda corrediça, de um dos
caibros da coberta.

Alguns dos rancheiros estavam com as mangas arregaçadas como se foram
prestes para entrar em pugilato de vida e morte.

E de feito não era de outro gênero o mister ou a luta que os
ajuntara ali, uns de pé, outros inclinados sobre a barriga, todos com
as vistas concentradas na superfície do fardo, onde uma taboa se pusera
para servir de base a dois braços diferentes que nesse momento se alçaram
e logo após se uniram pelas mãos, ficando firmes sobre os cotovelos.
Um dos pegadores da queda-de-braço chamava-se Manoel Francisco; o outro
era o Victorino. A queda-de-braço era já nesse tempo em grande
uso entre os almocreves do norte.

Manoel Francisco era acaboclado, feio, baixo, grosso e reforçado;
Victorino procedia de mulata e mameluco, era seco,, nervoso e de semblante
bem assombrado.

– Sustenta o motivo, Mané Francisco, senão Victorino te lambe
– disse um dos circunstantes, quando viu os braços inimigos se entesarem
e ouviu o fardo ranger aos primeiros ensaios das duas forças que se
experimentavam e mediam para uma grande luta, posto que dentro de acanhada
arena.

– Este braço que estão vendo – respondeu Manoel Francisco –
tem botado abaixo enquanto o inimigo esfrega um olho, muito curema rebingudo
das ribeiras do Ceará e do Piauí.

– Agora é que havemos de ver ele para quanto presta, e se tudo isto
o que você está dizendo não passa de uma história,
retorquiu Victorino. Quando quiser cair, diga.

– Se você é homem, mostre agora o seu talento – replicou Manoel
Francisco, retesando o braço, como quem queria entrar sem detença
no momento decisivo.

Pegaram-se definitivamente os dois atletas.

O braço de Manoel Francisco dava dois do de Victorino; mas a resistência
que encontrou neste, fez que não passasse nem uma linha da posição
em que de principio se colocara. Eram duas pirâmides pétreas,
imóveis, inabaláveis, uma talhada para competir com a outra
na rijeza e na resistência.

A queda-de-braço tem graça justamente quando os lutadores medem
forças iguais. Dá-se então o que é natural de
pleitos idênticos. Dividem-se as opiniões sobre a probabilidades
da vitoria. Uns, levando em conta as condições físicas
dos combatentes, não hesitam em decretar, para o que lhes parece mais
favorecido de tais circunstancias, as honras da peleja; outros publicam que
essas honras hão de caber, não a este mas àquele contendor,
autorizados por precedentes ou por outros muitos elementos de indução
e convicção. Fora da arena dos pelejadores reais, forma-se uma
arena em que começam de porfiar os assistentes á pugna, discutindo,
altercando, apostando cada qual pelo que supõe ter por se mais probabilidades
para o vencimento.

Foi o que se deu no rancho logo depois de se terem colocado defronte um do
outro, ficando o fardo de permeio, o Victorino e o Manoel Francisco.

Ao cabo de alguns minutos, que bastaram a trazer os contendores cobertos
de suor pelo esforço despendido, e antes deste pelo brio empenhado
no jogo de honra, disse um dos rancheiros:

– Já você está sabendo, Mané Francisco, que o
Victorino não é quem você julgava.

Ora que tem isso? retrucou o que se achava mais próximo do que acabava
de falar. Ha de cair como os outros; não há santos que o acudam.

– Deixe-se disso, Renovato, deixe-se disso. Você não vê
que ambos eles são dois cabras de talento?

Sim, é verdade; mas você não dá o desconto. Olhe
que Mané Francisco já tinha pegado com Damião e Thomaz,
e a todos botou por terra.

– Ele me botou, é verdade – acudiu Thomaz despeitado; mas de outra
feita talvez não tenha a mesma felicidade. Olhe como o braço
já lhe está tremendo, batido por Victorino.

– Aquilo é um peneirado que ele sabe.

– Sustenta o motivo, Mané Francisco – gritou Damião ao que
minutos antes o tinha derribado.

– A coisa está feia. O que cair para a aguardente.

– E o rancho.

– Está dito.

Caiu, caiu, Mané Francisco! Gritaram neste ponto muitas vozes, formando
uma algazarra imensa, que repercutiu fora do alpendre.

– Ainda não, ainda não – retorquiram outros no mesmo diapasão.

– Não foi mais do que uma negaça. Vejam lá como se levanta.

De feito o caboclo, depois de derreado quase inteiramente o braço,
o levantara lentamente até á altura em que se achavam no começo
da luta: mas dai não passou.

– Quem vence? perguntou um, logo que viu novamente restabelecidas a indecisão
e a duvida.

Nenhum vence – respondeu Francisco. Está visto que Mané Francisco
e Victorino têm as forças iguais.

– Não, senhor. É preciso ir até ao fim. Um deles há
de poder com o outro.

– Não, não; disseram alguns da opinião de Francisco.
Têm as forças iguais, está acabado.

Eu não me levanto se Victorino não se levanta – disse Manoel
Francisco a modo de contrariado por ter encontrado no contendor força
com que não contara. Eu não me levantarei senão depois
da sua queda – respondeu Victorino sem se alterar, antes com evidente serenidade.

– Levantam-se ambos, que já é tarde, e vem por ai o Valentão-do-Timbaúba.

O Valentão-do-Timbaúba! exclamaram os rancheiros, pondo-se
de pé, inclusivamente os dois lutadores, que se separaram e com a vista
percorreram como sobressaltados todo o âmbito do alpendre.

– Quem disse que ele vem ai? perguntou Victorino.

– Digo eu – respondeu Francisco. Por isso é preciso estar preparado
para o receber.

Se vier, há de encontrar gente. Somos onze. Não há de
chegar um pedacinho dele para cada um de nós.

Pelo sim, pelo não – disse Thomaz – vou pôr nova escorva na
minha espingarda. Vendo Thomaz encaminhar-se para o lugar onde estava encostada
a arma a que aludira, Francisco rindo, atirou-se dentro da rede e disse aos
companheiros ainda sobressaltados:

– Qual valentão, nem meio valentão! Rezem-lhe pela alma.

– Ele morreu?

– Morreu, sim senhor, e ficou bem morto.

– Você está gracejando, Francisco.

– Estou falando serio. Vou contar como o caso foi.

O Valentão-da-Timbaúba era um malfeitor que por aquele tempo
cometi roubos e assassinatos na redondeza de muitas léguas de Pasmado.
Esta alcunha foi-lhe dada pelo povo. Seu nome era Valentim. Não teve
a fama extensa do Cabeleira, ao qual foi muito inferior na índole natural,
na coragem e no físico; mas no pequeno teatro das suas façanhas
adquiriu tamanha celebridade, especialmente nos ranchos, que de seu nome e
feitos ainda hoje restam ai lembranças enlutadas.

Era mais ladrão do que assassino; usava primeiro o subterfúgio,
o laço, a astucia, que a arma mortífera; mas, quando a manha
não bastava, ou quando era surpreendido antes do resultado em que pusera
a mira, então o encontravam facinoroso, cruel. Esfaqueava, matava,
contanto que se apossasse do alheio que excitará a sua cobiça.

Era cabra-negro, magro, anguloso. Tinha os olhos vermelhos, as orelhas largas,
o queixo fino, a barba espalhada e carapinha. Havia nele alguma coisa do vampiro.
Mas a voz, que aliás era áspera e estridente, ele adocicava
e abemolava por tal jeito que quem o não conhecesse, o teria por inofensivo
e lhe daria esmola se ele a pedisse, o que muitas vezes praticou para se disfarçar.

Em luta pessoal com outro valentão, recebera deste uma facada no olho
direito. De outra vez levou-o ás portas da morte um tiro que lhe desfechará
sobre a perna esquerda certo sertanejo, a quem roubará objetos de valor,
e de cujas mãos conseguiu escapar, não obstante o ferimento.
Resultou destes desastres ficar torto e coxo, o que se por um lado lhe diminuiu
as faculdades do movimento e da inspeção, lhe aumentou pelo
outro os meios e pretextos de iludir e explorar a credulidade dos transeuntes.

Morava ele em uma palhoça que distava três a quatro léguas
de Maricota, obscura povoação que o forte combate de que em
1848 foi cenário, entre as forças praieiras e as do governo,
tornou ilustre e histórica.

Valentim levantará de intenção sua morada naquelas alturas
para comodidade nos seus latrocínios.

O comboio que por ali passava duas ou três horas antes do pôr
do sol, tinha de sujeitar-se a uma destas duas alternativas: ou pedia rancho
na própria casa do malfeitor e pagava caro a hospedagem, deixando de
ordinário um cavalo, uma saca de lã, uma barrica de açúcar
ou de bacalhau, que no dia seguinte nenhum esforço, por maior que fosse,
era bastante a descobrir; ou ia descarregar adiante; á sombra de alguma
arvore, e o tributo vinha a ser mais pesado ainda do que o primeiro, visto
que, por escusas veredas, o ladrão ia ter ao rancho, e em vez de um,
trazia dois ou três cavalos, duas ou três sacas, enfim muitos
objetos de grande valor. Valentim vingava-se com usura de quem procurava escusar-se
ao tributo que ele cobrava no deserto.

É curioso o estratagema que ao principio usava para enganar a vigilância
e a simplicidade dos rancheiros.

A’hora que conjeturava estarem todos já deitados, aparecia no
pouso sorrateiramente e com voz melíflua e vagarosa dizia estas palavras,
que eram há bem pouco tempo tradicionais naqueles caminhos:

– Coitados dos comboieiros! Como estão enfadados!

Assim falando e repetindo sempre com razoáveis intervalos, estes fingidos
e traiçoeiros dós, metia-se por entre as redes dos rancheiros,
muitas vezes passando de leve a mão esquerda por cima deles, enquanto
com a direita apanhava muito naturalmente as esporas ou a faca aparelhada
de prata, a maca onde vinha o melhor fato e alguma vez jóias preciosas
e dinheiro, o relógio, que descansava sobre uma mala, o gibão
novo que estava pendente do galho da arvore ou do punho da rede.

Tal era aquele cujo fim trágico Francisco se propôs contar aos
companheiros.

Para melhor ouvirem a narração, reuniram-se os matutos ao pé
do narrador, uns fumando em cachimbos de barro, outros comendo da matalotagem
que traziam em mochilas de algodão ainda hoje em uso entre esta espécie
de gente por ocasião de suas jornadas.

Capítulo II

Francisco principiou assim:

– O sol estava a sumir-se, quando ouvimos, já arranchados ao pé
da oiticica ramalhuda, que fica adiante da casa de Valentim obra de duas léguas,
uns gemidos e uns queixumes que cortavam o coração a quem os
escutava.

– Quem me socorre? Cristãos, filhos de Deus, acudi-me – dizia a voz:
Ai que dor! Não tenho quem me meta a vela na mão. Ai que morro
neste mato sem ter quem me chame pelo nome de Jesus.

Seu sargento-mór João da Cunha, com quem eu vinha de Goiana,
e que era o dono do comboio, – se por informações, ou por prevenção,
não o sei bem dizer, viu logo no afligido um velhaco; e quando, assim
que chegou aonde nós estávamos, arrastando-se com muito trabalho
e gemendo sempre, ele lhe pediu, com voz sumida um lugar entre os arreios
para passar a noite junto de quem o pudesse ajudar na hora de morte, reconheceu
no pobre o Valentão-da-Timbaúba. Todos nós o reconhecemos
também pelo olho furado e a perna quebrada.

– Estou pronto a consentir que você pernoite entre nós, mas
há de ser com uma condição, – disse-lhe seu sargento-mór.
Valentim respondeu: Farei tudo o que vossa senhoria ordenar, contanto que
me deixe morrer entre filhos de Deus.

Você há de dormir amarrado pelas mãos do Francisco debaixo
de minhas vistas no tronco desta oiticica.

– Ai meu senhor! tornou Valentim. Compadeça-se do pobre enfermo. A
ninguém ofendi nesta vida para merecer tanta crueza.

– Se não lhe serve a condição, vá morrer longe
daqui enquanto é cedo.

A estas palavras de seu João da Cunha, Valentim afastou-se do lugar
sem mais demora, gemendo mais do que dantes. Todos nós fizemos tenção
de não pregar olho essa noite, mas o enfado da viagem tinha vencido
a todos algumas horas depois. Só quem não dormiu foi seu sargento-mór,
que para fazer crer que estava deitado, mandou pôr dentro da rede dele
um surrão carregado, e junto dela, entre duas caixas de fazenda, se
sentou escondido como quem fazia tocaia a veado, esperando pelo ladrão,
com o bacamarte armado, por cima da caixa que lhe ficava na frente.

Quando foi lá pelas tantas, um vulto veio tomando chegada pé
ante pé. Estava nu da cintura para cima. Tinha as calças arregaçadas
e trazia uma arma de fogo na mão. Quando o ladrão ia a por a
mão no cabresto de um dos animais que estavam comendo milho nos embornais
defronte da oiticica, seu sargento-mór desabrochou-lhe fogo. Todo o
rancho acordou atordoado e ganhou mão das armas. Eu fui o primeiro
que corri ao ponto onde estavam os animais. Faltava um, e o ladrão
tinha desaparecido. Seu sargento-mór ficou muito zangado com a perda
do seu cavalo, e ainda mais por Ter errado o tiro. Mas que se havia de fazer?

– Gosto de um cabra danado assim como o Valentim! disse um dos matutos que
ouviam a narração.

– É verdade, disseram outros. Fez o que quis, e acabou antes do amanhecer.

Sim, mas, quando amanheceu – prosseguiu Francisco – e se viu o rastilho de
sangue que ele foi deixando pelo caminho afora, seu sargento-mór mandou
que eu e Mameluco, seu pagem de confiança, montássemos nos melhores
cavalos e lhe fizéssemos companhia, guiados pelo rastilho, em busca
do Valentão.

O comboio seguiu para o sul, e nós tiramos para o poente. Pouco adiante
o rastilho perdeu-se no mato; mas nós entramos por ele, e fomos dar
em um riacho.

Ai, bem na beira, debaixo de uma emburana, estava o cabra.

– Acaba de matar este negro! Disse seu sargento-mór a Mameluco.

Mas, não foi preciso fazer nada mais. Valentim estava morto.

Assim acabou o Valentão-da-Timbaúba. Podemos, por isso, dormir
todos sem susto que ninguém mais nos há de vir inquietar durante
a noite. Tomando o conselho de Francisco, que, por sua idade e prudência,
parecia exercer sobre os companheiros legitima influencia, tranqüilos
e serenos estes meteram-se em suas redes e pouco depois estavam ressonando
profundamente.

Como visse o rancho em silêncio, o velho Ignacio apagou o candeeiro
e retirou-se a seus aposentos, não sem ter primeiro fechado todas as
portas, com excepção da de entrada, que de costume ficava sempre
aberta para a qualquer hora da noite se recolherem os viageiros que não
podiam chegar mais cedo.

Não havia luar, mais a noite estava clara. As estrelas cintilavam
com a luz suave que elas têm no deserto ou nos lugares onde não
há, para quebrarem sua branda claridade, as iluminações
publicas.

Seriam nove horas quando de junto das cangalhas e cargas que estavam atiradas
a um canto de rancho, rumor suspeito se fez ouvir distintamente por Francisco
a quem ainda o sono não tinha dado a respirar os seus deliciosos narcóticos.

Francisco era prevenido, e armará a rede perto da entrada que estava
livre. Ouvindo o ruído e tendo certeza de que pela porta donde ele
guardava, como cão fiel, a casa adormecida, não pressentirá
entrar ai viva alma, sentou-se tão cautelosamente como pôde na
rede, e dai volveu vistas perscrutadoras ao lugar donde lhe chegavam os sons
suspeitos. Não fossem resultado a sua inspeção. Um vulto
rastejava por entre os objetos lançados a esmo no fundo do alpendre.

Quem era? Por onde entrará quem quer que era?

Estas interrogações apresentaram-se logo no espirito do matuto,
que por impressão de natural superstição julgou ver na
forma vaga e indecisa que se agitava sorrateiramente, senão o Valentão-da-Timbaúba,
ao menos o seu espectro ou a sua alma malfazeja.

O vulto semelhava um cão e, a uso deste animal, andava sobre quatro
pés, posto que lentamente, acusando a intenção de iludir,
pela brandura dos movimentos, o sono dos incautos.

Francisco, depois de detida observação, convenceu-se enfim
de que o desconhecido era vivente e arrastava consigo um volume tirado da
bagagem comum.

Então todos os espíritos, um momento esmorecidos e vacilantes,
voltaram a Francisco por ventura mais fortes e viris que dantes. Quem estava
ali não podia ser senão um ladrão, um sucessor de Valentim
no ignóbil e torpe oficio de defraudar os inofensivos viageiros, justamente
quando, em lugar ermo e estranho, mais direito tinham á boa hospedagem
dos moradores.

Desceu-se de manso e manso da rede, armou-se cum sua faca que ele tinha metido
entre as pontas de uma ripa, que vinha morrer no portal mais próximo,
e em vez de ir no encalço do desconhecido quando este desapareceu por
traz de um montão de cangalhas, rodeou por fora a garapeira, e correu
ao seu encontro do lado da cavalariça na altura em que presumiu teria
ele de sair.

Este não se fez esperar; e o matuto calculara com tanta exatidão
a distancia que se metia entre se e ele, que foi inclinar-se ao pé
da própria abertura do envaramento por onde em menos de um minuto o
estranho visitante poz a cabeça de fora.

Cair-lhe então com as mãos sobre o pescoço, tendo a
faca atravessada na boca, foi ação que Francisco obrou em um
abrir e fechar d’olhos.

– Damião, Victorino, seu Ignacio, acudam cá sem demora, que
o cabra está pegado, e bem pegado! gritou o matuto com quantas forças
tinha em si.

Um tiro que se tivesse desfechado subitamente naquele ponto, não produziria
tão grande arruido e sobressalto como a voz de Francisco alterada pelo
inopinado do acontecimento e pelo esforço usado contra o desconhecido.

Tontos do sono e da surpresa, apresentam-se os rancheiros prontamente no
lugar da ação. Enquanto uns rodeavam a casa, outros passavam
do outro lado através das varas. Este vem com a faca descascada, aquele
com a pistola armada, seu companheiro com a catana, o outro com o facão,
prestes todos eles a cair sobre o invasor.

Entretanto o ladrão, quase todo de fora, não obstante a força
empregada por Francisco para o Ter seguro entre os pés dos enchameis,
debatia-se com tal violência e animo, que nas mãos de outrem
que não fora Francisco, já teria logrado escapar-se.

Senão quando apresenta-se o dono da garapeira, trazendo acesa a candeia
da sua serventia. O ladrão já safo e de pé lutava corpo
a corpo com Francisco, despendendo hercúleos esforços a fim
de fugir de suas unhas.

Quando a luz esclareceu o recinto do conflito, geral foi o espanto dos circunstantes.

Olhando para seu contendor, Francisco sentiu-se cobrir de vergonha e tristeza.
Aquela luta ingente tinha sido sustentada com ele por um rapazito que não
representava mais de doze anos.

Entretanto estava ali um Hércules. Aquele braço teria botado
abaixo os de Manoel Francisco e de Victorino reunidos, visto que tinha podido
com os de Francisco, que era apontado em todos os ranchos, desde Goiana até
o Recife, como o primeiro pegador de queda-de-braço daquelas alturas.

– Lourenço! Demônio! Ladrão sem vergonha! Exclamou enfurecido
o velho Ignacio, os olhos postos no ator principal daquela cena de desordem
e escanlado. Quando quererás entrar no bom caminho, coisa ruim e desprezível?

Soltem-me. Quero ir-me embora – respondeu Lourenço, rugindo de raiva,
e revolvendo-se entre os braços dos matutos a quem Francisco o tinha
abandonado logo que reconheceu nele os anos infantis que na escuridão
o fizeram ter por forte e varonil atleta.

Que menino! disse Francisco, correndo-o com a vista de cima a baixo. Tem
força que nem um touro.

Assim é que eu gosto de ver um cabrinha bom – disse Victorino. Sem
pau nem pedra está dando que fazer a todos nós.

De feito Lourenço atirava-se ora para um, ora para outro; investia
contra este; atracava-se com aquele, por fugir do circulo em que o tinham
como encurralado os rancheiros.

– Isto é o demônio do Pasmado – acrescentou Ignacio. Não
há por aqui quem não tenha o que dizer desta perversa criatura.
Eu, que sou eu, tenho-lhe respeito, porque, mais dia, menos dia, se não
lhe tiverem mão, virá a melar o Valentão-da-Timbaúba.

– Soltem-me, deixem-me passar, senão mato a um – disse Lourenço,
já fatigado, mas cada vez mais enfurecido da resistência que
se opunha à sua vontade serpentina.

– Pega nele, Victorino – disse Francisco. Quero leva-lo comigo para casa.
Quero ensina-lo hei de aproveitar-lhes as forças no cabo do machado
e da enxada. Há de dar para um perfeito homem do campo. Assim os pais
estejam pelo que eu quero.

– Pai foi coisa que ele não conheceu – observou Ignacio.

– E mãe? Perguntou Francisco.

A mãe era a Bilóca, falecida há dois para três
anos. Esta oncinha, que já então tinha mostrado para quanto
havia de dar, quebrando as pernas dos cachorros a pedradas, furando com o
espeto quente os porcos de casa a ver se lhes derretia o toucinho, segundo
ele mesmo dizia, e pondo carvões abrasados na rede onde dormia um irmão
menor que veio a morrer desta e de outras malindades, ficou depois da morte
dela ao desamparo. Tantas tinha feito, que não houve aqui alma caridosa
que não temesse te-lo perto de si. O mais compadecido de todos os moradores,
a velha Aninha, recolheu-o um dia em sua palhoça. Pelo correr da noite
acordou debaixo de labaredas. Lourenço tinha posto fogo na casa da
velha.

Desde então todos fogem dele, até o vigário que ao principio
foi muito por ele e lhe deu de comer e de vestir. Lourenço vive agora
vagando pelas ruas judiando com os animais, furtando e roubando, como vocês
acabam de ver.

– Este menino só enforcado pagará o mal que tem feito – disse
Damião.

Pois se ninguém o quer, levo-o eu comigo. Faço esta obra de
caridade, e fico bem satisfeito com isso, porque ele suprirá a falta
que tenho de um filho para me ajudar. Queres ir comigo, Lourenço? Perguntou
Francisco ao rapazito.

– Não vou com ninguém. Não sairei daqui.

– Hás de ir.

– Eu lhe mostro se vou.

– Eu te mostrarei se não vás – retorquiu o matuto.

E voltando-se para o velho Ignacio, acrescentou:

– Tranque-me o menino em sua casa enquanto amanhece. Pago-lhe o dobro do
rancho.

Deus me livre – disse o velho. Se ele me cai dentro de casa tudo me arde
como carvão em forja de ferreiro. Nem que me dê cincoenta cruzados.

Se fazes gosto em leva-lo contigo, amarramos o rapaz em um enchamel, como
seu sargento-mór queria fazer com o Valentim.

Lourenço rugiu e disse:

– Soltem-me, porcos.

– Guarde-me o menino por esta noite, seu Ignacio – tornou Francisco. Pago-lhe
bem.

– Peça-me tudo, menos isso. Ele em me achando dormindo, era capaz
de sangrar-me.

– Pois não durma. Tenha-o debaixo das vistas para de madrugadinha
restituir-mo

Como se calasse o velho, Francisco, tomando o seu silencio por aquiescência,
fez sinal a Victorino e Damião para que o conduzissem á garapeira.

Os dois matutos agarraram-no com quantas forças tinham; mas antes
de chegarem á porta viram-se obrigados a larga-lo, porque Lourenço
a um tinha posto os braços em sangue, e sobre o outro desandará
tamanho coice no estômago, que lhe tirou o animo para levar a efeito
a empresa.

– Vejam só, vejam só – acudiu o velho Ignacio. Não lhes
disse? Lá dentro não me pisa esta fera. Nada. Nem por Santo-Antonio.
Se dois homens moços não podem com ele, que direi eu?

Querem saber de uma coisa? Inquiriu Francisco a cabo de um momento. Largo-me
agora mesmo com ele por estes caminhos. Vamos, Victorino?

– Agora de noite?

– Que é que tem? A lua não tarda a nascer. Olhe já o
clarão dela por cima da mata. Vamos. Não percamos tempo.

Em menos de um quarto de hora Lourenço estava atado com cordas pelas
pernas na cangalha e em cima do cavalo que o devia conduzir para longe do
povoado.

– Adeus, adeus, minha gente, disse Francisco aos companheiros que ficavam
no ponto. Até nos encontrarmos outra vez por estas estradas.

– Faça boa viagem, Francisco, disse um deles. Mas fique certo de que
você leva sarna para se coçar. Olhe, não se arrependa.

– A criança é de estouro – acrescentou outro.

– Deus é quem sabe. Muita vez não há de ser assim.

Francisco saltou sobre a garupa do cavalo onde estava Lourenço, que
só faltou arrebentar de fúria para a qual não há
qualificação possível.

Victorino, imitando o companheiro, montou no outro animal. Com pouco desapareceram
na escuridão.

Francisco ia ruminando consigo em silencio estas idéias:

– Não tenho filho. Tratarei deste desgraçado que não
tem quem por ele se doa. Farei conta que é meu filho. Espero em Deus
que me há de ajudar a fazer dele um homem que sirva a gente.

Sem saber explicar como nem porque, Francisco sentia-se satisfeito com o
presente que levava á sua mulher, não obstante os prantos e
os uivos de que Lourenço ia enchendo o caminho no ultimo desespero.

Capítulo III

Uma légua antes de Goiana, a estrada geral que vai do Recife á
Paraíba, atravessa um lugar de presente aumentado, mas ao tempo desta
historia apenas formado de uma casa de barro, e duas ou três palhoças
espalhadas não longe dela, por dentro dos matos circunvizinhos, sem
regular alinhamento, a uso das casas que, para assim escrevermos, se improvisam
nas entranhas das florestas.

A casa de barro ficava á embocadura da mata de Bujari, a qual por
então tinha, não como hoje, meia légua, mas quase uma
de comprido. O lugar supramencionado, já nesse tempo aprazível
e risonho, era alguns anos antes um como prolongamento dessa mata, menos fechado
– é certo – , mas não menos ermo e desabitado do que ela. De
um cajueiro velho que se mostrava, na beira do caminho, ao que saia da espessura,
adveio-lhe o nome, que hoje designa o lugar, e tem por se a autoridade da
consagração do povo e do tempo.

Fizera-se subitamente a transformação daquela seção
da floresta como nos contos antigos mudam as situações ao puro
querer de um gênio ou de uma fada. Eis como a coisa se deu.

Um matuto passando por ali, de jornada para Tejucupapo, ficou encantado pela
amenidade e beleza da situação. Do cajueiro para dentro estendia-se
larga planície coberta de arvores meãs, sombrias e graciosas.
Em arvores semelhantes há algum tanto das donzelas faceiras e namoradas
com que se arreiam os salões e que são as graças mimosas
do lar. Era o intermédio entre a espessura úmida e medonha,
e a campina nua, fresca, monótona, que se seguia á planície
adornada com a vegetação moderada e pitoresca. Emgim era, em
escala ascendente, a transição natural para a mata virgem.

Na volta entendeu-se o matuto (que não era outro senão Francisco)
com o senhor do engenho Bujari a quem as terras pertenciam, e que consentiu
em que ele levantasse casa de morada e abrisse roçado.

Francisco cortou madeiras, aparelhou-as e arrumou a casa ao pé do
cajueiro. Havia barro perto. As palmeiras mais formosas daquela zona estavam
agitando suas longas folhas verde-negras na espessura vizinha. Enfim, em menos
de uma semana, aqueles que, de passagem para o Recife, tinham visto a casa
apenas envarada ou encaibrada, vinham encontra-la agora fechada e coberta;
e os que, tendo passado por ali antes destes últimos, voltavam ao mesmo
tempo que eles da capital, ficavam admirados e satisfeitos de verem uma habitação
nova e risonha, onde quinze dias atrás tinham deixado a solidão
e o mato fechado.

Esta novidade era obra das mãos abençoadas de Francisco, homem
de trabalho e paciência.

Forte de constituição física; ajudado, senão
animado, pela energia de seu espirito; afeito desde os mais verdes anos a
ganhar pela força de vontade, que era o seu primeiro dote natural,
a vida honesta, os dias suados mas tranqüilos, as noites sem remorso,
o sono solto e largo, estava o matuto habilitado a levar efeito prodígios
semelhantes, e outros ainda maiores e mais admiráveis.

Francisco era semi-branco, corpulento, espadaúdo e de boa estatura.
Tinha no semblante a expressão da virilidade e da resignação
do que luta quase incessantemente com a pobreza, e a vence a pouco, por ventura
mais forte, mas nunca invencível.

Os matutos podem dividir-se em diferentes espécies, mas as mais comuns
são as dos lavradores e almocreves. Os primeiros são os que
dispõem de alguns meios, a saber, escravos, cavalos, terras, os quais
sem darem para ter um engenho ou, ao menos, para move-lo, por se sós
habilitam o que os possuem, a cultivar a cana nas terras do engenho alheio,
posto que sujeito a dividir com o respectivo proprietário o açúcar
apurado em cada safra. Os últimos são os que se alugam com sua
pessoa e seu cavalo para a condução de cargas, por ajustado
frete. Os lavradores são matutos limpos, que entram muitas vezes nos
negócios íntimos do grande proprietário, merecem a estima
deles, a pesam com seu conselho na decisão dos interesses comuns. Aos
almocreves já não sucede o mesmo. Paga-lhes o senhor de engenho
o salário, e eles retiram-se a seus casebres onde vão comer,
com a mulher e com a ninhada de filhos que ordinariamente contam, o escasso
pão que lhes deram o cavalo magro e o trabalho puxado e cansado.

E pois o cavalo é, para assim escrevermos, a primeira riqueza do almocreve,
visto que por ele é que vem a sua sustentação e a de
sua família; ter um cavalo é a primeira aspiração
do pobre no mato. O almocreve não vota mais afeto á sua mulher
do que a seu animal. Por ele dá muitas vezes a vida. Para o reaver,
se lho furtam, vai ao fim do mundo e mata o ladrão.

Quando o almocreve, firmando-se pelos dois primeiros dedos do pé,
sempre descalço, sobre a raiz da curva da perna do seu cavalo, ganha
de um pulo a cangalha, se ele está descarregado, ou a anca se o animal
tem carga, considera-se mais feliz e garboso do que um general de mil batalhas.
A seus olhos aquela altura que o homem de pé atinge com a mão,
lhe parece superior a todo poder humano. Dai não teme o agente da autoridade
publica, nem o golpe ou o tiro mortal que lhe desfechem. Reputa-se inacessível
a todos os males da terra. Entre suas pernas, querendo-o ele, o cavalo é
uma locomotiva que se perde na imensidade dos caminhos ou dos descampados;
é a faisca elétrica que corre terra a terra e desaparece, rompendo
fechados e abatendo folhagens, na massa densa e sombria das selvas. O touro
afasta-se, a onça recua, para o deixar passar livremente na vertiginosa
carreira.

De ordinário, porém, a marcha do animal do almocreve não
sai do rojão de todo dia. Tendo sempre presente na lembrança
o muito que lhe custou ganhar o seu precioso bem, poupa-lhe as forças
quanto pôde, e só em caso extraordinário exige dele a
corrida afanosa, os saltos súbitos, o galope, o cansativo esquipar.

Do numero dos almocreves saem os cantadores e os repentistas, que, não
obstante as privações ordinárias de sua vida quase errante,
têm dias de consolação e regozijo.

Pelas festas do ano ajuntam-se na casa dos camaradas para cantar, dançar
e beber.

A esses saráos campestres, conhecidos por sambas, não faltam
as moças mais desembaraçadas das vizinhanças, – fadas
da roça, que com suas chinelas de marroquim, seus vestidos de chita
ou de cassa de florões, nos lábios, que estão a verter
sangue e frescura, o riso vergonhoso e a promessa duvidosa, os cabelos enastrados
de jasmins, manjericões e malmequeres, dão alma a pastoris episódios,
a curiosos melodramas e muitas vezes a tragédias medonhas e fatais.
Algumas delas mais desgarradas trazem os seios mal cobertos por vistosos cabeções
de que pendem, não sem acertadas combinações e fantasias,
bicos e rendas bem feitas e elegantes.

Tais festas têm o seu lado bom e providencial, – fazem esquecer as
magoas passadas e as privações presentes. O primeiro e o mais
proveitoso resultado delas é o seguinte: diminuem a estatística
dos crimes graves e infamantes.

Pobres matutos!

Quantas vezes, ao ver-vos descalços, mal vestidos e mal passados,
não senti apertar-se-me o coração com pena de vós?!
Esta pena redobrava sempre que, passando pela frente dos vossos casebres,
eu descobria ai por mobília um banco tosco, uma caixa grosseira, um
pote de água suspenso entre os braços de uma forquilha enterrada
no canto da salinha, e por leito de dormida para vós e vossos filhinhos
uma esteira ou um giráo de varas!

Então eu compreendia a razão por que em nossos encontros nos
caminhos éreis vós os primeiros que tiráveis o vosso
chapéu e me salváveis com mostras de profunda humildade, sem
saberdes sequer quem eu era. É que vós tínheis sempre
presente no entendimento a consciência da vossa pobreza e consequentemente
vossa fraqueza. Esta consciência, este aguilhão intimo, que nunca
se embota, vos dava uma falsa idéia de superioridade de minha parte
sobre vós. Pobres criaturas sois vós, ó matutos, mais
dignos de compaixão e amparo do que do riso mofador de que vos fazem
alvo os que na ignorância, na simplicidade e na miséria alheia
acham assumpto para desenfado e divertimento próprio! Pobres sois vós
dobradamente: porque recebestes de vossos pais por herança esta lamentável
condição, e porque não podeis deixar em dote a vossos
filhos condição diferente desta!

Francisco pertencia – é verdade – á classe dos almocreves;
mas tinha seu cavalo, que não era qualquer, antes pelo contrario, era
passeiro, carregava baixo e esquipava tão maciamente que quem nele
ia, levava a ilusão de que era conduzido e embalado em uma rede.

Entremeava o oficio de almocreve com o de trabalhador de campo. Tinha mesmo
plantações, posto que fracas.

Por felicidade sua casará com Marcelina, cabocla ainda nova das proximidades
da Alhandra, trabalhadeira poupona e ajuntadeira, que com as escassas economias
de suas industrias ajudava o marido a achar a felicidade no seio da pobreza,
e guardava a idéia de libertar-se deste estado ás custas do
seu esforço.

Tempos depois de mudado de Cruangi, onde ao principio morou, para o seu sitio
do Cajueiro, nome que ficou pertencendo não só ao sitio mas
ao lugar de que Francisco foi o fundador, teve ele umas maleitas tremedeiras
na força de rigoroso inverno. A moléstia pegou-o desprevenido,
sem vintém nem dez réis, como diz o povo – ilustre saibo que
versa a ciência da linguagem com autoridade e propriedade que lhe invejam
os sábios de maior conta.

Mas durante ela nunca lhe faltaram remédios nem dietas: Marcelina
supria as faltas e a casa com admirável prontidão.

– Donde lhe veio dinheiro para tudo isto? Perguntou uma vez Francisco á
sua mulher.

E os cestos que laço não haviam de dar dinheiro? Respondeu-lhe
ela com graciosa e móvel expressão. Veja estas rodilhas de cipó
que comprei ontem. Chegam para uma dúzia de cestos. Logo que estiverem
prontos, não há de faltar quem os queira. Os outros, que pendurei
da banda de fora, não levaram uma semana a ser vendidos.

– Ora, Marcelina, disse o marido com manifesto pesar. Para que se cansa tanto?
Eu quero muito bem a meu cavalo, mas vai um cavalo hoje, virá outro
amanhã. Por isso sou de parecer que, em lugar de estar a trabalhar
tanto para a casa, veja antes se alguém quer comprar o pedrez. Ele
está em boas carnes e pôde achar bom dinheiro.

– Quem? O seu cavalo pedrez? Vende-lo? Não, senhor, que você
precisia dele para quando ficar bom. Você mesmo bem sabe que um cavalo
não vem assim tão depressa camo está dizendo. Não
estamos ainda em ponto de vender o nosso único bem para remir as nossas
necessidades, Deus louvado.

– Deus mesmo havia sempre de ajudar-me a comprar outro.

Mas que necessidade temos nós de nos desfazermos do animalzinho? Só
se eu estivesse doida o venderia. Deus me livre.

Não tinha medidas o amor que Francisco votava a Marcelina, exclusiva
possuidora do seu coração.

Os matutos não casam por mera conveniência. Suas uniões,
ordinariamente precoces, não deixam por isso, em regra, de ter o principal
fundamento na estima reciproca daqueles que as contraem. Grandes desgraças
têm procedido das junções prematuras, mas no mato não
constituem a regra geral. Ao reverso, tais junções são
principio de moralidade no lar e no povoado matuto, porque, despertando cedo
no homem os afetos conjugais e paternais, enfreiam e moderam, antes das erupções
naturais dos primeiros anos, as paixões juvenis, que, quando de todo
soltas, têm arrojos inconvenientes e efeitos desastrosos.

A paixão que Marcelina inspirará a Francisco, se tinha serenado,
como sucede a cabo de certo tempo a todos os sentimentos, ainda aos mais veementes
e exaltados, não arrefecera, antes se apurara com as mil retribuições
do coração da cabocla, nunca brandamente estremecido ou amorosamente
agitado senão pelo matuto.

Mas a infelicidade é fatalmente na essência humana. Ainda no
meio das mais intemeratas serenidades, a idéia de poder ser de um momento
para outro desgraçado punge o homem e o faz reputar as venturas por
ilusões, cujo principal efeito é aguar-lhe os gostos no melhor
deles e entristece-lo, quando não na face – espelho da alma, na consciência
– centro de muitas suspeitas que nascem e morrem ignoradas do mundo, como
os musgos interiores das cavernas inacessíveis.

Marcelina podia ter a esse tempo de vinte e dois a vinte e cinco anos. O
tipo caboclo estava nela representado com opulência e genuinidade. Tez
abaçanada, cabelos corridos e pretos, olhos rasos e grandes, cara cheia
e redonda, estatura abaixo da média, formas corretas, mãos e
pés pequenos – eis o conjunto harmônico e admirável em
que a raça a mostrava revestida.

Quando Marcelina batia sua roupa no banco que ficava debaixo da meia-agua
de palha levantada por Francisco para resguardar do sol o poço algumas
braças da casa de morada, os matutos, que passavam pelo caminho e a
não conheciam, cravavam nela olhares cúpidos, e alguns ás
vezes de lá lhe atiravam xêtas que ele fingia não ouvir,
ou a que, se lhe parecia, dava em resposta um muxoxo ou um olhar de mofa e
desprezo, pelos quais ficavam sabendo que a matuta não era do pano
que eles supunham.

Muitos deles só retiravam os olhos de sobre ela quando tinham de dar
a volta da estrada ou entrar na mata. A tazão era porque a saia, que
Marcelina por essas ocasiões trazia a tiracolo pela enfiadura, lhe
punha á mostra o principio da perna – monumento de estaturia que deixava
adivinhar, mas não descobria, os vendados tesouros da perfeição
de que a dotará, por especial capricho, a natureza, mãe tão
pródiga para ela como mesquinha para tantas outras.

Capítulo IV

Uma manhã Francisco, acordando, deu por falta da mulher.

Era muito cedo ainda para o serviço da casa, e fora estava chovendo.
O mato, de seu natural sombrio e ermo, desprazia antes do que convidava naquele
momento a quem não fosse obrigado a busca-lo por grande negocio.

No começo da trilha que ia ter á lagoa de presente mudada em
terreno de lavoura, mas neste tempo com bastante água e oculta pelos
matos que se levantavam, contornando-a em forma de semicírculo, no
lugar onde acabavam as terras plantadas de abacaxis por Francisco, viu ele
atirados a uma banda sobre as ervas os socos grosseiros que sua mulher usava
em casa.

Pareceu-lhe claro que ela os tinha deixado ali para ter mais ligeiro e pronto
o passo ao lugar aonde se dirigia.

Antes disso já tinha chamado por ela do lado da estrada; mas só
teve em resposta o eco de suas próprias palavras.

Tendo agora a prova de que ela tomará direção oposta,
cruel suspeita atravessou-lhe, sem o menor fundamento, o espirito, senão
o coração, que sobressaltado transbordava inquietações
e duvidas.

Sem olhar para seu estado de convalescença, Francisco, que viera da
casa até ali abrigado da chuva pelas folhagens das laranjeiras e dos
cajueiros novos do sitio, não hesitou mais um só momento e meteu-se
pela trilha, que se lhe mostrava, agora mais do que nunca, em forma de serpente,
pela planície afora. Não era grande a distancia que separava
a lagoa da parte roçada; por isso, dai a pouco se achou ele por traz
da renque de arvores que circulava a lagoa e pôde ter esta debaixo dos
olhos, sem deixar a quem quer que fosse possibilidade para vê-lo.

Neste ponto parou Francisco, e poz-se a examinar com a vista de um lado para
outro todo o espaço livre até aonde podia chegar a sua inspeção.

Ninguém estava ali. Sobre a lagoa a chuva fina caia em forma de fumo
ou de névoa espessa. Os sapos coaxavam pela beira d’água,
e os jaçanãs soltavam de dentro das moitas aquáticas
suas risadinhas de som vibrante e agudo; tudo o mais era imobilidade e silencio.

Não tendo mais para onde ir, Francisco em cuja imaginação
exaltada pela fraqueza física e pelos súbitos temores, se desenhavam
cenas desesperadoras, não pôde acabar consigo que não
chamasse novamente pela mulher.

A voz desprendeu-se-lhe irresistivelmente da garganta, e o som das palavras
– Marcelina? Marcelina? Repercutiu pela vasta solidão.

Imediatamente a seus olhos se mostrou uma visão cruel.

Acima dos juncos, que formavam vastos partidos dentro da lagoa, apareceu-lhe
uma cabeça coberta com um chapéu de palha. Um homem estava ali
e Marcelina não podia achar-se longe. Talvez já estivesse de
volta.

Francisco sobresteve um momento imóvel, como estatua; mas notando
que o madrugador tão depressa levantara a cabeça, como se abaixará
e desaparecera no meio do juncal, mergulhou por entre as folhagens que o ocultavam,
e saiu da outra banda no animo de ir por dentro da água até
ao ponto onde se sumira o desconhecido.

Quando ia a atirar-se na água, a cabeça reapareceu a seus olhos,
e uma voz, reboando por cima das aningas e dos juncos, foi levar-lhe aos ouvidos
estas palavras, em grau de grito e em tom de repreensão:

– Que vem cá fazer, Francisco? Você quer morrer?

Era a voz de Marcelina.

Tanto bastou para que ele não avançasse mais um só passo.
Fixando a vista com mais serenidade, reconheceu no desconhecido sua mulher.

– E você que está fazendo ai metida, com esse tempo todo? Saia
dai, que nem sabe os sustos que me causou com sua ausência.

– Anda você sempre assustado, Francisco! Susto de que? Parece menino.

– Saia já, que eu não posso apanhar chuva.

Agora já não pôde apanhar chuva. Há, instantinhos
podia até meter-se na água da lagoa. Parece menino este meu
marido. Já lá vou.

Momentos depois, Marcelina achava-se na margem, a saia a tiracolo, o chapéu
de palha na cabeça, os pés descalços, a perna de fora,
sobraçando um alentado feixe de juncos.

– Então acha que só devo trabalhar nos cestos e na limpa dos
abacaxis? perguntou ela ao marido, logo que se achou em terra firme. Vim cortar
estes juncos para fazer esteiras de cangalha. Estão dando muito em
Goiana, segundo me disse ontem o compadre Victorino, que até me encomendou
umas de que precisa.

Livre do peso que lhe oprimia o coração como se fora uma montanha,
não teve Francisco para sua mulher demonstrações de desagrado
nem rudes expressões, antes agradecido á sua solicitude, para
a qual não havia solução de continuidade; seu semblante
fez-se de boa sombra, e até um risosinho meigo e terno ensaiou o matuto
satisfeito com esta nova manifestação do gênio essencialmente
ativo e previdente daquela com quem repartia o peso da vida.

– Não estranho, Marcelina, disse-lhe ele brandamente. – que você,
vendo-me no estado em que me acho, trate de suprir as faltas da casa aumentando
o seu esforço e trabalhando por você e por mim. Mas por que razão
não me há de dizer o que tem de fazer antes de entrar em obra?
Que lhe custa isso? Se me tivesse dito o que vinha aqui fazer, eu não
teria saído de casa com risco de recair, estando já quase bom.

– Para que está dizendo isso? Se eu lhe dissesse que vinha cortar
juncos na lagoa, você não me deixaria vir. Eu bem o conheço,
Francisco.

– Deixava. Porque não deixava? No que eu não vejo razão
foi em esconder-se de mim, quando eu já a tinha visto.

– Cuidei que não me tinha visto, senão eu tinha logo aparecido.
Eu disse comigo: Francisco, não me vendo, volta para casa, e deixa-me
tempo de sair da lagoa nas costas dele.

– Que lembrança esta, Marcelina! Então as ervas não
haviam de declarar-me a verdade?

Ora! Eu podia dizer-lhe que as tinha comprado ao Manoel da Hora, como disse
quando você perguntou donde tinham vindo os cipós.

– E então os cipós também foram cortados por você
na mata virgem?

Está bom, Francisco; fiquemos nisso. Você tudo quer saber. Vamos
já para casa; Deus queira que não lhe voltem as malditas. Não
satisfeito com apanhar esta chuva, ainda queria meter-se na água.

– Marcelina, você faz mal em andar assim só pelos matos. Para
que faz isso, meu bem? As vezes aparecem por estas bandas, malfeitores. Ali
dentro havia até bem pouco um couto dos negros fugidos do engenho.
Quem sabe se não estão metidos lá ainda alguns que seu
sargento-mór não pôde descobrir?

– Não se lembre disso, Francisco. Quem é que me há de
ofender? Os negros? Eles não. Conheço todos e sei que gostam
de mim, porque compro algumas coisas que trazem de seus mucambos. Vamos já,
que a chuva está engrossando.

Assim falando, Francisco e Marcelina meteram-se por sob as folhagens, e com
pouco estavam debaixo de coberta enxuta.

De outravez achava-se Francisco muito a seu salvo, limpando o seu partido
de abacaxis, quando ouviu fortes bateduras na janela da casa.

Receando fosse alguma violência praticada pelos ditos negros, em quem
ele, menos crédulo e simples do que sua mulher, não tinha a
menor confiança, poz no ombro a enxada com que estava trabalhando e
que, em caso de necessidade, serviria de arma contra os agressores, e tirou
para a casa. Entrou ai agitado e perturbado.

– Hoje voltou muito cedo do serviço – disse-lhe Marcelina.

– Vim correndo ver que pancadas eram estas. Cuidei que, tendo-se você
trancado com medo dos negros, eles, não pensando que eu me achasse
aqui por perto, estavam botando a porta abaixo. Você tem lembranças,
Francisco!

Eis a causa dos estrondos, que assustaram o almocreve.

De há muito Marcelina batalhava com o marido para que lhe arranjasse
uma taboa, de que dizia ter grande necessidade. Por esquecimento ou por não
lhe sobrar tempo, o matuto estava ainda em falta para com ela. Naquele dia
Marcelina, que, quando tinha qualquer idéia que lhe parecia vantajosa,
não descansava enquanto a não punha por obra, lembrou-se de
um meio de realizar sua intenção, sem ser preciso o concurso
do marido.

Não a porta, mas a janela da casa achou Francisco fora do seu lugar;
só os portais tinham ficado na mesma posição que dantes.
As dobradiças tinham sido mudadas para o batente inferior, a fim de
que a porta, em vez de ser aberta pelo lado, o fosse pela parte superior,
e de modo que, cravado da banda de dentro no chão um pau que chegasse
ao nível do primeiro batente, formasse ela, descansando sobre a cabeça
do dito pau, um como balcão que pudesse ser visto por quem passasse
pela estrada. O fim de Marcelina, realizando esta mudança, era ter
onde expor aos viandantes frutas, tapiocas e outros produtos do comercio domestico.

Esta pequena industria é muito praticada nos caminhos do norte. Quantas
vezes, em minhas digressões pelas províncias de Pernambuco e
Alagoas, não tive ocasião de chegar-me, montado em meu cavalo,
ao pé da janela ou do balcão móvel da casinha pobre,
onde se mostravam frutos frescos e sazonados, e de os comprar para neles me
desalterar do calor do sol e do cansaço da jornada!

Não levou a mal Francisco a alteração que a mulher fizera
na obra das mãos dele, antes aprovou, com elogios, a lembrança
que lhe dava novo testemunho das faculdades industriais daquela que, como
boa e fiel companheira, o ajudava a tornar fácil e digna a aquisição
do pão custoso da pobreza.

– Se me tivesse dito que a taboa que me pedia era para este fim, já
eu a teria trazido da vila.

Gosto de fazer as minhas invenções sem dizer nada a ninguém,
nem a você mesmo – respondeu Marcelina.

Vivia assim feliz, sem Ter coisa alguma que lhe causasse inquietação
nem tristeza, aquele casal pobre, mas honrado e discreto, só pedindo
a Deus que lhes desse chuva e sol nos tempos oportunos, para que o milho,
o feijão, a mandioca, a macaxeira, as batatas, os abacaxis não
morressem alagados ou queimados, e que não lhes mandasse doenças
graves que os privassem do trabalho, sua distração e prazer
de todo dia.

Marcelina não ficava ai, levava ainda além o seu espírito
empreendedor, a sua notabilíssima vocação para o pequeno
comercio.

Criava porcos, galinhas, patos e perus. Nos tempos de festa os porcos ou
eram vendidos por bom dinheiro na vila, ou ela os retalhava, e em sua casa
expunha á venda a carne e o toucinho, sempre com tão boa cabeça
que só lhe ficava a porção que reservava para seu próprio
uso. As vezes, desta mesma parte fazia o picado e o sarapatel para vender
aos matutos que eram perdidos por estas espécies de comidas.

Quando as criações estavam muito aumentadas, Francisco metia-as
nas capoeiras, e ia vende-las em Goiana, importante centro comercial de toda
aquela redondeza, como o Recife já o era de todo o norte por aqueles
tempos. Voltava de Goiana trazendo parte dos gêneros apurada em boa
moeda, e a outra parte empregada em fazendas para uso da casa.

Enfim, a vida do almocreve, a vida do pequeno negociante das estradas e feiras,
ninguém nem antes nem depois daquelas duas criaturas tão irmãs
e amigas uma da outra, compreendeu melhor do que elas, nem talvez tão
bem como elas, em suas especiais aplicações.

Causava a todos inveja e admiração a harmonia, a felicidade
desses dois entes rudes, que dispensavam lições da gente civilizada
para viverem com honra e conveniência e que da beira de um caminho deserto,
do pé de uma mata, sem saberem ler nem escrever, davam edificativos
exemplos de moral domestica, amor ao trabalho, e fé no Criador.

Não se pretende fazer nestas palavras a apologia da ignorância,
nem a da pobreza, que são os dois maiores males da terra; o que deste
rápido esboço de dois caracteres puros e respeitáveis
se aspira a inferir é que o bom natural traz em se mesmo, como por
instinto, a ciência da vida, e que o trabalho, ainda o mais humilde,
é o primeiro meio de suprir as faltas da fortuna e vencer os defeitos
da condição.

Capítulo V

Foi para esse ninho de modesta felicidade e de paz nunca perturbada, que
Francisco levou consigo o trêfego Lourenço, infeliz fruto de
união reprovada, precozmente apodrecido nas dissoluções
da povoação, pobre de instrução, rica porém
de misérias e maus exemplos.

Relatar aqui miudamente as maldades, os atentados cometidos pelo menino,
entregue, até bem pouco tempo atrás, á torpe licença;
rememorar os esforços usados para o reprimir e corrigir, por Francisco
e Marcelina, que desde o dia de sua chegada não lhe faltaram com bons
conselhos e as mais saudáveis lições de moral, fora longo
e fastidioso encargo.

Imagine uma criatura humana com entranhas de tigre; na mão o pau ou
a faca prestes para ofender ou ferir a quem estava perto, a pedra para atirar
contra quem estava longe; sempre a saltar e a correr pelo caminho, a trepar
nas arvores novas, primeiro que nas arvores idosas por serem mais fáceis
de quebrar-se com o peso do corpo as primeiras do que as ultimas; imagine
um ente essencialmente malévolo que cortava, por gosto de fazer mal,
os gerumusinhos ainda na erva, arrancava as batatas verdes, despedaçava
os maturis, queimava as cercas, quebrava as pernas ás aves domesticas
que se achavam a seu alcance quando ele entrava em seu furor; enfim imagine
o espirito mais diabólico, o coração mais duro, a constituição
mais forte aos doze anos de idade, que tereis, não o retrato tirado
pelo natural, mas apenas a miniatura de Lourenço quando chegou ao Cajueiro.

Ao cabo de um ano a luta continuada de dois sexos, dois gênios, duas
idades diferentes, representadas por Marcelina e Lourenço, tinha trazido
notável alteração ao natural e aos costumes de ambos.
Marcelina estava cansada de lutar; as faces se lhe alquebraram; com pouco
se irritava. Por felicidade, porém, Lourenço dava mostras de
achar-se menos duro, manos indiferente aos castos sentimentos, menos insensível
aos afetos plácidos do lar, menos forte para fazer mal, e já
propenso ao trabalho e á pratica do bem.

Luta insana e titânica fora essa, mas tão gloriosa para a parte
vencedora, como proveitosa para a vencida.

A mãe mais amorosa, paciente e discreta teria que invejar àquela
mulher ignorante e rústica o esforço que, em sua benevolência,
empregava em domesticar o animo da fera metido no coração da
criatura humana, que ela adotará por filho.

Aquela mulher era digna do estudo das mães de família, e de
ser por elas imitada. Era o modelo vivo da mãe pobre, boa e virtuosa.

– É meu filho, dizia Marcelina consigo mesma. Porque não hei
de ter para ele amor e brandura? Que tem que me dê muito que fazer encaminha-lo
para o bem? Muito custa a gente acertar com o bom caminho; mas querendo-se
ir por ele, ou tendo-se quem sirva de guia para ai, chega-se ao fim sempre.
Hei de amolecer a natureza de pedra deste menino; hei de o fazer bom, ainda
que eu fique má e dura de coração contra minha vontade.

Quem souber que o maior desejo de Marcelina era Ter um filho, facilmente
compreenderá os impossíveis que ela vencia para fazer Lourenço
digno dos seus afetos grandiosos.

As palavras que, no momento de chegar com Lourenço da povoação,
Francisco dissera á sua mulher, apresentando-lho, deram logo a esta
a conhecer a grande obra em que tinha de empenhar suas gigantescas forças.

– Não pedias todo santo dia um filho a Deus? Pois aqui tens um que
ele te enviou e está já em condições de te fazer
companhia e ajudar, quando eu não estiver na terra. Achei-o rasgado,
sujo, desamparado, obrando ações feias, de todos desprezado
e odiado. Lembrou-me o teu desejo, compadeci-me da criança desviada
do bom caminho, tomei-a para nós, e aqui t’a entrego. Se aprender
a trabalhar, a ajuntar, e a fazer bem, de muito nos poderá servir,
porque é forte como uma onça.

Lourenço estava hediondo. Os cabelos tinha-os imundos e crescidos,
as unhas terrosas, os pés cortados das pedras e dos vidros dos quintais
e esterquilínios por onde de noite andava em busca do alheio.

Sobre o corpo, que sendo de cor branca, se apresentava enegrecido do pó
e das imundices em que se espojava, como cão, e sobre as quais dormia
como porco, trazia, não roupa, mas pútridos e repugnantes andrajos.

– Onde achou você este menino? perguntou-lhe Marcelina, não
sem espanto do que via e não esperava.

– Achei-o por ai além; não precisa saber onde. Toma-o á
tua conta, limpa-o, trata dele.

Não tem pai nem mãe? Poderemos te-lo por nosso, sem risco de
o perdermos ou de que alguém o venha tirar de nosso poder quando já
estiver não como bicho, mas como gente?

– Não tenhas receio de que haja quem o queira, Marcelina. Todo o Pasmado
entregou-mo para ficar aliviado e livre dele. Tu não sabes de quanto
é capaz este menino endiabrado que nos está ouvindo sem dizer
uma palavra sequer, passado de raiva e em termos de arrebentar. Enfim, para
encurtar a historia, basta que eu te diga que pelo que me fez em tão
curta jornada, tive muitos ímpetos de o ir deixar outra vez no lugar
onde o encontrei aborrecido e temido por todos. Não foi uma nem duas
vezes que me arrependi da minha caridade e de me terem lembrado as tuas encomendações
sempre que eu saia.

– Não diga assim, Francisco. Ele há de ficar bondinho, com
o favor de Deus. Você há de ver. Não há tanta gente
que nasce ruim e que pelo tempo adiante fica boa?

– Enfim, ai o tens. Foi o menino que encontrei, e agora agüenta-te com
ele, que tem sangue no olho e cabelo na venta.

Dias depois, Lourenço já apresentava aspecto diferente do que
trouxera. Marcelina tinha feito para ele ceroula e camisa nova, e principiou
a sua obra de regeneração pela limpa do corpo.

Á tardinha, entrando Francisco com o feixe de capim que fora cortar
na baixa para o cavalo, ficou admirado de ver a mudança de Lourenço.

A limpa corporal tinha sido completa.

Desapareceu o cabelo sórdido e especado, que fora cortado rente, as
rajás que desfiguravam a cara, as unhas que se podiam comparar com
as garras dos carcarás. Lourenço mostrava-se agora na realidade
outro do que viera. O banho geral que lhe foi dado por Marcelina o poz ao
natural. A cara despojada da crosta terrena em que se envolvia, como em mascara,
atestava pela brancura que o menino era de boa origem. Os vasos azuis desenhavam-se
sob a cútis das faces, murchadas pouco antes, agora porém refrescadas
pela ablução saudável, e como remoçadas pela pronta
reação que é natural da meninice.

Conheceu-se então que o menino não era feio. Tinha a fronte
espaçosa, os olhos rasgados e negros mas de desvairado brilho, efeito
das insônias que curtia; aquilino o nariz; bem proporcionada a boca;
fendido o queixo. Lia-se-lhe porém no semblante móvel e no olhar
sorrateiro, sem deixar de ser observador, a desconfiança, que é
uma das manifestações naturais de quem se afez a obrar ações
reprovadas, a cuja pratica se não animaria, se lhe não fossem
propícios os esconderijos, as trevas, os ermos, que prometem a impunidade
e quase a asseguram.

Mas Lourenço, posto que de todo solto desde os primeiros anos, não
tinha certos vícios que rebaixam nas cidades populosas a infância
entregue a seu próprio e único alvedrio e direção.
Ele era de índole mau, e cedendo ás impreteríveis e fatais
leis do instinto, fora arrastado inumeráveis vezes a cometer atos reprovados.
Ignorante, porém, das vilezas que os meninos aprendem nos colégios
mal administrados, e que das mais puras e inocentes almas fazem pacientes
e propagadores do enredo, da mentira e de vergonhosos prazeres que desnaturam
as mais fortes e viris organizações, ele guardava ainda no coração
intactos e como adormecidos os estímulos próprios do homem,
que ainda metido no charco das paixões, não lhes bebe a lama
como a dos charcos bebem os animais.

As paixões de Lourenço davam para a briga, o roubo, e até
para o assassínio, posto que nunca tivesse tirado diretamente a vida
de ninguém. Causava-lhe prazer destruir as animadas e as inanimadas
criaturas, que não eram bastantemente fortes para fugir ás suas
arremetidas, ou resistir a seu gênio demolidor. Mutilava as arvores,
por despoja-las de uma parte de sua forma e faze-las defeituosas. Dava pancadas
nos cães por ouvi-los soltar gritos de dor. Com o padecimento mudo
da arvore, e com o ruidoso do animal, ele se alegrava, porque era mau de coração;
mas não usava habitualmente a mentira, a traição, nem
tinha outros vícios feios e sentimentos vis que revelam da parte de
quem os cultiva, animo fraco e no todo desprezível. Era o perverso
da selva, duro, difícil, mas não impossível de vencer-se,
e não o das côrtes, nojento, infame e tão fácil
de prostrar-se quão impossível de corrigir-se. Era o malvado
ignorante, arrebatado, e não o corruptor manhoso, cortês, polido,
muito mais danoso do que o malvado, para o qual há prisões e
castigos; o corruptor entre em toda a parte impunemente, e com todos e com
tudo comunica a sua perversão: suas palavras adocicadas, os gestos
insinuantes, os olhares, os sorrisos, os gracejos, os agrados, os serviços
gratuitos, os presentes abrem-lhe o espirito infantil, o seio da família
crédula e até o coração do amigo confiante. Dentro
em pouco, de ordinário quando já não é tempo de
atalhar o mal, sentem-se estes dominados da peçonha mortífera,
e perdido no conceito dos que tiveram bastante habilidade ou felicidade para
evitar o contato com o envenenador.

O sitio de Francisco, pelo lado do sul, confinava com as terras onde o senho
do engenho Bujari tinha umas carvoeiras, que ficavam muito dentro. Não
havia ai casa decente, mas uma palhoça ligeiramente feita, onde se
abrigava ele, quando vinha dar-lhes uma vista d’olhos. Para evitar que
estranhos, aproveitando-se dos cajueirais, fossem fazer carvão em sua
ausência, tinha ali o senhor de engenho um casal de negros idosos, cuja
ocupação não era outra que pôr sentido nas terras,
guarda-las de intrusos, tratar dos cajueiros existentes e plantar novos, afim
de que se não extinguissem os cajueirais.

Para se ir á palhoça, distante ainda menos de metade de um
quarto de légua da estrada, tomava-se por um estreito trilho que desta
partia, dentre duas touceiras de capimassú, e se metia para dentro,
ocultando-se pouco adiante por traz das primeiras arvores da capoeira.

Um dia, já ao anoitecer, por ocasião de Marcelina entrar para
acender a candeia, Lourenço, que passará a tarde amuado sobre
um tronco de macaibeira que jazia estendido ao pé da casa, largou-se
pela estrada afora. Pouco adiante, no ponto mesmo em que na estrada se encontrava
a vereda, lobrigou ele ao longe Francisco, que tomava a casa. Deliberado a
fugir da companhia dos seus benfeitores, única intenção
que o fizera apartar-se de casa, o menino, para evitar o encontro com o matuto,
enfiou pela vereda. Não sabia ele em que ponto ia ela morrer; mas parecendo-lhe
que levava á lagoa, donde tinha visto de tarde chegar Marcelina com
um braçado de juncos, e donde se podia ir ao caminho geral por um caminho
particular que ela sabia, apressou os passos, e só parou quando, pressentindo
gente perto da palhoça, três formidáveis cães,
açulados por Benedicto, molecote filho do casal de negros, lhe saíram
ao encontro, não para o receberem atenciosamente, como fazem com os
de fora os moradores hospitaleiros, mas para o despedaçarem com desabrido
furor. Cercado de todos os lados, Lourenço mal se podia livrar dos
temíveis defensores de escuso lar, quando de dentro da palhoça
correu ao lugar do conflito uma negra apercebida com um jagunço, em
atitude de quem o queria desancar.

– Quem é você? quem é você? – perguntou ela, sem
fazer o menor gesto aos cães para que se acomodassem.

– Sei lá quem eu sou?! Respondeu com maus modos, Lourenço agitado
e colérico da estranha e inesperada recepção. Vi este
caminho na beira da estrada e sem ter o que fazer, enfiei por ele, para saber
onde vinha dar.

– É mentira sua – retorquiu a negra. Você veio atrás
das minhas galinhas, e está agora dizendo estas coisas. E eu que pensava
que era a raposa que me estava dando no poleiro.

– Negra do diabo! Gritou Lourenço, cada vez mais zangado e irritado.
Eu algum dia trepei no teu poleiro? O que eu sinto é não trazer
na mão uma vara para te enfiar pela boca a dentro.

– Acuda cá, Moçambique, acuda cá. Estou ás voltas
com o ladrão das minhas galinhas – gritou a preta como possessa, e
movendo o jagunço contra Lourenço.

Os cães, entretanto, açulados por ela, e autorizados por este
novo gesto hostil e agressivo, já mordiam o rapaz pelas pernas como
implacáveis inimigos, que de propósito se criam sem cortesia
nem benevolência para maior segurança dos lares confiados á
sua guarda.

Quando Lourenço sentiu as primeiras dentadas dos terríveis
animais, atirou-se desesperado á preta, na intenção de
lhe arrancar a arma, de que ele precisava, assim para se defender, como para
castigar as ofensas que tanto dela como dos seus companheiros tinha recebido;
e teria realizado o seu pensamento, se a esse tempo não se achasse
junto com eles, trazendo um longo quiri, descascado ao fogo, o preto por quem
a negra chamara em seu socorro.

O conflito tornou-se então sério. O menino, o molecote, a negra,
o negro e os cães, tomando parte nele com o empenho de ter cada um
por se a vitoria, formaram pelo bracejar e revolver vertiginoso um novelo,
uma onda rotatória, um medonho redemoinho, do qual se levantava surdo
rumor, produzido pelo respirar confuso, e abafado dos lutadores, e pelo rosnar
da rábida matilha.

Lourenço era forte, segundo sabemos. Mais de uma vez atirou para longe
um cão, para uma banda o moleque, para outra a negra. Mas os que ele
assim afastava de ao pé de si, tornavam logo mais exacerbados ao ponto
donde tinham sido atirados, e prolongavam o conflito com fúria e esforço
novos. Além disso, Lourenço achava-se desarmado, o que diminuía
consideravelmente a sua grande força física, incapaz para resistir
ás dos inimigos, que eram gigantes em comparação da sua,
visto serem eles numerosos e terem, além das forças, instrumentos
que contundiam, feriam e até despedaçavam. Com pouco mais sentiu-se
enfraquecer. O sangue escorria-lhe de diferentes pontos das pernas; os cães,
ensinados desde pequenos a dilacerar os timbus, as raposas e os maracajás
– hospedes importunos do sitio, tinham-lhe rasgado importantes vasos, e cortado
com seus poderosos colmilho as carnes moídas das cacetadas. Lourenço
estava quase desfalecido, e só lhe faltava cair para ser de todo vitima
e não se poder levantar mais.

Achava-se neste extremo apuro, e seus pés já iam resvelando
na areia poida do terreiro da casa, aonde as evoluções desordenadas
do conflito tinham arrastado os que nele eram parte, quando, repentinamente,
vencendo o burburinho, voz forte e vibrante fez ouvir estas palavras:

– Negro! Negro! Moçambique! Tem mão. Queres matar meu filho?

Capítulo VI

Os negros sobrestiveram espantados.

– É seu filho, seu Francisco? Perguntou Moçambique ao recém-chegado,
que não era outrem que Francisco mesmo.

– É meu filho, negro do diabo.

– Então, perdoa, seu moço. Ninguém sabia. Perdoa a Moçambique.

Francisco, sentindo falta de Lourenço, e atraído pelos primeiros
latidos da canzoada, viera dar consigo no lugar onde a sua benéfica
intervenção não podia chegar mais oportunamente.

Lourenço estava muito maltratado. Chegando á casa, caiu de
cama para não se levantar senão depois de um mês. Nos
primeiros dias não deram nada pela vida dele.

Este acontecimento, lastimável por um lado, foi pelo outro providencial,
e, para assim escrevermos, acentuou a obra de regeneração em
que se empenharam aquelas duas almas que porfiavam para pôr no bom caminho
o menino perdido e infeliz.

Preso pelas mordeduras e contusões á cama, Lourenço
a quem nunca em Pasmado acontecera desastre que com este se parecesse, teve
ocasião de fazer irresistível e fatalmente o juízo do
seu procedimento desde o dia em que caiu na laxidão das ruas, tabernas
e ranchos. O senso intimo, até aquele momento obscurecido pela inexperiência
e verdor dos anos, começou a reagir contra as camadas que o impediam
de lhe mostrar as trilhas do dever e da sã doutrina.

Marcelina, hábil e natural educadora, aproveitara-se do ensejo para
aconselhar o menino, tomando lições do acontecimento, a não
se encaminhar senão para o trabalho e o bem.

– Que ias tu fazer, Lourenço, quando os cachorros e os negros caíram
sobre ti? Ias perder-te. Deixavas aqui pai e mãe, que olham por ti
com amor e doçura; metias-te por esse mato a dentro, com risco de morreres
de fome, de doença ou de mordedura de cobra.

– O que eu queria era ganhar o caminho que vai dar em minha terra – respondeu
ele. O negro e a negra não me deixaram passar; mas eles hão
de pagar-me este desaforo.

– E que ias ver em tua terra? Que foi que ela te deu? maus exemplos e maus
costumes. Que ias tu achar lá? A miséria, o sujo e o desprezo.
No fim de contas serias recrutado e acabarias sabe Deus onde, com a farda
nas costas.

– Cuida que eu tenho medo de ser soldado? Eu sou forte.

– Isso sei eu.

– E gosto de brigar e combater. Havia de vir uma guerra que eu mostraria
para quanto sou.

Assim que assentasses praça te arrependias logo da asneira feita.
Pensas que o soldado tem licença para andar a toda hora por onde quer,
como fazias tu antes de Francisco te trazer para o Cajueiro? Estás
enganado. O soldado não tem a menor liberdade; é pior do que
negro de engenho; não pode dar um passo sem ordem do seu superior.
És uma criança, Lourenço; não sabes ainda o que
é o mundo. Acomoda-te com os bons e busca ser um deles. Ajuda-nos a
trabalhar e a viver em nosso sossego, que o trabalho por pouco que dê
á gente, é sempre proveitoso e traz alegria e paz.

Quando se levantou da cama, Lourenço dava mostras de melhorado do
gênio trêfego que fora causa da sua longa doença. Um grande
fruto, quando outros se não pudessem apontar, tinha produzido o recolhimento
forçado do menino: saíra-lhe de todo do entendimento a idéia
de volver ao povoado donde viera. Aos olhos de Marcelina, que aprendeu sem
que ninguém lhe ensinasse, a ler nas palavras e na fisionomia de quem
com ela tratava, os íntimos pensamentos e intuitos, nenhum indicio
de melhora podia parecer mais favorável do que este. A fugida de Lourenço
a Pasmado era o que ela mais receava, e para tolher que semelhante desgraça
viesse a suceder, ela liberalizava agrados e carinhos ao menino, e com espertos
cuidados vigiava sobre ele a toda hora. Nada lhe recusava, mas também
não o deixava pisar em ramo verde.

A estação veio em seu auxilio na construção da
grande obra moral que tinha em mãos. Chegou dezembro. O tempo estava
enxuto, não obstante se mostrarem os campos borrifados das chuvas-do-cajú,
nome que vem a tais chuvas de serem elas muito favoráveis a esta fruta.
As laranjeiras novas, que Francisco plantara de um e de outro lado da casa,
curvavam-se debaixo do peso das primícias do estio. Ao longe, para
os fins do sitio, viam-se os abacaxis ostentando garbosos, dentre suas touças
louçãs, o distintivo que na ordem vegetal a todos lembrava a
insígnia civil da realeza.

Era a melhor estação do norte. Pobres, remediados e ricos apercebiam-se,
sem excepção, cada qual conforme suas forças o ajudavam,
para a festa do natal, época de folganças e divertimentos no
campo, á sombra das arvores e dos rústicos alpendres.

Em toda a vasta zona açucareira da província os engenhos começavam
a tirar sua safra; o que ficava do outro lado da mata, que sabemos – o engenho
Bujari – tinha de botar dentro de uma semana.

O dia da botada não tem igual, pelo reboliço que o caracteriza,
na grande propriedade.

Ajuntam-se parentes, amigos e conhecidos para acompanharem o proprietário
na sua alegria, e participarem das suas larguezas.

Francisco, a cujos bons sentimentos e qualidades devia o lugar que tinha
diante do senhor de engenho, achou-se presente com Lourenço á
festa rural, que oferecia ao menino novo e indizível encanto.

Não obstante ser quase nômada na povoação, nunca
dai saiu este para assistir a festas semelhantes nos engenhos da freguesia
pela distancia em que ficavam do lugar. De sorte que, penetrando agora com
Francisco no engenho Bujari, experimentou desconhecido prazer.

Um padre veio de propósito para dizer missa na capela e benzer a nova
moenda, que se achava adornada com ramos verdes, lembrança e fineza
dos negros. Depois da benção, entregou ele ao senhor do engenho
a primeira cana, que devia ser moída aquele ano. O sargento-mór
meteu-a entre os eixos da moenda, os negros açoitaram as bestas, levantaram
urras e vivas, vários moradores e convidados dispararam armas de fogo
em sinal de regozijo, enfim encetou-se a moagem.

Lourenço ficou ao principio admirado, perplexo perante aqueles acontecimentos
inteiramente novos para ele; dai a pouco, porém, já lhe faltou
o tempo para beber do caldo de cana ainda quente, e mais tarde comer do mel-de-engenho
saindo da tacha, subir á almanjarra e açoitar os animais de
companhia com os molecotes mais espertos.

Moços e moças formosas e elegantes, que tinham ido de Goiana
á festa, faziam agradáveis digressões pelos campos e
outeiros próximos da propriedade. Alguns jovens pescavam no açude,
enquanto outros se metiam pelos matos a colher cajus e a passarinhar.

Lourenço ouviu de noite, de sobre as palhas da cana onde se deitara
ao luar, defronte da casa-da-moenda, melancólicas e saudosas harmonias,
que lançavam ecos suavíssimos em sua alma.

Eram as toadas com que os negros respondiam da porta da senzala, de cima
da bagaceira, da almanjarra, do pátio da casa-de-purgar, aos regozijos
da casa-de-vivenda, onde os toques ressoavam desacompanhados das altercações,
a que dá lugar o demônio do jogo, então bem menos conhecido
do que hoje do fazendeiro nortista.

Parece que se prepara grande guerra à cana-de-açúcar
no norte. Para levar a efeito este pensamento – o da destruição
da planta abençoada, servem-se do de cultivar com largueza o café
no interior das províncias onde até o presente se cultivou largamente
a cana.

Não me leves a mal uma declaração que farei aqui, tocante
à projetada revolução agrícola.

Entristeço-me, meu amigo, a qualquer indicio de que á cultura
da cana se trata de substituir cultura de planta diferente, seja muito embora
esta da estatura e importância do café, ao qual desde pequeno
me acostumei a votar grandes afeições. A razão é
porque a cana-de-açúcar me inspira intima e saudável
paixão, que não sei explicar, mas que tem em mim a extensão
e a amplitude de uma elevada e pura estima. A meus olhos, ela não é
uma planta, é um ente magico e pitoresco. Vejo nela poesia e grandeza
que irresistivelmente me levam a tributar-lhe culto do coração.

Causam-me profundas alegrias seus bastos ajuntamentos, seus partidos virentes,
acamados, com suas folhas, ora encurvadas, ora destendidas ao sopro dos ventos
irados ou brincões. Essas folhas são como harpas gigantes, melancólicas,
ternissimas, que as virações fazem vibrar docemente e que despedem
harmonias eólias.

A vista da moagem produz em mim gratas alterações, e traz-me
saudades da infância, recordações veneráveis dos
tempos felizes em que, levando a vida entre a vila e os engenhos, entre a
casa paterna e os painéis que a natureza expõe gratuitamente
aos que para ela têm os seus principais afetos e a sua primeira admiração,
meu espirito adejava, como os sanhaçus e os bentevis, por sobre as
folhagens, mergulhado alternativamente já em luzes, já em sombras,
mas sempre enleado e passado de inocente contentamento.

Para o homem do norte o engenho de açúcar é o representante
de imemoriais e gloriosas tradições. Especialmente o pernambucano
nasce vendo com amigos olhos aquelas grandes propriedades que são como
os seus castelos feudais. O engenho é o solar do norte. A nobreza do
país principiou por ele; não conheceu outro solar. Ele figura
nas maiores paginas da historia daquela parte do vasto império. Sua
importância é lendária, histórica e santa.

E querem agora que á cana-de-açúcar se substitua o café!
Promovem a extinção do giganteo elemento que produziu e perpetuou
fortunas respeitáveis naquela grande região!

Aperfeiçoar os processos de cultura dessa planta ilustre, a que Pernambuco
deve brilho e grandeza imorredoura, é digno do progresso. O direito
senão o dever de melhorar as condições da agricultura,
do comercio, das industrias, está acima de toda duvida; mas suprimir
um gênero de cultura que tem por se a consagração de muitos
séculos e elevou muitas gerações e opulentou a província,
não me parece nem justo, nem acertado, nem econômico.

Voz secreta e consoladora, dissipando os meus temores, segreda-me que tu,
ó planta benfazeja – estandarte da independência e da riqueza
do pernambucano, seja qual for a conspiração tramada contra
ti, não hás de desaparecer das nossas planícies, dos
nossos outeiros, dos nossos vales e encostas, por onde estendes há
três séculos tua folhagem hospitaleira.

A botada tendo caído em um sábado, ficou Francisco com o menino
para passar o Domingo.

De manhã muito cedinho, Lourenço achou-se de pé, contentando
a vista no movimento que lhe oferecia a novidade. Não se fartava de
ver os negros passar com feixes de lenha e de bagaço para alentarem
o fogo da fornalha. Ia e vinha com eles, fazia-lhes perguntas sobre diferentes
coisas que observava, mas não compreendia. Recebia as explicações
com visível prazer.

Norando que voltava aos partidos a buscar novos feixes de canas, um carro
que acabava de ser descarregado á porta do engenho, Lourenço
saltou sobre a mesa dele e deixou-se conduzir aos canaviais de açúcar,
coisa que, para bem dizermos, só conhecia de nome.

Quando suas vistas adejaram por sobre aquele mundo de verdura, experimentou
sua alma indizível impressão de contentamento.

Eis o que o menino viu.

Formando um cordão, os negros estavam ali a cortar com afiadas foicinhas
de mão as canas que outros iam despojando das folhas e atirando no
campo, assim privadas da sua verde plumagem. Grandes pilhas delas mostravam-se
do meio do imenso tapete de folhas. As hastes, pouco antes graciosas, estavam
agora nuas e sem elegância. Sua formosa roupagem cobria o seu leito
de morte.

Na véspera tinha sido distribuído aos negros fato novo, que
eles traziam ainda sobre o corpo, visto que a festa emendara com o Domingo.
Com suas ceroulas e camisas azuis, seus chapéus de palha de pindoba,
tão novos como a roupa, figuravam eles uma linha de soldados que derribava
matos para assaltar fortificações inimigas.

Levando os olhos ao lado oposto ao de que vinha o corte, o menino só
descobriu ai estendido mares de folhas ondulantes. Eram os canaviais novos,
que agitavam seus panos de verdura ao sabor das virações campesinas.

Lourenço voltou do engenho perdido por ele. A festa tornara-o expansivo
e contador de historias, tudo o que com ele se passara, e o que vira, foi
referido circunstancialmente a Marcelina, não esquecendo o menino nem
as quedas-de-corpo que pegará com outros meninos na bagaceira.

– Se meu pai tivesse um engenho, a coisa havia de ser outra – dizia ele de
quando em quando no curso da narração.

– E porque não há de ter? inquiriu Marcelina. Se tu nos ajudares,
no fim de alguns anos poderemos comprar uma engenhoca, ou ao menos um torcedor.
Do torcedor vai á engenhoca, e da engenhoca ao engenho. Tu bem vês
que todos nós trabalhamos. Onde está Francisco? Foi á
vila vender abacaxis. Eu, como vês, estou fazendo minhas esteiras para
ele levar a quem as encomendou aqui adiante, na encruzilhada. Só tu
não trabalhas ainda. E queres um engenho! Sem trabalhares não
hás de ter nem de comer nem de vestir, quanto mais engenho.

Pensando consigo só, Lourenço levantou-se sem dizer palavra,
deu volta pelo sitio, e tornou á salinha da casa, que era a oficina
de Marcelina. Esta o viu arrastar um tamborete para junto dela e uma rodilha
de cipós para junto de si. Sentando-se no tamborete, o menino cortou
os cipós pelo modo e medida que Marcelina lhe ensinou, e hei-lo a trabalhar
pela primeira vez depois da sua chegada ao Cajueiro.

Vendo-o exercitar tão vem a sua atividade espontaneamente, como tocado
de celeste inspiração, Marcelina não pôde suster
as lagrimas. Lourenço, a seus olhos, acabava de dar testemunho de emenda,
resultado da constância e paciência com que ela o dirigia para
o bem desde o dia de sua chegada.

Estava de feito ali uma conquista do seu esforço abençoado
por Deus, inquebrantável esteio dos crentes.

Capítulo VII

Uma manhã encaminhou-se Lourenço á mata, armado com
um facão afim de cortar sambaquis de que precisava para umas gaiolas,
que lhe tinham encomendado. Este serviço ele o costumava realizar nas
horas vagas.

Trabalhar já era uma lei de seu espirito. Adquirir meios de comprar
um engenho foi idéia que nunca mais o abandonou, antes constituiu a
sua primeira e mais forte ambição. Por isso não perdia
tempo, ou antes Marcelina o não deixava perder.

Tinham já passado muitos meses depois dos primeiros acontecimentos
referidos nos capítulos anteriores. Colocado em novo centro e sujeito
a novas leis morais, Lourenço avançava admiravelmente na requesta
do bem, despertando cada dia em seus pais, por seu procedimento , novas esperanças
e sendo para eles origem de inefáveis satisfações.

A transformação era obra das mãos deles, na qual se
reviam não sem justo orgulho, como na fonte limpa, outr’ora charco,
se revê o que lhe tirou as imundícies.

Por isso Lourenço era já, não somente estimado mas acariciado
pelos dois consortes, que o consideravam o futuro esteio da casa, de seu natural
fraca, o amigo e protetor deles, quando velhos, de seu natural forte.

A esse tempo não era a habitação de Francisco a única
existente na estrada do Cajueiro. Obra de trezentas braças para o sul
via-se outra de melhor parecer, de paredes de pedra e coberta de telha. Pertencia
a um padre que, tendo por ali aparecido não se sabia como nem porque,
fora convidado pelo sargento-mór João da Cunha para capelão
do engenho. O padre Antônio escolheu aquele local para sua residência,
desprezando uma boa morada que o senhor do engenho possuía dentro do
cercado, e até a residência que lhe ofereceu na própria
casa grande. Escolhido o local e feito o prédio, o padre chegou-se
a João da Cunha e lhe disse que de há muito cumpria o voto de
só morar em propriedade que fosse sua, e por isso lhe pedia declarasse
por quanto vendia, com os respectivos terrenos, a casa feita. O sargento-mór,
que achará aquilo singular, e enxergará no ato inocente do padre
um assomo de independência e altivez, não querendo por vaidade
própria da nobreza daqueles tempos ficar por baixo, declarou que lhe
dava de mão beijada casa e terrenos, e disso se lavrou termo.

O novo vizinho foi recebido com alvoroço pela família do Cajueiro.
Quem era que por então não tinha em alta estima o sacerdote
da religião santa do Crucificado?

Francisco, saltando de contente, para me servir da frase do povo, dizia a
Marcelina que dava mostras de sentir dobrado prazer com a nova vizinhança.

– Bem-dita foi a hora em que abri meu sitio nesta estrada. Olhe lá
como o Cajueiro está honrado. E daqui a pouco já não
haverá quem não queira vir levantar sua casa aqui por perto.
Basta saber-se que o capelão de Bujari quis antes morar no Cajueiro
do que no engenho, para todo o povo correr para este ponto.

– É verdade, Francisco, é verdade, respondeu Marcelina. Temos
agora bem perto de nós quem nos confesse e unja em caso de morte, o
que Deus tal não permita.

– E que gloria tenho eu de se dizer que fui eu que fundei o Cajueiro! acrescentou
o matuto. Se ele não prestasse, não havia de querer morar nele
o capelão do engenho. O que eu quero é que a todo tempo se saiba
que fui o primeiro morador deste lugar. Seu padre Antônio já
me fez esta justiça. Ainda ontem ele virou-se para mim, quando fui
á vê-lo, em sua casa nova, e me disse que eu que tenho olho para
conhecer lugar de boa moradia.

Por muito tempo levaram os moradores velhos a praticar neste sentido do novo
morador. Da casa passaram ao homem físico, e do homem físico
ao homem moral. Nada disseram dele na ausência que não pudesse
ser dito na presença. Ainda hoje a maledicência não é
qualidade característica do povo; naqueles tempos ainda o era menos.

O que Francisco disse do padre, foi que sua palidez e sua magreza indicavam
que ele perdia noites de sono no serviço de Deus; Marcelina acrescentou
que seus olhos pardos e como quebrados, seus sorrisos tristes, suas palavras
simples revelavam consciência limpa, desprezo pelo mundo e bondade de
coração. Francisco ajuntou que já uma vez em Olinda tinha
visto um frade com o qual muito se parecia o padre Antônio, por sua
estatura média, a cabeça grande, a testa larga, o rosto comprido,
as faces descarnadas. Enfim Marcelina, recordando-se de uma novena na igreja
do Senhor-dos-martirios, disse que a voz fraca e branda do sacerdote que fez
ai uma pratica ao povo, era a mesma do padre Antônio.

Nem o marido nem a mulher andavam longe da verdade. O padre Antônio
tinha sido frade, e foi provavelmente no tempo em que ainda o era, que se
encontrou com ele o matuto. Um ano depois de secularizado, de passagem para
Paraíba, aposentou-se no convento do Carmo em Goiana, aonde o foi convidar
para dirigir a novena dos Martírios um negociante que o conhecia quando
ele pertencia á recoleta do Recife. É natural que ai o tivesse
ouvido Marcelina.

Eles não estavam também longe da verdade no tocante ao moral
do padre Antônio. Grande era a sua humildade, publica a sua piedade,
notória a sua benevolência, de que todos davam noticia no Recife,
em Olinda, e na Paraíba, donde viera para Goiana, fazia poucos meses.
Com serem frades, gente de seu natural maldizente – estes sim – os do Carmo
de Goiana que o conheciam, nada contavam dele que o desabonasse. Só
um deles – vejam o que são frades – explicava a secularização
do padre Antônio dizendo que, realizando-a, não o fizera ele
com outro fim que o de desimpossibilitar-se para herdar muitos mil cruzados
de uma tia solteirona que lhe votava grande afeição. O certo
é que a tia morreu, e o padre foi o único herdeiro da fortuna
deixada.

O que o padre Antônio era, quais os seus sentimentos e dotes naturais,
sua piedade, seu intimo ver-se-há melhor pela presente narrativa.

Lourenço sentiu inclinarem-se para o sacerdote os seus afetos, e teve
por ele instintivo respeito. Por sua vez, o padre Antônio, que parecia
saber já a historia do rapaz, não perdia ocasião de o
encaminhar para a honestidade e a virtude com a satisfação que
enche o coração do varão reto quando se lhe depara a
quem beneficiar.

Lourenço parecia tão mudado, seus sentimentos eram tão
diferentes dos que trouxera da povoação para a estrada, que
dificilmente o padre Antônio acreditou tivessem sido praticadas pelo
rapaz as feias ações atribuídas ao menino.

– Como é possível que a gente se transforme de semelhante modo?
Dizia ele uma vez a Francisco. Ainda se tivesse recebido depois desses desatinos
saudável educação…

– Pois é o que digo a seu padre – respondeu o matuto. Lourenço
parecia ter o inimigo no couro. Eu nunca vi menino tão endiabrado.
Agora, quanto a ensino, o que ele recebeu foi o que lhe deu minha companheira;
e parece que não foi mau, porque o rapaz já está outro.

– Bom ensino foi o que lhe deu tua mulher, Francisco. As mulheres são
muito próprias para isso. Quando elas querem, ninguém tem melhores
meios de endireitar as voltas de uma índole torta e defeituosa.

– Dai a pouco, o padre, como se tivera um pensamento súbito, uma resolução
heróica, acrescentou:

– Quero prestar a vocês um serviço, que não é
preciso me agradeçam, visto que tenho o dever de proceder assim. Quero
completar a obra que levaram tão adiante. Vou ensinar a Lourenço
as primeiras letras. Lourenço, que já está bom, ficará
melhor. Que dizes?

– Ho, seu padre! retorquiu o matuto, cujo semblante pareceu iluminar-se do
reflexo de prazer que lhe vinha do intrínseco da alma. Não tenho
expressões para agradecer a vosmecê tamanho beneficio. Quem me
dera ver meu filho lendo carta-de-nomes. Eu já me contentava com isso
só, porque quem lê carta-de-nomes, pode chegar a ler um livro
e escrever umas regras no papel. Deixa o rapaz, por minha conta, Francisco.
Hei de ensinar-lhe a ler e a escrever. Não é preciso que te
mostres desde já tão agradecido por um serviço que ainda
não fiz, e que, se grande valor deve ter para quem o recebe, nada custa
a quem o faz; antes é seu dever presta-lo. Vai para tua casa e dize
lá á tua mulher que todos os dias logo cedo – comecemos segunda-feira
– mande cá o rapaz a passar comigo algumas horas. Não é
preciso mais.

– Seu padre…seu padre… Deus é que lhe há de pagar esta
obra de caridade.

No dia aprazado, antes do menino entrar na casa do padre para receber a primeira
lição, já Marcelina tinha levado pessoalmente umas macaxeiras,
uma galinha gorda e duas dúzias de ovos para almoço do ilustre
vizinho, e jurado, com a eloquência dos sorrisos e das lagrimas simultaneamente,
gratidão eterna e infinita àquele que se mostrava tão
bom e generoso para a obscura criatura.

– Para que isto, Marcelina? Inquiriu o padre, quando ela lhe fez entrega
do presente. Eu ensino de graça e não por paga. Fica sabendo
que ainda sem os teus mimos, hei de fazer este serviço ao pequeno.
É obra de misericórdia ensinar os ignorantes. Além disso,
pelo meu sagrado ministério, tenho obrigação rigorosa
de lançar nas trevas do espirito infantil a pouca luz que tiver a meu
alcance. Olha. Diz-me o coração que Lourenço ainda há
de ser almotacê em Goiana.

– Deus o queira, seu padre, Deus o queira.

E porque não há de querer? Lourenço já está
bom. Hoje já é merecedor das bençãos do céu,
e da proteção dos homens de bem.

O que Lourenço poz por obra na manhã supramencionada, vem desmentir
este conceito e palavras de seu mestre.

Tendo vagado durante algum tempo em busca de sambaquis, por dentro da mata,
foi ele dar em uma trilha que lhe era ainda desconhecida. Tomou por ela, e,
quando menos pensava, deu consigo em um cajueiral que se perdia de vista.
De um lado aparecia uma casa de palha, e por entre o arvoredo, em parte bastantemente
destruído pelos machados dos lenheiros, foi descobrindo imensos socavões,
de alguns dos quais saiam ainda novelões de fumo negro. O rapaz reconheceu
que se achava nas carvoeiras onde tempos atrás lhe tinham ido tão
mal as coisas.

De propósito, e por incessantes recomendações de Marcelina,
ele tinha, desde essa fatal noite, evitado digressões por aquele lugar,
tão rico de belas paisagens e frescos e aprazíveis ermos. Agora,
porém, inesperada e involuntariamente achava-se de novo ali. Lembrou-lhe
incontinente o que ai passara; pareceu-lhe ouvir a matinada dos cães,
e sentir nas carnes os dentes deles e o jagunço dos negros.

Eles levaram a sua avante – disse instintivamente consigo mesmo – porque
eu estava desarmado. Se nos encontrássemos agora, a coisa havia de
ser outra muito diferente. Já sou homem, e trago o meu facão,
que está bem amolado. Eu havia de tirar a minha desforra.

Pincel fatal ou fatídico avivava em sua imaginação a
cada passo, que dava o rapaz, as cenas do sanguinolento episódio, que
parecia de todo apagado de sua memória. Imediatamente os ferozes instintos
de outr’ora ressurgiram violentamente como línguas de serpente
ou de fogo em seu cérebro, exigindo pronta vingança.

Sem mais refletir, Lourenço botou-se para a palhoça. Achou-a
sem gente. Mas havia criação pelo terreiro, e debaixo do pequeno
alpendre viu ele vasilhas de serviço diário, sinal de que os
negros ainda ali residiam.

Quando estava a olhar para uma banda e para outra, a ver se dava com algum
dos antigos conhecidos, descobriu ao longe um vulto acocorado á beira
de uma das covas que apareciam no vasto tabuleiro de areia.

Encaminhou-se para ai, saboreando com antecipada sofreguidão o prazer
da projetada vingança.

Capítulo VIII

O vulto era o moleque, já então quase negro feito, que lhe
tinha posto os cachorros em cima àquela fatal noite. Lourenço
reconheceu-o logo: nem foi preciso para isto esforço, visto que uma
vez por outra o estava vendo, ora entrar, ora sair do sitio.

– Que está você fazendo ai? perguntou ele, com voz de senhor
arrogante e provocadora.

Benedicto voltou-se espantado, e por única resposta, vendo quem a
ele se dirigia, proferiu estas palavras:

– Que quer saber? É da sua conta?

E com gestos e meneios de quem fazia pouco caso do visitante, deixou-se ficar
na mesma posição em que se achava, a saber, de cócoras
á beira da cova, e de costas voltadas para o seu interlocutor.

Veja lá como fala – retorquiu Lourenço, aproximando-se. Não
foi você quem me botou aqui há tempos os cachorros em cima como
se eu fosse alguma raposa au maracajá? Foi você mesmo, que nunca
mais sua cara me saiu da lembrança.

– Fui eu mesmo – respondeu Benedicto. E que tem que fosse? É você
meu senhor, ou meu pai para vir falar-me assim? Ora vá fazer seus balaios
e suas gaiolas, e deixe-me sossegado, que eu não faço conta
de você.

– Este negro está enganado comigo, retorquiu Lourenço, como
se dirigisse a terceiro. Então você acha que eu havia de esquecer
aquele desaforo? Eu não sou de Goiana, sou do Pasmado; e se faço
gaiolas e cestos, é para não fazer facas de ponta. Agora, quanto
a dizeres, negro, que não me levas em conta, isto é coisa que
é mais fácil de dizer do que mostrar.

A esse tempo Lourenço achava-se já pertinho de Benedicto, e
este estava de pé. As vistas de um cruzavam-se com as do outro como
floretes manejados por dois inimigos, peritos no jogo, e curtidos no rancor.

De repente o olhar de Benedicto se perturba, e ele, de negro, que era, faz-se
fulo. Palidez mortal cobriu-lhe a face, há pouco retinta como carvão.
Tinha descoberto o facão, que Lourenço trazia e em cuja larga
folha se refletia a claridade do dia.

Lourenço aproximou-se mais do seu antagonista.

– Se és homem, disse ele, em atitude de quem estava mete não
mete o facão no rapaz – repete as palavras que há pouco disseste.

– Você então quer brigar comigo deverás? Ora deixe-se
disso. O que passou está passado.

O que passou comigo não está passado, não, negro mofino
e sem vergonha. Eu só sinto não encontrar também aqui
os outros dois tições – teu pai e tua mãe – para dar
a vocês todos um ensino de mestre com a folha deste facão. Mas
não há de faltar ocasião.

Benedicto, que não era bom, encarou novamente com Lourenço,
como quem sentia voltar-lhe o animo que fugira um momento. Tinha-lhe lembrado
um recurso, que ele passou imediatamente a pôr em pratica.

– Você diz tudo isto porque tem ai um facão na mão; se
não fosse ele, não tinha barbas para o dizer. Mas ainda estando
com esse ferro e não tendo eu arma nenhuma, não faço
conta de você, quanto mais meu pai e minha mãe. E para que fique
sabendo, de uma vez por todas, que eu não me lembro de suas valentias,
vou dizer-lhe uma coisa: se tiver o atrevimento de passar outra vez de noite
por junto do poleiro, tenha certeza de que lhe hei de pôr os cachorros,
como fiz da outra vez.

Ainda bem não tinha Benedicto finalizado esta inocente ameaça,
quando Lourenço atirava para longe o facão.

– Para te quebrar os beiços, negro, eu não preciso de arma.

Era o que Benedicto queria; seu adversário estava desarmado. Então
investiu contra ele como fera. Aparentemente, Benedicto representava ser mais
forte do que Lourenço. As ceroulas azuis arregaçadas até
aos joelhos, deixavam á mostra pernas musculosas, que acusavam grande
força física. O negro mesmo tinha consciência de sua robustez;
do seu tope nenhum morador de quatro léguas em redondo lhe era superior.
Por isso, tendo lá para se que podia com Lourenço, atirou-se
sobre ele no pressuposto de o derrubar e pôr debaixo dos pés
logo ao primeiro ímpeto.

Nunca porém uma falsa crença teve mais pronta e estrondosa
desilusão. Agarrar-se com Lourenço foi o mesmo que se agarrar
com um touro bravo. Mal sabia ele que, além da imensa força
física, de que nunca supôs possuidor, tinha Lourenço meneios,
jeitos e passos que o habilitavam a dar em terra com o mais corpulento animal.
Em um instante o trêfego rapaz atirou o negro, não sobre a areia,
mas dentro da cova próxima, onde havia um abismo de fogo, parte ainda
em chamas, parte já em carvões, mas ainda vivos e ardentes.

E esta operação, rápida como passar de faisca elétrica,
seguiu-se um grito nu de agonia, que atroou os ares. Benedicto, que estava
nu da cintura para cima, sentira no corpo, nas mãos, nos pés
as dores trazidas pelo fogo.

Esse grito medonho e a vista que inesperadamente se apresentou aos olhos
de Lourenço, produziram nele súbita comoção. O
impulso de fera, que o levara a atirar na cova o adversário, foi instintivo,
inevitável, fatal: não lhe deu tempo a refletir; tinha passado
tão rápido como o pensamento, e em seu lugar estava agora a
razão.

Lourenço correu a uma tora meio queimada que se via a um lado sobre
a areia, e, pegando dele, e metendo-o imediatamente na cova, como se o fizera
em um poço para impedir que se afogasse aquele que aliás estava
nadando em puro fogo, gritou da beira da cova a Benedicto, com voz comovida:

– Pegue-se neste pau e suba por ele para não se queimar. Eu nem pensei
no fogo que havia ai dentro.

Era ainda cedo e o casal de pretos, inquilinos da palhoça, o qual
tinha ido á Goiana, a serviço do engenho, só poderia
estar de volta sobre a tarde ou talvez no dia seguinte.

Quando Benedicto disse isto a Lourenço, sentiu este ainda maior abalo.
A situação afigurou-se-lhe então mais difícil
e penosa do que ao principio lhe parecera. Quem trataria do negro, que se
revolvia, em gritos, já salvo do fogo, mas preso das extensas queimaduras,
sobre folhas secas á sombra de um cajueiro próximo? Era possível
que ele ficasse assim desamparado por todo esse tempo? E os gritos de dor
que cada vez aumentavam mais, e o terror da situação que se
tornava mais pungente e cruel, como resistir a eles sem tratar de os remediar?

Lourenço ficou abatido um momento, mas logo tornou em se e disse á
vitima dos seus maus instintos:

– Não grites, não chores, que vou chamar minha mãe para
tratar de ti.

Esta inspiração, que transluziu como reflexo de prazer intimo,
em seu semblante, pouco tempo antes anuviado pela sombra do desgosto, rápida
se desvaneceu, deixando em seu lugar no espirito do rapaz um sem numero de
interrogações, cada qual mais acerba e atroz.

– Que dirá minha mãe quando souber do que eu fiz? perguntava
ele em silêncio a se mesmo. Para que tomei eu esta vingança?
Porque não esqueci de todo a ofensa passada? Minha mãe, meu
pai, seu padre Antônio que já me quer tanto bem, que idéia
ficarão fazendo de mim d’ora em diante? Um me chamará
mau, outro cruel, outro desumano, coração de tigre. Minha mãe
dirá que perdeu comigo seus conselhos; meu pai dirá que, em
lugar de trabalhar, ando eu fazendo mal aos outros sem me lembrar de que ele
só me encaminha para o trabalho. E seu padre Antônio, oh meu
Deus, seu padre, que se mostra tão meu amigo, de que modo não
me ficará tratando d’ora por diante? Ainda ontem ele me fazia
escrever esta passagem da Escritura: “Que homem haverá por acaso
entre vós, que tenha uma ovelha, e que, se esta lhe cair no sábado
em uma cova, não lhe lance a mão para dai a tirar!(S.Mat.cap.XII
vers.11). Eu fui o primeiro a atirar, por vingança e malvadeza, dentro
de uma cova cheia de fogo, não uma ovelha, mas um meu semelhante! Ho
meu Deus! Como vai ficar descontente de mim seu padre Antônio por eu
ter praticado um ato tão desumano.

Lourenço deitou a correr para que mais depressa chegasse o socorro
ao aflito.

Quando Marcelina soube do que acontecera, foi ela própria com o marido
e Lourenço buscar o negro queimado para a casa do Cajueiro, a fim de
tratar dele, visto que, morando longe da palhoça, não podia
estar a tempo e a hora prestando os serviços e cuidados de que precisava
o doente.

Lourenço, quando punha os olhos neste, inclinava-os logo abatidos
ao chão. O remorso, o desgosto, a vergonha pesavam como anéis
de chumbo em suas pálpebras.

– Para que fizeste isto, Lourenço, com o pobre rapaz? perguntou-lhe
Francisco. Já me viste fazer alguma vez coisa semelhante?

– Eu não fiz isto por vontade – respondeu ele. Não me pude
conter quando o vi. Lembrei-me do que tinha acontecido, e tive ímpetos
de vingar-me. O ensino que vosmecê e minha mãe me deram, não
pôde vencer em mim o arranco que me atirou para aquele de quem eu guardava
uma grande ofensa. Além disso, ele me maltratou de novo, e me descompôs.
Mas não foi por vontade, foi sem querer que eu o empurrei para dentro
da carvoeira.

Era o mau natural, ainda não vencido de todo pelos edificativos exemplos
e ensinos da família, o que tinha levado o rapaz a praticar tão
feio ato.

– Que havemos de fazer para castigar a Lourenço sem pau nem pedra?
perguntou Marcelina a Francisco.

– Procura lá em teu juízo um meio, Marcelina. Eu não
quero dar-lhe pancadas.

– Eu nunca lhe pus a mão senão para o acomodar ou limpar.

Pois vê lá o que se deve fazer. A ação foi ruim,
e deve ter um castigo. Neste momento entrou a Quiteria, que vinha saber como
tinha o filho passado a noite.

– Olhe, sinhá Marcelina, disse a negra, o que mais sinto é
meu filho perder tantos dias de serviço.

Que quer dizer isto? Inquiriu Marcelina. Pois a única ocupação
dele não era botar sentido aos cajueirais?

– Esta era a obrigação que lhe deu meu senhor. Mas o tempo
chegava para mais, e Benedicto já tinha ajustado limpar as canas e
a roça de um homem chamado seu Zeferino, que tem o sitio nos fundos
da campina de meu senhor.

Marcelina refletiu um momento, ao cabo do qual tornou á preta:

– Quero dizer-te uma coisa, Quiteria. Se o ajuste está feito, não
digas nada ao Zeferino, que eu mando uma pessoa fazer o serviço. A
paga fica pertencendo sempre a Benedicto.

Como é isto, sinhá Marcelina? Pois vosmecê me faz esta
esmola, minha senhora? Oh! fico-lhe muito agradecida. E quem é a pessoa
que vai fazer o serviço em lugar de Benedicto?

– É Lourenço.

– Seu Lourenço?

– É ele mesmo. Não foi ele que o botou dentro da cova?

A negra nada mais disse, e Francisco, sabendo da resolução
de Marcelina ou, antes do castigo de Lourenço, aprovou-o com satisfação.

Quando Benedicto se deu por pronto, Quiteria e Moçambique o vieram
buscar.

Traziam estampado nos semblantes o contentamento.

Tinham recebido os cobres do Zeferino, o qual só fazia gabar o serviço
de Lourenço. Os negros agradeceram pela ultima vez a bondade de Marcelina,
e quando iam a sair, esta os fez parar e lhes disse:

– Quando Lourenço foi fazer a limpa no sitio de Zeferino, havia oito
dias que Benedicto estava de cama, não é verdade, Quiteria?

– É, sim senhora.

– Eu não quero que Lourenço fique devendo ao filho de vocês
nem uma hora.

– Está tudo pago, está tudo pago já e repago, minha
senhora – disse Moçambique.

– Não está; eu sei o que estou dizendo. O trabalho de meu filho
nesses oito dias é aquele.

E indicou uma porção de cestos e esteiras de cangalhas que
estavam amontoados a um canto da casa.

– Tudo isso pertence a Benedicto. Não me deixem uma só esteira,
nem um só cesto; levem tudo. Vendam, dêem, façam deles
o que quiserem. Está completo o castigo de Lourenço. Com o seu
próprio trabalho remiu ele a sua culpa.

Lourenço que assistiu á solene entrega desses objetos, filhos
das suas mãos, viu com lagrimas nos olhos eles passarem do seu poder
para o daquele cuja vida pusera em perigo, e a quem dera tanto que padecer.

Mas nada disse. Os olhos baixos, o semblante abatido, o coração
abalado, compreendeu, do modo mais natural e positivo, que todo mal que praticasse
dali por diante a outrem, seria praticado consigo próprio, não
resultando em ofensa a sua pessoa, mas privando-o do resultado de sua atividade,
que fosse necessário á respectiva indenização.

Nunca ele tinha compreendido tão bem, como nesse momento, que o homem
que menos mal faz, é o que está menos sujeito ao mal.

Quando os pretos saíram satisfeitos e agradecidos, Marcelina dirigiu
estas palavras ao filho:

– Estás vendo, Lourenço? Trabalhaste dois meses inteiros para
um moleque cativo.

– Foi porque vosmecê quis – disse ele, despeitado.

Não, foi porque assim devia ser. De ninguém te deves queixar
senão de teu mau natural, de ti mesmo. Deus queira que esta lição
te aproveite. Lá se foi grande parte das tuas economias. Ficaste mais
longe do que estiveste de poderes comprar um engenho.

Lourenço respondeu:

– Trabalharei de dia e de noite, e em pouco tempo hei de recuperar o que
perdi. Vosmecê há de ver.

– Deus permita que isto aconteça.

Nesse momento entrou o padre Antônio, a quem os negros tinham contado
o que pouco antes se dera.

Venho dar-te os parabéns, Marcelina, pelo modo como castigaste teu
filho. Aprovo muito esta teoria. A pena de detenção corporal,
quero dizer a prisão, não repara o mal que vem do crime. Traz
um constrangimento, um sofrimento físico ao delinqüente, mas é
estéril, sem resultado. Com excepção do crime de morte,
o qual nem pela pena de morte se pode reparar, todos os mais crimes podem
achar justa reparação no trabalho. Ao crime de morte mesmo é
possível ás justiças arbitrarem uma reparação
razoável. Fizeste muito bem. e tu, Lourenço, não botes
fora a lição, que de muito te há de servir na vida. Trabalha
e tem fé na Providencia.

Capítulo IX

Pouco distante do Cajueiro tinha Victorino sua casinha em um alto entre dois
vales, por um dos quais desciam uns canaviais escassos que ai plantara, enquanto
pelo outro apontava a roça graciosa que ele sempre trazia limpa e parecia
sorrir feliz a todos.

Não foi preciso que decorresse muito tempo para que Victorino e Francisco
se aproximassem, e suas famílias criassem relações. A
família de Victorino compunha-se de sua mulher, por nome Joaquina,
e de Marianinha e Bernardina, filhas do casal.

Levado da simpatia natural que lhe inspiraram Francisco e Marcelina, convidou-os
Victorino para padrinhos de Marianinha, que contava por então seus
três para quatro anos. Este novo laço veio estreitar mais as
duas famílias matutas, que já se sentiam presas por mutuas inclinações.

Por isso, era natural – e assim aconteceu – que na primeira ocasião
Francisco levasse Lourenço á casa do compadre, o qual já
o conhecia da garapeira, e dele dera noticia circunstanciada aos seus.

Acharam ali o menino muito bonito, muito forte, e especialmente muito artista.
Este ultimo dote de Lourenço não obstou porém a que tivessem
logo para ele vistas particulares o pai e a mãe de família.
No mato ainda hoje se contratam casamentos com grande facilidade e antecipação;
ainda bem uma menina não se põe moça nem um menino rapaz,
quando os pais falam em uni-los pelos laços do santo matrimonio e assim
que atingem a idade necessária, os noivos são recebidos á
face da igreja. O melhor é que essas uniões prematuras quase
sempre produzem bons frutos. Contrariamente sucede nas cidades e capitais
adiantadas. Aqui não direi os casamentos assim contraídos, mas
até aqueles a que precederam longos noviciados, não são
muitas vezes suficiente seguro de paz e felicidade no lar.

Poucos anos depois da apresentação de Lourenço em casa
de Victorino, já Marianinha, que desde os primeiros tempos sentira
grande inclinação para ele, alimentava a esperança de
ser sua mulher. Era isto o resultado das conversações particulares
na casa do forasteiro, das comentações e gracejos das meninotas
das vizinhanças, enfim das suposições dos conhecidos
a quem não eram estranhas as relações das duas famílias.

Não tinha então Marianinha mais de doze anos, mas já
pensava na falada união com tal constância e satisfação
que só com isso se considerava feliz. Lourenço era o passarinho
verde dos seus sonhos infantis, a feiticeira imagem que tinha o primeiro lugar
nos seus brinquedos de bonecas, e lhe enchia o espirito de suavíssimo
esplendor, de dia quando ela trabalhava, de noite quando se entregava ás
enganosas cismas da primeira idade.

Ao menino já não sucedia o mesmo que á menina. Se estava
alegre e brincão, bastava falarem no casamento, para que em seu rosto
se mostrassem indícios de desprazer. Fugia, amuava-se, e só
aparecia de novo dai a tempos.

Outras vezes vingava-se das finezas de Marianinha respondendo com demonstrações
de pouco caso.

Eis o que aconteceu um dia em que se achou com Francisco em casa de Victorino,
por ocasião de uma arranca de feijão.

Os dois dias anteriores tinham sido empregados neste serviço. Em frente
da casa viam-se os couros estendidos sobre os quais Victorino, a mulher, as
filhas, e seu sobrinho Saturnino tinham atirado a erva trazida ás braçadas
da plantação.

Com três tigelas de feijão mulatinho, uma do feijão branco
e outra do preto que Victorino plantara pela várzea que ficava do lado
da casa e pelos pés dos altos que do outro lado a cercavam, esperava
ele apanhar tantos alqueires que lhe dessem para todo o ano. Parece que o
calculo não ficou longe da realidade, visto que no serviço da
arranca andaram empregados durante dois dias todos aqueles braços.

Ao dar com os olhos sobre os grandes montes de vagens e ramas atiradas em
cima dos couros, disse Francisco:

– Sempre cuidei que eu bateria primeiro o meu feijão do que você
o seu, compadre Victorino. Vejo agora que me enganei.

– É verdade, compadre Francisco.

– E boa apanha fez você. que putici! Dá bem seus dois alqueires.

– É quanto espero apurar.

– Mas parece que ainda era cedo para arrancar esta erva. Vejo ainda tantas
vagens zarolhas entre as secas. Nem por isso. Ele já estava estralando
ao sol mesmo no pé.

– Como está a comadre? Como passam as meninas?

– Nenhuma quer morrer, não, meu compadre.

– Fazem elas muito bem.

– A comadre como ficou?

– Trabalhando com seus cestos.

Apareceu nesse momento Joaquina na porta da casa, as mangas do vestido para
baixo, o cabeção de rendas á mostra, os pés no
chão.

– Por isso é que o dia amanheceu tão bonito. É porque
o compadre Francisco tinha de aparecer hoje por aqui.

– Não presto mais para nada, comadre. Mas porém já fui
um cabra mesmo pimpão. Muita mulata bonita já se remexeu por
mim ouvindo-me cantar ao som da viola, em noites de luar. Hoje deixo isso
para esta mocidade que se está enfeitando, para esses frangotes que
como a nossa criação vão enchendo os nossos terreiros.

E apontou para Lourenço e as raparigas que nessa ocasião conversavam
entre si. Estas não se demoraram a vir cumprimentar o matuto. Marianinha
chegou-se para bem parto dele, e, estendendo a mão direita, disse,
corada e confusa:

– Sua benção, meu padrinho.

– Deus te dê um bom marido.

– Isto é que é o mais custoso – observou Joaquina.

– Há de aparecer, há de aparecer, tornou Francisco.

– Também se há de ser algum vadio, algum preguiçoso
que não tenha animo nem para peiar um cavalo, melhor será que
esteja ela solteira ai dentro de casa, acrescentou Victorino.

Neste tom correu a palestra ainda por alguns minutos, Lourenço conversando
a maior parte do tempo com Bernardina, e Victorino e Joaquina com Francisco.

Entretanto o dia ia crescendo, o sol subindo e o feijão estalando
no terreiro: o que levou Francisco a dirigir esta pergunta ao compadre:

– Para quando guarda bater o feijão?

– Estou esperando por meu sobrinho Saturnino, que ficou de voltar, mas ainda
não chegou.

Ora! Aqui estou eu e o Lourenço para o ajudarmos. Eu não tenho
que fazer hoje. Dei este salto até cá por distrair-me.

– Pois se você quer, vamos a isso.

Francisco chamou pelo pequeno. Para terem mais desembaraçados os movimentos,
tiraram as camisas; assim – nus da cintura para cima – ficaram inteiramente
á vontade e conformemente ao costume do campo. Cada um pegou então
do seu cacete, e começaram a surrar a grande tulha que primeiro se
lhes ofereceu á vista.

As mulheres, pelo sentimento de pudor que lhes é natural, especialmente
no campo, não obstante lhes faltarem as saudáveis praticas,
presente da educação, tinham-se recolhido antes á sala
da casa, e ai se entregaram a diferentes gêneros de ocupações.
Bernardina, sentada em uma esteira de juncos, e Marianinha em um couro de
cabra, faziam companhia, tendo cada uma entre as pernas sua almofada com vistosas
rendas, a Joaquina que, pousada no chão, com as pernas estiradas uma
sobre outra, fiava em um fuso pastas de alvíssimo algodão que
ela ia tirando de dentro do balaio, onde trazia um montão delas abertas.

Dai a pouco Bernardina entrou a cantar para se umas letras matutas, enquanto
sua mãe repetia os pés de um bem-dito que de costume tirava
sempre que se punha a fiar. Era lembrança da missão que um capuchinho
fizera em Goiana anos atrás. Marianinha guardava silencio. Ouvia com
atenção as toadas das duas cantadeiras, porém mais atentos
do que os ouvidos tinha ela os olhos , que de quando em quando levava furtivamente
da renda a Lourenço por uma aberta da porta pela qual entrava com a
imagem do rapaz um pedaço de céu azul.

O amor que Marianinha votava a Lourenço, vinha dos primeiros anos,
mas já era ardente, continuado, exclusivo. Nasceu no momento em que
o menino foi apresentado á família. Remontemo-nos a esse momento.
Victorino tinha dado do menino as piores informações; mas sua
filha o achou tão bonito que ficou escrava dele. Tinha ido Victorino
abrir um roçado dentro da mata que lhe ficava por traz da quadra de
terra que o senhor do engenho lhe dera para cultivar. Como não era
muito grande o espaço concedido, da casa ouvia-se o ruído que,
ao cair, produziam com as folhas e as arvores derrubadas pelo poderoso machado
foreiro. Ao ruído das arvores, ao ciciar das por entre a folhagem de
um pé de massaranduba que ficava de um lado da casinha, ao cantar dos
chechéus poisados esse momento sobre as bananeiras do quintal, Marianinha,
que na ocasião de chegarem os hospedes, estava no terreiro brincando
com suas bonecas, sentiu que despertará novo sentimento em seu coração.
Esse sentimento não se confundia com o que ela experimentava minutos
antes ouvindo os mesmos rumores e o mesmo canto; era diferente, posto que
acompanhado do mesmo natural cortejo.

A manhã estava esplendida. O sol aquecia, sem queimar, as plantas
e os animais, vivificando-os. As vastas sombras dos matos e dos oiteiros,
projetando-se sobre o capinzal donde iam desaparecendo os últimos pingos
da orvalhada brilhante da noite, poder-se-iam comparar com as folhas fechadas
de um livro imenso –o livro da natureza. Poucas horas depois essas folhas
estavam de todo abertas, a luz patenteava nelas muitas belezas, que a sombra
ocultava antes, a saber, as moitas figurando ninhos virados, as flores inodoras,
mas lindas, que costumam nascer pelos sopés das montanhas, as rolinhas,
de duas em duas – modelos da união dos dois sexos estreitada pelos
laços do afeto natural, modesto e sóbrio que Deus plantou no
coração dos irracionais, e que só a razão, ou
antes, a obliteração dela perturba na espécie humana
– depinicando silenciosas, a fazer voltas em sentidos opostos e a encontrar-se
depois, como para afirmarem mutuamente que nunca jamais se separariam, a não
ser momentaneamente. Nenhuma dessas manifestações da vida campestre,
nem mesmo o conjunto de todas elas, tinha despertado no coração
de Marianinha o sentimento brando e indefinível que ela começou
a conhecer dali por diante. Francisco e Lourenço não se demoraram,
tiraram para a mata a falar com Victorino; a impressão porém
que a assaltou, quando ela viu pela primeira vez o menino, e que depois, acrescentada
pelas relações de amizade e pelo tempo, se agigantou a ponto
de constituir-se um mundo, uma imensidade, essa perdurou para sempre não
só em seus olhos, enchendo-os de novos brilhos, mas em toda a sua alma,
povoando-a de nuvens rosadas e de paisagens verdoengas.

Eis porque Marianinha olhava agora ás furtadelas para o rapaz, achando
graça particular no modo como ele botava o cacete sobre a tulha do
feijão.

Capítulo X

Seriam dez para onze horas quando deram principio ao trabalho.

Com o calor e as cacetadas os caroços entraram a separar-se dos longos
estojos. Duas horas depois um montão de pó cobria grossa camada
de sementes alvas e luzidias. Então os batedores suspenderam os cacetes
e entraram para descansar. Victorino foi direitinho a uma botija que estava
sobre a mesa, e derramando aguardente dentro de uma xícara, ofereceu
o refrigerante licor ao compadre. Este não se fez rogar; de um trago
enxugou a vasilha. A Lourenço, que não bebera do espirito, ofereceu
nesse momento Marianinha uma tijelinha com cajuada. A menina tinha preparado
com suas próprias mãosinhas este refresco. Já então
se achava ai o Saturnino, que não podendo ver com bons olhos o agrado,
quis, com o pretexto de gracejar, toma-lo das mãos de Lourenço.
Este porém entregou-o, sem a menor oposição, ao sobrinho
de Victorino, dizendo-lhe estas palavras:

– Tome para você. Não gosto de ponche de caju.

Marianinha, corando de contrariedade e confusão, voltou a trocar os
bilros em sua almofada. Ela não queria mal ao primo, mas desde esse
momento começou a trata-lo com manifesta frieza.

Entrava a esse tempo na sala a Bernardina trazendo um pedaço de cana.
Lourenço foi-se a ela, no momento mesmo em que a menina o oferecia
a Saturnino, e o arrancou da sua mão com surpresa. Esta violência
irritou a moçoila que sem hesitar se atirou ao rapaz, a fim de retomar
a propriedade. Ele resiste. A resistência leva a rapariga a insistir
cada vez mais na sua resolução. Agarram-se os dois corpo a corpo.
Agarrarem-se assim foi o mesmo que se abraçarem naturalmente. Os cachos
dos negros cabelos da matutinha roçam pelas faces do travesso rapaz.
Com ou sem intenção, conchega este aos seus seios os seios boleados
da rapariguinha gentil e ofegante. Era já tempo de Saturnino interpor-se
e ele, compreendendo a gravidade da luta, não se fez esperar.

Separam-se logo os discordes, um deles – Lourenço – com o pedaço
do doce fruto disputado, o outro – Bernardina – com as mãos vazias.

– A cana não é para você, Lourenço – disse ela,
resmungando com raiva. Eu a guardei par Saturnino.

– Ora, deixe-se disso – respondeu o endiabrado rapaz. saturnino ainda achou
pouca a cajuada que lhe dei? Se quiser cana, vá corta-la na baixada.
Esta é minha. Está doce que sabe já a açúcar.

Travou-se então um dize tu, direi eu que só teve fim quando
os rapazes foram chamados pelos velhos para continuar o serviço interrompido.
Ao sair para o pátio, Lourenço, pondo os olhos casualmente em
Marianinha, achou-a pálida e séria como nunca a vira. A menina
tinha a vista pregada na renda, como estava esta pregada na almofada pelos
espinhos de cardeiro que nela serviam de alfinetes, segundo era de costume
por esses tempos entre os pobres. Marianinha não teve mais para o seu
noivo in peto olhares nem sorrisos nem atenções durante o restante
do dia. Quando á tardinha, levantado o papelão, que Joaquina
lhe dera por tarefa, ela foi com sua mãe e irmã sessar o feijão
na urupema para o expurgar da areia e do barro original, a menina tinha no
rosto a grave expressão que é própria não da filha
mas da mãe de família. O despeito e o ciúme mordiam pela
primeira vez seu coração, antes merecedor do contentamento inefável
a que ela aspirava, do que do pesar profundo que ai tinham deixado os dentes
envenenados destas duas serpentes interiores. Assim se passou esse dia, que
projetou sombria nuvem, em forma de espectro ou de ave agoureira, na imaginação
da pequena.

Tempos depois Francisco, levando em sua companhia Lourenço, fez nova
digressão á casa do compadre.

Eram todos no roçado quebrando milho, que devia ser batido como fora
o feijão.

– Sempre chego em ocasião de trabalho, compadre Victorino, disse Francisco.

– É verdade.

– A razão é porque meu compadre Francisco é muito trabalhador,
observou Joaquina.

– Adeus, meninas.

– Sua bênção, padrinho, disse Marianinha.

– Boa tarde, seu Francisco, acrescentou Bernardina.

Lourenço deu o andar para onde estava esta ultima, e baixinho lhe
perguntou:

– Lembra-se ainda do pedaço de cana? Está zangada comigo?

– Eu não, respondeu ela.

– Eu fiz aquilo somente para meter raiva a Saturnino.

– E você para que é mao, Lourenço?

– E você para que faz tantos agrados a ele?

– E você que tem com isso?

– Bernardina! Bernardina!

É melhor que vá se importar com Marianinha, que é sua
noiva e mais dia menos dia virá a ser sua mulher.

0 semblante de Lourenço fechou-se subitamente. Mais depressa nuvem
escura não cobre a face risonha de estrela gentil e namorada.

– Está bom, disse ele com visível contrariedade. Eu não
quero destas graças comigo.

E pois estavam conversando em vozes tão moderadas que ninguém
podia ouvir o que diziam. Francisco, a quem não pareceu muito agradável
este colóquio, dirigiu-se nos seguintes termos ao filho:

– Ó Lourenço, vai ajudar ali a comadre, que mal pode com aquele
braçado de espigas.

Em vez de levar a mal, o rapaz aceitou com as duas mãos o recurso,
que se lhe oferecia, e foi prestar os seus serviços á Joaquina,
não só tomando sobre se parte da carga que ela trazia, mas quebrando
o milho maduro que encontrou em suas proximidades.

O aspecto do roçado era o mesmo que oferece qualquer destas plantações
em ocasiões idênticas.

Em um ponto central via-se um montão de espigas secas. Junto delas
estava Bernardina sentada sobre umas palhas. Sua obrigação consistia
em as ir descascando e prendendo depois, de duas em duas, pelo filete de palha,
de propósito deixado em cada uma para facilitar não só
o trabalho da contagem senão também o da condução.
Depois de assim atadas, atirava-as para outro ponto, do qual tinham de ser
levadas para casa.

O milharal, posto que na mór parte ainda de pé, estava quase
todo seco. As espigas volviam-se para a terra que alguns pés, dobrados
pelos ventos fortes, beijavam com os pendões em sua maior parte despidos
das flores de que se compunham.

Quebrando aqui, ali, os frutos, foi-se Francisco metendo pelo roçado
a dentro até chegar ao lugar onde estava a filha mais nova de Victorino.

– Venho ajudar-te, Marianinha, disse ele.

A menina tinha sobre os ombros alguns atilhos, de sorte que parte das espigas
lhe caiam por cima dos seios e parte se derramava pelas costas.

– Para que tem esse trabalho, meu padrinho? Estamos já acabando.

– Como me acho aqui, quero perguntar-te uma coisa. Tu estás mal com
Lourenço?

– Porque vosmecê pergunta isso?

Porque ainda há pouco vi todos falarem com ele, menos tu. Que é
que houve entre vocês? Eu não gosto de malquerenças.

A menina parou involuntariamente. Seu braço direito que nesse momento
ela tinha alçado para uma espiga, descaiu como se força oculta
e desconhecida o fizera gravitar para a terra. Os olhos, vencidos pela mesma
influencia, tendo relanceado primeiro para o matuto, cravou-os ela irresistivelmente
no chão.

Conhecendo que tocará em uma ferida encoberta, Francisco adiantou-se
a diminuir-lhe o vexame.

Eu sei que tu gostavas do Lourenço até bem pouco tempo. Como
é que aparece agora esta rixa?

Passado um instante, a rapariguinha respondeu, aceso o rosto em suave rubor:

– Mas ele não gostava de mim.

– Quem foi que te meteu isso na cabeça?

– Era preciso que alguém me dissesse o que eu estava vendo com os
olhos?

– Engano teu.

– Não estou enganada, não senhor. Lourenço não
se importa comigo.

E tu não queres mais bem a ele? Anda, fala. Eu bem sei que tu gostas
do pequeno. Se és capaz, nega.

Tomada da maior confusão, Marianinha não soube o que responder.

– Dize o que te pergunto – insistiu o matuto. Eu guardo segredo. Não
tenhas vergonha de mim.

– Eu não sei disso – retorquiu a menina, entre satisfeita e triste.

– Não sabes? Então quem é que há de saber?

A filha de Victorino caio novamente na mudez de há pouco.

– Deixa estar, Marianinha, tornou Francisco.

Lourenço há de casar contigo. Se não for por gosto,
há de ser contra a vontade.

– Contra a vontade? Não, assim não – disse ela.

– E porque não há de ser por gosto?

– Eu sei… Ele não me quer bem, não. Se ele quisesse, me tratava
de outra moda. Como é então que ele te trata?

– Eu não sei dizer como é, não, meu padrinho. Eu só
sei que Lourenço é mau e ingrato.

Triste e cabisbaixa, a menina poz-se a chorar. Era muito intensa a dor que
feria seu coração. Não chores, pequena, disse Francisco
abalado. Hei de fazer que ele venha a casar contigo. Pede bem a Nossa-Senhora-da-Conceição
que eu não morra. Tanto farei que ele mesmo é que me há
de pedir licença para dar este passo.

Secreto pressentimento, porém, dizia á menina, não obstante
este formal compromisso do matuto, que nem o coração de Lourenço
nem sua mão lhe pertenceriam jamais.

Entretanto a esperança que tais palavras infundiram em seu espirito,
entrou ai como luz serena e divina.

Momentos depois, voltaram todos para casa, conduzindo as mãos-de-milho.
A uns derramavam-se espigas pelas costas, a outros caiam os atilhos dos braços,
ou das mãos. Marianinha, enquanto os demais tinham a atenção
concentrada na colheita, volvendo em torno de se seus belos olhos, há
pouco cheios de lágrimas, agora repletos dos fulgores do contentamento
intimo, que se revelava, não por palavra mas pela luz do olhar meigo,
pelo rápido sorriso, pela irradiação suavíssima
do semblante, tinha bem diversos pensamentos. Nas sombras crepusculares que
começavam a cobrir a solidão ela descobria encantos e primores
naturais, que momentos antes, de caminho para o roçado, debalde buscara
na verdura da natureza, formosamente iluminada pelo clarão imenso do
sol.

Nem com entrar em seu espirito acompanhada das sombras e dos mistérios
do deserto tinha para ela menos brilho e formosura a esperança.

Capítulo XI

Numeroso foi o concurso de pessoas de alta e distinta jerarquia durante a
noite da véspera e o dia de S. João de 1711 no engenho do sargento-mór
João da Cunha.

Esta respeitável campanha compôs-se dos cavaleiros que diremos:
os irmãos André Cavalcanti, Luiz Vidal e Cosme Bezerra; Filipe
Cavalcanti, capitão de ordenanças; Jorge Cavalcanti, sargento-mór
honorário, e filho natural de André Vidal de Negreiros, o restaurador
da Paraíba; Martinho de Bulhões, que veio do engenho Itambé,
onde morava com seu sogro Matias Vidal, a quem o dito engenho pertencia, bem
como todas as terras da povoação fundada por aquele restaurador.
Além destes apontavam-se outros muitos proprietários e autoridades
de Goiana, mais ou menos ligados, por laços de parentesco, amizade
ou dependência particular com o senhor do engenho.

Foi uma festa que muito deu que falar, não tanto pelo brilho, como
principalmente pela concorrência. Dos principais nobres da vila não
faltou nenhum. A posição social e política de João
de Cunha; sua procedência ilustre; seus haveres geralmente tidos por
avultados asseguravam-lhe grande respeito da parte dos seus vizinhos.

Houve quem viu no importante ajuntamento, logo que ele se anunciou pela voz
da fama, um pretexto para tratarem em família e em secreto os nobres
de Goiana dos seus interesses ameaçados pelos mascates do Recife. Nem
era mister grande penetração para fazer esta conjectura, depois
do rompimento destes contra aqueles, rompimento que se realizou em 18 de junho
do ano apontado, de uma para duas horas da tarde.

Para que fique inteirado do necessário o leitor que não for
muito versado no conhecimento das lutas políticas de nossa terra nos
tempos coloniais, indispensável nos parece examinarmos aqui, posto
que de relance, a causa da agitação dos espíritos na
época em que se passou esta historia.

De que procedeu o sobredito rompimento? De quererem os negociantes do Recife
que esta povoação passasse a vila, e de o não quererem
os nobres da cidade de Olinda. Qual a razão de quererem os negociantes
do Recife e de não quererem os nobres de Olinda que passasse a vila
aquela provação, que aliás já tinha sido cidade
no domínio holandês, por suas vantagens naturais, posição
física, e principalmente por ser porto de mar e oferecer fácil
ancoradouro? A razão era porque, sendo o Recife quase em sua totalidade
habitado por negociantes portugueses, passariam estes a ter, com a elevação
da povoação a vila, preponderância no senado da câmara,
e por seus votos poderiam reduzir a nada, visto que o seu numero era grande,
os nobres da cidade na taxação dos gêneros, na arrematação
dos contractos, enfim na governança que até então tinha
sempre andados nas mãos da nobreza da terra. Um cronista, contemporâneo
da guerra dos mascates, escreveu sobre este ponto as palavras que trasladaremos
para melhor compreensão do leitor. São as seguintes:

< A dar-se ao Recife o termo que o governador queria, perdia a nobreza
do país; porquanto, igualando-se os nobres aos mascates, e sendo estes
muito mais numerosos, vinham aqueles a ser excluídos nos pelouros dos
lugares da republica; perdiam as rendas publicas na arrematação
dos contractos, porquanto, sendo os arrematantes os mascates, e compondo estes
o senado, perante quem se arrematavam, vinham eles a ser juizes e partes,
e a seu salvo podiam arredar da arrematação os nobres que quisessem
lançar; perdia finalmente toda a população produtora,
porquanto, competindo aos almotacés taxarem os preços dos viveres,
e sendo o almotacé do Recife mascate, seguia-se, como se seguiu, que
os gêneros conduzidos a mercado pelos matutos se taxassem em preço
mui baixo, e os que vendiam os mascates taberneiros se estimassem em subido
preço>.

Por onde se vê que nem era de todo sem fundamento o ódio que
nobres e mercadores se votavam mutuamente, nem a guerra a que esse ódio
deu lugar podia faltar em rebentar com a veemência e crueza que a caracterizaram.
Enfim, a luta era menos de fidalgos e peões do que da agricultura ameaçada
de ruína, e do comercio que aparecia como tirano. Não há
luta mais fatal e terrível em seus resultados do que a em que se empenham
dois princípios que devem constituir, nas épocas normais, um
só elemento de prosperidade publica, servindo cada qual de complemento
natural do outro. Estamos por isso muito distantes dos que nesse memorável
movimento querem ver, antes um testemunho de ridículos preconceitos,
costumes e educação dominantes no século próximo
passado, do que a séria colisão de interesses que ainda em nossos
dias podem trazer, achando-se em desacordo como então se acharam, resultados
ainda mais tristes e lastimosos.

Enquanto as pretensões dos mercadores não passaram de tentativas
malogradas, mantiveram-se as coisas em saudável equilíbrio.
As pretensões, porém, de que é alma o interesse pecuniário
ou a ambição de riquezas dificilmente se resignam a completa
renuncia. Quando menos se espera, elas fazem explosão, e só
então se reconhece que o silencio em que por algum tempo estiveram
a modo de sepultados, não foi o silencio da morte, mas da concentração
espiritual e o do estudo dos meios de dar vitoria á dita ambição.

O governador a que alude o cronista na passagem sobremencionada, era Sebastião
de Castro Caldas. Não foi o primeiro que chegando a Pernambuco e deixando-se
quase dirigir por seus conterrâneos mais exaltados na sua pretensão
capital, representara a el-rei a favor da criação da vila. Antes
dele já o tinham feito alguns outros, inclinados sempre a proteger
os interesses dos seus patrícios. Nenhum, porém, o fizera com
tão fortes razões como o novo governador, homem de grandes espíritos,
de animo ousado e tão dado á pratica de ator de despotismo que
o próprio rei lhe estranhará asperrissimamente, em data de 7
de outubro de 1709 o <Ter invadido a jurisdição dos ministros,
soltado presos, mandado tirar devassas, suspendido no procedimento dele despoticamente,
abusado das regias leis e provisões e cometido outros absurdos e excessos
de grande prejuízo á boa igualdade da razão e em grande
dano da justiça dos povos de Pernambuco.>

É fama que pouco tempo depois de haver entrado no exercício
do seu cargo, um negociante lhe foi dizer (não se sabe se havia verdade
ou enredo na historia do oficioso senhor) que alguns pernambucanos tinham
jurado repetir com ele, se metesse a tomar o partido dos do Recife na criação
da vila, o mesmo que seus antepassados tinham praticado com o governador Jeronimo
de Mendonça Furtado no século anterior.

A isso respondeu Caldas: – Se são nobres e têm, segundo dizem,
por se o popular da capitania, repitam o procedimento dos seus maiores. O
que eu lhes asseguro é que não hei de imitar Mendonça
Furtado, e que, desembainhada a minha espada, não a meterei novamente
na bainha antes de embebida no coração do primeiro conjurado.

Não aconteceu, assim porém. Levado do capricho pessoal, ou
do interesse, ou do ódio, ou da vaidade de dar mostras de ser capaz
de arrostar com a oposição da nobreza de Pernambuco em peso,
fez reiteradas instancias ao ministério e ao rei para que se realizasse
a elevação do Recife a vila. Esta elevação foi
afinal ordenada pela carta regia de 19 de novembro de 1709; mas, como se verificaram
logo no ato da divisão de novo termo grandes vexames e violências,
irritaram-se mais os ânimos de parte a parte. Caldas respondeu á
reação dos pernambucanos notáveis mandando-os prender.
Foram do numero dos presos Leonardo Bezerra Cavalcanti, seu irmão Manoel
Cavalcanti Bezerra, Luiz Barbalho, Afonso de Albuquerque e outros. O triste
exemplo, produzindo impressão de terror em vários agricultores,
obrigou-os a deixar suas propriedades e ocultar-se foragidos nos bosques.
Enquanto porém alguns se retiravam aterrados, a reação
concertava na sombra a sua desforra. Assim que pelas 4 horas da tarde de 17
de outubro de 1710, por ocasião de passar o governador pela frente
de uma casa desocupada da Rua-das-aguas-verdes, um tiro lhe foi dai desfechado,
não tendo sido parte para que o não fizessem os dois mandatários
obscuros o ir Caldas acompanhado e guardado por uma escolta de 25 homens.

Longe de o chamar á razão, o tiro, que mais parece Ter sido
aviso de prudência do que meio de dar cabo do poderoso inimigo, visto
que, se esta fora a intenção, não teriam posto na arma
tão pequena carga que, não obstante ser muito curta a distancia,
a bala produziu unicamente no governador ligeira escoriação,
serviu antes para o arrojar de uma vez no caminho do atentado. Bastava Ter
contra se suspeita de cumplicidade no nefando delito da Rua-das-aguas-verdes
para qualquer ser atirado a horrorosa prisão. O capitão André
Dias de Figueiredo foi talvez preso como cúmplice, unicamente por Ter
por nome o mesmo que o do juiz ordinário que em 1666 intimou ao governador
Mendonça Furtado a ordem de prisão em nome do rei. Enfim, foram
tantos os excessos do governador Caldas, agora mandando abrir devassas, agora
ordenando prisões indevidas; ora estabelecendo presídios, como
fez em S.Lourenço-da-mata e em Santo_Antão, ora determinando
que o povo fosse desarmado sem ter em atenção sequer estar iminente
a invasão francesa, segundo acertadamente pondera o nosso cronista,
que, antes do dia 5 de novembro, em que devia romper a revolução,
rebentou esta por ocasião de pretender o capitão João
da Mota prender o capitão-mór de Santo-Antão Pedro Ribeiro
da Silva. Foi em 2 do dito mês que, em lugar de Mota prender Ribeiro
quando este ia ouvir missa na matriz, o sitiou ele em seu próprio presidio
e o obrigou a capitular com a condição de não voltar
ao Recife enquanto o povo, que tratava de reunir-se, não descesse a
atacar a vila novamente criada. Enfim, no Domingo (10 de novembro) uma multidão
passante de 2.000 matutos tomou o Recife, e como não encontraram ai
o governador, foram aquartelar-se em Olinda, senhores da situação.
Caldas tinha fugido de véspera para a Baia sem Ter cumprido a sua promessa
de embeber, antes de partir, a sua espada em corações pernambucanos.

Foi logo chamado a tomar as rédeas do governo, visto vir apontado
na carta regia que prevenia as vacâncias, o bispo d. Manoel Alvarez
da Costa que se havia retirado, em visita pastoral, para a Paraíba
com o ouvidor dr. José Ignácio de Arouche pouco simpático
aos do Recife por não Ter querido convir na ampliação
do termo. D. Manoel volta a Olinda e assume o exercício do novo cargo
em 15 de novembro. O primeiro ato do seu governo foi perdoar aos povos a sublevação
e o tiro dado em Sebastião de Castro Caldas.

Como era natural, o perdão irritou os parciais do governador Caldas,
os quais, não só pelos ódios próprios, mas também
pelas reiteradas sugestões que lhes chegavam do mesmo governador para
que, por sua vez, rompessem contra os do outro partido, assegurando-lhes que
o rei não deixaria de levar a bem semelhante serviço, não
pensaram senão em tomar estrondoso desforço. Ou porque acreditassem
piamente no que escrevia Caldas, ou porque o seu ódio não tinha
outro objetivo que o de aniquilar a nobreza, a quem deviam tão grande
revez, que os havia prejudicado em seus interesses e em sua política,
os europeus, que esposavam a causa da reação, alimentavam em
silencio os seus projetos de vingança e aparelhavam-se com sagacidade
e tino para o rompimento formal. Neste intuito levaram muitos meses a prover-se
de mantimentos. A farinha, o feijão, o milho, o arroz, o açúcar,
a carne, o peixe entravam todos os dias para os seus armazéns, onde
ficavam em bom recato. Finalmente, no dia 18 de junho, aos gritos de <Viva
el-rei d. João V, morram os traidores> puseram eles nas ruas a revolta,
tomaram conta das fortalezas do Brum, Buraco, e Cincopontas, e no pressuposto
de restaurarem a perdida autoridade de Caldas, consideraram o bispo suspenso
de suas atribuições e o recolheram no colégio dos jesuítas.
Nomeando um governo monstruoso, composto de João da Mota e de um preto
mestre de campo do Terço-dos-Henriques, obrigaram o bispo a assinar
ordens que importaram em os assegurar na posse da situação,
assim violentamente roubada á legalidade.

Fosse porém qual fosse o verdadeiro motivo da reunião no engenho
Bujari, o certo é que nunca em sua casa reuniu João da Cunha
tão numeroso concurso de pessoas escolhidas, com ser costume de longa
data ajuntarem-se ai por S.João moradores de conta do lugar.

Não só por ser poderoso, senão também por ser
homem de resolução e de gênio arrebatado, era João
da Cunha muito temido em todo aquele termo.

Uma tradição de sangue dava a seu nome e família triste
celebridade. Contava-se que varias pessoas, das quais algumas por faltas muito
leves, tinham sido mandadas matar por sua ordem e enterrar depois na bagaceira.
Mais de um negro tinha morrido nos açoites, e de um até se dizia
que fora atirado vivo, não sabemos por que motivo, na fornalha do engenho,
onde morreu queimado.

Naqueles tempos tradições semelhantes, em vez de diminuírem
o tamanho moral do herói dessas repugnantes ilíadas, recomendavam
aos povos os sanguinários Achiles, que por este modo se faziam conhecer
e celebrizar.

Por isso todos tinham pelo senhor do engenho Bujari profundo respeito; e
se seu nome não vem apontado nas incompletas chronicas do tempo, como
muitos outros, que não obstante pertencerem a notáveis sujeitos,
ficaram inteiramente esquecidos, a tradição ainda o não
deixou desaparecer de todo no pó onde jazem sepultados os que por circunstancias
inexplicáveis não puderam sobreviver aos acontecimentos.

Recebendo a influencia do tempo, da educação, dos preconceitos
inveterados e dos exemplos de todo o dia, a mulher de João da Cunha,
d. Damiana, que procedia, como seu marido, de troncos limpos, não lhe
cedia a palma em altivez, posto que de seu natural era branda e benévola.

Até a idade de 12 anos, D. Damiana morou, para assim escrevermos,
em casa dos pais de João da Cunha. Sua mãe era parenta muito
chegada do casal fidalgo, e costumava passar tempos no engenho onde moravam.

Quando ela morreu, d. Damiana não contava mais do que 15 anos. O pai
desta tinha falecido dez anos atrás. Circunstancias especiais influíram
diretamente para que, sendo ele um dos mais abastados agricultores do termo
de Goiana, só deixasse por morte á mulher um nome honrado e
ilustre, herança que esta transmitiu mais aumentada, porém ainda
muito menos brilhante do que a recebera, á sua filha.

Dos cinco anos até casar-se pode dizer que a jovem senhora viveu á
sombra do rico fidalgo, pai do João e de Amador, de quem oportunamente
se tratará. Por esse tempo João da Cunha já tinha contraído
o seu primeiro casamento. Enviuvando anos depois, contraiu o segundo com d.
Damiana, que, já se achando presa á família pela gratidão
que lhe devia, entrava agora em suas relações intimas e começava
a fazer parte dela por laços mais perduráveis.

O senhor de engenho achou em d. Damiana afeições duplas – as
de esposa e as de filha. Sua mulher, que já tinha para ele respeito,
votava-lhe agora estima conjugal, que trouxe ao senhor de engenho uma reprodução
da felicidade que gozara na constância do primeiro matrimonio.

Quando d. Damiana punha sobre ele seus grandes olhos negros e ternos, João
da Cunha sentia no intrínseco de sua alma uma impressão de brandura,
que era talvez o reflexo da benevolência da esposa penetrando na dureza
natural do coração do marido, como raio de luar em profunda
e escura caverna.

Então o porco selvagem fazia-se escravo da juruti meiga e naturalmente
elegante. Voltava-se todo para ele e ficava como em contemplação
ascética. Os cabelos abundantes e pretos, a rosto emoldurado em oval
corretíssima, a cútis morena, fina e rosada, o nariz levemente
erguido na ponta, a boca representante de altivez e bondade ao mesmo tempo,
faziam de d. Damiana um como centro luminoso diante do qual o orgulhoso e
duro João da Cunha sentia deslumbramentos.

A influencia, porém, que a mulher exercitava sobre o senhor de engenho,
não era absoluta.

Quando João da Cunha tomava uma resolução sobre objeto
grave; quando seu orgulho exigia dela o preenchimento de um dos seus caprichos,
leis do seu caracter, nem o olhar, nem o sorriso, nem a meiguice, nem as lagrimas
dela venciam a dureza marmórea do espirito, que de outras vezes parecia
de cera.

Capítulo XII

O engenho Bujari estava situado em um ponto de que inteiramente se perdeu
a memória. O que se sabe ainda, pela tradição oral, é
que, tendo ele ficado, pelo tempo adiante, todo em capoeira em conseqüência
do longo desamparo, veio a confundir-se com a mata virgem. O engenho que traz
hoje esse nome, fundou-se muito depois do desaparecimento do primeiro.

Nesse tempo – áureo período da vida do respectivo proprietário
– era ele uma das mais importantes propriedades rústicas de Goiana,
e a sua situação uma das mais formosas do termo.

O tempo, na forma do costume, não respeitou as prendas naturais e
ainda menos as obras de grosseira arquitetura da grande propriedade de João
da Cunha. No lugar onde foi a casa-de-vivenda – sobrado acaçapado de
telhado enegrecido, que, por muito alto no centro, era a primeira parte da
casa que se via de longe acima dos matos, com seis janelas quadradas, entre
as quais se rasgava a porta, para onde se subia por uma escada de tijolos
grosseiros – existe hoje seguramente uma renque de sicupiras colossais, cuja
folhagem enche os vãos das duas salas fronteiras – uma reservada aos
hospedes, a outra á família – agora desaparecidas. Mais para
o centro, no lugar dos aposentos interiores, floresce o amarelo, o páo-d’arco,
o jatobá. Na casa-de-purgar, que devia ficar á esquerda, nasceram
cedros, que se mostram gigantes, cobertos de cipós, que, entrelaçando-se
com a vegetação circunvizinha, formam galerias e abobadas naturais,
onde não penetra luz e se acoitam durante o dia aves noturnas e cobras
venenosas. Á direita, no lugar da capela, é agora uma elevaçãosita,
de que se atiram aos ares uns sambaquis, umas maniçóbas, uns
marmeleiros, umas cabuatãs, cujos ramos e folhas se entretecortam e
amigam. Por onde corria a rua dos negros, composta de vinte a vinte e cinco
casinhas de cada lado, vêm-se adjuntos de embiribas e jucás.
A casa-da-moenda foi substituída por um grupo de colossais angicos.
Enfim a atividade da grande propriedade passou, para dar lugar á serenidade,
ao sossego, ao silencio majestoso e solene da mata virgem. As obras da arte
substituíram-se as produções, desde as mínimas
até as máximas, da natureza. Ao viver do homem sucedeu o do
bicho bravio. Assim são as coisas deste mundo. No topo de uma civilização
germinam latentes as raízes de uma barbaria.

Uma exceção destaca-se, para confirmar a regra geral, do circulo
vicioso em que giram, após vidas, gerações, progressos
humanos, os seres, ou antes, as forças indestrutíveis da matéria.
Por entre uns paus secos aqui, umas moitas enredadas ali, umas arvores frondosas
além, arrasta ainda a existência um ente contemporâneo
de João da Cunha. Está mais selvagem, porém mais vivo
e belo.

Suas forças não diminuíram, antes aumentaram. Em suas
faces há risos continuados. Não lhe alvejam na fronte as cans
da velhice. Esse ente é o rio Capibaribe-mirim, de que em 1711 passava
por dentro do cercado do engenho Bujari, um braço cheio e vigoroso,
o qual se estendia então sobre limpo e arenoso leito, enquanto hoje
só o caçador ou algum viajor transviado o vê dilatar-se
por entre matos e por baixo de frescas e amenas sombras. Semelhante ás
cobras que rastejam em suas margens, ele serpeai desconhecido e caracola,
ora brando e vagaroso, ora barrento e assanhado, atravessando os próprios
pontos onde no século passado brincava com a luz do dia e recebia os
beijos da franca viração dos descampados. As águas, com
que refresca essa parte central da mata banham, antes de chegar ai, as povoações
denominadas Mocós e Timbaúba, únicos pontos populosos
por onde passam. Toda a restante região que elas percorrem, é
solitária e erma. O morador do centro civilizado fez-se quase exclusivo
habitante da solidão e da floresta.

O negro André, carreiro do engenho, tinha descarregado, no pátio
da casa-de-vivenda muito antes do anoitecer do dia 23 de junho de 1711, vários
carros de lenha destinada ás fogueiras de S. João. De dispor
os grossos tóros de angico e cajueiro tinham sido encarregados três
ou quatro parceiros daquele carreiro, de propósito dispensados com
cedo do serviço diário para este fim.

No sobrado habitualmente silencioso, notava-se a animação,
o bulício que acompanham fatalmente esta festa popular.

Viam-se senhoras na sala dos hospedes. Algumas delas eram mulheres, outras
eram filhas dos nobres proprietários convidados para a reunião;
e conversavam sentadas nas cadeiras de sola com pregaria que guarneciam a
sala e das quais ainda se vêm algumas, que são como as relíquias
do tempo em que representaram grande adiantamento da arte.

A mobília, não obstante ser de uma casa em que se professavam
hábitos de nobreza e riqueza, não era de dar na vista; ao contrario,
pouco adiantava á que se encontra presentemente em alguns engenhos,
donde grande parte dos hábitos daquele tempo não desapareceu
inteiramente. Além das cadeiras viam-se dois canapés, também
cobertos de sola, três ou quatro bancas de acaju, e uma grande cômoda
de nogueira com muitas ordens de gavetas. Sobre as bancas havia alfaias de
prata e sobre a mesa estava assente um candeeiro grande do mesmo metal. Pendiam
da parede, fronteiros e na mesma altura dois quadros em que apareciam retratados
o senhor e a senhora do engenho.

A sala das mulheres, aquele momento deserta, atestava melhor o gosto, a educação
e a mocidade de d. Damiana. Sobre cômoda de formas menos pesadas do
que o da sala contígua, certamente obra de fora, em que se procurara
entalhar uns longes do gosto de Luiz XIV, via-se um rico santuário
de jacarandá, que, estando aberto, deixava ver por entre ramalhetes
de frescas flores naturais, formosas e ricas imagens, adornadas com seda,
ouro e pedras preciosas. Por junto da parede corria um estrado coberto de
damasco, e fronteiro a ele mostrava-se o bufete de especial estimação
da aristocrática senhora. Um tear ao canto, bancas de jacarandá
de delicadas entalhas e sobre as bancas garrafinhas e frascos de vidro e cristal
completavam, com o grande espelho afixado na parede, a sala particular de
d. Damiana.

Ao acender as fogueiras achavam-se os homens, não na sala-de-visitas,
mas no aposento imediato – espécie de gabinete onde tinha João
da Cunha cama para descansar, papeis, roupas e armas.

Á luz amarelenta de um candeeiro, colocado sobre uma secretária
de forma de piano, lia o senhor de engenho, para os amigos ouvirem, as ultimas
regras de uma carta que recebera de André da Cunha, morador em Olinda.

<Eis o extremo a que chegamos. Os mascates em armas, senhores do porto,
das fortalezas e agora do governo, visto que tem o bispo guardado por 150
soldados e ás ordens deles, tudo podem contra nós, enquanto
nós muito pouco ou coisa nenhuma podemos contra eles. Se o bispo tivesse
espirito, ou se o seu espirito fosse tão grande como é o seu
coração, certo as coisas presentes seriam para nós pequenas.
Mas é fraco e entende pouco de estratégias e ciladas. Que força
se pode esperar de um governador que se deixou cair, por moleza, nas mãos
dos seus próprios inimigos?>

– Que havia de fazer ele? inquiriu Matias Vidal. Aquele feixe de virtudes
não é para semelhantes lutas.

– É isto exatamente o que escreve André respondeu João
da Cunha.

E prosseguiu a leitura:

< Enfim o Recife está cercado de trincheiras, fortemente guarnecidas
de gente e providas de munições de guerra.

< Como não tenho certeza de que esta vá Ter ás suas
mãos, por isso que a todo canto a nobreza se está picando nos
espinhos da traição, finalizo, rogando a Deus se sirva olhar
por nós e por nossas famílias ameaçadas de toda sorte
de calamidades, das quais a menos crua será a morte.

< Olinda, 19 de junho de 1711. – André da Cunha.>

– Meus amigos – disse João da Cunha dobrando a carta e metendo-a em
um dos escaninhos da secretaria – foi menos para tomardes parte no meu prazer
do que na desgraça da pátria, que me pareceu mandar chamar-vos
á minha casa. Estão consternadoras para nós – os pernambucanos
– as coisas publicas. Comandada a força militar por Miguel Correa,
Manoel Clemente, Euzebio de Oliveira e Antonio de Souza Marinho, mascates
conhecidos como odientos por todos nós, aos filhos da terra não
nos resta, a meu parecer, outro recurso que o de lançarmos mãos
das armas. Devemos acudir com as nossas fabricas e moradores, ao lugar do
perigo, e ai castigar a audácia dos rebeldes. Este recurso deve ser
usado sem perda de tempo. Dar pancada mortal na cabeça da cobra peçonhenta.

Não obstante ser mais forte João da Cunha em preconceitos de
fidalguia do que em eloquência, dote que vem do berço mas que
a cultura acrescenta e apura, suas palavras ressoaram, como ecos de discurso
divino, nos corações dos amigos.

Entre estes viam-se alguns que eram mais bem versados em letras e em orações
incendiarias do que o sargento-mór.

Contava-se neste numero Cosme Bezerra dentre todos os que ali se achavam
o mais ardente membro da nobreza, e o que, por sua força de vontade
e grandeza de espirito, maior nome deixou nas crônicas do tempo, porque,
degredado para a Índia em 1713, dai não voltou mais á
sua pátria. Era juiz ordinário e capitão de ordenanças.
Tinha a presença atrativa e gestos largos e arrebatados.

Cosme Bezerra, que foi dos primeiros que reagiram contra os mercadores, como
dos que sofreram as conseqüências dessa reação, quis
tomar a mão em seguida do sargento-mór; mas antecipou-se-lhe
Manoel de Lacerda, ex-alcaide-mór; emprego que devera a seus longos
e distintos méritos.

– Estou de acordo convosco, disse Lacerda a João da Cunha. Querem
grande e rude lição esses que só têm recebido de
nós hospitalidade e favores? Pois satisfaçamos á sua
vontade. Não gosto de violências; mas quando sagrados direitos
andam em perigo, não olho a desastres nem espero pelo dia de amanhã.
O fogo, o sangue, a morte não me amedrontam, nem o receio de ser vitima
na luta me retém no regaço morno da vida domestica.

– Demais, observou Cosme Bezerra, que estava impaciente por manifestar-se
sobre o assunto, nas atuais circunstancias a guerra é inevitável.
Certo, os mascates a esperam. Se nós não formos leva-la a eles,
hão de vir eles traze-la a nós. Das fortalezas passarão
ás estradas, e por estas virão Ter ás vilas mais importantes
e enriquecidos, menos pela grandeza do seu trabalho do que do nosso coração
e da nossa complacência projetam sobre as ruínas da agricultura,
levantar em pedestais de ouro o seu comercio ilícito e plebeu. Quem
julgar que eles ficam ai, engana-se. eles põem a mira em completar
a obra do desmoronamento pernambucano, derramando o sangue daqueles que com
os nobres portugueses, e não com a gentalha de Portugal, sustentaram
no mar e nos campos de batalha a honra e o poder da lusa monarquia. Hão
de ir mais longe ainda, porque em seu bestunto supõem, e até
o dizem, que somos tão selvagens como os índios que eles destruíram
ou escravizaram. Armarão ciladas a nossa honra, tentarão manchar
nossas famílias. Em seus tenebrosos plenos, tem mais lugar a idéia
de enxovalhar do que a de destruir a fidalguia, que os admitiu em sua terra,
levada de dó pela miséria deles. E havemos de consentir em que
esta baixeza sem nome se tente praticar ainda que não passe da tentativa?
De modo nenhum. Cá por mim estou prestes para a luta e entendo que
é tempo de a travar com esses vis e ingratos hospedes.

– Este pontos está fora de duvidas, acrescentou Filipe Cavalcanti.
Mas o essencial é assentarmos nos meios de ferir a batalha. Temos gente
pronta para seguir á metrópole da capitania? Convirá
seguirmos? Ou será mais prudente esperarmos que de lá se nos
peça o auxilio das nossas forças! A meu parecer são estes
os pontos mais importantes e graves da presente conjuntura.

– E que mais esperaremos? Inquiriu Jorge Cavalcanti. A luva está atirada,
e embora nos venha de vilão, cumpre-nos apanhá-la para castigarmos
a vilania.

– A nobreza da capital, ajuntou Cosme Bezerra, está ameaçada.
A tardança no socorro poderá trazer males irremediáveis.

Estava neste ponto a discussão, quando Matias Vidal tomou a mão,
e disse:

– Senhores, tudo o que acabo de ouvir de vossas bocas, parece-me inspirado
pelo principio da própria conservação de cada um de nós,
pela dignidade da nobreza pernambucana, e pelo amor da terra de que os forasteiros
querem assenhorear-se. Mas quem nos afiança que não estamos
já ameaçados também de perdermos as nossas vidas e propriedades?
Honroso seria corrermos imediatamente á capital, afim de reforçarmos
a sua defesa; mas um dever que me parece superior a todos, exige talvez a
nossa presença no seio das nossas famílias. Teremos acaso tão
seguros estes penhores da nossa estima que possamos, sem risco, deixa-los
entregues a se próprios, enquanto vamos auxiliar os nossos parentes
e amigos longe daqui? Certamente o plano dos forasteiros ficaria abaixo das
suas ambições se nele entrasse o pensamento de se hostilizar
a nobreza dos arredores da vila de fresco criada. Tudo ao contrario faz crer
que eles conspiram contra a nobreza de toda a província, porque sem
a destruição total dela não poderão ficar senhores
de todo país. Não moro na vila de Goiana, mas lá mesmo
no meu mato soube que o ouro dos mascates andava por aqui nas mãos
de baixos comissários.

– Tendes razão, tendes razão – disse Manoel de Lacerda. O que
dizeis é verdade.

Antes de montar a cavalo para vir a esta reunião, disse-me um dos
meus lavradores que soubera terem sido distribuídos em Goiana, donde
chegava, 14,000 cruzados para a compra de gente que apoie a causa dos mercadores.
Se isto é verídico…

– É verídico – disseram muitos dos que se achavam presentes.

Se assim é, prosseguiu Matias Vidal, não será imprudência
desampararmos nossas casas, que, privadas de nosso encosto e sem nenhum meio
de defesa, visto que teremos de levar conosco as nossas escravaturas, ficarão
expostas a grandes desgraças.

A estas palavras, que saíram fracamente dos lábios de Matias
Vidal, como dentre duas pedras caem gotas de água nativa, seguiu-se
um momento de silencio. Nelas vinha um cunho de madura prudência que
abatia e resfriava os ímpetos e os éstos dos precedentes oradores.
Aqui estava o pai de família, o agricultor, o matuto, sem exclusão
do patriota. A inspiração sensata, a lúcida intuição
que adivinhava os perigos próximos, ao mesmo tempo que via os remotos
já descobertos, tomaram o lugar aos assomos da soberba de João
da Cunha, da valentia de Lacerda, da ardência de Bezerra, e apresentaram
a solução natural do grave problema que os trazia ali reunidos.

– Ela é verdade – disse primeiro o ex-alcaide-mór, como quem
caia em se e via agora de todo clara a situação há pouco
envolvida em densas trevas. Junto, em torno de nós, mandatários
disfarçados espreitam os nossos passos para os denunciarem aos mandantes,
nossos inimigos.

– Que diz você a isto, irmão André? Perguntou Luiz Vidal
a André Cavalcanti, que atento ouvira os vários conceitos dos
conferentes.

– Digo que o nosso primeiro empenho deve consistir em tratarmos da nossa
própria defesa. Estou por isso inteiramente de acordo com o parecer
de Matias Vidal. Quem sabe se dentro de poucas horas não teremos de
haver-nos com revolta idêntica á do Recife?

– Nem devemos esperar coisa diferente – disse Jorge Cavalcanti.

– A que fim, senão a este, mandaram para cá os mascates o seu
ouro? Observou José de Barros.

Ontem corria nas lojas e tabernas de Goiana – disse Manoel de Lacerda, que
um motim se preparava contra a nobreza. Antonio Coelho, cuja audácia
todos nós sabemos, nunca se mostrou tão derramado em arrogancias
e insultos. De noite houve ajuntamento em sua loja, ajuntamento que só
se desfez quando já era noite alta e depois de muitos urras, que ressoaram
nas vizinhanças. Certo está Antonio Coelho incumbido de dirigir
o movimento.

– Bom será que o não percamos de vista, disse João da
Cunha.

Hoje de manhã, passando eu pela frente de sua casa, vi-o fazendo gestos
no balcão. Estava, ao parecer, ébrio; não tinha curtido
de todo o vinho que bebera na véspera, porque lhe ouvi palavras insultuosas
que me iam lançando fora do caminho da prudência.

– Que disse ele, Cosme Bezerra? Interrogou o sargento-mór.

Suas insolências tinham por objeto a vossa própria pessoa. <Hei
de ensinar o João da Cunha; é tempo dele pagar o novo e o velho.
Hei de ir com minha gente revirar a bagaceira de seu engenho, para pôr
á mostra a ossada do mascate que ele mandou seus negros matar, só
porque…>

– Porque?porque? perguntou o sargento-mór, tomado de súbita
comoção, e fazendo-se lívido. Que historia contou o vilão?

– Contou que o mascate tinha sido assassinado por se queixar de lhe não
terem pago certa quantia.

João da Cunha, sem o querer, tinha-se levantado.

– Querem saber como foi o caso? A mulher de um morador chamou o labrego para
lhe comprar não sei que bugigangas, de que ele saiu pago. Mas como
vinha tonto, depressa esqueceu-lhe que tinha recebido a respectiva importância.
Hei-lo que volta e começa de exigir novo pagamento; e porque ninguém
saiu a dar-lhe mais dinheiro, a todos chamou ladrões, sem exceção
do senhor do engenho. Dois negros foram-lhe ao encontro e castigaram, sem
que de ninguém tivessem recebido ordem para isso, a ousadia do mascate.
Este caiu e não se levantou mais. No outro dia vieram dizer-me que
amanhecera um homem morto na estrada. Foi então que soube do ocorrido.
Castiguei os escravos, e mandei sepultar o morto, não na bagaceira,
mas na capela. Se o não sepultaram onde eu disse, não lhe fizeram
injustiça; os animais do campo enterram-se nos monturos. Mas deixemos
a um lado esse vil mascate, e tratemos do que nos deve merecer mais atenção.
Que se deve fazer, meus amigos? Devemos ir ao encontro dos rebeldes, ou esperar
que eles nos venham buscar a nossas casas?

Após um momento, respondeu o ex-alcaide-mór:

– O que entendo que se deve fazer é cuidar, sem perda de tempo, de
pôr em armas cada um de nós a sua gente para o que possa acontecer.

– Sairemos ou ficaremos?

– Esperaremos prestes para dar-lhes lição tremenda.

Para andarmos seguros, parece-me conveniente que se mande um próprio,
sem perda de tempo, a Olinda, a fim de sabermos dos amigos se são precisos
os nossos serviços. A sua resposta nos servirá de guia.

– Acho muito acertado este ultimo alvitre, indicado por Felipe – disse Cosme
Bezerra.

– Pois bem, disse João da Cunha. Seja este o nosso primeiro passo.

A sala em que se achavam conferenciando sobre o grave assunto os principais
vultos da nobreza de Goiana, tinha janelas que caiam sobre o pomar. Distante
deste algumas braças passava o rio, aquela noite aumentado pelas chuvas
dos dias anteriores. De seu natural escasso, volvia agora barrentas e volumosas
águas que estavam lavando as estivas das toscas pontes que o atravessavam.

Mal acabara de falar Cosme Bezerra, quando chegou á sala o ruído
que produziam as águas cortadas por um cavaleiro.

Em qualquer engenho nada é mais natural do que semelhantes rumores.
Fosse porém porque se achavam sobreexcitados os espíritos pelo
objeto da conversação, fosse porque o rumor tinha o quer que
era particular e estranho, o certo é que João da Cunha julgou
prudente chegar á janela, a fim de saber quem era que o produzia.

Ao clarão das fogueiras, de que a esse tempo já se atiravam
aos ares longas línguas de fogo, reconheceu ele quem chegava.

Voltou-se então para os circunstantes, que guardavam silencio, e lhes
disse com certo tom de voz, em que não seria difícil adivinhar
três impressões diferentes – prazer, incerteza e ansiedade:

– Vamos Ter noticias frescas de Olinda.

Com pouco um matuto penetrou no aposento onde se estava celebrando a conferencia,
e entregou a João da Cunha um pacote de papeis.

O matuto era Francisco.

Capítulo XIII

O S.João, do mesmo modo que o natal, é festa essencialmente
popular e campestre. Cada uma destas duas festas, com especialidade porém
a primeira, leva vantagem á da páscoa , que, com ser comemorativa
da ressurreição do proto-martir, de quem só nos ficaram
exemplos de humildade e singeleza, assumiu formas aristocráticas, e
pertence hoje mais ao palácio e á cidade do que á choupana
e ao povoado.

O engenho Bujari dava em 23 de junho de 1711 testemunho desta verdade. Não
havia casa de lavrador ou de morador em que das 6 para as 7 horas da tarde
o prazer não tivesse desabrochado entre risos e folgança.

João da Cunha, com ser de seu natural de poucos amigos, tinha em suas
terras muitos lavradores e foreiros. Alguns escolhiam, para se fixar, as terras
do engenho Bujari, e havia razão para esta preferencia. João
da Cunha era ríspido, exigente e até poder-se-há dizer
– mau. Mas tinha uma grande qualidade, que em certo modo atenuava os seus
grandes defeitos. Bulir com um morador do seu engenho era o mesmo que bulir
com ele próprio. Excedia os limites da defesa quando algum deles era
ofendido. Tomava parte pelo morador em publico, ia pessoalmente aos juizes,
para que ordenassem o castigo do delinqüente, gastava do seu dinheiro
com o pobre e sua família, enfim, deixava o papel de tirano e representava
ao vivo o de pai ou zeloso protetor. Por esta razão particularmente,
e porque das magnificas situações que se apontavam em derredor
de Goiana onde os engenhos ainda não eram numerosos, as melhores lhe
pertenciam, muitos eram os seus moradores, entre os quais alguns abastados.
Ao numero dos que o eram menos, pertencia Victorino.

Na hora em que se discutiam, com a gravidade que vimos, os interesses das
famílias goianistas de primeira representação, Lourenço
descavalgava á porta de Victorino.

Ai se estava festejando a noite com todo o entusiasmo e calor do estilo.
As filhas do dono da casa faziam as honras aos hospedes, de que já
havia um bom numero no momento em que Lourenço penetrou na salinha.

Lourenço foi entrando, e foram eles logo oferecendo a ele espigas
de milho verde quebradinhas meia hora antes no roçado próximo
e assadas na fogueira que iluminava o pátio e a frente da casa.

Joaquina não apareceu senão mais tarde. Estava na cozinha preparando
a deliciosa canjica, que é o primeiro prato das mesas grandes e pequenas
do norte nessa noite de tão formosas e prazenteiras tradições.

Não o afamado bolo de S. João, que só nas mesas ricas
ou ao menos abastadas costuma aparecer, mas uns bolos de mandioca estavam
assando no forno, e por terem sido feitos pelas duas filhas de Victorino mereciam
a honra de ser visitados por elas enquanto não ficavam no tom de apresentar-se.

Entre os hospedes apontavam-se mais de meia dúzia, que eram afamados
tocadores de viola e guitarra. Alguns deles temperavam já os seus instrumentos
para dar principio ao samba.

No pátio, junto da fogueira, uns meninos descalços, de camisas
compridas, rodeavam Saturnino, que, de quando em quando, cantarolando e pulando
de alegria, descarregava um clavinote, em honra do santo folgazão.
A estes tiros, soltados no terreiro, respondiam outros, também de armas
de fogo, com que habitantes dos vales e da beira dos caminhos davam noticias
suas. Trocavam assim os vizinhos, através das distancias, seus cumprimentos
e as demonstrações do seu inocente prazer.

Aquele que nunca saiu da corte, onde os regozijos públicos se vestem
de fitas, sedas, bandeiras, arcarias de sarrafos pintados, iluminações
graciosas, fogos de artificio, apresentando o conjunto vistosas cores, caprichosas
formas, elegantes perfis, não imagina que sem este aparato deslumbrante,
e unicamente com a matéria prima que oferece a natureza, possam preparar-se
deleitosos momentos para os espíritos mais difíceis de contentar.
Não é outra porém a verdade. Ilumina-se com uma fogueira
o pátio da casa, no qual se vê uma laranjeira florida, uma mangueira
copada, um cajueiro ramalhudo. Enche-se o pátio do riso argentino das
crianças, do assobio dos moleques, dos sons da viola, das saudosissimas
toadas do matuto cantador, das harmonias melancólicas da gaita tocada
pelo negro do engenho. Tanto basta para que voe o tempo com a rapidez do raio
e a satisfação das gentes de campo nada tenha que invejar a
que trazem aos habitantes das cidades as musicas de pancadaria, os fogos artificiais,
os esplendores agradáveis a vista com que celebram suas alegrias.

Meia hora não se tinha ainda passado depois da chegada de Lourenço,
a casa de Victorino, quando nadava com os demais em um mar de indescritível
contentamento. Todos os de casa e até os de fora já tinham visto
a sombra de suas cabeças ao acender das fogueiras, sinal de que não
morreriam aquele ano. Achando-se fora de duvida este ponto, não havia
razão para que a alegria não fosse a primeira senão a
única expressão de todos os semblantes. Por isso uns gracejavam,
outros riam, outros tocavam seus instrumentos, e todos comiam e bebiam no
seio da plenissima confiança que caracterizava aquelas épocas
como se foram todos membros da mesma família.

Marianinha porém, no meio do prazer imenso de que cada um tinha o
seu quinhão, deixava-se tomar naturalmente de ligeira sombra de tristeza,
não obstante dever ser em verdade o seu quinhão de prazer muito
mais avultado do que o de qualquer dos convivas.

Não era verdadeiramente uma sombra de tristeza a que anuviava interpoladamente
o seu rosto iluminado pela suave pureza da juventude. Era, sim, a asa pardacenta
de receio traiçoeiro ou de duvida intima a causa do intermitente eclipse
daqueles olhos negros e vivos, daquele sorriso franco e loução,
daquela voz afinada pelas harpas dos sabiás e dos curiós que
cantavam ao nascer e ao pôr do sol nas ramalhudas pitombeiras do quintal.

Quando seus olhos se encontravam com os de Lourenço, a nuvem se adelgaçava
e desvanecia como fumo, e o brilho da face, antes escasso, parecia agora o
de uma constelação. Se o filho de Francisco dirigia a Bernardina
as mesmas palavras, os mesmos gracejos que tinham feito reacender-se no rosto
de Marianinha a graça, a vida interrompida quando não eram outros
mais languidos e ternos, nova interrupção vinha cortar ai a
ventura recentemente morta e logo renascida. Havia naquele coração
de mulher o ciúme antes mesmo do amor; havia o receio de perder a felicidade
que aliás não existia senão no seu desejo, e na promessa
que lhe fizera Francisco.

Marianinha de feito enganava-se. Toda ela era afetos por Lourenço;
mas este não tinha para ela especiais atenções.

Mas, fosse engano, ilusão ou infantil confiança, esse amor
fantástico, ideal, impossível talvez enchia-lhe o coração
de suavíssimos fulgores, a alma de todos os perfumes e cânticos
do paraíso terreal, de que ela tinha uma ligeira noticia por ouvir,
quando era menina, a historia do princípio do mundo a uma velhota das
bandas de Nossa-Senhora-do-ó. Quando na manhã seguinte ela foi
achar murcho o dente d’alho que enterrara na horta ao acender da fogueira,
o que importava profético sinal de que Lourenço não casaria
com ela, os olhos se lhe encheram de lágrimas. Supersticiosa e crédula,
como é a mulher em geral e a filha do povo em particular, a pobre menina
por um triz não deu consigo em terra, tão grande foi o golpe
que atravessou seu coração.

Não aconteceu já o mesmo a Bernardina. Para esta noite de S.João
foi uma grande aurora sem intervalos. Suas aspirações sendo
menos altas, a sorte apressou-se em cercá-las de risonhos anuncios.
Era de feito modesto o objeto delas. Este objeto era Saturnino, o qual, posto
não sentisse por ela grande inclinação, antes se inclinasse
mais para Marianinha, se sentia inevitavelmente arrastrado pela gentileza
franca, pelos requebros feiticeiros, pelos ditos engraçados, e especialmente
pelos agrados da rapariga.

Sempre que Saturnino pensava em sua condição obscura – a condição
do cargueiro, do almocreve sem eira nem beira – não podia ser indiferente
aos afetos de sua prima, a qual, quando por outra coisa não fosse,
tinha o direito de aspirar, por seus belos olhos, a um casamento mais vantajoso.
Bernardina porém não encaminhava seus pensamentos para o terreno
árido e escabroso das condições sociais. Tinha amor a
seu primo, e este amor apagava, no conceito dela, as diferenças pessoais
e nivelava a sua condição e a de seu primo. O certo é
que o alho que ela plantara ao pé do de sua irmã, amanheceu
com o caule de fora e como pendoado; o nome que ouviu publicar no momento
de se acender a fogueira, principiava pela letra inicial do de Saturnino.
E para coroar as suas esperanças, achou o grão de arroz que
ela meteu em um dos três pedaços em que dividira o bocado de
feijão por ocasião do jantar, não no que tinha escondido
na soleira da porta do fundo não no do meio, mas no da frente. Não
havia pois que duvidar. S. João dizia que ela se casaria, não
dai a três ou a dois anos, mas no próprio ano presente.

Seriam oito horas quando Joaquina começou a distribuir pelos hospedes,
em tigelinhas de barro, a canjica saborosa.

Marianinha, esquecida do que lhe acontecera por ocasião de oferecer
a Lourenço a cajuada, adiantou-se para o servir, corada e tremula.
Deste vez não houve formal recusa como da outra: Lourenço recebeu
a tigela e esvaziou-a em poucos instantes; mas, levantando-se imediatamente,
pegou do chapéu, e encaminhando-se para a porta, disse:

Vou-me embora, minha gente. A festa está muito boa, mas vem muita
chuva, e eu tenho ainda de levar minha mãe do engenho para o Cajueiro.
Entrei para me recolher da neblina, e ia-me esquecendo da minha obrigação.

Ó xentes! Disseram do lado umas rapariguinhas das vizinhanças
que tinham chegado minutos antes. Já vai tão cedo?

Que é isso, Lourenço? Perguntou Victorino colando-se em frente
do rapaz, como quem queria embargar-lhe o passo. Estás gracejando,
ou falas sério?

– Falo sério, seu Victorino. Vou-me embora.

– Ora, deixa-te disso. Hoje é noite de S. João.

– Por isso mesmo. Minha mãe está esperando por mim, e não
é bonito que eu me deixe ficar aqui a divertir-me quando ela está
com os olhos no caminho para me ver chegar. E Francisco ainda não voltou
da viagem a cidade?

Até eu sair para a vila, ela não tinha chegado. Mas prometeu
que havia de vir comer conosco milho assado hoje de noite.

Pois então, se tens esta certeza, para que semelhante pressa? Assim
que ele chegar, virá logo até cá.

– Ele não sabe que eu estou aqui.

– A comadre lhe há de dizer logo, e ele há de vir. Fica, rapaz.
Precisamos de ti para cantares.

– Não posso, seu Victorino.

As filhas do almocreve, compreendendo o perigo em que se achavam, de perder
tão boa perna para a folgança, como era Lourenço, espontaneamente
uniram seus pedidos ao do pai.

– Fique, Lourenço, fique, disse Bernardina.

– Deixe-se de escusas, acrescentou Marianinha timidamente.

Estas e outras instancias e intervenções determinaram afinal
o rapaz a mudar de resolução, e a satisfazer aos rogos gerais.

Tratou-se então de principiar logo o samba. Esta providencia era aconselhadas
pelo interesse comum. Era o meio de prender os hospedes a casa. Além
disso não faltava nada para começar a dança. Uma das
primeiras violas do lugar – o Chico Pedro; uma das primeiras vozes – Lourenço;
os melhores dançadores – Nicolau e Roberto, estavam todos ali. Não
faltava aguardente, nem milho verde, nem bolos. As raparigas mostravam-se
bem dispostas, e algumas até impacientes por verem formar-se a roda.
A fogueira dava estalidos festivos. O tempo prometia limpar. O concurso dos
convidados engrossava cada vez mais. Enfim, em menos de um quarto de hora,
bateu o pinho, e rompeu o samba de gosto.

Lourenço, tendo tomado uma pouca da cana, temperou a guela e soltou
sua grande voz ao pé do violeiro, enquanto Bernardina, Mariquinha,
as filhas da Bernarda, os sobrinhos do velho Cosme, o Manoel João,
o Jacinto da Luzia e muitos outros caiam na roda por sua vez, tripudiando,
fazendo recortes e negaças com o corpo, atirando embigadas na forma
do imemorial estilo.

O canto de Lourenço era monótono como o dos sambistas em geral,
mas a letra variava e tinha as graças naturais das composições
do povo.

Eis algumas das quadras com que o rapaz gratificou a companhia. Muitas delas
ainda hoje em dia têm extensa voga entre os matutos de Pernambuco, aos
quais as ouvi mais de uma vez, jornadeando, entre fins de novembro e princípios
de dezembro, do Recife para Goiana nos meus tempos escolares. Elas pertencem
exclusivamente ao povo, e eu aqui as dou com a exatidão com que as
recebi da grande musa que as produziu.

Minha mulata, eu tenho

Vontade de te servir;

De dia falta-me o tempo,

De noite quero dormir.

Vou-me embora, vou-me embora

Para minha terra vou;

Se eu aqui não sou querido,

Lá na minha terra sou.

Quando eu me for não choreis,

Que são penas que me dais;

Deixai o chorar prá mim,

Que eu me vou, não venho mais.

Manjericão verde-escuro

Tem a folha miudinha;

Só em te ver eu te amo:

Que fora se fosses minha?

Passei pela tua porta,

Pus a mão na fechadura;

Eu falei, tu não falaste,

Coração de pedra dura.

Meu passarinho tão manso,

Das minhas mãos escapou;

Para mais penas me dar,

Penas nas mãos me deixou.

– Molha a guela, Lourenço, molha a guela com a patricia – disse neste
ponto ao cantador o Ignacio Macambira. A patricia é o vinho do pobre
– acrescentou Chico – rosado.

E Victorino, despejando aguardente na xícara, que não estava
quieta um só instante em cima da banquinha do canto da sala, apresentou-a
a Lourenço, que dela tomou um trago forte.

Mas como se sentia cansado, poucos versos cantou ainda, e concluiu pelo seguinte:

As convivências do mundo

São amparo da pobreza;

Enquanto o pobre convive,

Não se lembra da riqueza.

– Aqui está o lugar para quem quiser, minha gente, disse ele, sentando-se.

– Deste tão cedo parte de fraco?

– É enquanto tomo fôlego.

– Quem vem? Quem vem? perguntou o violeiro. Quem vem, venha logo, que o fogo
está esfriando.

– Vai tu, Bernardina – disse Victorino.

– Muito bem, Victorino.

– Logo, logo, Bernardina.

A rapariga foi ocupar o lugar deixado por Lourenço.

Capítulo XIV

A voz de Bernardina era volumosa e límpida. As mulheres invejavam
a filha mais velha de foreiro este grande dote que atraia os homens a ela
e lhe dava o prestigio e o renome de uma sereia. Não sendo tão
bonita, como a irmã, via entretanto em roda como de se um sem numero
de entusiastas e adoradores sempre que exercitava o seu divino privilegio.
Por isso, quando rapariga se encaminhou para o lugar que Lourenço deixara
desocupado, surdo rumor, indicio da curiosidade, se fez ouvir em todos os
cantos do casebre. Seguiu-se-lhe porém logo profundo silencio.

Eis os versos que a matutinha cantou por entre aplausos repetidos e frenéticos:

Benzinho, quando te fores,

Escreve-me do caminho;

Se não achares papel,

Nas asas de um passarinho.

Assim, assim, Bernardina – disseram três ou quatro convivas, enfeitiçados
do desembaraço, já conhecido, da filha do dono da casa.

A rapariga, requebrando-se senhorilmente, prosseguiu relanceando os olhos
para o namorado, que a esse tempo, já tinha desamparado o terreiro
e encostado a um canto o clavinote:

Da boca faze o tinteiro,

Da língua pena aparada,

Dos dentes letra miúda,

Dos olhos carta fechada.

Oh, que rapariga candeia! exclamou o Ignacio Macambira, sem poder conter
o entusiasmo, acrescentado pela cana.

Bernardina prosseguiu:

Manjericão verde cheira,

Ele seco cheira mais;

Mulher que se fia em homem

Anda sempre dando ais.

Eu de cá e tu de lá,

Fica um rio de permeio;

Tu de lá dás um suspiro,

Eu de cá suspiro e meio.

Meu coração é de vidro,

Feito de mil travações:

Com qualquer coisa se quebra,

Não atura ingratidões.

Longo tempo levou Bernardina a cantar, ora variando, ora repetindo as letras
ao paladar dos circunstantes.

No mais aceso do samba, quando não só se ouviam os sons das
violas, mas também os ásperos rechinar das costas da faca sobre
a botija segundo praticam em ajuntamentos tais; quando os aplausos se manifestavam
por meio de gritos e gargalhadas estridentes; quando não se dançava
só o cocô e o baiano, mas uma mistura de todas as danças
populares com o acréscimo da fantasia de cada um, escaldada pelos vapores
espirituosos; quando enfim era tudo algazarra, derriços pouco decentes,
demonstrações menos dignas, apareceu um novo conviva no meio
da multidão. Era Francisco, o qual, depois da entrega das cartas no
engenho, viera em busca do filho, pelo motivo que adiante saberemos.

Não podia o matuto chegar mais oportunamente àquele ponto.
No momento exatamente em que ele se fez ver por entre a matutada que enchia
a salinha, sentiu Lourenço bater-lhe no ombro pesada mão, que
o obrigou a voltar-se, a fim de saber quem era que lhe fazia tão estranho
cumprimento. O rapaz reconheceu o Tunda-Cumbe.

Em poucas palavras poremos o leitor a par deste sujeito, que tão importante
papel desempenhou na Guerra-dos-mascates. E para que o retrato venha com o
cunho de severa autenticidade, preencheremos a nossa promessa trasladando
aqui as próprias palavras em que um cronista pernambucano o descreveu
para conhecimento da posteridade. < Este sujeito era um homem rústico
e grosseiro, de idade já maior, que do reino de Portugal tinha há
anos vindo para esta terra, trazendo da sua, por divisa, uma grande cutilada
no rosto, ou para que a se não desconhecesse, ou para que por ela fosse
conhecido; mas diziam que por usar do oficio de parteira, e para disfarçá-la
de algum modo, conservava os seus bigodes, ou mustachos, em tempo que ninguém
fazia caso deles. Buscando meios de poder acomodar-se, fez em Goiana assento
de feitor, por seu salário em casa do sargento-mór Matias Vidal,
a fim de no serviço dirigir os negros; mas estes, conspirando-se contra
ele em certo dia, lhe deram uma pista de pancadas que na etiópica língua
chamam Tunda, e o lugar onde lhe deram chama-se Cumbe. Como se fez o caso
publico, por antonosia lhe chamavam o Tunda-Cumbe, e sendo por este nome de
todos conhecido, como quem faz do sambenito gala, quis do modo como era apelidado,
apelidar-se. Daí se foi para a freguesia da Várzea, e nela esteve
com o mesmo exercício de feitor do Capitão Lourenço do
Cunha Moreno, e depois tornou para Goiana, e se fez almocreve de peixe, indo,
com uma besta, a buscá-lo pelas praias, e pelas portas dos moradores
a vendê-lo: nesta ordem de vida se manteve até que sucedeu o
levante do Recife, em que tomou parte, que veremos.

– Então, menino cantador, disse o Tunda-Cumbe a Lourenço, com
entono e arrogância mais de quem agredia, do que perguntava – será
certo que você está apaixonado pela Bernardina? Pois olhe, quero
preveni-lo de uma coisa, para que depois não vá você chamar-se
ao engano. Sabe muito bem que todas as semanas, da Sexta para o sábado,
ando eu por estas bandas a vender o meu peixe.

– Sei, disse Lourenço, sem se alterar, com os olhos postos, como quem
nisso tinha propósito, na funda cicatriz do Tunda-Cumbe não
tão oculta pelo espesso bigode, que se não pudesse deixar ver.

– Pois fique sabendo mais que aquilo é tainha que eu tenho contado
há de cair, mais dia, dentro do meu caçuá.

– Você refere-se a Bernardina?

– A ela mesma é que me estou referindo, sim, senhor.

Pois eu também quero dizer-lhe uma coisa. Eu com ela nada tenho. Se
canto e gracejo com a rapariga, é porque tenho amizade na casa. Nela
não tenho intenção de espécie nenhuma, porque,
quando a gente não sente inclinação para uma mulher,
por muito que ela se derrengue para a gente, não passa tudo isso de
divertimento sem maldade. Mas como diz você que já conta com
aquela tainha no seu caçuá, a coisa muda de figura.

– Menino – tornou o Tunda-Cumbe, você para Ter comigo esta linguagem,
preciso fora primeiro que ou não estivesse no seu juízo, ou
não me conhecesse devidamente. Saberá acaso com quem é
que está falando?

– Sei muito bem que estou falando com seu Manoel Gonçalves Tunda-Cumbe.

Pois então veja d’ora em diante como anda. Depois não
vá dizendo que Santo Antonio o enganou.

– Você é que parece estar enganado comigo, retorquiu-lhe Lourenço,
sentindo faiscar-lhe já os olhos. Eu há muito tempo não
faço uma das minhas, mas, em ocasião se oferecendo, não
lhe hei de torcer a cara, e bem pode acontecer quem para ficar você
melhor assinalado, lhe vá eu deixar no queixo direito o golpe que lhe
falta para fazer parelha com o que lhe plantaram no outro queixo, quando você
tinha o oficio de partejar na santa terrinha.

A violência desta represália deixou perplexo, e como espantado
por momentos o Tunda-Cumbe, pouco habituado, não obstante a tunda sabida,
a ouvir cara a cara tão pesadas reprimendas.

Não conhecia ele o Lourenço senão de o ver uma vez por
outra almocrevando, e pensou que com a simples ameaça, sendo tão
conhecido por seus feitos que, em abono da verdade, davam para um in-fólio,
levaria logo o terror ao animo do rapaz. o seu desengano foi formal, ou como
quem procurava recursos e força dentro em se mesmo, Tunda-Cumbe esteve
um instante sem proferir palavra, dizendo porém mil coisas pelos olhos
que não arredou de sobre a cara de Lourenço.

– Não embatuque por tão pouco, acrescentou este como em acrescentamento
do pouco caso em que revelara ter o seu agressor. O que você disse está
dito; não queira agora tornar atrás, que você seria mais
desprezível do que a besta em que costuma vender o seu peixe velho
e moído, se recuasse depois desta avançada. Agora, de que eu
sou capaz de fazer o que prometi, você a seu tempo há de ter
a prova. E para que fique logo conhecendo que eu não sou de caixas
encoiradas e que aonde vou não mando, veja lá como me ponho
já a derreter com a filha de seu Victorino, mesmo aqui nos seus bigodes.

Todo este dialogo, posto que faiscante e eriçado de perigos, não
foi pressentido por nenhum dos circunstantes, a não ser por Francisco.
Este mesmo o não teria testemunhado se não fora a circunstância
especial que diremos. Ao chegar, talvez por fugir de ser convidado a cantar,
se colocara por traz de umas esteiras, que tinham sido postas de pé
em um dos cantos do casebre. Foi daí que tudo viu e ouviu sem ser visto,
oculto pela concorrência.

Lourenço, se bem o disse, melhor fez. Logo que se lhe ofereceu ocasião,
caiu no meio da roda. Fez o seu sapateado, deu meia dúzia de castanholas,
atirou uma embigada na rapariga que lhe ficava mais perto, e foi colocar-se
ao pé do violeiro, fronteiro à Bernardina, que ainda estava
deliciando os sambistas com suas graciosas vozes.

Quando Bernardina conheceu que Lourenço tinha ido colocar-se ali para
alternar com ela as cantigas, empalideceu, mas sorriu. O desafio lhe era agradável,
posto que fosse mais forte do que ela o seu contendor. De seu natural vaidosa
e leviana, nunca recusou demonstrações de apreço a Lourenço,
embora tivesse o coração quase todo ocupado pela imagem de Saturnino.

Lourenço cantou este verso:

Boca de cravo da Índia,

Dentes de marfim dourado,

Quando meus olhos te viram,

Meu corpo fez um pecado.

Bernardina respondeu com est’outro:

Você vai prá sua terra,

Bem pudera me levar;

Prá saber que eu quero ir

Não carece perguntar.

Lourenço retorquiu:

Dei um nó na fita verde,

Dei-lhe a fita de presente;

Você fala, e não repara

Que estamos diante de gente.

Eis a resposta da rapariga:

Amores, quando te fores,

Antes de ir tira-me a vida,

Que eu não tenho coração

De ver a tua partida.

O desafio foi neste ponto interrompido por um rumor inesperado, idêntico
ao que produz o arranco de onça por entre a folhagem. Não uma
onça, mas o Tunda-Cumbe tinha atravessado de um salto, causa do rumor,
a primeira ordem de pessoas que formavam o circulo, e achava-se ao pé
de Lourenço, com a catana levantada contra o rapaz. Mas ainda bem não
erguia o braço armado, quando um homem, saído, como ele, violentamente
dentre os circunstantes, se interpunha entre o agressor e o agredido, tendo
na mão fora da bainha a faca que trazia ao cós. O homem não
era outro senão Francisco.

Cessaram imediatamente as vozes dos cantores e instrumentos, e todas as vistas
e atenções concentraram-se no ponto do conflito.

– – Que ação é esta, seu Tunda-Cumbe? perguntou Francisco
a Manoel Gonçalves. O que vosmecê fizer a meu filho, terá
feito a mim mesmo. O que eu quero é que me digam o motivo deste barulho,
disse Victorino apresentando-se.

É que este menino ainda não achou quem lhe desse o ensino de
que precisa, respondeu Manoel Gonçalves.

– O que eu quero saber é o motivo do barulho, repetiu Victorino.

– Você o saberá quando for tempo. Palavra de Manoel Gonçalves
Tunda-Cumbe.

Lourenço, que até então guardara silêncio, rugiu
a meia voz:

Eu se não me for embora daqui, faço as todinhas e acabo ainda
com muito sol. O sangue está a ferver-me.

Entretanto, o Tunda-Cumbe metera a catana na bainha, e Francisco tinha feito
o mesmo com a faca.

Victorino virou-se para este ultimo, enquanto aquele se afastava dando a
um e a outro a razão do seu procedimento; e a meia voz perguntou:

– Viu você o principio da briga, compadre? Se viu, conte-me a historia
como foi.

Para dizer a verdade, eu não sei bem a causa da contenda. Mas parece-me
que a Bernardina anda no meio. Tenha paciência, compadre, e perdoe o
que lhe vou dizer. É preciso acabar com estes sambas em sua casa. Quem
tem filhas, não abre as suas portas assim a Deus e ao mundo.

– Eu não convidei o Tunda-Cumbe para o meu divertimento. Se ele entrou
aqui foi confiado em ser nosso freguês de peixe.

– Pois abra os olhos, que ele disse que a Bernardina é tainha que
ainda há de cair no seu caçuá. E adeus, adeus. Vamos,
Lourenço.

– Pois ele disse isto, meu compadre? Ele não conhece Victorino.

Quando Francisco chegou com o filho à porta do casebre, achou aí
da banda de fora o Victorino, o Tunda-Cumbe e um pardo de Goiana que tinha
o oficio de sapateiro. A este último dizia o Tunda-Cumbe as seguintes
palavras:

– Diga a seu Antonio Coelho que fico entendido do recado, que me mandou por
você e daqui a pouco lá estarei.

O pardo, por nome Lauriano, saiu, e o Victorino dirigiu-se nestes termos
a Manoel Gonçalves:

Seu Tunda-Cumbe , eu quero dizer-lhe os meus sentimentos. A Bernardina é
solteira, mas já tem noivo. Por isso escusa andar vosmecê a fazer
desordens na casa alheia por causa dela.

– Eu bem sei donde partem estas historias e por saber donde elas partem é
que as suas palavras me entram por um ouvido e me saem pelo outro. Se a Bernardina
tiver de ser minha, não há de ser nem você nem seus parceiros
que tenham forças para o impedir. Não seja tolo, Victorino.

Dizendo estas palavras, Manoel Gonçalves ganhou a besta de um salto
e tomou a correr, a caminho de Goiana.

– Que lhe disse eu, compadre? Observou Francisco, que chegara ao lado de
fora ainda a tempo de ouvir as últimas palavras do Tunda-Cumbe. Tome
suas cautelas. Aquele malvado é traiçoeiro e está avezado
a tirar moças solteiras da casa de seus pais.

– Ele poderá tirar alguma das minhas filhas; mas para fazer isso será
preciso que primeiro me tenha morto e bem morto. Vou acabar já com
esta festa.

Fosse, porém, que os espíritos estavam muito exaltados para
atenderem às prudentes considerações do foreiro, fosse
que Victorino não quis desagradar àqueles que lhe honravam a
casa com sua presença, o samba ferveu até o amanhecer do dia,
aos estouros intermitentes do bacamarte de Saturnino, e aos gritos de – Viva
S. João – soltados pelos diferentes sambistas, alguns apenas alegres,
outros inteiramente entregues ao espírito vertiginoso da cana.

Capítulo XV

Que razão teve Francisco para, apenas chegado da capital, ir em demanda
do filho? Seria acaso para evitar que o rapaz se deixasse envolver em algum
distúrbio como aconteceu? Seria para fazê-lo sair da desordem,
segundo fez, no caso de já o achar colhido nas malhas dela?

A razão foi outra. Não temia Francisco os perigos do samba.
Desde pequeno sentia paixão por este divertimento, de que fora ardente
cultor na mocidade. Grande parte dos versos com que Lourenço deliciara
os festeiros da casa de Victorino, ele os aprendera de Francisco, insigne
cantador e repentista. A fama deste ultimo era tal que muitos dos matutos
daquelas vizinhanças andavam espreitando a ocasião de ir Francisco
ao Recife para fazerem com ele as suas viagens. É fácil a explicação
deste procedimento.

Em sua companhia, as longas noites que tinham de curtir na travessa de muitas
léguas de solidões quase inteiramente inabitadas, eram suavizados
pelos formosos cantares do matuto. Que soberbos serões não tiveram
eles, ao luar, as redes armadas debaixo das arvores, os cavalos pastando peiados
em frente a pousada, a viola quebrando com seus sons deleitosos a mudez da
noite, e Francisco enchendo o deserto com as inspirações de
sua musa soberana e as harmonias de sua voz rica de ternura e de saudade!

Razão muito diferente teve o almocreve para procurar Lourenço.

As noticias da guerra, trazidas por ele da capital, eram de suma gravidade.
Ele próprio tinha ouvido em Olinda contar-se muito caso triste. Aí
soube o que projetavam os mascates e os nobres. Com seus próprios olhos
testemunhou os aprestos para a guerra. Viu de perto a chama imensa que começara
a incendiar a província. João da Cunha, lidas as cartas, fez-lhe
varias indagações, e com ele os amigos presentes, sobre o quetinha
visto e sabia. Combinadas as informações pessoais do morador
com as noticias enviadas por Amador da Cunha, por André, e por outros,
forçado lhe foi reconhecer que, atirado o facho da revolução
aos quatro ventos, dentro em pouco prenderia fogo a vila de Goiana, para onde
emissários particulares dos portugueses tinham sido adrede mandados,
e na qual contavam eles parciais poderosos de meios e valorosos de animo.

Entre estes apontavam-se Antonio Coelho, sujeito de grandes espíritos;
Jeronimo Paes dinheiroso marchante, não menos ardente do que o primeiro;
Belchior Ferreira, rábula que, posto fosse filho da terra, bem como
o meirinho Romão da Silva que dele recebia diariamente lições
incendiarias, destinadas a decidir a gentalha do lugar a tomar o partido dos
mercadores, fazia grandes entradas nos espíritos por falar em nome
da liberdade do povo; Manoel Gaudencio, alfaiate pernóstico, patranheiro
e ambicioso, que aspirava a melhorar de oficio com a descida dos nobres e
a subida dos negociantes.

O principio, ou antes os interesses contrários aos que estes sujeitos,
e outros de idênticos sentimentos e intuitos, sustentavam eram representados
pelos cavalheiros que já apontamos, isto é, pelos senhores-de-engenho
e pelas primeiras autoridades, assim civis, como militares da localidade.

Só uma vista curta não verá na guerra dos mascates,
antes uma luta travada por dois grandes princípios, do que uma revolta
filha de preconceitos ridículos e costumes atrasados. Certo concorreram
não pouco para essa luta o costume e o capricho antigo, inflexíveis
ambos; mas o seu papel nessa grande representação foi mais secundário
do que principal. A parte essencial e verdadeiramente dramática da
ação, essa pertencia a dois grandes interesses, assim das sociedades
modernas, como das antigas – ao comercio e a agricultura, princípios
que, quando acordes em seu desenvolvimento, trazem a properidade e riqueza
dos povos, e, quando divergentes, o seu atraso senão o seu aniquilamento.

As cartas de que Francisco foi portador, em substancia rezavam:

Que a guerra, declarada pelos forasteiros contra os pernambucanos e o governo
legal, e já em principio de execução, prometia ser de
vida e morte, atentos os meios de que dispunham aqueles, e o empenho em que
se mostravam de aniquilar estes;

Que esses meios, eram imensos e consistiam não só em viveres
acumulados durante os seis meses últimos nos armazéns do Recife,
mas também em grossas quantias com que eles habilitavam os seus confidentes
nas localidades mais importantes a propagar e alentar a premeditada hostilidade;

Que esta hostilidade era tanto mais digna de temer-se quanto a patrocinavam,
dando toda a força que podiam aos negociantes do Recife, o governador
Caldas, da Baia, onde estava, e até alguns fidalgos portugueses, por
exemplo d. Francisco de Souza e seu filho d. João de Souza, que se
achavam então no sul da província;

À influencia destes dois fidalgos já deviam os mascates a forte
cooperação do coronel dos índios do Cabo, d. Sebastião
Pinheiro Camarão, parente do grande Camarão, que tanto brilhara
na guerra holandesa. D. Sebastião Pinheiro deixara seduzir-se por eles,
bem como outros importantes moradores da freguesia do Cabo;

Que tinha Amador da Cunha (irmão de João da Cunha) recebido
ordem do capitão-mór de Jaboatão para ir com sua gente
por certo ao Recife, segundo o acordo havido com os capitães-móres
de Maranguape, Iguarassú, Várzea, Santo-Antão, São-Lourenço,
Nossa-Senhora-da-Luz, Ipojuca, Tracunhaem, Serinhaem e outras freguesias,
afim de ver se conseguia que se rendessem os revoltosos;

Que a ele, Amador, se lhe afigurava, pelos obstáculos conhecidos ou
calculados, terem os pernambucanos guerra para muitos anos, se Deus não
conjurasse o medonho cataclismo que ameaçava devorar honras, fortunas
e vidas.

Enfim, tanto as cartas de Amador, como as de André e outros, acordes
em quase todos os pontos e noticias, respiravam sobressaltos, inquietações
e até desanimo. Havia porém no meio das trevas, que traziam,
um ponto luminoso, que em todos os corações projetou um raio
de esperança. Era a noticia de que o bispo se tinha libertado, por
uma pia fraude, do poder dos mercadores.

O ódio, a ira, o receio, a impaciência e outros diferentes sentimentos
tiveram por minutos perplexo e mudo o senhor-de-engenho.

Quando estava para tomar parte nas reflexões que os outros, durante
o seu silencio, iam fazendo sobre o objeto da correspondência lida,
umas das senhoras que se achavam na sala imediata, apareceu à porta
do aposento. Era a mulher de Matias Vidal.

– É então certo que os mascates se mostram fortes e insolentes?
Perguntou ela ao sargento-mór.

– Quem vos disse tal, senhora d. Izabel? Retorquiu ele.

– As cartas que acabastes de ler, respondeu d. Damiana, aparecendo também.
Daqui ouvimos toda a leitura.

– Infelizmente parece que vamos ter guerra para muito tempo.

– Que vos dizia eu ainda ontem, Matias? Disse d. Izabel, dirigindo-se ao
marido.

– As guerras, observou Manoel de Lacerda, se trazem males, também
trazem bens. Demos tempo ao tempo.

E levantando-se, encaminhou-se para a sala, aonde d. Damiana e d. Izabel
retrocederam logo. Já aí estavam Cosme Bezerra e Filipe Cavalcanti,
que a ele tinham precedido e conversavam com outras senhoras presentes.

– Estes mascotes não estão em si, dizia d. Maria Bezerra a
seu marido. Não querem ver que não podem levar a melhor a nobreza
da terra. Até os de Goiana, que não são muitos, hão
de apresentar-se contra os nobres, disse o alcaide-mor.

Também os de Goiana? Inquiriu com incredulidade a mulher de João
da Cunha. A senhora d. Damiana duvida que o façam? É porque
ignora que os do Recife mandaram grossas quantias para cá comprar a
gentalha que nos odeia. Antonio Coelho, do balcão de sua loja, que
considera um trono, só tem para os nobres injurias e desprezos. Belchior
Ferreira, de certo tempo a esta parte, monta guarda a horas certas todos os
dias, em companhia de Romão, na botica do Rogoberto, e leva horas a
dizer maldades e aleives contra os senhores de engenho.

Não admira, Tras sempre a imaginação excitada pelo vinho
que lhe dá a beber Antonio Coelho, os olhos encandeados pelo ouro que
lhe mostra, mas não lhe dá, Jeronimo Paes, disse Cosme Bezerra.

Tenha a senhora d. Izabel certeza de que dentro em pouco há de soar
em Goiana o grito da rebelião. Quem sabe se a este momento não
estão tramando nos esconderijos dos seus armazéns, Antonio Coelho
com seus sequazes, a destruição de todos nós?

– Façam o que fizerem – observou a mulher do sargento-mór,
Goiana não há de render-se a eles. Porque não há
de render-se?

– Não sabemos todos que Goiana é invencível porque todas
suas igrejas têm as frentes voltadas para dentro dela?

– É verdade – disse uma senhora, que até esse ponto assistira
à conversação sem tomar parte nela.

– E d. Maria Bezerra acudiu em apoio da velha, confirmando o que dela ouvira.
Abusões do povo, contestou Cosme.

– Os antigos já o diziam, replicou d. Maria e os antigos não
diziam senão a verdade. Minha avó contava-me muitos casos de
guerras, em que os que vinham a tomar Goiana ficavam destruídos ou
presos nela, e nunca a puderam dominar. Os santos das igrejas olham pelos
moradores. Vão lá contar destas historias a Antonio Coelho e
a Jeronimo Paes, que hão de vê-los responder à crença
do povo com risos mofadores. É porque eles são dois refinados
hereges, disse a velhota. E como hereges hão de acabar. Quem for vivo
há de ver. Talvez que nesta guerra mesma que eles preparam, venha o
seu fim encoberto.

O crepitar das labaredas com que as fogueiras iluminavam todo o largo pátio
do engenho; as detonações das armas de fogo que de todos os
lados estavam indicando quanto o S. João é estimado pelo povo,
fizeram enfim inclinar para a festa as atenções até então
absorvidas nas tristes apreensões que o grave acontecimento suscitava.

Como se compreendessem a conveniência de auxiliar esta nova disposição
dos espíritos, as escravas copeiras entraram nesse momento na sala,
conduzindo bandejas com bolos e doces, de que começaram a servir-se
os hospedes.

Dentro em pouco a conversação, ainda presa por uma ponta à
guerra, espalhava-se pela outra em vários assuntos mais próximos
e positivos. Praticou-se da abundância das chuvas, e do mal que tinham
feito às canas e à roça; da escassez da farinha; da carestia
da fazenda.

A razão porque a farinha não aparece no mercado, observou Manoel
de Lacerda, é porque os mascates se atravessam e compram por atacado
a que encontram. A razão do alto preço da fazenda é porque
são eles os que a vendem.

Vai por estes dias à praça o engenho de Martins por execução
que lhe move o Porto, disse Felipe Cavalcanti. Por um ano que Porto levou
a suprir o engenho de Martins, fez-se credor deste em avultada quantia. Absorveu-lhe
três ou quatro safras, e por fim, não contente com este resultado
ainda, propôs-lhe ação em juízo e o obriga agora
a dar o engenho a pagamento. Entretanto, observou Cosme Bezerra, Porto está
rico. O açúcar, que recebia do Martins, em pagamento, a 400
réis a arroba, remetia a seus correspondentes na Europa à razão
de 1$400.

– Só por este modo poderia ele abrir os dois importantes armazéns
que estabeleceu no Beco-do-pavão, observou Jorge Cavalcanti.

– E que é feito de Martins? Perguntou um.

– Está pobre, e é hoje meu lavrador, respondeu Matias Vidal.

– E não havemos de pegar em armas contra os mascates! Exclamou Cosme
Bezerra.

Foi neste ponto interrompida a conversação pela entrada de
Francisco e de Lourenço. Vendo-os, o sargento-mór chamou-os
ao gabinete onde minutos antes se celebrara em família a grave conferencia
a que assistimos.

– Aqui está o rapaz, seu sargento-mór, disse Francisco, entrando
no gabinete.

Estava impaciente pela tua volta. Dize-me cá. O rapaz poderá
partir para a capital, ao nascer da lua?

– Quem? Eu? perguntou Lourenço.

– Tu mesmo, Lourenço.

– Posso partir já, assim o ordene vosmecê.

– Estás pronto de tudo?

– De tudo estou, porque nada tenho que aprontar.

– Se Francisco não tivesse chegado há pouco, ele é que
havia de ir. A incumbência é de gravidade.

– E que tem que eu tivesse chegado há pouco? Perguntou o matuto.

– Estás cansado. Já não és menino para resistires
a duas jornadas forçadas uma atrás da outra.

Perdoe-me vosmecê, seu sargento-mór. Muito me agrada fazer pessoa
em meu filho. Mas se é somente por me supor cansado da viagem que o
escolheu, dê preferência a mim, para ir à cidade, eu devo
dizer a vosmecê que estou mais pronto do que ele para fazer a viagem.
Faço de conta que tomei o rancho em Goiana, e que a minha parada é
na Paraíba. Lourenço é digno de toda a confiança
dos homens de bem. mas é ainda muito moço, tem viajado pouco
por esses caminhos, e sem ele o querer, pode sair o seu serviço mal
feito. Vosmecê entregue-me o que tinha para ele, que em menos de uma
hora já estou no caminho de Olinda. Só peço licença
para ir ao Cajueiro dar um adeus à minha velha.

– Pois vai. Quando voltares, receberás as minhas ordens.

– Senhor, sim.

Dentro de poucos minutos, pai e filho estavam no Cajueiro; e quando a luz
apontava por cima da mata, já aquele se achava uma légua distante
da vila, em direitura para a capital.

Capítulo XVI

Lauriano tinha sua tenda na rua do Rosário, perto da loja de Antonio
Coelho. Era, como quase todos os sapateiros, paroleiro, indagador da vida
alheia, e por isso sabedor de muita particularidade e segredo intimo. Seus
freqüentadores não tinham nem podiam ter para ele reservas.

Na dita tenda ajuntava-se o povo baixo da vila, que o vinho e o cobre do
famoso mercador, por interesseira generosidade dele, faziam simpatizar com
a causa dos mascates. Para esta gente estava ela nas mesmas condições
que a botica do Rogoberto para o rábula, o meirinho e outros sujeitos
de igual estofa. Era o club permanente da plebe. Aí se discutiam com
veemência e largueza os negócios da amiga e da inimiga parcialidade.
Não raras vezes, no estreito recinto desse singular parlamento, resolveram-se
ofensas e defesas da máxima importância. O oficial de pedreiro,
o servente de obras, o aprendiz e o oficial de outros ofícios, vinham
deixar na tenda as noticias que colhiam nas ruas, e daí levavam as
que os outros, seus iguais, tinham trazido para o ignóbil comercio
em que eram práticos.

O Tunda-Cumbe fazia parte deste congresso ilícito. Então as
repugnância reciprocas entre os portugueses e os homens de cor do país
não estavam tão afirmadas como depois vieram a ficar. Eram adina
de fresca data os grandes exemplos da fraternidade que em conjunturas gravíssimas
ligara raças estrangeiras com raças e castas nacionais; aquelas
representadas por João Fernandes Vieira e outros, estas por Filipe
Camarão, Henrique Dias e tantos índios, mulatos e pretos que
deixaram ilustres nomes esculpidos nas paginas da historia e glorificados
pela tradição. Não é pois de admirar que, vendido
o seu peixe na vila, fosse o Tunda-Cumbe, não por obrigação
mas por devoção, tirar a ferrugem da língua na tenda
do Lauriano, onde se reuniam outros mascates da sua laia.

Na antevéspera de S. João o Tunda-Cumbe tinha estado com o
sapateiro e lhe havia dito que iria divertir-se à noite seguinte em
casa do Victorino. Em conversa familiar já revelara tempos antes as
suas inclinações por Bernardina.

<Em toda esta redondeza por onde ando, dissera o vendedor de peixes ao
de sapatos, não conheço rapariga que tanto tenha bólido
com o meu sentimento como a filha do Victorino.>

O tendeiro, que com os defeitos próprios da sua condição,
trazia aliado o de instigador das ruins paixões, tantas coisas lhe
meteu na cabeça que o mascate saiu dali cheio da falsa idéia
de que ninguém melhor do que ele tinha direito à posse da rapariga.
Àquela manhã, Antonio Coelho, passando pela porta de Lauriano,
perguntara pelo Tunda-Cumbe. Respondera-lhe o tendeiro que lhe seria fácil
encontrar-se com o peixeiro à noite em um ponto, que sabia; e, como
farejou negocio importante, ofereceu-se para transmitir-lhe o recado que o
mercador quisesse dar. Este contentou-se com lhe pedir que dissesse, de sua
parte, ao Tunda-Cumbe, que viesse falar com ele impreterivelmente em sua casa
àquela noite. Tunda-Cumbe, não obstante Ter grandes desejos
de não deixar o samba senão depois de ausentes todos os convivas,
correu sem demora à vila, calculando que de semelhante chamado só
lhe poderiam provir vantagens, atento o estado das coisas na capital, do qual
já tinham chegado as graves noticias à Goiana.

Os inimigos da nobreza, divertindo-se, como esta, ao menos aparentemente,
e festejando com fogos enterrados à frente de suas casas, com reuniões,
danças, comes e bebes a noite do precursor do Messias, projetavam também
tenebrosas vinganças, seguindo, sem o saberem, os nobres, posto que
o conjeturassem.

A morada de Coelho ficava por cima da própria loja. No vasto sobrado
para isto destinado não faltava o luxo que caracteriza a vida de larguezas
e deleites que o comercio dá e tira com a facilidade natural do jogo
das operações mercantis. As extensas relações
que tinha entre os agricultores, e a circunstancia de ser o negociante de
mais nota do lugar pelos meios pecuniários de que dispunha, obriga-lo-iam
a essa vida fastosa, quando certa ambição de figurar e o propósito
de competir no lustre e grandeza com os primeiros fidalgos de Goiana não
exigissem dele o tratamento luxuoso que sustentava. Até certo tempo
atrás, fora visto com bons olhos por esses fidalgos. Mais de um deles
lhe dera demonstrações de respeito e estima. Chegou-se a dizer
que à influencia de alguns devia Coelho a nomeação de
sargento-mór com que o distinguira el-rei. Fosse porque fazia de se
grande conta; fosse porque lhe parecera tempo de firmar a sua posição
ainda não de todo segura; fosse porque não pudera resistir às
imposições do sentimento, deu Coelho um passo que, produzindo
completa e radical mudança em sua vida, converteu em hostilidade e
ódios contra se próprio as afeições e benevolências
que tinham antes disso manifestado por ele os nobres da vila. Sabendo anos
antes, que d. Damiana, pela qual sentia grande afeto, estava para ser dada
em casamento a João da Cunha, antecipou-se ele e pediu-a para si. Foi-lhe
peremptoriamente recusada; e não teve outra origem o eclipse da sua
estrela, nem o ódio que cavou entre ele e o sargento-mór o abismo
insondável que os separava. Ao principio sentiu-se Coelho como curvado
debaixo do peso deste grande desastre; mas, por derradeiro, reacendendo-se-lhe
a chama do forte animo, um momento apagada pelo sopro da tormenta, o negociante
ergueu a cabeça, fixou vistas altivas em seu altivo inimigo, e assentou
de lutar com ele e seus parentes e iguais, até que os vencesse ou caísse
de todo exangue e morto. A esse tempo já se iam manifestando as rivalidades
que trouxeram como resultado a guerra. Coelho, em vez de procurar dissipá-las,
foi o primeiro que em Goiana as ateou e lhes deu vulto e desenvolvimento;
de modo que, quando, pela criação da vila do Recife, elas definitivamente
fizeram explosão, à frente dos mascates apareceu ele, sedento
de vingança, tomando para se toda a responsabilidade e direção
dos ódios insurgentes e tornando-se o alvo dos rancores da nobreza.
Quando o Tunda-Cumbe apareceu na sala, achavam-se aí com o dono da
casa Jeronimo Paes, o português Manoel Rodrigues (taberneiro), Belchior,
Romão e outros. O assunto da conversação era a guerra,
nem podia ser outro o que os reunisse então. Mas aqui não se
manifestavam apreensões e temores, como no engenho, entre os nobres.
Aqui se tinha por segura a vitoria, não obstante já se saber
que o bispo se evadira e se achava exercitando o governo contra os mascates.
– Que importa isso? Inquiria Jeronimo Paes. As fortalezas, os arsenais, a
milícia de terra e a milícia naval, os homens bons do Recife
e o povo são todos nossos. Em nossos armazéns temos gêneros
acumulados para seis meses. Falava-se em que os mazombos tencionavam sitiar
a vila. Estúpido plano é este. Que mal nos pode trazer semelhante
sitio, quando temos livre o porto, por onde podemos comunicar-nos, não
só com as outras capitanias, mas até com importantes localidades
do litoral de Pernambuco?

– Hão de cansar-se eles primeiro de nos guardarem, que nós
de estarmos guardados por semelhante modo – acrescentou um dos circunstantes.
Dando com os olhos em Tunda-Cumbe, Antonio Coelho levantou-se e acenou-lhe
com a mão que o acompanhasse ao aposento contíguo. Aí
chegados, Coelho ofereceu ao peixeiro uma cadeira, e dando exemplo, disse-lhe:

– Senta-te, Manoel Gonçalves.

Este, a modo de admirado da intimidade que eqüivalia a uma honra, que
ele estava longe de esperar, respondeu:

– Pode vosmecê dizer o que ordena. Ouvirei tão bem estando de
pé, como se sentado estivera. Senta-te. O negocio exige pratica longa.

Tunda-Cumbe sentou-se.

Por todos os de Goiana era o Tunda-Cumbe havido por meio mercador e meio
bandido. Ninguém ignorava suas relações com certos sujeitos
de ruim fama, alguns dos quais se dizia serem associados ao peixeiro em criminosas
negociações. Havia quem soubesse que no lugar denominado Sipó
tinham eles um como rancho, onde celebravam seus conciliábulos.

– Mandei chamar-te, Manoel Gonçalves…

Aqui interrompeu Antonio Coelho, e um momento depois continuou:

Mas, antes de entrarmos no assunto, não será mau que desmanches
um pedaço de bolo fresco e laves a guela com um copo de vinho puro
e velho, que há dias me chegou do Porto.

Assim falando, Coelho apontava para a cômoda de cedro, onde se viam,
em salvas de prata, bolos de S.João de diferentes tamanhos e formas,
e em garrafas de cristal o vinho generoso a que aludira. Tenha paciência,
seu Antonio Coelho, – respondeu o peixeiro. Acabo de chegar agora mesmo do
divertimento em que estava, quando o Lauriano me deu o recado. Queira ter
vosmecê a bondade de vir direitinho ao negocio, que eu fiquei de voltar
ainda hoje ao dito divertimento, onde tenho uma grande empresa que executar,
se para isso não me faltar o tempo.

– Que empresa é essa?

Quebrar os dentes a um pé-rapado, por não terem mordido a língua
dele na ocasião de me dizer meia dúzia de liberdades que lhe
hão de custar bem caro.

– Folgo em encontrar-te nestas boas disposições. Mas, para
não dares passo em falso, trata primeiro de organizar as tuas forças.
Não tens tu vários amigos com quem te podes ajuntar a qualquer
hora que seja necessário?

Tunda-Cumbe, não sem dar mostras de confusão e hesitação,
inclinou a cabeça como quem respondia afirmativamente.

– Pois bem, tornou o negociante. É da máxima conveniência
que de hoje para amanhã reunas todos eles e à sua frente trates
de hostilizar por todos os meios imagináveis, não só
o pé-rapado a quem queres quebrar os dentes, mas tantos pés-rapados
e mazombos quantos puderem cair em tuas mãos. Já deves saber
o que resolveram os nossos patrícios e amigos do Recife…

– Tudo sei.

É de nossa honra e de nosso interesse que o grito que eles soltaram
na vila, acha eco em todos os pontos importantes da província, especialmente
em Goiana.

– E o governo está de nossa parte?

O governo! O governador, o legitimo, o verdadeiro governador de Pernambuco,
Sebastião de Castro Caldas, este está conosco. D. Manoel é
simplesmente o governador da rebeldia. Deu força aos insurgentes, e
está exercendo atribuições que lhe não competem.
Os que o sustentam e por eles são sustentados, tão criminosos
são como ele. opuseram-se à criação da vila, o
que quer dizer que se opuseram à vontade e à ordem de el-rei;
tentaram contra a vida do legitimo governador, e o obrigaram a refugiar-se
na Baia para escapar à morte; na ausência dele, tomaram conta
do poder tumultuaria e revolucionariamente; o bispo por infame covardia ou
por indigna conivência, assumiu as rédeas do governo e expediu
perdão aos rebeldes e assassinos. Devíamos nós, leais
vassalos de el-rei, ter por justo e legal o infame perdão, quando as
justiças do céu e da terra exigiam antes as cabeças dos
rebeldes? Não, mil vezes não. Acumulamos viveres, ajuntamos
dinheiro para que nos não faltasse nada na ocasião do desforço.
Julgando os nossos amigos do Recife chegada esta ocasião, acabam de
soltar o brado em favor da restauração da autoridade legal,
vil e traiçoeiramente conspurcada pelos que se apelidam nobres, quando
outra coisa não são senão rebeldes e sicários.
Assim, todo leal português tem o dever de lançar mão das
armas para derrubar o governo de d. Manoel e levantar novamente o de Castro
Caldas. Em favor desta empresa patriótica e gloriosa é que te
proponho reunas todos os amigos que puderes. O programa da luta é largo,
mas resume-se nisto – destruir, seja por que meio for, qualquer força,
qualquer bem, até a própria vida de todos os fidalgos de Pernambuco.

– Tudo de que precisares, a saber, dinheiro, viveres, apoio, proteção
ilimitada para ti e para os teus, a fim de se preencher este plano salvador
das nossas fortunas, das nossas vidas e do nome português, ser-te-há
prontamente dado ou feito, contanto que a represália não fique
nem por um instante retardada. Posso confiar em ti e nos teus, Manoel Gonçalves?
Concluiu Antonio Coelho com gestos e expressão de quem estava de corpo
e alma entregue a este pensamento e por levá-lo a efeito subiria a
todas as eminências e desceria a todos os abismos.

Antonio Coelho era de boa estatura. Tinha os cabelos pretos e corridos, os
olhos rasgados e úmidos. Espadaúdo e anafado, dir-se-ia que
esse homem, uma vez sentado, não poderia levantar-se senão com
auxilio de outrem. Nada entretanto encontraria mais a verdade. posto que maciço
de formas, era pronto nos movimentos. Sua agilidade tinha o quer que fosse
da eletricidade. Em seu semblante estavam esparzidos os toques de uma expressão
particular que o tornavam atrativo. Usava a palavra com veemência e
mobilidade que interpretavam brilhantemente os caprichosos raptos e oscilações
de seu espirito, umas vezes lento e tardo nas operações, outras
franco e arrebatado até a inconveniência e a temeridade.

– Há então viveres e dinheiro bastante para serem distribuídos
pela gente que eu ajuntar? Inquiriu o peixeiro, como quem não queria
ainda acreditar na formal promessa que acabava de fazer-lhe o negociante.

– Há tudo de que precisares para as mais arriscadas e custosas arremetidas
contra a nobreza, disse a com segurança Antonio Coelho, qual se fizesse
um juramento solene. Além disso, acrescentou como por demais, o saque
entrará por muito na ordem dos meios de suprir qualquer falta que se
não tenha podido prever.

– Eu quero ser franco a vosmecê. Tenho já comigo, não
de hoje, mas de há muito, vinte camaradas valentes e decididos. Se
me autoriza a aumentar o número, dentro de pouco tempo terei uma companhia
organizada. Autorizo-te a organizares um batalhão. Pagarei a todos
o soldo, e a ti aquele que costumam vencer os coronéis.

– Muito bem, respondeu o Tunda-Cumbe. Pode contar comigo. De hoje a oito
dias teremos gente para tomar Goiana.

– – Trata-se, não de tomar Goiana, que nossa é, mas de ir em
socorro dos nossos amigos do Recife, que estão ameaçados de
um rigoroso sitio, posto pelos rebeldes de Olinda e das vilas mais próximas.
Pois sim; é para o que quiser. Sou pau para toda obra.

– Fica pois assentado que de hoje em diante andaremos de acordo nesta grande
obra. Sim, senhor. Está decidido.

– Em cado de necessidade, por quem poderia mandar chamar-te?

– Por Lauriano.

– Podemos confiar nele?

É um negro interesseiro, que odeia muito os nobres, porque de um deles
foi escravo e provou muito bacalhão. Ele sabe onde há de procurar-me,
nos dias em que não costumo vir à vila.

Antonio Coelho deu algumas ordens ao peixeiro, assaz agradáveis para
este, por serem acompanhados de algumas moedas de prata.

Metido o dinheiro na algibeira do gibão velho que trazia, o Tunda-Cumbe
retirou-se, levando consigo a convicção de que desde o momento
em que fora autorizado a acrescentear o seu séquito, era ele tão
poderoso chefe senão mais do que o próprio que a isso o autorizara.

Capítulo XVII

Nos primeiros dias de julho, em lugar dos vinte malfeitores que dantes trazia
mais ou menos ligados consigo, contava o Tunda-Cumbe numero superior a duzentos;
e por tal forma lhes havia imposto a sua autoridade, que a seu grado os dirigia
e movia tão bem como se foram puros autômatos.

Os insultos, as arrogancias, os furtos de cavalo, os roubos, as atrocidades
de toda espécie começaram então a aumentar de modo assustador.
Hoje, era a casa de um foreiro assaltada, amanhã, era um negro do engenho
castigado cruelmente porque se tinha oposto a que tirassem a cana, a macaxeira,
a galinha, a ovelha, que eles por fim sempre tiravam.

Para a família do pobre não houve mais respeito nem segurança.
Mulheres honestas e recolhidas, moças solteiras que viviam honradamente
sovre se ou em casa de seus pais eram raptadas sem o menor escrúpulo,
e iam contra a vontade delas, os olhos arrasados de lagrimas, cevar a brutal
concupiscência de assassinos e ladrões, que, confiando na impunidade
prometida para eles por seus protetores, as deixavam ao desamparo, nos braços
da devassidão, ou entre as unhas felinas da miséria, depois
de saciadas suas paixões reprovadas e vis.

Constituiu-se assim o Tunda-Cumbe dentro em pouco tempo o terror de todo
o norte de Pernambuco, porque para suas correrias ele não escolhia
lugares nem conhecia limites; e publicar o seu nome montava publicar, não
já o nome de vinte ou duzentos facinorosos, mas o de quinhentos, afeitos
a desrespeitar os homens sérios, a roubar a honra das famílias
fracas e a fazenda do proprietário pacifico, a matar o matuto que lhes
resistia, a destruir e aniquilar homens e coisas.

Pelo mesmo tempo outro caudilho truculento começou a representar no
sul as mesmas tradições de saque, sangue e morte que celebrizaram
tão tristemente o Tunda-Cumbe. Era o índio Sebastião
Camarão, de quem se dizia que recebera três mil cruzados dos
mascates para ser por eles, com seu séquito na guerra que se acendera.
Este séquito, composto em sua maior parte de homens que tinham dado
inteiramente as costas à honra, à moral, à lei e a Deus,
chegou a ser muito numeroso e a contar quase o dobro do outro bandido. Os
maiores criminosos do sul faziam parte dele, razão porque nos lugares
por onde passavam, nenhum principio ou interesse venerável ficava sem
receber deles as mais graves violações e ofensas.

De todos os senhores-de-engenho das cercanias de Goiana, o que servia de
alvo ao ódio mais apurado do Tunda-Cumbe era Matias Vidal de Negreiros.
A razão é obvia.

Durante o seu almocrevar, quando sucedia passar, não por fazer negocio,
mas por encurtar distancias ou evitar grandes atoleiros ou rios cheios, pelo
engenho de Matias, fazia o Tunda-Cumbe, rosnando como cão irritado,
esta acerba jura:

Hei de vingar-me algum dia neste vilão ruim do que me fizeram seus
negros. O dia pareceu-lhe ter chegado duas semanas depois da conferencia que
tivera com Antonio Coelho, e para lá se encaminhou com cerca de sessenta
dos seus valentões no intuito de tomar a desforra longamente premeditada.

Quando chegou a Itambé seria meia-noite. Fazia brando luar. Tendo
sido muito abundantes as chuvas aquele ano, o mato fechara consideravelmente
e quase tomara os cinco ou seis caminhos que iam ter na casa. Tunda-Cumbe
dividiu a gente em partidas iguais, cada uma das quais tomou a direção
conveniente pelo caminho que lhe incumbiu percorrer. A casa não poderia
resistir a sessenta homens, que simultaneamente a atacassem por todos os lados;
mas não surtiu o plano o menor efeito, porque antes de chegados os
atacantes ao ponto, diferentes tiros, partidos de dentro dos matos e canaviais
lançaram susto e pavor no animo daqueles que tomavam da surpresa ou
emboscada a sua principal valentia. Tunda-Cumbe, receoso de forças
que não conhecia, ordenou a retirada.

Foi o caso que tendo Matias Vidal negros e moradores de sua confiança,
devidamente espalhados por dentro do mato, e empregados em vigiar durante
a noite os caminhos, por sinais assentados antes tinham estes vigias dado
aviso da aproximação do bando aos outros negros e moradores,
que correram sem demora a impedir o passo aos assaltantes. De há muito
suspeitava Matias que o Tunda-Cumbe, em oferecendo-se ocasião oportuna,
não deixaria para mais tarde a sua desforra. Todavia, não estaria
preparado para frustrar tão facilmente este ataque inopinado, se outra
razão o não determinasse a ter prontos meios de debelar qualquer
agressão, por forte e súbita que fosse. É a razão
que diremos. Assentado ficara entre os nobres em casa de João da Cunha,
antes de dissolvido o ajuntamento aí celebrado na noite de S.João,
que, não obstante dever-se esperar, para resolução definitiva,
por noticias e indicações formais das autoridades e amigos da
capital, prudente era que cada um dos proprietários presentes tratasse
de organizar sem perda de tempo terços defensivos, com seus moradores
e escravos. Dado este importante passo, era fácil dentro em pouco tempo,
no caso de necessidade, mobilizar-se em Goiana uma grande massa de gente,
que acudisse ao primeiro reclamo da capital, quer para engrossar o cerco,
se esta fosse a idéia predominante, quer para tomar de assalto o Recife
e destruir o governo constituído pelos mascates dentro nesta vila.
Se não fossem reclamados socorros, nem por isso se perderia o que estivesse
feito, visto que, devendo-se ter por mais que provável que a reação
se generalizasse mais dia menos dia, ter cada um dos senhores-de-engenho junto
de se seu contingente, era o mesmo que estar defendido em sua família
e propriedade. A demonstração pratica da excelência e
sabedoria deste acordo, foi Matias Vidal o primeiro que a teve, pelo que fica
escrito.

Esta lição, porém, longe de encurtar, posto que fosse
incruenta, os arrojos do chefe dos bandoleiros, o incitou a investida ainda
mais grave.

O dia seguinte sendo Domingo, apresentou-se ele muito cedo na vila, deliberado
a praticar qualquer distúrbio, que, produzindo escândalo, para
logo desse lugar a que seu nome soasse como o de um diligente e fiel servidor
dos mascates, tanto em Goiana, testemunha do insulto, como no Recife, aonde
logo havia de chegar a noticia dele.

Estava-se em 3 de julho. Os espíritos achavam-se por extremo excitados.
Os parciais da nobreza, animados por saberem que tinha ela por se o governador,
já restituído a sua liberdade, não perdiam ensejo de
exaltar a sua força e ostentar o poder que dá a autoridade.
Os parciais dos mascates não faziam por menos, publicando que sem dinheiro
comprariam os mais nobres da terra, inventando inumeráveis relações
de comunidade entre os rebeldes proeminentes e o governador geral do Brasil,
d. Francisco de Souza, seu filho, e outros importantes vultos da Baia e de
Portugal.

Varias eram as pessoas que na botica do Rogoberto matavam o tempo enquanto
o sino da matriz não vibrava a Segunda chamada para a missa conventual.
Entre essas pessoas apontavam-se Jeronimo Paes e Belchior. Serviam de assunto
as ultimas noticias chegadas do Recife. Eis a substancia de tais noticias.
D. Manoel, logo que se achou de novo de posse da autoridade, mandou publicar
na vila o edital pelo qual eram intimados os oficiais da milícia e
os demais moradores que estavam em armas a retirar-se das fortalezas com as
respectivas guarnições, a fim de entrarem os povos no sossego
do costume, sob pena de serem havidos por traidores e inimigos da paz, e ficarem
por isso sujeitos ao rigor das leis. Não tendo querido, porém,
os revoltosos aceitar estes avisos, e devendo-se por isso dar começo
a procidencias mais enérgicas, para as quais, por ser de paz e perdão
o seu ministério, não se julgava o mais próprio, resolveu
encarregar do governo militar o ouvidor geral, dr. Luiz de Valenzuela Ortiz,
o mestre de campo Christovão de Mendonça Arraez e o senado da
câmara de Olinda, que se compunha do coronel Domingos Bezerra Monteiro,
capitão Antonio Bezerra Cavalcanti e tenente Estevão Soares
de Aragão.

O procedimento do prelado era considerado como covardia no congresso da botica.
Belchior, para dar mais autoridade a este juízo, recordava diferentes
circunstancias passadas, a saber, a partida de d. Manoel para a Paraíba
quando desfecharam o tiro no governador Caldas; o ter-se deixado prender pelos
mercadores no dia 18 do mês anterior; e outras circunstancias que não
são para o nosso caso. O bispo não é mais do que um vilão
ruim, um desprezível instrumento dos Cavalcantis que querem ter sempre
curvados a seus pés, como têm os negros dos seus engenhos, os
povos de Pernambuco. Os mascates não precisam dele para castigarem
a soberba e arrogância dessa nobreza de meia tigela, que o que traz
limpo em seu sangue deve a esses mesmos mascates; porque o que daí
não procede, é cor da noite de África ou cor do fogo
das aldeias.

Palavras não eram ditas quando um filho de Jorge Cavalcant, que vinha
montado em fogoso ginete, chegando-se à porta da botica assim retorquiu,
montado como estava, a Belchior com o calor e a imprudência dos primeiros
anos:

– Vilões ruins são aqueles brasileiros desnaturados que se
vendem ao ouro ou rendem às lábias dos estrangeiros, cujo sentimento
não é outro que o de revolverem a terra onde encontraram hospedagem.
Esses, sim, são os mais infames vilões que pisam na terra de
Camarão e de Henrique Dias. Sua baixeza não se compara nem mesmo
com a dos que mordem a mão que deveriam beijar.

Replicou-lhe Belchior com quatro pedras na mão; o filho de Jorge treplicou,
já com mostras de quem queria usar o chicote que trazia. Quando o gesto
indicou a intenção, quase todos os que estavam na botica, tomaram
o partido de Belchior, mas não tardou que varias pessoas das vizinhanças
e da rua vieram em socorro do outro contendor.

Estavam justamente as coisas neste ponto, quando apareceu o chefe dos bandoleiros.
Ao gibão surrado, aos calções em diferentes partes serzidos
e aos sapatões grosseiros com que costumava andar, tinham-se substituído
casaca e calções de veludo e sapatos de entrada baixa com fivelas.
Trazia pendente um espadim que parecia novo, como o chapéu de pluma
e a roupa. Naqueles tempos já o habito fazia o monge. Tanto que o Tunda-Cumbe
se apresentou vestido com este apuro e galhardia, não foi preciso mais
para que todos logo conjeturassem que grande transformação se
operara na vida do ex-peixeiro, e já alguns lhe tirassem o chapéu,
como demonstração de respeitosa cortesia. Tal houve que se afastou
para que ele tivesse livre acesso ao ponto central do conflito. Muitos dos
circunstantes explicaram esta atenção, atribuindo-a a vir ele
acompanhado de dez a doze valentões conhecidos, pouco tempo antes seus
companheiros, agora seus guarda-costas.

– Donde vem esta grandeza e este poderio a Tunda-Cumbe, que ainda não
há um mês vendia bodiões e amorés pelas portas?
perguntou a meia voz um parcial dos nobres.

Respondeu-lhe no mesmo diapasão o companheiro:

– Dizem que tem ordem franca dos mascates para ajuntar gente, e do Recife
lhe prometem a patente de coronel em paga dos serviços, já vendidos
a eles por bom dinheiro.

Entretanto o Tunda-Cumbe chegara ao ponto onde se dera o veemente bate-barbas.
Achou somente aí o Belchior. O filho do Jorge Cavalcanti tinha tomado
já a direção da matriz, e com pouco descavalgava e entrava.

Entendendo Tunda-Cumbe que não devia perder aquela ocasião
de dar a mostra do pano, puxou do espadim e assentou-o de chapa sobre as costas
de um sujeito que no canto da rua mais publica da vila exaltava a causa da
nobreza e desfazia na reação dos mercadores. Não foi
preciso mais para que se desse novo conflito, que dentro de alguns minutos
redundou em serio motim. Houve muitas contusões, muitos ferimentos,
muito sangue inutilmente derramado. Estando ainda nas mãos da nobreza
a autoridade e a força publica, pode-se dominar no fim de algum tempo
a assuada. O nome, porém, de Tunda-Cumbe e os dos bandoleiros mais
violentos que com ele percorreram as ruas, espancando e ferindo os adversários
que encontraram desprevenidos e inermes, esses nomes, especialmente o de Manoel
Gonçalves, começaram desde esse momento a voar nas asas da fama,
e poucos dias depois designaram celebridades que todos entraram a respeitar
e temer.

Uma semana depois, Goiana foi testemunha de novas cenas, mais graves do que
as primeiras, as quais chegaram a durar três dias.

Por ordem de João da Maia da Gama, capitão-mór da Paraíba,
tão dedicado aos mascates que pelo senado da câmara de Olinda
foi apelidado em oficio de 26 de junho de 1711 – a pedra fundamental em que
os do Recife se levantaram e formaram o quimérico edifício e
fabrica do industrioso levantamento – , veio Luiz Soares reunir-se com o Tunda-Cumbe
a fim de irem ao Recife com sua gente passante de oitocentos homens, levantar
o cerco.

Achavam-se entre os da Paraíba, não só Joaquim de Almeida,
espirito por assim escrevermos, inspirador do capitão-mór João
da Maia, mas também Pedro de Melo, um dos instrumentos da revolta sustentados
pelo Almeida. Tendo esta por base, para tornar uniforme o movimento, dar Goiana
como unida à Paraíba, veio desta Pedro de Melo eleito capitão-mór
daquela. Feita a junção em Pedras-de-fogo, tomam posse com ele
em Goiana os oficiais da nova câmara, distribuem-se lugares aos mais
esforçados cabos da rebelião, constitui-se enfim o governo da
vila independente do de Pernambuco. Pedro de Melo entra no exercício
do seu lugar com toda a solenidade do estilo. Sai da igreja do Carmo para
a casa da câmara debaixo do palio, acompanhado dos camaristas, tão
legítimos como ele, e dos frades carmelitas, executores das ordens
dos da recoleta do Recife. A vila, achando-se desguarnecida de força
militar, visto que a que havia tinha ido atacar o rancho do Sipó, no
pressuposto de surpreender aí o Tunda-Cumbe, viu-se obrigada a aceitar
este desatino quase a portas fechadas. E o intruso e ilegítimo governo
se consolidaria talvez, sustentado por Maia, se logo depois da sua posse,
em 14 de julho, não tivesse chegado a guarnição incumbida
da diligencia e ao mesmo tempo as forças legais mandadas de Olinda
para impedir que seguissem os revoltosos e dissolver o governo intruso. Estas
forças vinham comandadas pelo ajudante Bernardo de Alemão e
Mendonça, o qual se unira com o capitão Bento Bezerra de Menezes,
que comandava a companhia de Araripe, e com o ajudante Felipe Bandeira de
Melo e os que com ele estavam na ilha de Itamaracá. Posto que não
eram numerosos, tendo feito junção com a guarnição
da vila, puderam por em violento e vergonhoso regresso todos os revoltosos
Paraibanos.

No intuito de deixarem inteiramente serenados os espíritos dos pacíficos
habitantes e restabelecida a ordem em Goiana, fixaram-se essas forças
no engenho do capitão Bento Correa de Lima, que ficava à vista
da vila, e onde estiveram por muitos dias.

O Tunda-Cumbe, sagaz e prevenido, tinha-se retirado com os seus ao valhacouto
do Sipó, logo depois de constituído o governo que teve tão
efêmera existência, o que não concorreu pouco para o aumento
dos créditos da sua manha e penetração.

Capítulo XVIII

Antes de chegar à Goiana, praticou em Pedras-de-fogo o bando que viera
da Paraíba, capitaneado por Luiz Soares, uma infame tragédia.

Essa povoação, da qual, por efeito de nossa viciosa divisão
territorial, uma parte pertence à província da Paraíba,
e a outra parte a Pernambuco, já naquele tempo representava certo espírito
de resistência ao elemento estrangeiro, que depois da referida tragédia
se acentuou e manteve até bem pouco tempo, segundo direi.

A principal família de Pedras-de-fogo em 1711 não se caracterizava
por clara linhagem nem por haveres, mas pelo numero de seus membros, pelo
espirito de trabalho de cada um, pela harmonia que os trazia unidos uns aos
outros, e pela valentia que de qualquer deles fazia um leão.

Manoel do O’, sujeito tirante a pardo, natural de Nossa-Senhora-do-ó
fora ainda muito novo estabelecer-se com sua tenda de alfaiate em Pedras-de-fogo.

Esse lugar, que ainda hoje não é notável senão
por sua grande feira de gados, a qual aí se faz semanalmente, por então
começava apenas a povoar-se. poder-se-ia compor de quinze a vinte casinhas,
em sua maior parte cobertas de palha.

O alfaiate casou-se com a filha de um mulato por nome José da Luz,
que tinha na Rua-da-feira a casa de morada e defronte desta a tenda de ourives.
A união foi fecunda, cada ano nascia a Manoel do Ó um filho;
de tal sorte foram as coisas, que em 1710 a sua descendência se compunha
de dez filhos e vinte e dois netos. Alguns destes já taludos.

Não havia nenhum que não tivesse seu meio de vida. Alguns não
o tinham muito decente e legitimo; não há família numerosa
em que se não aponte qualquer lepra. Em sua maioria, porém,
eram os descendentes varões de Manoel do Ó de regular procedimento
e muito benquistos no lugar.

Posto que, como meio de levantar a gentalha a seu favor, os mascates fizeram
publicar que a sua causa era a da liberdade e da igualdade do povo contra
a tirania constituída e os privilégios antigos da nobreza, meio
a que deveram a maior parte dos auxílios dos naturais da terra, Manoel
do Ó, que não era tolo, convidado por Maia a aderir aos motins,
escusou-se, dizendo que nada tinha nem com os nobres, nem com os mascates,
visto que era ele, como todos os seus, mecânico, plebeu e homem de cor.

Tanto bastou para excitar o desagrado dos insurgentes, dos quais foram, dentro
em pouco, tão positivas e repetidas as hostilidades e arrogancias contra
Manoel do Ó, que, ofendido este, ao principio simplesmente no seu melindre
de família, e por derradeiro na própria pessoa de um filho,
certo dia, de um genro daí a pouco, e de um neto semanas depois, resolveu
declarar-se pela causa dos nobres; e uma das tentativas de Maia para fazer
junção em Goianinha com o bando do Tunda-Cumbe, a fim de se
dirigirem ao Recife, foi frustrada por Manoel com sua companhia de filhos,
mais ou menos ligados com ele por laços particulares. Foi tão
forte e acertada a oposição, que a força mandada por
Maia não pode passar sequer os limites da Paraíba.

Não foi só esta a única tentativa de junção
malograda; nenhuma houve de 11 de julho para traz que surtisse efeito. Manoel
do Ó achava-se diante de todas com sua gente como barreira intransponível
e fatal.

Estas e outras idênticas contrariedades exacerbaram por tal forma o
capitão-mór da Paraíba que este assentou de queimar o
ultimo cartuxo para as fazer cessar de todo.

– Diga a esse negro Manoel do Ó, assim se exprimia ele uma vez a certo
sujeito que tinha relações com o alfaiate, que muito breve lhe
hei de provar que O é o mesmo que zero; e a seus filhos José
da Luz e Antonio da Luz, diga igualmente que hei de mandar apagar as luzes
de sebo de Pedras-de-fogo pelo meu escravo Euzebio, com tiros de bacamarte.

Dito e feito. Em 10 de julho, quando menos se esperava no povoado, rompeu
o fogo para as bandas da Baixinha, lugar de Pedras-de-fogo que pertence à
Paraíba. Tinham sido dados os tiros pela gente de Luiz Soares contra
uns sobrinhos do alfaiate que moravam desse lado.

Manoel do Ó, que não obstante a sua avançada idade tinha
ainda grandes espíritos e não perdia de vista os passos de Maia,
saiu logo com sua gente; e pois na véspera de noite seu filho Anacleto
do Espirito-Santo, que chegara do Limoeiro, aonde tinha ido a destrocar uns
cavalos, lhe dissera ter visto aí o Tunda-Cumbe, não pensou
em proteger a retaguarda, até porque, sendo muito numeroso o concurso
dos agressores, toda a gente viu-se obrigada a empenhar-se em lhe fazer frente.

Este foi o seu mal, porque momentos depois teve a retaguarda atacada por
forças não menos numerosas que as de Luiz Soares. Foi o caso
que, tendo-se entendido Maia previamente por carta com Antonio Coelho e concertado
com ele o ataque ao obstáculo comum, não se fizera esperar do
lado de Goiana o reforço do Tunda-Cumbe.

Vendo-se entre dois fogos o povo de Manoel do Ó, não houve
esforço que não empregasse para romper qualquer dos lados, nem
atos de bravura que não praticasse, a fim de levar a melhor aos agressores.
Tudo porém foi debalde. Trinta homens não podiam triunfar de
oitocentos.

A cabo de uma hora de peleja que não se pode descrever, Manoel com
quase todos seus parentes estavam destroçados e vencidos. Restavam
unicamente da família as mulheres, dois filhos e três sobrinhos,
que lograram escapar-se quando reconheceram que a sorte das armas lhes era
adversa. Estes, para não perderem a vida, ganharam o mato.

Não se podem imaginar as atrocidades que, vendo-se senhores do campo,
cometeram na povoação, desamparada no mais aceso da luta, os
bandoleiros desenfreados e sedentos.

Refugiaram-se no mato os homens feridos e as mulheres chorosas e consternadas
que constituíam os últimos restos da parentela de Manoel do
Ó. Aí o seu ódio cresceu e radicou-se profundamente no
coração de cada um dos foragidos. Exagerados em seus desejos
de desagravar-se, juraram na solidão da selva, testemunha da sua adversidade
e depositaria dos seus prantos, que se pudessem voltar com vida a Pedras-de-fogo,
como lei de sua honra, não consentiriam jamais que nenhum português
se demorasse mais de vinte e quatro horas na povoação fundada
pela ilustre vitima cuja memória eles deste modo queriam honrar. Julgavam,
jurando preencher esta promessa solene, que cumpriam um preceito de alta justiça.
Não era porém outro sentimento o deles, assim prometendo, que
o sentimento da vingança pessoal, sempre cego e injusto.

Transmitindo-se de pai a filho, de filho a neto, nem foi esquecida a tradição
do morticínio nem ficou sem preenchimento a promessa feita entre prantos
e angustias há mais de um século.

Não há no que aí fica relatado, invenção
de romancista. Até bem pouco tempo, logo que chegava qualquer filho
de Portugal a Pedras-de-fogo, era intimado de ordinário por moradores
pertencentes às primeiras famílias, para que dentro de poucas
horas se retirasse.

Este exagero passou de todo. A civilização, polindo o brasileiro
do interior, deixou-lhe inteiramente livres os movimentos de natural generosidade
e brandura, que constituem a parte essencial de seu gênio.

Enquanto estas cenas e outras semelhantes se passavam em diferentes pontos
do termo de Goiana, acertadas providencias eram dadas pelo governo da capital
a fim de que elas não se reproduzissem.

Não sem razão inspirava aos nobres plena confiança o
ajudante-de-tenente Francisco Gil Ribeiro. A galhardia e a bravura militar
de Gil eram tradicionais, e constituíam um dos mais ricos e ilustres
patrimônios da gloria pernambucana. Para descansar das fadigas da sua
longa e trabalhosa vida, acolhera-se o ancião na sombra do lar domestico.
Afetos brandos, inclinações respeitáveis, tinham-se substituído
às violentas explosões da paixão guerreira. Estabelecera
ele sua residência nas Salinas (hoje Santo-Amaro), à margem direita
do Beberibe, entre cajueiros e sapotiseiros pitorescos. Daí o foi tirar
o governo, para lhe entregar o comando da fortaleza de Itamaracá, ameaçada
de cair no poder dos amotinados de Goiana. As noticias, porém, dos
graves e sucessivos conflitos havidos nesta vila, determinaram o governo a
ordenar que o ajudante-de-tenente, à frente de quarenta homens, e acompanhado
dos alferes Carlos Teixeira e Francisco Alves, e do ajudante Felipe Bandeira
de Melo, se dirigissem sem perda de tempo a pacificar aquela localidade.

Ao entrarem na estrada geral do norte, um matuto que passava do Recife, vendo
a força, recuou o cavalo, para deixar livre o caminho. Parecendo suspeito
a Gil este movimento de pura cortesia ou respeito, fez sinal a alguns soldados
que segurassem o matuto. Este, porém, que não era outro que
Francisco, adivinhando a intenção, pôs-se a respeitosa
distancia, aos primeiros gestos dos soldados.

– Que idéia faz de mim, seu comandante? perguntou ele com serenidade.
Pensará que sou pela mascataria? Pois se pensa, está malenganado.

Ouvindo estas palavras, Gil, com gesto imperioso e grave chamou o matuto
para mais perto de si; e lhe disse:

– Quem foi que te ensinou este recado para me iludires?

– Não quero iludir ninguém.

Cuidado com esta gente, senhor ajudante, disse Felipe Bandeira a meia voz
a Gil. Parecendo simplórios, são finos e manhosos.

– Mas quem lhe disse que eu sou pela mascataria? tornou Gil a Francisco.

Se é ou se não é, eu não posso jurar. Cá
eu é que não sou nem serei por eles nem neste mundo nem no outro.

– Então, se eu tivesse necessidade de uma pessoa que me ensinasse
os atalhos para chegar à vila sem ser pressentido pelos nobres, não
me prestava você de boa vontade este serviço tão pequeno?

– Saberá vossa senhoria que nem de boa nem de má vontade eu
lhe ensinava os caminhos da vila para este fim. Daqui mesmo destorcia para
traz no meu castanho, porque para servir a tais indivíduos não
há forças humanas que me obriguem, nem dinheiro que me compre.

– Grande ódio tem você à esses homens que só cuidam
em viver do seu trabalho.

Eu cá sei em que eles cuidam. Querem enriquecer à nossa custa.
Vendem a fazenda pela hora da morte, agora os gêneros da terra querem
comprar por pouco mais que nada. Não fazem isto só com o pobre
matuto, como eu; até os senhores-de-engenho gemem entre as unhas deles.
O que não tem o olho vivo, quando dá acordo de se está
com as terras, as canas, os negros de sua propriedade metidinhos todos dentro
da gaveta do mascate, que faz os suprimentos e adiantamentos. Muito francos
em fiarem são os tais mascates, quando vêm que a pessoa a quem
fazem seus oferecimentos, tem bens de seus. Agora, quando a conta está
bem aumentada, tomam tudo pela justiça, e ficam donos de casas, escravos
e fazendas do dia para noite. Se isto é ser bom, o inimigo leve esta
bondade para si, que eu não a quero nem de graça, quanto mais
à custa do meu roçado, do meu cavalo e da minha casinha.

Tendo dito estas palavras, Francisco, chegou a espora que trazia no pé
direito à barriga do castanho e virou para o Recife. Não pode,
porém, avançar muitos passos, porque Gil, pondo as pernas à
sua cavalgadura, tomou-lhe logo o caminho.

– Para onde vai? Venha cá. Estamos de acordo, e podemos ir juntos
até Goiana. Você é muito desconfiado, camarada, disse
em tom de quem gracejava.

– Não me fiz por minhas mãos, respondeu Francisco. Foi assim
que nasci da barriga de minha mãe.

– Mas não tem que desconfiar de mim.

– Meu senhor, a gente vê cara e não vê coração.
Eu sei lá se vosmecê vem contra os mascates ou pelos mascates…

– Pois você não está vendo a tropa?

– Que tem a tropa? Não podia ser deles?

– Então, você vem da capital e não sabe que eles estão
cercados?

– Eu sei muito bem que eles estão cercados. Sou capaz de dizer até
por quem.

– Diga lá.

Pois escute. Nas trincheiras levantadas junto do muro do S. Bento está
a companhia do capitão Dionizio, e a dos Estudantes, comandada pelo
capitão Antonio Tavares; nos presídios do Varadouro, Porto-dos-padres,
Porto-das-lavadeiras, Carreira-dos-masombos e Tacaruna, estão o tenente
José Tavares e o sargento-mór Domingos Freire; as forças
de S.Amarinho, Campina-da-cerca, Curtume e Santo-André são comandadas
pelo padre Paulo; na Conceição, Saco, Olaria e Arraial-da-boa-vista
está o capitão Carlos Ferreira; na Barreta e no Arraial-dos-afogados
está o comandante João de Barros.

– Bem informado anda você da distribuição das forças
do governo.

– Se eu passei por todas elas, porque tive de ir a Jaboatão.

– Mas então porque é que duvida se somos pelos mascates ou
pelos nobres? Inquiriu Felipe Bandeira.

– Porque duvido? Então os mascates também não tem tropas
na vila? Eles não podiam mandar gente por mar do Recife para Itamaracá?
Mas enfim, como vosmecês dizem que vêm por parte do governo, estou
calado. Eu não duvido da palavra dos homens.

A esse tempo a tropa, que um instante estivera parada, seguia já o
caminho de Goiana. Gil, Felipe Bandeira e os outros oficiais iam no couce.
Francisco tinha metido o cavalo entre o de Felipe Bandeira e o de Gil.

Capítulo XIX

Passado um momento, perguntou o ajudante-de-tenente ao matuto:

– Poderemos saber quem é você, camarada?

– Chamo-me Francisco dos Prazeres, e sou morador do engenho Bujari.

– A quem pertence esse engenho?

– A seu sargento-mór João da Cunha.

– Sei quem é.

Havemos de passar por dentro mesmo do engenho. Vou deixar vosmecês
em Goiana, e volto ao Cajueiro, onde tenho minha família. Há
mais de mês não sei dela, nem nova, nem mandado. Quem sabe o
que não terá acontecido à minha mulher e a meu filho
durante a minha ausência?

– Você vai encontrar todos em paz.

E se não encontrar, o Tunda-Cumbe é quem me há de pagar.
Eu nunca matei ninguém. Trago uma faca de ponta aqui no cós
para me defender. Mas se o diabo do pé-de-chumbo tiver feito alguma
das suas a gente que me pertença, não pregarei olhos enquanto
não lhe pregar primeiro a faca na barriga. Hei de tirar-lhe o couro
como se faz aos bodes para secar e dele fazer suador do meu cavalo.

Quando chegaram ao engenho Itapirema, em cuja capela estivera oculto em outubro
do ano anterior para escapar à prisão ordenada pelo governador
Castro Caldas, o ouvidor de Olinda dr. José Inácio de Arouche,
era quase noite. O rio tinha tomado muita água e estava de nado.

– Como há de ser isso agora? Perguntou Gil, pondo os olhos naquele
mar d’água, que se estorcia por baixo de galerias de folhagens,
estrepitoso e medonho. Para atravessarmos esta imensidade agora de noite,
corremos o risco de perder algum companheiro. É entretanto necessário
passarmos hoje mesmo da outra banda; porque, antes que a alva esclareça,
devemos achar-nos na vila. Aliás poderemos chegar já fora de
tempo.

– Eu já sei porque é esta pressa toda, disse Francisco.

– Porque é?

– É porque em Goiana se receia que da Paraíba passe a gente
prometida aos mascates pelo capitão-mór. Eu de tudo sei, seu
comandante.

– Mas então vê lá se nos dás remédio a
isto.

Porque não havemos de passar já? respondeu Francisco, saltando
do cavalo à beira do rio, onde a tropa fora obrigada a fazer alto.
Há aqui um ponto onde o Itapirema dá vão. Mas está
tudo encoberto e não se pode saber onde fica a trilha.

Quase meia hora gastou ele em procurar, sempre debalde, a oculta passagem.
Com água, ora pela cintura, ora pelos peitos, ora pela boca, percorreu
uma extensão de cerca de vinte braças ao longo da margem. De
uma vez caiu dentro de um poço, de que só se salvou por ser
forte nadador.

Estava já quase de todo escuro quando, exausto do muito lutar com
o impetuoso elemento, que puxava com extrema velocidade lhe pareceu ter dado
com o vão desejado, que ele próprio já perdera a esperança
de achar.

Veio à terra, muniu-se de um facão, e atirou-se novamente a
nado para o meio do rio. Distante da margem cerca de seis braças, um
mulunguzeiro, cujo tronco o ímpeto da corrente retorcera e cuja folhagem
redemoinhava açoitada pelos novelões revoltos, foi o ponto negro
para onde se dirigiu o matuto. Em torno da arvore desacompanhada as águas
fremiam vertiginosas, acusando de baixo delas abismo insondável.

– Eh, meu negro! Exclamou Francisco, dirigindo-se ao rio. Estás assobiando
e gemendo? Não vês aqui o teu amigo, famanaz do Cajueiro? deixa
as tuas raivas para outros. Eu sou teu antigo conhecido. Faz-te de cera, coração.

– Assim gracejando deixou-se o matuto levar pela força da corrente,
e quando à claridade duvidosa do crepúsculo pareceu a todos
os que da margem tinham os olhos postos nele, inevitável a sua perda,
o matuto barafustou na folhagem retorcida e apagou-se um momento da vista
dos presentes. Morreu!

– Afogou-se.

Tais foram as vozes que partiram de diferentes bocas.

Súbito ouviu-se bater o facão sobre os galhos superiores do
mulunguzeiro. Ninguém viu mais Francisco, mas todos ouviram o rumor
dos golpes da pesada arma, movida por sua mão possante contra o atleta
vegetal que o Itapirema trabalhava por engolir. Não se demorou muito
que os golpes cessaram e uma sombra negra, passando rápida, vertiginosa,
como nuvem fatástica, aos olhos da tropa, sumiu-se no turbilhão.
Era a ramagem do mulunguzeiro que fugia, deixando aparecer nua, escalavrada,
acima da superfície do rio, a parte superior da árvore, e no
cimo desta o destemido matuto.

Mas não estava completo o serviço. Francisco veio outra vez
á terra, e tendo tirado um fuzil do saco vazio que pendia do cabeçote
da cangalha, encaminhou-se para uma macahibeira que a alguns passos aparecia
solitária. Umas folhas secas, que a tempestade tinha abatido aí,
foram apanhadas pelo intrépido matuto, e com elas improvisou ele um
facho.

Então, voltando-se para a tropa disse:

– Vamos passar o rio. Eu vou na frente, feito guia. Com o homem ninguém
pode, comandante. É o bicho mais valente que eu conheço. Qual
cobra, nem onça, nem rio, nem raio! Quando o homem é homem,
fique certo que vence pedras, água, o próprio fogo.

E meteu-se imediatamente no liquido elemento.

Quem souber o que é um rio cheio, nos caminhos do norte, especialmente
o Itapirema, que pelo inverno costumava arrebatar e ainda arrebata às
vezes algumas vidas, ajuizará da coragem de Francisco e do serviço
que prestava. O rio roncava e estorcia-se ainda irritado e ameaçador.
Mas a fúria que causava horror a quem um momento atrás levara
a vista ao mulunguzeiro, essa, com a ausência da folhagem, tinha diminuído,
deixando que as águas corressem mais livremente e menos arrebatadas
que antes.

Levaram talvez um quarto de hora a romper o vasto mar, ora em linha reta
na direção do norte, ora contornando cotovelos de terra firme.

De repente uma luzinha apareceu como santelmo, na margem fronteira. Era o
lume da casinha de um morador do engenho.

– Estamos da outra banda, minha gente. Ali está a casa do Manoel Felix,
onde poderemos tomar algum trago. Acho-me todo resfriado.

Quando pisaram terra, Gil Ribeiro, aproximando-se de Francisco, dirigiu-lhes
estas palavras:

– Obrigado, camarada. Você nos prestou um serviço que não
tem preço.

– Ora qual, seu comandante. eu também estou doido por ver a minha
gente.

A noite estava fria, mas clara. A solidão era profunda, e o mato,
onde como fogos fátuos, luziam interpoladamente os pirilampos, soturno
e medonho.

Mas por entre arvores ramalhudas, moitas bastas, barreiras nuas, mostrava-se
a estrada a todas as vistas, figurando o leito arenosos de um riacho que secara.

O dia vinha rompendo, quando descobriram a massa sombria da mata de Bujari.
O Cajueiro estava a menos de cem braças, oculto por um cotovelo que
formava a estrada.

Sentindo o coração pular-lhe de contente, Francisco virou-se
para Gil:

– Seu comandante, vossa senhoria dá licença que eu vá
adiante acordar minha mulher e meu filho? Estou que não posso me conter.

– Pode ir, meu bom companheiro. Corra já. É natural a sua impaciência.
A nossa casinha fica ali adiante, na beira do caminho, à direita, continuou
Francisco. A que fica a esquerda é a de seu padre Antonio. Até
logo, seu comandante.

Francisco esporeou o castanho, que, não obstante vir caindo de fome
e enfado, se empinou, ainda debaixo das pernas do senhor, naturalmente por
ter sentido o cheiro da manjedoura de casa, e, contornando o cotovelo da estrada,
desapareceu quase de repente da vista dos que ficavam atrás.

– Estou cativo deste matuto, disse Gil, voltando-se para os companheiros.

– Este profundo amor da família, comandante, é um dos dotes
naturais do nosso almocreve, disse Felipe Bandeira.

– Bem sei. Em minha longa vida poucos tenho encontrado que desmintam este
modelo. Mas o que acho especial em Francisco é o desembaraço,
a graça, a franqueza que põe em suas palavras e ações.
É verdade, disse o alferes Teixeira. Quase sempre os matutos se tornam
bisonhos, quando se acham com pessoas a quem devem respeito.

– Se tivesse meios, era capaz de obsequiar-nos com um lauto banquete. Assim
parece. Mas… que vem a ser aquilo, comandante? perguntou Felipe Bandeira,
apontando para frente.

– Tinham dado a volta do caminho e entravam no Cajueiro. A casa do padre
Antonio apareceu logo aos olhos de todos, à esquerda, como dissera
Francisco; mas no ponto onde se devia mostrar a casa deste, o que eles viram
foi um montão de cinzas, de que se levantavam ainda fumo e restos de
chama por entre algumas paredes, esburacadas e enegrecidas.

– O cavalo castanho, entregue de todo à fome que trazia, devorava,
sem cavaleiro, a grama verde, que guarnecia a estrada. Grande desgraça
houve por aqui! exclamou Gil.

E atirou-se para diante da tropa e com pouco chegou ao pé das ruínas
fumegantes.

– Francisco? Francisco? Chamou ele, sem poder dominar a sua comoç&atiatilde;o.
Que foi isto, meu amigo?

O matuto, quase a queimar-se nos barrotes e caibros que ainda ardiam por
entre o barro caído das paredes, revolvia com um ferro de cova, semelhando
visão fantástica, os paus e a terra abrasada. Ouvindo a voz
de Gil, respondeu:

– Estou desgraçado, seu comandante. Puseram-me fogo na casa, como
vê. Mas o que me aterra é pensar que podem estar debaixo destes
torrões minha mulher e meu filho queimados!

– Não há de ser assim, Francisco.

Marcelina! Lourenço! Exclamava de momento a momento o matuto, cavando
e revolvendo sempre os entulhos eriçados de lascas, algumas flamejantes,
muitas reduzidas a carvão. Ninguém me responde, comandante.
morreram todos! Morreram! Estou sem mulher, sem filho, sem casa. Só
me deixaram a miséria e o luto.

As feições do matuto mostravam-se desfiguradas. Por cima de
suas faces de quarenta anos, que há pouco pareciam de trinta, porque
as refrescava o reflexo do jubilo intimo, obra da esperança que lhe
assegurava veria ele com brevidade os entes prediletos de sua alma, escorriam
agora lagrimas lentas, e nelas se lia, em vez do prazer, a dor, a aflição,
o desespero. Foi fácil a todos os circunstantes conhecer a súbita
mudança, porque a esse momento o dia estava claro, e a aurora iluminava
o céu e a terra com reflexos que nenhum pintor pode ainda reproduzir
na tela.

Gil, sentindo a gravidade daquela crise, correu ao matuto, lançou-lhe
os braços sobre os ombros, e disse-lhe em face:

– Então, que é isso, Francisco? Estás a chamar a todo
instante por teu filho e tua mulher? Não vês que não podem
estar aqui?

– Mas então onde estão eles, comandante? Na casa do padre Antonio
não há ninguém. Já cansei de bater na porte. Ninguém
me falou de dentro. Oh! Meu Deus! Por aqui andou de certo o Tunda-Cumbe. Malvado!
Malvado! Tu me pagarás.

– Isto, sim, disse Gil, conhecendo que a loucura um momento iminente ia fugindo,
espancada pelo sentimento da vingança, que acordara enfim, para salvá-lo,
no coração do matuto. Havemos de vingar-nos desses perversos,
que queimam as casas pacificas e levantam ranchos para novos salteadores.
Não percamos tempo. Salta no teu cavalo. Quem sabe o que não
estarão praticando a esta hora na vila os infames bandoleiros. Vamos,
Francisco. Quero-te a meu lado.

O matuto saltou sobre o castanho. Tinha os olhos e as faces em fogo. Na respiração
sentia calor de fornalha. Da mão, em vez do chiqueirador de buranhém
que trazia, pendia agora uma catana fora da bainha.

Mas de momento a momento ia repetindo, como de se para si:

– Lourenço, Marcelina, que terá sido de vocês? Coração,
tu estás a anunciar-me uma desgraça sem nome. Deus se lembre
de mim, Deus se lembre de mim!

Capítulo XX

Eis o que tinha acontecido no Cajueiro, ao escurecer do dia anterior.

Lourenço, que depois do que se passara no samba esperava a cada momento
ser ofendido por Tunda-Cumbe ou por algum dos seus sequazes, vendo entrar
um vulto desconhecido no caminho das carvoeiras, pegou da espingarda de Francisco,
e, sem que Marcelina soubesse, encaminhou-se par aquele ponto.

Detrás da palhoça dos negros existia uma cova imensa, em que
um homem podia meter-se até aos peitos. Com as ultimas chuvas tomara
ela muita água, e se convertera em barreiro, donde os sapos estavam
a essa hora soltando suas monótonas toadas. O rapaz avançou
para ela por baixo das ramas rasteiras dos cajueiros. Na parte mais funda
a água deu-lhe pela cintura. Lourenço pouco se importou com
isto. O que ele queria era saber quem era o vulto e o que ia fazer ali. Eis
o que viu e ouviu.

Estavam dentro da palhoça, com os habitantes do costume, um negro
do serviço domestico de João da Cunha por nome Germano e o Pedro
de Lima, cabra destemido do séquito de Tunda-Cumbe, braço direito
deste, para assim escrevermos, que deixou nome na historia da guerra, pelas
– extorsões, mortes, roubos e outras desenvolturas que cometeu em Goiana,
de que fora o terror.

No momento em que Lourenço pode enxergá-los através
das palhas da choupana, estava Pedro de Lima, a frente voltada para o casal
de negros e o Germano, justamente a dizer-lhes estas palavras:

– É certinho o que digo; podem crer que terão vocês sua
liberdade. Guardarei todo o segredo.

Lourenço compreendeu logo, por estas palavras, que o cabra prometia
aos negros a alforria a troco de um levante contra João da Cunha.

– Então, então, Germano, que dizes a esta proposta? perguntou
Moçambique ao negro da confiança do sargento-mór. Pois
a liberdade é coisa que se engeite?

– A liberdade é boa coisa, e eu a não engeito, assim ela venha,
respondeu Germano. Mas se os outros parceiros não quiserem aceitar
a proposta, e meu senhor vier a saber que eu é que andei nisso, quem
me livrará de ir ao carro ou à fornalha?

– És um pateta, moleque, disse Pedro de Lima. De hoje até amanhã
hei de dar no engenho de teu senhor. Se acontecer o que eu cá espero,
amanhã de manhãzinha o chumbo assobia nas urupemas de sua casa
e a faca trabalha nas banhas da barriga dele. Se os negros que ele lá
tem consigo prontos para dar e apanhar, faltarem na hora do apuro, não
haverá santos que o livrem de ir direitinho para a bagaceira, servir
de pasto aos urubus.

– Mas aí é que está a historia, observou Germano. Eu
sei lá se eles querem faltar ou não?

Negros safados são todos vocês. Não prestam nem para
tratar de libertar-se. Não sabem nem ao menos deixar a senzala, onde
andam curtidos de fome e sono, pela mata virgem. Negros de patente eram os
dos Palmares. Aqueles sim. Foram quarenta os que primeiro meteram a cabeça
no mato; daí a pouco já eram não sei quantos mil. Vocês
são ao pé de duzentos e têm medo do chicote do feitor.
Vai, Germano, falar a João-Congo, a Thomaz, a Januario e a Jacinto.
Se eles não tiverem coragem para a tragédia, faze tu o que te
vou dizer.

– Diga lá.

Quando o engenho for atacado por nós, corre a botar água dentro
dos canos das armas de fogo. Isto é coisa muito fácil, e que
tu podes fazer sem ninguém saber, nem ser preciso que alguém
te ajude neste serviço.

Germano nada disse, e, pelos modos, deu mostras de que dentre diferentes
alvitres indicados pelo audaz bandoleiro, era este o que mais lhe quadrava.
Mas súbito, com gesto de quem tinha tomado uma resolução
decisiva, assim falou a Pedro de Lima:

– – Sabe que mais, seu Pedro de Lima? Eu não faço a meu senhor
isso que vosmecê propõe. Ele para mim é bem bom senhor.
Até minha senhora, que é uma soberbona, essa mesma já
uma vez me prometeu alforia. Pateta! Estás com medo, moleque ruim.

Este moleque é assim mesmo, disse Quiteria. Promete as coisas e não
faz. Quer e não quer. Tem medo do bacalhau – disse o cabra despeitado.
Não tem agora medo de minha faca, ou do bacamarte de Gonçalo
Ferreira. Eu só digo uma coisa: encontrando-te diante de mim, no momento
do ataque há de ser para ti a minha primeira facada ou o meu primeiro
tiro.

– Não se zangue comigo, seu Pedro de Lima, disse Germano com certa
expressão e revirado de olhos, para dar a entender ao mulato que ele
tinha intenção reservada. Pois se eu visse Germano metido na
dança, eu também me metia nela, disse Moçambique.

Estás ouvindo? Olha lá o que perdemos. Eu porém não
quero que ninguém me acompanhe contra a vontade. Nunca pensei que não
aceitasses a minha proposta. Quando te vi passar de tarde para esta banda,
eu logo conheci que vinhas ao sitio das carvoeiras, e disse comigo: ‘Vou
falar com Germano para ver se ele quer, a troco da sua liberdade, prestar-nos
um servicinho. Eu estava na mente de que havia de te chamar para nós;
mas, como não queres, nem por isso te farei mal. O que eu disse há
pouco foi gracejo. De ti, pobre negro cativo, o que eu tenho não é
ódio, é pena. E adeus. Perdi meu tempo e minhas razões.
De outra feita talvez a coisa já não seja assim’.

– Eu também me vou embora, que já é tarde; disse Germano.
Adeus, tio Moçambique. Com Deus amanheça, tia Quiteria.

– Vai-te embora daí que tu não prestas senão para chotear
de jaqueta de galão atrás de teu senhor, abrir-lhe as porteiras
para ele passar, e limpar as botas dele quando vêm cheias de lama –
respondeu Moçambique.

– Você também de que serve? Perguntou Germano despeitado. Não
é também escravo dele, como eu sou? Não é mais
que a gente se levantar contra seu senhor! Mestre Moçambique, sabe
que mais? Vá contar a outro as suas valentias, que eu nelas não
creio, e tanto caso faço delas como dos latidos de cachorro velho,
carregado de rabuje, que já não morde, porque nem dentes tem.

– Está bom, está bom, vai-te embora, meu pimpão – disse
o Moçambique. Amanhã, tu me dirás quem é o cachorro
velho que não morde. Talvez que a esta hora tu estejas na ponta da
faca de Pedro de Lima, e eu na mata virgem.

Germano deu o andar para a vereda, onde já entrara Pedro de Lima,
que saíra antes dele.

Adiante, debaixo de um cajueiro, um vulto estava parado. Era o matuto.

– Eu bem te endendi, Germano. E para saber todo o teu pensamento, aqui fiquei
à tua espera.

– Quando é que vão atacar o engenho?

– Para te falar verdade, eu não sei bem quando há de ser o
ataque.

Mas vamos cá saber uma coisa, seu Pedro de Lima: como posso Ter eu
certeza de que serei livre se fizer o que vosmecê propõe?

Não há duvida que tudo há de ser conforme te digo. Pois
queres melhor certeza do que a nossa vitoria? Olha cá. Se vencermos
a nobreza, o governo passará a ser outra vez dos mascates, e passando
a ser dos mascates o novo governo, está bem visto que todos aqueles
escravos que nos tiverem ajudado a dar com o governo da nobreza em terra,
terão em recompensa a sua liberdade.

– E se, em lugar de darem a eles a liberdade, os mascates ficarem com os
negros na escravidão, não virá tudo a dar no mesmo?

– Mas se eu te afianço que tu pelo menos ganharás a tua alforria,
que mais garantia queres do que minha palavra? Não duvides da promessa.
Ajuda-nos a dar um ensino de mestre a esses senhores soberbões, e eu
te asseguro que não te hás de arrepender. Pois sim, seu Pedro.
Eu, como confio na sua palavra, estarei pronto, quando chegar o momento, a
molhar as armas. Mas, olhe: todo o meu serviço não passará
disso, porque eu não quero historias comigo.

– – Nem eu exijo outro serviço além deste. Ficarei com ele
muito satisfeito, e ele só será bastante para te forrares. Então,
fica assentado isso mesmo, não é verdade?

Isso mesmo. E eu vou já dizer ao Tunda-Cumbe a tua promessa, que é
para não haver duvida. Os dois tinham chegado à beira da estrada.

– Ah! Esqueci-me do saco de batatas que Moçambique mandava lá
para casa. Volto a buscá-lo.

Separaram-se, Germano para tornar, como disse, à palhoça dos
negros, Pedro de Lima para tomar à direita a direção
da mata.

Quando eles desapareceram, saiu do mato um vulto com passo sorrateiro e cauteloso.
Era Lourenço, que por entre o arvoredo os havia seguido, amparado pelas
folhagens, quase ombro a ombro com eles, sem que o vissem. Ele entretanto,
que também os não vira, ouvira, sem perder uma palavra sequer,
toda a conversa que tinham tido os dois conjurados desde a palhoça
até a beira do caminho.

Marcelina estava na porta da casa.

Vendo o filho com a espingarda, as primeiras palavras que para ele teve foram
estas:

– Que anda fazendo pelo mato a esta hora, Lourenço? Nem sabes que
susto acabo de ter.

– Que foi que aconteceu, minha mãe?

– Passou por aqui mesmo, há instantinhos, um homem que, depois de
passar, ficou ali de pé a olhar para cá e a fazer jeito de quem
queria saber ou ouvir alguma coisa de cá de casa. Sabe quem era? Pedro
de Lima.

– Pedro de Lima, aquele malvado?! Virgem-da-Conceição. Entra
Lourenço, que quero fechar logo a porta. Ele que anda por aqui a esta
hora, fazendo bem não é. Quer saber o que estava fazendo o cabra?

– Fala baixo, que ele ainda pode estar por ai. Mas o que foi?

Uma das suas. Mas o pior foi o que fez o ladrão do moleque, o Germano.
Em vez de ser pelo senhor, prometeu ser pelos mascates e botar água
dentro das armas, quando o engenho for atacado. Que negro ingrato e perverso!
Tive desejos de lhe dar um tiro na cabeça, quando lhe ouvi as traidoras
palavras. Mas eu nunca atirei em ninguém.

– Virgem Maria! exclamou Marcelina. Pois querem atacar o engenho?

– Foi o que disse Pedro de Lima. Germano não tarda a passar por aqui.
ah! Ali vem ele.

– E que queres fazer? Queres dizer-lhe alguma coisa?

– Quero, sim senhora.

– Vai para dentro, que eu falo ao moleque. Ele a mim há de atender
mais do que a ti.

– Ainda bem não tinha Lourenço entrado, quando o negro passava
pela frente da casa trazendo o saco de batatas nas costas. Se não me
engano, é Germano que vai aí, disse Marcelina em voz alta, a
fim de ser ouvida. Sou eu mesmo, sinhá Marcelina, respondeu o negro.
Quer alguma coisa?

– Eu logo vi que tu ainda havias de andar por aqui. Porque diz vosmecê
isso?

– Se não vais com muita pressa, dá-me cá uma palavra.

O negro parou à porta da casa.

-Senta-te nessa pedra que te quero dizer uma coisa.

– A pedra está muito quente eu oiço mesmo de pé o que
tiver de me dizer. Pois olha; nessa pedra mesma esteve ele sentado, há
pouquinho.

– Ó xentes! Ele quem, sinhá Marcelina?

– Anda cá. Pois tu não sabes quem podia ser? O Pedro de Lima.

– Seu Pedro de Lima?! perguntou o negro subitamente alterado. Ó xentes!
Seu Pedro de Lima!

– Então, ele não andou por estas beiradas ainda agorinha? Quererás
negar?

– Ele andou, é verdade, respondeu Germano, entre aterrado e tremulo.

– E que coisas te disse ele?

– Pois vosmecê sabe o que ele me disse?

– Chega-te para perto de mim, que eu não te quero botar a perder,
Germano.

O negro aproximou-se, com passo tardo, porque em cada pé começou
a sentir o peso de uma arroba, depois que ouvira as ultimas palavras da cabocla.

– Queres saber o que foi?

– Diga, sinhá Marcelina.

Ele esteve contigo na palhoça de Moçambique, e falando-se aí
sobre os motins que tem havido na vila e a revolta dos mascates do Recife,
tu te ofereceste a botar água dentro das armas de teu senhor, para
elas não pegarem fogo, quando o bando de Tunda-Cumbe atacasse o engenho.

Não se pode imaginar a impressão de medo, dor, arrependimento
e cólera, que estas palavras produziram no espirito do negro.

Sem o querer, caiu-lhe do ombro o saco, e ele próprio, para sustentar-se
de pé, teve de apoiar-se no ferro de cova que trazia em uma das mãos.

– Ora, dize-me, Germano, prosseguiu Marcelina: isto era coisa que tu dissesses
àquele malvado? Podias tu prometer semelhante traição
contra teu senhor, que te estima, e que, até já tem, por vezes
prometido forrar-te? És um escravo indigno de ter liberdade.

O negro não respondeu. Triste, cabisbaixo, imóvel, não
sabia o que dizer à cabocla.

Esta prosseguiu:

– Pois não seria muito mais bonito que, em vez de seres traidor e
ingrato a seu sargento-mór, fosses o primeiro a defendê-lo na
hora do ataque? Não terias tu muito mais segura a tua alforria, se,
quando Pedro da Lima partisse contra seu sargento-mór, tu partisses
contra Pedro de Lima, e com a foice, o facão, o chuço ou o bacamarte
impedisses que ele fizesse mal a teu senhor ou á tua senhora?

Germano não era um negro bronco.

Ouvindo estas palavras, percebeu que nelas se lhe oferecia uma porta para
sair da situação cruel e desprezível a que fora arrastado.

Então soltou-se-lhe a voz, que estava presa.

– Eu quero contar a vosmecê a historia como foi. Seu Pedro de Lima
foi quem me fez esta proposta, com a promessa de minha liberdade. Vosmecê
bem pode saber que todo cativo deseja ficar livre, ainda que seja muito bem
tratado por seu senhor, como sou eu na escravidão. Eu prometi fazer
isso que ele disse, mas depois que ouvi suas palavras, estou arrependido;
e posso jurar que não cumprirei a promessa que fiz a seu Pedro.

– Estarás tu dizendo a verdade, Germano?

Eu sou negro, sinhá Marcelina, mas não minto. Pode vosmecê
crer que estou muito arrependido da minha ruim ação. Só
uma coisa lhe peço: é que não vá dizer isso à
minha senhora.

– Se eu quisesse fazer mal, já tinha corrido para lá a meter-lhe
tudo no ouvido. Mas tu sabes que eu tenho bom coração. Antes
quis aconselhar-te do que fazer-te a cama, mesmo porque esperava que mudasses
de parecer. Tu estás muito moço; não te apresses que
hás de Ter a tua liberdade, não pela mão de Pedro de
Lima, ou do Tunda-Cumbe, mas pela mão de teu senhor mesmo. Vai-te embora
descansado, que nada por minha boca se há de saber do que temos conversado.
Pela boca de Pedro de Lima é que eu não respondo.

O negro levantou o saco, pô-lo novamente no ombro, e disse:

– Pela boca dele, sinhá Marcelina, respondo eu. o que ele acaba de
fazer comigo, há de pagar-me com língua de palmo e meio.

– Olha bem, não te vais espetar em alguma tragédia. O cabra
é malvado e traiçoeiro.

Ele é cabra, e eu sou negro, mas porém se ele não andar
muito ligeiro, eu passo-lhe o pé adiante. Ele não sabe com que
negro está pegado. Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo. Ainda bem
Germano não tinha entrado na mata, quando novo vulto se mostrava na
estrada, do lado oposto.

– Não te recolhas já, Marcelina, disse o vulto de longe.

Quem falava era o padre Antonio.

– É vosmecê, seu padre? perguntou a cabocla admirada.

– Que será isso? disse Lourenço aparecendo. Seu padre por aqui!

– Vocês admiram-se, hein? E não deixam de ter sua razão.

Os três tornaram para dentro da casa. Marcelina, que foi a ultima a
fazê-lo, encostou a porta de baixo, pois a sala era muito pequena, e
daí mesmo, com os olhos na estrada e nos outros dois interlocutores,
alternativamente, fez-se toda ouvidos. O padre então sentou-se em um
tripeça, ao pé da mesinha da sala, enquanto Lourenço,
de pé, com as mãos sobre o espeque onde descansava a porta da
janelinha, quando estava aberta, esperava impaciente que o sacerdote quebrasse
os selos do mistério que o levava ali.

– Venho pedir-te um serviço que, na ausência de teu pai, só
tu me poderás prestar, Lourenço.

– Vosmecê não pede, manda, seu padre, respondeu o rapaz.

– Como tenho de fazer uma viagem esta madrugada para fora de Goiana, quero
que vás agora mesmo ajudar o José a arrumar as minhas malas.
Olha. Põe tudo o que é meu dentro delas. Deixa só o que
absolutamente não puder ir.

– Se vosmecê quer, vou eu, disse Marcelina. Lourenço não
sabe fazer bem estas coisas.

– Sabe, sabe, respondeu o padre. Demais eu tenho que te falar. Vai, Lourenço.

Quando se acharam sós o padre Antonio e Marcelina, disse aquele a
esta:

– Marcelina, venho fazer-te uma confissão tão verdadeira e
sincera como se a fizesse a um padre do Senhor.

– Uma confissão! Quem sou eu para merecer tanta honra e confiança?

– O que tu és, bem o sei eu. Tu és merecedora de honras e distinções
muito mais altas do que esta, porque em ti a virtude fez sua morada, e a honestidade
dá seus saudáveis frutos. Todos os elogios da terra ficariam
ainda aquém do teu merecimento. O lar domestico ainda não encontrou
nem encontrará jamais quem o represente melhor do que tu o representas.

– Seu padre está exagerando.

– Não estou, não. Há quatro anos que moro no Cajueiro.
estou por isso habilitado a conhecer as tuas qualidades, a saber os teus sacrifícios,
a admirar a rara beleza de tua alma. Mas venhamos já ao que importa.
De duas partes se compõe a minha confissão. Começarei
pela segunda. Estou-me vendo em uma colisão cruel. Avalia por ti mesma.
Não viste entrar hoje em minha casa o sargento-mór?

– Vi, sim senhor.

Veio pedir-me, antes impor-me, que eu partisse hoje até amanhã
para Goianinha, a fim de, por meio de praticas publicas, chamar ao partido
dos nobres o povo que se declarou e tomou armas pelos mascates. Se o pedido
fosse exclusivamente dele, eu acharia logo meios de escursar-me, posto que
são muitos os obséquios e as atenções que me prendem
ao sargento-mór. Mas infelizmente não é assim; e o sargento-mór
foi portador de uma carta em que o bispo suplica que eu vá pacificar
os ânimos daquele povo, e de lá siga até os limites da
Paraíba com o mesmo fim. Alguém no meu caso recusaria este favor
ao seu prelado e ao seu amigo? Ninguém. Pois eu acabo de recusar, quando
já estava determinado a praticá-lo. Sabes porque recuei? Escuta
lá, Marcelina. Não viste hoje de tarde sair de lá de
casa um frade carmelita?-

– Não vi, mas Lourenço me disse.

Era o prior do convento do Carmo. Veio de propósito – vê lá
tu como as coisas se ajuntam – com uma carta, antes ordem da recoleta do Recife,
exigindo que eu sem perda de tempo me dirija a Paraíba, a fim de levantar
os ânimos do capitão-mór João da Maia, que começam
a resfriar. Esta providencia foi resolvida pelo padre João da Costa,
a quem devo grandes benefícios, e pelos Drs. Ferreira Castro e Mendes
de Aragão, conselheiros do governo dos mascates. Não contentes
com incumbir-me deste gravíssimo mister, exigem que eu me ponha a caminho
de hoje para amanhã. Neste sentido recebi, à entrada da noite,
nova carta de frei José de Monte Carmelo, que Antonio Coelho me mandou
trazer por Pedro de Lima. entre as três e as quatro horas da madrugada
hão de estar por aqui os meus companheiros de jornada à Paraíba.
Oh, que colisão cruel, Marcelina?

– E seu padre vai fazer este serviço aos mascates? Perguntou a cabocla.

– Eu deixo o Cajueiro, mas, aqui em particular, que ninguém nos ouça,
devo dizer-te: não vou nem para Paraíba, nem para Goianinha.
Vou para… Nem sei para onde vou eu. Vou fugindo de mascates e de nobres.

– Mas, meu Deus, como há de ser isso? Pois vosmecê nos deixa
assim?

Nem uns nem outros têm razão, Marcelina. São exagerados
ambos em suas paixões. Cegou-os a vaidade, o interesse, o capricho
condenável. Deviam estimar-se e auxiliar-se mutuamente como dantes;
mas não; hostilizam-se, como se fossem dois povos bárbaros e
inimigos, como se não tivessem laços comuns – a mesma nacionalidade,
a mesma religião, a mesma língua, as mesmas leis. Porque é
que brigam eles? Por um pedacinho de governo? Por uns vinténs de mais
ou de menos? Por uma vila? Mas em uma terra imensa, como esta, que ainda por
muitos séculos há de ser um mundo universo, onde poderão
aposentar-se todas as nações da Europa, brigar por uma vila,
por um engenho, um armazém, uma loja, um assento no senado da câmara,
é dar testemunho de ter o entendimento obscurecido pelas trevas da
ignorância ou da loucura. Querem destruir-se os dois loucos? Pois destruam-se,
como querem; eu é que não hei de ir meter-me entre eles dois.
Ambos são meus irmãos; mas como não posso nem mesmo com
um só deles, quanto mais com ambos juntos? O recurso que tenho é
deixá-los pegados até que, pela dor física, pelo sangue
derramado, pela fome criem ambos medo à luta e volte um para a loja
e o outro para o engenho a tratar, já com as paixões castigadas
e o juízo claro, dos seus interesses particulares. O padre inclinou
a cabeça, como quem meditava, e, passado um momento, voltando-se para
Marcelina, disse-lhe com evidente desprazer e tristeza:

– Vou passar ao segundo ponto de minha confissão.

– Seu padre pode falar, que eu estou ouvindo com toda a atenção,
respondeu a cabocla.

E sentou-se para escutar melhor.

Capítulo XXI

O padre prosseguiu assim a sua confidencia:

– Abro o livro da minha vida sacerdotal para ler a triste e vergonhosa historia
que te quero confiar. Custa-me por extremo volver a folha negra em que está
escrita, além desta historia, a minha própria condenação.
Mas fio que serás indulgente para os culpados. Na juventude, Marcelina,
são veementes e cegas as paixões, a carne obra como tirana;
a fantasia, mais tarde estrela de branda luz, não passa então
de chama afogueada – ilumina, mas queima. Quando chega a idade madura, e o
entendimento, como magistrado intimo, examinando, apreciando e julgando os
atos da mocidade, descobre os montões de cinzas a que o fogo da paixão
juvenil reduziu sentimentos e princípios respeitáveis, e por
baixo dessas cinzas fundos abismos e tenebrosas sepulturas; quando a razão,
já educada pelos anos e fortalecida com o conhecimento exato das coisas,
transmite à consciência suas severíssimas leis, e exige
o preenchimento delas, a frágil personalidade humana não tem
para sua defesa outra voz além desta: ‘Perdão, ó
homens! Perdão, ó Deus!’ Presta atenção,
Marcelina. É chegado o momento do terrível sacrifício.
Vou enfim abrir a teus olhos o lugar mais recôndito do meu coração.
Não te aterres com o espetáculo, nem digas a ninguém
que debaixo das cinzas de minha velhice se aninha uma serpente que me prende,
como anel de fogo, ao inferno.

– – Seu padre! exclamou a cabocla, profundamente abalada. Juro-lhe que lhe
guardarei segredo até à morte. Houve aqui há anos uma
terrível epidemia de bexigas desde o Recife até à Paraíba.
Morreu gente sem conta por esses povoados e estradas afora. Tu hás
de estar lembrada.

– Ainda me lembro dessa peste. Se eu estive às portas da morte…

Pois bem. Por esse tempo achava-me eu no convento de Iguarassú, donde,
por ordem do bispo, parti para Tres-ladeiras, a fim de prestar os socorros
espirituais à pobreza, que estava aí morrendo no maior desamparo
e impenitência. Uma noite de muita chuva, tenho ainda na memória
bem frescos todos os passos, especialmente os primeiros do meu erro, quando
eu voltava de um sitio aonde tinha ido ouvir de confissão um moribundo,
senti-me de repente assaltado de tremedeiras tão fortes que não
sei como não vim do cavalo em terra; estava pesteado. Felizmente, alguns
passos adiante, havia uma casa na beira do caminho, e dentro dela vi lume
aceso. Pedi agasalho, o qual não se fez esperar. As moradoras, que
me conheciam de ver-me passar todo dia pela porta, acolheram-me com as maiores
atenções. Era uma mãe com sua filha, ambas viuvas. Não
só durante o período agudo da enfermidade, mas durante a convalescença,
que foi longa, nunca resfriou o zelo delas. A filha era nova e mui gentil.
Enfim, Marcelina, quando voltei um mês depois à minha casa, levava
comigo dois inimigos cruéis, uma paixão e um remorso. O primeiro
destes inimigos pude vencer, pretextando cansaço e fraqueza, e voltando
ao convento; o segundo porém nunca mais saiu de minha consciência;
há de baixar comigo à sepultura. Só Deus sabe, Marcelina,
se esse crime não chamou sobre minh’alma a condenação
eterna.

– Deus tem sempre o perdão para os bons.

E eu fui bom? Fui pusilânime e réprobo. Tempos depois, dentro
de minha cela, recebi uma carta. Aquela que me fizera cair e que eu arrastara
em minha queda, tinha sido mãe e pedia-me que olhasse por ela e pelo
filho. A velha tinha falecido, deixando a filha só no mundo, com o
testemunho vivo do meu crime. Nos primeiros tempos olhei de longe pela infeliz
e pelo fruto do nosso amor fatal; mas sabendo depois que ela se havia desmandado
em sua vida, faltou-me generosidade para continuar-lhe os meus auxílios.
Todavia, eu não perdia de vista esses entes com os quais o destino
me prendera por inquebrantáveis cadeias. Quando ela se mudava de uma
terra para outra, como muitas vezes aconteceu, eu achava sempre no novo lugar
pessoa de minha confiança a quem recomendar a criança que, rendendo
a homenagem devida à decência, eu dizia ser ligada comigo por
parentesco remoto. Essa pessoa era o vigário ou outro qualquer sacerdote.
Um dia recebo uma carta em que o vigário da freguesia, onde a mulher
e o menino estavam ultimamente residindo, me informava da morte da mãe
e do abandono do filho. A carta fora retardada, de sorte que quando me chegou
às mãos, mais de um ano tinha decorrido depois de sua data.
Sendo-me então mais fácil tomar o menino à minha conta,
não só pelo falecimento daquela que a ele tinha melhor direito
do que eu, mas pela minha secularização, corro ao ponto em que
o devia encontrar, impaciente por ver e conhecer aquele que na forma de espinho
eu trazia incessantemente na consciência. Oh que amargas desilusões
não foram as minhas, quando aí cheguei! O menino tinha no lugar
as mais tristes tradições que se podem imaginar, e, para cúmulo
do meu desgosto, mão desconhecida o tirará violentamente, posto
que com satisfação de todos os moradores.

– Meu Deus! Que está dizendo, seu padre? inquiriu Marcelina, abalada
e confusa destas noticias, que caiam em seu espirito na forma de raios de
luz.

– Tu sabes o resto, Marcelina.

– Eu, eu?

– Sim. Não te lembras do que fiz quando, de volta do engenho, entrei
em tua casa?

– Já me não lembro, seu padre.

– Pois lembro-me eu. chamei Lourenço para junto de mim, meti-o entre
as minhas pernas e abracei-o . Ah! era a primeira vez que eu via meu filho.
Seu filho! Pois Lourenço é seu filho, seu padre! exclamou a
cabocla, fazendo gestos e meneios, que acusavam intenso e súbito prazer.
Oh! meu Deus, como eu sou feliz!

As lagrimas saltavam dos olhos dela, mas não eram desacompanhadas;
o padre também chorava.

– Feliz foi Lourenço, feliz fui eu, disse ele. se não foras
tu, alma privilegiada, mãe perfeita, honra das mulheres, brilho do
lar, se não foras tu, o que seria desse menino que vivia como animal
imundo na povoação condenada? Mas… estou ouvindo o rumor de
passos. É talvez Lourenço que se aproxima. Mudemos de assunto.
Não te esqueças, Marcelina, do que me prometeste. Não
reveles a ninguém a minha fealdade moral. Ninguém saberá
o que vosmecê acaba de contar, menos Francisco. Francisco? Tens razão.
A Francisco, primeiro instrumento da Providencia para a mudança radical
do destino de Lourenço, podes e deves referir toda esta historia. Agora
uma ultima palavra. Retiro-me deste lugar sem saber para onde vou. Se eu vier
a morrer antes de terminada esta guerra, que me aparta de vocês contra
a minha vontade, logo que tiveres noticia, faze Lourenço senhor do
seu próprio segredo e entrega-lhe este papel, que ele deve apresentar
às justiças. Não é meu testamento, é a
doação que lhe faço, de meu sitio e de todas as terras
que me pertencem.

– O padre Antonio entregou a Marcelina o papel a que se referira. Era tempo.
Lourenço entrava para dizer que seus serviços já não
eram necessários no sitio.

– – Por derradeiro, quero dar-te um conselho, Marcelina, disse o padre levantando-se.
Ao que parece, está projetado um ataque ao engenho. Devem passar por
aqui os assaltantes, e natural é que tentem algum desacato a vocês,
por se vingarem das relações que Francisco mantém com
o sargento-mór. Por isso prudente me parece que não pernoitem
aqui por estes tempos. No engenho, onde há mais força, deve
haver mais segurança. Seu padre tem razão, respondeu Marcelina.

– Mas no engenho é que eles têm sede, observou Lourenço.

– Pois façam o que lhes parece melhor, tornou o sacerdote.

– O melhor é irmos para a casa grande enquanto é cedo, disse
a cabocla.

– Verdade seja – acrescentou o rapaz – que eu devo estar junto de Germano,
para ver esse negro o que faz. Vosmecê bem sabe porque é que
eu digo isto, minha mãe.

– Está acertado. Vamos já.

– Adeus, Marcelina. Deus te abençoe, Lourenço, disse o padre
Antonio, limpando a furto duas lagrimas que lhe apontaram nos olhos, e encaminhando-se
para a estrada.

– Daí voltou-se para dizer: – Escuta de lá, Lourenço.
A chave da casa, na ocasião de sair, mando por debaixo da porta. Quando
voltares do engenho, achá-la-has da banda de dentro. Senhor sim.

Uma hora depois Lourenço e Marcelina tomavam para o Bujari. Não
se meteu muito que o padre Antonio com seu escravo José deixou como
eles a estrada, seguindo porém diferente direção. Era
madrugada velha quando entrou pelo Cajueiro o Tunda-Cumbe com sua gente. Pedro
de Lima bateu com o coice do bacamarte sobre a porta da casa de Francisco,
e como daí ninguém lhe respondeu, foi ele o primeiro que pôs
fogo nela. Outros bandidos o imitaram, tomados da volúpia feroz que
caracteriza os celerados. A casa do padre foi poupada por ser de quem era.
Mal sabiam eles que poucas horas antes tinham voltado daí, inteiramente
frustrados em sua expectativa e sem poderem explicar o fato que profundamente
os contrariaria, dois parciais dos mascates mandados por Antonio Coelho com
todo o necessário para acompanharem o padre à Paraíba.

Ao clarão do incêndio, penetraram os malvados na mata, caminho
do engenho, supondo que iam surpreender o sargento-mór. Este porém,
advertido desde muitos dias atrás por diferentes circunstâncias,
suspeitas e até boatos, tinha-se passado àquela tarde para o
sobrado que costumava ocupar, quando festas publicas ou negócios particulares
exigiam a sua estada temporária na vila. Marcelina e Lourenço,
não tendo encontrado a família na casa grande, foram reunir-se
com ela em Goiana.

O sobrado estava situado no quarteirão fronteiro à igreja do
Carmo. Ficava olhando para o cruzeiro de pedra que aí se vê e
do qual se diz que em seus alicerces se acha enterrado grande tesouro destinado
pelo instituidor à reedificação do convento, se suceder
que venha a cair em ruínas.

Esta tradição existia já em 1711 porque, por ocasião
de um dos oitos motins de que, durante a guerra dos mascates, foi teatro Goiana,
um bando da gente do Tunda-Cumbe atirou-se ao cruzeiro, e a uso dos vândalos,
que tudo destruíam, mutilou parte da larga e solida peanha, sobre a
qual ainda hoje se mostra assente a cruz, e fez profundas escavações,
afim de ver se davam com o cabedal oculto. Não se sabe se a sua expectativa
foi satisfeita ou iludida. Neste ponto a tradição anda adiante.

Com o sargento-mór tinha ido para Goiana grande parte da escravatura;
o restante ficara no engenho para o guardar e defender, sob as ordens de alguns
moradores, entre os quais se apontava o Victorino, cuja intrepidez era por
todos conhecida. A mudança fora súbita.

Quando a coluna invasora chegou ao engenho, já era aí esperada;
e por isso foi recebida com todas as honras. A defesa tinha sido bem organizada
por Victorino e seus companheiros. A casa grande semelhava uma cidadela fortificada.
Mas, infelizmente, o animo que sobejava nos moradores, faltava nos escravos.
Enquanto aqueles faziam prodígios de valor, estes defendiam as entradas
frouxamente. Dentro em pouco tempo conheceram os assaltantes, superiores aos
assaltados não só em numero, mas no manejo das armas, que a
praça não tardaria em cair debaixo do seu poder. Cônscio
desta verdade, o Tunda-Cumbe chamou de parte o Padre Lima e o Gonçalo
Ferreira, deu-lhes ordens à puridade, e, pondo as pernas ao cavalo,
desapareceu por entre uns canaviais que do lado direito vinham morrer no cercado.
Victorino, que de uma das janelas tinha debaixo das vistas o movimento inimigo,
viu aos primeiros clarões do amanhecer, tomar o caminho de sua casa
o chefe da quadrilha.

Não foi preciso mais para compreender a intenção do
bandido.

A honra de suas filhas, único tesouro, único dote delas e principal
orgulho da família, afigurou-se-lhe, não sem razão, ameaçada
de iminente desastre. O almocreve esqueceu o sobrado pela palhoça.
Naquele estava uma fortuna de grande valor, consistente em jóias, moveis
e outros muitos objetos preciosos; nesta havia a pureza de duas graciosas
donzelas, que representavam a seus olhos anos de trabalho, de sacrifícios,
e de bem querer. Em seu coração, em sua alma, tinham muito mais
peso os risos gentis, as graças meigas, o amor modesto, de Marianinha
e Bernardina, do que toda a prata, todo o ouro, todos os brilhantes de João
da Cunha e de d. Damiana. Victorino desceu a modo de impelido por sopro de
tempestade, montou em seu cavalo, que, por cautela, retivera amarrado no vão
do sobrado, e por uma aberta que fez na cavalariça pode ganhar os canaviais
sem ser visto pelos assaltantes.

Antes de chegar à casa, encontrou-se com Joaquina que já vinha,
como louca, em procura dele.

– – Corre, corre, Victorino, que talvez ainda pegues o malvado, o Tunda-Cumbe,
que nos vai roubando a nossa filha, gritou a pobre mulher, os cabelos desgrenhados,
as faces cobertas de lagrimas, e no semblante os traços violentos do
maior desgosto que ela tinha sentido até esse momento na vida. Eu tudo
vi da casa grande, disse ele. Miserável!

E logo acrescentou, descobrindo umas cinquenta braças adiante de se
o Tunda-Cumbe, já a perder-se de vista, pela veloz corrida do cavalo,
por entre o mato com a Bernardina atravessada sobre as pernas:

– Ou tu me matas, ou tu morres!

– Ah! minha filha, minha querida filha! dizia Joaquina, carpindo-se na sua
grande aflição. E onde está Marianinha? Ó Marianinha?
chamou a agoniada mãe.

Dentre umas moitas emergiu então a alguns passos de Joaquina a rapariga,
por quem ela acabava de chamar. Os matos tinham-lhe rasgado a coberta em que
se envolvera na ocasião de fugir com medo do malfeitor.

Vinha chorando, e estava pálida, triste, tremula. Do grande susto
o coração parecia querer sair-lhe pela boa. Ela semelhava rolinha
espantada por tiro de caçador.

– Minha mãe! minha mãe! Que desgraça foi esta?

– Não podia ser maior, minha filha.

– Não fale assim, que ainda pode ser pior, minha mãe!

– Olha. Lá vai o malvado com tua irmã.

E Joaquina apontou para uma baixada, onde nesse momento apareceu o Tunda-Cumbe.

– E lá vai meu pai, lá vai meu pai já a pegar seu Manoel
Gonçalves. Oh meu Deus! Que é que me está dizendo baixinho,
minha mãe?

– Nada, Marianinha. estou rezando, para que Deus se lembre de nós
neste cruel transe.

De repente, aquela mãe e aquela filha, como se tivessem a mesma impressão
e a mesma idéia, ou se deixassem vencer pela mesma força intuitiva
e fatal, deram alguns passos violentos para diante, com os olhos, para não
escrevermos o coração, a alma, postos nos dois cavalheiros que
corriam na baixada. Ambas tinham visto o que ia na frente, voltar arrebatadamente
o animal e esperar o segundo; tinham visto este atirar-se para aquele com
sua arma de fogo em uma das mãos e na outra o facão desembainhado;
tinham ouvido a detonação de um tiro, á qual se seguira
uma nuvem de fumo que envolveu os dois contendores.

Mas não se meteu muito que as mulheres recuaram espavoridas, levantando
alto brado de dor, que atroou todo o deserto. O Tunda-Cumbe acabava de desaparecer
no mato com sua presa, enquanto Victorino ficava caído na baixada,
estorcendo-se nas convulsões da morte.

Capítulo XXII

O engenho, que ainda defendido por Victorino, teria de render-se às
armas numerosas e práticas dos agressores , não podia, na ausência
dele, sustentar-se a não ser por poucos momentos.

De feito não era ainda de todo claro o dia, quando as portas da casa
grande abalada em seus fundamentos caiam a poder de machados e por cima delas
entravam em borbotões os malfeitores impacientes pelo saque.

Este foi feito com desabrimento incrível. Aquela malta de homens perdidos
que, no rancho do Sipó, explorados pelo chefe, se haviam acostumado
a odiar os nobres e a cobiçar os seus haveres, deparava enfim, depois
de esforços e tentativas malogradas, ocasião oportuna para matar
a sede de vingança e ouro que os abrasava. Para quase todos havia sabor
especial nesta negra vitoria. A casa, que destruíam, saqueavam e humilhavam,
era propriedade de João da Cunha, dentre os nobres o mais odiado, por
ser talvez o mais poderoso e vingativo deles. Por isso destroem e aniquilam
o que não lhes excita a ambição ou não podem conduzir
em seus sacos. Moveis preciosos são jogados das janelas ao pátio,
onde se despedaçam. Cada queda, cada destruição serve
de objeto a indecentes motejos e dá lugar a indignos comentários.
Enfim, longe iríamos se quiséssemos descrever as cenas aviltantes
e lastimáveis que dentro de horas se representaram na aristocrática
vivenda do sargento-mór.

Tinham eles dado com o deposito dos vinhos – a rica adega do fidalgo – e
já se entregavam aos deliciosos espíritos, quando, trêmulos
e aterrados, entraram correndo alguns dos espias que, por ordem do Tunda-Cumbe,
estavam vigiando nos cantos mais importantes do cercado.

– Fujamos, fujamos, que ai vem uma grande força.

– Bem se dizia que ela havia de vir – disse Pedro de Lima.

– Vamos a seu encontro – gritou Gonçalo Ferreira.

– Não, não – replicou Pedro de Lima. ganhemos o mato sem demora.
Quando tiver passado, iremoa atrás dela, que ficará entre dois
fogos – o nosso, pela retaguarda, e o de Luiz Soares pela vanguarda. Luiz
Soares a esta hora, se entrou pelo Tanquinho, já deve estar senhor
da vila. Faremos a junção e queimaremos os pés-rapados
um por um.

– Está dito.

‘Sair’ foi o grito que irrompeu de todos os peitos.

Ao grito seguiu-se o exemplo.

A força, como o leitor já deve ter compreendido, era a que
Gil Ribeiro comandava.

Vendo da estrada abertas as portas e janelas do sobrado, espalhados pelo
pátio os moveis, alguns dos quais, formando pequenos adjuntos, eram
nesse momento presa das chamas, não pode Francisco acabar consigo que
não fosse de perto verificar este lastimoso espetáculo.

Quando esbarrou na frente da casa e reconheceu a terrível verdade,
uma idéia lhe atravessou o cérebro, iluminando-o como relâmpago.
Esta idéia lhe dizia que a sua casa tinha sido abandonada por Lourenço
e Marcelina, como o engenho lhe pareceu que o fora por João da Cunha.

– Eles não morreram. Estão todos no sobrado. Oh meu Deus! Permiti
que assim seja.

Estas palavras consoladoras, que lhe saíram irresistivelmente dos
lábios, foram como as primeiras manifestações de nova
alma que lhe entrara no cérebro. Voltou imediatamente à estrada
e se incorporou outra vez na tropa que já corria a marche-marche para
a vila, por ordem de Gil.

Pedro de Lima não se enganava. Desde o amanhecer achava-se Luiz Soares
com suas forças em Goiana e dava ai que fazer à nobreza.

Nesta vila lavrava a anarquia, ora mais, ora menos, extensamente desde 3
de julho, data do primeiro motim. Não menos de oito foram eles, numero
que se elevará a muito mais, se aos movimentos das ruas, em certo modo
organizados, juntarmos as disputas particulares, os desforços pessoais,
as afrontas e os desagravos feitos em publico, enfim todos os conflitos naturais
de duas forças políticas que se hostilizam a todo o transe no
pressuposto de aniquilar-se mutuamente.

Além destas circunstancias comuns a todas as guerras civis, uma circunstancia
especial tornava mais perigosas e freqüentes as agressões e as
represálias em Goiana – a de serem os goianistas ardentes assim nas
lutas da razão, como nas do sentimento.

De data imemorial é a terra de Nunes Machado, de Arruda Câmara
e de tantos outros vultos eminentes, foco de faculdades viris fácil
de acender-se, difícil de apagar-se. Filha legitima do Recife – vasto
laboratório, em que fermentam as paixões populares sem intermitência,
ainda que fria serenidade pareça algumas vezes indicar enfraquecimento
ou sono da grande alma pernambucana que tem ai a sua sede, Goiana sempre representou
conspícuo papel nas agitações da província.

Conhecedores da influencia, não só comercial, mas também
política da vila, puseram os mascates particular empenho em tê-la
de seu lado; e neste pressuposto fizeram dela sua segunda praça forte,
ou o principal ponto dos seus recursos e forças, depois da capital.

Logo que no Recife se fez sentir a falta de viveres, foi de Goiana que trataram
de os enviar para os sitiados. Um óbice porém apresentou-se
imediatamente, o qual muito deu que pensar aos insurgentes – a rixa em que
estavam com os habitantes de Goiana, os da Ilha, rixa que tem sua natural
explicação, que é a seguinte:

De Itamaracá sede de uma capitania independente de Pernambuco, por
doação que a Pero Lopes de Souza fizera por carta de 1º
de setembro de 1534 d. João III, fora mudada a câmara para Goiana
em 1685. Despeitados, começaram desde então os moradores de
Itamaracá a ter para os de Goiana o sobr’olho carregado, e não
perdiam ocasião de lhes dar mostras do seu desagrado. Altos empenhos
a favor da ilha, se não foram falsas informações movidas
secretamente contra a vila, deram lugar a expedir-se em data de 20 de novembro
de 1709 ordem regia, determinando voltasse para aquela a câmara que
de lá saíra. Este ato veio converter em novos ódios ressentimentos
antigos. Por isso não foi preciso, para que os da ilha tomassem o lado
do governo, isto é, o da nobreza, mais do que saberem que Goiana se
amotinara contra ele. Não podendo porém a primeira competir
com a segunda, e havendo até suspeitas de que, para impedirem que fossem
tomadas pelas autoridades da ilha os gêneros remetidos pelos mascates
para o Recife, tentavam estes apossar-se dela, encarregaram os governadores
militares o ajudante-de-tenente Gil Ribeiro de ocupar o Forte-de-Orange. O
ajudante ai esteve até que partiu, por nova ordem, para Goiana, segundo
vimos.

A pacificação desta vila era na realidade empresa que exigia
animo e espíritos fortíssimos. Nunca estivera tão acesa
ali a fogueira das paixões partidárias, como nos últimos
dias que precederam ao da chegada de Gil Ribeiro. A nobreza, em conseqüência
da voz, que correra dias antes, de que o bando de Paraíba, de passagem
para o Recife, tomaria em Goiana larga desforra das anteriores represálias,
entendeu em fortificar-se, posto que sem ostentação, visto como
os seus recursos não eram grandes, nas mais importantes embocaduras.

Nesse tempo a vasta campina que hoje se interpõe entre a ponte de
Goiana, na Rua-do-rio, e o ancoradouro das barcaças, denominado Porto-da-conceição,
era um sitio ocupado por Jorge Cavalcanti, no qual tinha ele grandes olarias.
A casa de morada ficava no centro das terras. Do mirante punha-se debaixo
das vistas toda a volta do rio Goiana que vinha do Porto-da-conceição,
passava pela frente da campina e ia morrer, como ainda hoje, no lugar onde
se vê o trapiche, que há poucos anos serviu de casa de teatro.

Não estava então obstruindo o rio. Barcos e sumacas chegavam
até ao pé das casas da rua e ai recebiam ou deixavam os seus
carregamentos.

Com o pretexto de fortalecer as barreiras para o embarque de tijolos e louça,
mandou Jorge Cavalcanti levantar em vários pontos estacadas de pau-a-pique.
Por trás das estacadas vastas tulhas de barro, e pela frente, no espaço
da margem que ficava descoberto, largos e traiçoeiros fojos, eriçados
de mortíferos espeques, davam a esta posição as vantagens
da primeira fortificação da nobreza, visto que cortava quaisquer
inimigas comunicações da Paraíba com a vila pelo rio.

Do lado do norte eis em que condições se achava a defesa.

Nas terras que ainda se denominam – Tanquinho – tinha o ex-alcaide-mór
Manoel Cavalcanti de Lacerda sua casa de morada, a qual ficava na beira da
estrada que vinha da Paraíba.

O ex-alcaide-mór sem hesitar um só momento aproveitou-se dessa
importante posição. Não somente concentrou ai seus recursos,
mas também mandou levantar ao longo da estrada e por dentro dos matos,
trincheiras singulares, que grandes danos deveram causar aos assaltantes,
se eles por ai tivessem feito a sua entrada. Mas não foi isto o que
aconteceu, e assim destas amplas defesas, como das de Jorge Cavalcanti, que
não o eram menos senão mais, como vimos, não se disparou
um só tiro contra os da Paraíba, visto que, de tudo informados,
não obstante serem grandes as cautelas tomadas e o segredo mantido
sobre tais fortificações, cortando por diferentes caminhos,
entraram na vila por onde não eram esperados como adiante veremos.

Cosme Cavalcanti ocupava o sobrado que ainda existe do lado direito, no fim
do Beco-do-pavão e que dá para a Rua-do-meio.

Chamou para junto de se e lhe entregou o comando de varias ordenanças,
que estavam de prontidão no pavimento térreo do sobrado, o alferes
Diogo de Carvalho Maciel, o qual tão brilhante nome deixou por seus
feitos nessa guerra. Felipe Cavalcanti, que morava na Rua-da-Soledade, e José
de Barros na Rua-das-porteiras tinham também consigo gente armada,
e só esperavam qualquer indicio de rompimento para caírem sobre
os inimigos.

Guarnecia a cadeia o ilustre capitão Antonio Rabelo, que, por ocasião
dos primeiros motins, fora destacado pelo governo para auxiliar na vila a
defensão das autoridades e dos moradores pacíficos; e a todos
inspirava a maior confiança.

João da Cunha trazia a sua gente no vasto armazém que ficava
por baixo do sobrado por ele ocupado. Varias caixas de açúcar,
que a esse tempo ainda ai se viam, porque tanto que se trocaram as primeiras
hostilidades, cessaram as transações entre os agricultores e
os comerciantes, haviam sido colocadas por trás das portas da frente,
de modo que pudessem servir de trincheiras com avançada para o Pátio-do
Carmo.

Estava sujeito a especiais perigos o ponto ocupado por João da Cunha,
em conseqüência de se achar fronteiro ao convento, que era, para
assim escrevermos, o quartel-general dos mascates, sendo por estes os frades,
graças à influência dos da recoleta. No convento achavam-se
recolhidas armas e munições mandadas de Recife para serem distribuídas
pelos amotinados.

Eram estas as condições da defesa dos nobres em Goiana. Volvamos
agora rápida vista-d’olhos sobre as dos seus adversários.

O plano destes era realmente tenebroso, e não ficava a dever ao da
nobreza.

João da Maia, não obstante se mostrar mais moderado em sua
ardência contra os senhores-de-engenho, do que ao principio, escrevera
na véspera o Antonio Coelho:

‘Amanhã há de estar logo muito cedinho ai Luiz Soares
com seu terço, passante de quinhentos homens.’ O próprio
Luiz Soares mandara dizer a Jeronimo Paes por seu parente Joaquim Silverio:

‘Espere por mim com minha gente para almoçarmos. Queremos panelada
gorda e bom vinho.’ O Tunda-Cumbe a quem Antonio Coelho escrevera aconselhando-o
a que entrasse ao mesmo tempo que Luiz Soares a fim de ser decisivo o golpe
que se desfechasse sobre a nobreza, respondera dizendo que não faltaria.

Por volta das cinco horas da tarde do dia anterior ao da entrada de Gil,
justamente quando em sua casa fazia Antonio Coelho com Jeronimo Paes o computo
das forças, que deviam no dia seguinte tomar Goiana, entrou na sala
um pardo, escuro, corpulento, mal encarado, por nome Bartolomeu. Era o mestre
de uma barcaça de Antonio Coelho, circunstancia a que talvez devia
a particular confiança que nele tinham os principais negociantes da
vila.

Ao parecer, sua chegada não era esperada, visto que deu lugar a revelarem
surpresa, posto que agradável, os dois amigos.

– Já de volta, Bartolomeu! exclamou Antonio Coelho. Prósperos
te foram os ventos.

– Cheguei há poucas horas, respondeu o barcaceiro.

– Então? Inquiriu Jeronimo Paes. Foste feliz na viagem? Chegaram ao
Recife sem novidade os viveres que mandamos?

– Por força, respondeu Bartolomeu com segurança.

– É um herói, disse Coelho.

– Não foi sem perigo que cheguei ao meu destino. Da ilha tentaram
cortar-me a marcha da embarcação. Mas eu fiz-me no largo com
tão boa hora, que ainda me procuram supondo-me fora da barra, quando
eu já fui e já aqui estou. E que novas nos trazes? Boas ou más?
Interrogou Coelho.

– As novas mais importantes devem vir nestas cartas – disse o barcaceiro,
entregando ao negociante um alentado maço de papel.

Coelho rasgou com violência o envoltório que reunia em um só
volume a sua correspondência, e pôs a devorá-la.

Entretanto Jeronimo Paes não cessava as indagações sobre
o estado do Recife e dos seus habitantes sitiados.

– O que eu sei dizer é que a fome dentro da vila é de meter
horror, – disse o barcaceiro. Dá-se um vintém por uma espiga
de milho e não se encontra. Não há carne de espécie
nenhuma. De farinha não havia nem um caroço antes de eu lá
chegar. Um papagaio já serviu de galinha para caldo de um doente. O
forte da população é o marisco-pedra, tirado nas coroas
quando a vazante as descobre. Mas vosmecê não sabe que perigo
corre o que lá os vai apanhar. Mais de cinquenta negras mariscadeiras
tem caído no poder dos pés-rapados que fazem o cerco da vila.
Muito pescador de marisco tem morrido de tiro.

– E porque não rompem o cerco? Para que servem os que estão
dentro? Onde está o animo dessa gente? Que faz Mota? Oh que gente!
Que gente!

A coisa não é tão fácil como parece. Seu governador
João da Mota tem metido a cabeça muitas vezes para romper o
cerco; mas os pés-rapados são muitos; têm toda a vila
rodeada de corpos de guarda. Dormem ainda menos do que tetéu. Estão
sempre alerta.

– E que tem feito d. Francisco e o Camarão? Acham cedo ainda para
avançar contra os sitiantes?

Ainda não puderam ser bons em nada. Os pés-rapados cada dia
fazem uma das suas pelos caminhos e engenhos onde vão topando gente
contraria. Se o cerco durar mais um mês, a vila entrega-se; porque &agagrave;
fome ninguém resiste. Fome tem cara de herege patrão.

Não há de ser assim – disse Coelho, atirando sobre a mesa junto
à qual estava sentado, as cartas que acabava de ler – não há
de ser assim. Em poucos dias nós os de Goiana havemos de romper o assedio
e levantar nas ruas do Recife, livres de qualquer embaraço a autoridade
real, agora vilmente abatida pelos rebeldes, já que os de lá
não dão acordo de si. Aí tendes, Sr. Paes o que me escrevem
Mota, Correia Gomes e Simão Ribeiro, acrescentou dirigindo-se a Jeronimo
Paes. Lede. Quando acabardes, mandai levar ao provincial esta carta do padre
João da Costa.

E voltando-se para o barcaceiro, perguntou-lhe como por encher o tempo:

– Que mais, Bartolomeu?

Na botica do Rogoberto estava muito povo reunido agora mesmo. Dizia um que
seu João da Cunha tem a fabrica e os moradores na vila para em caso
de necessidade saírem armados contra os mascates. Dizia outro que Antonio
Coelho e seu Jeronimo Paes não têm armas nem dinheiro para dar
ao povo que os quiser acompanhar ao Recife.

– Qual foi o infame pé-rapado que aventurou semelhante aleivosia?

– Quem estava dizendo isto era o Ricardo.

– Ajustaremos já estas contas, disse Paes. Irei à botica para
o desmentir, falarei ao povo. Isso não se atura. Hão de ver
para quanto presto.

– Sim, sim, meu amigo. É da maior conveniência opor à
mentira o desmentido. Ireis à botica sem falta, não é
assim, Sr. Paes?

– Irei. Porque não? Irei já, agora mesmo – disse o marchante,
levantando-se para sair.

– Antes de irdes, quero lembrar-vos uma providencia. Bem sabeis, Sr. Paes,
que sem dinheiro não se fundam reinos. Vinde comigo até cá
dentro. Acompanha-nos, Bartolomeu. Quero que vejas com teus próprios
olhos as coisas quais são, a fim que possas com segurança saber
quanto são infames os que nos irrogam faltas e fraquezas que não
temos.

– O pavimento inferior era repartido em duas metades. Para a da frente, na
qual estava a loja com todas as suas dependências, entrava-se pelo lado
da rua; para a outra descia-se por uma escada que comunicava com o primeiro
andar por dentro de um gabinete secreto. Coelho, Paz e Bartolomeu atravessaram
esse gabinete, desceram a escada e chegaram ao pavimento, que se esclareceu
à luz de um candieirinho de prata de que se munira Coelho quando teve
de descer. O vão ocupava uma quinta parte do prédio. Não
tinha portas nem janelas, nem sequer frestas. Era um como túmulo, sem
nenhuma outra comunicação com o ar e o mundo, a não ser
a que se prendia à escada. Espalhados pelo chão viam-se alguns
caixões de pinho, e encostados a um canto objetos que reluziam. Coelho
levantou a tampa de um desses caixões para que o barcaceiro visse o
seu conteúdo. Que é que estás vendo, Bartolomeu? perguntou
ele a modo de desvairado.

– Armas de fogo, patrão.

– É verdade; são armas. Foste tu mesmo que as trouxeste, supondo
que trazias ferragens para o engenho que estou construindo. São trezentas
espingardas e duzentos bacamartes. Aquilo que reluz dali do canto são
espadas, catanas e parnaíbas. Já vês que Ricardo não
passa de um mentiroso, um desprezível vilão. Agora subamos.

Subiram.

Ao penetrarem no gabinete, onde se escondia a escada, Coelho indicou ao barcaceiro
um animal de tamanho descomunal, deitado aos pés da cama de seu uso.

– Que te parece isto, Bartolomeu? perguntou Coelho.

– Um grande cachorro. Oh que monstro!

– É o meu defensor. Ele agora está dormindo. Aproxima-te. Tens
medo? É um cão que só tem dentes para os ladrões.

– O barcaceiro, em vez de se aproximar, afastou-se. Coelho e Jeronimo sorriram.
Não fujas. O animal é benévolo e inofensivo. Pega neste
candeeiro e encosta-te bem a mim para o poderes ver de perto. Ficarás
sabendo o que ele vale. Não sem receio, Bartolomeu fez o que mandara
o mascate. Este meteu então no canto de um dos olhos do animal adormecido
um pequeno objeto que tirara do bolso. Houve um como movimento na fera, o
que fez o barcaceiro recuar amedrontado. Não fujas, Bartolomeu. Estou
aqui. Aproxima-te.

– Aos olhos de Bartolomeu mostrou-se então um sonho, uma visão
deslumbrante e incrível. O animal tinha-se aberto pelo ventre de banda
à banda; e naquela sobre a qual estava deitado, o que o barcaceiro
descobriu foram dobras em pequenas tulhas, formando carreiras pelo longo vão.
Ó xentes! exclamou Bartolomeu maravilhado. Quanta moeda, quanto ouro!
Meu Deus! Pois é esta a burra de seu Coelho?!

Todo este dinheiro, disse o negociante, ganhei-o eu pela minha industria
nesta terra. Devo acaso à terra ou ao meu trabalho, as minhas economias?
Devo-as ao meu trabalho; a terra não dá dinheiro. Os preguiçosos
não serão capazes de o ajuntar, ainda que morram de velhos no
país mais fecundo e rico do globo. Dizem que esta terra é deles.
Não há tal. O mundo é da humanidade. Povos que vivem
hoje em um ponto, podem viver amanhã em outro com o mesmo direito.
Assim os homens que trabalham. Pois bem, todo este cabedal, adquirido com
o suor do meu rosto, será aplicado em defesa da autoridade real e do
interesse do povo, a que os nobres tencionam antepor o seu bem estar, a sua
rebeldia. Mas não percamos tempo, Sr. Paes, disse ao marchante, pegando
de um açafate e atirando dentro nele algumas das tulhasinhas de dobrões,
que se viam enfileiradas no ventre do cão de bronze. Eis a minha idéia.
É preciso desfazer imediatamente, com dinheiro, as invenções
de Ricardo. Correi à botica do Rogoberto, meu amigo e Sr. Paes. Falai
do despotismo da nobreza, da covardia do bispo, da estupidez do bispo e dos
nobres. Discorrei com o fervor que vos é natural, sobre igualdade,
fraternidade e liberdade. O povo é perdido por estes sentimentos. Espraiai-vos
em demonstrardes a conveniência de acabar-se com o cerco do Recife,
o qual impede de saírem os nossos produtos, que têm bom preço
nas praças estrangeiras, e de entrarem os produtos estrangeiros de
que precisamos. Acrescentrai que a fome e a nudez hão de chegar dentro
de pouco tempo aos campos e aos sertões. Talvez que, estimulados ou
advertidos por vossas palavras, muitos dos que vos escutarem queiram pegar
em armas contra o juiz ordinário, o sargento-mór, enfim contra
as autoridades atuais que tiveram quase todas por origem monstruosa rebeldia.
Se o povo se mostrar deliberado a pegar em armas…

– E porque não se há de mostrar? interrogou Jeronimo Paes.

Tendes razão, tendes razão. Enfim deixo o resto por vossa conta,
Sr. Paes. Bem sabeis que o povo de Goiana deve pegar em armas de hoje até
amanhã contra os que se dizem nobres. É indispensável
que isto aconteça. É absolutamente necessário que a excitação
publica, em vez de se moderar, vá por diante cada vez mais. Ajudados
por ela, os amigos, que esperamos, poderão penetrar facilmente na vila
e assenhorear-se dela. Acharão os ânimos preparados para a grande
empresa.

Estas palavras levaram, como eletricamente, a exaltação, a
vertigem ao animo do marchante já de se ardente.

Dou-vos minha palavra que em menos de uma hora havemos de Ter o povo solto
pelas ruas em procura de nobres para amarrar, como se foram caranguejos.

A modo de alucinado, Jeronimo correu imediatamente de escadas abaixo, fazendo
tinir as moedas dentro do açafate, e dizendo em altas vozes:

– São rosas que me caíram do céu. Cheguem-se a mim,
que hão de ver como são bonitas e cheirosas estas flores consoladoras.

Capítulo XXIII

Jeronimo Paes mostrava Ter quarenta anos. As soalheiras que apanhava em suas
freqüentes jornadas para Pedras-de-fogo a comprar gado e para o Recife
a recendê-lo, tinham-lhe dado ao moreno do rosto e das mãos o
trigueiro carregado que o fazia parecer homem de cor. Trazia o cabelo cortado
rente e a barba inteira.

Esta era negra, espessa e algum tanto hirsuta. Em seu rosto liam-se a energia,
a firmeza e a tenacidade do tribuno. A fronte, estreita no alto, alargava-se
para os olhos, que eram pequenos, mas vivos e avermelhados. O nariz tinha
o quer que era do bico da arara.

Jeronimo enviuvara meia dúzia de anos depois de casado. Ficaram-lhe
três filhos, a saber Justino, Miguel e Victor, os quais ao tempo desta
historia viviam com certa folga de meios, que eqüivalia à abastança,
ou melhor à independência. Além destes, já senhores
de si, tinha Jeronimo em sua companhia a caçula, por nome Josefa. Em
casa chamavam-lhe Zefinha.

Não era ela nem fei nem bonita, nem alta nam baixa, nem muito morena
nem muito clara. Era um todo correto, proporcionado e como feito de propósito
para existir justamente na burguesia. Tinha os cabelos corridos e acastanhados,
os olhos pretos e algum tanto caídos, o sorriso engraçado, mas
sem o colorido, sem o reflexo indefinível que acusa louras esperanças,
sonhos purpurinos, anelos vagos mas não de todos cegos, férvido
sentimento em quem o sorri.

Sua instrução era vulgar, e a falta dos conhecimentos morais,
necessários à mulher por honra sua e segurança do lar
que possa ser chamada pelo destino a formar mais tarde, ela a supria com o
admirável bom senso e imensa brandura de coração, que
a tornavam a primeira prenda da família.

A preocupação principal de Jeronimo Paes, depois de ver seus
três filhos casados, vivendo cada um do seu negocio, era achar um homem
limpo que quisesse casar com Zefinha.

Um Domingo, em que à porta do sitio que tinha nas proximidades do
Poço-do-rei, Jeronimo esperava pela filha para ir à missa na
Soledade, passou pela frente da casa Antonio Coelho. Como já se conheciam
e eram até afreguesados, o marchante tirou conversa com o negociante
e o teve preso ao pé de se até que Zefinha apareceu. Seguiram
então os três para a vila, e juntos ouviram a sua missa, que
teve para o jovem português e a cachopa goianista, particular, posto
que vaga delicia.

Zefinha voltou apaixonada. Sentiu durante todo o dia e ainda no seguinte
certo bem estar, certa inquietação, certa harmonia, que lhe
tiraram a vontade de comer e o sono.

Com o jovem português não se deu o mesmo. De noite já
não lhe lembravam outras feições, outros feitiços,
que os de d. Damiana, cuja imagem ele trazia permanentemente em seu olhos.

Desse dia por diante começou Jeronimo a aproximar-se mais vezes de
Coelho. Primeiro vieram os presentes, depois as visitas, e por fim os convites
para almoços ou jantares em sua casa. Dentro em pouco estavam amigos.

Mas ao passo que o marchante não poupava finezas nem esforços
para prender definitivamente o negociante, lançava-lhe este outras
contas muito diferentes. Gostava de Jeronimo, não desgostava de Zefinha,
mas seu ser moral revoava em torno da imagem da jovem senhora de engenho,
como em torno de rosa gentil e delicada, revoa, absorvendo-lhe o saudável
cheiro, namorado beija-flor. Quando Jeronimo dizia consigo estas palavras:
‘Como não havia de ser feliz Zefinha se casasse com Antonio Coelho!’
monologava este de se para se do seguinte modo: ‘Damiana, Damiana, meu
amor, meu bem, minha vida, minha alma, que será de mim dentro em pouco
tempo, se sorte propicia não vier arrasar a muralha que nos separa?
Ah! eu não posso viver sem ti, delicia cruel de minha existência,
doce fatalidade que fizeste de mim escravo e desgraçado!’

Não foi preciso muito para que Zefinha compreendesse que os sonhos
de Coelho, seus pensamentos, suas ambições afetivas tinham por
objeto outra mulher. Mas, por infelicidade, já sentia ela por ele todos
os estremecimentos que revelam a existência da paixão. Herpe,
corrosivo, o amor infeliz alastrava suas vesículas peçonhentas
pelo coração virgem da rapariga, envolvendo-o em camada de fogo
que o abrasava. Ela sentia o rapaz nos olhos, na fantasia, na luz, na sombra,
entre a costura e a agulha, entre o sorriso e as lagrimas, entre a esperança
vã e o desengano previsto ou adivinhado. ‘Ele não quer
saber de mim’ dizia Zefinha em seu entendimento. E chorava tristemente.
Mas se Coelho aparecia, já ela sorria de novo, não porque volvesse
a acreditar, como nos primeiros tempos que o português retribuía
o seu afeto, mas porque sua doce imagem lhe trazia o prazer que fugia quando
ele se ausentava. A poder do esforço, Zefinha mostrou-se aparentemente
senhora de sua paixão. Sem indiferenças despeitosas, sem contentamentos
exagerados, ela conseguiu levar ao espirito de seu pai e ao do próprio
Coelho a convicção de que, se não era feliz, também
não era desgraçada; que sobre o lago azul dos seus afetos pairava
a calma da inocência; que por ai não sopravam os vulcões
que revolvem o céu de anil da mocidade, e são antes lavas abrasadas
do que sopros de tormenta.

Para chegar a tamanho resultado a moça pôs em contribuição
toda sua energia, que nunca fora tão grande nem tão bem sucedida.
Aquela natureza, a modo de morna e indolente, acendeu-se para a luta, e com
suas próprias forças pode triunfar de se mesma. O espirito dominou
tiranamente o coração. O bom senso impôs silencio ao desprezado
afeto. Poucas lutas interiores já foram maiores em uma mulher ignorante
e de vulgar condição do que a sustentá-la nesse asfixiar
de um amor imenso que morria às mãos de quem o devia ameigar
e chegar bem ao seio, como fazia às rolinhas gentis de casa. Pelo proceder
da filha veio Jeronimo a conhecer que seus desejos e esperanças estavam
longe de ser preenchidos. O descontentamento, o pesar trouxe a frieza, não
a quebra das relações de amizade que o prendiam ao negociante.
Esta frieza durou pouco, porque de certo dia em diante Coelho, fazendo-se
mais assíduo em casa do marchante, reanimou, por seu modo de tratar
Zefinha, no espirito do pai dela a quase de todo extinta esperança.
Se para Ter explicação desta rápida e inesperada mudança
o marchante houvesse podido penetrar no espirito de Coelho, teria achado aí
a seguinte ordem de idéias: Despeitado com João da Cunha, voltava-se
para Jeronimo, fazia-o entrever a possibilidade de vir ele Coelho a casar
com Zefinha, e por este meio chamava para seu lado o primeiro elemento de
hostilidade aos nobres de Goiana, o dito Jeronimo, que por seus sentimentos
francamente populares, era o homem mais próprio para levantar as massas
e encaminhá-las ao fim que lhe aprouvesse.

Fosse que, desconhecendo a política tortuosa e dissimulada que certos
homens, práticos em explorar as paixões alheias, usam no seu
próprio interesse, se prestava de boa fé ao calculo do jovem
europeu; fosse que obedecia simplesmente a impulsos do seu coração,
votado ao povo por quem era capaz de derramar a ultima gota do seu sangue;
fosse que só tinha em mente, concorrendo com todos os auxílios
possíveis a Coelho, penhorá-lo pela gratidão, a fim de
tornar fácil a retribuição dos seus serviços com
o desejado consorcio, o certo é que Jeronimo se identificou com a causa
dos mascates fervorosamente, arrastando após de se seus filhos, amigos,
afeiçoados, o próprio povo, segundo se vê pela história.

O que se pode considerar fora de duvida é que Antonio Coelho não
tinha grande empenho no aniquilamento da nobreza, mas no de um nobre, João
da Cunha, nem pensava verdadeiramente em outra mulher que não fosse
d. Damiana. Completemos com algumas palavras mais o esboço desse caracter,
que vem na historia da guerra a par com o de Jeronimo Paes.

Tendo chegado ao Brasil de pequena idade, cedo revelou Coelho particulares
propensões para a vida comercial, pelos progressos que fez. Quando
João da Cunha o conheceu, era ele caixeiro em um dos armazéns
do Recife. Ou por suas feições e maneiras atrativas, ou por
seu talento que talvez fosse ainda mais atrativo do que as feições,
o certo que o senhor-de-engenho, simpatizando vivamente com ele, convidou-o
para recebedor de seus açucares em Goiana, convite que o jovem Antonio
aceitou, atentas as vantagens prometidas pelo sargento-mór. Ali os
seus serviços cedo atraíram-lhe tantos créditos que em
poucos anos Coelho foi geralmente estimado na vila, e conhecido no Recife;
teve entrada nas principais casas comerciais destes dois centros; enfim tratou
de estabelecer-se por sua conta. Revelando suas intenções a
João da Cunha, em vez de se opor a elas, o senhor-de-engenho fez que
ele as realizasse logo, e a este efeito lhe prestou os necessários
auxílios.

Coelho teria por então seus vinte anos. Era elegante e bem parecido.
Tinha sedução no olhar, e graça especial na conversação.
Sabia de cor paginas de Palmeirim-da Inglaterra e as repetia tão possuído
das gentilezas namoradas que enchem a obra de Francisco de Moraes, que mais
valia ouvi-las ao moço português do que as ler no próprio
autor. Sentindo particular predileção pelos nobres em cujas
relações se ufanava de aparecer ligado, foi pouco a pouco ascendendo
da esfera opaca onde principiara a vida, às alturas douradas em que
calculava colocar-se definitivamente como um dos astros que formavam a constelação.
Seus dotes pessoais granjearam-lhe as inclinações das jovens
damas e a benevolência dos cavalheiros de seu conhecimento. Por então
d.Damiana, solteira ainda, passava temporadas, como já se referiu,
em casa de João da Cunha. Era muito nova mas trazia já em torno
de se um circulo de adoradores em cujo numero Coelho soube aparecer tão
conspicuamente que, passados alguns meses, os outros bateram em retirada,
deixando-o senhor exclusivo do campo. É porém de notar que nem
a idade de d. Damiana nem os costumes da época deram lugar a que ela
tivesse conhecimento ou sequer suspeita dessa luta travada entre os primeiros
jovens assim agricultores como comerciantes da vila. Contavam-se por sua raridade
as reuniões familiares que se efetuavam na roda do ano ainda nas casas
ricas; e mesmo nessas reuniões era tão respeitoso e cortês
o trato entre os cavalheiros e as damas que, para assim escrevermos, o amor,
ao contrário do que hoje acontece em nossos salões, mais se
fazia adivinhar do que declarava. Todavia, por ocasião de uma festa
do orago da freguesia, em que houve cavalhadas e fandango, na qual se achou
d. Damiana, pode Coelho fazer-lhe protestos de amor, que, em sua mente, foram
por ela bem aceitos. Mas veio logo o desengano com a recusa que o leitor sabe.
Sendo até ai um dos primeiros amigos da nobreza e seu comensal, converteu-se
Coelho em seu acérrimo inimigo. O ódio que começou a
votar a João da Cunha, foi tanto mais intenso e profundo quanto tinha
ele para se que nenhum outro, a não ser o senhor-de-engenho, poderia
triunfar de seu triunfo. O golpe que a desgraça vibrara em seu afeto,
o fez ainda mais injusto para com aquele que lhe dera a mão no principio
da carreira. Coelho assegurava que d. Damiana fora constrangida a renunciar
à afeição que consagrava a ele, e casara com o sargento-mór,
não mais livremente do que fizera a dita renuncia. Minúcias
são estas em que escrupuliso entrar. O coração da mulher
assemelha-se à gruta profunda e inacessível: quem empreende
descer-lhe ao fundo, corre vários riscos, sendo o primeiro deles o
de dar com estranhos reptis não classificados ainda pela fisiologia.
A verdade é que o mercador nunca mais pode apagar do coração
a imagem suavíssima de d. Damiana. Fora aquele o seu primeiro amor.
O objeto dele insculpira-se-lhe por tal modo na alma, que fazia parte integrante
do seu ser o olhar, o sorriso, o gesto, a voz da gentil dama. Há paixões
fatais que acompanham toda a vida aqueles a que se apegaram como a Nesso a
túnica fatídica. O negociante era vitima de uma paixão
semelhante. Às vezes a chama incessante abrandava; a vida agitada costuma
trazer este efeito aos sentimentos; mas bastava encontrar suas vistas com
as da senhora-de-engenho, para que logo sentisse reacender-se-lhe mais intensamente
o fogo, um momento diminuído ou serenado. Enfim a idéia de a
possuir – não importava quando – nunca mais o deixou, e essa ilusão,
esse desconhecido que vagamente lhe prometia a felicidade, alentava a labareda
que ele trazia como deliciosa chaga no coração, iluminava-lhe
a fantasia como estrela que fulge em canto de céu prenhe de tempestades.
O barcaceiro deu o andar para descer após o marchante, mas foi atalhado
pelo mercador que lhe disse:

– Fica, Bartolomeu. Quero perguntar-te uma coisa: Em caso de aperto, amanhã
ou depois, terás animo para te fazeres à vela novamente em direitura
ao Recife?

– Agora mesmo abro as asas à Borboleta e largo-me por estes mares
afora; assim o patrão ordene. Eu sou pau para toda obra. Conjeturo
que amanhã a esta hora não exista mais um nobre em Goiana a
não ser amarrado com boas cordas. Mas, como é preciso contar
também com o mal, e não unicamente com o bem, ordena a prudência
que tenhamos prontos os meios de escapar-nos aos inimigos se a eles pertencer
a vitoria. Ora, nenhum outro se me afigura mais pronto nem mais eficaz do
que a viagem pelo rio.

– Vosmecê tem razão. Montado na Borboleta, só por um
oculo poderão ver-me os pés-rapados. E as olarias de Jorge Cavalcanti?

– Que tem elas?

– Tem bocas de fogo sobre o rio.

– Taparemos essas bocas de fogo com as balas dos nossos bacamartes. Tens
então animo para passar em frente às trincheiras, Bartolomeu?

Porque não, seu Coelho? Vosmecê não conhece ainda este
cabra com quem está falfando. Ora escute: Nesta mesma viagem, de que
acabo de chegar, mandaram-me, quando eu ia, da fortaleza de Itamaracá
um chuveiro de balas, que a outro que não fora o Bartolomeu teria feito
perder a tramontana. Mas eu peguei na cana-do-leme da Borboleta e fiz com
ela tais cortes e recortes por cima das ondas que nem uma tainha seria capaz
de a ganhar. Eram balas de uma banda e da outra, pela popa e pela proa; mas
dentro só o que caia eram as escumas dos mares que ela atravessava
como jangadinha do alto.

Pois bem, Bartolomeu, disse Coelho a cabo de alguns minutos de silencio em
que, ao parecer, estivera meditando sobre grave assunto. Fica assentado que
dormirás hoje a bordo da Borboleta, e de lá não virás
à terra senão por ordem minha. Vai ver tua mulher e teus filhos,
que deves estar impaciente por abraçá-los. Às nove horas
recolhe-te à embarcação. acharás já ai
todas as provisões e munições necessárias para
a viagem.

– Mal tinha o negociante terminado estas palavras quando se fez ouvir do
lado de fora descomunal ruído de povo, retinir de armas, rumor de passos
de cavalo. Quase no mesmo instante as portas da loja se fecharam com estrondo,
e logo após os caixeiros de Coelho corriam pelas escadas acima amedrontados
e confusos. Que é isto? Que quer dizer isto? Inquiriu o negociante,
vencendo sua surpresa, ao que primeiro penetrou na sala.

– A casa está cercada, e ai vem o juiz ordinário com ordenanças
e oficiais do seu juízo.

No mesmo instante uma voz que soou aos ouvidos de Coelho como eco das gemonias
infernais, fez ouvir a seguinte intimação:

– Da parte d’el-rei, componde a casa, que vimos fazer uma diligencia.

A esse tempo Cosme Bezerra assomava na porta da sala.

Trajava calções e casaca preta, meias de seda amarela, sapatos
com fivelas douro. Trazia chapéu com pluma branca, e espada pendente
do talim.

Capítulo XXIV

Coelho foi ao encontro de Cosme Bezerra, e com irritante altivez que as circunstâncias
atuais até certo ponto justificavam, rompeu o silencio que se seguira
à intimação:

Da parte d’el-rei, que quereis em minha casa ao lusco-fusco e com este
aparato de força, senhor juiz?

Usais de um direito que pertence à justiça – o de interrogar
– respondeu Cosme Bezerra com afetada serenidade que lhe era muito custosa
de manter. Mandais distribuir armas e dinheiro pelo povo a fim de derrubar
as autoridades legais, e vos admirais de ter a justiça em vossa porta.

– O que se diz é o contrario, retorquiu Coelho, sem diminuir sua arrogância.
Diz-se que nós os portugueses, e os que nos acompanham, nós
os fiéis súditos d’el-rei nosso senhor, não temos
nem dinheiro nem armas com que rebater a rebelião da nobreza.

– Pouco importa às justiças saberem se tendes dinheiro. Falei-vos
em dinheiro, porque em dinheiro se fala pelas ruas da vila, Sr. negociante.

– Chamai-me mascate, já que não quereis chamar-me sargento-mór,
título que não podeis tirar-me.

– Título que a nós deveis.

– Devo-o a el-rei, não a vós.

Não vim a praticar convosco. Vim a saber se de feito tendes armas
defesas que destinais aos populares por vós comprados para executores
ostensivos de vossos tenebrosos desígnios.

Se tenho armas! Exclamou Coelho. Se eu armas tivesse, não as deixaria
passar senão depois de morto, das minhas para as vossas mãos.
De armas precisamos nós para defender a verdadeira autoridade, vilamente
ultrajada por uma nobreza que na rebeldia supõe consistir a sua maior
força e o seu primeiro brasão.

Em nome da lei, mascate! Gritou Cosme em tom de quem impunha silencio. Sois
apontado como perturbador da ordem, protetor de rebeldes, e um deles. À
frente de todos os motins que há dois meses perturbam o sossego desta
vila, todos vos vêem comprando os venais, desencabeçando os ignorantes,
encaminhando para o mal, que é o vosso alvo, os desordeiros por habito
e condição. Os homens bons estão já cansados de
aturar as vossas provocações, a autoridade de ser desrespeitada,
as famílias fracas de receber insultos e violências dos malfeitores
a que estendeis a mão cheia de ouro. É tempo de espezinhar a
cascavel que tanta peçonha mortal tem vazado de sua boca imunda; e
como o melhor meio de aniquilar a cobra é atacá-la em seu próprio
covil, pareceu à autoridade competente que a vossa casa seja corrida,
e de vosso crime se tire a devassa, se chegar à certeza de que sois
criminoso.

O direito, que vos arrogais, de violar o meu asilo domestico, nem o achais
na lei, nem eu o reconheço senão como filho do vosso violento
natural, de todos conhecido. O testemunho de que não sou criminoso
está em sujeitar-me ao vosso desatino. Outro fora eu, que já
me teríeis pago a vossa ousada. Correi, correi à minha casa.
Este procedimento condiz com a fidalguia de que rezam os vossos encardidos
pergaminhos. Quanto a dizerdes que sou rebelde e amotinador, cego seja para
sempre aquele que ousar afirmar que primeiro se insurgiram contra a legalidade
os mascates que os nobres. Cosme voltou as costas ao negociante, como quem
não levava em conta suas acerbas ironias e rudes exprobrações.

A verdade, porém, é que elas o feriam, como pontas de punhais
acerados no coração. Os beleguins cumpriram o seu dever, e o
próprio juiz, não podendo vencer o despeito hostil e apaixonado,
encaminhou-se ao interior da habitação.

A esse tempo Bartolomeu, que ainda não pudera descer, chegou-se a
Coelho e lhe disse à puridade:

– Quer sair, patrão? Atiro-me daqui ao soldado, que ali está
de guarda na porta, e quando ele menos esperar, estará sufocado entre
as minhas mãos. Então vosmecê poderá descer com
seus caixeiros, ganhar a rua e desaparecer por trás dessas moitas de
jerobebas que cobrem os fundos da igreja. Eu lhe guardarei as costas. Pode
ir descansado.

Pensas que eu poderia realizar o que estás indicando? Olha. A rua
está cheia de gente. A casa está cercada. Ali embaixo vários
soldados espreitam quem entra e quem sai. Mas porque me ausentaria eu? Que
crimes cometi para fugir?

– É que as armas, que estão lá embaixo… tornou o barcaceiro
a meia voz.

Duvido que as encontres tu mesmo que comigo as viste, quanto mais ele. e
se queres ter a prova do que te digo, vai à escada por onde há
pouco descemos ao subterrâneo.

Sem dizer palavra, o barcaceiro encaminhou-se ao gabinete, atravessou-o e
chegou ao ponto indicado.

Desciam o juiz, beleguins e soldados. Verificou então por seus próprios
olhos o que lhe dissera o negociante. A escada fazia uma volta para a direita
e ia dar na loja, não no esconderijo. Bartolomeu ficou um instante
confuso. Lembrava-se que por ali descera para o subterrâneo, por uma
volta que a escada fazia à esquerda: mas, essa tinha desaparecido como
por encanto, sem deixar o menor vestígio por onde se pudesse descobrir
o segredo.

Quando Cosme volveu à sala, Coelho foi a seu encontro, e com expressão
de mal disfarçado ódio, lhe disse:

Não achastes nem uma adaga, nem um arcabuz no meu armazém.
Voltastes em branco. Pois bem. eu vos asseguro, senhor Cosme Cavalcanti, que
dentro em pouco tempo a nobreza de Goiana há de saber para quanto prestam
as armas dos mascates, que as têm e de fina tempera.

– Ah! Eles as têm?

– Eles as têm, e tenho-as eu próprio a meu alcance.

Melhor, melhor. Servirão para atravessar ou degolar os mesmos que
as guardam em seus esconderijos.

– Veremos qual de nós se engana, respondeu Coelho.

– Veremos, veremos, mascate – disse Cosme descendo com seu séquito.

Os olhos de Coelho despediam insólito brilho. Na face que a ira fazia
subitamente contrair-se e dilatar-se, havia certos tons de ferocidade felina.

Miseráveis! Exclamou ele quando ainda o juiz não tinha descido
de todo a escada. São ineptos na própria hostilidade com que
pretendem impor seu ridículo poderio.

Então, voltando-se para um dos caixeiros:

– Vai já, já, em procura de Jeronimo Paes – disse. É
preciso que ele me fale sem perda de tempo.

– Patrão, precisa de mim? perguntou-lhe Bartolomeu.

– Hoje não, amanhã, talvez. Podes sair. Espera. Quando passares
pela porta do Lauriano, dize-lhe que venha falar-me agora mesmo.

Coelho deu alguns passos pela sala, penetrou no gabinete, voltou e logo após
tornou a tomar para o interior. Antes de transpor a porta que dava para o
quarto secreto, parou e perguntou ao segundo dos seus caixeiros se havia ainda
soldados pela rua. Quando o rapaz tomava para a sacada, entrava na sala Luiz
de Gouveia, mulatinho musico, de violento e desvairado patriotismo. Vinha
acompanhado por diferentes homens do povo, trazia as feições
demudadas, os cabelos revoltos.

Que novos ultrajes e atentados nos vens anunciar, Luiz? Inquiriu o negociante,
antes que o musico falasse.

Um atentado nefando. Seu Jeronimo Paes acaba de ser ferido de um tiro de
pistola, que lhe dispararam da rua, quando estava falando.

Eu esparava por isso, tornou o negociante. É natural que ao ultraje
se seguisse o assassinato. Mas enganam-se. supondo aniquilar-nos, não
fazem mais do que apressar a sua própria queda.

– Mas que mais esperamos, Sr. Coelho? Interrogou Luiz. Não será
ainda tempo de armar o povo e atirá-lo contra os fidalgotes? Havemos
de morrer às mãos deles, e só então nos meterão
nas mãos as armas? Vamos com isso, senhor, vamos com isso. O povo não
pede senão armas, não quer senão ir contra os nobres.
E há muito povo pelas ruas?

A vila inteira está nas ruas. O tiro desfechado irritou todos os ânimos.
Homens e mulheres correram à botica a saber o que tinha sucedido. Se
apanham o assassino, fazem-no em postas. Dizem que é um escravo de
João da Cunha.

– Há de ser, há de ser. Não tem ele mandado fazer tantas
mortes? Não é useiro e vezeiro nesse oficio? Não é
ele o gran senhor desta herdade, e não somos nós seus servos?
Mas que a façam bem feita, porque se assim a não fizerem, com
seu sangue serão lavados os insultos e agravos com que todo o dia nos
batem às faces.

Coelho foi interrompido neste ponto por uma voz rouca e tremula, que partia
do meio da rua.

– É a voz de Jeronimo – disse ele.

Todos correram à sacada.

– Ali vem ele – disse o musico.

Querem a perturbação, o sangue, a morte? Dizia o marchante.
Pois hão de ter todas estas calamidades. Sou o procurados do povo de
Goiana. Ainda há pouco vos dizia eu que da nobreza só tínhamos
que esperar desdens e despotismos. Agora já posso acrescentar que temos
também que esperar o assassinato às escurinhas e traiçoeiramente.
Não me mataram; apenas feriram-me no ombro; mas a morte dos que defendem
os direitos do povo e a autoridade real, essa eles a têm decretado como
meio de consolidarem o seu poder, filho da violência e do artificio.
São réus de crime de primeira cabeça. Ah! o que nos fazem
– tenham certeza – não o botam em saco roto.

Antes de ser ferido pelo tiro que lhe foi disparado por mão até
hoje desconhecida, Jeronimo Paes tinha já encaminhado parte do povo
para o movimento insurrecional.

Quando chegou à botica, ainda estava ai o Ricardo perorando em favor
da nobreza. Ricardo era um rapaz de condição obscura, que à
proteção de um nobre devia certo emprego de que vivia. Não
tendo podido completar a carreira sacerdotal, que encetara em vida do pai,
viu-se obrigado, por morte deste, a voltar à Goiana onde esperava por
ele a família acéfala.

Jeronimo não teve para ele a menor cortesia na linguagem, e muito
menos no gesto.

– Tuas palavras são suspeitas, rufião – disse ele ao rapaz,
rudemente, mostrando-lhe um punho cerrado. Cada uma delas representa uma das
migalhas com que teu protetor te matou a fome, dando-te o emprego que tens.
Disseste há pouco que não temos nem armas nem dinheiro. Enganas-te,
vilão. Em nossos armazéns temos armas para levantar a vila inteira
contra a nobreza sem freio que jurou aniquilar-nos. Quanto a dinheiro, olha
daí, e dize lá se já viste rosas tão bonitas como
estas que me caíram das alturas.

Assim falando, Jeronimo Paes fez saltar as dobras ao ar e as aparou com o
açafate.

Ao sonido das moedas, um sem-número de mãos se estendem para
sua banda, e diferentes vozes dizem à porfia:

– Dê-me uma rosa.

Uma ao menos dessas rosinhas amarelas, seu Jeronimo Paes. Cosme Cavalcanti,
a quem foram logo levar a declaração, imprudentemente feita
por Jeronimo, de que havia armamento nos armazéns dos mascates, corre
a cercar a casa de Coelho que vareja, segundo vimos.

Entretanto Jeronimo, no ardor da exaltação e calculando o efeito
da sua generosidade, distribui, pelos que lhe parecem mais dignos do presente,
uma por uma, as dobras tentadoras.

E ao mesmo tempo que com a mão as distribui, segreda com os lábios
quase à puridade, ao que as recebe:

Quando sair daqui vá a casa de Coelho, José. Não deixes
de ir, Antonio. Vê lá o que fazes, Martinho. Ele tem que falar
a vocês acerca de uma diligencia importante e rendosa. Não faltes,
Justino, nem tu, Jacinto; nem tu Sebastião.

Todos estes sujeitos respondiam afirmativamente e embolsavam a moeda.

O ouro dá calor e eloquência; dos tímidos faz audazes,
dos prudentes temerários. A corrupção é feia,
mas eficaz no momento; que tem que depois semelhe chaga podre, nojenta, mortal?
Quando o tiro feriu o marchante, todos aqueles que tinham na algibeira uma
rosa, tomaram imediatamente parte pelo ofendido e em altas vozes pediram armas
para o desagravarem. Era mais o cheiro da flor do que o impulso da indignação
natural o que lhes dava esta animação.

– Armas, armas, meu amigo, eis as primeiras palavras de Jeronimo quando entrou
em casa de Antonio Coelho. Armas ao povo! Ele as pede; ele as quer. A vila
é por nós.

Em menos de meia hora Goiana estava nos braços da anarquia. As paixões
populares, exacerbadas e açuladas por Jeronimo Paes, por seus filhos,
que correram em seu favor tanto que souberam do acontecido, por Belchior –
o rabula, Manoel Gaudencio – o alfaiate, Romão da Silva – o meirinho,
Manoel Rodrigues – o taverneiro, e por outros conhecidos e desconhecidos parciais,
desafogavam em gritos, ameaças, insultos.

O sinos e os tambores deram logo sinal de rebate.

Dos moradores, uns, manifestado o motim, correram a tomar parte nele; outros,
já escarmentados das violências praticadas por ocasião
dos motins anteriores, fugiam, como podiam, com suas famílias, para
fora da vila; outros, não tendo para onde ir, ou receando por pé
na rua com tanto povo revolto, se deixavam ficar em suas casas, resolutos
a defender-se ou a resistir se acaso fossem atacados pelas turbas. Dos que
se atiravam na vertigem muitos não o faziam tendo a mira em outro alvo
que o de ser sua casa respeitada pelo saque – epilogo negro de quase todos
os motins populares.

Gritos contrários começaram a ressoar de pontos diferentes.

Daqui se ouvia este:

– Vivam os mascates! Morram os nobres!

D’acolá já era est’outro:

– Viva a nobreza de Goiana! Viva a nobreza de Pernambuco! Morra pé-de-chumbo.

Os adjuntos donde partiam estes últimos gritos, eram menos numerosos
e menos densos. Dir-se-ia que estavam ainda em formação ou que
tinham medo de formar-se. ressoavam à porta de fidalgos conhecidos
e daí não se alongavam muito.

Quando algum forte bando se aproximava deles, as manifestações
diminuíam ainda mais. Era medo, desdém, ou prudência?

– Silencio, escravos! Respondiam de cá os mais exaltados.

Os de lá não retorquiam.

E o dragão popular passava revolto, espumante, vertiginoso, cuspindo
injurias e obscenidades contra os que considerava seus adversários,
e pensando no desforço pessoal e no roubo publico.

Capítulo XXV

Cosme Bezerra voltou a esquina, acompanhado de ordenanças e parciais,
entrou na Rua-da-matriz e foi descavalgar no Pátio-do Carmo, à
porta de João da Cunha.

– Ufa! Ufa! O ladrão do mascate é insolente, mas não
tem armas, por mais que diga que tem. E onde as teria ele que me escapassem?
Não houve escaninho que não batessemos.

Tais foram as palavras que dirigiu às pessoas que se achavam reunidas
na sala de visitas do senhor-de-engenho, onde fez a sua entrada já
com luzes acesas.

Então contou miudamente tudo o que acabava de acontecer, e de que
ai já tinha chegado vaga e confusa noticia.

Estavam presentes os principais nobres do lugar, que para esse ponto se haviam
encaminhado às primeiras manifestações da desordem, como
para a casa de Coelho haviam corrido os principais negociantes. E cumpre notar
antes de tudo que Coelho interiormente estava satisfeito com as circunstancias
que pareciam colocá-lo no mesmo plano do senhor-de-engenho e fronteiro
a ele. ‘Se ele é sargento-mór, também eu o sou
– dizia o negociante em sua mente escaldada pelo ódio e pelo despeito.
Se o cercam seus amigos, a mim também me cercam os meus no momento
difícil. Se projeta aniquilar-me, eu de há muito jurei reduzi-lo
a cinzas. O futuro há de decidir qual dos dois ficará com a
vitoria de seu lado.’ Por onde se vê que o alvo em que o português
tinha as vistas era singular, único – João da Cunha.

Já não eram os mesmos os intuitos deste – abrangiam o mais
vasto teatro. Esquecido inteiramente da origem principal do ódio com
que o distinguia o mercador, ele explicava a oposição dos mascates
atribuindo-lhes ambições de mando e fortuna. Nunca lhe passou
pela imaginação que pudesse o amor contrariado dar inspiração
e impulso àquele movimento.

A seus olhos Coelho era mais um instrumento dos mascates do Recife, instrumento
cego e habilmente manejado por eles, do que uma mola importante, uma força
de seu natural independente e vivaz do estranho artefato que perturbava a
sociedade goianista. A verdade entretanto era justamente o contrario do que
julgava o fidalgo. A ação de Coelho no movimento hostil à
nobreza partia de se mesmo. A não ser esse amor contrariado, o moço
português estaria ao lado dos nobres, como estiveram durante a guerra
vários portugueses, por exemplo Martinho de Bulhões, genro de
Matias Vidal.

Em verdade, seus sentimentos casavam-se mais com os daqueles contra os quais
movia seus recursos, do que com os sentimentos daqueles com quem aparecia
identificado tanto para a ofensa como para a defesa. A nobreza semelhava ainda
então uma arvore de extensas raízes que penetrava profundamente
no solo das sociedades, e cuja folhagem tinha a majestade das grandes alturas
e das vastas sombras; a democracia era planta rasteira, sem raízes,
sem ramas; era vegetação de vida duvidosa, incipiente; prometia,
mas não assegurava assumir as proporções gigantes, com
que um século depois sombreou o solo da pátria e abrigou as
instituições a que este império deve a sua grandeza e
o seu renome. Mas Coelho não tinha melhor motivo. O senhor-de-engenho
julgava indigno e ingrato aquele que aliás fora atirado na luta pelo
amor imenso e pelo despeito feroz.

Em casa de João da Cunha estavam sobressaltados não sem razão
os espíritos. As noticias aterradoras que de momento a momento chegavam;
os gritos dos magotes de povo que passavam, vociferando pela frente do sobrado
ao principio desordenadamente, logo após organizados para o acometimento
e a pilhagem; o rebate dado pelos sinos e pelos tambores; as famílias
que fugiam amedrontadas e como sem saberem caminho nem carreira; os soldados
que corriam, acudindo aos toques dos clarins; enfim, todo o medonho cortejo
de circunstancias que se prende ao furor e à anarquia das turbas, e
que são como o colear, o sibilar, o bote, a dentada e a peçonha
de enorme reptil, solto, mas assanhado em espaço estreito, não
podiam gerar no animo de quem se via, como os que ali se achavam, ameaçados
de ser o alvo único da ferocidade da insurreição, impressões
diferentes dessas.

João da Cunha e Cosme Bezerra, compreendendo a gravidade do momento,
trataram logo de assentar nos meios de conjurar o cataclismo, que ameaçava
engolir fortunas e vidas preciosas.

– O melhor meio – disse Cosme – é reunir as ordenanças e mandar
varrer as ruas a panos de espada e a tiros de arcabuz.

– Não, não – disse Filipe Cavalcanti. Nem todos os que enchem
as ruas são desordeiros. Procedendo assim, a força publica arrisca-se
a ferir famílias inofensivas que fogem da anarquia, e até muitos
que são por nós.

– Entendeis então que de outro modo tereis restabelecido o sossego
publico? Enganai-vos. Em momentos semelhantes ao presente, quem se deixa guiar
pelo coração corre o perigo de morrer às unhas inimigas.
O raciocínio, a justiça, o sentimento de humanidade devem estar
na ponta da espada, na boca do clavinote, nas patas dos cavalos. Que dizeis,
Luiz? perguntou Cosme voltando-se para seu irmão Luiz Vidal, que, de
pé, olhava, com mostras de quem tinha o espirito ocupado em acertar
com o verdadeiro caminho, ora para o capitão de ordenanças,
ora para o sargento-mór.

– – Em verdade não vejo outro meio de combater a insurreição,
respondeu Luiz Vidal. Entendo, porém, que não há necessidade
de levar-se a repressão ao extremo que vós indicais. A força
publica deve apresentar-se imediatamente nos pontos em que a perturbação
se mostrar mais veemente e ameaçadora; mas deve haver particular empenho
em que sua presença sirva antes para serenar os espíritos do
que exaltá-los ainda mais, e muito menos para proceder a excessos que
possam trazer o sangue e a morte.

– – Com quem estou metido! exclamou Cosme. Que dois filósofos humanitários!
Observasse eu estes preceitos de refinada brandura, que amanhã Goiana
em peso estaria nas garras de Antonio Coelho e de Jeronimo Paes, e cada um
de nós teria o seu gasnete entre as unhas do Lauriano, do Bartolomeu
ou de outros vis instrumentos do ódio português. Basta, meus
amigos; dispenso os vossos conselhos. Olá, Matias? Gritou ele a um
soldado, que da porta da sala assistia, sem tugir nem mugir, como era seu
dever, à conversação dos nobres senhores. Corre já
à casa, e dize ao alferes Maciel que espere por mim com toda a força
que lá tem sob suas ordens. Põe nova carga nas minhas pistolas
e mete-as nos meus coldres.

– Luiz Vidal, tendo ouvido estas ordens do irmão, deu o andar pela
sala e voltou ao ponto em que se achava um minuto antes. Faço-vos companhia,
Cosme, disse ele.

– Muito folgo de o saber. Eu também vou, disse João da Cunha,
encaminhando-se para a porta. Pois não hei de acompanhá-los?
Não é o lugar dos cavalheiros o seio quente da família
quando a pátria está em perigo.

Chegando à porta que dava para a escada, o sargento-mór chamou:

– Ó debaixo? Venha cá um de vocês.

Um negro apareceu logo após.

– Onde está Germano?

– Foi chamar Moçambique e Benedicto.

– E vocês estão todos aí?

– Estamos todos, sim senhor.

– Sela o meu cavalo.

Entretanto, d. Damiana chegara-se para onde estavam Cosme, Luiz Vidal e Filipe
Cavalcanti e com eles conversava sobre os sucessos vistos e previstos.

– – Ides também percorrer as ruas, Sr. João da Cunha? Perguntou
ela ao marido que, dada a ordem, tornara a seu lugar. Meu dever impõe-me
este procedimento.

– Não sei se seria mais prudente não vos expordes às
iras dos vossos inimigos. Penso, ao contrário, que devo ir ao encontro
deles a fim de os castigar. Mas é que em vossa ausência podem
vir atacar o sobrado, observou Filipe Cavalcanti.

– Meus escravos estão aí para defendê-lo. Não
nos há de faltar nem pólvora nem bala.

– E não há de ser só a escravatura que o defenda. Eu
também sei pegar de uma espingarda e dispará-la, disse graciosamente
a jovem senhora-de-engenho.

– Bonito, prima! exclamou Cosme Bezerra, sorrindo. Quisera estar de parte
a ver a galhardia desta valente amazona.

Não façais pouco em mim, Sr. Cosme, respondeu d. Damiana. Bem
me conheceis. Se entrardes na sala das mulheres, ficareis admirado do armamento
que lá existe. Há mais de uma semana não tinha eu no
engenho outra ocupação que fazer cartuchame. Podeis pois levar
tranqüilo vosso espirito. Na casa de João da Cunha só penetrará
mascate depois que Damiana da Cunha tiver exalado o ultimo suspiro.

A gentileza com que a senhora-de-engenho dizia estas palavras não
se descreve, nem se imagina sequer. Outros fossem aqueles a quem ela se dirigia
nesse momento, que teriam por vã e ridícula bravata essa afirmação
a que a autorizava o conhecimento intimo do quanto valia o seu animo. D. Damiana
era de feito perita em atirar desde os quatorze para os quinze anos. Manhãs
inteiras levava ela por junto das capoeiras próximas do cercado do
engenho a passarinhar por distração. Mais de uma aposta ganhou
a parentes seus com quem atirara ao alvo. As detonações das
armas de fogo, longe de amedrontá-la, levantavam seus espíritos.
Sentia nelas certa voluptuaria harmonia que lhe trazia deleite. Naquela forma
juvenil, graciosa e fresca havia ânimos viris, que se impunham à
vontade e condição feminil como leis fatais e impreteríveis.
Enfim, era tradicional esta qualidade da mulher do sargento-mór, e
lhe acarretara entre o povo certa alcunha, com que as más línguas
supunham injuriá-la. Chamavam-na – a Escopeteira. Longe, porém,
de se dar por ofendida, a mulher de João da Cunha não perdia
ocasião de mostrar praticamente que esta alcunha lhe era agradável
e que a ela tinha indisputável direito.

– Bem sei quanto valeis, senhora prima, tornou Cosme. Mas é que difere
muito atirar em rolinhas e sanhassús de atirar em salteadores afeitos
a torcer o corpo às balas e aos mais mortais golpes.

– Seja como for, Sr. Cosme. Guardem os negros o baixo da casa, que eu guardarei
o alto. Mas receio por meu marido, porque sei quanto o odeiam os mascates
e a plebe.

– Nada o há de ofender. Demais, vamos apenas dar uma volta pelas ruas
mais agitadas, disse Luiz Vidal.

E estaremos dentro em pouco tempo de volta, acrescentou João da Cunha.
Como a esse tempo estavam já prontos os cavalos, desceram a montá-los
os cavaleiros presentes. Antes de sair, João da Cunha entrou no armazém.

– Todos estão ai, Roberto? Perguntou ele, Roberto era o feitor. Todos,
menos Germano, que ainda não voltou do engenho.

– Tem cuidado, Roberto, enquanto volto.

Senhor sim. Não há de acontecer nada. Nesse momento, de um
bando que passava pela frente do sobrado, partiu um grito insultuoso, que
veio ferir o senhor-de-engenho no coração:

– Morra o assassino! Morra a escopeteira !

João da Cunha, a modo de gelado de cólera, mal pode ir ter
com os amigos que à porta da casa punham os pés nos estribos.

– – Conhecestes aquela voz, Sr. João? Perguntou-lhe, já montado
Cosme Bezerra, mal podendo conter a raiva que o assaltara. Há de ser
de algum vendido ao dinheiro de Coelho ou de Paes.

– É a voz desse rábula infame que imagina fundar em Goiana
uma republica ateniense.

– Quem? O Belchior?

Ele mesmo, esse velhaco, essa pústula do foro, que vive especialmente
de promover a alforria dos negros dos engenhos para passar as unhas no magro
cobre deles e fazer pirraça aos senhores. ninguém ainda se inculcou
tão amante da liberdade, tão independente, tão probo
como ele: a verdade, porém, é que ele não passa de um
saltimbanco audaz, um charlatão formado em tretas e torpezas que despertam
nojo. Mal acabadas estas palavras, novo bando que vinha nas pisadas do primeiro,
parou diante da casa e repetiu o pregão, que ainda soava aos ouvidos
dos fidalgos:

– Morra o assassino! Morra a escopeteira!

– Quereis saber, Sr. Cosme? disse subitamente o sargento-mór. Ide
vós a vosso destino, que eu fico. Há de vir terceiro grupo parar
em frente de minha casa, e é preciso que eu esteja presente para dar-lhe
a resposta que merecem. Roberto, Roberto? Gritou João da Cunha da porta
que punha em comunicação o armazém com a entrada. Carreguem
as armas e venham colocar-se todos vocês em seus postos. Ao terceiro
insulto quero ouvir soar o fogo.

– Os cavaleiros partiram, enquanto o sargento-mór, quase fora de si,
subia para junto de sua mulher. Por seu gosto estaria nas ruas, promovendo
a reação ou a contrarevolta. Mas compreendia que naquele momento
não lhe era licito arredar-se de casa. Preste atenção,
Sr. João da Cunha, disse-lhe d. Damiana, chegando a uma das janelas
da sacada onde estava o marido. Não ouvis ruído de pancadas
contra as portas na Rua-direita?

– Estou ouvindo. Quem sabe se já não é o saque?

– O saque!

– Quando a plebe se solta, é aí que vai parar. Mas onde está
e o que tem feito desde a tarde Antonio Rabelo com sua força? Oh não
poder eu sair!

Enquanto assim falava o senhor-de-engenho, Cosme corria à Rua-do-meio
a tomar o comando da pequena força que se achava sob as ordens do alferes
Maciel. Seus grandes espíritos não se compadeciam com a reação
morna e frouxa. De caminho, ele descavalgava aqui para dar uma ordem, ou combinar
uma providencia; arrojava-se acolá temerariamente sobre os adjuntos
e impunha-lhes que se desfizessem. Se era atendido, passava; se não
era, empregava meios indiretos de o ser. Esses meios eram a brandura, a persuasão,
a ameaça. Faltava-lhe gente para desempenhar satisfatoriamente o papel
que teve nesse, como nos principais motins de Goiana; mas todas as faltas
supria admiravelmente sua intrepidez por todos reconhecida de há muito
e glorificada depois pelo historiador.

Logo que tomou o comando da força, encaminhou-se com ela à
cadeia, para onde tinham ido Luiz Vidal e Filipe Cavalcanti a reunir-se com
Antonio Rabelo, receosos de que os amotinados tentassem soltar os presos.

Antonio Rabelo foi de parecer que se não procurasse dissolver os ajuntamentos.

– Onde temos nós gente suficiente para dissolver essas multidões
numerosas, Sr. Capitão? Perguntou ele a Cosme. Guarnecem a cadeia dezesseis
praças unicamente. Se daqui arredarem o pé, o povo levantado
virá abrir as prisões, e aumentará com os criminosos
o seu numero e a sua ferocidade. Vós não tendes ai convosco
mais de vinte ordenanças. Julgais que com tão pequena força
poderemos bater os rebeldes e ficar senhores do campo?

– Basta uma corrida forte e violenta sobre os inimigos, para que, cobrando
medo, se dispersem.

– Estais enganado. Eles são muitos e não lhes faltam armas.
Armas? Não as têm.

Têm-nas, Sr. capitão., têm-nas. Reparai nos que passam.
Haveis de ver cada um com seu arcabuz. Os mascates fizeram e fazem larga distribuição
delas por seus asseclas. O que me espanta é que ainda não se
tenham lembrado de vir atacar este posto, tão fraco quão arriscado.

Mal tinha Antonio Rabelo acabado estas palavras, quando uma massa negra começou
a aparecer no principio da rua.

Deus queira que eu me engane. Mas, ao que parece, vem ali gente para nos
dar que fazer toda esta noite – disse Antonio Rabelo.

E logo mandou dobrar as guardas, e à frente da cadeia estendeu o restante
da força.

– Quereis ir ao encontro do bando, Sr. capitão? perguntou Diogo Maciel,
impaciente por atirar-se ao tumulto onde mais tarde praticou atos de distinta
bravura. – Não; agora não enfraquecerei este ponto com a minha
ausência. Os rebeldes vêm direitinhos para cá.

De feito, não tomaram eles outra direção.

O bando, passante de cem homens, vinha preparado para entrar em fogo e era
capitaneado por Jeronimo Paes e seus filhos. Sua intenção era
a que já tinha sido prevista – a de soltar os criminosos.

Obra de cinquenta passos antes, Antonio Rabelo intimou-lhes que passassem
de largo.

Jeronimo Paes, sem se importar com esta voz, deu ainda alguns passos para
diante. Rabelo mandou distribuir cartuchos e carregar. Então a multidão
fez alto a respeitosa distancia.

– – Que querem, bandidos? Perguntou fora de se Cosme Bezerra, mal podendo
suster as rédeas ao cavalo, pela cólera que o tomava. Bandido
sois vós – respondeu Jeronimo Paes.

– A esta voz, Cosme pôs as pernas ao cavalo, cravou-lhe as esporas
com movimento nervoso e atirou-se para a frente da multidão. Quando
parou a três passos de Jeronimo Paes, trinta bacamartes tinham as bocas
voltadas para ele. A seu lado tinham arrancado como arrastados no ímpeto
vertiginoso da sua carreira, Diogo Maciel à esquerda, Filipe Cavalcanti
e Luiz Vidal à direita, e atrás deles cerca de dez ordenanças
bisonhas, mas animosas.

– – Podeis assassinar-me – disse Cosme. É o mais que podeis fazer,
porque é só o que sabeis, miseráveis. Mas ainda que corra
perigo a minha vida, como se me achasse diante de feras bravias, nem por isso
hei de deixar passar sem oposição a vossa rebeldia. Quem fala
em rebeldia! disse Jeronimo. Rebelde és tu, mazombo infame! disse para
Cosme um dos filhos de Jeronimo.

E cinquenta, oitenta, cem vozes gritaram:

Tu é que és o rebelde, tu é que és o perturbador
da ordem. Fora, fidalgos! Fora. Quando esta alarida serenou, ouviu-se a voz
de Cosme Bezerra. Tinha todos os tons de cólera mal sofreada.

Goianistas, goianistas, gera em mim extremo pesar este vosso procedimento!
Eu não falo aos mascates, falo a vós, povo de Goiana, que meia
dúzia de estrangeiros ingratos tem desnorteado e pervertido.

– – Cala-te, cala-te, mazombo. Não te queremos ouvir. Sai de nossa
presença, se não te queres arrepender. Infame canalha! Exclamou
fora de se Cosme Bezerra, desembainhando a espada, e dando mostras de quem
queria investir. Cosme, contende-vos, disse Filipe Cavalcanti, entrevendo
os perigos que levantava contra se por suas palavras e gestos o capitão
das ordenanças.

Seu aviso já não produziu o efeito saudável. O magote
atirou-se sobre todos eles como vara de porcos do mato salta sobre imprudente
caçador. Alguns tiros foram disparados, mas nenhuma morte se seguiu
a eles. Os que pretendiam tirar a vida ao destemido capitão, cedo tiveram
a prova de seu engano, vendo Cosme de espada nua abrindo caminho por entre
a multidão. Seu cavalo, esse tinha sido derrubado pela descarga.

Cerca de dez minutos durava já a luta desigual de treze homens contra
cem, que os queriam enlaçar, quando ao lado do Carmo apareceu uma mó
de gente que corria para o ponto do conflito. Era uma parte da escravatura
de João da Cunha que, com ele à frente, vinha a socorro dos
parentes e amigos. Os tiros tinham servido ao senhor-de-engenho de aviso da
luta próxima. Acompanhavam-no o feitor e outros moradores. Lourenço
ficara com Germano, já então no sobrado e o restante dos escravos
no armazém, guardando a casa.

No momento em que este auxilio chegou a Cosme, o conflito já tinha
tomado feição diferente. Como a intenção principal
da multidão era abrir as portas da cadeia, a fim de saírem com
os criminosos, dois mascates, Braga e Bernardino, ai recolhidos por delitos
comuns, ela atirou-se em peso contra as entradas. Cosme, Felipe, Maciel e
os demais que tinham resistido ao furacão insurrecional, agora, escapos
de seus novelos, serviam, com Antonio Rabelo e sua brava guarnição,
de baluartes inexpugnáveis ante os quais se quebravam as investidas
dos insurgentes. Achando seus parentes e amigos salvos, João da Cunha,
que estava impaciente por tomar parte na luta, veio colocar-se ao lado deles.
Tornou-se assim quase impossível aos revoltosos lograrem o seu principal
intento. Mas isto os não dissuadiu dele. Colocados em frente da cadeia,
vociferavam contra os sustentadores da ordem. Alguns jogavam projeteis imensos
e mortais sobre os que defendiam o importante passo. Garrafas vazias, grandes
seixos da rua iam a mude batere despedaçar-se nas portas e grades,
impelidos pelas mãos dos amotinados. Seus estilhaços continuados
feriam os impávidos defensores.

De repente um homem, que vinha das bandas do Carmo, procura a cadeia. Alguns
dos amotinados, suspeitando nele um mensageiro da nobreza, atravessam-se diante
dos seus passos. Loucos que foram esses! Um jagunço enorme, que o desconhecido
manejava tão facilmente como se fora delicado espadim, prostrou dois
deles por terra sem sentidos. Corre então a seu encontro maior numero,
que não tem sucesso melhor. O desconhecido não é muito
alto, nem muito corpulento. Mas sua força muscular faria inveja à
mais possante fera. Quando seu braço descarrega a arma, semelha este
troço de mármore e abate a seus pés os maiores obstáculos.

Ele atira-se de ombro sobre um dos mais alentados de formas e dá com
ele em terra. Consegue, enfim, derrubando e ferindo os que pretendem cortar-lhe
a passagem, chegar ao pé do sargento-mór.

– Lourenço! Que vens fazer aqui? Alguma novidade por lá?

– Vim chamar vosmecê a toda pressa. Do lado do rio dirigem-se para
o sobrado forças numerosas. No sobrado se diz que são as forças
de Luiz Soares. Luiz Soares! exclamou o sargento-mór.

– Luiz Soares! repetiram Felipe e Cosme Bezerra.

– E que faremos agora? Inquiriu João da Cunha.

– Sabendo do que havia, Antonio Rabelo aproximou-se e disse-lhes:

– Podeis ir, senhores. Eu defenderei o meu posto até exalar o ultimo
suspiro. Pois bem. partiremos a cortar-lhe a vanguarda – disse Cosme a Antonio
Rabelo. Mas ao vosso lado, senhor capitão, ficará o alferes
Diogo Maciel. Tende certeza de que estareis bem acompanhado.

Com as espadas nuas nas mãos, os fidalgos afastaram-se, formando uma
mó impenetrável.

Alguns dos do bando de Jeronimo Paes, que lhes saíram ao encontro,
caíram ao peso da terrível massa de Lourenço, o qual
ia na frente abrindo caminho temerariamente.

Seguiam após eles as ordenanças de Cosme Bezerra e os escravos
de João da Cunha.

Penosa, mas rápida, tinha corrido a noite.

Raiava, enfim o dia 23 de agosto de 1711, que ficou sendo memorável
nos fastos de Goiana.

Capítulo XXVI

Não tinha ainda amanhecido de todo, quando as balas dos assaltantes
já sibilavam pelas urupemas do sobrado de João da Cunha, como
pelas enxárcias de navio no alto mar esfuziam as lufadas de atroz procela.

Porque fora esse o lugar escolhido para as primeiras honras do assalto? Porque,
em vez de correr imediatamente à cadeia, forçá-la, quebrar-lhe
os ferrolhos, soltar os sentenciados, tinha Luiz Soares tomado para o pátio
do Carmo, deixando entrever a intenção de atacar a habitação
do fidalgo antes do que qualquer outro ponto?

A resposta é fácil. Antonio Coelho sabia a hora precisa em
que Luiz Soares teria de entrar na vila. Sabia o lugar onde essa entrada devia
efetuar-se: era aquém do Tanquinho, e quase fronteiro ao oitão
da igreja do Senhor-dos-martirios. Tomando essa direção, escapava
às trincheiras de Manoel de Lacerda, como aconteceu.

O negociante, tanto que viu aproximar-se o momento, montou a cavalo e para
lá se encaminhou, seguido de cerca de cem homens. Este troço
era composto em grande parte de europeus. Era o corpo de sua especial confiança.
Coelho o denominava seu estado-maior. Partiram da Rua-de-rosario, ao mesmo
tempo que a multidão capitaneada por Jeronimo se dirigia para o lugar
onde estacionou.

Quando a gente de Luiz Soares, rompendo os últimos matos, saiu na
Rua-dos-martirios, que não era então mais do que o caminho do
Tanquinho, achou já ai para o receber o estado-maior dos mascates.

Vendo o comandante da tropa, Coelho correu a ele, chamou-o de parte e falou-lhe
à puridade. Quando a cabo de alguns minutos se separaram, estava assentado
o plano do ataque. Luiz Soares devia levar suas primeiras investidas contra
a frente da casa do sargento-mór, enquanto o negociante a atacaria
pelo lado oposto. Entre dois fogos, o soberbo fidalgo cairia no poder dos
inimigos sem grande custo, e tanto bastaria para que cessasse a resistência,
visto que nenhum dos outros, nem Cosme nem Filipe, nem Jorge Cavalcanti, nem
Manoel da Lacerda, em uma palavra nenhum deles tinha gente para fazer frente
a seus adversários. Então tudo tornar-se-ia fácil. O
povo já estava solto; a vila abandonada por mais da metade dos habitantes
pacíficos; seguir-se-ia a revolta como se seguiu. As tropas invasoras
engrossariam com os subsídios que desse a insurreição,
e tomariam sem perda de tempo o caminho do Recife, a fim de romper o cerco.

Estas foram as razões que publicou Coelho para autorizar o seu plano.
Ele porém tinha a sua razão particular em querer que prevalecesse
este a outros planos indicados pelo destemido Paraibano. O leitor já
sabe qual ela seja. Acabar com João da Cunha era o seu fim, a sua preocupação
de todo o instante. Acabado ele, poderia finalizar a guerra, que ele não
teria por isso pesar nem descontentamento.

No momento em que, dando a volta da rua, descobriram os fidalgos, aos primeiros
clarões da manhã, a vasta multidão, superior a seiscentos
homens, uma idéia assaltou incontinenti o espirito de Bezerra. Com
sua lúcida previsão a que devia tantos sucessos felizes no período
de agitação de que se trata, concebeu logo ele um projeto de
oposição.

– Um cavalo já para Lourenço.

E voltando-se para o rapaz, disse-lhe:

– Tu me acompanharás. Não preciso de mais ninguém.

– Aonde tencionais ir, Cosme? perguntou Filipe Cavalcanti.

Vou a Jorge Cavalcanti, que já pode abandonar a sua fortificação,
visto que as forças inimigas, a que ele pretendia impedir a entrada,
já estão tomando conta da vila. Lourenço correrá
ao Tanquinho a dizer a Manoel de Lacerda que venha em nosso socorro. Com a
gente que cada um destes amigos tiver junta, bateremos esses bandidos. Só
o que desejo me façais, João da Cunha, é que sustenteis
a resistência até que eu chegue. Bastam-me cinquenta, quarenta,
vinte goianistas da gema para levar estes salteadores a panos de espada, este
canalha a patas de cavalo. Em menos de dois minutos, Cosme e Lourenço,
tomando pela Rua-do-meio, corriam à desfilada. O momento era decisivo.

Chegando à sala, Filipe Cavalcanti, Luiz Vidal e João da Cunha
deram com um espetáculo novo e singular. Cada uma das mulheres que
ai se achavam – eram oito, a saber d. Damiana, Marcelina e seis mulatas escravas
– mostrava-se aparelhada para travar a luta homérica. A capitoa era
a mulher do sargento-mór. Seu espirito belicoso tinha-se comunicado
a todas as outras, excetuada Gertrudes, velha que a amamentara e que a um
canto da sala tremia de medo. Sobre os bufetes, as mesas, os estrados viam-se
açafates cheios de cartuchos, obra das suas mãos e das de algumas
de suas mucamas durante os dias e as noites anteriores.

– Que é isto, senhora? perguntou o sargento-mór à sua
mulher, tanto que seus olhos leram na face dela a expressão da energia
intima, reflexo do seu sangue e do seu orgulho.

– De que vos admirais? Mandei trazer para a sala as armas e munições
que estavam nas camarinhas. Será ainda cedo para aparecerem?

-Cedo não é, disse o sargento-mór. Mas é que
em mãos de uma dama e de escravas elas se me afiguram postas com muita
antecipação. Em ocasiões como esta, e em havendo ainda
homens, as mulheres não devem usar outras armas que os seus rosários.

– Tem vosmecê razão, seu sargento-mór, disse a velha.
Eu cá por mim não posso entender-me com armas de fogo. As minhas
armas são d’água – são as lagrimas. As de fogo,
quando alguma vez as tenho, como agora debaixo das mãos, já
me parece que vão estourar e despedaçar-me.

Gertrudes tinha de feito nesse momento a mão posta sobre o cano de
um mosquete, que estava a seu lado sobre o estrado. Mal acabara de falar,
um estrepito estranho e inesperado rebentou perto dela. A anciã recuou
espavorida. Pareceu-lhe que se confirmava seu receio. Dera causa ao ruído
uma bala inimiga que, batendo no espelho da sala, o pusera em farelos.

– Credo! Virgem santíssima! Exclamaram quase ao mesmo tempo as mulheres.

D. Damiana tinha corrido para junto do marido, como quem queria defendê-lo.

-Correis aqui perigo de vida, disse Felipe Cavalcanti. O meu parecer é
que vos retireis ao interior da casa, onde estareis mais resguardadas das
balas perdidas. Ide aí encomendar nossas vidas a Deus, e pedir para
as nossas armas a vitoria.

A senhora-de-engenho não quis parecer obstinada. Deu o andar para
dentro com sua antiga aia, Marcelina e as mucamas. É, porém,
certo que seus espíritos, alvoroçados com a eminência
do perigo, não se deixaram lá ficar, antes vieram emparelhar-se
a João da Cunha, vigiando sobre ele, estremecendo por sua existência,
a qualquer detonação, a qualquer vibração suspeita
de lhe ser ofensiva.

Capítulo XXVII

Quando se acharam sós, correram os três fidalgos às urupemas
a examinar o aspecto do campo inimigo.

– Estais vendo, Felipe? Inquiriu Luiz Vidal.

– Que quereis dizer?

– Aquela mó de gente de negro que se move do lado de lá do
cruzeiro?

– Estou vendo. São frades, ao que parece.

– São os próprios frades do convento – disse João da
Cunha – que distribuem armas e munições pelos matutos esfarrapados
e imundos. Oh! os frades, os frades do Recife e de Goiana têm tido grande
parte nesta guerra!

Tendo dito estas palavras, o senhor-de-engenho deu o andar para descer.

– Para onde ides? perguntou-lhe Luiz Vidal, carregando o mosquete de que
lançara mão.

– Vou mandar subir para cá a metade dos negros. Precisamos dar logo
sinal de nós, rompendo o fogo sobre aqueles magotes ferozes. Prudência,
amigo, prudência! Observou Filipe. Vede bem não vá esta
provocação decidi-los a acometer logo o sobrado.

– Que tem que venham? Tenho forças bastantes, não só
a resistir-lhes, mas a batê-los.

– Não estareis enganado? Demais não será mais acertado
nada tentarmos contra eles, antes de chegarem os reforços que Cosme
foi buscar? Se aquela gente toda, reunida com a que está na frente
da cadeia, vier assaltar-nos, achais que poderemos ficar vencedores?

– Só por milagre, ajuntou Luiz Vidal. Mas olhai que a força
inimiga, Filipe. Não compreendeis aquela manobra, ordenada por Luiz
Soares?

As forças deste caudilho tinham-se dividido em três grandes
pelotões. O do centro, formando uma extensa linha ao longo da praça,
parecia querer adiantar-se até ao cruzeiro, e de feito se encaminhou
para ai; os das extremidades, mais numerosos e compactos, desceram, correndo
a marche-marche a tomar as embocaduras, ao norte e ao sul da rua.

Claro está o plano do caudilho, disse o sargento-mór. Atentai
nele. A linha do centro manterá sobre nossa frente incessante fogo,
enquanto as outras duas, ganhando os lados, vêm reunir-se com ela no
ponto comum, que não é outro senão as nossas portas.
Houve um momento de silencio. Os fidalgos, por trás das rotulas, olhavam
para um lado e para outro, como quem estava estudando as posições
inimigas. Enfim Luiz Vidal voltou-se para o senhor-de-engenho e lhe disse:

– Não percamos mais um momento. As forças aí vêm.
Se não resistirmos, em dez minutos estaremos no poder dos rebeldes.
Descei, descei, e mandai a gente para cá. O forte dela deve ficar lá
em baixo. Cá em cima precisamos unicamente de quem saiba carregar e
descarregar sua arma. Lá em baixo requerem-se ânimos viris. Será
lá o nosso posto de honra.

João da Cunha desceu e tornou logo. Vinham com ele o Roberto e mais
dez negros.

– Vês aquela linha de homens que ali vem avançando e atirando
para cá? Perguntou o sargento-mór, indicando ao feitor a parte
da força que era comandada pelo próprio Luiz Soares. Estou vendo,
sim senhor.

– Sobre ela devem ser feitas todas as pontarias. De lá debaixo, quero
ver cair aqueles alteadores atravessados pelas balas dos meus escravos. Senhor
sim, disse Roberto.

Os negros foram distribuídos pelas janelas. Pelos interstícios
das urupemas introduziram os canos dos bacamartes, e espararam a voz de –
fogo. O sargento-mór, tanto que viu as armas abocadas na direção
conveniente, ordenou uma descarga. Queria por seus próprios olhos ter
uma prova, antes de descer ao outro pavimento, do valor e da disciplina da
sua gente.

No mesmo instante um só e infernal estampido encheu o âmbito
da sala, e foi revoando pelos aposentos e salas imediatas. A casa, em que
predominava a pesada alvenaria daqueles tempos, estremeceu, não obstante,
como se fora de taipa de sebe, desde os fundamentos até ao teto, de
cujo estuque se desagregaram partículas calcinadas. Dir-se-ia que ali
o mundo acabava de ter uma das suas medonhas comoções, um desses
terríveis cataclismos que se resolvem no aparecimento de mais um vulcão,
na abertura de mais um abismo. Misericórdia! Misericórdia! Gritaram
dentro algumas mulheres aterradas. Quando iam descendo, ouviram os fidalgos
o estrondear de uma forte descarga do lado de fora. Era a resposta que os
da rua davam aos do sobrado. Era mais do que uma simples resposta; era principalmente
intimação, feita pelo fogo, a que se rendessem, senão
a acerba ameaça de que dentro em pouco tempo não passariam de
vencidos e prisioneiros.

A luta estava terrivelmente travada. Em alguns minutos ninguém mais
pode entender-se. a mosquetaria atroava os ares com suas vozes assustadoras.
As descargas sucediam-se incessantemente umas às outras. Contra os
paredões e muralhas de solida e antiga fortaleza não batem com
mais fúria as balas de canhões inimigos do que as dos mosquetes
dos matutos contra as paredes, as portas, as janelas do sobrado do sargento-mór
em que eles consideravam encastelado o despotismo, o orgulho e a maldade de
um senhor feudal.

– Germano? Germano? Chamou o sargento-mór, ao penetrar no vasto aposento
em que tinha o grosso de sua tropa. Onde estás, moleque? Não
vês que as portas da entrada se acham desamparadas? Para a frente, demônios!

João da Cunha trazia na cava do colete um punhal, no cós dos
calções uma pistola, e na mão esquerda um clavinote curto.
Por cima do gibão de seu uso corria-lhe, cingindo-o, o talim, donde
lhe pendia uma espada de ponta direita. Do ombro esquerdo para o quadril direito
caia transversalmente uma correia lustrosa na qual se via segura uma patrona
cheia de cartuchos fabricados por sua mulher. Trazia na cabeça chapéu
de palha de largas abas. Com o trigueiro do rosto contrastava a barba grisalha,
com o longo nariz aquilino os olhos pequeninos e redondos, como os de pomba.
Em sua fisionomia liam-se sentimentos encontrados e violentos: a temeridade
para avançar, a firmeza para resistir.

À voz do senhor, Germano chamou os outros e tornou com eles para as
portas. Por trás destas tinham sido colocadas diversas caixas-de-açúcar
com dobrado fim – amparar as entradas e dar aos atiradores posição
sobranceira.

Subiram às caixas os negros, e nos pequenos olhais, acinte feitos
nas portas por ordem do sargento-mór, puseram eles as bocas das armas.

Então o sargento-mór deu ordem para atirar. As pedras bateram
nos fuzis, algumas escorvas arderam, mas nem um tiro soou.

João da Cunha, espantado, surpreso, olhou sucessivamente para os negros
e para os dois fidalgos. Rápida lividez passou pelas faces destes últimos.
Uma só idéia, uma suspeita cruel que lhe atravessara o cérebro,
fez chegar ao rosto deles a sombra de sua asa negra.

Puseram os escravos novas escorvas nos mosquetes, que levaram novamente aos
orifícios das portas. À voz de – fogo! – as escorvas arderam,
mas, como da primeira vez, nenhuma arma disparou seu tiro.

Fora de si, o sargento-mór vai cair de um pulo junto de Germano, enquanto
Filipe Cavalcanti e Luiz Vidal, desembainhando suas espadas, se colocam em
atitude ameaçadora diante dos outros escravos.

– Negro infame, quero saber o que têm estas armas. Confessa a verdade,
senão te atravesso da outra banda. João da Cunha parecia uma
visão infernal. Todos os músculos do rosto, as mais delicadas
linhas de seus olhos despediam duras e mudas ameaças, que falavam mais
claro do que seus gestos e expressões violentas. Senhor, as armas estão
molhadas, respondeu Germano. Não fui eu que as molhei, foi ele; mas
já pagou.

– Molhadas as armas! exclamou Filipe. Traidores!

– Ele quem? Ele quem? Dize já quem foi o autor deste crime.

– Moçambique.

Eis o que se tinha passado depois da subida do Roberto e dos seus companheiros
para o andar superior.

Moçambique chegou-se a Germano e lhe disse:

– Que esperas, moleque? Daqui a pouco o branco vem chamar-nos para o sobrado,
e nós levamos as armas enxutas. Bota logo água dentro delas.

– Cala a boca, tio Moçambique. Estás doido? Água dentro
das armas! Para que fim?

– Ah! Tão depressa te esqueceste da promessa que fizeste a seu Pedro
de Lima?

– Eu nada prometi, Moçambique, eu nada prometi do que você está
inventando ai.

– Pois já te não lembras da conversa que tiveste ontem de tarde
no mucambo?

E que prometi eu, negro velho tonto? Melhor será que você cale
sua boca. Calou Moçambique a boca um momento, mas seu espirito embrutecido,
seu interesse, que sua ignorância o fazia supor muito bem amparado pelas
promessas de Pedro de Lima, alteou dentro em sua mente cada vez mais as vozes
falazes e persuasivas. O negro deu uma volta, como para disfarçar a
intenção serpentina, dirigiu-se ao canto onde estavam encostadas
as armas, e começou a esvaziar no cano de cada uma o coco, que enchia
no pote d’água destinada a matar-lhes a sede.

Germano deu pela operação, no momento precisamente em que Moçambique
molhava o ultimo mosquete.

Correr ao negro velho, tomar-lhe a arma da mão, exprobra-lo, foram
atos que o moleque praticou em um momento.

– Tio Moçambique! Você sempre fez o que queria?! exclamou na
realidade aterrado Germano.

– Fiz o que tu prometeste, mas não tiveste coragem para fazer, respondeu
Moçambique. Negão safado! Tu ouviste eu prometer alguma coisa?

Ouvi, sim. E se tu quiseres agora negar, eu tudo contarei ao senhor – disse
Moçambique, dando mostras de querer envolver em sua queda o parceiro.

Germano era fino. Viu de um lance d’olhos todo o horror da situação,
toda a imensidade do seu infame procedimento. Compreendeu que se o senhor-de-engenho
saísse daquele aperto e viesse a ter conhecimento do que se passara
no mucambo, a forca seria o seu fim, se não fosse a morte nos açoites.
Então lembrou-lhe uma idéia, única que o podia salvar
do abismo à borda do qual cambaleava mais morto do que vivo. Era destruir
a única testemunha da sua entrevista com Pedro de Lima. Morto Moçambique,
estaria ele livre da responsabilidade que o negro queria repartir com ele,
e poderia até, se a vitoria pertencesse aos mascates tão completamente
como figuraria Pedro de Lima, exigir deste o preenchimento da promessa feita.
Tanto que esta ordem de idéias se acentuou bem em sua mente, para o
que não foi preciso mais do que um instante, o moleque puxou resolutamente
do facão que consigo trazia, e com ele traspassou o parceiro.

Tendo contado pela rama esta fatal acontecimento a João da Cunha,
Germano para dar inteira autoridade ao que dizia, indicou o canto do armazém
onde se achava morto, dentro de uma poça de sangue ainda quente, o
negro que punha sentido nas carvoeiras.

O sargento-mór soltou então o moleque, dizendo-lhe estas palavras:

– Em recompensa da ação que praticaste, Germano, dou-te a liberdade.
Do ora por diante já não és meu escravo, mas meu amigo.
Estás forro.

– Eu forro, eu livre senhor! exclamou, duvidoso ainda o negro, como quem
não podia acreditar fosse senhor do sumo bem a que aspirava desde que
tivera o uso da razão, mas cuja posse só em sonho considerava
possível.

Estás livre. Palavra de João da Cunha. As lagrimas saltaram
dos olhos do moleque, mas uma sombra, escurecendo-lhe o espirito e aguando
o contentamento inefável que o repassava, volitou diante dos seus olhos.
Esta sombra tinha a forma de um espectro agoureiro e medonho. Parecia com
o negro morto, mas não era senão o remorso, porque, em consciência,
o moleque se reconhecia traidor e assassino.

Nesse momento Roberto apareceu no armazém.

– – Pólvora, senhor, queremos pólvora – disse ele. acabaram-se
todas as munições que havia lá em cima. E que fazem os
inimigos? Interrogou Filipe Cavalcanti.

Avançam, respondeu Roberto. Estão já batendo nas portas.
Pólvora, Germano! Gritou o sargento-mór. E uma idéia
sinistra, semelhante à sombra do inferno, atravessou seu espirito atribulado.
– Se Moçambique molhou a pólvora, que será de nós?-
pensou ele.

Germano corre ao barril que primeiro se lhe mostra. O sargento-mór,
sobressaltado, impaciente por saber imediatamente a sorte que lhe estava reservada
naquele tremendo apuro, correu após o moleque. Germano para diante
do barril, abre-o com arrebatamento nervoso, e voltando-se imediatamente ao
sargento-mór que tinha os olhos postos nele, exclama:

– A pólvora está molhada, senhor!

Molhada! Molhada! Exclamam quatro vezes ao mesmo tempo, quatro vozes que
se confundiram na mesma angustia, e que pareciam um só grito de maldição
e de horror. Eram as vozes de João da Cunha, Filipe Cavalcanti, Luiz
Vidal e Roberto.

Para se certificar, o sargento-mór meteu suas próprias mãos
dentro do primeiro barril, do segundo, de todos eles. Retirou-as cobertas
de uma camada espessa e úmida, semelhante à lama da rua, que
se lhes aderira. Não havia mais que duvidar. O tremendo drama caminhava
rapidamente à sua ultima cena.

Mas Germano, que não gritará, que não se surpreendera
com esse grande desastre, parecia não obstante haver ele penetrado
mais profunda e dolorosamente do que nos outros. Havia nisso o efeito de uma
lei fisiológica, senão moral. Fora ele, ele próprio quem
tinha derramado água nos barris, logo depois da morte de Moçambique.
Então nem sequer lhe passara pela imaginação a idéia
de ser alforriado por seu senhor. pensava porém no que lhe dissera
Pedro de Lima. Para justificar-se perante João da Cunha, se este vencesse,
tinha ele o seu procedimento com o parceiro; matara-o: não podia dar
melhor prova de sua lealdade. Para aparecer diante do bandido com direito
a ser livre, necessário lhe era algum fato de grande alcance, cuja
responsabilidade pudesse atribuir a se próprio, no caso de saírem
vencedores os estrangeiros, em nome de quem o cabra prometia essas grandes
recompensas. Eis porque pusera água na pólvora.

Mas a inesperada generosidade do senhor tornara-o perplexo, confuso, sem
saber o que fazer. O remorso, o arrependimento, o pesar, a dor abafada e temerosa
o tiveram por um momento fora do uso das suas faculdades. Germano não
era mau negro. Tinha sido até ao momento de se entender com ele o Pedro
de Lima, muito dos seu senhores. Ainda depois nós o vimos como arrependido
em conseqüência das reflexões que lhe fizera Marcelina.
Desencabeçado, porém, em nome da liberdade, atirara-se naquele
escabroso despenhadeiro a modo de fatalmente.

Vendo agora de perto os resultados de sua perfídia; conhecendo-se
assassino, sem ter nunca pensado sê-lo; vendo seus senhores sujeitos
aos duros azares que a vitoria dos contrários poderia trazer; vendo
a ele próprio sem ação, sem meios para afastar todos
aqueles horrores, vencer todas aquelas cruéis fatalidades, encher o
grande abismo que ameaçava engoli-los, enfim reparar aquela imensa
desgraça de seu natural irreparaval, só faltou ao negro completar
o seu martírio mudo e imponderável, cortando com suas próprias
mãos o fio da existência a que um momento se haviam rasgado horizontes
cor de rosa, logo após convertidos em profundas e infernais escuridões.
Ó liberdade, quanto pareceste dolorosa nesse transe ao pobre escravo,
vitima da natural ambição de te possuir!

O estampido de uma nova descarga, abalando violentamente todos os espíritos,
veio como reacender a perdida veemência do de Germano. Sua impetuosidade
etiópica rebentou pujante, como a catadupa que jorra subitamente de
solo frio e pedregoso.

O negro tivera uma inspiração grandiosa, digna da heroicidade
romana. Pondo-a em pratica, reabilitava-se perante sua própria consciência
e dava manifesto testemunho ao senhor-de-engenho da sua gratidão. ] – Senhor, senhor, – disse ele a João da Cunha, tendo na mão
desembainhado o facão com que tirara a vida a Moçambique – a
água molhou as armas e a pólvora, mas não molhou o facão
de Germano. Ainda que estivesse molhado, era agora a ocasião de o enxugar
nos corações dos mascates. Se senhor dá licença,
vou esperar os inimigos da banda de fora com meus companheiros.

– Quantos estão aqui?

– Dezenove, respondeu Germano.

Não, agora somos trinta, respondeu ao pé do sargento-mór
o Roberto, que descera. Nesse momento nova descarga soou na sala do sobrado.
João da Cunha, espantado, perguntou a Roberto:

– Quem é que ainda atira lá em cima? Não estão
vocês todos cá embaixo?

De feito, todos os negros, que Roberto capitaneava, achavam-se com os outros
no armazém.

– É a senhora d. Damiana, com as negras.

– Que loucura! E onde acharam munições? Onde acharam munições?

– Lá em cima. A senhora d. Damiana tinha muitas dúzias de cartuchos
guardados. Cada um de nós tem já a patrona cheia.

– Graças, meu Deus! exclamaram os fidalgos. Mas então porque
desceram, porque abandonaram seu posto? perguntou o sargento-mór.

– Foi ela que nos mandou para baixo. Ela disse que havia mais necessidade
de nós cá embaixo onde nenhum tiro se disparava, do que lá
em cima. E a senhora d. Damiana teve razão – disse Filipe Cavalcanti,
que, tendo ido olhar pelos olhais, voltara correndo ao lugar onde estas coisas
se passavam. Acudam todos. Os bandidos batem-nos à porta. Uma descarga
agora contra eles deve ser de grande proveito para nós.

Correram todos os que tinham as armas carregadas. Um estampido imenso ecoou
dentro do vasto armazém. No chão da rua caíram vários
dos assaltantes – muitos feridos, alguns mortos. Era o primeiro sinal de vida
que dava de se para o lado de fora o armazém.

Tomando por estratégia o silencio que até então ai reinara,
recuaram os assaltantes amedrontados, mas não o fizeram tão
prontamente que ficassem logo fora do alcance de novos tiros disparados do
sobrado, desta vez mais certeiros do que das outras. Novas perdas contou a
força invasora.

Quando cessou de todo o estrondo da ultima descarga, uma voz vibrou nos ares,
forte e pujante, por entre as exclamações de dor dos feridos.
Partia ela do cruzeiro e parecia dirigir-se aos do sobrado.

Mulheres ímpias, mulheres ímpias, que atirais contra a cruz
do redentor, vede lá não venhais rasgar as veias sacrossantas
daquele que em espirito está aqui pregado nela. Ergueram-se todas as
vistas ao ponto donde tais palavras caiam.

Um vulto vestido de negro destacava sobre a larga peanha do cruzeiro. Estava
de pé, o braço esquerdo passado em torno da haste pétrea,
enquanto o direito destendido parecia acompanhar e completar a direção
e o eco de sua voz. A cara branca e macilenta, o perfil negro e esguio, a
voz fina e vibrante davam aquele vulto certa aparência majestosa e patética.
O que sobressaia nele, cercando-o de uma como virtude misteriosa e fatal,
era o animo terso, a temeridade a modo de barbara, a fé passiva e animal
que o fizera levantar-se diante das balas inimigas, que em torno de se cortavam
o fio de muitas vidas. Esse vulto, esse espectro, esse animo que excedia a
medida humana, era um membro da Companhia-de-Jesus. Era o padre Henrique Celini.
Fora mandado expressamente do Recife para pregar contra os nobres e a favor
dos mercadores. Seu nome devia figurar depois na carta monitoria em que o
bispo cometia ao Padre Manoel Lopes todas as necessárias faculdades
a fim de que ‘notificasse certos clérigos para aparecerem em
sua presença, e os corrigisse da escandalosa missão de andarem
seduzindo os ânimos dos que os ouviam a seguirem por seleta e segura
a nova doutrina sustentada pelos conjurados do Recife, com a qual agitaram
o povo e deram tanto abalo a toda a terra.’

Apenas ouviu as primeiras palavras do jesuíta, o sargento-mór
correu à sala superior. As balas paraibanas tinham deixado ai traços
medonhos. Viam-se nas paredes, por entre superficiais escoriações,
profundos ferimentos. Parte do estuque do teto estava por terra. Das rotulas
algumas se mostravam despedaçadas, outras com imensos rombos por onde
do pátio se via grande parte do que se fazia na sala. A frente da casa
poder-se-ia comparar com a careta de um homem vesgo e desdentado.

D. Damiana, de pé por trás de uma das rotulas mais destruídas,
olhava para o pregador por um dos rombos, no momento em que seu marido entrou
na sala. As outras mulheres imitavam a senhora-de-engenho das outras janelas.
Vinde ouvir, Sr. João da Cunha, vinde ouvir o pregador – disse ela.
Ainda está falando ai essa sombra do inferno? Perguntou ele, lançando
as vistas para o pátio, por cima do ombro da mulher. E rapidamente
levou ao rosto o clavinote, como quem o queria desfechar sobre aquele novo
sustentador da desordem e da destruição que aludiam a sua posição
e o seu poder.

Mas no mesmo instante sentiu-se apertado entre dois braços fortes,
roliços e deliciosos. Sentiu uma macia mão pegar-lhe do pulso
e obrigá-lo a abaixar a arma. Ouviu uma voz terna, aflita, plangente
pedir-lhe que não atirasse.

Não atireis, não atireis, Sr. João da Cunha, sobre o
padre. Seria um grande pecado. Atreveis-vos a dizer-me estas palavras, senhora?
exclamou o fidalgo. O que ali está não é um padre, um
ministro de Deus. É o espirito de Satanás. É um perverso
que deve cair atravessado por uma bala. Peço-vos também eu que
não atireis, seu sargento-mór – disse-lhe outra voz ao pé
de si. João da Cunha voltou-se e deu de face com Marcelina, que dava
mostras de quem ia ajoelhar-se. Alongando os olhos algum tanto mais, viu todas
as mulatas na mesma atitude, acusando sua fisionomia os mesmos sentimentos
manifestados pela senhora-de-engenho e pela cabocla. A forte guarnição
que até aquele momento mantivera nutrido e mortífero fogo sobre
os invasores; desamparava as posições, abaixava as armas à
voz de um padre; e quando ele trovejava contra elas próprias, corriam
medrosas a impedir, com suplicas e prantos, que lhe tirassem a vida.

O jesuíta entretanto prosseguia assim a sua terrível jaculação.

– Atirastes sobre a cruz do redentor. Estais por isso condenadas às
profundas dos infernos. Suspendei, suspendei, filha de Satanás, a vossa
impiedade. A maldição de Deus pesará eternamente sobre
vós, se ousardes levantar ainda armas infernais para o lado onde está
o símbolo da fé e da religião católica. Batei
nas faces, mulheres ímpias. Pedi misericórdia a Deus. Misericórdia!
Misericórdia! Exclamaram irresistivelmente todas as mulheres presentes.
E suas mãos ainda quentes dos canos das armas, flagelaram, a modo de
impelidas por oculta e fatal força, as faces há pouco afogueadas,
agora pálidas, senão lívidas.

Um dos traços característicos daqueles tempos era a fé
cega no padre e na sua doutrina. O sentimento religioso confundia-se com a
superstição e dela recebia a influencia que ainda em nossos
dias alenta no lar do rico e do pobre, do pequeno e do grande, crenças
deletérias e hábitos fatalissimos. D. Damiana, educada no seio
da família católica, ao paladar da fé antiga – misto
de sombra e luz, como a nuvem que no deserto guiava o povo de Israel – sentia-se
fraca diante do sacerdote, não obstante ter-se mostrado um momento
antes brava, senão temerária, diante das forças e das
armas rebeldes, porque ela estava acostumada a ver no padre o representante
de Deus na terra; a considerar suas palavras como sentenças do código
divino.

Mas o sargento-mór, que já não pensava assim, ergueu
o clavinote e disparou-o. A bala foi bater nos pés da cruz, e arrancar
uma lasca de pedra. No mesmo instante uma fila de sangue vivo escorre do lugar
onde a bala deixara profunda e alongada ferida. Viram todos o sangue descer
pela pedra. Era o do padre Henrique, cujo corpo caíra traspassado aos
pés do cruzeiro.

– Meu Deus, que horror! Exclamou d. Damiana. Estamos perdidos. Deus não
há de ser mais por nós.

E inclinou sobre as mãos, pequenas de mais para ocultarem o horror
que lhe vinha do intimo, o rosto desfigurado e abatido.

O senhor-de-engenho, como se sua própria obre tivesse excedido a medida
da sua intenção, teve por momentos os olhos, pasmos e desvairados,
sobre o traço vermelho que descrevera um como hieróglifo ou
símbolo infernal na pedra secular do símbolo santo.

Nesse momento diziam da rua:

– O tiro, que o matou, veio do sobrado onde estão a mulher e as negras
do malvado. Sim, sim, veio de cima; veio.

– Foi a escopeteira que atirou.

– Foi ela, foi ela. Morra a escopeteira!

– Morra, morra. Ao sobrado, ao sobrado! Gritaram os frades em torno do cadáver
do jesuíta. Ao sobrado! respondeu a multidão.

XXVII

O sobrado foi fortemente atacado, mas à força exterior opuseram
os que estavam dentro dele heróica resistência, impossível
de descrever-se.

Nos últimos momentos os negros, dirigidos por Germano, tinham-se batido
quais feras. Prometera-lhes o sargento-mór a liberdade a todos, e tanto
bastou para que os guaribas lutassem como se foram leões.

Mas Germano devia ser punido da sua perfídia. Defendendo a facão
e a chuço com os parceiros uma das portas que os invasores tinham logrado
romper, ele caíra traspassado de golpes. Com o sangue e a vida resgatara
a culpa.

Tanto que considerou perdida a esperança de salvação,
o sargento-mór pediu a Filipe Cavalcanti e a Luiz Vidal que pusessem
a salvo sua mulher.

– E porque não nos salvaremos todos? Inquiriu um deles. Roberto podia
resistir com os negros que restam, ainda alguns minutos. Teremos tempo de
ganhar a cavalariça. Tomaremos os animais e ficaremos fora do alcance
dos malvados.

– Desamparar a minha casa seria uma covardia, que eu nunca havia de perdoar-me,
disse o sargento-mór. Ide vós. Correi, correi, senhores. Salvai-me
Damiana, e não vos importais comigo. Hei de resistir até à
minha derradeira. Talvez que nesse entrementes chegue Cosme.

Mal tinha acabado estas palavras que poderiam considerar-se inspiradas pela
intuição do momento final, quando as outras portas que ainda
estavam de pé, caíram debaixo do peso dos machados e alavancas
fortemente vibrados pela turba sedenta de vingança. Na primeira linha
dos atacantes viam-se, movendo os terríveis instrumentos, diferentes
frades carmelitas, que assim entendiam dever ressarcir a perda do jesuíta.

À vista desta cena extrema, não havia mais que hesitar. Os
dois fidalgos, dois sós, porque João da Cunha ficava embaixo,
resistindo ainda, lutando sempre, atiraram-se de escada acima a fim de tentarem
a fuga, com a senhora-de-engenho, pelos fundos do sobrado, única comunicação
para uns casebres com frente para a Rua-do-meio. Mas qual não foi o
seu espanto e tristeza, quando se encontraram com as mucamas de d. Damiana
que, espavoridas e chorosas, corriam de escada abaixo pedindo socorro?

Uma malta, não inferior a cinquenta homens, entrando justamente pela
parte da casa por onde Felipe e Luiz tencionavam escapar-se, tinha já
tomado o andar superior. A senhora?! Onde está a senhora?! perguntaram
os fidalgos, passados de impaciência e aflição indescritível.

– Não sei – responde uma das escravas.

– Fugiu, responde outra.

– Trancou-se por dentro em um quarto, – acrescenta a terceira.

– Negras do diabo! exclamou Luiz Vidal.

E atira-se com Felipe, desesperado, agoniado, na direção que
levava. A indignação e o vexame faiscavam-lhes dos olhos. Mas
do topo da escada não passaram eles. Parte da multidão veio
ao seu encontro e embargou-lhes o caminho.

– Afastai-vos miseráveis! gritou Luiz Vidal. Vou a salvar uma dona
honrada. Para o lado, vilões! Para o lado.

– A quem vais tu salvar, mazombo infame! perguntou-lhe o sujeito que vinha
na frente da onda.

Os fidalgos reconheceram o que lhes dirigira este apodo acerbo. Era o Belchior.

– Será uma escopeteira? perguntou outro sujeito em quem eles reconheceram
Manoel Rodrigues – o taverneiro.

– A escopeteira! A escopeteira! articulou o terceiro com ares de mofa. Está
nas unhas do nosso comandante, o bravo Antonio Coelho.

Quem assim falava era o alfaiate Manoel Gaudencio.

Coelho, de feito, entrando no sobrado do momento em que de fora ainda se
pedia o coração, a cabeça de d. Damiana em paga da vida
do frade, correu à senhora-de-engenho e disse:

– Senhora, senhora minha, se não vos entregais em minhas mãos,
mata-vos a multidão!

E dizer-lhe estas palavras foi o mesmo que tomar pela mão a senhora-de-engenho,
atravessar com ela por entre o seu próprio séquito, acomodando
os mais exaltados e exigentes, com a promessa de que ela pagaria a sua culpa
às justiças, e desaparecer por onde havia entrado na casa do
sargento-mór.

Irritados pelo pouco caso e mofa que mostravam os invasores, os fidalgos
precipitam-se contra eles, resolutos a abrir caminho por cima de cadáveres.
Seus golpes não conseguem mais do que ferir alguns mascates. Acende-se
logo pronta e terrível represália. Tomam-nos às mãos,
arrebatam-lhes as armas, descarregam sobre eles pancadas e cutiladas, assacam-lhes
mil impropérios.

Então já as duas multidões, pondo-se em comunicação
pela escada, formavam um só corpo, uma como serpente imensa, irrequieta,
assanhada, que se esfregava pelas paredes, sacudia-se pelas salas, sumia-se
pelos quartos a dentro, penetrando nos pontos mais secretos da casa do fidalgo,
enquanto este desarmado, ferido, coberto de baldões, via-se com seus
próprios escravos entre os primeiros cabos da força de Luiz
Soares, e era apontado por ele, que não ocultava a sua satisfação,
como o seu primeiro troféu.

De todas as que estavam na casa de João da Cunha, só uma pessoa
pode escapar-se com sua liberdade. Foi Marcelina, que correra, não
por fugir, senão por acompanhar d. Damiana, no momento em que com ela
rompia Antonio Coelho por entre os seus partidários.

– Hei de ir com ela até ao infinito! Dizia a cabocla correndo após
a senhora-de-engenho. Não hei de perder de vista a pobre senhora. Meu
Deus! Como tudo se mudou!

Mas a Coelho não fazia conta ser acompanhado por essa terrível
testemunha, e cedo achou um meio de afastá-la de suas pisadas, por
mais que a senhora-de-engenho pedisse depois que a deixasse passar. Para penetrar
no quintal do sobrado, tinha Coelho feito caminho por um dos casebres que
abriam sobre a Rua-do-meio. O mascate estugou os passos, atravessou o casebre,
e, quando se achou com sua presa na rua, trancou pelo lado de fora a porta.
Marcelina não era mulher a quem semelhante obstáculo cortasse
a carreira em que ia. Mas quando, desimpedida a saída a poder de esforço
e violência, ela passou da outra banda, Coelho e d. Damiana tinham desaparecido.

– Pobre senhora! exclamou a cabocla em lagrimas. Que não fará
com ela o bárbaro?

Seriam então oito horas da manhã. O dia, risonho e esplendido,
apareceu aos olhos da cabocla como a carranca de um malvado. A viração,
que brincava com as folhas dos mamoeiros dos quintais, soou a seus ouvidos
como a ameaça de um assassino, o riso infernal de um demônio.

Marcelina tinha até certo ponto razão deixando formar-se em
seu espirito esta ilusão mentirosa.

Era geral o destroço, lúgubre o espetáculo que seus
olhos descobriram na rua. Homens de feia catadura passavam carregados dos
despojos da noite. Outros agora é que iam a colher os frutos que sabe
a pilhagem descobrir no meio do desamparo, e por entre as lagrimas dos aflitos.
Dos armazéns, onde alguns senhores-de-engenho tinham recolhidos seus
açucares, saiam sujeitos maltrapilhos arrastando sacos e caixas, que
deixavam pelas calçadas rastilhos brancos ou amarelados. Vários
troços da força de Luiz Soares, tanto que fora conhecida a vitoria,
espalhavam-se derrubando as portas de novos armazéns, invadindo as
casas de famílias afeiçoadas à nobreza que tinham fugido
para pontos desconhecidos, e daí tirando tudo o que tentava sua cobiça
e podia aprazer à sua voracidade. Essas hordas passavam impunemente,
sem que ninguém se atrevesse a ir ao seu encontro; porque os próprios
grupos que na véspera se tinham organizado em favor dos nobres e durante
a noite haviam sido em muitos pontos obstáculo ao saque, desfizera-os
a noticia de que o sobrado do sargento-mór, que era como a praça-forte
dos nobres, fora tomado pelo partido contrario. A plebe tomara conta da vila
e levava por diante a sua obra de destruição e rapina. Enfim,
o que Marcelina tinha diante dos olhos era o saque em toda sua hediondez –
o saque, serpente de vasta guela e insondável estômago, que tudo
engole, viveres, jóias, moveis, roupas, e o que não lhe apraz
ingerir, despedaça, destróe, inutiliza, como faz a enchente
de um grande rio quando inunda um ponto habitado.

Marcelina vagou sem norte, tendo o juízo em quase completa confusão,
pelas ruas cheias de figuras sinistras, e de vozes e ruídos ingratos.
Lembrou-se de Lourenço e de Cosme Bezerra. ‘Que será feito
de meu filho?! Quem sabe o que não lhe terá acontecido? E seu
Cosme que foi buscar gente e nunca mais apareceu?’

Estas interrogações tinham resposta fácil. Cosme, quando
vinha com os poucos trabalhadores e escravos de Jorge Cavalcanti, encontrou-se
com o bando de Tunda-Cumbe – aquele mesmo que saqueara o engenho Bujari, e
foi batido. Voltou então, com Jorge Cavalcanti, derrotado e ferido.
Mas ainda assim dirigira-se ao engenho Jacaré, a fim de ver se decidia
o respectivo proprietário, até então indeciso, a tomar
o partido da nobreza e a vir em auxilio da vila com sua fabrica e agregados.
Quanto a Lourenço, tendo preenchido a comissão que o levará
ao Tanquinho, lembrou-se de correr ao engenho Bujari, a fim de chamar a gente
que ai ficara. Mal sabia ele o negro drama de que tinha sido teatro a risonha
propriedade de sargento-mór.

Andando sempre sem destino, ora para um lado, ora para o outro, por fugir
das turbas revoltas que não cessava, em seu frenesi, de botar abaixo
portas, roubar o que lhe aprazia, despedaçar o que não falava
à sua ambição, quando Marcelina deu acordo de se estava
no oitão de uma igreja. Era a da Misericórdia. Seriam nove horas.
No lugar, como se deserto, passavam com intervalos, maltas de homens, vociferando,
gritando, muitos deles já nos braços da embriaguez.

De repente, ela viu vir correndo a marche-marche, pela Rua-das-porteiras,
em procura do oitão da igreja, onde ela se sentara, uma longa fileira
de soldados, os pés nus, as calças arregaçadas. Capitaneavam-nos
dois cavaleiros.

– Virgem Maria! exclamou ela, tomada de novo horror. Aonde irá isso
parar! Goiana hoje arrasa-se, acaba-se de uma vez.

Supondo que era novo reforço de bandidos, correu a meter-se dentro
de um fechado de arbustos que havia a um lado do oitão. A pobre mulher
estava possuída de terror. Em todos via inimigos.

Abaixou-se quanto pode, e nesta posição ficou imóvel,
quieta, rezando baixinho a Magnificat.

Quando estava nisso, passou por junto da moita o bando sempre a correr. Não
falavam. Parecia mudos. Todos corriam apressados. Adiante ia um oficial e
atrás outro, acompanhado de um paisano. Estes três vinham a cavalo.

Súbito uma voz soou aos ouvidos da cabocla.

– Veja, seu ajudante. Olhe como corre o povo solto lá embaixo.

– Estas palavras tinham sido ditas pelo paisano ao militar, apontando o que
as dissera para o largo das Portas-de-Roma.

– Elas produziram em Marcelina o efeito de um choque elétrico. Tinha
reconhecido a voz de Francisco.

– Marcelina não se pode Ter mais oculta um só instante. Correu
de dentro dos arbustos, gritando: Francisco, Francisco, foi Nossa-Senhora
que te botou por aqui.

Não se pode descrever o prazer que tomou o matuto. Saltar do cavalo
abaixo e correr, louco, delirante ao encontro de sua mulher foram atos que
ele praticou a modo de impelido por uma mola magica. Apertou-a entre os braços
extasiado. Por cima de suas barbas que iam pintando, mas ainda negras, desceram-lhe
duas lagrimas nitentes. Sobre seus lábios crestados perpassou sorriso
de inefável contentamento.

– Marcelina, meu amor, que andas fazendo por aqui só, escondida? Estás
com medo dos mascates, já sei. Ah! Marcelina, Deus se lembrou de mim.
Vim fugindo dos facinorosos. Os mascates estão senhores de toda a vila.
Seu sargento-mór, tenho que já o mataram. As forças de
Luiz Soares atacaram o sobrado e levaram tudo a ferro e a fogo. Nós
resistimos, mas por fim não pudemos mais, e demos os braços.

– Já sei de tudo, Marcelina. Lá embaixo soubemos logo do que
havia. Esta tropa, que estás vendo, vem de Itamaracá por ordem
do governo de Olinda para acabar com os mascates. Eu vinha fora de mim, minha
mulher. Nem tu sabes o que fizeram os ladrões, ao passarem pelo Cajueiro.
Que fizeram eles?

– Queimaram a nossa casa, mulher, a nossa casinha, que nunca lhes fez mal.

A nossa casinha! Que dizes tu, Francisco? Pois esses endemoniados chegaram
a queimar a nossa moradinha de casa? Oh meu Deus! Cada um havia de Ter sua
parte nessa desgraça geral?! Até o nosso suor havia de pagar
pelos males dos outros?! Mas isso não há de ficar assim. Deus
há de castigar esses malvados, essas feras malfazejas!

– E que novas me dás tu de Lourenço?

– Anda ai mesmo pela vila com seu Cosme, lutando com os mascates. Mas a minha
casa, a minha casinha tão bonitinha! Tudo queimado e destruído!
Ah! malvados do inferno! A luz há de faltar a vocês na hora da
morte.

– E as lagrimas arrasaram os olhos de Marcelina, que tinha nas faces palidez
mortal, nos olhos a expressão de profunda e entranhável dor.
Não chores, mulher. Foi-se uma, faz-se outra casa. E a minha caixa
teria ardido também?

– Qual caixa?

– A nossa caixa, aquela onde tu guardavas o dinheiro. Se não a tiraste
antes, ardeu também. Tudo lá estava em cinzas.

– Ah Lourenço, lá se foi a tua fortuna. Era na caixa que eu
tinha guardado o papel que me deu seu padre Antonio no momento da despedida.
Que papel era esse?

Vamos ao Cajueiro, Francisco. Talvez ainda se possa salvar alguma coisa.
Tem paciência. Agora não é possível o que queres.
Vou aqui servindo de guia à tropa. Mas se queres ir, vai. Aqui te deixo
o cavalo, coitado! que já não pode andar de enfadado. Vê
como vais, Marcelina. Se vires alguém que te possa ofender, mete-te
no mato. Eu hei de dar contigo onde estiveres. Vou direitinho à minha
casa. Mas antes que me esqueça, quero dizer-te uma coisa: vê
se podes descobrir sinhá d. Damiana que seu Antonio Coelho prendeu
e levou consigo para entregar à justiça. Pobre senhora!

Francisco alcançou logo adiante a tropa, enquanto Marcelina, tendo
arregaçado as saias, saltara sobre a cangalha e pusera o cavalo para
trás.

A tropa que Francisco tinha guiado não era senão uma parte
das forças comandadas pelo ajudante-de-tenente.

Tinha este planejado, antes de entrar na vila, formar um como cerco que avançasse
das ruas de fora para as de dentro, a fim de apertar e sufocar a insurreição,
de modo que ela não tivesse por onde escapar.

Obedecendo a este intuito, Gil Ribeiro dividiu as forças em duas colunas,
e, ficando com a mais forte, entregou o comando da outra ao ajudante Filipe
Bandeira com o alferes Carlos Teixeira. Ele fez a sua entrada pelo lado do
ocidente, e um quarto de hora depois entrava no Pátio-do-Carmo pelo
lado do rio. Ao mesmo tempo a coluna comandada pelo ajudante Filipe Bandeira,
e habilmente encaminhada por Francisco, desembocava ai pelo Beco-do-limoeiro.
As forças inimigas estavam ainda no Pátio-do-Carmo, tendo à
sua frente Luiz Soares, Gonçalo Ferreira, e os mais importantes mascates,
seus parciais.

João da Cunha, Luiz Vidal e Filipe Cavalcanti, eram conduzidos à
cadeia por Jeronimo Paes no momento em que as duas colunas desembocaram no
pátio. Eles deviam ficar ali ocupando o lugar dos criminosos que a
multidão ainda não tinha podido soltar, em conseqüência
da tenaz resistência de Antonio Rabelo. A demais nobreza, menos Cosme
Bezerra, Jorge Cavalcanti e Manoel de Lacerda que já se achavam de
volta novamente à vila para bater os invasores, tinha fugido para o
mato. Todavia Gil encontrou já uma nova reação principiada
contra os amotinados. Grande numero de cidadãos pacíficos, indignados
com a cena do saque, tinham-se armado, e começavam a bater os que continuavam
a praticá-lo. De sorte que alguns pontos, por onde passaram as duas
colunas, as receberam com vivas demonstrações de contentamento.

Enfim, seriam dez horas da manhã quando o ajudante-de-tenente atacou
os revoltosos. O povo é vário como as ondas. Não foi
preciso muito para que, operando-se o quase fatal reviramento, logo se declarasse
pelos vencidos.

Rompeu vivíssimo fogo de uma parte sobre a outra. Mas os matutos bisonhos,
cansados e quase famintos que constituíam as forças de Luiz
Soares, não podiam resistir por muito tempo às forças
frescas, adestradas no manejo das armas e impacientes por darem tremenda lição,
que trazia Gil.

Luiz Soares, em pouco tempo convencendo-se de que a sua estrela atingia o
ocaso, tratou da retirada.

Esta operou-se por dentro do próprio convento do Carmo. Os frades,
ainda desta vez com as armas nas mãos, protegeram a causa dos estrangeiros.

Mas não foi pequeno o numero dos mortos e feridos que deixavam os
que fugiam com medo de sua própria sombra.

No mais aceso do combate, Francisco correra a soltar os três fidalgos
que eram conduzidos por um troço dirigido por Jeronimo Paes e seus
três filhos.

– Eu nunca matei ninguém, meus senhores – disse Francisco ao bando.
Mas para salvar esses homens, mato e morro; faço tudo, contanto que
lhes de a liberdade.

Miguel, ouvindo estas palavras decisivas, partiu contra ele com o facão,
e Victor imitou-o. A esse momento estavam já com o matuto algumas pessoas
de Goiana, que descarregaram terríveis golpes sobre os agressores.
Aproveitando a confusão, Francisco consegue chegar-se aos prisioneiros
e cortar-lhes as cordas que lhes prendiam os pulsos. A um dá o facão,
a outro a arma de fogo. Então eles investem terrivelmente. Pareciam
feras soltas das jaulas. Em poucos instantes Jeronimo cai como morto; tinha
sido alvo de golpes tremendos a que não pode resistir. Os filhos, porém,
ainda que feridos, levantam o procurador do povo (Jeronimo Paes dava-se esta
denominação) e fogem com ele. João da Cunha quer persegui-los,
mas de repente para, como se o mundo lhe desabara aos pés, tanto que
ouviu estas vozes de Francisco:

– Seu sargento-mór, os mascates estão vencidos. Mas o principal
para nós está ainda por fazer. Sinhá d. Damiana.

– E que é feito da senhora d. Damiana?

– Que é feito? Está no poder do principal dos mascates. Quem?
Antonio Coelho?

– Sim, senhor.

– Oh! não me digas isto, Francisco. E eu ainda aqui. vamos, corramos.
Mas aonde iremos? Para onde correremos?!

Para a casa do mascate. Correram os fidalgos e o matuto como loucos pela
rua afora. João da Cunha levava o inferno no coração.
Aquela triste nova dava-lhe a esgotar as fezes do cálix de amargura
que bebia desde a véspera. Em toda a sua vida nunca sentira tão
profunda, tão desumana dor penetrar-lhe a alma.

Todas as portas, tanto as inferiores como as superiores, estavam hermeticamente
fechadas. Do lado de dentro o silencio era profundo. Tudo indicava que na
casa não havia viva alma.

A João da Cunha, perdido em cogitações e incertezas,
só faltava desesperar.

– Meu Deus, meu Deus, que hei de fazer? Onde irei descobrir o infame? Onde
irei achar minha infeliz mulher?

Estiveram um momento curtindo silenciosos, de pé, a modo de privados
do exercício da razão, aquela angustia sem nome.

Súbito uma detonação, que parecia partir do interior
do sobrado, veio ressoar do lado de fora.

– Estão ai, estão dentro. Matou-a o malvado, exclamou o sargento-mór.
Adivinho tudo. Quis violentá-la, ela resistiu e ele matou-a. Mas eu
o matarei também. Matarei o vilão.

Lívidos, como cadáveres, atiraram-se à porta que lhes
pareceu menos resistente. A coices de arcabuz, conseguem metê-la dentro.
Voam de escadas acima como quatro sombras, quatro espectros fantásticos.
A claridade do dia chegava ao interior da casa como luz crepuscular; mas aos
olhos deles o que se apresentava eram trevas profundas. Francisco foi o primeiro
que abriu uma das portas, e João da Cunha o que se atirou para o interior
da casa, que não conhecia. O cheiro da pólvora e a nuvem de
fuma ainda ondulante indicaram a direção que eles deviam tomar.
Chegam enfim ao dormitório do negociante. Uma voz enfraquecida fez
ouvir então estas palavras:

– Não me matem, não me matem.

Aos pés do leito havia um vulto sentado e outro estendido.

– Por Nosso-Senhor-Jesus-Cristo, não acabem comigo.

– Quem és tu, miserável? Perguntou o sargento-mór.

– Era Bartolomeu, o barcaceiro. Contou tudo. Tinha estado na véspera
com o negociante. Tinha concertado esperar por ele na Borboleta; mas tendo
visto os dobrões que o negociante inadvertidamente lhe mostrara, projetou
logo apossar-se deles furtivamente. Esteve na barcaça até a
hora em que a sorte pareceu ser pelas armas dos mascates; mas tanto que soube
da entrada da tropa do governo, correu ao sobrado, calculando que Coelho seria
morto, ou ao menos preso. Chegando ai, fechou-se por dentro para afastar qualquer
suspeita, e forçou a burra. Quando a tampa cedeu à violência,
um tiro partiu de dentro, e o feriu acima do ventre. Era o tiro que eles tinham
ouvido. Em vão procurou o dinheiro que o tinha tentado. O que encontrou
foi uma pistola presa ao cofre por oculto aparelho, ali posto intencionalmente
para a fazer disparar sobre quem o violasse. E a Borboleta?

Deve de estar ainda no porto à minha espera. Os quatro amigos atiraram-se
imediatamente fora do aposento e ganharam a rua em violenta carreira para
o porto.

Capítulo XXVIII

A enormidade e a iminência do perigo abateram o grande animo da senhora-de-engenho,
a qual, percebendo levantar-se diante de seus olhos o vulto horripilante da
morte, não escolheu meios de fugir a esta fúnebre visão,
e deixou-se arrastar sem resistência e como sem consciência pelo
mercador.

De feito, ela ouvira centenas de vozes pedir do lado de fora a sua cabeça
em resgate do crime que fora aliás praticado por seu marido; vira a
casa tomada pelos amotinados, resolutos a não terem para ninguém,
e muito menos para ela, se não fosse o negociante, a menor contemplação;
conhecera enfim que sua vida, posto que à sombra da proteção
dele, não se podia considerar ainda de todo segura. Então não
hesitou, não refletiu. Pegou da mão que se lhe estendia. O instinto
da própria conservação impõe-se como uma fatalidade.
D. Damiana não podia mostrar-se superior a essa lei absoluta e impreterível.

Para Coelho a crise tinha chegado à solução natural
e única. João da Cunha, uma vez nas mãos dos inimigos,
não haveria sair delas com vida. E o homicídio, previsto pelo
mercador, não esteve longe de ser cometido nos primeiros momentos depois
da prisão do senhor-de-engenho; mas interpôs-se uma circunstancia,
menos filha do acaso do que da clemência com que o céu quis vir
a seu socorro. Os filhos de Jeronimo Paes assentaram não lhe tirar
a vida senão depois de perdida a esperança de um resgate em
dinheiro, por então muito em voga.

Coelho não pensou mais senão em efetuar a sua viagem para o
Recife. Ai esperaria a ultima palavra dos acontecimentos, que para ele não
era duvidosa. Ai realizaria o seu sonho. Mas para que este resultado não
estivesse sujeito ao mínimo contraste, urgia deixar Goiana. Demais,
as turbas achavam-se exacerbadas e podiam ter o capricho feroz de preencher
a sua vingança derramando o sangue de infeliz senhora. enfim, apresentando-se
todas estas idéias ao espirito do negociante, correu ele à casa,
meteu em se todo o ouro que tinha em segredo no cofre, e dizendo a d. Damiana
que a ia recolher em lugar onde o povo não pudesse suspeitar seu homizio,
encaminhou-se com ela em direitura para a Rua-do-rio.

D. Damiana não votava desafeição a Coelho. Ele tinha
sido, por assim escrevermos, seu companheiro de infância, e tanto bastava
para que a seus olhos o jovem europeu não aparecesse senão como
um amigo, ou um irmão. É verdade que, mais tarde, distancia
maior se estendera entre eles dois, filha da desigualdade de condição
que naqueles tempos tanto predominava nas relações sociais e
de família. Mas as tradições da primeira idade, que,
como os hieróglifos dos egípcios e os caracteres cuneiformes
dos persas, que tem atravessado as eras e dizem idéias tão duradouras
como as pedras em que existem entalhados, não se apagam, senão
com a morte, da imaginação ou, melhor, do coração
onde se gravaram e donde dizem a todo tempo a sua muda e eloqüente linguagem,
essas tradições extintas e sempre vivas prendiam irresistivelmente
a gentil senhora-de-engenho, pelo passado, ao jovem português, como
na escritura comum, o traço de união liga o verbo com o pronome,
e de duas vozes diferentes faz uma só.

Em sua consciência mais de uma vez protestou contra certas manifestações
do desdém de João da Cunha para com o negociante; e, conquanto,
melhor do que ninguém, ajuizasse da profundeza do abismo que entre
eles cavara a fatalidade, nem por isso negava a Coelho certas atenções,
aquelas que, pela própria fidalguia dos seus sentimentos, entendia
que devia ter para o antigo amigo da casa. Nunca deixou sem retribuição
os cumprimentos e as saudações do mercador, nem lhe recusou
falas respeitosas, por ocasião de se encontrarem. Seu natural espirito
de justiça levava-a até a justificar os profundos ressentimentos
de Coelho, quando compreendeu a verdadeira causa deles. ‘ Ele cuidava
– dizia d. Damiana consigo mesma – ele cuidava que poderia casar comigo. Julgava
que, tendo entrada em nossas relações, estava habilitado para
prender-se à família por laços que só o parentesco
e a igualdade de condição podem criar. ‘

Tais eram as idéias e os sentimentos de d. Damiana. Por isso, sentindo
a gravidade do momento, ela não escrupulisou acompanhar o negociante,
única tábua de salvação que nos cruzados mares
da súbita adversidade lhe aparecia como instrumento do céu.

E antes de passarmos adiante, justo é que deixemos bem claro este
ponto essencial da presente narrativa: Coelho não era indigno da confiança
que, por força das circunstancias atuais, ou por influencia irresistível
de circunstancias anteriores e remotas, depositou nele a jovem fidalga. O
amor que ele lhe consagrava, era sublime e puro; tinha origem imediata no
sentimento, não nos sentidos. O português estava na flor dos
anos, e seu caráter não se tinha poluído ainda no trato
das relações sociais. Nessa época da vida e com esta
circunstancia, o amor é mais do que um sentimento, é uma virtude.
Tende sempre a elevar-se, e nunca a rebaixar-se. O negociante amava em d.
Damiana um ente, uma criatura, um composto de qualidades corporais e imateriais,
não unicamente uma feitura plástica, uma forma física,
não obstante se acharem coligidas nessa forma todas as perfeições
que ele sonhava para o seu ideal. Sua aspiração não se
limitava à posse do olhar, do sorriso, do carinho dessa criatura; ele
aspirava, não menos do que a isto, ás suas perfeições
morais, à parte imaterial da pessoa humana, a essa porção
do ser que não é a figura corporal, o arredondado dos contornos,
o donaire do talhe, o aveludado da face e da mão, o colorido da cútis,
a vibração da voz, mas, mostrando-se intimamente ligada com
todas estas prendas não se confunde com elas, e sem se deixar ver,
porque não é visível, deixa-se adivinhar, conhecer, sentir
na bondade, na dedicação, na conformidade com o sentir da pessoa
que lhe é idêntica nas inclinações, nos gostos,
no estado espiritual que lhes é comum.

Certamente ele imaginava ser feliz ao lado dessa existência seleta,
dessa alma que constituía a essência dos seus desejos, das suas
vaidades, do seu nobre orgulho; mas essa felicidade ele nunca a imaginou de
outra forma. Por isso, tanto que viu entre suas mãos o tesouro longamente
apetecido, a única idéia que lhe passou pela mente foi a de
que cessara enfim o seu tormento e começara, pelo gozo dos bens sonhados,
o resgate dos males curtidos; a idéia de, prevalecendo-se das circunstancias,
sujeitar o ente querido e alcançado ao papel de instrumento de paixões
menos dignas, essa ele não a teve então, porque não a
tivera nunca. No coração do jovem português havia o afeto
generoso do amante, não os ardores animais do barregão.

Cortando pelas ruas exteriores, dando rodeios, atravessando becos desertos,
Coelho chegou com a senhora-de-engenho ao embarcadouro. A Borboleta era a
única embarcação surta no rio.

Como a revolta se concentrara, deste lado a vila aparecia quase deserta.
O dia estava em seu começo, mas assim as casas de morada como as de
negocio mostravam-se fechadas; e só por intervalos passavam pela frente
delas os magotes que andavam exercitando o ignóbil oficio da rapina.
Vamos embarcar, senhora – disse Coelho, descendo a margem, onde então
se viam grandes mangues de basta e estendida folhagem.

– Embarcar? inquiriu a senhora-de-engenho, não sem surpresa. Embarcar
para onde, Sr. Coelho?

– Senhora, o momento é grave, e não me dá lugar a refletir
sobre a escolha do porto de salvamento. Correremos á mercê das
águas e dos ventos, e, uma vez longe dos perigos que vos ameaçam,
pensaremos então com serenidade sobre esse objeto.

– Que estais dizendo? tornou d. Damiana, mais pálida, e porventura
mais abalada do que estava antes.

Talvez só nesse momento a sua desgraça se lhe desenhou tal
qual era na imaginação, até então tolhida e obscurecida
pelo terror que, por mais próximo da morte, devera ser maior e mais
intenso.

– Tencionais então levar-me para fora de Goiana? perguntou ela, com
tremula e quase chorosa voz.

– Certamente, minha senhora, certamente. Goiana neste momento tem para vós
sentimentos de madrasta, não de mãe. Não ouvis aqueles
tiros, aqueles ruídos sinistros, aquele vozear confuso e medonho? Eles
indicam que o povo é o triunfador, que os mascates estão senhores
da vila…

– Já sei, já sei tudo isto – interrompeu ela freneticamente.

– Pois bem. O povo é exigente, e vinga-se neste momento dos nobres.
Vosso marido, senhora minha, deve já ter acabado às mãos
dos populares. Pois se ele acabou, acabarei tantém eu – disse a senhor-de-engenho
soluçando.

– Não, isso nunca. Já não pertenceis nem a vós,
nem a ele, observou Coelho.

– E a quem pertenço então? perguntou ela com altivez.

– O destino confiou a mim a vossa guarda, e hei de salvar-vos, ainda que
a troco do meu sangue.

Sem meu marido, senhor, não quero a vida. Senhora d. Damiana! exclamou
Coelho com entranhável amargura que lhe estalara nos lábios
como se fora vesícula de fel.

É o que vos digo, Sr. Coelho – repetiu a gentil senhora com a firmeza
que indica as profundas convicções. Só agora, continuou
ela, só agora compreendo todo o horror da minha situação.
Porque fugi eu? Porque não me deixei matar pelo povo, ao lado de meu
marido?

– Porque a sorte tinha já assentado que vós devíeis
sobreviver a ele, talvez para completar uma existência que vegeta entre
as luzes e as sombras do mundo, sem experimentar outras impressões
que não sejam as que as sombras, não as luzes, despertam – respondeu
o jovem negociante em tom sentido. Mas para que falais ainda – continuou logo,
como quem se reanimava ao calor de uma inspiração súbita
– para que falais ainda em – uma existência que já deve pertencer
ao passado? A esta hora, senhora minha, deveis estar viuva, isto é,
livre.

– Sois cruel, Sr. Coelho! – retorquiu com voz amargurada a mulher do sargento-mór.
Porque trazeis ao meu espirito este fúnebre pensamento? Houve um momento
na minha vida em que cheguei a supor que em vosso coração existia
um sentimento fidalgo.

– Que quereis dizer, Sra. d. Damiana? interrogou o negociante.

Que pensei que, não obstante o rancor que tendes ao Sr. João
da Cunha, e que vós explicais atribuindo-o à contrariedade de
certo afeto que vos inspirei, não hesitaríeis um só momento
em salvardes do acabamento o objeto desse rancor, se a salvação
dependesse de vós e eu vo-la lembrasse com as lagrimas nos olhos, como
agora faço. Vejo, porém, Sr. Coelho, que o vosso ódio
é maior do que o vosso amor, e que só a minha desgraça,
esta sim não tem medida nem limite na terra.

– Pensáveis então, senhora… – retrucou o português
– Que pensáveis vós? Dizei francamente a vossa idéia.

– Ah! Quereis ouvir-me? Pois bem, senhor, escutai. O que eu pensava era muito
natural, e não era impróprio de vós nem de mim. Pensava
que, em vez dos sentimentos ferozes que tendes mais de uma vez manifestado,
deveríeis ter para meu marido antes benevolência e atenções
respeitosas.

– Esqueceis, Sra. d. Damiana, que nenhum homem que se prezasse dignamente,
beijaria jamais a mão do algoz que lhe houvesse afogado as mais caras
esperanças, que lhe tivesse destruído uma felicidade irreparável.

– Vós é que esqueceis, Sr. Coelho, o passado que devíeis
ter bem presente na memória. A meu marido deveis, não a desgraça,
mas a posição de que soubestes fazer-vos digno. Sua mão
generosa e amiga indicou-vos o caminho para a vossa independência. Por
muito tempo não tivestes nesta vila outra proteção, outro
amparo, outro pai além de João da Cunha. A vossa entrada nas
primeiras casas, a estima que para vós tiveram os mais ricos e os mais
nobres de Goiana, a quem as devestes principalmente, Sr. Coelho, quando éreis
sem relações, sem nome, e sem haveres? Não vos lembro
estas causas por magoar-vos, mas por ver se desperto em vosso coração
o nobre sentimento que sempre conheci em vós antes do fatal desastre
que levantou uma muralha entre vós e meu marido – o sentimento da gratidão.

– Sra. d. Damiana, vossas palavras trazem-me terror e confusão, disse
o jovem europeu, a modo de atordoado.

Seu espirito nadava em um mar de hesitações.

– Que esse sentimento acorde enfim, senhor. É talvez tempo ainda de
produzir sua ação consoladora. Não vos importeis comigo,
importai-vos com o homem que um dia vos tratou como se fosseis seu filho.
Correi e livrai-o do furor dos vossos parciais. Porque tanto ódio?
Porque tanta vingança?

Não pode continuar este singular dialogo, que prometia chegar a um
desenlace talvez patético e imprevisto. Bem perto dos dois interlocutores
soaram vozes confusas e retintim de armas. O chão estremeceu, batido
por um sem-número de pés que precipitada carreira movia em direitura
ao rio.

Afigurou-se então aos fugitivos uma visão sinistra, um desfecho
medonho.

– É o povo que vem em vossa procura, Sra. d. Damiana. não percamos
um só momento. Salvai-vos, senhora, salvai-vos enquanto é tempo.

Eles tinham chegado ao pé de uma das arvores que da margem estendiam
sua grande copa sobre o rio. Perto desta arvore levantava-se um armazém,
feito de tábuas, onde se fazia o embarque dos açúcares,
e o desembarque dos gêneros importados pelas barcaças, quando
a maré estava cheia e elas podiam ficar ao nível da estiva do
armazém, do lado que entrava pelo rio sobre solidas estacas. Nesse
momento a maré cheia dava ao rio a sua natural plenitude, e a Borboleta,
livrando-se sobre as águas banzeiras que acusavam a aproximação
da preamar, estava em comunicação com o tosco trapiche por meio
de uma prancha que para ele partia do embono de bombordo. Coelho, sem perder
mais um instante, arrastou d. Damiana contra a vontade dela para dentro do
armazém, e, todo preocupações e temores pela sua salvação,
indicou-lhe a Borboleta, que aparecia no fim da estiva. – Correi, senhora,
entrai na barcaça, mandai atirar dentro da água a prancha, e
ordenai, em meu nome, que sigam incontinenti rio abaixo. Nada temais, que
eles daqui não hão de passar. Contê-los-hei.

Disse, e retrocedeu acesso em brio, mas pálido como um cadáver.
Seu olhas fuzilava. Os músculos, obedecendo às impressões
nervosas, experimentavam súbitos estremecimentos. A terra parecia fugir-lhe
sob os pés, ao mesmo tempo pesados e céleres. – Meus amigos
– gritou ele, alguns passos distante do trapiche, dirigindo-se ao magote que
vinha para seu lado, até onde quereis levar o vosso desforço?
A lição satisfaz. A nobreza está vencida em Goiana. tratemos
agora de ir vencê-la no seu reduto principal – em Olinda. Não
percamos tempo.

– Então, do bando que corria com as armas nuas reluzindo ao sol, um
grito partiu, e não foi preciso mais, ouvindo-o, para que o chefe dos
mascates compreendesse que se enganara e que seus dias, esses, sim, estavam
contados. Ainda falas, mascate infame?!

Seguiu-se uma cena, só própria de canibais, mas que os excessos
das paixões humanas estão reproduzindo todos os dias, ainda
nos centros da mais adiantada civilização. Vários soldados
da tropa que chegara, e que se haviam reunido aos fidalgos e a Francisco,
ao saberem que eles vinham em demanda do negociante, de catanas desembainhadas
se atiram sobre ele e covardemente o degolam.

Ao darem de face com este repugnante espetáculo, os fidalgos estacam
horrorizados. Só um deles, a cabo de um momento de confusão,
que se diria antes remorso, pode proferir estas palavras:

– E minha mulher? Onde está ela? Onde está a senhora d. Damiana?

Na Borboleta – lembrou Luiz Vidal. Corramos. Mas eis que perto deles soa
um grito, que não só traz a tranqüilidade, mas descomunal
prazer ao espirito de todos.

– Aqui estou, minha gente. E vós salvo, Sr. João da Cunha!
Foi Nossa-Senhora-do-rosario quem vos salvou.

Os fidalgos apertaram em seus braços a senhora-de-engenho, a cujo
encontro fora Francisco o primeiro que correra.

– Em poucas horas tudo estará acabado e pacificado – exclamou o sargento-mór.
Os mascates serão vencidos, os populares hão de ter uma rude
lição.

– E até os frades também hão de ter a sua, para não
serem tão audazes e metidos nas coisas do mundo – acrescentou Luiz
Vidal. E Antonio Coelho? interrogou d. Damiana, que ainda ignorava o trágico
fim do negociante. Deste estamos livres. Hei-lo ali morto, degolado – respondeu
o sargento-mór, apontando para o cadáver que a poucos passos
se mostrava rodeado pela mó de soldados, agora ocupados em apanhar
o ouro, que, na ocasião de cair, se lhe entornara das algibeiras.

– Morto! Morto! Fostes cruéis, senhores! Exclamou como alucinada a
senhora-de-engenho. Quem praticou tamanho latrocínio? Oh meu Deus!
Que horror!

– Não foi nenhum de nós – responderam Francisco e Filipe ao
mesmo tempo.

Não foi nenhum de nós, repetiu o sargento-mór, fitando
na mulher seu olhar inflamado e a modo de pasmo. Mas eu o mataria, se fosse
eu o primeiro a encontra-lo. Era um espirito danado.

– Engana-vos. Era uma alma generosa, um bom coração; era um
mártir – respondeu d. Damiana em lagrimas. Ele ia a salvar-vos, Sr.
João da Cunha, supondo em perigo a vossa vida. Oh! meu Deus, por que
razão as grandes criaturas não se hão de entender melhor
e formar uma companhia só na terra? Mas fujamos daqui. Não posso
ter os olhos nesta desgraça que me esmaga.

E a senhora-de-engenho foi a primeira que deu o exemplo da retirada.

Era tempo de se ausentarem todos desse ponto deserto, porque Luiz Soares,
batido fortemente pelo ajudante-de-tenente Gil Ribeiro, pelo ajudante Felipe
Bandeira e pelo capitão Antonio Rabelo, demandava esse lado para escapulir-se
com sua gente. Conseguiu-o, com mais quinhentos, entre Paraibanos e portugueses.

Enfim, segundo anunciara o sargento-mór, algumas horas depois Goiana
estava pacificada.

Mas era contristador o aspecto que apresentava, como facilmente se imagina.
O saque tinha deixado nas casas vestígios profundos de sua passagem
fecunda em ruínas e desastres. O sangue manchava a terra, berço
de tantos heróis ilustres e afamados. No Pátio-do-Carmo, de
mistura com vários cadáveres pertencentes aos invasores, viam-se
alguns das forças legais, e muitos da escravatura de João da
Cunha.

Jeronimo Paes, os filhos, Belchior, e outros proeminentes vultos do partido
vencido tinham sido presos, e daí a três dias seguiam para Olinda,
no meio da tropa vitoriosa de Gil Ribeiro. Paes mal podia consigo. Recebera
durante a luta nove tiros, e inumeráveis cutiladas na cabeça.

Conta-se que, por ocasião de lhe darem na prisão a noticia
da morte de Coelho, dissera ele o seguinte, formais palavras:

– Se desta não morrer, hei de vingar-me ainda de João da Cunha.
O que ele devia a Antonio Coelho há de pagar a mim, quando tivermos
de ajustar as nossas contas. Estão muito anchos com o sucesso, esses
infames mazombos. Já pensam que os mascates se acabaram de uma vez.
Estão enganados. Hei de ver ainda João da Cunha e Cosme Bezerra
correrem as ruas de Goiana, amarrados com cordas pelas minhas mãos,
como se fossem negros fugidos.

Estas palavras foram proféticas. Mas não antecipemos acontecimentos
que tem lugar próprio na continuação desta historia.

Diz-se que Zefinha faleceu a cabo de algumas semanas, depois do lastimoso
fim de Antonio Coelho, e da prisão do pai e dos irmãos. Atribuem
seu falecimento à profunda impressão que produziram nela tão
estranhos e cruéis golpes.

Porque não havia de ser assim?

Era uma excelente alma a rapariga.

Capítulo XXIX

Lourenço tinha tirado para o engenho à desfilada, e antes de
chegar ai nuvens de fumo já lhe tinham indicado o que ele suspeitava,
pelo que fora vendo ao sair da vila. Em seu trajeto do Cajueiro para esta,
os bandoleiros de Pedro de Lima tinham posto fogo nos canaviais, e casas fechadas
ou desamparadas, que ardiam agora como se a terra por ali, na combustão
primitiva, lhes houvesse comunicado o incêndio.

– Não há que duvidar – disse o rapaz. Andaram por aqui os ladrões.
Estiveram no engenho, e quem sabe o que por lá fizeram?

Como tinham cortado quase por dentro do mato os bandoleiros, pode o rapaz
chegar ao Cajueiro sem com eles se encontrar; e cedo testemunhou com seus
próprios olhos, dando de face com a casa de Vitorino, o estrago, o
desbarato, as ruínas, que ai deixara a horda sem freio.

Das portas algumas tinham sido arrancadas, outras postas por terra. Só
as janelas estavam nos seus lugares.

Lourenço não pode fugir de entrar, não obstante sua
pressa em chegar à casa grande. O estado interior da habitação
do almocreve não era mais animador do que o seu estado exterior. Tamboretes,
caixas de madeira, giraus de varas, potes, estavam despedaçados e destruídos.
Lia-se ali só perversidade, porque nesses moveis e vasilhas ninguém
suspeitava a existência de objetos que pudessem tentar a cobiça,
e explicar até certo ponto a sua violação ou arrombamento.
E para onde teriam fugido as mulheres? inquiriu de se para se o matuto. Ao
montar de novo, o espirito cheio de pesar e incertezas, lançou Lourenço
as vistas casualmente ao chiqueiro, onde Joaquina tinha o cevado, que devia
dar uma fartadela à família no dia de S.Thomé. A sangueira,
que cobria o chão desde o chiqueiro até a meia-agua de palha,
a cuja sombra as mulheres lavavam a sua roupa, fazia certo que o cevado passara
pela execução capital antes do dia aprazado, e que se tinham
aproveitado dele, não a família, que devia encher de alegrias,
mas os salteadores e assassinos. O banco de lavar roupa, coberto de sangue,
e aos pés dele uns restos de palha queimada indicavam que ali mesmo
se praticara o cruento sacrifício.

Triste e colérico ao mesmo tempo, Lourenço prosseguiu o caminho.

Adiante apareceu-lhe a casa de Manoel das Dores, matuto muito pegado com
Victorino, de quem se dizia contra-parente. Este sujeito era solteirão
do lugar. Vivia muito metido consigo mesmo, e só uma vez ou outra surgia
sem ser esperado em casa dos vizinhos.

Ainda de longe o rapaz reconheceu que por ali passara também o devastador
soão. As portas, às escancaras, deixavam à mostra a destruição
efetuada dentro. Não havia ficado ai pedra sobre pedra. Pela estreita
sala viam-se espalhadas esteiras e roupas velhas. O chão fora revolvido
à ponta de espada ou de ferro-de-cova. Praticando assim, os salteadores
deixavam manifesta a sua intenção. Tinham procurado dar com
o mealheiro em que se dizia guardava o velho a pratinha que podia ajuntar.

– Oh meu Deus! Não vejo ninguém. Onde se meteu esse povo? Nem
morador nem negro do engenho! Parece que todos fugiram para o mato com medo
dos ladrões.

Estas palavras escaparam dos lábios de Lourenço como uma dor
que não cabia no coração.

Adiante da casa do velhote, era a de Sabino, em cuja companhia morava Saturnino.
Do lado de fora, ao pé da porta da frente, via-se um volume imóvel,
no meio de uma poça de sangue, por cima do qual esvoaçava um
enxame de moscas. Era o cão de Sabino, que por ser fiel defensor da
morada de seu senhor, e ter feito fortes e repetidas investidas sobre os assaltantes,
para impedir que entrassem, recebera uma bala, que o deixou por terra, com
a cabeça aberta e a língua a nadar sobre sanguinolento escumeiro.

Começou a impressionar-se Lourenço com esta solidão,
este deserto cruel em que só se lhe deparavam indícios de atrocidades
e carnificinas, de fraqueza e terror.

Tinha já descoberto o oitão da casa grande e ia passar para
ela por entre a capela e o pomar, quando um vulto se lhe apresenta do lado
dos canaviais. Afirmando a vista, reconheceu Marianinha.

Correu para ela tomado de súbita alegria. As antigas reservas e aborrecimentos
não lhe lembraram nesse momento. A presença da moça fora
como um raio de luz que atravessara as densas sombras que enchiam o espirito
do rapaz.

– Você por aqui, Marianinha?! Estou cansado de ver solidão,
estragos e sangue. Onde está sua gente? Não ouço nenhum
rumor, nem vejo ninguém na casa grande. Que quer dizer isto?

– A primeira resposta da moça foram as lagrimas. Depois, em rápidas
palavras, ela contou toda a desgraça, ou antes a serie de desgraças
de que o engenho fora teatro momentos antes.

– Ouvindo a fúnebre narração, Lourenço não
soube o que dizer por alguns instantes. Ficou a modo de privado, do uso da
razão. O pesar, a cólera, o desejo de vingar-se o tiveram entre
o idiotismo e a loucura. O estado melindroso de suas faculdades aumentou ainda
mais, quando ele soube que no engenho não havia ninguém com
quem contar para ir em socorro dos que estavam precisando dele na vila. Alguns
corpos sem vida era só o que restava das forças que tinham ficado
para defesa da casa grande. Os negros que no combate não tinham caído
mortos ou feridos, esses haviam fugido para o mato, determinados a não
voltarem segunda vez para a escravidão.

– Para contar o acontecido, Marianinha parara ao pé da ingazeira centenaria
que se levantava de um dos lados do caminho, e que com outras formava uma
como galeria por cima do braço de rio que cortava por dentro do cercado.
Foi ai, na sombra e no retiro, que davam mais solenidade ás suas palavras,
mais gravidade a seus prantos, que ela desfiou o rosário dos episódios
de que tinha conhecimento. Quando chegou ao da morte de Victorino, a pobre
rapariga entrou a chorar como louca.

– – Vamos para fora, Marianinha, disse Lourenço, vencendo a custo
sua comoção. Quero ver sua mãe. Vamos, sim, disse a moça.
Eu tinha vindo em busca de Saturnino para ajudar minha mãe…

– Ajudá-la a que…?

Você vai já saber, Lourenço – respondeu a moça,
deixando-se banhar cada vez mais em suas aflitas lagrimas. Do lado de fora
da galeria, à luz livre da manhã, luz graciosa e tépida
que parecia um sorriso de noiva, luz que patenteava os mínimos acidentes
da natureza, pode Lourenço ver melhor Marianinha.

Trazia ela os cabelos revoltos, avermelhados os olhos de muito chorar, crestada
a macia pelúcia das faces, que não obstante mais acesas se mostravam
de natural rubor. Mas esses olhos, posto que chorosos, tristes e afligidos,
eram ainda tão matadores, tão ternos, que parecia concentrarem
em se toda a suavíssima beleza, esparzida pelas várzeas, pelos
vales distantes, na luz que caia do céu como chuva de ouro, nas flutuações
da folhagem, na frescura das vastas sombras, atiradas como leitos de paz e
tranqüilidade no meio da solidão rica de esplendores e cantos.

Entraram na capela pela portinha da sacristia.

Ao penetrar na estreita e sombria nave, o espetáculo que a Lourenço
se mostrou, foi o seguinte:

No meio da igreja, ao lado de um monte de terra fresca, jazia um cadáver;
era o de Victorino. Entre esse cadáver e o monte, uma mulher tirava
do chão onde estava abrindo uma cova, pás de terra, que atirava
sobre a que havia fora. Era Joaquina.

Lourenço quase a não conheceu, tão demudado estava o
resto da infeliz. A dor envelhecera-a em poucas horas. A dor tem mais violência
e rapidez na sua obra do que o próprio tempo.

– Joaquina só se deixava ver da cintura para cima. A outra parte do
corpo estava metida na cova. Os cabelos, em sua maior parte embranquecidos
pelas necessidades usuais da vida do pobre, e agora pelo sopro da adversidade
que lhe enrelegara os últimos alentos, caindo sobre as faces murchadas
e macilentas, davam-lhe uma feição que gerava vexame em quem
a via.

– Sem dizer uma palavra sequer, Lourenço que aprendera de Marcelina
a Ter para os cadáveres pias demonstrações, ajoelhou-se
aos pés do corpo de Victorino, rezou em silencio sua oração,
e, erguendo-se, aproximou-se de Joaquina, tomou-lhe a pá das mãos
e pôs em lugar dela a prosseguir o ultimo trabalho que o morto exigia
dos vivos na terra. A mãe e a filha, mudas e taciturnas, acompanharam
com suas lagrimas as que o rapaz verteu, abrindo o leito final do seu vizinho,
amigo de seu pai e quase seu parente, a quem votava estima e prestava respeito.

– Chegou enfim o momento de ser entregue à sepultura o corpo do finado.
O pranto das mulheres redobrou. Marianinha fazia exclamações
de cortar o coração. Joaquina carpia-se inconsolável,
envolvendo com o nome do marido o da filha mais velha que lhe fora arrebatada
momentos antes da perda do primeiro. A mão tremula, o braço
hesitante, começou Lourenço a impelir para dentro da cova, depois
de se haver sumido nela para sempre o seu mudo habitador, com a pá
que lhe pesava como barra de ferro, a terra acumulada nas bordas. A tristeza
era profunda, solene o momento, indescritível o espetáculo.
Que será de mim sem meu marido? exclamou Joaquina soluçando.

Que será de mim sem meu pai? acrescentou Marianinha, desfazendo-se
em lagrimas e suspiros. Lourenço tinha posto na cova a ultima pá
de terra.

Sua mão descaíra sobre o cabo do instrumento.

Por impulso irresistível de espirito, ele voltou-se para as mulheres,
ouvindo aquelas palavras, e disse-lhes:

– E onde estão os outros filhos de Deus? Onde está meu pai?
Onde está minha mãe? Onde estou eu? Deus é Deus em toda
a parte, e quando tira um arrimo ao necessitado, já tem posto outro
diante dos olhos dele.

Ouvindo estas palavras, Marianinha sentiu descer-lhe ao intimo do coração
um como bálsamo reparador e divino. Ergueu os olhos ao rapaz. estavam
inundados de um clarão suave. Havia ali talvez um agradecimento que
lhe dirigia pela doce esperança que, depois de tantas contrariedades,
penas e agonias, muitas delas ocasionadas por ele próprio, ressurgia
agora, posto que banhada em prantos, no solo crestado, que de repente se tornava
fresco e fecundo ao calor dessa bendita consolação.

Nesse momento ouviram bater a porteira do engenho, e logo após o estrepito
das pisadas de um animal que corria à toda a brida. Lourenço
lança-se à porta da igreja, a fim de ver quem era o cavaleiro,
e dá com olhos em Marcelina.

O conforto no coração de Joaquina e de Marianinha aumentou
com a chegada da cabocla, e especialmente depois que souberam que Francisco
estava na vila, e que os mascates naquele momento deviam ter já perdido
a mão.

Lourenço quis voltar imediatamente a Goiana, mas Marcelina não
consentiu que o fizesse, dizendo-lhe que em pouco tempo Francisco se acharia
com eles.

De feito, não se meteram duas horas que o matuto se reuniu à
família, trazendo a importante nova da vitoria. Para Marianinha a vitoria
maior foi a que o matuto exprimiu nestas palavras:

Não chores, Marianinha. Perdeste teu pai, mas ali tens teu marido.
E indicou Lourenço que, com os olhos pregados na imagem do Crucificado,
se mostrava nesse momento diante do altar, inteiramente alheio ao que se falava
a seu lado.

Eis em que estava absorvido o rapaz.

Quando viera de Goiana horas antes, encontrara caído, entre a casa
de Victorino e a de Manoel das Dores, um bandoleiro de Pedro de Lima à
sombra de uma arvore. O malfeitor tinha passado a noite em claro, e na adega
do senhor-de-engenho fora do que mais entraram pelo vinho generoso, o qual,
dando-lhe na fraqueza, o impossibilitou para preencher o seu oficio naquele
dia. Em uma das mãos tinha ainda um saco, de que marejava sangue.

Lourenço saltou do cavalo abaixo, tirou o saco das mãos do
dono que estava ressonando, e abriu-o para ver o que continha. Era a cabeça
do cevado de Joaquina, com que o salteador tencionava aumentar o almoço
que por eles devia estar esperando, segundo calculava, em casa de Coelho ou
de Paes.

Teve então o rapaz a idéia de tomar uma vingança original.
Com cordas do seu cavalo suspendeu por baixo dos braços o bandido ao
alto da arvore. Ligou um pé ao outro, para que não tivesse meios
de passar as pernas no tronco, e desprender os braços, que atou pelos
pulsos na altura da cabeça da vitima, porém afastados. Enfim
o todo figurava uma crucificação.

Planejava Lourenço queimar vivo o infeliz. Além de ser de seu
natural mau, acabava de ver os males trazidos pela horda de que o malfeitor
fazia parte, à inofensiva propriedade de pessoas de seu conhecimento
e estima. Apanhara-o mesmo com o roubo na mão, praticado na casa a
que mais se sentia preso por gratos elos dentre todas as casas das vizinhanças.
Enfim, vinha da vila trazendo o coração repleto de fel e chama
pelo que ai faziam desde a noite anterior os companheiros do malfeitor. Por
tudo isso não hesitou em levar a efeito a abominável inspiração
do seu ódio e da sua maldade. Quem o visse então, o acharia
outro do que era. A brandura de coração, obra de Marcelina,
tinha cedido o lugar, que não era ainda exclusiva propriedade sua,
à paixão animal, que o acompanhava do berço. A educação
pode muito, quando ajudada de muitas lições e exemplos e ao
cabo de tempo bastante, converter, pelo processo que em fisiologia é
ainda um mistério, o espinho original em rosa filha do artificio, da
delicadeza e da perseverança.

Como tinha pressa, Lourenço deixara ai bem segura a sua presa, calculando
sujeitá-la ao repugnante suplicio depois de vencidos os inimigos.

Agora, porém, casualmente erguendo as vistas ao crucificado, lembrara-lhe
a crucificação, de que um momento o tinham feito esquecer-se
os últimos acontecimentos.

Francisco aproximou-se do rapaz, bateu-lhe no ombro e perguntou-lhe a causa
do seu enleio.

– Vosmecê não viu suspenso na gameleira do caminho o cabra que
matou o porco de sinhá Joaquina? tornou ele.

– Vi, sim. Sabes quem era? Leonardo, sobrinho de Gonçalo Ferreira.
Quem foi que lhe fez aquela crueldade? Coitado! Por um pouquinho não
morreu.

– Pois eu estava agora mesmo pensando em ir acabar de matar aquele ladrão,
aquele assassino.

– Quem? Tu, Lourenço?

– Eu mesmo, sim senhor.

– Não digas isto. Estás já um homem e deves pensar melhor.
Até onde quererás levar o teu mal natural?

Mas então eu não devia ter feito o que fiz? o ladrão
não botou portas abaixo, não pôs fogo nos canaviais e
nas casas dos outros, não tirou o que não era seu?

– Fez tudo isso, mas tu não és juiz, não és Deus
para julgar os homens.

Eu pensei – replicou o rapaz com ironia – que qualquer homem podia por suas
mãos vingar-se de um malfazejo, matar um malvado que tivesse tirado
a vida a muita gente. Estás enganado. Nem eu te quero para palmatória
ou espada do mundo. Sabes o que fiz quando vi o pobre gemendo e esperneando,
pendurado, sem saber o que fazer para soltar-se? subi-me ao pau, cortei as
cordas e disse a Leonardo que corresse, que fugisse para não cair no
poder dos soldados do ajudante-de-tenente. Foge dessas maldades, Lourenço,
foge delas. Deus não há de permitir, por esta hora em que estou
falando, que pratiques ainda ações como essa. Olha. Eu te quero
para bom, e não para mau. Quero-te para servires de arrimo aos teus
na velhice. Quero-te para casares com esta pobre menina, que hoje mais do
que nunca precisa de quem olhe por ela, e que está morrendo de te querer
bem.

E indicou a filha de Victorino.

Lourenço, que tivera os olhos postos no chão durante todo o
tempo em que Francisco discorria com tão boa moral, levou-os à
cova, a Marianinha, ao Crucificado, ao templo – morada de Deus, seja o templo
católico, judaico, chinês ou árabe – e não disse
nada.

Marianinha cruzou os dela, ainda rasos de lagrimas, com os do rapaz, e enrubesceu.

Mais corada não se mostra fresca rosa de maio, aljofrada pelo orvalho
da madrugada.

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