O Pai da Idéia

Lima Barreto

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Tendo irrompido na capital de certo país uma epidemia de moléstia terrível que matava milhares de pessoas por dia, a junta do governo se viu obrigada a fazer o serviço compulsório de coveiros e requisitar palácios para hospitais. Um mé­dico modesto, mas sábio, passado o flagelo, saiu de sua mo­déstia e escreveu num jornal ou numa revista de pouca importância, um artigo simples, claro, sem arrebiques de pés­sima literatura pernóstica, sem fumaças de ciência e de clínica, lembrando a conveniência de se criarem mais hospitais públicos e situá-los em diversas zonas da cidade, para sem­pre poderem eles atender à população eficazmente, nas épocas normais e anormais.

Pouca gente leu o artigo do honesto facultativo, mas todos os seus colegas o fizeram, sem que, entretanto, nada disses­sem logo.

Passa-se um mês, quando já todos estavam esquecidos das palavras do bom esculápio sem trombetas, bulha e mati­nada, quando apareceu no principal jornal da cidade um ar­tigo desmedido, escrito com o bolor de vocábulos antigos, re­cheado de citações e exemplos de outras terras e termos hí­bridos do grego e do hebraico, repetindo as sugestões do velho prático que lembrara a criação de hospitais semeados pela capital do país.

Apesar do assunto ser o mesmo, sem discrepância alguma, o nome de quem aventou a idéia pela primeira vez, cujo nome era Mendonça, não foi citado.

Na câmara, um outro facultativo, que era deputado mui­to famoso pela sua clínica nas altas rodas da cidade, apresen­tou um projeto, calcado nas idéias do doutor Mendonça, mas não o citou, fazendo isso várias vezes com o doutor plagiário daquele, que se chamava Cavalcante.

Os jornais pelos seus cronistas, gabaram muito o projeto, e, nas suas crônicas e tópicos, não se amedrontavam em re­petir os nomes do doutor Cavalcante e do deputado doutor Azevedo.

Toda a gente ficou crente de que a idéia era do doutor Cavalcante e essa convicção ainda se tornou mais forte quan­do apareceu urna crônica do doutor Juventa, num popular jornal noturno, atribuindo toda a glória da iniciativa aos seus dois colegas, Cavalcante e Azevedo.

Esse doutor Juventa era tido em grande conta, não por ser verdadeiramente grande em qualquer coisa, apesar de ser médico, advogado, poeta, literato, político, estrategista, etc.; era tido em grande conta, por ser um homem feliz – menos com os seus doentes, diziam os maldosos.

Nada sabemos disso; e o certo porém, é que o artigo en­terrou para sempre o nome do simplório doutor Mendonça.

Assim são as coisas naquele país…

Careta, Rio, 14-2- 1920

 

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