O Primo Basílio

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Capítulo IV

Capítulo V

Capítulo VI

CAPÍTULO 1

Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge fechou o volume de
Luís Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltaire
de marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse:
— Tu não te vais vestir, Luísa?
— Logo.
Ficara sentada à mesa a ler o Diário de Noticias, no seu roupão
de manhã de fazenda preta, bordado a soutachet com largos botões
de madrepérola; o cabelo louro um pouco desmanchado, com um tom seco
do calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina,
de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea das louras;
com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha, e, no movimento
lento e suave dos seus dedos, dois anéis de rubis miudinhos davam cintilações
escarlates.
Tinham acabado de almoçar.
A sala esteirada, alegrava, com o seu teto de madeira pintado a branco, o
seu papel claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo; fazia um grande
calor; as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar
nas vidraças, escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio recolhido
e sonolento de manhã de missa; uma vaga quebreira amolentava, trazia
desejos de sesta, ou de sombras fofas debaixo de arvoredos, no campo, ao pé
d’água; nas duas gaiolas, entre as bambinelas de cretone azulado,
os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas arrastava-se
por cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o açúcar
mal derretido, enchia toda a sala dum rumor dormente.
Jorge enrolou um cigarro, e muito repousado, muito fresco na sua camisa de
chita, sem colete, o jaquetão de flanela azul aberto, os olhos no teto,
pôs-se a pensar na sua jornada ao Alentejo. Era engenheiro de minas,
no dia seguinte devia partir para Beja, para Évora, mais para o sul
até São Domingos; e aquela jornada, em julho, contrariava-o
como uma interrupção, afligia-o como uma injustiça. Que
maçada por um verão daqueles! Ir dias e dias sacudido pelo chouto
dum cavalo de aluguer, por esses descampados do Alentejo que não acabam
nunca, cobertos dum rastolho escuro, abafados num sol baço, onde os
moscardos zumbem! Dormir nos montados, em quartos que cheiram a tijolo cozido,
ouvindo em redor, na escuridão da noite tórrida, grunhir as
varas dos porcos! A todo o momento sentir entrar pelas janelas, passar no
ar o bafo quente das queimadas! E só!
Tinha estado até então no ministério, em comissão.
Era a primeira vez que se separava de Luísa; e perdia-se já
em saudades daquela salinha, que ele mesmo ajudara a forrar de papel novo
nas vésperas do seu casamento, e onde, depois das felicidades da noite,
os seus almoços se prolongavam em tão suaves preguiças!
E cofiando a barba curta e fina, muito frisada, os seus olhos iam-se demorando,
com uma ternura, naqueles móveis íntimos, que eram do tempo
da manhã; o velho guarda-louça envidraçado, com as pratas
muito tratadas a gesso-cré, resplandecendo decorativamente; o velho
painel a óleo, tão querido, que vira desde pequeno, onde apenas
se percebiam, num fundo lascado, os tons avermelhados de cobre dum bojo de
caçarola e os rosados desbotados dum molho de rabanetes! Defronte,
na outra parede, era o retrato de seu pai: estava vestido à moda de
1830, tinha a fisionomia redonda, o olho luzidio, o beiço sensual;
e sobre a sua casaca abotoada reluzia a comenda de Nossa Senhora da Conceição.
Fora um antigo empregado do Ministério da Fazenda, muito divertido,
grande tocador de flauta. Nunca o conhecera, mas a mamã afirmava-lhe
“que o retrato só lhe faltava falar”. Vivera sempre naquela
casa com sua mãe. Chamava-se Isaura: era uma senhora alta, de nariz
afilado, muito apreensiva; bebia ao jantar água quente; e ao voltar
um dia do lausperene da Graça morrera de repente, sem um ai!
Fisicamente, Jorge nunca se parecem com ela. Fora sempre robusto, de hábitos
viris. Tinha os dentes admiráveis de seu pai, os seus ombros fortes.
De sua mãe herdara a placidez, o gênio manso. Quando era estudante
na Politécnica, às oito horas recolhia-se, acendia o seu candeeiro
de latão, abria os seus compêndios. Não freqüentava
botequins nem fazia noitadas. Só duas vezes por semana, regularmente,
ia ver uma rapariguita costureira, a Eufrásia, que vivia ao Borratem,
e nos dias em que o Brasileiro, o seu homem, ia jogar o boston ao club, recebia
Jorge com grandes cautelas e palavras muito exaltadas; era enjeitada te no
seu corpinho fino e magro havia sempre o cheiro relentado duma pontinha de
febre. Jorge achava-a romanesca, e censurava-lho. Ele nunca fora sentimental:
os seus condiscipulos, que liam Alfred de Musset suspirando e desejavam ter
amado Margarida Gautier, chamavam-lhe proseirão, burguês: Jorge
ria; não lhe faltava um botão nas camisas, era muito escarolado,
admirava Luis Figuier, Bastiat e Castilho, tinha horror a dívidas,
e sentia-se feliz.
Quando sua mãe morreu, porém, começou a achar-se só:
era no inverno, e o seu quarto nas traseiras da casa, ao sul, um pouco desamparado,
recebia as rajadas de vento na sua prolongação uivada e triste;
sobretudo à noite, quando estava debruçado sobre o compêndio,
os pés no capacho, vinham-lhe melancolias lânguidas: estirava
os braços com o peito cheio dum desejo; quereria enlaçar uma
cinta fina e doce, ouvir na casa o frou-frou dum vestido! Decidiu casar. Conheceu
Luísa, no verão, à noite, no Passeio. Apaixonou-se pelos
seus cabelos louros, pela sua maneira de andar, pelos seus belos olhos castanhos
muito grandes. No inverno seguinte, foi despachado, e casou. Sebastião,
o seu íntimo amigo, o bom Sebastião, o Sebastiarrão,
tinha dito, com uma oscilação grave da cabeça, esfregando
vagarosamente as mãos:
— Casou no ar! casou um bocado no ar!
Mas Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa; tinha cuidados
muito simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho,
como um passarinho amiga do ninho e das cadeias do macho: e aquele serzinho
louro e meigo veio dar à sua casa um encanto seno.
É um anjinho cheio de dignidade! — dizia então Sebastião,
o bom Sebastião, com a sua voz profunda de basso.
– Estavam casados havia três anos. Que bom que tinha sido! Ele
próprio melhorara; achava-se mais inteligente, mais alegre… E recordando
aquela existência fácil e doce, soprava o fumo do charuto, a
perna traçada, a alma dilatada, sentindo-se tão bem na vida
como no seu jaquetão de flanela!
– Ah! — fez Luísa de repente, toda admirada para o jornal,
sorrindo.
– Que é?
— É o primo Basílio que chega!
E leu alto, logo:

“Deve chegar por estes dias a Lisboa, vindo de Bordéus, o Sr.
Basílio de Brito, bem conhecido na nossa sociedade. S. Exa que, como
é sabido, tinha partido para o Brasil, onde se diz reconstituíra
a sua fortuna com um honrado trabalho, anda viajando pela Europa desde o começo
do ano passado. A sua volta à capital é um verdadeiro júbilo
para os amigos de S. Exa que são numerosos”.

— E são! — disse Luísa, muito convencida.
— Estimo, coitado! — fez Jorge, fumando, anediando a barba com
a palma da mão. — E vem com fortuna, hein?
– Parece.
Olhou os anúncios, bebeu um gole de chá, levantou-se, foi abrir
uma das portadas da janela.
— Oh Jorge, que calor que vai lá fora, santo Deus! -. Batia as
pálpebras sob a irradiação da luz crua e branca.
A sala, nas traseiras da casa, dava para um terreno vago cercado dum tabuado
baixo, cheio de ervas altas e duma vegetação de acaso; aqui,
ali, naquela verdura crestada do verão, largas pedras faiscavam, batidas
do sol perpendicular; e uma velha figueira-brava, isolada no meio do terreno,
estendia a sua grossa folhagem imóvel, que, na brancura da luz, tinha
os tons escuros do bronze. Para além eram as traseiras de outras casas,
com varandas, roupas secando em canas, muros brancos de quintais, árvores
esguias. Uma vaga poeira embaciava, tomava espesso o ar luminoso.
— Caem os pássaros! — disse ela cerrando a janela. — Olha
tu pelo Alentejo. agora!
Veio encostar-se à voltaire de Jorge, passou-lhe lentamente a mão
sobre o cabelo preto e anelado. Jorge olhou-a, triste já da separação:
os dois primeiros botões do seu roupão estavam desapertados;
via-se o começo do peito de uma brancura muito tenra, a rendinha da
camisa: muito castamente Jorge abotoou-lhos.
— E os meus coletes brancos? — disse.
— Devem estar prontos.
Para se certificar chamou Juliana.
Houve um ruído domingueiro de saias engomadas. Juliana entrou, arranjando
nervosamente o colar e o broche. Devia ter quarenta anos e era muitíssimo
magra. As feições, miúdas, espremidas, tinham a amarelidão
de tons baços das doenças de coração. Os olhos
grandes, encovados, rolavam numa inquietação, numa curiosidade,
raiados de sangue, entre pálpebras sempre debruadas de vermelho. Usava
uma cuia de retrós imitando tranças, que lhe fazia a cabeça
enorme. Tinha um tic nas asas do nariz. E o vestido chato sobre o peito, curto
da roda, rufado pela goma das salas — mostrava um pé pequeno,
bonito, muito apertado em botinas de duraque com ponteiras de verniz.
Os coletes não estavam prontos, disse com uma voz muito lisboeta, não
tivera tempo de os meterem goma.
— Tanto lhe recomendei, Juliana! — disse Luísa. —
Bem, vá. Veja como se arranja! Os coletes hão de ficar à
noite na mala!
E apenas ela saiu:
— Estou a tomar ódio a esta criatura, Jorge!
Há dois meses que a tinha em casa e não se pudera acostumar
à sua fealdade, aos seus trejeitos, à maneira aflautada de dizer
chapiéu, tisoiras, de arrastar um pouco os rr, ao ruído dos
seus tacões que tinham laminazinhas de metal: ao domingo, a cuia, o
pretensioso do pé, as luvas de pelica preta arrepiavam-lhe os nervos.
— Que antipática!
Jorge ria:
— Coitada, é uma pobre de Cristo! — Depois, que engomadeira
admirável! No ministério examinavam com espanto os seus peitilhos!
— O Julião diz bem: eu não ando engomado, ando esmaltado!
Não é simpática, não, mas é asseada, é
apropositada…
E levantando-se, com as mãos nos bolsos das suas largas calças
de flanela:
— E, enfim, minha filha, a maneira como ela se portou na doença
da tia Virgínia… Foi um anjo para ela! — Repetiu com solenidade:
De dia, de noite, foi um anjo para ela! Estamos-lhe em dívida, minha
filha! — E começou a enrolar um cigarro com a fisionomia muito
séria.
Luísa, calada, fazia saltar com a pontinha da chinela a orla do roupão;
e examinando fixamente as unhas, a testa um pouco franzida, pôs-se a
dizer:
— Mas enfim, se eu me embirro com ela, não me importa, posso bem mandá-la
embora.
Jorge parou, e raspando um fósforo na sola do sapato:
— Se eu consentir, minha rica… É que é uma questão
de gratidão, para mim!
Ficaram calados. O cuco cantou meio-dia.
— Bem, vou à vida — disse Jorge. Chegou-se ao pé dela,
tomou-lhe a cabeça entre as mãos.
— Viborazinha! — murmurou, fitando-a muito meigamente.
Ela riu. Ergueu para ele os seus magníficos olhos castanhos, luminosos
e meigos. Jorge enterneceu-se, pôs-lhe sobre as pálpebras dois
beijos chilreados. E torcendo-lhe o beicinho com uma meiguice:
— Queres alguma coisa de fora, amor?
Que não viesse muito tarde.
Ia deixar uns bilhetes, ia numa tipóia, era um pulo…
E saiu, feliz, cantando com a sua boa voz de barítono:

Dio dell‘oro,
Del mondo, Signor
La la ra, la ra.

Luísa espreguiçou-se. Que seca ter de se ir vestir! Desejaria
estar numa banheira de mármore cor-de-rosa, em água tépida,
perfumada, e adormecer! Ou numa rede de seda, com as janelas cerradas, embalar-se,
ouvindo música! Sacudiu a chinelinha: esteve a olhar muito amorosamente
o seu pé pequeno, branco como leite, com veias azuis, pensando numa
infinidade de coisinhas: — em meias de seda que queria comprar, no farnel
que faria a Jorge para a jornada, em três guardanapos que a lavadeira
perdera…
Tornou a espreguiçar-se. E saltando na ponta do pé descalço,
foi buscar ao aparador, por detrás duma compota, um livro um pouco
enxovalhado, veio estender-se na voltaire, quase deitada e, com o gesto acariciador
e amoroso dos dedos sobre a orelha, começou a ler, toda interessada.
Era a Dama das Camélias. Lia muitos romances; tinha uma assinatura,
na Baixa, ao mês. Em solteira, aos dezoito anos, entusiasmara-se por
Walter Scott e pela Escócia; desejara então viver num daqueles
castelos escoceses, que têm sobre as ogivas os brasões do clian,
mobilados com arcas góticas e troféus de armas, forrados de
largas tapeçarias, onde estão bordadas legendas heróicas,
que o vento do lago agita e faz viver: e amara Ervandalo, Morton e lvanhoé,
temos e graves, tendo sobre o gorro a pena de águia presa ao lado pelo
cardo da Escócia de esmeraldas e diamantes. Mas agora era o moderno
que a cativava, Paris, as suas mobílias, as suas sentimentalidades.
Ria-se dos trovadores, exaltara-se por Mr. de Camors e os homens ideais apareciam-lhe
de gravata branca, nas ombreiras das salas de baile, com um magnetismo no
olhar, devorados de paixão, tendo palavras sublimes. Havia uma semana
que se interessava por Margarida Gautier; o seu amor infeliz dava-lhe uma
melancolia enevoada; via-a alta e magra, com o seu longo xale de caxemira,
e os olhos negros cheios de avidez da paixão e dos ardores da tísica;
nos nomes mesmo do livro — Júlia Duprat, Armando, Prudência,
achava o sabor poético duma vida intensamente amorosa; e todo aquele
destino se agitava, como numa música triste, com ceias, noites delirantes,
aflições de dinheiro, e dias de melancolia no findo dum coupé
quando nas avenidas do Bois, sob um céu pardo e elegante, silenciosamente
caem as primeiras neves.
— Até logo, Zizi — gritou Jorge do corredor, ao sair.
— Olha!
Ele veio com a bengala debaixo do braço, apertando as luvas.
— Não apareças muito tarde, hein? Escuta, traze-me uns
bolos do Baltresqui para a D. Felicidade. Ouve. Vê se passas pela Madame
François que me mande o chapéu. Escuta.
— Que mais, bom Deus?
— Ah! não! Era para ires ao livreiro que me mande mais romances…
Mas está fechado!
Foi com duas lágrimas a tremer-lhe nas pálpebras que acabou
as páginas da Dama das Camélias. E estendida na voltaire, com
o livro caído no regaço fazendo recuar a película das
unhas, pôs-se a cantar baixinho, com ternura, a ária final da
Traviata:

Addio, del Passato…”

Lembrou-lhe de repente a notícia do jornal, a chegada do primo Basílio…
Um sorriso vagaroso dilatou-lhe os beicinhos vermelhos e cheios. — Fora
o seu primeiro namoro, o primo Basílio! Tinha ela então dezoito
anos! Ninguém o sabia, nem Jorge, nem Sebastião…
De resto fora uma criancice: ela mesmo, às vezes, ria, recordando as
pieguices ternas de então, certas lágrimas exageradas! Devia
estar mudado, o primo Basílio. Lembrava-se bem dele — alto, delgado,
um ar fidalgo, o pequenino bigode preto levantado, o olhar atrevido, e um
jeito de meter as mãos nos bolsos das calças fazendo tilintar
o dinheiro e as chaves! Aquilo começam em Sintra, por grandes partidas
de bilhar muito alegres, na quinta do tio João de Brito, em Colares.
Basílio tinha chegado então da Inglaterra: vinha muito bife,
usava gravatas escarlates passadas num anel de ouro, fatos de flanela branca,
espantava Sintra! Era na sala debaixo pintada a oca, que tinha um ar antigo
e morgado; uma grande porta envidraçada abria para o jardim, sobre
três degraus de pedra. Em roda do repuxo havia romãzeiras, onde
ele apanhava flores escarlates. A folhagem verde-escura e polida dos arbustos
de camélias fazia ruazinhas sombrias; pedaços de sol faiscavam,
tremiam na água do tanque; duas rolas, numa gaiola de vime, arrulhavam
docemente; — e no silêncio aldeão da quinta, o ruído
seco das bolas de bilhar tinha um tom aristocrático.
Depois, vieram todos os episódios clássicos dos amores lisboetas
passados em Sintra: os passeios em Sitiais ao luar, devagar, sobre a relva
pálida, com grandes descansos calados no Penedo da Saudade, vendo o
vale, as areias ao longe, cheias duma luz saudosa, idealizadora e branca;
as sestas quentes, nas sombras da Penha Verde, ouvindo o rumor fresco e gotejante
das águas que vão de pedra em pedra; as tardes na várzea
de Colares, remando num velho bote, sobre a água escura da sombra dos
freixos, — e que risadas quando iam encalhar nas ervagens altas, e o
seu chapéu de palha se prendia aos ramos baixos dos choupos!
Sempre gostam muito de Sinta! Logo ao entrar os arvoredos escuros e murmurosos
do Ramalhão lhe davam uma melancolia feliz!
Tinham muita liberdade, ela e o primo Basílio. A mamã, coitadinha,
toda cismática, com reumatismo, egoísta, deixava-os, sorria,
dormitava: Basílio era rico então, chamava-lhe tia Jojó,
trazia-lhe cartuchos de doce…
Veio o inverno e aquele amor foi-se abrigar ria velha sala forrada de papel
sangue-de-boi da Rua da Madalena. Que bons serões ali! A mamã
ressonava baixo, com os pés embrulhados numa manta, o volume da Biblioteca
das Damas caído sobre o regaço. E eles, muito chegados, muito
felizes no sofá! O sofá! Quantas recordações!
era estreito e baixo, estofado de casimira clara, com uma tira ao centro,
bordada por ela, amores-perfeitos amarelos e roxos sobre um fundo negro. Um
dia veio o final. João de Brito, que fazia parte da firma Bastos &
Brito, faliu. A casa de Almada, a quinta de Colares foram vendidas.
Basílio estava pobre, partiu para o Brasil. Que saudades! Passou os
primeiros dias sentada no sofá querido, soluçando baixo, com
a fotografia dele entre as mãos. Vieram então os sobressaltos
das cartas esperadas, os recados impacientes ao escritório da Companhia
quando os paquetes tardavam…
Passou um ano. Uma manhã, depois dum grande silêncio de Basílio,
recebeu da Bahia uma longa carta que começava: “Tenho pensado
muito e entendo que devemos considerar a nossa inclinação como
uma criancice…”
Desmaiou logo. Basílio afetava muita dor em duas laudas cheias de explicações:
que estava ainda pobre; que teria que lutar muito antes de ter para dois;
o clima era horrível; não a queria sacrificar, pobre anjo; chamava-lhe
minha “pomba” e assinava o seu nome todo, com uma firma complicada.
Viveu triste durante meses. Era no inverno; e sentada à janela, por
dentro dos vidros, com o seu bordado de lã, julgava-se desiludida,
pensava no convento, seguindo com um olhar melancólico os guarda-chuvas
gotejantes que passavam sob as cordas de água; ou sentando-se ao plano,
ao anoitecer, cantava Soares de Passos:

Ai! adeus, acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado,..

ou o final da Traviata, ou o fado do Vimioso, muito triste, que ele lhe ensinara.
Mas então o catarro da mamã agravou-se; vieram os sustos, as
noites veladas. Na convalescença foram para Belas: ligou-se ali muito
com as Cardosos, duas irmãs magras, estouvadas e esguias, sempre coladas
uma á outra, com um passinho trotado e seco, como um casal de galgos.
O que riam, Jesus! O que falavam dos homens! Um tenente de artilharia tinha-se
apaixonado por ela. Era vesgo, mandou-lhe uns versos, Ao Lírio de Belas:

Sobre a encosta da colina
Cresce o lírio virginal..

Foi um tempo muito alegre, cheio de consolações.
Quando voltaram no inverno tinha engordado, trazia boas cores. E um dia, tendo
achado numa gaveta uma fotografia que logo ao principio Basílio lhe
mandara da Bahia, de calça branca e chapéu panamá, fitou-a,
encolhendo os ombros:
— E o que eu me ralei por esta figura! Que tola!
Tinham passado três anos quando conheceu Jorge. Ao princípio
não lhe agradou. Não gostava dos homens barbados: depois percebeu
que era a primeira barba, fina, rente, muito macia decerto; começou
a admirar os seus olhos, a sua frescura. E sem o amar, sentia ao pé
dele como uma fraqueza, uma dependência e uma quebreira, uma vontade
de adormecer encostada ao seu ombro, e de ficar assim muitos anos, confortável,
sem receio de nada. Que sensação quando ele lhe disse: Vamos
casar, hein! Viu de repente o rosto barbado, com os olhos muito luzidios,
sobre o mesmo travesseiro, ao pé do seu! Fez-se escarlate, Jorge tinha-lhe
tomado a mão: ela sentia o calor daquela palma larga penetrá-la,
tomar posse dela: disse que sim, ficou como idiota e sentia debaixo do vestido
de merino dilatarem-se docemente os seus seios. Estava noiva, enfim! Que alegria,
que descanso para a mamã!
Casaram às oito horas, numa manhã de nevoeiro. Foi necessário
acender luz para lhe pôr a coroa e o véu de tule. Todo aquele
dia lhe aparecia como enevoado, sem contornos, á maneira dum sonho
antigo —onde destacava a cara balofa e amarelada do padre e a figura
medonha duma velha, que estendia a mão adunca, com uma sofreguidão
colérica, empurrando, rogando pragas, quando, á porta da Igreja,
Jorge comovido distribuía patacos. Os sapatos de cetim apertavam-na.
Sentira-se enjoada da madrugada, fora necessário fazer-lhe chá
verde muito forte. E tão cansada à noite naquela casa nova,
depois de desfazer os seus baús! —Quando Jorge apagou a vela
com um sopro trêmulo, os luminosos faiscavam, corriam-lhe diante dos
olhos.
Mas era o seu marido, era novo, era forte, era alegre; pôs-se a adora-lo.
Tinha uma curiosidade constante da sua pessoa e das suas coisas, mexia-lhe
no cabelo, na roupa, nas pistolas, nos papéis. Olhava muito para os
maridos das outras, comparava, tinha orgulho nele. Jorge envolvia-a em delicadezas
de amante, ajoelhava-se aos seus pés, era muito dengueiro. E sempre
de bom humor, com muita graça: mas nas coisas da sua profissão
ou do seu brio tinha severidades exageradas e punha então nas palavras,
nos modos uma solenidade carrancuda. Uma amiga dela, romanesca, que via em
tudo dramas, tinha-lhe dito: “É homem para te dar uma punhalada”.
Ela, que não conhecia ainda o temperamento plácido de Jorge
acreditou, e isso mesmo criou uma exaltação no seu amor por
ele. Era o seu tudo, – a sua força, o seu fim, o seu destino,
a sua religião, o seu homem! — Pôs-se a pensar o que teria
sucedido se tivesse casado com o primo Basílio. Que desgraça,
hein! Onde estaria? Perdia-se em suposições de outros destinos,
que se desenrolavam como panos de teatros: via-se no Brasil, entre coqueiros,
embalada numa rede, cercada de negrinhos, vendo voar papagaios!
— Está ali a Sra D. Leopoldina — veio dizer Juliana.
Luísa ergueu-se surpreendida:
— Hein? a Sra D. Leopoldina? para que mandou entrar?
Pôs-se a abotoar à pressa o roupão. Jesus! Olha se Jorge
soubesse! Ele que lhe tinha dito tantas vezes que a não queria em casa!”
Mas se já estava na sala, agora, coitada!
— Está bom, diga-lhe que já vou.
Era sua íntima amiga. Tinham sido vizinhas, em solteiras, na Rua da
Madalena, e estudado no mesmo colégio, à Patriarcal, na Rira
Pessoa, a coxa. Leopoldina era a filha única do Visconde de Quebrais,
o devasso, o caquético, que fora pajem de D. Miguel. Tinha feito um
casamento infeliz com um João de Noronha, empregado da Alfândega.
Chamavam-lhe a “Quebrais”; chamavam-lhe também a “Pão
e Queijo”.
Sabia-se que tinha amantes, dizia-se que tinha vícios. Jorge odiava-a.
E dissera muitas vezes a Luísa: tudo, menos a Leopoldina!
Leopoldina tinha então vinte e sete anos. Não era alta, mas
passava por ser a mulher mais bem-feita de Lisboa. Usava sempre os vestidos
muito colados, com uma justeza que acusava, modelava o corpo como uma pelica,
sem largueza de roda, apanhados atrás. Dizia-se dela com os olhos em
alvo: é uma estátua, é uma Vênus! Tinha ombros
de modelo, duma redondeza descaída e cheia: sentia-se nos seus selos,
mesmo através do corpete, o desenho rijo e harmonioso de duas belas
metades de limão; a linha dos quadris rica e firme, certos quebrados
vibrantes de cintura faziam voltar os olhares acesos dos homens. A cara era
um pouco grosseira; as asas do nariz tinham uma dilatação carnuda;
na pele, muito tina, dum trigueiro quente e corado, havia sinaizinhos desvanecidos
de antigas bexigas. A sua beleza eram os olhos, duma negrura intensa, afogados
num fluido, muito quebrados, com grandes pestanas.
Luísa veio para ela com os braços abertos, beijaram-se muito.
E Leopoldina, sentada no sofá, enrolando devagarinho a seda clara do
guarda-sol, começou a queixar-se: tinha estado adoentada, muito secada,
com tonturas. O calor matava-a. E que tinha ela feito? Achava-a mais gorda.
Como era um pouco curta de vista, para se afirmar piscava ligeiramente os
olhos, descerrando os beiços gordinhos, dum vermelho cálido.
— A felicidade dá tudo, até boas cores! — disse,
sorrindo.
O que a trazia era perguntar-lhe a morada da francesa que lhe fazia os chapéus.
E há tanto tempo que a não via, já tinha saudades, também!
— Mas não imaginas! Que calor! Venho morta.
E deixou-se cair sobre a almofada do sofá, encalmada, com um sorriso
aberto, mostrando os dentes brancos e grandes.
Luísa disse-lhe a morada da francesa, gabou-lha: era barateira e tinha
bom gosto. Como a sala estava escura, foi entreabrir um pouco as portadas
da janela. Os estofos das cadeiras e as bambinelas eram de reps verde-escuro;
o papel e o tapete com desenhos de ramagens tinham o mesmo tom, e naquela
decoração sombria destacavam muito — as molduras douradas
e pesadas de duas gravuras (a Medéia de Delacroit e a Mártir
de Delaroche), as encadernações escarlates dos dois vastos volumes
do Dante de G. Doré, e entre as janelas o oval dum espelho onde se
refletia um napolitano de biscuit que, na console, dançava a tarantela.
Por cima do sofá pendia o retrato da mãe de Jorge, a óleo.
Estava sentada, vestida ricamente de preto, direita no seu corpete espartilhado
e seco: uma das mãos, dum lívido morto, pousava nos joelhos
sobrecarregada de anéis; a outra perdia-se entre as rendas muito trabalhadas
dum mantelete de cetim; e aquela figura longa, macilenta, com grandes olhos
carregados de negro, destacava sobre uma cortina escarlate, corrida em pregas
copiosamente quebradas deixando ver para além céus azulados
e redondezas de arvoredos.
— E teu marido? — perguntou Luísa, vindo sentar-se muito
junto de Leopoldina.
— Como sempre. Pouco divertido — respondeu, rindo, E, com ar sério,
a testa um pouco franzida: — Sabes que acabei com o Mendonça?
— Luísa fez-se ligeiramente vermelha.
— Sim?
Leopoldina deu logo detalhes.
Era muito indiscreta, falava muito de si, das suas sensações,
da sua alcova, das suas contas. Nunca tivera segredos para Luísa; e
na sua necessidade de fazer confidências, de gozar a admiração
dela, descrevia-lhe os seus amantes, as opiniões deles, as maneiras
de amar, os tics, a roupa, com grandes exagerações! Aquilo era
sempre muito picante, cochichado ao canto dum sofá entre risinhos:
Luísa costumava escutar, toda interessada, as maçãs do
rosto um pouco envergonhadas, pasmada, saboreando, com um arzinho beato. Achava
tão curioso!
— Desta vez é que bem posso dizer que me enganei, minha rica
filha! — exclamou Leopoldina erguendo os olhos desoladamente.
Luísa nu.
— Tu enganas-te quase sempre!
Era verdade! Era infeliz!
— Que queres tu? De cada vez imagino que é uma paixão, e de
cada vez me sai uma maçada.
E picando o tapete com a ponta da sombrinha:
— Mas se um dia aceno!
— Vê se acertas — disse Luísa. — Já é
tempo!
Às vezes na sua consciência achava Leopoldina “indecente”;
mas tinha um fraco por ela: sempre admirara muito a beleza do seu corpo, que
quase lhe inspirava uma atração física. Depois desculpava-a;
era tão infeliz com o marido! Ia atrás da paixão, coitada!
E aquela grande palavra, faiscante e misteriosa, donde a felicidade escorre
como a água duma taça muito cheia, satisfazia Luísa como
uma justificação suficiente: quase lhe parecia unia heroína;
e olhava-a com espanto como se consideram os que chegam de alguma viagem maravilhosa
e difícil, de episódios excitantes. Só não gostava
de certo cheiro de tabaco misturado de feno, que trazia sempre nos vestidos.
Leopoldina fumava.
— E que fez ele, o Mendonça?
Leopoldina encolheu os ombros, com um, grande tédio.
— Escreveu-me uma carta muito tola, que afinal bem considerado era melhor
que acabasse tudo, porque não estava para se meter em camisa de onze
varas! Que imbecil! Até devo ter aqui a carta.
Procurou na algibeira do vestido: tirou o lenço, uma cartelinha, chaves,
uma caixinha de pó-de-arroz; mas encontrou apenas um programa do Price,
Falou então do circo. — Uma sensaboria. O melhor era um rapaz
que trabalhava no trapézio. Lindo rapaz, bem-feito, uma perfeição!
E de repente:
— Então teu primo Basílio chega?
— Assim li hoje no Diário de Notícias. Fiquei pasmada!
— Ah! outra coisa que te queda perguntar antes que me esqueça.
Com que guarneceste tu aquele teu vestido de xadrezinho azul? Vou mandar fazer
um assim.
Tinha-o guarnecido de azul também, um azul mais escuro. – Vem ver.
Vem cá dentro.
Entraram no quarto. Luísa foi descerrar a janela, abrir o guarda-vestidos.
Era um quarto pequeno, muito fresco, com cretones dum azul pálido.
Tinha um tapete barato, de fundo branco, com desenhos azulados. O toucador,
alto, estava entre as duas janelas, sob um dossel de renda grossa, muito ornado
de frascos facetados. Entre as bambinelas, em mesas redondas de pé-de-galo,
plantas espessas, begônias, Makoamas, dobravam decorativamente a sua
folhagem rica e forte em vasos de barro vermelho vidrado.
Aqueles arranjos confortáveis lembraram decerto a Leopoldina felicidades
tranqüilas. Pôs-se a dizer devagar, olhando em roda:
— E tu, sempre muito apaixonada por teu marido, bem? Fazes bem, filha,
tu é que fazes bem!
Foi defronte do toucador aplicar pó-de-arroz no pescoço, nas
faces:
— Tu é que fazes bem! — repetia. — Mas vá
lá uma mulher prender-se a um homem como o meu!
Sentou-se na causeuse com um ar muito abandonado; vieram as queixas habituais
sobre seu marido: era tão grosseiro! era tão egoísta!
— Acreditarás que há tempos para cá, senão
estou em casa às quatro horas, não espera, põe-se à
mesa, janta, deixa-me os restos! E depois desleixado, enxovalhado, sempre
a cuspir nas esteiras… O quarto dele – nós temos dois quartos,
como tu sabes — é um chiqueiro!
Luísa disse com severidade:
— Que horror! A culpa também é tua.
— Minha! — e endireitou-se, luziam-lhe os olhos, mais largos,
mais negros. — Não me faltava mais nada senão ocupar-me
do quarto do homem!
Ah! era muito desgraçada, era a mulher mais desgraçada que havia
no mundo!
— Nem ciúmes tem, o bruto!
Mas Juliana entrou, tossiu, e arranjando ainda o colar e o broche:
— A senhora sempre quer que engome os coletes todos?
— Todos, já lhe disse. Hão de ficar à noite na
inala antes de se ir deitar.
— Que mala? Quem parte? — perguntou Leopoldina.
— O Jorge. Vai às minas, ao Alentejo.
— Então estás só, posso vir ver-te! Ainda bem!
E sentou-se logo ao pé dela, com um olhar que se fizera doce.
— É que tenho tanto que contar! Se tu soubesses, filha!
— O quê? Outra paixão? fez Luísa rindo.
A face de Leopoldina tornou-se grave.
Não era pra rir. Estava de todo! Era por isso até que tinha
vindo.
Sentira-se tão só, tão nervosa! – Vou até
à Luísa, vou palrar um bocado!
E com a voz mais baixa, quase solene:
— Desta vez é sério, Luísa! — Deu os detalhes.
Era um rapaz alto, louro, lindo! E que talento! É poeta! — Dizia
apalavra com devoção, prolongando o som das sílabas.
— É poeta!
Desapertou devagar dois botões do comete, tirou do seio um papel dobrado.
Eram versos.
E muito chegada para Luísa, com as narinas dilatadas pela delícia
da sensação, leu baixo, com orgulho, com pompa:

A TI

Farol da Guia, 5 de junho.

Quando cismo à hora do poente
Sobre os rochedos onde brame o mar.,.

Era uma elegia. O rapaz contava, em quadras, as longas contemplações
em que a via a ela, Leopoldina, visão radiosa que deslizas leve, nas
águas dormentes, nas vermelhidões do ocaso, na brancura das
espumas. Era uma composição delambida, dum sentimentalismo reles,
com um ar tísico, muito lisboeta, cheia de versos errados. E, terminando,
dizia-lhe que não era “nos esplendores das salas” ou nos
“bailes febricitantes” que gostava de a ver: era ali, naqueles
rochedos,

Onde todos os dias ao sol posto
Eu vejo adormecer o mar gigante.

— Que bonito, hein!
Ficaram caladas, com uma comoçãozinha.
Leopoldina, com os olhos perturbados, repetia a data, amorosamente:
— Farol da Guia, 5 de junho!
Mas o relógio do quarto deu quatro horas. Leopoldina ergueu-se logo,
atarantada, meteu o poema no seio.
Tinha de se ir já! Fazia-se tarde, senão o outro punha-se à
mesa. Tinha um ruivo assado para o jantar. E peixe frio era a coisa mais estúpida!
— Adeus. Até breve, não? — E agora que Jorge ia para
fora, havia de vir muito. — Adeus. Então a francesa, Rua do Ouro,
por cima do estanque?
Luísa foi com ela até ao patamar. Leopoldina já no fundo
da escada ainda parou, gritou:
— Sempre te parece que guarneça o vestido de azul, hein?
Luísa debruçou-se sobre o corrimão:
— Eu assim fiz, é o melhor…
— Adeus! Rua do Ouro, por cima do estanque?
— Sim. Rua do Ouro, Adeus. — E com um gritinho: Porta direita,
Madame François.

Jorge voltou às cinco horas, e logo da porta do quarto, pondo a bengala
a um canto:
— Já sei que tiveste cá uma visita.
Luísa voltou-se, um pouco corada. Estava diante do toucador já
penteada com um vestido de linho branco guarnecido de rendas.
Era verdade, tinha vindo a Leopoldina. Juliana mandara-a entrar… Ficara
mais contrariada! Era por causa da adresse da francesa dos chapéus.
Tinha-se demorado dez minutos. — Quem te disse?
— Foi a Juliana: que a Sra D. Leopoldina tinha estado toda a tarde.
— Toda a tarde! que tolice! esteve dez minutos, se tanto!
Jorge tirava as luvas, calado. Chegou-se à janela, pôs-se a sacudir
as duras folhas duma begônia malhada dum vermelho doente, com uma baba
prateada. Assobiava baixo; e parecia todo ocupado em conchegar um botão
de amarílis aninhado entre a sua folhagem luzidia, como um pequenino
coração assustado.
Luísa ia passando o seu medalhão de ouro numa longa fita de
veludo preto: tinha uma ternura nas mãos, estava vermelha.
— O calor tem-lhes feito mal… — disse,
Jorge não respondeu. Assobiou mais alto, foi à outra janela,
bateu com os dedos nas folhas elásticas duma Makoama de tons verdes
e sangüíneos, e, alargando impacientemente o colarinho como um
homem sufocado:
— Ouve lá, e necessário que deixes por uma vez de receber essa
criatura. E necessário acabar por uma vez!
Luísa fez-se escarlate.
— É por causa de ti! é por causa dos vizinhos! é por
causa da decência!
— Mas foi a Juliana… — balbuciou Luísa.
— Mandasse-a sair outra vez. Que estavas fora! Que estavas na China! Que
estavas doente.
Parou, com um tom desconsolado, abrindo os braços:
— Minha rica filha, é que todo o mundo a conhece. É a Quebrais!
E a Pão e Queijo! É uma vergonha!
Citava-lhe os seus amantes, exasperado: O Carlos Viegas, o magro, de bigode
caído, que escrevia comédias para o Ginásio! O Santos
Madeira, o picado das bexigas, com uma gaforinha! O Melchior Vadio, um gingão
desossado, com um olhar de carneiro morto, sempre a fumar numa boquilha! O
Pedro Câmara, o bonito! O Mendonça dos calos! Tutti quanti!
E encolhendo os ombros, desabrido:
— Como se eu não percebesse que ela esteve aqui! Só pelo cheiro!
Este horrível cheiro de feno! Vocês foram criadas juntas, etc.,
tudo isso é muito bom. Hás de desculpar, mas se a encontro na
escada, corro-a! Corro-a!
Parou um momento, e comovido:
— Ora, vamos, Luísa, confessa. Tenho ou não razão? Luísa
punha os brincos, ao espelho, atarantada:
— Tens — disse.
— Ah! bem!
E saiu, furioso.
Luísa ficou imóvel. Uma lagrimazinha redonda, clara, rolava-lhe
pela asa do nariz. Assoou-se muito doloridamente. Aquela Juliana! Aquela bisbilhoteira!
De má! Para fazer cizânia!?
Veio-lhe então uma cólera. Foi ao quarto dos engomados, atirou
com a porta:
— Para que foi você dizer quem esteve ou quem deixou de estar?
Juliana, muito surpreendida, pousou o ferro:
— Pensei que não era segredo, minha senhora.
— Está claro que não! Tola! quem lhe diz que era segredo? E
para que mandou entrar? Não lhe tenho dito muitas vezes que não
recebo Sra D. Leopoldina?
— A senhora nunca me disse nada — replicou, toda ofendida, cheia de
verdade.
— Mente! Cale-se!
Voltou-lhe as costas; veio para o quarto muito nervosa, foi encostar-se à
vidraça.
O sol desapareceu; na rua estreita havia uma sombra igual, de tarde sem vento;
pelas casas, de uma edificação velha, escuras, estavam abertas
as varandas onde em vasos vermelhos se minava alguma velha planta miserável,
manjericão ou cravo; ouvia-se no teclado melancólico dum piano
a Oração de uma Virgem, tocada por alguma menina, no sentimentalismo
vadio do domingo; e na sua janela, defronte, as quatro filhas do Teixeira
Azevedo, magrinhas, com os cabelos muito riçados, as olheiras pisadas,
passavam a sua tarde de dia santo olhando para a rua, para o ar, para as janelas
vizinhas, cochichando se viam passar um homem – ou debruçadas, com
uma atenção idiota, faziam pingar saliva sobre as pedras da
calçada.
Jorge tinha razão, coitado! pensava Luísa. Mas, também,
que podia ela fazer? já não ia á casa de Leopoldina,
tirara o seu retrato do álbum da sala, vira-se obrigada a confessar-lhe
a repugnância de Jorge, tinham chorado ambas, até! Coitada! Só
a recebia de longe a longe, uma raridade, um momento! E enfim, depois dela
estar na sala não a havia de ir empurrar pela escada abaixo!
Um homem grosso, de pernas tortas, curvado sob um realejo, apareceu então
ao alto da rua; as suas barbas pretas tinham um aspecto feroz; parou, pôs-se
a voltear a manivela, levantando em redor, para as janelas, um sorriso triste
de dentes brancos — e a Casta Diva, com uma sonoridade metálica
e seca, muito tremida, espalhou-se pela rua.
Gertrudes, a criada e a concubina do doutor de matemática, veio encostar
logo aos caixilhos estreitos da janela a sua vasta face trigueira de quarentona
farta e estabelecida; adiante, na sacada aberta dum segundo andar, debruçou-se
a figura do Cunha Rosado, magro e chupado, com um boné de borla, o
aspecto desconsolado do doente de intestinos, conchegando com as mãos
transparentes o robe de chambre ao ventre. Outras faces enfastiadas mostraram-se
entre as bambinelas de cassa.
Na rua, a estanqueira chegou-se à porta, vestida de luto, estendendo
o seu carão viúvo, os braços cruzados obre o xale tingido
de preto, esguia nas longas saias escoadas. Da loja, por baixo da casa Azevedo,
veio a carvoeira, enorme de gravidez bestial, o cabelo esguedelhado em repas
secas, a cara oleosa e enfarruscada, com três pequenos meio nus, quase
negros, chorões e hirsutos, que se lhe penduravam da saia de chita.
E o Paula, com loja de trastes velhos, adiantou-se até ao meio da rua;
a pala de verniz do seu boné de pano preto nunca se erguia de cima
dos olhos; escondia sempre as mãos, como para ser mais reservado, por
trás das costas, debaixo das abas do seu casaco de cetim branco; o
calcanhar sujo da meia saia-lhe para fora da chinela bordada a miçanga;
e fazia roncar o seu pigarro crônico de um modo despeitado. Detestava
os reis e os padres. O estado das coisas públicas enfurecia-o. Assobiava
freqüentemente a Maria da Fonte, e mostrava-se nas suas palavras, nas
suas atitudes, um patriota exasperado.
O homem do realejo tirou o seu largo chapéu desabado e, tocando sempre,
ia-o estendendo em redor para as janelas, com um olhar necessitado. As Azevedos
tinham logo fechado violentamente a vidraça. A carvoeira deu-lhe uma
moeda de cobre; mas interrogou-o: quis decerto saber de que país era,
por que estradas tinha vindo, e quantas peças tinha o instrumento.
Gente endomingada começava a recolher, com um ar derreado do longo
passeio, as botas empoeiradas: mulheres de xale, vindas da hortas, traziam
ao colo as crianças adormecidas da caminhada e do calor; velhos plácidos,
de calça branca, o chapéu na mão, gozavam a frescura,
dando um giro no bairro: pelas janelas bocejava-se: o céu tomava uma
cor azulada e polida, como uma porcelana: um sino repicava a distância
o fim de alguma festa de igreja, e o domingo terminava, com uma serenidade
cansada e triste.
— Luísa — disse a voz de Jorge.
Ela voltou-se com um vago — hein?
— Vamos jantar, filha, são sete horas.
No meio do quarto tomou-a pela cinta — e falando-lhe baixo junto à
face:
— Tu zangaste-te há bocado?
— Não! tu tens razão. Conheço que tens razão.
— Ah! — fez ele comum tom vitorioso, muito satisfeito. — Está
claro,

Quem melhor conselheiro e bom amigo
Que o marido que a alma m’escolheu?

E com uma ternura grave:
— Minha querida filha, esta nossa casinha é tão honesta que
é uma dor de alma ver entrar essa mulher aqui, com o cheiro do feno,
do cigano e do resto… Ma, di questo non parleremo più, o donna mia!
À sopa!

CAPÍTULO 2

Aos domingos à noite havia em casa de Jorge uma pequena reunião,
uma cavaqueira, na saia, em redor do velho candeeiro de porcelana cor-de-rosa.
Vinham apenas os íntimos. “O Engenheiro”, como se dizia
na rua, vivia muito ao seu canto, sem visitas. Tomava-se chá, palrava-se.
Era um pouco a estudante. Luísa fazia croché, Jorge cachimbava.
O primeiro a chegar era Juiião Zuzarte, um parente muito afastado de
Jorge e seu antigo condiscípulo nos primeiros anos da Politécnica.
Era um homem seco e nervoso, com lunetas azuis, os cabelos compridos caídos
sobre a gola. Tinha o curso de cirurgião da Escola. Muito inteligente,
estudava desesperadamente, mas, como ele dizia, era um tumba. Aos trinta anos,
pobre, com dívidas, sem clientela, começava a estar farto do
seu quarto andar na Baixa, dos seus jantares de doze vinténs, do seu
paletó coçado de alamares; e entalado na sua vida mesquinha,
via os outros, os medíocres, os superficiais, furar, subir, instalar-se
à larga na prosperidade! “Falta de chance”, dizia. Podia
ter aceitado um partido da Câmara numa vila da província, com
pulso livre, ter uma casa sua, a sua criação no quintal. Mas
tinha um orgulho resistente, muita fé nas suas faculdades, na sua ciência,
e não se queria ir enterrar numa terriola adormecida e lúgubre,
com três ruas onde os porcos fossam. Toda a província o aterrava:
via-se lá obscuro, jogando a manilha na Assembléia, morrendo
de caquexia. Por isso não “arredava pé”; e esperava,
com a tenacidade do plebeu sôfrego, uma clientela rica, uma cadeira
na Escola, um coupé para as visitas, uma mulher loura com dote. Tinha
certeza do seu direito a estas felicidades, e como elas tardavam a chegar
ia-se tornando despeitado e amargo; andava amuado com a vida; cada dia se
prolongavam mais os seus silêncios hostis, roendo as unhas; e, nos dias
melhores, não cessava de ter ditos secos, tiradas azedas — em
que a sua voz desagradável caia como um gume gelado.
Luísa não gostava dele: achava-lhe um ar nordeste, detestava
o seu tom de pedagogo, os reflexos negros da luneta, as calças curtas
que mostravam o elástico roto das botas. Mas disfarçava, sorria-lhe,
porque Jorge admirava-o, dizia sempre dele: Tem muito espírito! Tem
muito talento! Grande homem!
Como vinha mais cedo ia à sala de jantar, tomava a sua chávena
de café; e tinha sempre um olhar de lado para as pratas do aparador
e para as toilettes frescas de Luísa. Aquele parente, um medíocre,
que vivia confortavelmente, bem casado, com a carne contente, estimado no
ministério, com alguns contos de réis em inscrições
— parecia-lhe uma injustiça e pesava-lhe como uma humilhação.
Mas afetava estimá-lo; ia sempre às noites, aos domingos; escondia
então as suas preocupações, cavaqueava, tinha pilhérias,
— metendo a cada momento os dedos pelos seus cabelos compridos, secos
e cheios de caspa.
Ás nove horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade de Noronha. Vinha
logo da porta com os braços estendidos, o seu bom sorriso dilatado.
Tinha cinqüenta anos, era muito nutrida, e, como sofria de dispepsia
e de gases, àquela hora não se podia espartilhar e as suas formas
transbordavam. Já se viam alguns fios brancos nos seus cabelos levemente
anelados, mas a cara era lisa e redonda, cheia, de uma alvura baça
e mole de freira; nos olhos papudos, com a pele já engelhada em redor,
luzia uma pupila negra e úmida, muito móbil; e aos cantos da
boca uns pêlos de buço pareciam traços leves e circunflexos
de uma pena muito fma. Fora a íntima amiga da mãe de Luísa,
e tomara aquele hábito de vir ver a pequena aos domingos. Era fidalga,
dos Noronhas de Redondella, bastante aparentada em Lisboa, um pouco devota,
muito da Encarnação.
Mal entrava, ao pôr um beijo muito cantado na face de Luísa,
perguntava-lhe baixo, com inquietação:
— Vem?
— O Conselheiro? Vem.
Luísa sabia-o. Porque o Conselheiro, o Conselheiro Acácio, nunca
vinha aos chás de D. Luísa, como ele dizia, sem ter ido na véspera
ao Ministério das Obras Públicas procurar Jorge, declarar-lhe
com gravidade, curvando um pouco a sua alta estatura:
— Jorge, meu amigo, amanhã lá irei pedir à sua
boa esposa a minha chávena de chá.
Ordinariamente acrescentava:
— E os seus valiosos trabalhos progridem? Ainda bem! Se vir o ministro,
os meus respeitos a S. Exª. Os meus respeitos a esse formoso talento!
E saía pisando com solenidade os corredores enxovalhados.
Havia cinco anos que D. Felicidade o amava. Em casa de Jorge riam-se um pouco
com aquela chama. Luísa dizia: Ora! é uma caturrice dela! Viam-na
corada e nutrida, e não suspeitavam que aquele sentimento concentrado,
irritado semanalmente, queimando em silêncio, a ia devastando como uma
doença e desmoralizando como um vício. Todos os seus ardores
até aí tinham sido inutilizados. Amara um oficial de lanceiros
que morrera, e apenas conservava o seu daguerreótipo. Depois apaixonara-se
muito ocultamente por um rapaz padeiro, da vizinhança, e vira-o casar.
Dera-se então toda a um cão, o Bilro; uma criada despedida deu-lhe
por vingança rolha cozida; o Bilro rebentou, e tinha-o agora empalhado
na sala de jantar. A pessoa do Conselheiro viera de repente, um dia, pegar
fogo àqueles desejos, sobrepostos como combustíveis antigos.
Acácio tornara-se a sua mania: admirava a sua figura e a sua gravidade,
arregalava grandes olhos para a sua eloqüência, achava-o numa “linda
posição”. O Conselheiro era a sua ambição
e o seu vício! Havia sobretudo nele uma beleza, cuja contemplação
demorada a estonteava como um vinho forte; era a calva. Sempre tivera o gosto
perverso de certas mulheres pela calva dos homens, e aquele apetite insatisfeito
inflamara-se com a idade. Quando se punha a olhar para a calva do Conselheiro,
larga, redonda, polida, brilhante às luzes, uma transpiraçao
ansiosa umedecia-lhe as costas, os olhos dardejavam-lhe, tinha uma vontade
absurda, ávida de lhe deitar as mãos, palpá-la, sentir-lhe
as formas, amassá-la, penetrar-se dela! Mas disfarçava, punha-se
a falar alto com um sorriso parvo, abanava-se convulsivamente, e o suor gotejavalhe
nas roscas anafadas do pescoço. Ia para casa rezar estações,
impunha-se penitências de muitas coroas à Virgem; mas apenas
as orações findavam, começava o temperamento a latejar.
E a boa, a pobre D. Felicidade tinha agora pesadelos lascivos e as melancolias
do histerismo velho. A indiferença do Conselheiro irritava-a mais:
nenhum olhar, nenhum suspiro, nenhuma revelação amorosa o comovia!
Era para com ela glacial e polido. Tinham-se às vezes encontrado a
sós, à parte, no vão favorável de uma janela,
no isolamento mal alumiado de um canto do sofá, — mas apenas
ela fazia uma demonstração sentimental, ele erguia-se bruscamente,
afastava-se, severo e pudico. Um dia ela julgara perceber que, por trás
das suas lunetas escuras, o Conselheiro lhe deitava de revés um olhar
apreciador para a abundância do seio; fora mais clara, mais urgente,
falara em paixão, disse-lhe baixo: — Acácio!… Mas ele
com um gesto gelou-a — e de pé, grave:
— Minha senhora,

As neves que na fronte se acumulam
Terminam por cair no coração…

É inútil, minha senhora!
O martírio de D. Felicidade era muito oculto, muito disfarçado;
ninguém o sabia; conheciam-lhe as infelicidades do sentimento, ignoravam-lhe
as torturas do desejo. E um dia Luísa ficou atônita, sentindo
D. Felicidade agarrar-lhe o pulso com a mão úmida, e dizer-lhe
baixo, os olhos cravados no Conselheiro:
— Que regalo de homem!
Falava-se nessa noite do Alentejo, de Évora e das suas riquezas, da
capela dos ossos, quando o Conselheiro entrou com o paletó no braço.
Foi-o dobrar solicitamente numa cadeira a um canto, e no seu passo aprumado
e oficial veio apertar as mãos ambas de Luísa, dizendo-lhe com
uma voz sonora, de papo:
— Minha boa Sr. a D. Luísa, de perfeita saúde, não?
O nosso Jorge tinha-mo dito. Ainda bem! Ainda bem!
Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num
colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até
à calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos
que de uma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca
— e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à
calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído
aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras.
Tinha uma covinha no queixo, e as orelhas grandes muito despegadas do crânio.
Fora, outrora, diretor-geral do ministério do reino, e sempre que dizia
— El-Rei! — erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram
medidos, mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviais; não
dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir. Dizia sempre
“o nosso Garrett, o nosso Herculano”. Citava muito. Era autor.
E sem família, num terceiro andar da Rua do Ferregial, amancebado com
a criada, ocupava-se de economia política: tinha composto os ELEMENTOS
GENÉRICOS DA CIÊNCIA DA RIQUEZA E SUA DISTRIBUIÇÃO,
segundo os melhores autores, e como subtítulo: Leituras do serão!
Havia apenas meses publicara a RELAÇÃO DE TODOS OS MINISTROS
DE ESTADO DESDE O GRANDE MARQUÊS DE POMBAL ATÉ NOSSOS DIAS, COM
DATAS CUIDADOSAMENTE AVERIGUADAS DE SEUS NASCIMENTOS E ÓBITOS.
— Já esteve no Alentejo, Conselheiro? — perguntou-lhe Luísa.
— Nunca, minha senhora — e curvou-se. — Nunca! E tenho pena!
Sempre desejei lá ir, porque me dizem que as suas curiosidades são
de primeira ordem.
Tomou uma pitada de uma caixa dourada, entre os dedos, delicada-mente, e acrescentou
com pompa:
— De resto, país de grande riqueza suma!
— Ó Jorge, averigua quanto é o partido da Câmara
em Évora disse Julião do canto do sofá.
O Conselheiro acudiu, cheio de informações, com a pitada suspensa:
— Devem ser seiscentos mil-réis, Sr. Zuzarte, e pulso livre.
Tenho-o nos meus apontamentos. Por que, Sr. Zuzarte, quer deixar Lisboa?
— Talvez!…
Todos desaprovaram.
— Ah! Lisboa sempre é Lisboa! — suspirou D. Felicidade.
— Cidade de mármore e de granito, na frase sublime do nosso grande
historiador! — disse solenemente o Conselheiro.
E sorveu a pitada com os dedos abertos em leque, magros, bem tratados.
D. Felicidade disse então:
— Quem não era capaz de deixar Lisboa nem à mão
de Deus Padre, era o Conselheiro!
O Conselheiro, voltando-se vagarosamente para ela, um pouco curvado, replicou:
— Nasci em Lisboa, D. Felicidade, sou lisboeta de alma!
— O Conselheiro. — lembrou Jorge — nasceu na Rua de São
José.
— Número setenta e cinco, meu Jorge. Na casa pegada àquela
em que viveu, até casar, o meu prezado Geraldo, o meu pobre Geraldo!
Geraldo, o seu pobre Geraldo, era o pai de Jorge. Acácio fora o seu
íntimo. Eram vizinhos. Acácio tocava então rebeca, e,
como Geraldo tocava flauta, faziam duos, pertenciam mesmo à Filarmônica
da Rua de S. José. Depois Acácio, quando entrou nas repartições
do Estado, por escrúpulo e por dignidade abandonou a rebeca, os sentimentos
ternos, os serões joviais da Filarmônica. Entregou-se todo à
estatística. Mas conservou-se muito leal a Geraldo; continuou mesmo
a Jorge aquela amizade vigilante; fora padrinho do seu casamento, vinha vê-lo
todos os domingos e, no dia dos seus anos, mandava-lhe pontualmente, com uma
carta de felicitações, uma lampreia de ovos.
— Aqui nasci — repetiu, desdobrando o seu belo lenço de
seda da Índia — e aqui conto morrer.
E assoou-se discretamente.
— Isso ainda vem longe, Conselheiro!
Ele disse, com uma melancolia grave:
— Não me arreceio dela, meu Jorge. Até já fiz construir,
sem vacilar, no Alto de 5. João, a minha última morada. Modesta,
mas decente. E ao entrar, no arruamento à direita, num lugar abrigado,
ao pé da choça dos Veríssimos amigos.
— E já compôs o seu epitáfio, Sr. Conselheiro? —
perguntou Julião, do canto, irônico.
— Não o quero, Sr. Zuzarte. Na minha sepultura não quero
elogios. Se os meus amigos, os meus patrícios entenderem que eu fiz
alguns serviços, têm outros meios para os comemorar: lá
têm a imprensa, o comunicado, o necrológio, a poesia mesmo! Por
minha vontade quero apenas sobre a lápide lisa, em letras negras, o
meu nome — com a minha designação de Conselheiro —
a data do meu nascimento e a data do meu óbito.
E com um tom demorado, de reflexão:
— Não me oponho todavia a que inscrevam por baixo, em letras
menores: Orai por ele!
Houve um silêncio comovido, e à porta uma voz fina disse:
— Dão licença?
— Oh, Ernestinho! … — exclamou Jorge.
Com um passo miudinho e rápido, Ernestinho veio abraçá-lo
pela cintura:
— Eu soube que tu partias, primo Jorge… Como está, prima Luísa?
Era primo de Jorge. Pequenino, linfático, os seus membros franzinos,
ainda quase tenros, davam-lhe um aspecto débil de colegial; o buço,
delgado, empastado em cera-mostache arrebitava-se aos cantos em pontas afiadas
como agulhas; e na sua cara chupada, os olhos repolhudos amorteciam-se com
um quebrado langoroso. Trazia sapatos de verniz com grandes laços de
fita; sobre o colete branco, a cadeia do relógio sustentava um medalhão
enorme, de ouro, com frutos e flores esmaltados em relevo. Vivia com uma atrizita
do Ginásio, uma magra, cor de melão, com o cabelo muito riçado,
o ar tísico, — e escrevia para o teatro. Tinha traduções,
dois originais num ato, uma comédia, em calembures. Ultimamente trazia
em ensaios nas Variedades uma obra considerável, um drama em cinco
atos, a Honra e paixão. Era a sua estréia séria. E desde
então, viam-no sempre muito atarefado, os bolsos inchados de manuscritos,
com localistas, com atores, muito pródigo de cafés e de conhaques,
o chapéu ao lado, descorado e dizendo a todos: Esta vida mata-me! Escrevia
todavia por paixão entranhada pela Arte — porque era empregado
na alfândega, com bom vencimento, e tinha quinhentos mil-réis
de renda das suas inscrições. A Arte mesma, dizia, obrigava-o
a desembolsos; para o ato do baile da Honra e paixão mandara fazer,
à sua custa, botas de verniz para o galã, botas de verniz para
o pai-nobre! O seu nome de família era Ledesma.
Deram-lhe um lugar, e Luísa notou logo, pousando o bordado, que estava
abatido! Queixou-se então das suas fadigas: os ensaios arrasavam-no;
tinha turras com o empresário; na véspera vira-se forçado
a refazer todo o final de um ato! Todo!
— E tudo isto — acrescentou muito exaltado — porque é
um pelintra, um parvo, e quer que se passe numa sala o ato que se passava
num abismo!
— Num quê? — pergunta surpreendida D. Felicidade.
O Conselheiro, muito cortês, explicou:
— Num abismo, D. Felicidade, num despenhadeiro. Também se diz,
em bom vernáculo, um vórtice. — Citou: — Num espumoso
vórtice se arroja…
— Num abismo!? — perguntaram. — Por quê?
O Conselheiro quis conhecer o lance.
Ernestinho, radioso, esboçou largamente o enredo: — Era uma mulher
casada. Em Sintra tinha-se encontrado com um homem fatal, o Conde de Monte-Redondo.
O marido, arruinado, devia cem contos de réis ao jogo. Estava desonrado,
ia-ser preso. A mulher, louca, corre a umas ruínas acasteladas, onde
habita o conde, deixa cair o véu, conta-lhe a catástrofe. O
conde lança o seu manto aos ombros, parte, chega no momento em que
os beleguins vão levar o homem. — E uma cena muito comovente,
dizia, é de noite, ao luar! — O conde desembuça-se, atira
uma bolsa de ouro aos pés dos beleguins, gritando-lhes: Saciai-vos,
abutres!…
— Belo final! Murmurou o Conselheiro.
— Enfim — acrescentou Ernesto, resumindo — aqui há
um enredo complicado: o Conde de Monte-Redondo e a mulher amam-se, o marido
descobre, arremessa todo o seu ouro aos pés do conde, e mata a esposa.
— Como? — perguntaram.
— Atira-a ao abismo. É no quinto ato. O conde vê, corre,
atira-se também. O marido cruza os braços e dá uma gargalhada
infernal. Foi assim que eu imaginei a coisa!
Calou-se, ofegante; e, abanando-se com o lenço, rolava em redor os
seus olhos langorosos, prateados como os de um peixe morto.
— É uma obra de cunho, embatem-se grandes paixões! —
disse o Conselheiro, passando as mãos sobre a calva. — Os meus
parabéns, Sr. Ledesma!
— Mas que quer o empresário? — perguntou Julião,
que escutara de pé, atônito — que quer ele? Quer o abismo
num primeiro andar, mobiliado pelo Gardé?
Ernestinho voltou-se, muito afetuosamente:
— Não, Sr. Zuzarte, — a sua voz era quase meiga —
quer o desfecho numa sala. De modo que eu — e fazia um gesto resignado
— a gente tem de condescender, tive de escrever outro final. Passei
a noite em claro. Tomei três chávenas de café!…
O Conselheiro acudiu, com a mão espalmada:
— Cuidado, Sr. Ledesma, cuidado! Prudência com esses excitantes!
Por quem é, prudência!
— A mim não me faz mal, Sr. Conselheiro — disse sorrindo.
— Escrevi-o em três horas! Venho de lho mostrar agora. Até
o tenho aqui…
— Leia, Sr. Ernesto, leia! — exclamou logo D. Felicidade.
Que lesse! Que lesse! Por que não lia?
Era uma maçada!… Era um rascunho!… Enfim, como queriam… E radiante
desdobrou, no silêncio, uma grande folha de papel azul pautado.
— Eu peço desculpa. Isto é um borrão. A coisa não
está ainda com todos os ff e rr. — Fez então voz teatral:
— ÁGATA… É a mulher; isto aqui é a cena com o
marido, o marido já sabe tudo…

ÁGATA (caindo de joelhos aos pés de Júlio)
“Mas mata-me! Mata-me, por piedade! Antes a morte, que ver, com esses
desprezos, o coração rasgado fibra a fibra!”
JÚLIO
“E não me rasgaste tu também o coração?
Tiveste tu piedade? Não. Retalhaste-mo! Meu Deus, eu que a julgava
pura, nessas horas em que arrebatados…”

O reposteiro franziu-se. Sentiu-se um fino tilintar de chávenas. Era
Juliana, de avental branco, com o chá.
— Que pena! — exclamou Luísa. — Depois do chá
se lê. Depois do chá.
Ernesto dobrou o papel, e, com um olhar de lado para Juliana, rancoroso:
— Não vale a pena, prima Luísa!
— Ora essa! É lindo! — afirmou D. Felicidade.
Juliana pousava sobre a mesa o prato das fatias, os biscoitos de Oeiras, os
bolos do Cocó.
— Aqui tem o seu chá fraco, Conselheiro — dizia Luísa.
— Sirva-se, Julião. As torradas ao Sr. Julião! Mais açúcar!
Quem quer? Uma torrada, Conselheiro?
— Estou amplamente servido, minha prezada senhora — replicou,
curvando-se.
E declarou, voltado para Ernestinho, que achava o diálogo opulento.
Mas, perguntaram, o que quer o empresário mais agora? Já tem
a sala…
Ernestinho, de pé, excitado, com um bolo de ovos na ponta dos dedos,
explicou:
— O que o empresário quer é que o marido lhe perdoe…
Foi um espanto:
— Ora essa! é extraordinário! Por quê?
— Então! — exclamou Ernestinho encolhendo os ombros —
diz que o público que não gosta! Que não são coisas
cá para o nosso pais…
— A falar a verdade, — disse o Conselheiro — a falar a verdade,
Sr. Ledesma, o nosso público não é geralmente afeto a
cenas de sangue.
— Mas não há sangue, Sr. Conselheiro! — protestava
Ernestinho erguendo-se sobre os bicos dos sapatos — mas não há
sangue! E com um tiro! E com um tiro pelas costas, Sr. Conselheiro!
Luísa fez a D. Felicidade — psit! e, num aparte, com um sorriso.
— Desses bolinhos de ovos. São muito frescos.
Ela respondeu, com uma voz lamentosa:
— Ai, filha, não!
E indicou o estômago, compungidamente.
No entanto o Conselheiro aconselhava a Ernestinho a demência; tinha-lhe
posto a mão no ombro paternalmente, e com uma voz persuasiva:
— Dá mais alegria à peça, Sr. Ledesma. O espectador
sai mais aliviado! Deixe sair o espectador aliviado!
— Mais um bolinho, Conselheiro?
— Estou repleto, minha prezada senhora.
E, então, invocou a opinião de Jorge. Não lhe parecia
que o bom Ernesto devia perdoar?
— Eu, Conselheiro? De modo nenhum. Sou pela morte. Sou inteiramente
pela morte. E exijo que a mates, Ernestinho!
D. Felicidade acudiu; toda bondosa:
— Deixe falar, Sr. Ledesma. Está a brincar. E ele então
que é um coração de anjo!
— Está enganada, D. Felicidade — disse Jorge, de pé
diante dela.
— Falo sério e sou uma fera! Se enganou o marido, sou pela morte.
No abismo, na sala, na rua, mas que a mate. Posso lá consentir que,
num caso desses, um primo meu, uma pessoa da minha família, do meu
sangue, se ponha a perdoar como um lamecha! Não! Mata-a! É um
princípio de família. Mata-a quanto antes!
— Aqui tem um lápis, Sr. Ledesma — gritou Julião,
estendendo-lhe uma lapiseira.
O Conselheiro, então, interveio grave:
— Não — disse — não creio que o nosso Jorge
fale sério. É muito instruído para ter idéias
tão…
Hesitou, procurou o adjetivo. Juliana pôs-se-lhe diante com uma bandeja,
onde um macaco de prata se agachava comicamente, sob um vasto guarda-sol eriçado
de palitos. Tomou um, curvou-se, e concluiu:
— … tão anticivilizadoras.
— Pois está enganado, Conselheiro, tenho-as — afirmou Jorge.

— São as minhas idéias. E aqui tem, se em lugar de se tratar
de um final de ato, fosse um caso da vida real, se o Ernesto viesse dizer-me:
sabes, encontrei minha mulher…
— Oh, Jorge! — disseram, repreensivamente.
— … Bem, supdnhamos, se ele mo viesse dizer, eu respondia-lhe o mesmo.
Dou a minha palavra de honra, que lhe respondia o mesmo: Mata-a!
Protestaram. Chamaram-lhe tigre, Otelo, Barba-Azul. Ele ria, enchendo. muito
sossegadamente o seu cachimbo.
Luísa bordava, calada; a luz do candeeiro, abatida pelo abat-jour,
dava aos seus cabelos tons de um louro quente, resvalava sobre a sua testa
branca como sobre um marfim muito polido.
— Que dizes tu a isto? — disse-lhe D. Felicidade.
Ela ergueu o rosto, risonha, encolheu os ombros…
E o Conselheiro Logo:
— A Srª D. Luísa diz com orgulho o que dizem as verdadeiras
mães de família:

Impurezas do mundo não me roçam
Nem a fímbria da túnica sequer.

— Ora muito boas-noites — disse, à porta, uma voz grossa.
Voltaram-se.
Ó Sebastião! Ó Sr. Sebastião! Ó Sebastiarrão!
Era ele, Sebastião, o grande Sebastião, o Sebastiarrão,
Sebastião tronco de árvore — o íntimo, o camarada,
o inseparável de Jorge desde o latim, na aula de frei Libório,
aos paulistas.
Era um homem baixo e grosso, todo vestido de preto, com um chapéu mole
desabado na mão. Começava a perder um pouco na frente os seus
cabelos castanhos e finos. Tinha a pele muito branca, a barba alourada e curta.
Veio sentar-se ao pé de Luísa.
— Então de onde vem, de onde vem?
Vinha do Price. Rira muito com os palhaços. Houvera a brincadeira da
pipa.
O seu rosto, em plena luz, tinha uma expressão honesta, simples, aberta:
os olhos pequenos, azuis de um azul-claro, de uma suavidade séria,
adoçavam-se muito quando sorria; e os beiços escarlates, sem
películas secas, os dentes luzidios, revelavam uma vida saudável
e hábitos castos. Falava devagar, baixo, como se tivesse medo de se
manifestar ou de fatigar. Juliana trouxera-lhe a sua chávena, e remexendo
o açúcar com a colher direita, os olhos ainda a rir, um sorriso
bom:
— A pipa tem muita graça! Muita graça!
Sorveu um gole de chá e depois de um momento:
— E tu, maroto, sempre partes amanhã? Não há umas
tentaçõezinhas de ir por aí fora com ele, minha cara
amiga?
Luísa sorriu. Tomara ela! Quem dera! Mas era uma jornada tão
incômoda! Depois a casa não podia ficar só, não
havia que fiar em criados…
— Está claro, está claro… — disse ele.
Jorge então, que abrira a porta do escritório, chamou-o:
— Ó Sebastião! Fazes favor?
Ele foi logo com o seu andar pesado, o largo dorso curvado; as abas do seu
casaco malfeito tinham um comprimento eclesiástico.
Entraram para o escritório.
Era uma saleta pequena, com uma estante alta e envidraçada, tendo em
cima a estatueta de gesso, empoeirada e velha, de uma bacante em delírio.
A mesa, com um antigo tinteiro de prata que fora de seu avô, estava
ao pé da janela; uma coleção empilhada de Diários
do Governo branquejava a um canto; por cima da cadeira de marroquim escuro
pendia, num caixilho preto, uma larga fotografia de Jorge; e sobre o quadro
duas espadas encruzadas reluziam. Uma porta, no fundo, coberta com um reposteiro
de baeta escarlate, abria para o patamar.
— Sabes quem esteve aí de tarde? — disse logo Jorge acendendo
o cachimbo. — Aquela desavergonhada da Leopoldina! Que te parece, hein?
— E entrou? — perguntou Sebastião, baixo, correndo por
dentro o pesado reposteiro de fazenda listrada.
— Entrou, sentou-se, esteve, demorou-se! Fez o que quis! A Leopoldina,
a Pão-e-queijo!
E arremessando o fósforo violentamente:
— Quando penso que aquela desavergonhada vem a minha casa! Uma criatura
que tem mais amantes que camisas, que anda pelo Dá-fundo em troças,
que passeava nos bailes, este ano, de dominó, com um tenor! A mulher
do Zagalão, um devasso que falsificou uma letra!
E quase ao ouvido de Sebastião:
— Uma mulher que dormiu com o Mendonça dos calos! Aquele sebento
do Mendonça dos calos!
Teve um gesto furioso; exclamou:
— E vem aqui, senta-se nas minhas cadeiras, abraça minha mulher,
respira o meu ar!… Palavra de honra, Sebastião, se a pilho —
procurou mentalmente, com o olhar aceso, um castigo suficiente — dou-lhe
açoites!
Sebastião disse devagar:
— E o pior é a vizinhança…
— Está claro que é! — exclamou Jorge. — Toda
essa gente aí pela rua abaixo sabe quem ela é! Sabem-lhe os
amantes, sabem-lhe os sítios. É a Pão-e-queijo! Todo
o mundo conhece a Pão-e-queijo!
— Má vizinhança… — disse Sebastião.
— De tremer!
Mas então! Estava acostumado à casa, era sua, tinha-a arranjado,
era uma economia…
— Se não! Não parava aqui um dia!
Era um horror de rua! Pequena, estreita, acavalados uns nos outros! Uma vizinhança
a postos, ávida de mexericos! Qualquer bagatela, o trotar de uma tipóia,
e aparecia por trás de cada vidro um par de olhos repolhudos a cocar!
E era logo um badalar de línguas por aí abaixo, e conciliábulos,
e opiniões formadas, e fulano é indecente e fulana é
bêbada…
— É o diabo! — disse Sebastião.
— A Luísa é um anjo, coitada — dizia Jorge passeando
pela saleta — mas tem coisas em que é criança. Não
vê o mal. É muito boa, deixa-se ir. Com este caso da Leopoldina,
por exemplo: foram criadas de pequenas, eram amigas, não tem coragem
agora para a pôr fora! É acanhamento, é bondade. Ele compreende-se!
Mas enfim as leis da vida têm as suas exigências!
E depois de uma pausa:
— Por isso, Sebastião, enquanto eu estiver fora, se te constar
que a Leopoldina vem por cá, avisa a Luísa! Porque ela é
assim, esquece-se, não reflexiona. É necessário alguém
que a advirta, que lhe diga: — Alto lá, isso não pode
ser! Que então cai logo em si, e é a primeira!… Vens por aí,
fazes-lhe companhia, fazes-lhe música, e se vires que a Leopoldina
aparece ao largo, tu logo: — Minha rica senhora, cuidado, olhe que isso
não! Que ela, sentindo-se apoiada, tem decisão. Se não,
acanha-se, deixa-a vir. Sofre com isso, mas não tem coragem de lhe
dizer: Não te quero ver, vai-te! Não tem coragem para nada;
começam as mãos a tremer-lhe, a secar-se-lhe a boca… E mulher,
é muito mulher!… Não te esqueças, hem, Sebastião?
— Então havia de me esquecer, homem?
Sentiram então o piano na sala, e a voz de Luísa ergueu-se,
fresca e clara, cantando a Mandolinata:

Amici, la notte é bella,
La luna va spontari…

— Fica tão só, coitada!… — disse Jorge.
Deu alguns passos pelo escritório, fumando, com a cabeça baixa:
— Todo o casal bem organizado, Sebastião, deve ter dois filhos!
Deve ter pelo menos um.
Sebastião coçou a barba em silêncio — e a voz de
Luísa, elevando-se com um certo esforço áspero, nos altos
da melodia:

Di cà, di là, per la città
Andiami a transnottari…

Era uma tristeza secreta de Jorge — não ter um filho! Desejava-o
tanto! Ainda em solteiro, nas vésperas do casamento, já sonhava
aquela felicidade: o seu filho! Via-o de muitas maneiras: ou gatinhando com
as suas perninhas vermelhas, cheias de roscas, e os cabelos anelados, finos
como fios de seda; ou rapaz forte, entrando da escola com os livros, alegre
e de olho vivo, vindo mostrar-lhe as boas notas dos mestres; ou, melhor, rapariga
crescida, clara e rosada, com um vestido branco, as duas tranças caídas,
vindo pousar as mãos nos seus cabelos já grisalhos…
Vinha-lhe, às vezes, um medo de morrer sem ter tido aquela felicidade
completadora!
Agora, na sala, a voz aguda de Ernestinho perorava; depois, no piano, Luísa
recomeçou a Mandolinata, com um brio jovial.
A porta do escritório abriu-se, Julião entrou:
— Que estão vocês aqui a conspirar? Vou-me safar, que é
tarde! Até à volta, meu velho, bem? Também ia contigo
tomar ar, respirar, ver campos, mas…
E sorriu com amargura. — Addio! Addio!
Jorge foi alumiar-lhe ao patamar, abraçá-lo outra vez. Se quisesse
alguma coisa do Alentejo…
Julião carregou o chapéu na cabeça:
— Dá cá outro charuto, por despedida! Dá cá
dois!
— Leva a caixa! Eu em viagem só fumo cachimbo. Leva a caixa,
homem!
Embrulhou-lha num Diário de Notícias; Julião meteu-a
debaixo do braço, e descendo os degraus:
— Cuidado com as sezões, e descobre uma mina de ouro!
Jorge e Sebastião entraram na sala. Ernestinho, encostado ao piano,
torcia as guias do bigodinho, e Luísa começava uma valsa de
Strauss — o Danúbio azul.
Jorge disse, rindo, estendendo os braços:
— Uma valsa, D. Felicidade?
Ela voltou-se, com um sorriso. E por que não? Em nova era falada! Citou
logo a valsa que dançara com o Sr. D. Fernando, no tempo da Regência,
nas Necessidades. Era uma valsa linda, dessa época: A pérola
de Ofir.
Estava sentada ao pé do Conselheiro, no sofá. E como retomando
um diálogo mais querido — continuou, baixo para ele, com uma
voz meiga:
— Pois creia, acho-o com ótimas cores.
O Conselheiro enrolava vagarosamente o seu lenço de seda da Índia.
— Na estação calmosa passo sempre melhor. E D. Felicidade?
— Ai! Estou outra, Conselheiro! Muito boas digestões, muito livre
de gases… Estou outra!
— Deus o queira, minha senhora, Deus o queira — disse o Conselheiro
esfregando lentamente as mãos.
Tossiu, ia levantar-se, mas D. Felicidade pôs-se a dizer:
— Espero que esse interesse seja verdadeiro…
Corou. O corpete flácido do vestido de seda preta enchia-se-lhe com
o arfar do peito.
O Conselheiro recaiu lentamente no sofá, — e com as mãos
nos joelhos:
— D. Felicidade sabe que tem em mim um amigo sincero…
Ela levantou para ele seus olhos pisados, de onde saíam revelações
de paixão e súplicas de felicidade:
— E eu, Conselheiro!…
Deu um grande suspiro, pôs o leque sobre o rosto.
O Conselheiro ergueu-se secamente. E com a cabeça alta, as mãos
atrás das costas, foi ao piano, perguntou a Luísa curvando-se:
— É alguma canção do Tirol, D. Luísa?
— Uma valsa de Strauss — murmurou-lhe Ernestinho, em bicos de —
Ah! Muita fama! Grande autor!
Tirou então o relógio. Eram horas, disse, de ir coordenar alguns
apontamentos. Aproximou-se de Jorge, com solenidade:
— Jorge, meu bom Jorge, adeus! Cautela com esse Alentejo! O clima é
nocivo, a estação traiçoeira!
E apertou-o nos braços com uma pressão comovida.
D. Felicidade punha a sua manta de renda negra.
— Já, D. Felicidade? — disse Luísa.
Ela explicou-lhe, ao ouvido:
— Já, sim, filha, que tenho estado a abarrotar, comi umas vagens
e tenho estado!… E aquele homem, aquele gelo! O Sr. Ernesto vem para os
meus sítios, hein?
— Como um fuso, minha senhora!
Tinha vestido o seu paletó de alpaca clara, fumava chupando, com as
faces encovadas, por uma boquilha enorme, onde uma Vênus se torcia sobre
o dorso de um leão domado.
— Adeus, primo Jorge, saudinha e dinheiro, hein? Adeus! Quando for a
Honra e paixão cá mando um camarote à prima Luísa.
Adeus! Saudinha!
Iam a sair. Mas o Conselheiro, à porta, voltando-se subitamente, com
as abas do paletó deitadas para trás, a mão pomposamente
apoiada no castão de prata da bengala que representava uma cabeça
de mouro, disse com gravidade:
— Esquecia-me, Jorge! Tanto em Évora, como em Beja, visite os
governadores civis! E eu lhe digo por quê: deve-lho como primeiros funcionários
do distrito, e podem-lhe ser de muita utilidade nas suas peregrinações
científicas!
E curvando-se profundamente:
— Ai rivedere, como se diz em Itália.
Sebastião tinha ficado. Para arejar do fumo de tabaco, Luísa
foi abrir as janelas; a noite estava quente e imóvel, de luar.
Sebastião pusera-se ao piano, e com a cabeça curvada, corria
devagar o teclado.
Tocava admiravelmente, com uma compreensão muito fina da música.
Outrora compusera mesmo uma Meditação, duas Valsas, uma Balada;
mas eram estudos muito trabalhados, cheios de reminiscências, sem estilo.
— Da cachimônia não me sai nada — costumava ele dizer
com bonomia, batendo na testa, sorrindo — mas lá com os dedos!…
Pôs-se a tocar um Noturno, de Chopin. Jorge sentara-se no sofá
ao pé de Luísa.
— Já tens pronto o teu farnelzinho! … — disse-lhe ela.
— Bastam umas bolachas, filha. O que quero é o cantil com conhaque.
— E não te esqueças de mandar um telegrama logo que chegues!
— Pudera!
— Tu daqui a quinze dias, vens!
— Talvez…
Ela teve um gesto amuado.
— Ah, bem! Se não vieres vou ter contigo! A culpa é tua.
E olhando em redor:
— Que só que vou ficar!
Mordeu o beicinho, fitou o tapete. E de repente, com a voz ainda triste.
— Psit, Sebastião! A malaguenha, faz favor?
Sebastião começou a tocar a malaguenha. Aquela melodia cálida,
muito arrastada, encantava-a. Parecia-lhe estar em Málaga, ou em Granada,
não sabia; era sob as laranjeiras, mil estrelinhas luzem; a noite é
quente, o ar cheira bem; por baixo de um lampião suspenso a um ramo,
um cantador sentado na tripeça mourisca faz gemer a guitarra; em redor
as mulheres com os seus corpetes de veludilho encarnado batem as mãos
em cadência; e ao largo dorme uma andaluza de romance e de zarzuela,
quente e sensual, onde tudo são braços brancos que se abrem
para o amor, capas românticas que roçam as paredes, sombrias
vielas onde luz o nicho do santo e se repenica a viola, serenos que invocam
a Virgem Santíssima cantando as horas…
— Muito bem, Sebastião! Gradas!
Ele sorriu, ergueu-se, fechou cuidadosamente o piano, e indo buscar o seu
chapéu desabado:
— Então amanhã às sete? Cá estou, e vou-te
acompanhar até ao Barreiro.
Bom Sebastião!
Foram debruçar-se na varanda para o ver sair. A noite fazia um silêncio
alto, de uma melancolia plácida; o gás dos candeeiros parecia
mortiço; a sombra que se recortava na rua, com uma nitidez brusca,
tinha um tom quente e doce; a luz punha nas fachadas brancas claridades vivas,
e nas pedras da calçada faiscações vidradas; uma clarabóia
reluzia, a distância, como uma velha lâmina de prata; nada se
movia; e instintivamente os olhos erguiam-se para as alturas, procuravam a
lua branca, muito séria.
— Que linda noite!
A porta bateu, e Sebastião debaixo, na sombra:
— Dá vontade de passear, hein?
— Linda!
Ficaram à varanda preguiçosamente, olhando, detidos pela tranqüilidade,
pela luz. Puseram-se a falar baixo da jornada. Àquela hora onde estaria
ele? Já em Évora, num quarto de estalagem, passeando monotonamente
sobre um chão de tijolo. Mas voltaria breve; esperava fazer um bom
negócio com o Paco, o espanhol das minas de Portel, trazer talvez alguns
centos de mil-réis, e teriam então a doçura do mês
de setembro; poderiam fazer uma jornada ao Norte, ir ao Bussaco, trepar aos
altos, beber a água fresca das rochas, sob a espessura úmida
das folhagens; irem a Espinho, e pelas praias, sentar-se na areia, no bom
ar cheio de azote, vendo o mar unido, de um azul metálico e faiscante,
o mar do verão, com algum fumo de paquete que passa para o Sul ao longe
muito adelgaçado. Faziam outros planos com os ombros muito chegados;
uma felicidade abundante enchia-os deliciosamente. E Jorge disse:
— Se houvesse um pequerrucho, já não ficavas tão
só!
Ela suspirou. Também o desejava tanto! Chamar-se-ia Carlos Eduardo.
E via-o no seu berço dormindo, ou no regaço, nu, agarrando com
a mãozinha o dedo do pé, mamando a ponta rosada do seu peito…
Um estremecimento de um deleite infinito correu-lhe no como. Passou o braço
pela cinta de Jorge. Um dia seria, teria um filho decerto! E não compreendia
o seu filho homem nem Jorge velho; via-os ambos do mesmo modo: um sempre amante,
novo, forte; o outro sempre dependente do seu peito, da maminha, ou gatinhando
e palrando, louro e cor-de-rosa. E a vida aparecia-lhe infindável,
de uma doçura igual, atravessada do mesmo enternecimento amoroso, quente,
calma e luminosa como a noite que os cobria.
— A que horas quer a senhora que a ve a acordar? — disse a voz
seca de Juliana.
Luísa voltou-se:
— Às sete, já lhe disse há pouco, criatura.
Fecharam a janela. Em torno das velas uma borboleta branca esvoaçava.
Era bom agouro!
Jorge prendeu-a nos braços:
— Vai ficar sem o seu maridinho, hein? — disse tristemente.
Ela deixou pesar o corpo sobre as mãos dele cruzadas, olhou-o com um
longo olhar que se enevoava e escurecia, e envolvendo-lhe o pescoço
com o gesto lento, harmonioso e solene dos braços, pousou-lhe na boca
um beijo grave e profundo. Um vago soluço levantou-lhe o peito.
— Jorge! Querido! — murmurou.

CAPÍTULO 3

 

Havia doze dias que Jorge tinha partido e, apesar do calor e da poeira, Luísa
vestia-se para ir à casa de Leopoldina. Se Jorge soubesse não
havia de gostar, não! Mas estava tão farta de estar só!
Aborrecia-se tanto! De manhã ainda tinha os arranjos, a costura, a
toilette, algum romance… Mas de tarde!
À hora em que Jorge costumava voltar do ministério, a solidão
parecia alargar-se em tomo dela. Fazia-lhe tanta falta o seu toque de campainha,
os seus passos no corredor!…
Ao crepúsculo, ao ver cair o dia, entristecia-se sem razão,
caía numa vaga sentimentalidade: sentava-se ao piano, e os fados tristes,
as cavatinas apaixonadas gemiam instintivamente no teclado, sob os seus dedos
preguiçosos, no movimento abandonado dos seus braços moles.
O que pensava em tolices então! E à noite, só, na larga
cama francesa, sem poder dormir com o calor, vinham-lhe de repente terrores,
palpites de viuvez.
Não estava acostumada, não podia estar só. Até
se lembram de chamar a tia Patrocínio, uma velha parenta pobre que
vivia em Belém: ao menos era alguém: mas receou aborrecer-se
mais ao pé da sua longa figura de viúva tacituma, sempre a fazer
meia, com grandes óculos de’ tartaruga sobre o nariz de águia.
Naquela manhã pensam em Leopoldina, toda contente de ir tagarelar,
rir, segredar, passar as horas do calor. Penteava-se em colete e saia branca:
a camisinha decotada descobria os ombros alvos duma redondeza macia, o colo
branco e tenro, azulado de veiazinhas finas; e os seus braços redondinhos,
um pouco vermelhos no cotovelo, descobriam por baixo, quando se erguiam prendendo
as tranças, fiozinhos louros, frisando e fazendo ninho.
A sua pele conservava ainda o rosado úmido da água fria: havia
no quarto um cheiro agudo de vinagre de toilette: os transparentes de linho
branco descidos davam uma luz baça, com tons de leite.
Ah! positivamente devia escrever a Jorge, que voltasse depressa! Que o que
tinha graça era ir surpreendê-lo a Évora, cair-lhe no
Tabaquinho, um dia, às três horas! E quando ele entrasse empoeirado
e encalmado, de lunetas azuis, atirar-se-lhe ao pescoço! E à
tardinha, pelo braço dele, ainda quebrada da jornada, com um vestido
fresco, ir ver a cidade. Pelas ruas estreitas e tristes admiravam-na muito.
Os homens vinham às portas das lojas. Quem seria? É de Lisboa.
É a do engenheiro. — E diante do toucador, apertando o comete
do vestido, sota àquelas imaginações, e ao seu rosto,
no espelho.
A porta do quarto rangeu devagarinho.
— Quem é?
A voz de Juliana, plangente, disse:
— A senhora dá licença que eu vá logo ao médico?
— Vá, mas não se demore. Puxe-me essa saia atrás.
Mais. O que é que você tem?
— Enjôos, minha senhora, peso no coração. Passei
a noite em claro.
Estava mais amarela, o olhar muito pisado, a face envelhecida. Trazia um vestido
de merino preto escoado, e a cuia da semana de cabelos velhos.
— Pois sim, vá — disse Luísa. — Mas arranje
tudo antes. E não se demore, hein?
Juliana subiu logo à cozinha. Era no segundo andar, com duas janelas
de sacada para as traseiras, larga, ladrilhada de tijolo diante do fogão.
— Diz que sim, Srª Joana, — disse à Cozinheira —
que podia ir. Vou-me vestir. Ela também está quase pronta. Fica
vossemecê com a casa por Sua!
A cozinheira fez-se vermelha, Pôs-se a cantar, foi logo sacudir, estender
na varanda um velho tapete esfiado; e os seus olhos não deixavam, defronte,
uma casa baixa, pintada de amarelo, com um portal largo, — a loja de
marceneiro do tio João Galho, onde trabalhava o Pedro, o seu amante.
A pobre Joana “babava-se” por ele. Era um rapazola pálido
e afadistado; Joana era minhota, de Avintes, de família de lavrador,
e aquela figura delgada de lisboeta anêmico seduzia-a com uma violência
abrasada. Como não podia sair à semana, metia-o em casa, pela
porta de trás, quando estava só; estendia então na varanda,
para dar sinal, o velho tapete desbotado, onde ainda se percebiam os paus
de um veado.
Era uma rapariga muito forte, com peitos de ama, o cabelo como azeviche, todo
lustroso do óleo de amêndoas doces. Tinha a testa curta de plebéia
teimosa. E as sobrancelhas cerradas faziam-lhe parecer o olhar mais negro.
— Ai! — Suspirou Juliana — A Sr. a Joana é que a
leva!
A rapariga ficou escarlate.
Mas Juliana acudiu logo:
— Olha o mal! Fosse eu! Boa! Faz muito bem!
Juliana lisonjeava sempre a cozinheira; dependia dela; Joana dava-lhe caldinhos
às horas de debilidade ou, quando ela estava mais adoentada, fazia-lhe
um bife às escondidas da senhora. Juliana tinha um grande medo de cair
em fraqueza”, e a cada momento precisava tomar a “sustância”.
Decerto como feia e solteirona detestava aquele “escândalo do
carpinteiro”; mas protegia-o porque ele valia muitos regalos aos seus
fracos de gulosa.
— Fosse eu! — repetiu — dava-lhe o melhor da panela! Se
a gente ia a ter escrúpulos por causa dos amos, boa! Olha quem! Vêem
urna pessoa a morrer, e é como se fosse um cão…
E com um risinho amargo:
Diz que me não demorasse no médico… E corno quem diz: cura-te
depressa ou espicha depressa!
Foi buscar a vassoura a um canto, e com um suspiro agudo:
— Todas o mesmo, uma récua!
Desceu, começou a varrer o corredor -— Toda a noite estivera
doente; o quarto no sótão, debaixo das telhas, muito abafado,
com um cheiro de tijolo cozido, dava-lhe enjôos, faltas de ar, desde
o começo do verão; na véspera até vomitara! E
já levantada às seis horas, não descansara, limpando,
engomando, despejando, com a pontada no lado e todo o estômago embrulhado!
— Tinha escancarado a cancela, e com grandes ais, atirava vassouradas
furiosas contra as grades do corrimão.
— A Sr.a D. Luísa está em casa?
Voltou-se. Nos últimos degraus da escada estava um sujeito, que lhe
pareceu “estrangeiro”. Era trigueiro, alto, tinha um bigode levantado,
um ramo na sobrecasaca azul, e o verniz dos seus sapatos resplandecia.
— A senhora vai sair — disse ela olhando-o muito. — Faz
favor de dizer quem é?
O indivíduo sorriu.
— Diga-lhe que é um sujeito para um negócio. Um negócio
de minas.
Luísa diante do toucador, já de chapéu, metia numa casa
do corpete dois botões de rosa-chá.
— Um negócio! — disse muito surpreendida. — Deve
ser algum recado para o Sr. Jorge, decerto! Mande entrar. Que espécie
de homem é?
— Um janota!
Luísa desceu o véu branco, calçou devagar as luvas de
peau de suède claras, deu duas pancadinhas fofas ao espelho na gravata
de renda, e abriu a porta da sala. Mas quase recuou; fez ah! toda escarlate.
Tinha-o reconhecido logo. Era o primo Basílio.
Houve um shake-hands demorado, um pouco trêmulo. Estavam ambos calados:
— ela com todo o sangue no rosto, um sorriso vago; ele fitando-a muito,
com um olhar admirado. Mas as palavras, as perguntas vieram logo, muito precipitadamente:
— Quando tinha ele chegado? Se sabia que ele estava em Lisboa? Como
soubera a morada dela?
Chegara na véspera no paquete de Bordéus. Perguntara no ministério;
disseram-lhe que Jorge estava no Alentejo, deram-lhe a adresse…
— Como tu estás mudada, Santo Deus!
— Velha?
— Bonita!
— Ora!
E ele, que tinha feito? Demorava-se?
Foi abrir uma janela, dar uma luz larga, mais clara. Sentaram-se. Ele no sofá
muito languidamente; ela ao pé, pousada de leve à beira de uma
poltrona, toda nervosa.
Tinha deixado o degredo — disse ele. — Viera respirar um pouco
à velha Europa. Estivera em Constantinopla, na Terra Santa, em Roma.
O último ano passara-o em Paris. Vinha de lá, daquela aldeola
de Paris. — Falava devagar, recostado, com um ar íntimo, estendendo
sobre o tapete, comodamente, os seus sapatos de verniz.
Luísa olhava-o. Achava-o mais varonil, mais trigueiro. No cabelo preto
anelado havia agora alguns fios brancos; mas o bigode pequeno tinha o antigo
ar moço, orgulhoso e intrépido; os olhos, quando ria, a mesma
doçura amolecida, banhada num fluido. Reparou na ferradura de pérola
da sua gravata de cetim preto, nas pequeninas estrelas brancas bordadas nas
suas meias de seda. A Bahia não o vulgarizara. Voltava mais interessante!
— Mas tu, conta-me de ti! — dizia ele com um sorriso, inclinado
para ela. — És feliz, tens um pequerrucho…
— Não — exclamou Luísa rindo — não
tenho! Quem te disse?
— Tinham-me dito. E teu marido demora-se?
— Três, quatro semanas, creio.
Quatro semanas! Era uma viuvez! Ofereceu-se logo para a vir ver mais vezes,
palrar uni momento, pela manhã…
— Pudera não! És o único parente que tenho agora…
Era verdade!… E a conversação tomou uma intimidade melancólica;
falaram da mãe de Luísa, a tia Jojó, como lhe chamava
Basílio. Luísa contou a sua morte, muito doce, na poltrona,
sem um ar…
— Onde está sepultada? — perguntou Basílio com uma
voz grave; e acrescentou, puxando o punho da camisa de chita: — Está
no nosso jazigo?
— Está.
— Hei de ir lá. Pobre tia Jojó!
Houve um silêncio.
— Mas tu ias sair! — disse Basílio de repente, querendo
erguer-se.
— Não! — exclamou. — Não! Estava aborrecida,
não tinha nada que fazer. Ia tomar ar. Não saio, já.
Ele ainda disse:
— Não te prendas…
— Que tolice! Ia à casa de uma amiga passar um momento.
Tirou logo o chapéu; naquele movimento, os braços erguidos repuxaram
o corpete justo, as formas do seio acusaram-se suavemente.
Basílio torcia a ponta do bigode devagar; e vendo-a descalçam
as luvas:
— Era eu antigamente quem te calçava e descalçava as luvas…
Lembras-te?… Ainda tenho esse privilégio exclusivo, creio eu…
Ela riu.
— Decerto que não…
Basílio disse então, lentamente, fitando o chão:
— Ah! Outros tempos!
E pôs-se a falar de Colares: a sua primeira idéia, mal chegara,
tinha sido tomar uma tipóia e ir lá; queria ver a quinta; ainda
existiria o balouço debaixo do castanheiro? ainda haveria o caramanchão
de rosinhas brancas, ao pé do Cupido de gesso que tinha uma asa quebrada?…
Luísa ouvira dizer que a quinta pertencia agora a um brasileiro; sobre
a estrada havia um mirante com um teto chinês, ornado de bolas de vidro;
e a velha casa morgada fora reconstruída e mobilada pelo Gardé.
— A nossa pobre sala de bilhar, cor de oca, com grinaldas de rosas!
disse Basílio; e fitando-a: — Lembras-te das nossas partidas
de bilhar?
Luísa, um pouco vermelha, torcia os dedos das luvas; ergueu os olhos
para ele; disse sorrindo:
— Éramos duas crianças!
Basílio encolheu tristemente os ombros, fitou as ramagens do tapete;
parecia abandonar-se a uma saudade remota, e com uma voz sentida:
— Foi o bom tempo! Foi o meu bom tempo!
Ela via a sua cabeça bem-feita, descaída naquela melancolia
das felicidades passadas, com uma risca muito fina, e os cabelos brancos —
que lhe dera a separação. Sentia também uma vaga saudade
encher-lhe o peito: ergueu-se, foi abrir a outra janela, como para dissipar
na luz viva e forte aquela perturbação. Perguntou-lhe então
pelas viagens, por Paris, por Constantinopla.
Fora sempre o seu desejo viajar, — dizia — ir ao Oriente. Quereria
andar em caravanas, balouçada no dorso dos camelos; e não teria
medo, nem do deserto, nem das feras…
— Estás muito valente! — disse Basílio. —
Tu eras uma maricas, tinhas medo de tudo… Até da adega, na casa do
papá, em Almada!
Ela corou. Lembrava-se bem da adega, com a sua frialdade subterrânea
que dava arrepios! A candeia de azeite pendurada na parede alumiava com uma
luz avermelhada e fumosa as grossas traves cheias de teias de aranha, e a
fileira tenebrosa das pipas bojudas. Havia ali às vezes, pelos cantos,
beijos furtados…
Quis saber então o que tinha feito em Jerusalém; se era bonito.
Era curioso. Ia pela manhã um bocado ao Santo Sepulcro; depois do almoço
montava a cavalo… Não se estava mal no hotel; inglesas bonitas…
Tinha algumas intimidades ilustres…
Falava delas, devagar, traçando a perna; o seu amigo o patriarca de
Jerusalém, a sua velha amiga a princesa de La Tour d’Auvergne!
Mas o melhor do dia era de tarde — dizia — no Jardim das Oliveiras,
vendo defronte as muralhas do templo de Salomão, ao pé a aldeia
escura de Betâaia onde Marta fiava aos pés de Jesus, e mais longe,
faiscando imóvel sob o sol, o Mar Morto! E ali passava sentado num
banco, fumando tranqüilamente o seu cachimbo!
Se tinha corrido perigos?

Decerto. Uma tempestade de areia no deserto de Petra! Horrível! Mas
que linda viagem, as caravanas, os acampamentos! Descreveu a sua toilette;
uma manta de pele de camelo às listras vermelhas e pretas, um punhal
de Damasco numa cinta de Bagdá, e a lança comprida dos beduínos.
— Devia-te ficar bem!
— Muito bem. Tenho fotografias.
Prometeu-lhe dar-lhe uma, e acrescentou:
— Sabes que te trago presentes?
— Trazes? — E os seus olhos brilhavam.
O melhor era um rosário…
— Um rosário?
— Uma relíquia! Foi benzido primeiro pelo patriarca de Jerusalém
sobre o túmulo de Cristo, depois pelo papa…
Ah! Porque tinha estado com o papa! Um velhinho muito asseado, já todo
branquinho, vestido de branco, muito amável!
— Tu dantes não eras muito devota — disse.
— Não, não sou muito caturra nessas coisas — respondeu
rindo.
— Lembras-te da capela da nossa casa em Aliada?
Tinham passado ali lindas tardes! Ao pé da velha capela morgada havia
um adro todo cheio de altas ervas floridas, — e as papoulas, quando
vinha a aragem, agitavam-se como asas vermelhas de borboletas pousadas…
— E a tua, lembras-te, onde eu fazia ginástica?
— Não falemos no que lá vai!
Em que queria ela então que ele falasse? Era a sua mocidade, o melhor
que tivera na vida…
Ela sorriu, perguntou:
— E no Brasil?
Um horror! Até fizera a corte a uma mulata.
— E por que te não casaste?…
Estava a mangar! Uma mulata!
— E de resto — acrescentou com a voz de um arrependimento triste
— já que me não casei quando devia, — encolheu os
ombros melancolicamente — acabou-se… Perdi a vez. Ficarei solteiro.
Luísa fez-se escarlate. Houve um silêncio.
— E qual é o outro presente, então, além do rosário?
— Ah! Luvas. Luvas de verão, de peau de suède, de oito
botões. Luvas decentes. Vocês aqui usam umas luvitas de dois
botões, a ver-se o punho, um horror!
De resto pelo que tinha visto, as mulheres em Lisboa cada dia se vestiam pior!
Era atroz! Não dizia por ela; até aquele vestido tinha chic,
era simples, era honesto. Mas em geral, era um horror. Em Paris! Que deliciosas,
que frescas as toilettes daquele verão! Oh! mas em Paris!… Tudo é
superior! Por exemplo, desde que chegara ainda não pudera comer. Positivamente
não podia comer! — Só em Paris se come — resumiu.
Luísa voltava entre os dedos o seu medalhão de ouro, preso ao
pescoço por uma fita de veludo preto.
— E estiveste então um ano em Paris?
Um ano divino. Tinha um apartamento lindíssimo, que pertencera a Lord
Falmouth, Rue Saint Florentin; tinha três cavalos…
E recostando-se muito, com as mãos nos bolsos:
— Enfim, fazer este vale de lágrimas o mais confortável
possível!… Dize cá, tens algum retrato nesse medalhão?
— O retrato de meu marido.
— Ah! deixa ver!
Luísa abriu o medalhão. Ele debruçou-se; tinha o rosto
quase sobre o peito dela. Luísa sentia o aroma fino que vinha de seus
cabelos.
— Muito bem, muito bem! — fez Basílio.
Ficaram calados.
— Que calor que está! — disse Luísa. — Abafa-se,
hein!
Levantou-se, foi abrir um pouco uma vidraça. O sol deixara a varanda.
Uma aragem suave encheu as pregas grossas das bambinelas.
— E o calor do Brasil — disse ele. — Sabes que estás
mais crescida?
Luísa estava de pé. O olhar de Basílio corria-lhe as
linhas do corpo; e com a voz muito íntima, os cotovelos sobre os joelhos,
o rosto erguido para ela:
— Mas, francamente, dize cá, pensaste que eu te viria ver?
— Ora essa! Realmente, se não viesses zangava-me. Es o meu único
parente… O que tenho pena é que meu marido não esteja…
— Eu — acudiu Basílio — foi justamente por ele não
estar…
Luísa fez-se escarlate. Basílio emendou logo, um pouco corado
também:
— Quero dizer… Talvez ele saiba que houve entre nós…
Ela interrompeu:
— Tolices! Éramos duas crianças. Onde isso vai!
— Eu tinha vinte e sete anos — observou ele, curvando-se.
Ficaram calados, um pouco embaraçados. Basílio cofiava o bigode,
olhando vagamente em redor.
— Estás muito bem instalada aqui — disse.
Não estava mal… A casa era pequena, mas muito cômoda. Pertencia-lhes.
— Ah! Estás perfeitamente! Quem é esta senhora, com uma
luneta de ouro?
E indicava o retrato por cima do sofá.
— A mãe de meu marido.
— Ah! vive ainda?
— Morreu.
— E o que uma sogra pode fazer de mais amável…
Bocejou ligeiramente, fitou um momento os seus sapatos muito aguçados,
e com um movimento brusco, ergueu-se, tomou o chapéu.
— Já? Onde estás?
— No Hotel Central. E até quando?
— Até quando quiseres. Não disseste que vinhas amanhã
com o rosário?
Ele tomou-lhe a mão, curvou-se:
— Já não se pode dar um beijo na mão de uma velha
prima?
— Por que não?
Pousou-lhe um beijo na mão, muito longo, com uma pressão doce.
— Adeus! — disse.
E a porta, com o reposteiro meio erguido, voltando-se:
— Sabes que eu, ao subir as escadas, vinha a perguntar a mim mesmo,
como se vai isto passar?
— Isto quê? Vermo-nos outra vez? Mas, perfeitamente. Que imaginaste
tu?
Ele hesitou, sorriu:
— Imaginei que não eras tão boa rapariga. Adeus. Amanhã,
hein?
No fundo da escada acendeu o charuto, devagar.
— Que bonita que ela está! — pensou.
E arremessando o fósforo, com força:
— E eu, pedaço de asno, que estava quase decidido a não
a vir ver! Está de apetite! Está muito melhor! E sozinha em
casa; aborrecidinha talvez!…
Ao pé da Patriarcal fez parar um coupé vazio; e estendido, com
o chapéu nos joelhos, enquanto a parelha esfalfada trotava:
— E tem-me o ar de ser muito asseada, coisa rara na terra! As mãos
muito bem tratadas! O pé muito bonito!
Revia a pequenez do pé, pôs-se a fazer por ele o desenho mental
de outras belezas, despindo-a, querendo adivinhá-la… A amante que
deixara em Paris era muito alta e magra, de uma elegância de tísica;
quando se decotava viam-se as saliências das suas primeiras costelas.
E as formas redondinhas de Luísa decidiram-no:
— A ela! — exclamou com apetite. — A ela, como S. Tiago,
aos mouros!
Luísa, quando o sentiu embaixo fechar a porta da rua, entrou no quarto,
atirou o chapéu para a causeuse, e foi-se logo ver ao espelho. Que
felicidade estar vestida! Se ele a tivesse apanhado em roupão, ou mal
penteada! … Achou-se muito afogueada, cobriu-se de pó-de-arroz. Foi
à janela, olhou um momento a rua, o sol que batia ainda nas casas fronteiras.
Sentia-se cansada. Àquelas horas Leopoldina estava a jantar já,
decerto… Pensou em escrever a Jorge “para matar o tempo”, mas
veio-lhe uma preguiça; estava tanto calor! Depois não tinha
que lhe dizer! Começou então a despir-se devagar diante do espelho,
olhando-se muito, gostando de se ver branca, acariciando a finura da pele,
com bocejos lânguidos de um cansaço feliz. — Havia sete
anos que não via o primo Basílio! Estava mais trigueiro, mais
queimado; mas ia-lhe bem!
E depois de jantar ficou junto à janela, estendida na voltaire, com
um livro esquecido no regaço. O vento caíra e o ar, de um azul
forte nas alturas, estava imóvel; a poeira grossa pousara; a tarde
tinha uma transparência calma de luz; pássaros chilreavam na
figueira-brava; da serralheria próxima saía o martelar contínuo
e sonoro de folhas de ferro. Pouco a pouco o azul desbotou; sobre o poente,
laivos de cor de laranja desmaiada esbateram-se como grandes pinceladas desleixadas.
Depois tudo se cobriu de uma sombra difusa, calada e quente, com uma estrelinha
muito viva que luzia e tremia. E Luísa deixara-se ficar na votraire
esquecida, absorvida, sem pedir luz.
— Que vida interessante a do primo Basílio! — pensava.
— O que ele tinha visto! Se ela pudesse também fazer as suas
malas, partir, admirar aspectos novos e desconhecidos, a neve nos montes,
cascatas reluzentes! Como desejaria visitar os paises que conhecia dos romances
— a Escócia e os seus lagos taciturnos, Veneza e os seus palácios
trágicos; aportar às baías, onde um mar luminoso e faiscante
morre na areia fulva; e das cabanas dos pescadores, de teto chato, onde vivem
as Grazielas, ver azularem-se ao longe as ilhas de nomes sonoros! E ir a Paris!
Paris sobretudo! Mas, qual! Nunca viajaria decerto; eram pobres; Jorge era
caseiro, tão lisboeta!
Como seria o patriarca de Jerusalém? Imaginava-o de longas barbas brancas,
recamado de ouro, entre instrumentações solenes e rolos de incenso!
E a princesa de La Tour d’Auvérgne? Devia ser bela, de uma estatura
real, vivia cercada de pajens, namorara-se de Basílio. — A noite
escurecia, outras estrelas luziam. — Mas de que servia viajar, enjoar
nos paquetes, bocejar nos vagões, e, numa diligência muito sacudida,
cabecear de sono pela serra nas madrugadas frias? Não era melhor viver
num bom conforto, com um marido terno, uma casinha abrigada, colchões
macios, uma noite de teatro às vezes, e um bom almoço nas manhãs
claras quando os canários chalram? Era o que ela tinha. Era bem feliz!
Então veio-lhe uma saudade de Jorge; desejaria abraçá-lo,
tê-lo ali, ou quando descesse ir encontrá-lo fumando o seu cachimbo
no escritório, com o seu jaquetão de veludo. Tinha tudo, ele,
para fazer uma mulher feliz e orgulhosa: era belo, com uns olhos magníficos,
terno, fiel. Não gostaria de um marido com uma vida sedentária
e caturra; mas a profissão de Jorge era interessante; descia aos poços
tenebrosos das minas; um dia aperrara as pistolas contra uma malta revoltada;
era valente; tinha talento! Involuntariamente, porém, o primo Basílio
fazendo flutuar o seu bornous branco pelas planícies da Terra Santa,
ou em Paris, direito na almofada, governando tranqüilamente os seus cavalos
inquietos — davam-lhe a idéia de uma outra existência mais
po&ica, mais própria para os episódios do sentimento.
Do céu estrelado caia uma luz difusa; janelas alumiadas sobressaíam
ao longe, abertas à noite abafada; vôos de morcegos passavam
diante da vidraça.
— A senhora não quer luz? — perguntou à porta a
voz fatigada de Juliana.
— Ponha-a no quarto.
Desceu. Bocejava muito; sentia-se quebrada.
— É trovoada — pensou.
Foi à sala, sentou-se ao piano, tocou ao acaso bocados da Lúcia,
da Sonâmbula, o Fado; e parando, os dedos pousados de leve sobre o teclado,
pôs-se a pensar que Basílio devia vir no dia seguinte; vestiria
o roupão novo de foulard cor de castanho! Recomeçou o Fado,
mas os olhos cerravam-lhe.
Foi para o quarto.
Juliana trouxe o rol e a lamparina. Vinha arrastando as chinelas, com um casabeque
pelos ombros, encolhida e lúgubre. Aquela figura com um
ar de enfermaria irritou Luísa:
— Credo, mulher! Você parece a imagem da morte!
Juliana não respondeu. Pousou a lamparina; apanhou, placa a placa,
sobre a cômoda, o dinheiro das compras; e com os olhos baixos:
— A senhora não precisa mais nada, não?
— Vá-se, mulher, vá!
Juliana foi buscar o candeeiro de petróleo, subiu ao quarto. Dormia
em cima, no sótão, ao pé da cozinheira.
— Pareço-te a imagem da morte! — resmungava, furiosa.
O quarto era baixo, muito estreito, com o teto de madeira inclinado; o sol,
aquecendo todo o dia as telhas por cima, fazia-o abafado como um forno; havia
sempre à noite um cheiro requentado de tijolo escandescido. Dormia
num leito de ferro, sobre um colchão de palha mole coberto de uma colcha
de chita; da barra da cabeceira pendiam os seus bentinhos e a rede enxovalhada
que punha na cabeça; ao pé tinha preciosamente a sua grande
arca de pau, pintada de azul, com uma grossa fechadura. Sobre a mesa de pinho
estava o espelho de gaveta, a escova de cabelos enegrecida e despelada, um
pente de osso, as garrafas de remédio, uma velha pregadeira de cetim
amarelo, e, embrulhada num jornal, a cuia de retrós dos domingos. E
o único adorno das paredes sujas, riscadas da cabeça de fósforos,
— era uma litografia de Nossa Senhora das Dores por cima da cama, e
um daguerreótipo onde se percebia vagamente, no reflexo espelhado da
lâmina, os bigodes encerados e as divisas de um sargento.
— A senhora já se deitou, Sr. a Juliana? — perguntou a
cozinheira do quarto pegado, de onde saía uma barra de luz viva cortando
a escuridão do corredor.
— Já se deitou, Sr. a Joana, já. Está hoje com
os azeites. Falta-lhe o homem!
Joana, às voltas, fazia ranger as madeiras velhas da cama. Não
podia dormir! Abafava-se! Ufa!
— Ai! E aqui! — exclamou Juliana.
Abriu o postigo que dava para os telhados, para deixar arejar; calçou
as chinelas de tapete; e foi ao quarto de Joana. Mas não entrou, ficou
à porta; era criada de dentro, evitava familiaridades. Tinha tirado
a cuia, e com um Lenço preto e amarelo amarrado na cabeça, o
seu rosto parecia mais chupado, e as orelhas mais despegadas do crânio;
a camisa decotada descobria as clavículas descarnadas; a saia curta
mostrava as canelas muito brancas, muito secas. E com o casabeque pelos ombros,
coçando devagarinho os cotovelos agudos:
— Diga-me cá, Sr. a Joana — disse com a voz discreta —
aquele sujeito demorou-se muito? Reparou?
— Tinha saído naquele instantinho, quando vossemecê entrou.
Ufa!
Encalmada, quase descoberta, com as pernas muito abertas, Joana coçava-se
furiosamente por baixo da grossa camisa com folhos à minhota que lhe
descobria os peitos. Não podia parar com os percevejos! O raio do quarto
tinha ninhos! Até sentia o estômago embrulhado.
— Ai! É um inferno! — disse com lástima Juliana.
— Eu só adormeço com dia. Mas ainda eu agora reparo…
Vossemecê tem S. Pedro à cabeceira. É devoção?
— É o santo do meu rapaz — disse a outra. Sentou-se na
cama. Ufa! E então tinha estado toda a noite com uma sede!…
Saltou para o chão, com passadas rijas que faziam tremer o soalho,
foi ao jarro, pô-lo à boca, bebeu uma tarraçada. A camisa
justa, feita de pouca fazenda, mostrava as formas rijas e valentes.
— Pois eu fui ao médico — disse Juliana. E com um grande
suspiro: — Ai! isso só Deus, Senhora Joana! Isto só Deus!
Mas por que se não resolvia a Sr. a Juliana a ir à mulher de
virtude? Era a saúde certa. Morava ao Poço dos Negros; tinha
orações e ungüentos para tudo. Levava meia moeda pelo preparo…
— Que isso são humores, Sr.a Juliana. O que vossemecê tem,
são humores.
Juliana tinha dado dois passos para dentro do quarto. Quando se tratava de
doenças, de remédios, tornava-se mais familiar.
— Eu já me tenho lembrado… eu já me tenho Lembrado de
ir à mulher. Mas, meia moeda!
E ficou a olhar, tristemente, refletindo.
— É o que eu tenho junto para umas botinas de gáspea!
Eram o seu vício, as botinas! Arruinava-se com elas; tinha-as de duraque
com ponteiras de verniz; de cordovão com laço; de pelica com
pespontos de cor, embrulhadas em papéis de seda, na arca, fechadas
— guardadas para os domingos.
Joana censurou-a.
— Ai! eu, em se tratando do corpo, do interior, que o diabo leve os
arrebiques!
Queixou-se também da sua miséria. Tinha pedido à senhora
um mês adiantado! Estava sem camisas! As duas que tinha eram uns trapo!
Pelo gosto da que trazia, a desfazerem-se!
— Mas, então! — suspirou. — O meu rapaz precisou
um dinheiro…
— Vossemecê também, Senhora Joana, deixa-se cardar pelo
homem!
Joana sorriu.
— Ainda que eu tivesse de roer ossos, Srª Juliana, a última
migalha havia de ser para ele!
Juliana teve um risinho seco, e com a voz arrastada:
— Vale lá a pena!
Mas invejava asperamente a cozinheira pela posse daquele amor, pelas suas
delicias. Repetiu, contrafeita:
— Vale lá a pena! Perfeito rapaz — continuou — o
que veio hoje ver a senhora! Melhor que o homem!
E depois de uma pausa:
— Então esteve mais de duas horas?
— Tinha saldo quando vossemecê entrou.
Mas o candeeiro de petróleo apagava-se, com um cheiro fétido
e uma fumarada negra.
— Boa noite, Sr. a Joana. Ainda vou rezar a minha coroa.
— Ó Srª Juliana! — disse a outra de entre os lençóis.
— Se vossemecê quer rezar três salve-rainhas pela saúde
do meu rapaz que tem estado adoentado, eu cá lhe rezava três
pelas melhoras do peito.
— Pois sim, Sr.a Joana!
Mas refletindo:
— Olhe. Eu do peito vou melhor; dê-mas antes para alívio
das dores de cabeça. A Santa Engrácia!
— Como vossemecê quiser, Srª Juliana.
— Se faz favor. Boa noite! Fica-lhe aí um cheiro! Credo!
Foi para o quarto. Rezou, apagou a luz. Um calor mole e contínuo cala
do forro; começou a faltar-lhe o ar; tornou a abrir o postigo, mas
o bafo quente que vinha dos telhados enjoava-a: e era assim todas as noites,
desde o começo do estio! Depois as madeiras velhas fervilhavam de bicharia!
Nunca, nunca, nas casas que servira, tinha tido um quarto pior. Nunca!
A cozinheira começou a ressonar ao lado. E acordada, às voltas,
com aflições no coração, Juliana sentia a vida
pesar-lhe, com uma amargura maior!
Nascera em Lisboa. O seu nome era Juliana Couceiro Tavira. Sua mãe
fora engomadeira; e desde pequena tinha conhecido em casa um sujeito, a quem
chamavam na vizinhança — o fidalgo, a quem sua mãe chamava
— o senhor D. Augusto. Vinha todos os dias, de tarde no verão,
no inverno de manhã, para a saleta onde sua mãe engomava, e
ali estava horas sentado no poial da janela que dava para um quintalejo, fumando
cachimbo, cofiando em silêncio um enorme bigode preto. Como o poial
era de pedra, punha-lhe em cima, com muito método, uma almofada de
vento, que ele mesmo soprava. Era calvo, e trazia ordinariamente uma quinzena
de veludo castanho e chapéu alto branco. As seis horas levantava-se,
esvaziava a almofada, estava um bocado a esticar as calças para cima,
e saía, com a sua grossa bengala de cana-da-índia debaixo do
braço, gingando da cinta. Ela e sua mãe iam então jantar
na mesinha de pinho da cozinha debaixo de um postigo, diante do qual se balouçavam,
de verão e de inverno, galhos magros de uma árvore triste.
À noite o senhor D. Augusto voltava; trazia sempre um jornal; sua mãe
fazia-lhe chá e torradas, servia-o, toda enlevada nele. Muitas vezes
Juliana a vira chorar de ciúmes.
Um dia uma vizinha má, a quem ela não quisera ajudar a lavar
a roupa, enfureceu-se, e atirando-lhe injúrias dos degraus da porta,
— gritou-lhe que sua mãe era uma desavergonhada, e que seu pai
estava na África por ter morto o Rei de Copas!
Pouco tempo depois foi servir. Sua mãe morreu daí a meses, com
uma doença de útero. Juliana só uma vez tornou a ver
o senhor D. Augusto, — uma tarde, com uma opa roxa, lúgubre,
na procissão de Passos!
Servia, havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas não mudava
de sorte. Vinte anos a dormir em cacifos, a levantar-se de madrugada, a comer
os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças
e as más palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital
quando vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava a saúde!…
Era demais! Tinha agora dias em que só de ver o balde das águas
sujas e o ferro de engomar se lhe embrulhava o estômago. Nunca se acostumara
a servir. Desde rapariga a sua ambição fora ter um negociozito,
uma tabacaria, uma loja de capelista ou de quinquilharias, dispor, governar,
ser patroa; mas, apesar de economias mesquinhas e de cálculos sôfregos,
o mais que conseguira juntar foram sete moedas ao fim de anos; tinha então
adoecido; com o horror do hospital fora tratar-se para casa de uma parenta;
e o dinheiro, ai! derretera-se! No dia em que se trocou a última libra,
chorou horas com a cabeça debaixo da roupa.
Ficou sempre adoentada desde então; perdeu toda a esperança
de se estabelecer. Teria de servir até ser velha, sempre, de amo em
amo! Essa certeza dava-lhe uma desconsolação constante. Começou
a azedar-se.
E depois não tinha jeito, não sabia tirar partido das casas;
via companheiras divertir-se, vizinhar, janelar, bisbilhotar, sair aos domingos
às hortas e aos retiros; levar o dia cantando, e quando as patroas
iam ao teatro, abrir a porta aos derriços — e patuscar pelos
quartos! Ela não. Sempre fora embezerrada. Fazia a sua obrigação,
comia, ia estirar-se sobre a cama; e aos domingos, quando não passeava,
encostava-se a uma janela, com o lenço sobre o peitoril para não
roçar as mangas, e ali estava imóvel, a olhar, com o seu broche
de filigrana e a cuja dos dias santos! Outras companheiras eram muito das
amas, faziam-se muito humildes, sabujavam, traziam de fora as histórias
da rua, e cartinhas levadas e recadinhos e para dentro e para fora, muito
confidentes, — muito presenteadas também! Ela não podia.
Era minha senhora isto! Minha senhora aquilo! E cada uma no seu lugar! Era
gênio!
Desde que servia, apenas entrava numa casa sentia logo, num relance, a hostilidade,
a malquerença; a senhora falava-lhe com secura, de longe; as crianças
tomavam-lhe birra; as outras criadas, se estavam chalrando, calavam-se, mal
a sua figura esguia aparecia; punham-lhe alcunhas — a isca seca, a fava
torrada, o saca-rolhas; imitavam-lhe os trejeitos nervosos; havia risinhos,
cochichos pelos cantos; e só tinha encontrado alguma simpatia nos galegos
taciturnos, cheios de uma saudade morrinhenta, que vêm de manhã
quando ainda os quartos estão escuros, com as suas grossas passadas,
encher os barris, engraxar o calçado.
Lentamente, começou a tornar-se desconfiada, cortante como um nordeste;
tinha respostadas, questões com as companheiras; não se havia
de deixar pôr o pé no pescoço!
As antipatias que a cercavam faziam-na assanhada, como um círculo de
espingardas enraivece um lobo. Fez-se má; beliscava crianças
até lhes enodoar a pele; e se lhe ralhavam, a sua cólera rompia
em rajadas. Começou a ser despedida. Num só ano esteve em três
casas. — Saía com escândalo, aos gritos, atirando as portas,
deixando as amas todas pálidas, todas nervosas…
A inculcadeira, a sua velha amiga, a tia Vitória, disse-lhe:
— Tu acabas por não ter onde te arrumar, e falta-te o bocado
do pão!
O pão! Aquela palavra que é o terror, o sonho, a dificuldade
do pobre assustou-a. Era fina, e dominou-se. Começou a fazer-se “uma
pobre mulher”, com afetações de zelo, um ar de sofrer
tudo, os olhos no chão. Mas roía-se por dentro; veio-lhe a inquietação
nervosa dos músculos da face, o tique de franzir o nariz; a pele esverdeou-se-lhe
de bílis.
A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hábito de odiar; odiou
sobretudo as patroas, com um ódio irracional e pueril. Tivera-as ricas,
com palacetes; e pobres, mulheres de empregados, velhas e raparigas, coléricas
e pacientes; — odiava-as a todas, sem diferença. E patroa e basta!
Pela mais simples palavra, pelo ato mais trivial! Se as via sentadas: —
Anda, refestela-te, que a moura trabalha! Se as via sair: — Vai-te,
a negra cá fica no buraco! Cada riso delas era uma ofensa à
sua tristeza doentia; cada vestido novo uma afronta ao seu velho vestido de
merino tingido. Detestava-as na alegria dos filhos e nas prosperidades da
casa. Rogava-lhes pragas. Se os amos tinham um dia de contrariedade, ou via
as caras tristes, cantarolava todo o dia em voz de falsete a Carta adorada!
Com que gosto trazia a conta retardada de um credor impaciente, quando pressentia
embaraços na casa! “Este papel! — gritava com uma voz estridente
— diz que não se vai embora sem uma resposta!” Todos os
lutos a deleitavam — e sob o xale preto, que lhe tinham comprado, tinha
palpitações de regozijo. Tinha visto morrer criancinhas, e nem
a aflição das mães a comovera; encolhia os ombros: “Vai
dali, vai fazer outro. Cabra!”
As boas palavras mesmo, as condescendências eram perdidas com ela, como
gotas de água lançadas no fogo. Resumia as patroas na mesma
palavra — uma récua! E detestava as boas pelos vexames que sofrera
das más. A ama era para ela o Inimigo, o Tirano. Tinha visto morrer
duas, — e de cada vez sentira, sem saber por quê, um vago alívio,
como se uma porção do vasto peso, que a sufocava na vida, se
tivesse desprendido e evaporado!
Sempre fora invejosa; com a idade aquele sentimento exagerou-se de um modo
áspero. Invejara tudo na casa: as sobremesas que os amos comiam, a
roupa-branca que vestiam. As noites de soirée, de teatro, exasperavam-na.
Quando havia passeios projetados, se chovia de repente, que felicidade! O
aspecto das senhoras vestidas e de chapéu, olhando por dentro da vidraça
com um tédio infeliz, deliciava-a, fazia-a loquaz:
— Ai minha senhora! É um temporal desfeito. É a cântaros;
está para todo o dia! Olha o ferro!
E muito curiosa; era fácil encontrá-la, de repente, cosida por
detrás de uma porta com a vassoura a prumo, o olhar aguçado.
Qualquer carta que vinha era revirada, cheirada… Remexia sutilmente em todas
as gavetas abertas; vasculhava em todos os papéis atirados. Tinha um
modo de andar ligeiro e surpreendedor. Examinava as visitas. Andava à
busca de um segredo, de um bom segredo! Se lhe caía um nas mãos!
Era muito gulosa. Nutria o desejo insatisfeito de comer bem, de petiscos,
de sobremesas. Nas casas em que servia ao jantar, o seu olho avermelhado seguia
avidamente as porções cortadas à mesa; e qualquer bom
apetite que repetia exasperava-a, como uma diminuição da sua
pane. De comer sempre os restos ganhara o ar aguado, — o seu cabelo
tomara tons secos, cor de rato. Era lambareira; gostava de vinho; em certos
dias comprava uma garrafa de oitenta réis, e bebia-a só, fechada,
repimpada, com estalos da língua, a orla do vestido um pouco erguida,
revendo-se no pé.
E nunca tivera um homem; era virgem. Fora sempre feia, ninguém a tentara;
e, por orgulho, por birra, com receio de uma desfeita, não se oferecera,
como vira muitas, claramente, O único homem que a olhara com desejo
tinha sido um criado de cavalariça, atarracado e imundo, de aspecto
facínora; a sua magreza, a sua cuia, o seu ar domingueiro tinham excitado
o bruto. Fitava-a com um ar de buldogue. Causara-lhe horror, — mas vaidade.
E o primeiro homem por quem ela sentira, uni criado bonito e alourado, rira-se
dela, pusera-lhe o nome de Isca seca! Não contou mais com os homens,
por despeito, por desconfiança de si mesma. As rebeliões da
natureza, sufocava-as; eram fogachos, flatos. Passavam. Mas faziam-na mais
seca e a falta daquela grande consolação agravava a miséria
da sua vida.
Um dia teve, enfim, uma grande esperança. Entrara para o serviço
da Srª D. Virgínia Lemos, uma viúva rica, tia de Jorge,
muito doente, quase a morrer com um catarro de bexiga. A tia Vitória,
a inculcadeira, preveniu-a:
— Tu trata a velha, apaparica-a, que ela o que quer é uma enfermeira
que a sofra. É rica, não é nada apegada ao dinheiro;
é capaz de te deixar uma independência!
Durante um ano Juliana, roída de ambição, foi a enfermeira
da velha. Que zelos! Que mimos!
Virgínia era muito rabujenta; a idéia de morrer enfurecia-a;
quanto mais ela ralhava com a sua voz gutural, mais Juliana se fazia serviçal.
A velha, por fim, estava enternecida, gabava-a às pessoas que a vinham
ver, chamava-lhe a sua providência. Tinha-a recomendado muito a Jorge.
— Não há outra! Não há outra! — exclamava.
— Pois apanhaste — dizia-lhe a tia Vitória. — Pelo
menos deixa-te o teu conto de réis.
Um conto de réis! Juliana, de noite, enquanto a velha gemia no seu
antigo leito de pau-santo, via o conto de réis à claridade mórbida
que dava a lamparina, reluzir em pilhas de ouro inesgotável e prodigioso.
Que faria com o dinheiro? E, à cabeceira da doente, com um cobertor
pelos ombros, os olhos dilatados e fixos, planeava: poria uma loja de capelista!
Vinham-lhe logo lampejos vivos de outras felicidades: um conto de réis
era um dote, poderia casar, teria um homem!
Estavam acabadas as canseiras. Ia jantar, enfim, o seu jantar! Mandar, enfim,
a sua criada! A sua criada! Via-se a chamá-la, a dizer-lhe, de cima
para baixo: — Faça, vá, despeje, saia! — Tinha contrações
no estômago, de alegria. Havia de ser boa ama. Mas que lhe andassem
direitas! Desmazelos, más respostas, não havia de sofrer a criadas!
— E, impelida por aquelas imaginações, arrastava sutilmente
as chinelas pelo quarto, falando só. Não, desmazelos, não
havia de sofrer! Mantê-las bem, decerto, porque quem trabalha precisa
meter para dentro! Mas havia de lho tirar do corpo. Ah! lá isso, haviam
de lhe andar direitas… — A velha tinha então um gemido mais
aflito.
— É agora! — pensava. — Morre!
E o seu olhar ansioso ia logo para a gaveta da cômoda, onde estava decerto
o dinheiro, os papéis. Mas não! a velha queria beber, ou voltar-se…

— Como se sente? — perguntava Juliana, com uma voz plangente.
— Melhor, Juliana, melhor — murmurava.
Supunha-se sempre melhor.
— Mas a senhora tem estado desinquieta! — dizia Juliana, despeitada
da melhora.
— Não — suspirava — dormi bem!
— ISSO não tem dormido… Tehho-a ouvido gemer! Tem estado toda
a noite a gemer!
Queria argumentar com ela! Convencê-la que estava pior! Convencer-se
a si mesma que o alívio era efêmero, que ia morrer depressa!
E todas as manhãs seguia o Dr. Pinto até à porta, com
os braços cruzados, a face triste:
— Então, senhor doutor, não há esperança?
— Está por dias!
Queria saber os dias: dois? Cinco?
— Sim, Senhora Juliana — dizia o velho, calçando as suas
luvas pretas — uns dias, sete, oito…
— Oito dias!
E como a felicidade se aproximava, já tinha de olho três pares
de botinas que vira na vidraça do Manuel Lourenço!
A velha, enfim, morreu. Nem a mencionava no testamento!
Veio-lhe uma febre. Jorge, agradecido pelos cuidados dela com a tia Virgínia,
pagou-lhe um quarto no hospital, e prometeu tomá-la para criada de
dentro. A que tinha, uma Emilia muito bonita, ia casar.
Quando saiu do hospital para casa de Jorge, começava a queixar-se mais
do coração. Vinha desiludida de tudo; tinha às vezes
vontade de morrer. Ouviam-se todo o dia pela casa os seus ais. Luísa
achava-a fúnebre.
Quis despedi-la ao fim de duas semanas, Jorge não consentiu; estava
em dívida com ela, dizia. Mas Luísa não podia disfarçar
a sua antipatia; e Juliana começou a detestá-la; pôs-lhe
logo um nome: a piorrinha! Depois, daí a semanas, viu vir os estofadores;
renovava-se a mobília da sala! A tia Virgínia deixara três
contos de réis a Jorge, — e ela, ela que durante um ano fora
a enfermeira, humilde como um cão e fixa como uma sombra, aturando
o mostrengo, tinha em paga ido para o hospital, com uma febre, das noitadas,
das canseiras! Julgava-se vagamente roubada. Começou a odiar a casa.
Tinha para isso muitas razões, dizia; dormia num cubículo abafado;
ao jantar não lhe davam vinho, nem sobremesa; o serviço dos
engomados era pesado; Jorge e Luísa tomavam banho todos os dias, e
era um trabalhão encher, despejar todas as manhãs as largas
bacias de folha; achava despropositada aquela mania de se porem a chafurdar
todos os dias que Deus deitava ao mundo; tinha servido vinte amos e nunca
vira semelhante despropósito! A única vantagem — dizia
ela à tia Vitória — era não haver pequenos; tinha
horror a crianças! Além disso achava que o bairro era saudável;
e como tinha a cozinheira “na mão”, não é
verdade? Havia aquele regalo dos caldinhos, de algum prato melhor de vez em
quando! Por isso ficava; se não, não era ela!
Fazia no entanto o seu serviço; ninguém tinha nada que lhe dizer.
O olho aberto sempre e o ouvido à escuta, já se vê! E
como perdera a esperança de se estabelecer, não se sujeitava
ao rigor de economizar; por isso ia-se consolando com algumas pinguinhas,
de vez em quando; e satisfazia o seu vicio, — trazer o pé catita.
O pé era o seu orgulho, a sua mania, a sua despesa. Tinha-o bonito
e pequenino.
— Como poucos — dizia ela — não vai Outro ao Passeio!
E apertava-o, aperreava-o; trazia os vestidos curtos, lançava-o muito
para fora. A sua alegria era ir aos domingos para o Passeio Público,
e ali, com a orla do vestido erguida, a cara sob o guarda-solinho de seda,
estar a tarde inteira na poeira, no calor, imóvel, feliz, — a
mostrar-se, a expor o pé!

CAPÍTULO 4

Pelas três horas da tarde, Juliana entrou na cozinha e atirou-se para
uma cadeira, derreada. Não se tinha nas pernas de debilidade! Desde
as duas horas que andava a arrumar a sala! Estava um chiqueiro. O peralta
na véspera até deixara cinza de tabaco por cima das mesas! A
negra é que as pagava. E que calor! Era de derreter! Ufa!
— O caldinho há de estar pronto, hein! — disse, adocicando
a voz.
— Tira-mo, Senhora Joana, faz favor?
— Vossemecê hoje está com outra cara — notou a cozinheira.
— Ai! Sinto-me outra, Sr. a Joana! Pois olhe que adormeci com dia. Já
luzia o dia!
— E eu! — Tinha tido cada sonho! Credo! Uma avantesma cor de fogo
a passear-lhe por cima do corpo, e cada pancada na boca do estômago,
como quem pisava uvas num lagar!
— Enfartamento — disse sentenciosamente Juliana, e repetiu:
— Pois eu sinto-me outra. Há meses que me não sinto tão
bem!
Sorria com os seus dentes amarelados, O caldo que Joana deitava na malga branca,
com um vapor cheiroso, cheio de hortaliça, dava-lhe uma alegria gulosa.
Estendeu os pés, recostou-se, feliz, na boa sensação
da tarde quente e luminosa, entrando largamente pelas duas janelas abertas.
O sol retirara-se da varanda, e sobre a pedra, em vasos de barro, plantas
pobres encolhiam a sua folhagem chupada do calor; sobre uma tábua a
um canto, numa velha panela bojuda, verdejava um pé de salsa muito
tratado; o gato dormia sobre um esteirão; esfregões secavam
numa corda; e para além alargava-se o azul vivo como um metal candente,
as árvores dos quintais tinham tons ardentes do sol, os telhados pardos
com as suas vegetações esguias coziam no calor; e pedaços
de paredes caiadas despediam uma rebrilhação dura.
— Está de apetite, Sr. a Joana, está de apetite! —
dizia Juliana, remexendo o caldo devagarinho, com gula. A cozinheira de pé,
com os braços cruzados sobre o seu peito abundante, regozijava-se:
— O que se quer é que esteja a gosto.
— Está a preceito.
Sorriam, contentes da intimidade, das boas palavras. — E a campainha
da porta que já tinha tocado, tornou a tilintar discretamente.
Juliana não se mexeu. Bafos de aragem quente entravam; ouvia-se ferver
a panela no fogão, e fora o martelar incessante da forja; às
vezes o arrulhar triste de duas rolas que viviam na varanda, numa gaiola de
vime, punha na tarde abrasada uma sensação de suavidade.
A campainha retilintou, sacudida com impaciência.
— Com a cabeça, burro! — disse Juliana.
Riram. Joana fora sentar-se à janela, numa cadeira baixa; estendia
os seus grossos pés, calçados de chinelas de ourelo; coçava-se
devagarinho, no sovaco, toda repousada.
A campainha retiniu violentamente.
— Fora, besta! — rosnou Juliana, muito tranqüila.
Mas a voz irritada de Luísa chamou debaixo:
— Juliana!
— Que nem uma pessoa pode tomar a sustância sossegada! Raio de
casa! Irra!
— Juliana! — gritou Luísa.
A cozinheira voltou-se, já assustada:
— A senhora zanga-se, Sr. a Juliana.
— Que a leve o diabo!
Limpou os beiços gordurosos ao avental, desceu furiosa.
— Você não ouve, mulher? Estão a bater há
uma hora!
Juliana arregalou os olhos espantada; Luísa tinha vestido O roupão
novo de foulard cor de castanho, com pintinhas amarelas!
— Temos novidade! Temo-la grossa! — pensou Juliana pelo corredor.
A campainha repicava. E no patamar, vestido de claro, com uma rosa ao peito,
um embrulho debaixo do braço, estava o sujeito do negócio das
minas!
— Aquele sujeito de ontem! — veio dizer, toda pasmada.
— Mande entrar…
— Viva! — pensou.
Galgou a escada da cozinha, disse logo da porta, com a voz aguda de júbilo:
— Está cá o peralta de ontem! Está cá outra
vez! Traz um embrulho! — Que lhe parece, Senhora Joana? Que lhe parece?
— Visitas… — disse a cozinheira.
Juliana teve um risinho seco. Sentou-se, acabou o seu caldo, à pressa.
Joana indiferente cantarolava pela cozinha; o arrulhar das rolas continuava
langoroso e débil.
— Pois, senhores, isto vai rico! — disse Juliana.
Esteve um momento a limpar os dentes com a língua, o olhar fixo, refletindo.
Sacudiu o avental, e desceu ao quarto de Luísa; o seu olhar esquadrinhador
avistou logo sobre o toucador as chaves esquecidas da despensa; podia subir,
beber um trago de bom vinho, engolir dois ladrilhos de marmelada… Mas possuía-a
uma curiosidade urgente, e, em bicos de pés, foi agachar-se à
porta que dava para a sala, espreitou. O reposteiro estava corrido por dentro;
podia apenas sentir a voz grossa e jovial do sujeito. Foi de volta, pelo corredor,
à outra porta, ao pé da escada; pôs o olho à fechadura,
colou o ouvido à frincha. O reposteiro dentro estava também
cerrado.
— Os diabos calafetaram-se! — pensou.
Pareceu-lhe que se arrastava uma cadeira, depois que se fechava uma vidraça.
Os olhos faiscavam-lhe. Uma risada de Luísa sobressaiu; em seguida
um silêncio; e as vozes recomeçaram num tom sereno e contínuo.
De repente o sujeito ergueu a fala, e entre as palavras que dizia, de pé
decerto, passeando, Juliana ouviu claramente: Tu, foste tu!
— Oh que bêbada!
Um tlintlim tímido da campainha, ao lado, assustou-a. Foi abrir. Era
Sebastião, muito vermelho do sol, com as botas cheias de pó.
— Está? — perguntou, limpando a testa suada.
— Está com uma visita, Senhor Sebastião!
E cerrando a porta sobre si, mas baixo:
— Um rapaz novo que já esteve ontem, um janota! Quer que vá
dizer?
— Não, não, obrigado, adeus.
Desceu discretamente. Juliana voltou logo a encostar-se à porta, a
orelha contra a madeira, as mãos atrás das costas; mas a conversação,
sem saliência de vozes, tinha um rumor tranqüilo e indistinto.
Subiu à cozinha.
— Tratam-se por tu! — exclamou. — Tratam-se por tu, Senhora
Joana!
E muito excitada:
— Isto vai à vela! Cáspite! Assim é que eu gosto
delas!
O sujeito saiu às cinco horas. Juliana, apenas sentiu abrir-se a porta,
veio a correr; viu Luísa no patamar, debruçada no corrimão,
dizendo para baixo, com muita intimidade:
— Bem, não falto. Adeus.
Ficou então tomada de uma curiosidade que a alterava como uma febre.
Toda a tarde, na sala de jantar, no quarto, esquadrinhou Luísa com
olhares de lado. Mas Luísa, com um roupão de linho mais velho,
parecia serena, muito indiferente.
— Que sonsa!
Aquela naturalidade despertava a sua bisbilhotice.
— Eu hei de te apanhar, desavergonhada; — calculava.
Afigurou-se-lhe que Luísa tinha os olhos um pouco pisados. Estudava-lhe
as posições, os tons de voz. Viu-a repetir o assado, —
pensou logo:
— Abriu-lhe o apetite!
E quando Luísa ao fim do jantar se estendeu na voltaire com um ar quebrado:
— Ficou derreada.
Luísa que nunca tomava café, quis nessa tarde “meia chávena,
mas forte, muito forte”.
— Quer café! — veio ela dizer à cozinheira, toda
excitada. — Tudo à grande! E do forte. Quer do forte! Ora o diabo!
Estava furiosa.
— Todas o mesmo! Uma récua de cabras!
Ao outro dia era domingo. Logo pela manhã cedo, quando Juliana ia para
a missa, Luísa chamou-a da porta do quarto, deu-lhe uma carta para
levar a D. Felicidade. Ordinariamente mandava um recado; e a curiosidade de
Juliana acendeu-se logo diante daquele sobrescrito fechado e lacrado com o
sinete de Luísa, um L gótico dentro de uma coroa de rosas.
— Tem resposta?
— Tem.
Quando voltou às dez horas, com um bilhete de D. Felicidade, Luísa
quis saber se havia muito calor, se fazia poeira. Sobre a mesa estava um chapéu
de palha escuro, que ela estivera a enfeitar com duas rosas de musgo.
Fazia um bocadinho de vento, mas para a tarde abrandava, decerto. E pensou
logo: — Temos passeata, vai ter com o gajo!
Mas durante todo o dia, Luísa em roupão não saiu do seu
quarto ou da sala, ora estendida na causeuse lendo aos bocados, ora batendo
distraidamente no piano pedaços de valsas. Jantou às quatro
horas. A cozinheira saiu, e Juliana pôs-se a passar a sua tarde à
janela da sala de jantar. Tinha o vestido novo, as salas muito rijas de goma,
a cuia dos dias santos — e pousava solenemente os cotovelos num lenço,
estendido sobre o peitoril da varanda. Defronte os pássaros chilreavam
na figueira-brava. Dos dois lados do tabique que cercava o terreno vago, agachavam-se
os tetos escuros das duas ruazitas paralelas; eram casas pobres onde viviam
mulheres, que pela tarde, em chambre ou de garibáldi, os cabelos muito
oleosos, faziam meia à janela, falando aos homens, cantarolando com
um tédio triste. Do outro lado do terreno, verduras de quintais, muros
brancos davam àquele sítio um ar adormecido de vila pacata.
Quase ninguém passava. Havia um silêncio fatigado; e só
às vezes o som distante de uru realejo, que tocava a Norma ou a Lúcia,
punha uma melancolia na tarde. — E Juliana ali estava imóvel,
até que os tons quentes da tarde empalideciam, e os morcegos começavam
a voar.
Pelas oito horas entrou no quarto de Luísa, — ficou pasmada de
a ver vestida toda de preto, de chapéu! Tinha acendido as serpentinas
na parede, os castiçais no toucador; e sentada à beira da causeuse
calçava as luvas devagar, com a face muito séria, um pouco esbatida
de pó-de-arroz, o olhar cheio de brilho.
— O vento abrandou? — disse.
— Está a noite muito bonita, minha senhora.
Um pouco antes das nove horas uma carruagem parou à porta. Era D. Felicidade,
muito encalmada. Abafara todo o dia! E à noite nem uma aragem! Até
tinha mandado buscar uma carruagem descoberta, que num coupé, credo,
morria-se.
Juliana pelo quarto arrumava, dobrava, toda curiosa. Onde iriam? Onde iriam?
D. Felicidade, amplamente sentada, de chapéu, tagarelava; uma indigestão
que tivera na véspera com umas vagens; a cozinheira que a tinha querido
“comer” em quatro vinténs; uma visita que lhe fizera a
Condessa de Arruela…
Enfim, Luísa disse, baixando seu véu branco:
— Vamos, filha. Faz-se tarde.
Juliana foi-lhes alumiar, furiosa. Olha que propósito, irem duas mulheres
sós por ai fora, numa tipóia! E se uma criada então se
demorava na rua mais meia hora, credo, que alarido! Que duas bêbedas!
Foi à cozinha desabafar com a Joana. Mas a rapariga, estirada numa
cadeira, dormitava.
Fora com o seu Pedro ao Alto de S. João. E toda a tarde tinham passeado
no cemitério, muito juntos, admirando os jazigos, soletrando os epitáfios,
beijocando-se nos recantos que os chorões escureciam, e regalando-se
do ar dos ciprestes e das relvas dos mortos. Voltaram por casa da Serena,
entraram a bebericar um quartilho no Espregueira… Tarde cheia! E estava
derreada da soalheira, do pó, da admiração de tanto túmulo
rico, do homem, e da pinguita de vinho.
O que ia, era refestelar-se para a cama!
— Credo, Senhora Joana, vossemecê está-se a fazer uma dorminhoca!
Olha que mulher! Com pouco arreia! Cruzes!
Desceu ao quarto de Luísa, apagou as luzes, abriu as janelas, arrastou
a poltrona para a varanda, — e, repimpada, os braços cruzados,
pôs-se a passar a noite.
O estanque alnda não se fechara, e a sua luzita lúgubre como
a estanqueira, estendia-se tristemente sobre a pedra miúda da rua;
as janelas ao pé estavam abertas; por algumas, mal alumiadas, viam-se
dentro serões melancólicos; noutras, onde havia vultos imóveis,
luzia às vezes a ponta de um cigarro; aqui, além tossia-se,
e o moço do padeiro, no silêncio quente da noite, harpejava baixinho
a guitarra.
Juliana pusera um vestido de chita claro; dois sujeitos que estavam à
porta do estanque riam, erguiam de vez em quando os olhos para a janela, para
aquele vulto branco de mulher; Juliana, então, gozou! Tomavam-na decerto
pela senhora, pela do Engenheiro; faziam-lhe “olho”, diziam brejeirices…
Um tinha calça branca e chapéu alto, eram janotas… E com os
pés muito estendidos, os braços cruzados, a cabeça de
lado, saboreava, longamente, aquela consideração.
Passos fortes que subiam a rua, pararam à porta; a campainha retiniu
de leve.
— Quem é? — perguntou muito impaciente.
— Está? — disse a voz grossa de Sebastião.
— Saiu com a O. Felicidade; foram de carruagem.
— Ah! — fez ele.
E acrescentou:
— Muito bonita noite!
— De apetite, Senhor Sebastião! De apetite! — exclamou
alto.
E quando o viu descer a rua, gritou, afetadamente:
— Recados a Joana! Não se esqueça! — mostrando-se
íntima, madama, com olho terno para os homens.
Àquela hora D. Felicidade e Luísa chegavam ao Passeio.
Era benefício; já de fora se sentia o brouhaha lento e monótono,
e via-se uma névoa alta de poeira, amarelada e luminosa.
Entraram. Logo ao pé do tanque encontraram Basílio. Fez-se muito
surpreendido, exclamou:

— Que feliz acaso!
Luísa corou; apresentou-o a B. Felicidade.
A excelente senhora teve muitos sorrisos. Lembrava-se dele, mas se não
lhe dissessem talvez o não conhecesse! Estava muito mudado!
— Os trabalhos, minha senhora… — disse Basílio curvando-se.
E acrescentou rindo, batendo com a bengala na pedra do tanque:
— E a velhice! Sobretudo a velhice!
Na água escura e suja as luzes do gás torciam-se até
uma grande profundidade. As folhagens em redor estavam imóveis, no
ar parado, com tons de um verde lívido e artificial. Entre os dois
longos renques paralelos de árvores mesquinhas, entremeadas de candeeiros
de gás, apertava-se, num empoeiramento de macadame, uma multidão
compacta e escura; e através do rumor grosso, as saliências metálicas
da música faziam passar no ar pesado, compassos vivos de valsa.
Tinham ficado parados, conversando.
Que calor, hein? Mas a noite estava linda! Nem uma aragem! Que enchente!
E olhavam a gente que entrava: moços muito frisados, com calças
cor de flor de alecrim, fumando cerimoniosamente os charutos do dia santo;
um aspirante com a cinta espartilhada e o peito enchumaçado; duas meninas
de cabelo riçado, de movimentos gingados que lhe desenhavam os ossos
das omoplatas sob a fazenda do vestido atabalhoado; um eclesiástico
cor de cidra, o ar mole, o cigarro na boca, e lunetas defumadas; uma espanhola
com dois metros de saia branca muito rija, fazendo ruge-ruge na poeira; o
triste Xavier, poeta; uru fidalgo de jaquetão e bengalão de
chapéu na nuca, o olho avinhado; e Basílio ria muito de dois
pequenos que o pai conduzia com um ar hílare e compenetrado —
vestidos de azul-claro, a cinta ligada numa faixa escarlate, barretinas de
lanceiros, botas à húngara, cretinos e sonâmbulos.
Um sujeito alto então passou rente deles, e voltando-se, revirou para
Luísa dois grandes olhos langorosos e prateados; tinha uma pêra
longa e aguçada; trazia o colete decotado mostrando um belo peitilho,
e fumava por uma boquilha enorme que representava um zuavo.
Luísa quis se sentar.
Um garoto de blusa, sujo como um esfregão, correu a arranjar cadeiras;
e acomodaram-se ao pé de uma família acabrunhada e taciturna.
— Que fizeste tu hoje, Basílio? — perguntou Luísa.
Tinha ido aos touros.
— E que tal? Gostaste?
— Uma sensaboria. Se não fosse pelo trambolhão do Peixinho
tinha-se morrido de pasmaceira. Gado fraco, cavaleiros infelizes, nenhuma
sorte! Touros em Espanha! Isso sim!
D. Felicidade protestou. Que horror! Tinha-os visto em Badajoz, quando estivera
de visita em Elvas à tia Francisca de Noronha, e ia desmaiando, O sangue,
as tripas dos cavalos… Puf! É muito cruel!
Basílio disse, com um sorriso:
— Que faria se visse os combates de galos, minha senhora!
D. Felicidade tinha ouvido contar, — mas achava todos esses divertimentos
bárbaros, contra a religião.
E recordando um gozo que lhe punha um riso na face gorda:
— Para mim não há nada como uma boa noite de teatro! Nada!
— Mas aqui representam tão mal! — replicou Basílio
com uma voz desolada. — Tão mal, minha rica senhora!
D. Felicidade não respondeu; meio erguida na cadeira, o olhar avivado
de um brilho úmido, saudava desesperadamente com a mão:
— Não me viu — disse desconsolada.
— Era o Conselheiro? — perguntou Luísa.
— Não. Era a Condessa de Alviela. Não me viu! Vai muito
à Encarnação, sou muito dela. É um anjo! Não
me viu. Ia com o sogro.
Basílio não tirava os olhos de Luísa. Sob o véu
branco, à luz falsa do gás, no ar enevoado da poeira, o seu
rosto tinha uma forma alva e suave, onde os olhos que a noite escurecia punham
uma expressão apaixonada; os cabelinhos louros, frisados, tornando
a testa mais pequena, davam-lhe uma graça ameninada e amorosa; e as
luvas gris perle faziam destacar sobre o vestido negro o desenho elegante
das mãos, que ela pousara no regaço, sustentando o leque, com
uma fofa renda branca em torno dos seus pulsos finos.
— E tu, que fizeste hoje? — perguntou-lhe Basílio.
Tinha-se aborrecido muito. Estivera todo o santo dia a ler.
Também ele passara a manhã deitado no sofá a ler a Mulher
de fogo de Belot. Tinha lido, ela?
— Não, que é?
— É um romance, uma novidade.
E acrescentou sorrindo:
— Talvez um pouco picante; não to aconselho!
D. Felicidade andava a ler o Rocambole. Tanto lho tinham apregoado! Mas era
uma tal trapalhada! Embrulhava-se, esquecia-se… E ia deixar, porque tinha
percebido que a leitura lhe aumentava a indigestão.
— Sofre? — perguntou Basílio, com um interesse bem-educado.
D. Felicidade contou logo a sua dispepsia. Basílio aconselhou-lhe o
uso do gelo. — De resto felicitava-a, porque as doenças de estômago,
ultimamente, tinham muito chie. Interessou-se pela dela, pediu pormenores.
D. Felicidade prodigalizou-os; e, falando, via-se-lhe crescer no olhar, na
voz a sua simpatia por Basílio. Havia de usar o gelo!
— Com o vinho, já se sabe?
— Com o vinho, minha senhora!
— E olha que talvez! — exclamou D. Felicidade, batendo com o leque
no braço de Luísa, já esperançada.
Luísa sorriu, ia responder — mas viu o sujeito pálido
da pêra longa que fitava nela os seus olhos langorosos, com obstinação.
Voltou o rosto importunada. O sujeito afastou-se, retorcendo a ponta da pêra.
Luísa sentia-se mole: o movimento rumoroso e monótono, a noite
cálida, a acumulação da gente, a sensação
de verdura em redor davam ao seu corpo de mulher caseira um torpor agradável,
um bem-estar de inércia, envolviam-na numa doçura emoliente
de banho morno. Olhava com um vago sorriso, o olhar frouxo; quase tinha preguiça
de mexer as mãos, de abrir o leque.
Basílio notou o silêncio. — Tinha sono?
D. Felicidade sorriu com finura.
— Ora, vê-se sem o seu maridinho! Desde que o não tem está
esta mona que se vê.
Luísa respondeu, olhando Basílio instintivamente:
— Que tolice! Até estes dias tenho andado bem alegre!
Mas D. Felicidade insistia:
— Ora, bem sabemos, bem sabemos. Esse coraçãozinho está
no Alentejo!
Luísa disse, com impaciência:
— Não hás de querer que me ponha aos pulos e às
gargalhadas no Passeio.
— Está bem, não te enfureças! — exclamou
D. Felicidade. E para Basílio: — Que geniozinho, hein!
Basílio pôs-se a rir.
— A prima Luísa antigamente era uma víbora. Agora não
sei…
D. Felicidade acudia:
— É uma pomba, coitada, é uma pomba! Não, lá
isso, é uma pomba.
E envolvia-a num olhar maternal.
Mas a família taciturna ergueu-se, sem ruído, — e as meninas
adiante, os pais atrás, afastaram-se lugubremente, sucumbidos.
Basílio imediatamente apossou-se da cadeira ao pé de Luísa,
— e vendo D. Felicidade a olhar distraída:
— Estive para te ir ver de manhã — disse baixinho a Luísa.
Ela ergueu a voz, muito naturalmente, com indiferença:
— E por que não foste? Tínhamos feito música. Fizeste
mal. Devias ter ido…
D. Felicidade quis então saber as horas. Começava a enfastiar-se.
Tinha esperado encontrar o Conselheiro; por ele, para lhe parecer bem, fizera
o sacrifício de se apertar; Acácio não vinha, os gases
começavam a afrontá-la; e o despeito daquela ausência
aumentava-lhe a tortura da digestão. Na sua cadeira, com o corpo mole,
ia seguindo a multidão que girava incessantemente, numa névoa
empoeirada.
Mas a música, no coreto, bateu de repente, alto, a grande ruído
de cobres, os primeiros compassos impulsivos da marcha do Fausto. Aquilo reanimou-a.
Era um pot-pourri da ópera, — e não havia música
de que gostasse mais. Estaria para a abertura de S. Carlos, o Senhor Basílio?
Basílio disse, com uma intenção, voltando-se para Luísa:
— Não sei, minha senhora, depende…
Luísa olhava, calada. A multidão crescera. Nas ruas laterais
mais espaçosas, frescas, passeavam apenas, sob a penumbra das árvores,
os acanhados, as pessoas de luto, os que tinham o fato coçado. Toda
a burguesia domingueira viera amontoar-se na rua do meio, no corredor formado
pelas filas cerradas das cadeiras do asilo; e ali se movia entalada, com a
lentidão espessa de uma massa mal derretida, arrastando os pés,
raspando o macadame, num amarfanhamento plebeu, garganta seca, os braços
moles, a palavra rara. Iam, vinham, incessantemente, para cima e para baixo,
com um bamboleamento relaxado e um rumor grosso, sem alegria e sem bonomia,
no arrebanhamento passivo que agrada às raças mandrionas; no
meio da abundância das luzes e das festividades da música, um
tédio morno circulava, penetrava como uma névoa; a poeirada
fina envolvia as figuras, dava-lhes um tom neutro; e nos rostos que passavam
sob os candeeiros, nas zonas mais diretas de luz, viam-se desconsolações
de fadiga e aborrecimento de dia santo.
Defronte as casas da Rua Ocidental tinham na sua fachada o reflexo claro das
luzes do Passeio; algumas janelas estavam abertas; as cortinas de fazenda
escura destacavam sobre a claridade interior dos candeeiros. Luísa
sentia como uma saudade de outras noites de verão, de serões
recolhidos. Onde? Não se lembrava. O movimento então retraía-a;
e encontrava em face, fitando-a numa atitude lúgubre, o sujeito de
pêra longa. Debaixo do véu sentia a poeira arder-lhe nos olhos;
em redor dela gente bocejava.
D. Felicidade propôs uma volta. Levantaram-se, foram rompendo devagar;
as filas das cadeiras apertavam-se compactamente, e uma infinidade de faces
a que a luz do gás dava o mesmo tom amarelado olhavam de um modo fixo
e cansado, num abatimento de pasmaceira. Aquele aspecto irritou Basílio
e como era difícil andar lembrou — “que se fossem daquela
sensaboria”.
Saíram. Enquanto ele ia comprar os bilhetes, D. Felicidade, deixando-se
quase cair num banco sob a folhagem de um chorão, exclamou aflita:
— Ai, filha! Estou que arrebento!
Passava a mão no estômago; tinha a face envelhecida.
— E o Conselheiro, que me dizes? Olha que já é pouca sorte!
Hoje que eu vim ao Passeio…
Suspirou, abanando-se. E com o seu sorriso bondoso:
— É muito simpático, teu primo! E que maneiras! Um verdadeiro
fidalgo. Que eles conhecem-se, filha!
Declarou-se muito fatigada, apenas saíram o portão. Era melhor
tomarem um trem.
Basílio achava preferível subirem a pé até ao
Largo do Loreto. A noite estava tão agradável! E o andar fazia
bem à senhora D. Felicidade!
Depois diante do Martinho, falou em irem tomar neve; mas D. Felicidade receava
a frialdade; Luísa tinha vergonha. Pelas portas do café abertas,
viam-se sobre as mesas jornais enxovalhados; e algum raro indivíduo,
de calça branca, tomava placidamente o seu sorvete de morango.
No Rocio, sob as árvores, passeava-se; pelos bancos, gente imóvel
parecia dormitar; aqui e além pontas de cigarro o reluziam; sujeitos
passavam, com o chapéu na mão, abanando-se, o colete desabotoado;
a cada canto se apregoava água fresca “do Arsenal”; em
torno do largo, carruagens descobertas rodavam vagarosamente. O céu
abafava, — e na noite escura, a coluna da estátua de D. Pedro
tinha o tom baço e pálido de uma vela de estearina colossal
e apagada.
Basílio, ao pé de Luísa, ia calado. Que horror de cidade!
— pensava. — Que tristeza! E lembrava-lhe Paris, de verão;
subia, à noite, no seu fáeton, os Campos Elísios devagar;
centenares de vitórias descem, sobem rapidamente, com um trote discreto
e alegre; e as lanternas fazem em toda a avenida um movimento jovial de pontos
de luz; vultos brancos e mimosos de mulheres reclinam-se nas almofadas, balançadas
nas molas macias; o ar em redor tem uma doçura aveludada, e os castanheiros
espalham um aroma sutil. Dos dois lados, dentre os arvoredos, saltam as claridades
violentas dos cafés cantantes, cheios do brouhaha das multidões
alegres, dos brios impulsivos das orquestras, os restaurantes flamejam; há
uma intensidade de vida amorosa e feliz; e, para além, sai das janelas
dos palacetes, através dos estores de seda, a luz sóbria e velada
das existências ricas. Ah! Se lá estivesse! — Mas ao passar
junto dos candeeiros olhava de lado para Luísa; o seu perfil fino sob
o véu branco tinha uma grande doçura; o vestido prendia bem
a curva do seu peito; e havia no seu andar uma lassidão que lhe quebrava
a linha da cinta de um modo lânguido e prometedor.
Veio-lhe urna certa idéia, começou a dizer: Que pena que não
houvesse em toda a Lisboa um restaurante, onde se pudesse ir tomar uma asa
de perdiz e beber uma garrafa de champagne frappée!
Luísa não respondeu. Devia ser delicioso — pensava. —
Mas D. Felicidade exclamou:
— Perdiz, a esta hora!
— Perdiz ou outra qualquer coisa.
— Fosse o que fosse, era para estourar! Credo!
Subiam pela Rua Nova do Carmo. Os candeeiros davam uma luz mortiça;
as altas casas dos dois lados, apagadas, entalavam, carregavam a sombra; e
a patrulha muito armada descia passo a passo, sem ruido, sinistra e sutil.
Ao Chiado um garoto de barrete azul perseguiu-os com cautelas de loteria;
a sua voz aguda e chorosa prometia a fortuna, muitos contos de réis.
D. Felicidade ainda parou, com uma tentação… Mas uma troça
de rapazes bêbedos que descia de chapéu na nuca, falando alto,
aos tropeções, assustou muito as duas senhoras. Luísa
encolheu-se logo contra Basílio; D. Felicidade enfiada agarrou-lhe
ansiosamente o braço, quis-se meter numa carruagem; e até ao
Loreto foi explicando o seu medo aos borrachos, com a voz atarantada, contando
casos, facadas, sem largar o braço de Basílio. Da fileira de
tipóias, ao lado das grades da Praça de Camões, um cocheiro
lançou logo a sua caleche descoberta, de pé na almofada, apanhando
confusamente as rédeas, com grandes chicotadas na parelha, muito excitado,
gritando:
— Pronto, meu amo, pronto!
Demoraram-se um momento ainda conversando. Um homem então passou, rondou,
— e Luísa desesperada reconheceu os olhos acarneirados do sujeito
da pêra.
Entraram para a caleche. Luísa ainda se voltou para ver Basílio
imóvel no largo, com o seu chapéu na mão; depois acomodou-se,
pôs os pezinhos no outro assento e balançada pelo trote largo
viu passar, calada, as casas apagadas da Rua de S. Roque, as árvores
de S. Pedro de Alcântara, as fachadas estreitas do Moinho de Vento,
os jardins adormecidos da Patriarcal. A noite estava imóvel, de um
calor mole; e desejava, sem saber por que, rolar assim sempre, infinitamente,
entre ruas, entre grades cheias de folhagem de quintas nobres, sem destino,
sem cuidados, para alguma coisa de feliz que não distinguia bem! Um
grupo defronte da Escola ia tocando o Fado do Vimioso; aqueles sons entraram-lhe
na alma como um vento doce, que fazia agitar brandamente muitas sensibilidades
passadas; suspirou baixo.
— Um suspirozinho que vai para o Alentejo — disse D. Felicidade,
tocando-lhe o braço.
Luísa sentiu todo o sangue abrasar-lhe o rosto. Davam onze horas quando
entrou em casa.
Juliana veio alumiar. — O chá estava pronto, quando a senhora
quisesse…
Luísa subiu daí a pouco com um largo roupão branco, muito
fatigada; estendeu-se na voltaire; sentia vir-lhe uma sonolência; a
cabeça pendia-lhe; cerrava as pálpebras… E Juliana tardava
tanto com o chá! Chamou-a. Onde estava? Credo!
Tinha descido, pé ante pé, ao quarto de Luísa. E aí
tomando o vestido, as saias engomadas que ela despira e atirara para cima
da causeuse, desdobrou-as, revirou-as, examinou-as, e com uma certa idéia,
cheirou-as! Havia o vago aroma de um corpo lavado e quente, com uma pontinha
de suor e de água-de-colônia. Quando a sentiu chamar, impacientar-se
em cima, subiu, correndo. — Fora abaixo dar uma arrumadela. Era o chá?
Estava pronto.
E entrando com as torradas:
— Veio aí o Sr. Sebastião, haviam de ser nove horas…
— Que lhe disse?
— Que a senhora tinha saído com a senhora D. Felicidade. Como
não sabia, não disse para onde.
E acrescentou:
— Esteve a conversar comigo, o Senhor Sebastião… Esteve a conversar
mais de meia hora!…
Luísa recebeu, na manhã seguinte, da parte de Sebastião,
um ramo de rosas, magenta-escuro, magníficas. Cultivava-as ele na quinta
de Aluada, e chamavam-se rosas D. Sebastião. Mandou-as pôr nos
vasos da sala; e como o dia estava encoberto, de um calor baixo e sufocante:
— Olhe — disse a Juliana — abra as janelas.
— Bem — pensou Juliana — temos cá o melro.
O melro veio com efeito às três horas. Luísa estava na
sala, ao piano.
— Está ali o sujeito do costume — foi dizer Juliana.
Luísa voltou-se corada, escandalizada da expressão:
— Ah! meu primo Basílio? Mande entrar.
E chamando-a:
— Ouça, se vier o Sr. Sebastião, ou alguém, que
entre.
Era o primo! O sujeito, as suas visitas perderam de repente para ela todo
o interesse picante. A sua malícia cheia, enfunada até aí,
caiu, engelhou-se como urna vela a que falta o vento. Ora, adeus! Era o primo!
Subiu à cozinha, devagar, — lograda.
— Temos grande novidade, Sr.a Joana! O tal peralta é primo. Diz
que é o primo Basílio.
E com um risinho:
— É o Basílio! Ora o Basílio! Sai-nos primo à
última hora! O diabo tem graça!
— Então que havia de o homem ser se não parente? —
observou Joana.
Juliana não respondeu. Quis saber se estava o ferro pronto, que tinha
uma carga de roupa para passar! E sentou-se à janela, esperando. O
céu baixo e pardo pesava, carregado de eletricidade; às vezes
uma aragem súbita e fina punha nas folhagens dos quintais um arrepio
trêmulo.
— É o primo! — refletia ela, — E só vem então
quando o marido se vai. Boa! E fica-se toda no ar quando ele sai; e é
roupa-branca e mais roupa-branca, e roupão novo, e tipóia para
o passeio, e suspiros e olheiras! Boa bêbeda! Tudo fica na família!
Os olhos luziam-lhe. Já se não sentia tão lograda. Havia
ali muito “para ver e para escutar”. E o ferro estava pronto?
Mas a campainha, embaixo, tocou.
— Boa! Isto agora é um fadário! Estamos na casa do despacho!
Desceu; e exclamou logo, vendo Julião com um livro debaixo do braço:
— Faz favor de entrar, Sr. Julião! A senhora está com
o primo mas diz que mandasse entrar!
Abriu a porta da sala bruscamente, de surpresa.
— Está aqui o Sr. Julião — disse com satisfação.
Luísa apresentou os dois homens.
Basílio ergueu-se do sofá languidamente, e, num relance, percorreu
Julião desde a cabeleira desleixada até às botas mal
engraxadas, com um olhar quase horrorizado.
— Que pulha! — pensou.
Luísa, muito fina, percebeu, e corou, envergonhada de Julião.
Aquele homem de colarinho enxovalhado e com um velho casaco de pano preto
malfeito — que idéia daria a Basílio das relações,
dos amigos da casa! Sentia já o seu chic diminuído. E instintivamente,
a sua fisionomia tornou-se muito reservada, — como se semelhante visita
a surpreendesse! semelhante toilette a indignasse!
Julião percebeu o constrangimento dela; disse, já embaraçado,
ajeitando a luneta:
— Passei por aqui por acaso; entrei a saber se há algumas notícias
de Jorge…
— Obrigada. Sim, tem escrito. Está bem…
Basílio, recostado no sofá, como um parente íntimo, examinava
a sua meia de seda bordada de estrelinhas escarlates, e cofiava indolentemente
o bigode, arrebitando um pouco o dedo mínimo, — onde brilhavam,
em dois grossos anéis de ouro, uma safira e um rubi.
A afetação da atitude, o reluzir das jóias irritaram
Julião.
Quis mostrar também a sua intimidade, os seus direitos; disse:
— Eu não tenho vindo fazer-lhe um bocado de companhia, porque
tenho estado muito ocupado…
Luísa acudiu para desautorizar logo aquela familiaridade:
— Eu também não me tenho achado bem. Não tenho
recebido ninguém, — a não ser meu primo, naturalmente!
Julião sentiu-se renegado! E todo vermelho, de surpresa, de indignação,
ficou a balançar a perna, calado, com o livro sobre o joelho; como
a calça era curta, via-se o elástico esfiado das botas velhas.
Houve um silêncio difícil.
— Bonitas rosas! — disse enfim Basílio, preguiçosamente.
— Muito bonitas! — respondeu Luísa.
Estava agora compadecida de Julião; procurava uma palavra; disse-lhe
enfim muito precipitadamente:
— E que calor! É de morrer! Tem havido muitas doenças?
— Colerinas — respondeu iulião. — Por causa das frutas.
Doenças de ventre.
Luísa baixou os olhos. Basílio então começou a
falar da viscondessinha de Azeias; tinha-a achado acabada; e que era feito
da irmã, da grande?
Aquela conversação sobre fidalgas que ele não conhecia
isolava mais Julião; sentia o suor umedecer-lhe o pescoço; procurava
um dito, uma ironia, uma agudeza; e maquinalmente abria e fechava o seu grosso
livro de capa amarela.
— E algum romance? — perguntou-lhe Luísa.
— Não. E o tratado do dr. Lee sobre doenças do útero.
Luísa fez-se escarlate; Julião também, furioso da palavra
que lhe escapara. E Basílio, depois de sorrir, perguntou por uma certa
D. Rafaela Grijá, que costumava ir à Rua da Madalena, que usava
luneta, e tinha um cunhado gago…
— Morreu-lhe o marido. Casou com o cunhado.
— Com o gago?
— Sim. Tem um filhito dele, gago também.
— Que conversação, em família! E a D. Eugênia,
a de Braga?
Julião, exasperado, ergueu-se; e com uma voz de garganta seca:
— Estou com pressa, não me posso demorar. Quando escrever a Jorge,
os meus recados, hein?
Abaixou bruscamente a cabeça a Basílio. Mas não achava
o chapéu; tinha rolado para debaixo de uma cadeira. Embrulhou-se no
reposteiro, topou violentamente contra a porta fechada, e saiu enfim desesperado,
desejando vingar-se, odiando Luísa, Jorge, o luxo, a vida, —
transbordando agora de ironias, de ditos, de réplicas. Devia-os ter
achatado, o asno e a tola… E não lhe acudira nada!
Mas apenas ele tinha fechado a cancela, Basílio pôs-se de pé,
e cruzando os braços:
— Quem é este pulha?
Luísa corou muito; balbuciou:
— É um rapaz médico…
— É uma criatura impossível; é uma espécie
de estudante!
— Coitado, não tem muitos meios…
Mas não era necessário ter meios para escovar o casaco e limpar
a caspa! Não devia receber semelhante homem! Envergonha uma casa. Se
seu marido gostava dele, que o recebesse no escritório!…
Passeava pela sala, excitado, com as mãos nos bolsos, fazendo tilintar
o dinheiro e as chaves.
— São frescos os amigos da casa!… — continuou. —
Que diabo! Tu não foste educada assim. Nunca tiveste gente deste gênero
na Rua da Madalena.
Não tivera; e pareceu-lhe que as ligações do casamento
lhe tinham trazido um pouco o plebeísmo das convivências. Mas
um respeito pelas opiniões, pelas simpatias de Jorge fez-lhe dizer:
— Diz que tem muito talento…
— Era melhor que tivesse botas.
Luísa, por cobardia, concordou.
— Também o acho esquisito! — disse.
— Horrível, minha filha!
Aquela palavra fez-lhe bater o coração. Era assim que ele lhe
chamava, outrora! Houve um momento de silêncio; e a campainha da porta
retiniu fortemente.
Luísa ficou assustada. Jesus! Se fosse Sebastião! Basílio
achá-lo-ia ainda mais reles! Mas Juliana veio dizer:
— O Sr. Conselheiro. Mando entrar?
— Decerto — exclamou.
E a alta figura de Acácio adiantou-se, com as bandas do casaco de alpaca
deitadas para trás, a calça branca muito engomada caindo sobre
os sapatos de entrada baixa, de laço.
Apenas Luísa lhe apresentou o primo Basílio, disse logo, respeitoso:
— Já sabia que V. Ex. a tinha chegado; vi-o nas interessantes
notícias do nosso high-life. E do nosso Jorge?
Jorge estava em Beja… Diz que se aborrece muito…
Basílio, mais amável, deixou cair:
— Eu realmente não tenho a menor idéia do que se possa
fazer em Beja. Deve ser horroroso!
O Conselheiro, passando sobre o bigode a sua mão branca onde destacava
o anel de armas, observou:
— É todavia a capital do distrito!
Mas se já em Lisboa se não podia fazer nada, e era a capital
do reino! — E Basílio puxava, todo recostado, o punho da camisa.
— Morria-se positivamente de pasmaceira!
Luísa, muito contente da afabilidade de Basílio, pôs-se
a rir:
— Não digas isso diante do Conselheiro. E um grande admirador
de Lisboa.
Acácio curvou-se:
— Nasci em Lisboa, e aprecio Lisboa, minha rica senhora.
E com muita bonomia:
— Conheço porém que não é para comparar
aos Parises, às Londres, às Madris…
— Decerto — fez Luísa.
E o Conselheiro continuou com pompa:
— Lisboa porém tem belezas sem igual! A entrada, ao que me dizem
(eu nunca entrei a barra) é um panorama grandioso, rival das ConstantinopIas
e das Nápoles. Digno da pena de um Garrett ou de um Lamartine! Próprio
para inspirar um grande engenho!…
Luísa, receando citações ou apreciações
literárias, interrompeu-o; perguntou-lhe o que tinha feito. Tinham
estado domingo no Passeio, ela e D. Felicidade; tinham esperado vê-lo,
e nada!
Nunca ia ao Passeio, ao domingo — declarou. — Reconhecia que era
muito agradável, mas a multidão entontecia-o. Tinha notado,
— e a sua voz tomou o tom espaçado de uma revelação,
— tinha notado que muita gente, num local, causa vertigens aos homens
de estudo. De resto queixou-se da sua saúde e do peso dos seus trabalhos.
Andava compilando um livro e usando as águas de Vichy.
— Podes fumar — disse Luísa de repente, sorrindo, a Basílio.
— Queres lume?
Ela mesma lhe foi buscar um fósforo, toda ligeira, feliz. Tinha um
vestido claro, um pouco transparente, muito fresco. Os seus cabelos pareciam
mais louros, a sua pele mais fina.
Basílio soprou o fumo do charuto, e declarou muito reclinado:
— O Passeio ao domingo é simplesmente idiota!…
O Conselheiro refletiu e respondeu:
— Não serei tão severo, Sr. Brito! — Mas parecia-lhe
que com efeito antigamente era uma diversão mais agradável.
— Em primeiro lugar — exclamou com muita convicção,
endireitando-se — nada mas nada, absolutamente nada pode substituir
a charanga da Armada! — Além disso havia a questão dos
preços… Ah! tinha estudado muito o assunto! Os preços diminutos
favoreciam a aglomeração das classes subalternas… Que longe
do seu pensamento lançar desdouro nessa parte da população…
As suas idéias liberais eram bem conhecidas. — Apelo para a Srª
D. Luísa! — disse. — Mas, enfim, sempre era mais agradável
encontrar uma roda escolhida! Quanto a si nunca ia ao Passeio. Talvez não
acreditassem, mas nem mesmo quando havia fogo de vistas! Nesses dias, sim,
ia ver por fora das grades. Não por economia! Decerto não. Não
era rico, mas podia fazer face a essa contribuição diminuta.
Mas é que receava os acidentes! E que os receava muito! Contou a história
de um sujeito, cujo nome lhe escapava, a quem uma cana de foguete furara o
crânio. — E além disso nada mais fácil que cair
uma fagulha acesa na cara, num paletó novo… — E conveniente
ter prudência — resumiu, compenetrado, limpando os beiços
com o lenço de seda da Índia muito enrolado.
Falaram então da estação; muita gente fora para Sintra;
de resto, Lisboa no verão era tão secante!… E o Conselheiro
declarou que Lisboa só era imponente, verdadeiramente imponente, quando
estavam abertas as câmaras e S. Carlos!
— Que estavas tu a tocar quando eu entrei? — perguntou Basílio.
O Conselheiro acudiu logo:
— Se estavam fazendo música, por quem são… Sou um velho
assinante de S. Carlos, há dezoito anos…
Basílio interrompeu-o:
— Toca?
— Toquei. Não o oculto. Em rapaz fui dado à flauta.
E acrescentou, com um gesto benévolo:
— Rapaziadas!… Alguma novidade, o que estava tocando, D. Luísa?
— Não! Uma música muito conhecida, já antiga; a
Filha do pescador, de Meyerbeer! Tenho a letra traduzida.
Tinha cerrado as vidraças, sentara-se ao plano.
— O Sebastião é que toca isto bem, não é
verdade, Conselheiro?
— O nosso Sebastião — disse o Conselheiro com autoridade
— é um rival dos Thalbergs e dos Liszts. Conhece o nosso Sebastião?
— perguntou a Basílio.
— Não, não conheço.
— Uma pérola!
Basílio tinha-se aproximado do piano devagar, frisando o bigode.
— Tu ainda cantas? — perguntou-lhe Luísa, sorrindo.
— Quando estou só.
Mas o Conselheiro pediu-lhe logo um “trecho”. Basílio ria.
Tinha medo de escandalizar um velho assinante de S. Carlos…
O Conselheiro animou-o; disse mesmo paternalmente:
— Coragem, Sr. Brito, coragem!
Luísa então preludiou.
E Basílio soltou logo a voz, cheia, bem timbrada, de barítono;
as suas notas altas faziam a sala sonora, O Conselheiro, direito na poltrona,
escutava concentrado; a sua testa, franzida num vinco, parecia curvar-se sob
uma responsabilidade de juiz; e as lunetas defumadas destacavam, com reflexos
escuros, naquela fisionomia de calvo, que o calor tornava mais pálida.
Basílio dizia com uma melancolia grave a primeira frase, tão
larga, da canção:

Igual ao mar sombrio
Meu coração profundo…

Um poeta, com uma dedicação obscura, traduzira a letra no Almanaque
das senhoras; Luísa pela sua própria mão a tinha copiado
nas entrelinhas da música. E Basílio debruçado sobre
o papel sempre torcendo as pontas do bigode:

Tem tempestades, cóleras,
Mas pérolas no fundo!

Os olhos largos de Luísa afirmavam-se para a música —
ou a espaços, com um movimento rápido, erguiam-se para Basílio.
Quando, na nota final, prolongada como a reclamação de um amor
suplicante, Basílio soltou a voz de um modo apelativo:

Vem! Vem
Pousar, ó doce amada,
Teu peito contra o meu…

os seus olhos fixaram-se nela com uma significação de tanto
desejo, que o peito de Luísa arfou; os seus dedos embrulharam-se no
teclado.
O Conselheiro bateu as palmas.
— Uma voz admirável! — exclamava, — Uma voz admirável!
Basílio dizia-se envergonhado.
— Não, senhor, não, senhor! — protestou Acácio,
levantando-se. — Um excelente órgão! Direi, o melhor órgão
da nossa sociedade!
Basílio riu. Uma vez que tinha sucesso, então ia dizer-lhes
uma modinha brasileira da Bahia. Sentou-se ao piano, e depois de ter preludiado
uma melodia muito balançada, de um embalado tropical, cantou:

Sou negrinha, mas meu peito
Sente mais que um peito branco.

E interrompendo-se:
— Isto fazia furor nas reuniões da Bahia quando eu parti.
Era a história de uma “negrinha”, nascida na roça,
e que contava, com lirismos de almanaque, a sua paixão por um feitor
branco.
Basílio parodiava o tom sentimental de alguma menina baiana: e a sua
voz tinha uma preciosidade cômica, quando dizia o ritornello choroso:

E a negra pra os mares
Seus olhos alonga;
No alto coqueiro
Cantava a araponga.

O Conselheiro achou “delicioso”; e, de pé na sala, lamentou
a propósito da cantiga a condição dos escravos. Que lhe
afirmavam amigos do Brasil que os negros eram muito bem tratados. Mas enfim
a civilização era a civilização! E a escravatura
era um estigma! Tinha todavia muita confiança no imperador…
— Monarca de rara ilustração… — acrescentou respeitosamente.
Foi buscar o seu chapéu, e colando-lhe as abas ao peito, curvando-se,
jurou que — havia muito tempo não tinha passado uma manhã
tão completa. De resto para ele nada havia como a boa conversação
e a boa música…
— Onde está V. Exª alojado, Sr. Brito?
Pelo amor de Deus! Que não se incomodasse! Estava no Hotel Central.
Não havia considerações que o impedissem de cumprir o
seu dever — declarou. — Cumpri-lo-ia! Ele era uma pessoa inútil,
a Sr.a D. Luísa bem o sabia. — Mas se necessitar alguma coisa,
uma informação, uma apresentação nas regiões
oficiais, licenças para visitar algum estabelecimento público,
creia que me tem às suas ordens!
E conservando na sua mão a mão de Basílio:
— Rua do Ferregial de Cima número três, terceiro. O modesto
tugúrio de um eremita.
Tornou a curvar-se diante de Luísa:
— E quando escrever ao nosso viajante, que faço sinceros votos
pela prosperidade dos seus empreendimentos. Por quem é! Criado de V.
Exª!
E direito, grave, saiu.
— Este ao menos é limpo — resmungou Basílio, com
o charuto ao canto da boca.
Sentara-se outra vez ao piano, corria os dedos pelo teclado. Luísa
aproximou-se:
— Canta alguma coisa, Basílio!
Basílio pôs-se então a olhar muito para ela.
Luísa corou, sorriu; através da fazenda clara e transparente
do vestido, entrevia-se a brancura macia e láctea do colo e dos braços;
e nos seus olhos, na cor quente do rosto havia uma animação
e como uma vitalidade amorosa.
Basílio disse-lhe, baixo:
— Estás hoje nos teus dias felizes, Luísa.
O olhar dele, tão ávido, perturbava-a; insistiu:
— Canta alguma coisa.
O seu seio arfava.
— Canta tu — murmurou Basílio.
E devagarinho, tomou-lhe a mão. As duas palmas um pouco úmidas,
um pouco trêmulas, uniram-se.
A campainha, fora, tocou. Luísa desprendeu a mão, bruscamente.
— É alguém — disse agitada.
Vozes baixas falavam à cancela.
Basílio teve um movimento de ombros contrariado; foi buscar o chapéu.
— Vais-te? — exclamou ela toda desconsolada.
— Pudera! Não posso estar só contigo um momento!
A cancela fechou-se com ruído.
— Não é ninguém; foi-se — disse Luísa.
Estavam de pé, no meio da sala.
— Não te vás! Basílio!
Os seus olhos profundos tinham uma suplicação doce. Basílio
pousou o chapéu sobre o piano; mordia o bigode um pouco nervoso.
— E para que queres tu estar só comigo? — disse ela. —
Que tem que venha gente? — E arrependeu-se logo daquelas palavras.
Mas Basílio, com um movimento brusco, passou-lhe o braço sobre
os ombros, prendeu-lhe a cabeça, e beijou-a na testa, nos olhos, nos
cabelos, vorazmente.
Ela soltou-se a tremer, escarlate.
— Perdoa-me — exclamou ele logo, com um ímpeto apaixonado.
— Perdoa-me. Foi sem pensar. Mas é porque te adoro, Luísa!
Tomou-lhe as mãos com domínio, quase com direito.
— Não. Hás de ouvir. Desde o primeiro dia que te tornei
a ver estou doido por ti, como dantes, a mesma coisa. Nunca deixei de me morrer
por ti. Mas não tinha fortuna, tu bem o sabes, e queria-te ver rica,
feliz. Não te podia levar para o Brasil. Era matar-te, meu amor! Tu
imaginas lá o que aquilo é! Foi por isso que te escrevi aquela
carta, mas o que eu sofri, as lágrimas que chorei!
Luísa escutava-o imóvel, a cabeça baixa, o olhar esquecido;
aquela voz quente e forte, de que recebia o bafo amoroso, dominava-a, vencia-a;
as mãos de Basílio penetravam com o seu calor febril a substância
das suas; e, tomada de uma lassidão, sentia-se como adormecer.
— Fala, responde! — disse ele ansiosamente, sacudindo-lhe as mãos,
procurando o seu olhar avidamente.
— Que queres que te diga? — murmurou ela.
A sua voz tinha um tom abstrato, mal acordado.
E desprendendo-se devagar, voltando o rosto:
— Falemos noutras coisas!
Ele balbuciava com os braços estendidos:
— Luísa! Luísa!
— Não, Basílio, não!
E na sua voz havia o arrastado de uma lamentação, com a moleza
de uma carícia.
Ele então não hesitou, prendeu-a nos braços.
Luísa ficou inerte, os beiços brancos, os olhos cerrados —
e Basílio, pousando-lhe a mão sobre a testa, inclinou-lhe a
cabeça para trás, beijou-lhe as pálpebras devagar, a
face, os lábios depois muito profundamente; os beiços dela entreabriram-se;
os seus joelhos dobraram-se.
Mas de repente todo o seu corpo se endireitou, com um pudor indignado, afastou
o rosto, exclamou aflita:
— Deixa-me, deixa-me!
Viera-lhe uma força nervosa; desprendeu-se, empurrou-o; e passando
as mãos abertas pela testa, pelos cabelos:
— Oh meu Deus! É horrível! — murmurou. — Deixa-me!
É horrível!
Ele adiantava-se com os dentes cerrados; mas Luísa recuava, dizia:
— Vai-te. Que queres tu? Vai-te! Que fazes tu aqui? Deixa-me!
Ele então tranqüilizou-a com a voz subitamente serena e humilde.
Não percebia. Por que zangava? Que tinha um beijo? Ele não pedia
mais. Que tinha ela imaginado, então? Adorava-a, decerto, mas puramente.
— Juro-te! — disse com força, batendo no peito.
Fê-la sentar no sofá, sentou-se ao pé dela. Falou-lhe
muito sensatamente: — Via as circunstâncias, e resignar-se-ia.
Seria como uma amizade de irmãos, nada mais.
Ela escutava-o, esquecida.
Decerto, dizia ele, aquela paixão era uma tortura imensa. Mas era forte,
dominar-se-ia. Só queria vir vê-la, falar-lhe. Seria um sentimento
ideal. — E os seus olhos devoravam-na.
Voltou-lhe a mão, curvou-se, pôs-lhe um beijo cheio na palma.
Ela estremeceu, ergueu-se logo:
— Não! Vai-te!
— Bem, adeus.
Levantou-se com um movimento resignado e infeliz. E limpando devagar a seda
do chapéu:
— Bem, adeus — repetiu melancolicamente.
— Adeus.
Basílio disse então com muita ternura:
— Estás zangada?
— Não!
— Escuta — murmurou, adiantando-se.
Luísa bateu com o pé.
— Oh que homem! Deixa-me! Amanhã. Adeus. Vai-te! Amanhã!
— Amanhã! — disse ele, baixinho.
E saiu rapidamente.
Luísa entrou no quarto toda nervosa. E ao passar diante do espelho
ficou surpreendida: nunca se vira tão linda! Deu alguns passos calada.
Juliana arrumava roupa-branca num gavetão do guarda-vestidos.
— Quem tocou há bocado? — perguntou Luísa.
— Foi o Sr. Sebastião. Não quis entrar; disse que voltava.
Tinha dito, com efeito, “que voltava”. Mas começava quase
a envergonhar-se de vir assim todos os dias, e encontrá-la sempre “com
uma visita!”
Logo no primeiro dia ficara muito surpreendido quando Juliana lhe disse: “Está
com um sujeito! Um rapaz novo que já cá esteve ontem!”
Quem seria? Conhecia todos os amigos da casa… Seria algum empregado da secretaria
ou algum proprietário de minas, o filho do Alonso, talvez; um negócio
de Jorge decerto…
Depois no domingo, à noite, trazia-lhe a partitura de Romeu e Julieta,
de Gounod, que ela desejava tanto ouvir, e quando Juliana lhe disse da varanda
“que tinha saído com D. Felicidade de carruagem”, ficou
muito embaraçado com o grosso volume debaixo do braço, coçando
devagar a barba. Onde teriam ido? Lembrou-se do entusiasmo de D. Felicidade
pelo Teatro de D. Maria. Mas irem sós, naquele calor de julho, ao teatro!
Enfim, era possível. Foi a D. Maria.
O teatro, quase vazio, estava lúgubre; aqui e além, nalgum camarote,
uma família feia perfilava-se, com cabelos negríssimos carregados
de postiços, gozando soturnamente a sua noite de domingo; na platéia,
à larga nas bancadas vazias, pessoas avelhadas e inexpressivas escutavam
com um ar encalmado e farto, limpando a espaços, com lenços
de seda, o suor dos pescoços; na geral, gente de trabalho arregalava
olhos negros em faces trigueiras e oleosas; a luz tinha um tom dormente; bocejava-se.
E no palco, que representava uma sala de baile amarela, um velhote condecorado
falava a uma magrita de cabelos riçados, sem cessar, com o tom diluído
de uma água gordurosa e morna que escorre.
Sebastião saiu. Onde estariam? Soube-o na manhã seguinte. —
Descia o Moinho de Vento, e um vizinho, o Neto, que subia curvado sob o seu
guarda-sol, com o cigarro ao canto do bigode grisalho, deteve-o bruscamente,
para lhe dizer:
— O amigo Sebastião, ouça cá. Vi ontem à
noite no Passeio a D. Luísa com um rapaz que eu conheço. Mas
de onde conhe&ccedilccedil;o eu aquela cara? Quem diabo é?
Sebastião encolheu os ombros.
— Um rapaz alto, bonito, com um ar estrangeirado. Eu conheço-o.
Noutro dia vi-o entrar para lá. Você não sabe?
Não sabia.
— Eu conheço aquela cara. Tenho estado a ver se me recordo…
— Passava a mão pela testa. — Eu conheço aquela
cara! Ele é de Lisboa. De Lisboa é ele!
E depois de um silêncio, fazendo girar o guarda-sol:
— E que há de novo, Sebastião?
Também não sabia.
— Nem eu!
E bocejando muito:
— Isto está uma pasmaceira, homem!
Nessa tarde, às quatro horas, Sebastião voltou à casa
de Luísa. Estava com “o sujeito!” Ficou então preocupado.
Decerto era algum negócio de Jorge; porque não compreendia que
ela falasse, sentisse, vivesse, que não fosse no interesse da casa
e para maior felicidade de Jorge. Mas devia ser grave então —
para reclamar visitas, encontros, tantas relações. Tinham pois
interesses importantes que ele não conhecia! E aquilo parecia-lhe uma
ingratidão, e como uma diminuição de amizade.
A tia Joana tinha-o achado “macambúzio”.
Foi ao outro dia que soube que o sujeito era o primo Basílio, o Basílio
de Brito. O seu vago desgosto dissipou-se, mas um receio mais definido veio
inquietá-lo.
Sebastião não conhecia Basílio pessoalmente, mas sabia
a crônica da sua mocidade. Não havia nela certamente, nem escândalo
excepcional, nem romance pungente. Basílio tinha sido apenas um pândego
e, como tal, passara metodicamente por todos os episódios clássicos
da estroinice lisboeta: partidas de monte até de madrugada com ricaços
do Alentejo; uma tipóia despedaçada num sábado de touros;
ceias repetidas com alguma velha Lola e uma antiga salada de lagosta; algumas
pegas aplaudidas em Salvaterra ou na Alhandra; noitadas de bacalhau e Colares
nas tabernas fadistas; muita guitarra; socos bem jogados à face atônita
de um polícia; e uma profusão de gemas de ovos nas glórias
do entrudo. As únicas mulheres mesmo que apareciam na sua história,
além das Lolas e das Carmens usuais, eram a Pistelli, uma dançarina
alemã cujas pernas tinham uma musculatura de atleta, e a condessinha
de Alvim, uma doida, grande cavaleira, que se separara de seu marido depois
de o ter chicotado, e que se vestia de homem para bater ela mesma em trem
de praça do Rocio ao Dafundo. Mas isto bastava para que Sebastiào
o achasse um debochado, um perdido; ouvira que ele tinha ido para o Brasil
para fugir aos credores; que enriquecera por acaso, numa especulação,
no Paraguai; que mesmo na Rabia, com a corda na garganta, nunca fora um trabalhador;
e supunha que a posse da fortuna para ele, seria apenas um desenvolvimento
dos vícios. E este homem agora vinha ver a Luisinha todos os dias,
estava horas e horas, seguia-a ao Passeio…
Para quê?… Era claro, para a desinquietar!
Ia justamente descendo a rua, dobrado sob a pesada desconsalação
destas idéias, quando uma voz encatarroada disse com respeito:
— O Sr. Sebastiâo!
Era o Paula dos móveis.
— Viva, Sr. João.
O Paula atirou para as pedras da rua um jato escuro de saliva, e com as mãos
cruzadas debaixo das abas do comprido casaco de cotim, o tom grave:
— Ó Sr. Sebastião, há doença cá por
causa do Sr. Engenheiro?
Sebastião todo surpreendido:
— Não. Por quê?
O Paula fez roncar a garganta, cuspilhou:
— É que tenho visto entrar para cá todos os dias um sujeito.
Imaginei que fosse o médico.
E puxando o escarro:
— Desses novos da homeopatia!
Sebastião tinha corado.
— Nada — disse. — É o primo de D. Luísa.
— Ah! — fez o Paula. — Pois pensei… Queira desculpar,
Sr. Sebastião.
E curvou-se respeitosamente.
— Já temos falatório! — foi pensando Sebastião.
E entrou em casa, descontente.
Morava ao fundo da rua, num prédio seu, de construção
antiga, com quintal.
Sebastião era só. Tinha uma fortuna pequena em inscrições,
terras de lavoura para o lado do Scixal, e a quinta em Almada, — o Rozegal.
As duas criadas eram muito antigas na casa. A Vicência, a cozinheira,
era uma preta de S. Tomé já do tempo da mamã. A tia Joana,
a governanta, servia-o havia trinta e cinco anos; chamava ainda a Sebastião
o “menino”; tinha já as tontices de uma criança,
e recebia sempre os respeitos de uma avó. Era do Porto, do Poârto,
como ela dizia, porque nunca perdera o seu acento minhoto. Os amigos de Sebastião
chamavam-lhe uma velha de comédia. Era baixinha e gorda, com um sorriso
muito bondoso; tinha os cabelos alvos como uma estriga, atados no alto num
rolinho com um antigo pente de tartaruga; trazia sempre um vasto lenço
branco muito asseado, traçado sobre o peito. E todo o dia passarinhava
pela casa, com o seu passinho arrastado, fazendo tilintar os molhos de chaves,
resmungando provérbios, tomando rapé de uma caixa redonda, em
cuja tampa se lascava o desenho abonecado da ponte pênsil do Porto.
Em toda a casa havia um tom caturra e doce; na sala de visitas, quase sempre
fechada, o vasto canapé, as poltronas tinham o ar empertigado do tempo
do Sr. D. José I, e os estofos de damasco vermelho desbotado lembravam
a pompa de uma corte decrépita; das paredes da casa de jantar pendiam
as primeiras gravuras das batalhas de Napoleão, onde se vê invariavelmente,
numa eminência, o cavalo branco, para o qual galopa desenfreadamente
do primeiro plano um hussardo, brandindo um sabre. Sebastião dormia
os seus sonos de sete horas, sem sonhos, numa velha barra de pau preto torneado;
e numa saleta escura, sobre uma cômoda de fecharias de metal amarelo,
conservava-se, havia anos, o padroeiro da casa, S. Sebastião —
que se torcia, cravado de setas, nas cordas que o atavam ao tronco, à
luz de uma lâmpada, muito cuidada pela tia Joana, sob os ruídos
sutis dos ratos pelo forro.
A casa condizia com o dono. Sebastião tinha um gênio antiquado.
Era solitário e acanhado. Já no latim lhe chamavam o peludo;
punham-lhe rabos, roubavam-lhe impudentemente as merendas. Sebastião,
que tinha a força de um ginasta, oferecia a resignação
de um mártir.
Foi sempre reprovado nos primeiros exames do liceu. Era inteligente, mas uma
pergunta, o reluzir dos óculos de um professor, a grande lousa negra
imobilizavam-no; ficava muito embezerrado, a face inchada e rubra, a coçar
os joelhos, o olhar vazio.
Sua mãe, que era da aldeia e que fora padeira, muito vaidosa agora
das suas inscrições, da sua quinta, da sua mobília de
damasco, sempre vestida de seda, carregada de anéis, costumava dizer:
— Ora! Tem que comer e beber! Estar a afligir a criança com estudos!
Deixa lá, deixa lá!
A inclinação de Sebastião era pela música. Sua
mãe, por conselhos da mãe de Jorge, sua vizinha e sua intima,
tomou-lhe um mestre de piano; logo desde as primeiras lições,
a que ela assistia com enfeites de veludo vermelho e cheia de jóias,
o velho professor Aquiles Bentes, de óculos redondos e cara de coruja,
exclamou excitado com a sua voz nasal:
— Minha rica senhora! O seu menino é um gênio! É
um gênio! Há de ser um Rossini! É puxar por ele! É
puxar por ele!
Mas era justamente o que ela não queria, era puxar por ele, coitadinho!
Por isso não foi um Rossini. E todavia o velho Bentes continuava a
dizer, por hábito:
— Há de ser um Rossini! Há de ser um Rossini!
Somente em lugar de o gritar, brandindo papéis de música, murmurava-o,
com bocejos enormes de leão enfastiado.
Já então os dois rapazes vizinhos, Jorge e Sebastião,
eram íntimos. Jorge mais vivo, mais inventivo, dominava-o. No quintal,
a brincar, Sebastião era sempre o cavalo nas imitações
da diligência, o vencido nas guerras. Era Sebastião que carregava
os pesos, que oferecia o dorso para Jorge trepar; nas merendas comia todo
o pão, deixava a Jorge toda a fruta. Cresceram. E aquela amizade sempre
igual, sem amuos, tornou-se na vida de ambos um interesse essencial e permanente.
Quando a mãe de Jorge morreu, pensaram mesmo em viver juntos; habitariam
a casa de Sebastião, mais larga e que tinha quintal; Jorge queria comprar
um cavalo, mas conheceu Luísa no Passeio, e dai a dois meses passava
quase todo o seu dia na Rua da Madalena.
Todo aquele plano jovial da Sociedade Sebastião e Jorge — chamavam-lhe
assim, rindo — desabou, como um castelo de cartas. Sebastião
teve um grande pesar.
E era ele, depois, que fornecia os ramos de rosas que Jorge levava a Luísa,
sem espinhos, com cuidados devotos, embrulhados num papel de seda. Era ele
que tratava dos arranjos do “ninho”, ia apressar os estofadores,
discutir preços de roupas, vigiar o trabalho dos homens que pregavam
os tapetes, conferenciar com a inculcadeira, cuidar dos papéis do casamento!
E à noite, fatigado como um procurador zeloso, tinha ainda de escutar
com um sorriso as expansões felizes de Jorge, que passeava pelo quarto
até às duas horas da noite em mangas de camisa, namorado loquaz,
brandindo o cachimbo!
Depois do casamento Sebastião sentiu-se muito só. Foi a Portei
visitar um tio, um velho esquisito, com um olhar de doido, que passava a existência
combinando enxertos no pomar, e lendo, relendo o Eurico. Quando voltou, passado
um mês, Jorge disse-lhe radioso:
— E sabes, hein? Isto agora é que é a tua casa! Aqui é
que tu vives!
Mas nunca obteve de Sebastião que fosse a sua casa com uma inteira
intimidade. Sebastião batia à porta, timidamente. Corava diante
de Luísa; o antigo peludo de latim reaparecia. Jorge lutara para que
ele cruzasse sem cerimônia as pernas, fumasse cachimbo diante dela,
não lhe dissesse, a todo o momento: — V. Exª, V. Exª
— meio erguido na cadeira.
Nunca vinha jantar senão arrastado. Quando Jorge não estava,
as suas visitas eram curtas, cheias de silêncio. Julgava-se gebo, tinha
medo de maçar.
Nessa tarde, quando ele foi para a sala de jantar, a tia Joana veio-lhe perguntar
pela Luisinha.
Adorava-a, achava-a um anjinho, uma açucena.
— Como está ela? Viu-a?
Sebastião corou; não quis dizer, como na véspera, “que
estava gente, que não tinha entrado”; abaixando-se, pondo-se
a brincar com as orelhas do Trajano, o seu velho perdigueiro:
— Está boa, tia Joana, está boa. Então como há
de estar? Está ótima!
Àquela hora Luísa recebia uma carta de Jorge. Era de Portei,
com muitas queixas sobre o calor, sobre as más estalagens, histórias
sobre o extraordinário parente de Sebastião, — saudades
e mil beijos…
Não a esperava, e aquela folha de papel cheia de uma letra miudinha,
que lhe fazia reaparecer vivamente Jorge, a sua figura, o seu olhar, a sua
ternura, deu-lhe uma sensação quase dolorosa. Toda a vergonha
dos seus desfalecimentos cobardes, sob os beijos de Basílio, veio abrasar-lhe
as faces. Que horror deixar-se abraçar, apertar! No sofá o que
ele lhe dissera; com que olhos a devorara!… Recordava tudo, — a sua
atitude, o calor das suas mãos, a tremura da sua voz… E maquinalmente,
pouco e pouco, ia-se esquecendo naquelas recordações, abandonando-se-lhes,
até ficar perdida na deliciosa Lassidão que elas lhe davam,
com o olhar lânguido, os braços frouxos. Mas a idéia de
Jorge vinha então outra vez fustigá-la como uma chicotada. Erguia-se
bruscamente, passeava pelo quarto toda nervosa, com uma vaga vontade de chorar…

— Ah! não! é horroroso, é horroroso! — dizia
só, falando alto. — É necessário acabar!
Resolveu não receber Basílio, escrever-lhe, pedir-lhe que não
voltasse, que partisse! Meditava mesmo as palavras; seria seca e fria; não
diria meu querido primo, mas simplesmente primo Basílio.
E que faria ele, quando recebesse a carta? Choraria, coitado!
Imaginava-o só, no seu quarto de hotel, infeliz e pálido; e
daqui, pelos declives da sensibilidade, passava à recordação
da sua pessoa, da sua voz convincente, das turbações do seu
olhar dominante; e a memória demorava-se naquelas lembranças
com uma sensação de felicidade, como a mão se esquece
acariciando a plumagem doce de um pássaro raro. Sacudia a cabeça
com impaciência, como se aquelas imaginações fossem os
ferrões de insetos importunos; esforçava-se por pensar só
em Jorge; mas as idéias más voltavam, mordiam-na; e achava-se
desgraçada, sem saber o que queria, com vontades confusas de estar
com Jorge, de consultar Leopoldina, de fugir para longe, ao acaso. Jesus,
que infeliz que era! — E do fundo da sua natureza de preguiçosa
vinha-lhe uma indefinida indignação contra Jorge, contra Basílio,
contra os sentimentos, contra os deveres, contra tudo o que a fazia agitar-se
e sofrer. Que a não secassem, Santo Deus!
Depois do jantar, à janela da sala, ficou a reler a carta de Jorge.
Pôs-se a recordar de propósito tudo o que a encantava nele, do
seu corpo e das suas qualidades. E juntava ao acaso argumentos, uns de honra,
outros de sentimento, para o amar, para o respeitar. Tudo era por ele estar
fora, na província! Se ele ali estivesse ao pé dela! Mas tão
longe, e demorar-se tanto! E ao mesmo tempo, contra sua vontade, a certeza
daquela ausência dava-lhe uma sensação de liberdade; a
idéia de se poder mover à vontade nos desejos, nas curiosidades,
enchia-lhe o peito de um contentamento largo, como uma lufada de independência.
Mas enfim, vamos, de que lhe servia estar livre, só? — E de repente
tudo o que poderia fazer, sentir, possuir, lhe aparecia numa perspectiva longa
que fulgurava; aquilo era como uma porta, subitamente aberta e fechada, que
deixa entrever, num relance, alguma coisa de indefinido, de maravilhoso, que
palpita e faísca. — Oh! estava doida, decerto!
Escureceu. Foi para a saia, abriu a janela; a noite estava quente e espessa,
com um ar de eletricidade e de trovoada. Respirava mal; olhava para o céu,
desejando alguma coisa fortemente, sem saber o quê.
O moço do padeiro embaixo, como sempre, tocava o fado; aqueles sons
banais entravam-lhe agora na alma, com a brandura de um bafo quente e a melancolia
de um gemido.
Encostou a cabeça à mão com uma lassidão. Mil
pensamentozinhos corriam-lhe no cérebro como os pontos de luz que correm
num papel que se queimou; lembrava-lhe sua mãe, o chapéu novo
que lhe mandara Madame François, o tempo que faria em Sintra, a doçura
das noites quentes sob a escuridão das ramagens…
Fechou a janela, espreguiçou-se; e sentada na causeuse, no seu quarto,
ficou ali, numa imobilidade, pensando em Jorge, em lhe escrever, em lhe pedir
que viesse. Mas bem depressa aquele cismar começou a quebrar-se a cada
momento como uma tela que se esgaça em rasgões largos, e, por
trás, aparecia logo com uma intensidade luminosa e forte a idéia
do primo Basílio.
As viagens, os mares atravessados tinham-no tornado mais trigueiro; a melancolia
da separação dera-lhe cabelos brancos. Tinha sofrido por ela!
—dissera. — E no fim onde estava o mal? Ele jurara-lhe que aquele
amor era casto, passando-se todo na alma. Tinha vindo de Paris, o pobre rapaz,
assim lho jurara, para a ver, uma semana, quinze dias. E havia de dizer-lhe:
— Não voltes; vai-te?
— Quando a senhora quiser o chá… — disse da porta do
quarto Juliana.
Luísa deu um suspiro alto como acordando. Não! Que trouxesse
a lamparina, mais tarde.
Eram dez horas. Juliana foi tomar o seu chá, à cozinha. O lume
ia-se apagando; o candeeiro de petróleo estendia nos cobres dos tachos
reflexos avermelhados.
— Hoje houve coisa, Sr.a Joana — disse Juliana sentando-se. —
Está toda no ar! E é cada suspiro! Ali houve-a e grossa.
Joana, do outro lado, com os cotovelos na mesa e a face sobre os punhos, pestanejava
de sono.
— A Sr.a Juliana, também, deita tudo para o mal — disse.
— É que era necessário ser tola, Sr.a Joana!
Calou-se, cheirou o açúcar; era um dos seus despeitos; gostava
dele bem refinado — e aquele açúcar mascavado e grosso,
que punha no chá uni gosto de formigas, exasperava-a.
— Este é pior que o do mês passado! Para uma pobre de Cristo
tudo é bom! — rosnou muito amargamente.
E depois de uma pausa repetiu:
— E que era necessário ser tola, Sr. a Joana!
A cozinheira disse preguiçosamente:
— Cada um sabe de si…
— E Deus de todos — suspirou Juliana.
E ficaram caladas.
Luísa tocou a campainha embaixo.
— Que teremos nós agora? Está com as cócegas.
Desceu. Voltou com o regador, muito enfastiada:
— Quer mais água! Olha a mania; pô6-se agora a chafurdar
à meia-noite! Sempre a gente as vê…
Foi encher o regador, e enquanto a água da torneira cantava no fundo
da lata:
— E diz que lhe faça amanhã ao almoço um bocado
de presunto frito, do salgado. Quer picantes!
E com muito escárnio:
— Sempre a gente vê coisas! Quer picantes!
À meia-noite a casa estava adormecida e apagada. Fora, o céu
enegrecera mais: relampejou, e um trovão seco estalou, rolou.
Luísa abriu os olhos estremunhada; começara a cair uma chuva
grossa e sonora; a trovoada arrastava-se, ao longe. Esteve um momento escutando
as goteiras que cantavam sobre o lajedo; a alcova abafada; descobriu-se; o
sono tinha fugido, e de costas, o olhar fixo na vaga claridade que vinha de
fora da lamparina, seguia o tique-taque do relógio. Espreguiçou-se,
e uma certa idéia, uma certa visão foi-se formando no seu cérebro,
completando-se, tão nítida, quase tão visível,
que se revirou na cama devagar, estirou os braços, lançou-os
em roda do travesseiro, adiantando os beiços secos — para beijar
uns cabelos negros onde reluziam fios brancos.
Sebastião tinha dormido mal. Acordou às seis horas e desceu
ao quintal em chinelas. Uma porta envidraçada da sala de jantar abria
para um terraçozinho, largo apenas para três cadeiras de ferro
pintado e alguns vasos de cravos; dali, quatro degraus de pedra desciam para
o quintal; era uma horta ajardinada, muito cheia, com canteirinhos de flores,
saladas muito regadas, pés de roseiras junto dos muros, um poço
e um tanque debaixo de uma parreirita, e árvores; terminava por outro
terraço assombreado de uma tília, com um parapeito para uma
rua baixa e solitária; defronte corria um muro de quintal muito caiado.
Era um sitio recolhido, de uma paz aldeã. Muitas vezes Sebastião,
de madrugada, ia para ali fumar o seu cigano.
Era uma manhã deliciosa. Havia um ar transparente e fino; o céu
arredondava-se a uma grande altura com o azulado de certas porcelanas velhas
e, aqui e além, uma nuvenzinha algodoada, molemente enrolada, cor de
leite; a folhagem tinha um verde lavado, a água do tanque uma cristalinidade
fria; pássaros chilreavam de leve com vôos rápidos.
Sebastião estava debruçado para a rua, quando a ponteira de
uma bengala, passos vagarosos cortaram o silêncio fresco. Era um vizinho
de Jorge, o Cunha Rosado, o doente de intestinos; arrastava-se, curvado, abafado
num cachenê e num paletó cor de pinhão, com a barba grisalha
desmazelada, a crescer.
— Já a pé, vizinho! — disse Sebastião.
O outro parou, ergueu a cabeça lentamente.
— Oh Sebastião! — disse com uma voz plangente. —
Ando a passear os meus leites, homem!
— A pé?
— Ao princípio ia na burrita até fora de portas, mas diz
que me fazia bem o passeiozito a pé…
Encolheu os ombros com um gesto triste de dúvida, de desconsolação.
— E como vai isso? — perguntou Sebastião, muito debruçado
para a rua, com afeto.
O Cunha teve um sorriso desolado nos seus beiços brancos:
— A desfazer-se!
Sebastião tossiu, embaraçado, sem achar uma consolação.
Mas o doente, com as duas mãos apoiadas à bengala, uma súbita
radiação de interesse no olhar amortecido:
— Ó Sebastião, um rapaz alto, que eu tenho visto todos
estes dias entrar para casa do Jorge, é o Basílio de Brito,
pois não é? O primo da mulher? O filho do João de Brito?
— É, sim, por quê?
O Cunha fez: Ah! ah! com uma grande satisfação.
— Bem dizia eu! — exclamou. — Bem dizia eu! E aquela teimosa
que não! que não…
E então explicou com uma tagarelice súbita, e cansaços
de voz:
— O meu quarto é para a rua, e todos os dias, como eu estou quase
sempre pela janela para espairecer… tenho visto aquele rapaz, a modo estrangeirado,
entrar para lá… todos os dias! Este é o Basílio de
Brito! disse eu. Mas minha mulher que não! que não!… Que diabo,
homem! Eu tinha quase a certeza… Não conheço eu outra coisa!…
Até ele esteve para casar com a D. Luísa. Oh! Eu sei essa história
na ponta dos dedos… Morava ela na Rua da Madalena!…
Sebastião disse vagamente:
— Pois é, é o Brito…
— Bem dizia eu!
Ficou um momento imóvel, fitando o chão, e refazendo uma voz
dolente:
— Pois, vou-me arrastando até casa.
Suspirou. E arregalando os olhos:
— Quem me dera a sua saúde, Sebastião!
E dizendo adeus, com um gesto da mão calçada de luva de casimira
escura, afastou-se, curvado, rente do muro, conchegando com o braço
ao ventre, o seu largo paletó cor de pinhão.
Sebastião entrou preocupado. Todo o mundo começava a reparar,
hein! Pudera! Um rapaz novo, janota, vir todos os dias de trem; estar duas,
três horas! Uma vizinhança tão chegada, tão maligna!…
Ao começo da tarde saiu. Teve vontade de procurar Luísa; mas
sem saber por quê, sentia um grande acanhamento; como que receava encontrá-la
diferente ou com outra expressão… E subia a rua devagar, sob o seu
guarda-sol, hesitando, quando um coupé que descia a trote largo veio
parar à porta de Luísa.
Um sujeito saltou rapidamente, atirou o charuto, entrou. Era alto, com um
bigode levantado, trazia uma flor, no peito; devia ser o primo Basílio,
pensou. O cocheiro limpou o suor da testa, e, cruzando as pernas, pôs-se
a enrolar o cigarro.
Ao ruído do trem o Paula postou-se logo à porta, de boné
carregado, as mãos enterradas no bolso, com olhares de revés;
a carvoeira defronte, imunda, disforme de obesidade e de prenhez, veio embasbacar
com um pasmo lorpa na face oleosa; a criada do doutor abriu precipitadamente
a vidraça. Então o Paula atravessou rapidamente a rua faiscante
de sol, entrou no estanque; dai a um momento apareceu à porta, com
a estanqueira, de carão viúvo; e cochichavam, cravavam olhares
pérfidos nas varandas de Luísa, no coupé! O Paula, dali,
arrastando as chinelas de tapete, foi segredar com a carvoeira; provocou-lhe
uma risada que lhe sacudia a massa do seio; e foi enfim estacar à sua
porta entre um retrato de D. João VI e duas velhas cadeiras de couro,
assobiando com júbilo. No silencio da rua ouvia-se num piano, a compasso
de estudo, a Oração de uma virgem.
Sebastião ao passar olhou maquinalmente para as janelas de Luísa.
— Rico calor, Sr. Sebastião! — observou o Paula curvando-se.
— É um regalo estar à fresca!
Luísa e Basílio estavam muito tranqüilos, muito felizes
na sala, com as portadas meio cerradas, numa penumbra doce. Luísa tinha
aparecido de roupão branco, muito fresca, com um bom cheiro de água
de alfazema.
— Eu venho assim mesmo — disse ela. — Não faço
cerimônias.
Mas assim é que ela estava linda! — Assim é que a queria
sempre! —exclamava Basílio muito contente, como se aquele roupão
de manhã fosse já uma promessa da sua nudez.
Vinha muito tranqüilo, afetava um tom de parente. Não a inquietou
com palavras veementes, nem com gestos desejosos; falou-lhe do calor, de uma
zarzuela que vira na véspera, de velhos amigos que encontrara, e disse-lhe
apenas que tinha sonhado com ela.
O quê? Que estavam longe, numa terra distante, que devia ser a Itália,
tantas as estátuas que havia nas praças, tantas as fontes sonoras
que cantavam nas bacias de mármore; era num jardim antigo, sobre um
terraço clássico; flores raras transbordavam de vasos florentinos;
pousando sobre as balaustradas esculpidas, pavões abriam as caudas;
e ela arrastava devagar sobre as lajes quadradas a cauda longa do seu vestido
de veludo azul. De resto, dizia, era um terraço como o de S. Donato,
a vila do Príncipe Demidoff, — porque lembrava sempre as suas
intimidades ilustres, e não se descuidava de fazer reluzir a glória
das suas viagens.
E ela, tinha sonhado?
Luísa corou. — Não, tinha tido muito medo da trovoada.
Tinha ouvido a trovoada, ele?
— Estava a cear no Grêmio, quando trovejou.
— Costumas cear?
Ele teve um sorriso infeliz. — Cear! Se se podia chamar cear ir ao Grêmio
rilhar um bife córneo e tragar um Colares peçonhento!
E fitando-a:
— Por tua causa, ingrata!
Por sua causa?
— Por quem, então? Por que vim eu a Lisboa? Por que deixei Paris?
— Por causa dos teus negócios…
Ele encarou-a severamente:
— Obrigado — disse, curvando-se até ao chão.
E a grandes passadas pela sala soprava violentamente o fumo do seu charuto.
Veio sentar-se bruscamente ao pé dela. — Não, realmente
era injusta. Se estava em Lisboa, era por ela. Só por ela!
Fez uma voz meiga; perguntou-lhe se tinha realmente um bocadinho de amor muito
pequenino, assim… — Mostrava o comprimento da unha.
Riram.
— Assim, talvez.
E o peito de Luísa arfava.
Ele então examinou-lhe as unhas; admirou-lhas e aconselhou-lhe o verniz
que usam as cocottes, que lhes dá um lustre polido; ia-se apossando
da sua mão, pôs-lhe um beijo na ponta dos dedos; chupou o dedo
mínimo, jurou que era muito doce; arranjou-lhe com um contacto muito
tímido uns fios de cabelos que se tinham soltado, — e, disse,
tinha um pedido a fazer-lhe!
Olhava-a com uma suplicação.
— Que é?
— E que venhas comigo ao campo. Deve estar lindo no campo!
Ela não respondeu; dava pancadinhas leves nas pregas moles do roupão.
— É muito simples — acrescentou ele. — Tu vais-me
encontrar a qualquer parte, longe daqui, está claro. Eu estou à
espera de ti com uma carruagem, tu saltas para dentro e fouette, cocher!
Luísa hesitava.
— Não digas que não.
— Mas onde?
— Onde tu quiseres. A Paço d’Arcos, a Loires, a Queluz.
Dize que sim.
A sua voz era muito urgente; quase ajoelhara.
— Que tem? É um passeio de amigos, de irmãos.
— Não! Isso não!
Basílio zangou-se, chamou-lhe beata. Quis sair. Ela veio tirar-lhe
o chapéu da mão, muito meiga, quase vencida.
— Talvez, veremos — dizia.
— Dize que sim! — insistia. — Sê boa rapariga.
— Pois sim, amanhã veremos; amanhã falaremos.
Mas no dia seguinte, muito habilmente, Basílio não falou no
passeio, nem no campo. Não falou também do seu amor, nem dos
seus desejos. Parecia muito alegre, muito superficial; tinha-lhe trazido o
romance de Belot, A mulher de fogo. E sentando-se ao piano, disse-lhe canções
de café-concerto, muito picantes; imitava a rouquidão acre e
canalha das cantoras; fê-la rir.
Depois falou muito de Paris; contou-lhe a moderna crônica amorosa, anedotas,
paixões chia. Tudo se passava com duquesas, princesas, de um modo dramático
e sensibilizador, às vezes jovial, sempre cheio de delidas. E, de todas
as mulheres de que falava, dizia recostando-se: Era uma mulher distintíssima;
tinha naturalmente o seu amante…
O adultério aparecia assim um dever aristocrático. De resto
a virtude parecia ser, pelo que ele contava, o defeito de um espírito
pequeno, ou a ocupação reles de um temperamento burguês…
E quando saiu, disse, como recordando-se:
— Sabes que estou com minhas idéias de partir?…
Ela perguntou, um pouco descorada:
— Por quê?
Basílio disse, muito indiferente:
— Que diabo faço eu aqui?…
Esteve um momento a fitar o tapete, deu um suspiro, e como dominando-se:
— Adeus, meu amor…
E saiu.
Quando nessa tarde Luísa entrou na sala de jantar, levava os olhos
vermelhos.
Foi ela no dia seguinte que falou do campo. Queixou-se do contínuo
calor, da seca de Lisboa. Como devia estar lindo em Sintra!
— Es tu que não queres — acudiu ele. — Podíamos
fazer um passeio adorável.
Mas tinha medo, podiam ver…
— O quê! Num coupé fechado? Com os estores descidos?
Mas então era pior que estar numa sala; era abafar numa boceta!
Mas não! Iam a uma quinta. Podiam ir às Alegrias, à quinta
de um amigo dele que estava em Londres. Só viviam lá os caseiros;
era ao pé dos Olivais; era lindo! Belas ruas de loureiros, sombras
adoráveis. Podiam levar gelo, champagne…
— Vem! — disse bruscamente, tomando-lhe as mãos.
Ela corou. — Talvez. No domingo veria.
Basílio conservava-lhe as mãos presas. Os seus olhos encontraram-se,
umedeceram-se. Ela sentiu-se muito perturbada: desprendeu as mãos;
foi abrir as vidraças ambas, dar à sala uma claridade larga
como uma publicidade; sentou-se numa cadeira ao pé do piano, receando
a penumbra, o sofá, todas as cumplicidades; e pediu-lhe que cantasse
alguma coisa, porque já temia as palavras, tanto como os silêncios!
Basílio cantou a Medjé, a melodia de Gounod, tão sensual
e perturbadora. Aquelas notas quentes passavam-lhe na alma como bafos de uma
noite elétrica. E quando Basílio saiu, ficou sentada, quebrada,
como depois de um excesso.
Sebastião tinha estado nos últimos três dias em Almada,
na quinta do Rozegal, onde trazia obras.
Voltara na segunda-feira cedo, e, pelas dez horas, sentado no poial da janela
de jantar que abria para o terraçozinho, esperava o seu almoço,
brincando com o Rolim — o seu gato, amigo e confidente da ilustre Vicência,
nédio como um prelado, ingrato como um tirano.
A manhã começava a aquecer; o quintal estava já cheio
de sol; na água do tanque sob a parreira, claridades espelhadas e trêmulas
faiscavam. Nas duas gaiolas os canários cantavam estridentemente.
A tia Joana, que andava a arranjar a mesa do almoço muito calada, pôs-se
então a dizer com a sua vozinha arrastada e minhota:
— Ora, esteve aí ontem a Gertrudes, a do doutor, com uns palratórios,
com umas tontices!
— A respeito de quê, tia Joana? — perguntou Sebastião.
— A respeito de um rapaz, que diz que vai agora todos os dias à
casa da Luisinha.
Sebastião ergueu-se logo:
— Que disse ela, tia Joana?
A velha assentava a toalha devagar com a sua mão gorducha espalmada:
— Esteve aí a palrar. Quem seria, quem não seria? Diz
que é um perfeito rapaz. Vem todos os dias. Vem de trem, vai de trem…
No sábado, que estivera até quase à noitinha. E cantou-se
na sala, diz que uma voz que nem no teatro…
Sebastião interrompeu-a, impaciente:
— É o primo, tia Joana. Então quem havia de ser? É
o primo que chegou do Brasil.
A tia Joana teve um bom sorriso.
— Eu logo vi que era coisa de parente. Pois diz que é um perfeito
rapaz! E todo janota!
E saindo para a cozinha, devagar:
— Eu logo vi que era parente, logo disse!…
Sebastião almoçou inquieto. Positivamente a vizinhança
já se punha a mexericar, a comentar! Estava-se a armar um escândalo!
— E, assustado, decidiu-se logo a ir consultar Julião.
Descia a Rua de S. Roque para casa dele, quando o viu, que subia devagar pela
sombra, com um rolo de papel debaixo do braço, uma calça branca
enxovalhada, o ar suado.
— Ia a tua casa, homem! — disse Sebastião logo.
Julião estranhou a excitação de sua voz.
Havia alguma novidade? Que era?
— Uma do diabo! — exclamou, baixo, Sebastião.
Estavam parados ao pé da Confeitaria. Na vidraça, por trás
deles emprateleirava-se uma exposição de garrafas de malvasia
com os seus letreiros muito coloridos, transparências avermelhadas de
gelatinas, amarelidões enjoativas de doces de ovos, e queques de um
castanho-escuro tendo espetados cravos tristes de papel branco ou cor-de-rosa.
Velhas natas lívidas amolentavam-se no oco dos folhados; ladrilhos
grossos de marmeladas esbeiçavam-se ao calor; as empadinhas de marisco
aglomeravam as suas crostas ressequidas. E no centro, muito proeminente numa
travessa, enroscava-se uma lampreia de ovos, medonha e bojuda, com o ventre
de um amarelo ascoroso, o dorso malhado de arabescos de açúcar,
a boca escancarada; na sua cabeça grossa esbugalhavam-se dois horríveis
olhos de chocolates; os seus dentes de amêndoa ferravam-se numa tangerina
de chila; e em torno do monstro espapado moscas esvoaçavam.
— Vamos ali para o café — disse Julião. —
Aqui na rua arde-se!
— Tenho estado apoquentado — ia dizendo Sebastião. —
Muito apoquentado! Quero falar-te.
No café o papel azul-ferrete e as meias portas fechadas abatiam a áspera
intensidade da luz, davam uma frescura calada.
Foram-se sentar ao fundo. Do outro lado da rua as fachadas muito caiadas brilhavam
com uma radiação faiscante. Por trás do balcão,
onde reluziam garrafas de cristal, um criado de jaquetão, estremunhado
e esguedelhado, cabeceava de sono. Um pássaro chilreava dentro; sentia-se
o bater espaçado das bolas do bilhar através de uma porta de
baeta verde; às vezes o pregão de um cangalheiro na rua sobressaía,
e todos estes sons, por momentos, se perdiam no ruído forte do descer
de um trem travado.
Defronte deles um sujeito de ar debochado lia um jornal; as suas melenas grisalhas
colavam-se a um crânio amarelado; o bigode tinha tons queimados do cigarro;
e das noitadas ficara-lhe uma vermelhidão inflamada nas pálpebras.
De vez em quando erguia preguiçosamente a cabeça, atirava para
o chão areado um jato escuro de saliva, dava uma sacudidela triste
ao jornal e tornava a fitá-lo com um olhar infeliz. Quando os dois
entraram e pediram carapinhadas, abaixou-lhes gravemente a cabeça.
— Mas o que é então? — perguntou logo Julião.
Sebastião chegou-se mais para ele:
— E por causa lá da nossa gente. Por causa do primo — disse
baixo.
E acrescentou:
— Tu viste-o, hein?
A lembrança repentina da sua humilhação na sala de Luísa
trouxe um rubor às faces de Julião. Mas muito orgulhoso, disse
secamente:
— Vi.
— E então?
— Pareceu-me um asno! — exclamou, não se contendo.
— É um extravagante — disse com terror Sebastião.
— Não te pareceu, hein?
— Pareceu-me um asno — repetiu. — Umas maneiras, uma afetação,
um alambicado, a olhar muito para as meias, umas meias ridículas de
mulher…
E com um certo sorriso azedado:
— Eu mostrei-lhe francamente as minhas botas. Estas, — disse,
apontando para os botins mal engraxados — tenho muita honra nelas; são
de quem trabalha…
Porque publicamente costumava gloriar-se de uma pobreza, que intimamente não
cessava de o humilhar.
E remexendo devagar a sua carapinhada:
— Uma besta! — resumiu.
— Tu sabes que ele foi namoro da Luísa? — disse Sebastião,
baixo, como assustado da gravidade da confidência.
E respondendo logo ao olhar surpreendido de Julião:
— Sim. Ninguém o sabe. Nem Jorge. Eu soube-o há pouco,
há meses. Foi. Estiveram para casar. Depois o pai faliu, ele foi para
o Brasil, e de lá escreveu a romper o casamento.
Julião sorriu, e encostando a cabeça à parede:
— Mas isso é o enredo da Eugênia Grandet, Sebastião!
Estás-me a contar o romance de Balzac! Isso é a Eugênia
Grandet!
Sebastião fitou-o espantado.
— Ora! Não se pode falar sério contigo. Dou-te a minha
palavra! -acrescentou vivamente.
— Vá, Sebastião, vá, dize.
Houve um silêncio. O sujeito calvo, agora, contemplava o estuque do
teto sujo de fumo dos cigarros e do pousar das moscas; e, com a mão
sapuda, de tom pegajoso, cofiava amorosamente as repas. No bilhar vozes altercavam.
Sebasfião então, como tomado de uma resolução,
disse bruscamente:
— Agora vai lá todos os dias; não sai de lá!
Julião afastou-se na banqueta e encarou-o:
— Tu queres-me dar a entender alguma coisa, Sebastião?
E com uma vivacidade quase jovial:
— O primo atira-se?
Aquela palavra escandalizou Sebastião.
— Ó Julião! — E severamente: — Com essas coisas
não se brinca!
Julião encolheu os ombros.
— Mas está claro que se atira! — exclamou. — Es de
bom tempo ainda! Está claro que sim! Namorou-a solteira, agora a quer
casada!
— Fala baixo — acudiu Sebastião.
Mas o criado dormitava, e o sujeito calvo tinha recaído na sua leitura
fúnebre.
Julião baixou a voz:
— Mas é sempre assim, Sebastião. O primo Basílio
tem razão; quer o prazer sem a responsabilidade!
E quase ao ouvido dele:
— É de graça, amigo Sebastião! É de graça!
Tu não imaginas que influencia isto tem no sentimento!
Riu-se. Estava radioso; as palavras, as pilhérias vinham-lhe com abundância:
— Há um marido que a veste, que a calça, que a alimenta,
que a engoma, que a vela se está doente; que a atura se ela está
nervosã; que tem todos os encargos; todos os tédios, todos os
filhos, todos, todos os que vierem, sabes a lei… Por conseqüência
o primo não tem mais que chegar, bater ao ferrolho, encontra-a asseada,
fresca, apetitosa à custa do marido, e…
Teve um risinho, recostou-se com uma grande satisfação, enrolando
deliciosamente o cigarro, regozijando-se no escândalo.
— E ótimo! — acrescentou. Todos os primos raciocinam assim.
Basílio é primo, logo… Sabes o silogismo, Sebastião!
Sabes o silogismo, menino! — gritou, dando-lhe uma palmada na perna.
— É o diabo — murmurou Sebastião cabisbaixo.
Mas revoltando-se contra a suspeita que o ia dominando:
— Mas tu supões que uma rapariga de bem…
— Eu não suponho nada! — acudiu Julião.
— Fala baixo, homem!
— Eu não suponho nada — repetiu Julião baixinho.
— Eu afirmo o que ele faz. Agora ela…
E acrescentou com secura:
— Como é uma rapariga honesta…
— Se é! — exclamou Sebastião, batendo uma punhada
na pedra da mesa.
— Pronto! — cantou arrastadamente o moço.
O velho calvo ergueu-se logo; mas vendo que o criado se recolhia ao balcão
bocejando, e que os dois continuavam a remexer a sua carapinhada, encostou
os cotovelos à mesa, salivou para longe, e puxando o jornal deixou-lhe
cair em cima um olhar desolado.
Sebastião disse, então, com tristeza:
— A questão não é por ela. A questão é
pela vizinhança.
Ficaram um momento calados. A alteração de vozes no bilhar crescia.
— Mas — disse Julião, como saindo de uma reflexão
— a vizinhança!? Como a vizinhança?
— Sim, homem! Vêem entrar para lá o rapaz. Vem de tipóia;
faz um escândalo na rua. Já se fala. Já vieram com mexericos
à tia Joana. Há dias encontrei o Neto que reparou. O Cunha também,
O homem dos trastes, embaixo, não se faz nada que ele não d~
fé; são umas línguas de tremer. Há dias ia eu
a passar quando o primo se apeou da carruagem para entrar, e foram logo conciliábulos
na rua, olhadelas para a janela, o diabo! Vai lá todos os dias. Sabem
que o Jorge está no Alentejo… Está duas e três horas,
E muito sério, é muito sério!
— Mas ela então é tola!
— Não vê o mal…
Julião encolheu os ombros, duvidando.
Mas a porta de baeta do bilhar abriu-se; um homem hercúleo, de bigode
negro, muito escarlate, saiu bruscamente, e parando, segurando a porta aberta,
gritou para dentro:
— E fique sabendo que havia de encontrar homem!
Uma voz grossa, do bilhar, respondeu-lhe uma obscenidade.
O sujeito hercúleo atirou a porta, furioso; atravessou o café
resfolegando, apoplético; um rapaz chupado, de jaquetão de inverno
e calça branca, seguia-o, com um ar gingado.
— O que eu devia fazer — exclamava o agigantado, brandindo o punho
— era quebrar a cara àquele pulha!
O rapaz chupado dizia, com doçura e servilismo, bamboleando-se:
— Questões não servem para nada, sô Correia!
— E que sou muito prudente — berrou o hercúleo. —
É que me lembro que tenho mulher e filhos! Se não bebia-lhe
o sangue!
E saindo, a sua voz roncante perdeu-se no rumor da rua.
O criado muito pálido, tremia dentro do balcão; e o sujeito
calvo, que erguera a cabeça, teve um sorriso de tédio, e retomou
tristemente o jornal.
Sebastião, então, disse refletindo:
— Não te parece que seria bom avisá-la?
Julião encolheu os ombros, soltou urna baforada de fumo.
— Dize alguma coisa! — implorou Sebastião. — Tu não
ias falar-lhe, hein?
— Eu!? — exclamou Julião com um aspecto que repelia a idéia.
— Eu!? Estás doido!
— Mas que te parece, enfim?
E a voz de Sebastião tinha quase uma angústia.
Julião hesitou:
— Vai, se queres. Diz-lhe que se tem reparado… Enfim, eu não
sei, meu amigo!
E pôs-se a chupar o seu cigarro.
Aquele mutismo afetou Sebastião. Disse com desconsolação:
— Homem, vim-te pedir um conselho…
— Mas que diabo queres tu? — E a voz de Julião irritava-se.
— A culpa é dela! Ë dela! — insistiu, vendo o olhar
de Sebastião. — E uma mulher de vinte e cinco anos, casada há
quatro; deve saber que se não recebe todos os dias um peralvilho, numa
rua pequena, com a vizinhança a postos! Se o faz, é porque lhe
agrada.
— Ó Julião! — disse muito severamente Sebastião.
E dominando-se, com a voz comovida:
— Não tens razão, não tens razão!
Calou-se muito magoado.
Julião levantou-se.
— Amigo Sebastiao, eu digo o que penso; tu fazes o que entendes.
Chamou o criado.
— Deixa — disse Sebastião precipitadamente, pagando.
Iam sair. Mas então o sujeito calvo, atirando o jornal, arremessou-se
para a porta, abriu-a, curvou-se, e estendeu a Sebastião um papel enxovalhado.
Sebastião, surpreendido, teu alto, maquinalmente:
“O abaixo-assinado, antigo empregado da nação, reduzido
à miséria…”
— Fui íntimo amigo do nobre duque de Saldanha… — gemeu
chorosamente, com uma rouquidão, o sujeito calvo.
Sebastião corou, cumprimentou, meteu-lhe na mão duas placas
de cinco tostões, discretamente.
O sujeito dobrou profundamente o espinhaço e declamou com uma voz cava:
— Mil agradecimentos a V. Exª, Sr. conde!

CAPÍTULO 5

A manhã estava abrasadora. Um pouco depois do meio-dia, Joana, estirada
numa velha cadeira de vime da Ilha da Madeira que havia na cozinha, dormitava
a sesta. Como madrugava muito, àquela hora da calma vinha-lhe sempre
uma quebreira.
As janelas estavam cerradas ao sol faiscante; as panelas no lume faziam um
ronrom dormente; e toda a casa, muito silenciosa, parecia amodorrada no amolecimento
do calor tórrido, quando Juliana entrou como uma rajada, atirou para
o chão, furiosa, uma braçada de roupa suja, e gritou:
— Raios me partam se não há um escândalo nesta casa
que vai tudo raso!
Joana deu um salto estremunhada.
— Quem quer as coisas em ordem olha por elas! — berrava a outra
com os olhos injetados. — Não é estar todo o dia na sala
a palrar com as visitas!
A cozinheira foi fechar a porta precipitadamente, já assustada.
— Que foi, Sr. a Juliana, que foi?
— Está com a mosca! Tem o sangue a ferver! Sangrias! sangrias!
Tem peguilhado por tudo! Não estou para a aturar, não estou!
E batia o pé com frenesi.
— Mas que foi? Que foi?
— Diz que os colarinhos tinham pouca goma; pôs-se a despropositar!
Estou farta de aturar! estou farta! estou até aqui! — bradava,
puxando a pele engelhada da garganta. — Pois que me não faça
sair de mim! Que me vou, pespego-lhe na cara por quê! Desde que aqui
temos homem e pouca-vergonha, boas noites!.. – Quem quiser que se meta em
alhadas…
— Ó Srª Juliana, pelo amor de Deus! Jesus! — E a Joana
apertava a cabeça nas mãos. — Ai, se a senhora ouve!
— Que ouça, digo-lho na cara! Estou farta! Estou farta!
Mas, de repente, fez-se branca como a cal; caiu sobre a cadeira de vime com
as duas mãos contra o coração, os olhos em alvo.
— Srª Juliana! — gritou Joana. — Srª Juliana!
Fale!
Borrifou-a de água; sacudiu-a, ansiosamente.
— Nossa Senhora nos valha! Nossa Senhora nos valha! Está melhor?
Fale!
Juliana deu um suspiro longo, de alívio, cerrou as pálpebras.
E arquejava devagarinho, muito prostrada.
— Como se sente? Quer um caldinho? É fraqueza; há de ser
fraqueza…
— Foi a pontada — murmurou Juliana.
Ai! aqueles frenesis matavam-na! — dizia a cozinheira, remexendo-lhe
o caldo, muito pálida também. — A gente tinha de aturar
os amos!
Que tomasse a sustância, que sossegasse!…
Naquele momento Luísa abriu a porta. Vinha em colete e saia branca.
Que barulho era aquele?
— A Srª Juliana, que lhe tinha dado uma coisa, quase desmaiara…
— Foi a pontada — balbuciou Juliana.
E erguendo-se, com um esforço:
— Se a senhora não precisa nada, vou ao médico…
— Vá, vá! — disse Luísa logo. E desceu.
Juliana pôs-se a tomar o seu caldo com um vagar moribundo. Joana consolava-a
baixo: — Também, a Srª Juliana arrenegava-se por qualquer
coisa. E quando a gente tem pouca saúde não há nada pior
que enfrenesiar-se…
— É que não imagina! — e abafava a voz arregalando
os olhos. — Tem estado de não se poder aturar! Está-se
a vestir que nem para uma partida! Amarfanhou uns poucos de colares, atirou-os
para o chão: que eu engomava que era uma porcaria; que não servia
pra nada… Ai! Estou farta! — repetia. — Estou farta!
— É ter paciência! Todos têm a sua cruz!
Juliana teve um sorriso lívido, ergueu-se com um grande ai, escabichou
os dentes, apanhou a roupa suja, e subiu ao sótão.
Daí a pouco, de luvas pretas, muito amarela, saiu.
Ao dobrar a esquina da rua, defronte do estanque, parou indecisa. Até
ao médico era um estirão!… E estava, que lhe tremiam as pernas!…
Mas também, largar três tostões para trem!…
— Psit, psit! — fez do lado uma voz doce.
Era a estanqueira, com o seu longo vestido de luto tingido, o seu sorriso
desconsolado.
Que era feito da Srª Juliana? a dar o seu passeio, hein?
Gabou-lhe a sombrinha preta de cabo de osso. — De muito gosto, disse.
— E como ia de saúde?
Mal. Dera-lhe a pontada. Ia ao médico…
Mas a estanqueira não tinha fé nos médicos. Era dinheiro
deitado à rua… Citou a doença do seu homem, os gastos, um
ror de moedas. E para quê? Para o ver penar e morrer como se nada fosse!
Era um dinheiro que sempre chorava!
E suspirou. Enfim, fosse feita a vontade de Deus! E lá por casa do
Sr. Engenheiro?
— Tudo sem novidade.
— O Sr. a Juliana, quem é aquele rapaz que vai agora por lá
todos os dias?
Juliana respondeu logo:
— É o primo da senhora.
— Dão-se muito!…
— Parece.
Tossiu, e com um cumprimentozinho:
— Pois, muito boas tardes, Sr. a Helena.
E foi resmungando:
— Ora, fica-te a chuchar no dedo, lesma!
Juliana detestava a vizinhança; sabia que a escarneciam, que a imitavam,
que lhe chamavam a tripa velha!… — Pois também dela não
haviam de saber nada! Podiam rebentar de curiosidade! Vinham de carrinho!
Boa! Tudo o que visse ou que lhe cheirasse havia de ficar guardadinho, lá
dentro. — Para uma ocasião! — pensava com rancor, sacudindo
os quadris.
A estanqueira ficou à porta, despeitada. E o Paula dos móveis,
que as vira conversar, veio logo, deslizando sutilmente nas suas chinelas
de tapete:
— Então a tripa velha escorregou-se?
— Ai! não se lhe tira nada!
O Paula enterrou as mãos nos bolsos, com tédio:
— Aquilo, a do Engenheiro besunta-lhe as mãos… É ela
quem leva a cartinha, quem abre a portita de noite…
— Tanto não direi! Credo!
O Paula fitou-a com superioridade.
— A Srª Helena está aí ao seu balcão… Mas
eu é que as conheço, as mulheres da alta sociedade! Conheço-as
nas pontas dos dedos. É uma cambada!
Citou logo nomes, alguns ilustres; tinham amantes inumeráveis: até
trintanários! Algumas fumavam, outras entortavam-se. E pior! E pior!
— E passeiam por aí, muito repimpadas de carrinho, à barba
da gente de bem!
— Falta de religião! — suspirou a estanqueira.
O Paula encolheu os ombros:
— A religião é que é, Sr.a Helena! C’os padres
é que é!
E agitando furioso o punho fechado:
— C’os padres é uma choldra viva!
— Credo, senhor Paula, que até lhe fica mal!…
E o carão amarelado da estanqueira tinha uma severidade de devota ofendida.
— Ora, histórias, Sr. a Helena! — exclamou o homem com
desprezo.
E bruscamente:
— Por que é que acabaram os conventos? Diga-me! Porque era um
desaforo lá dentro!
— Oh Sr. Paula! Oh Sr. Paula! — balbuciava a Helena, recuando,
encolhendo-se.
Mas o Paula atirava-lhe as impiedades como punhaladas.
— Um desaforo! De noite as freiras vinham por um subterrâneo ter
c’os frades. E era vinhaça e mais vinhaça. E batiam o
fandango em camisa! Anda isso por aí em todos os livros.
E erguendo-se nas chinelas:
— E os jesuítas, se vamos a isso! Sim! Diga!
Mas recuou, e levando a mão à pala do boné:
— Um criado da senhora -— disse com respeito.
Era Luísa que passava, vestida de preto, o véu descido. Ficaram
calados, a olhá-la.
— Que ela é muito bonita! — murmurou a estanqueira, com
admiração.
O Paula franziu a testa:
— Não é mau bocado… — disse. E acrescentou, com
desdém:
— Pra quem gosta daquilo!…
Houve um silêncio. E o Paula rosnou:
— Não são as saias que me levam o tempo, nem disto!…
E bateu no bolso do colete, fazendo tilintar dinheiro.
Tossiu, pigarreou, e ainda áspero:
— Venha de lá um pataco de Xabregas.
Foi para a porta do estanco enrolar o cigarro, assobiar; mas os seus olhos
arregalaram-se indignados; numa das janelas de cima na casa do Engenheiro,
tinha avistado, por entre as vidraças abertas, a figura enfezada do
Pedro, o carpinteiro.
Voltou-se para a estanqueira, e cruzando dramaticamente os braços:
— E agora, que a patroa vai à vida, lá está o rapazola
a entender-se com a criada!
Soltou uma larga baforada de fumo, e com uma voz soturna:
— Aquela casa vai-se tornando um prostíbulo!
— Um quê, Sr. Paula?
— Um prostíbulo, Srª Helena! É como se dissesse um
alcouce!
E, com passos escandalizados, o patriota afastou-se.
Luísa ia enfim ao campo com Basílio. Consentira na véspera,
declarando logo “que era só um passeio de meia hora, de carruagem,
sem se apearem”. Basílio ainda insistiu, falando em “sombras
de alamedas, uma merendinha, relvas.,.”. Mas ela recusou, muito teimosa,
rindo, dizendo:
— Nada de relvas!…
E tinham combinado encontrar-se na Praça da Alegria. Chegou tarde,
já depois das duas e meia, com o guarda-solinho muito carregado sobre
o rosto, toda assustada.
Basílio esperava, fumando, num coupé, à esquina, debaixo
de uma árvore. Abriu rapidamente a portinhola, e Luísa entrou
fechando atrapalhadamente a sombrinha; o vestido prendeu-se ao estribo, esgaçou-se
no rufo de seda; e achou-se ao lado dele, muito nervosa, ofegante, com o rosto
abrasado, murmurando:
— Que tolice, que tolice esta!
Mal podia falar. O coupé partiu logo a trote. O cocheiro era o Pintéus,
um batedor.
— Tão cansada, coitadinha! — disse-lhe Basílio muito
meigo.
Levantou-lhe o véu; estava suada; os seus largos olhos brilharam de
excitação, da pressa, do medo…
— Que calor, Basílio!
Quis descer um dos vidros do coupé.
Não, isso não! Podiam v&los! Quando passassem as portas…
— Para onde vamos nós?
E espreitava, levantando o estore.
— Vamos para o lado do Lumiar, é o melhor sítio. Não
queres?
Encolheu os ombros. Que lhe importava? Ia sossegando; tinha tirado o véu
e as luvas; sorria, abanando-se com o lenço, de onde saía um
aroma fresco.
Basílio prendeu-lhe o pulso, pôs-lhe muitos beijos longos, delicados,
na pele fina, azulada de veiazinhas.
— Tu prometeste ter juízo! — fez ela com um sorriso cálido,
olhando-o de lado.
Ora! mas um beijo, no braço! Que mal havia? Também era necessário
não ser beata!
E olhava-a avidamente.
Os velhos estores do coupé corridos eram de seda vermelha, e a luz
que os atravessava envolvia-a num tom igual, cor-de-rosa e quente. Os seus
beiços tinham um escarlate molhado, a lisura sã de uma pétala
de rosa; e ao canto do olho um ponto de luz movia-se num fluido doce.
Não se conteve, passou-lhe os dedos um pouco trêmulos nas fontes,
nos cabelos, com uma carícia fugitiva e assustada, e com a voz humilde:
— Nem um beijo na face, um só?
— Um só?… — fez ela.
Pousou-lho delicadamente ao pé da orelha. Mas aquele contacto exasperou-lhe
o desejo brutalmente; teve um som de voz soluçado; agarrou-a com sofreguidão,
e atirava-lhe beijos tontos pelo pescoço, pela face, pelo chapéu…
— Não! Não! — balbuciava ela, resistindo. —
Quero descer! Dize que pare!
Batia nos vidros; esforçava-se por correr um, desesperada, magoando
os dedos na dura correia suja.
Basílio pôs-se a suplicar; que lhe perdoasse! Que doidice, zangar-se
por um beijo! Se ela estava tão linda!… Fazia-o doido. Mas jurava
ir quieto, muito quieto…
A carruagem, ao pé das portas, rolava sacudida na calçada miúda;
nas terras, aos lados, as oliveiras de um verde empoeirado estavam imóveis
na luz branca; e sobre a erva crestada o sol batia duramente numa fulguração
contínua.
Basílio tinha descido um dos vidros; o estore corrido palpitava brandamente;
pôs-se então a falar-lhe ternamente de si, do seu amor, dos seus
planos. Estava resolvido a vir estabelecer-se em Lisboa — dizia.

— E quando apareces tu, Leopoldina? — perguntou Luísa.
Logo que pudesse. Para a semana estava com idéias de ir ao Porto ver
a da Figueiredo, passar quinze dias na Foz…
A porta abriu-se.
— Quando a senhora quiser… — disse Juliana.
Fizeram grandes adeuses, beijaram-se muito. Luísa disse rindo ao ouvido
de Leopoldina: — Sê feliz!
Ficou só. Fechou as janelas, acendeu as velas, começou a passear
pela sala, esfregando devagar as mãos. E, sem querer, não podia
desprender a idéia de Leopoldina que ia ver o seu amante! O seu amante!…
Seguia-a mentalmente: caminhava depressa decerto falando com Juliana; chegava;
subia a escada, nervosa; atirava com a porta — e que delicioso, que
ávido, que profundo o primeiro beijo! Suspirou. Também ela amava
— e um mais belo, mais fascinante. Por que não tinha vindo?
Sentou-se ao piano preguiçosamente; pôs-se a cantar baixo, triste,
o fado de Leopoldina:

E por mais longe que esteja
Vejo-o sempre ao pé de mim!…

Mas um sentimento de solidão, de abandono, veio impacienta-la. Que
seca, estar ali tão sozinha! Aquela noite cálida, bela e doce,
atraía-a, chamava-a para fora, para passeios sentimentais, ou para
contemplações do céu, num banco de jardim, com as mãos
entrelaçadas. Que vida estúpida, a dela! Oh! aquele Jorge! Que
idéia ir para o Alentejo!
As Conversas de Leopoldina e a lembrança das suas felicidades voltavam-lhe
a cada momento; uma pontinha de champagne agitava-se-lhe no sangue. O relógio
do quarto começou lentamente a dar nove horas — e de repente
a campainha retiniu.
Teve um sobressalto; não podia ser ainda Juliana! Pôs-se a escutar,
assustada. Vozes falavam à cancela.
— Minha senhora — veio dizer Joana baixo — é o primo
da senhora que diz que se vem despedir…
Abafou um grito, balbuciou:
— Que entre!
Os seus olhos dilatados cravaram-se febrilmente na porta. O reposteiro franziu-se;
Basílio entrou, pálido, com um sorriso fixo.
— Tu partes! — exclamou ela surdamente, precipitando-se para ele.
— Não! — E prendeu-a nos braços. — Não!
Imaginei que me não recebias a esta hora, e tomei este pretexto.
Apertou-a contra si, beijou-a; ela deixava, toda abandonada; os seus lábios
prendiam-se aos dele. Basílio deitou um olhar rápido, em redor,
pela sala, e foi-a levando abraçado, murmurando: Meu amor! Minha filha!
Mesmo tropeçou na pele de tigre, estendida ao pé do divã.
— Adoro-te!
— Que susto que tive! — suspirou Luísa.
— Tiveste?
Ela não respondeu; ia perdendo a percepção nítida
das coisas; sentia-se como adormecer; balbuciou: Jesus! Não! Não!
Os seus olhos cerraram.
Quando a campainha retiniu fortemente às dez horas, Luísa, havia
momentos, sentara-se à beira do divã. Mal teve força
de dizer a Basílio:
— Há de ser a Juliana, tinha ido fora…
Basílio cofiou o bigode, deu duas voltas na sala, foi acender um charuto.
Para quebrar o silêncio sentou-se ao piano, tocou alguns compassos ao
acaso, e, erguendo um pouco a voz, começou a cantarolar a ária
do 3°ato do Fausto:

Al pallido chiarore
Dei astri d’oro…

Luísa, através das últimas vibrações dos
seus nervos, ia entrando na realidade; os seus joelhos tremiam. E então,
ouvindo aquela melodia, uma recordação foi-se formando no seu
espírito, ainda estremunhado: era uma noite, havia anos, em S. Carlos,
num camarote com Jorge; uma luz elétrica dava ao jardim, no palco,
um tom lívido de luar legendário; e numa atitude extática
e suspirante o tenor invocava as estrelas; Jorge tinha-se voltado, dissera-lhe:
Que lindo! E o seu olhar devorava-a. Era no segundo mês do seu casamento.
Ela estava com um vestido azul-escuro. E à volta, na carruagem, Jorge,
passando-lhe a mão pela cinta, repetia:

Al pallido chiarore
Dei astri d’oro…

E apertava-a contra si…
Ficara imóvel à beira do divã, quase a escorregar, os
braços frouxos, o olhar fixo, a face envelhecida, o cabelo desmanchado.
Basílio então veio sentar-se devagarinho junto dela. —
Em que estava a pensar?
— Nada.
Ele passou-lhe o braço pela cinta, começou a dizer que havia
de procurar uma casinha para se verem melhor, estarem mais à vontade;
não era mesmo prudente ali em casa dela…
E falando, voltava a cada momento o rosto, soprava para o lado o fumo do charuto.
— Não te parece que vir eu aqui, todos os dias, pode ser reparado?
Luísa ergueu-se bruscamente; lembrara-lhe Sebastião!… E com
uma voz um pouco desvairada:
— Já é tão tarde! — disse.
— Tens razão.
Foi buscar o chapéu em bicos de pés, veio beijá-la muito,
saiu.
Luísa sentiu-o acender um fósforo, fechar devagarinho a cancela.
Estava só; pôs-se a olhar em roda, como idiota. O silêncio
da sala parecia-lhe enorme. As velas tinham uma chama avermelhada. Piscava
os olhos, tinha a boca seca. Uma das almofadas do divã estava caída;
apanhou-a.
E com um ar sonâmbulo entrou no quarto. Juliana veio trazer o rol.
E já vinha com a lamparina, estava a arranjá-la…
Tinha tirado a cuja; subiu à cozinha quase a correr. A Joana, que estivera
dormitando, espreguiçava-se~ com bocejos enormes.
Juliana pôs-se a arranjar a torcida da lamparina; os dedos tremiam-lhe;
tinha no olhar um brilho agudo; e depois de tossir, devagarinho, com um sorriso
para Joana:
— E então a que horas veio o primo da senhora?
— Veio logo que vossemecê saiu; estavam a dar as nove.
— Ah!
Desceu com a lamparina; e sentindo Luísa na alcova despir-se:
— A senhora não quer chá? — perguntou, com muito
interesse.
— Não.
Foi à sala, fechou o piano. Havia uni forte cheiro de charuto. Pôs-se
a olhar em redor, devagar, andando com um passo sutil… De repente agachou-se,
ansiosamente: ao pé do divã uma coisa reluzia. Era uma travessa
de Luísa, de tartaruga, com o aro dourado. Tornou a entrar no quarto
em pontas de pés, Pousou-a no toucador, entre os rolos de cabelo.
— Quem anda aí? — perguntou da alcova a voz sonolenta de
Luísa.
— Sou eu, minha senhora, sou eu: estive a fechar a sala. Muito boas
noites, minha senhora!
Àquela hora Basílio entrava no Grêmio. Procurou pelas
salas. Estavam quase desertas. Dois sujeitos, com os rostos entre os punhos,
curvados em atitudes lúgubres, ruminavam os jornais; aqui, além,
junto a mesinhas redondas, pessoas de calça branca mastigavam torradas
com uma satisfação plácida; as janelas estavam fechadas,
a noite quente, e o calor mole do gás abafava. Ia descer quando de
uma saleta de jogo, de repente, saiu o ruído irritado de uma altercação;
trocavam-se injúrias, gritava-se:
— Mente! O asno é você!
Basílio estacou, escutando. Mas subitamente, fez-se um grande silêncio;
uma das vozes disse com brandura:
— Paus!
A outra respondeu com benevolência:
— E o que devia ter feito há pouco.
E imediatamente a questão rebentou de novo, estridente. Praguejavam,
diziam obscenidades.
Basílio foi ao bilhar. O Visconde Reinaldo, de pé, apoiado ao
taco, seguia com uma imobilidade grave o jogo do seu parceiro; mas apenas
viu Basílio, veio para ele rapidamente, e muito interessado:
— Então?
— Agora mesmo — disse Basílio mordendo o charuto.
— Enfim, hein? — exclamou Reinaldo, arregalando os olhos, com
uma grande alegria.
— Enfim!
— Ainda bem, menino! Ainda bem!
Batia-lhe no ombro, comovido.
Mas chamaram-no para jogar; e todo estirado sobre o bilhar, com uma perna
no ar, para dar com mais segurança o efeito, dizia com a voz constrangida
pela atitude:
— Estimo, estimo, porque essa coisa começava a arrastar…
Taque! Falhou a carambola.
— Não dou meia! — murmurou com rancor,
E chegando-se a Basílio, a dar giz no taco:
— Ouve cá…
Falou-lhe ao ouvido.
— Como um anjo, menino! — suspirou Basílio

CAPÍTULO 6

Juliana que na manhã seguinte veio acordar Luísa, dizendo à
porta da alcova com a voz abafada, em confidência:
— Minha senhora! Minha senhora! É um criado com esta carta; diz
que vem do hotel.
Foi abrir uma das janelas, em bicos de pés; e voltando à alcova
com uma cautela misteriosa:
— E está à espera da resposta, está à porta.
Luísa, estremunhada, abriu o largo envelope azul com um monograma —dois
BB, um púrpura, outro ouro, sob uma coroa de conde.
— Bem, não tem resposta.
— Não tem resposta — foi dizer Juliana ao criado, que esperava
encostado ao corrimão, fumando um grande charuto, e cofiando as suíças
pretas.
— Não tem resposta? Bem, muito bom dia. — Levou o dedo
secamente à aba do “coco”, e desceu, gingando.
Perfeito homem, foi pensando Juliana, pela escada da cozinha.
— Quem bateu, Srª Juliana? — perguntou-lhe logo a cozinheira.
Juliana resmungou:
— Ninguém; um recado da modista.
Desde pela manhã a Joana achava-lhe o “ar esquisito”. Sentira-a
desde às sete horas varrer, espanejar, sacudir, lavar as vidraças
da sala de jantar, arrumar as louças no aparador. E com uma azáfama!
Ouvira-a cantar a Carta adorada, ao mesmo tempo que os canários, nas
varandas abertas, chilreavam estridentemente ao sol. Quando veio tomar o seu
café à cozinha não palestrou como de costume; parecia
preocupada e ausente.
Joana até lhe perguntou:
— Sente-se pior, Sr. a Juliana?
— Eu? Graças a Deus, nunca me senti tão bem.
— Como a vejo tão calada…
— A malucar cá por dentro… A gente nem sempre está para
grulhar.
Apesar de serem nove horas não quisera acordar a senhora. Deixa-a descansar,
coitada! — disse. Foi em pontas de pés encher devagarinho a bacia
grande do banho, no quarto; para não fazer ruído, sacudiu no
corredor as saias, o vestido da véspera; e os seus olhos brilharam
avidamente quando sentiu na algibeirinha um papel amarrotado! Era o bilhete
que Luísa escrevera a Basílio: “Por que não vens?…
Se soubesses o que me fazes sofrer!…” Teve-o um momento na mão,
mordendo o beiço, o olhar fixo num cálculo agudo; por flui tornou
a metê-lo na algibeira de Luísa, dobrou o vestido, foi estendê-lo
com muito cuidado na causeuse.
Enfim, mais tarde, sentindo o cuco dar horas, decidiu-se a ir dizer a Luísa,
com uma voz meiga:
— São dez e meia, minha senhora!
Luísa, na cama, tinha lido, relido o bilhete de Basílio: “Não
pudera – escrevia ele — estar mais tempo sem lhe dizer que a adorava.
Mal dormira! Erguera-se de manhã muito cedo para lhe jurar que estava
louco, e que punha a sua vida aos pés dela”. Compusera aquela
prosa na véspera, no Grêmio, às três horas, depois
de alguns robbers de whist, um bife, dois copos de cerveja e uma leitura preguiçosa
da Ilustração. E terminava, exclamando: — “Que outros
desejem a fortuna, a glória, as honras, eu desejo-te a ti! Só
a ti, minha pomba, porque tu és o único laço que me prende
à vida, e se amanhã perdesse o teu amor, juro-te que punha um
termo, com uma boa bala, a esta existência inútil!” —
Pedira mais cerveja, e levara a carta para a fechar em casa, num envelope
com o seu monograma, porque sempre fazia mais efeito”.
E Luísa tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira
vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se
ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira
num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma,
e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante,
onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase,
e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!
Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar
os transparentes da janela… Que linda manhã! Era um daqueles dias
do fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no
calor e na luz, uma certa tranqüilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente,
mas pousa de leve; o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito
alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já
se não vê na gente que passa o abatimento mole da calma enfraquecedora.
Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono
são, contínuo, e todas as agitações, as impaciências
dos dias passados pareciam ter-se dissipado naquele repouso. Foi-se ver ao
espelho; achou a pele mais clara, mais fresca, e um enternecimento úmido
no olhar; seria verdade então o que dizia Leopoldina, que “não
havia como uma maldadezinba para fazer a gente bonita?” Tinha um amante,
ela!
E imóvel no meio do quarto, os braços cruzados, o olhar fixo,
repetia: Tenho um amante! Recordava a sala na véspera, a chama aguçada
das velas, e certos silêncios extraordinários em que lhe parecia
que a vida parara, enquanto os olhos do retrato da mãe de Jorge, negros
na face amarela, lhe estendiam da parede o seu olhar fixo de pintura. Mas
Juliana entrou com um tabuleiro de roupa passada. Eram horas de se vestir…
Que requintes teve nessa manhã! Perfumou a água com um cheiro
de Lubin, escolheu a camisinha que tinha melhores rendas. E suspirava por
ser rica! Queria as bretanhas e as holandas mais caras, as mobílias
mais aparatosas, grossas jóias inglesas, um coupé forrado de
cetim… Porque nos temperamentos sensíveis as alegrias do coração
tendem a completar-se com as sensualidades do luxo; o primeiro erro que se
instala numa alma até aí defendida, facilita logo aos outros
entradas tortuosas; assim, um ladrão que se introduz numa casa vai
abrindo sutilmente as portas à sua quadrilha esfomeada.
Subiu para o almoço, muito fresca, com o cabelo em duas tranças,
em roupão branco. Juliana precipitou-se logo a fechar as janelas, “porque
apesar de não estar calor, as portadas cerradas sempre davam mais frescura!”
E, vendo que lhe esquecera o lenço, correu a buscar-lhe um, que perfumou
com água-de-colônia. Servia-a com ternura. Viu-a comer muitos
figos:
— Não lhe vão fazer mal, minha senhora! — exclamou
quase lacrimosamente.
Andava em redor dela com um sorriso servil, sem ruído; ou defronte
da mesa, com os braços cruzados, parecia admirá-la com orgulho,
como um ser precioso e querido, todo seu, a sua ama! O seu olhar esbugalhado
apossava-se dela.
E dizia consigo:
— Grande cabra! Grande bêbeda!
Luísa, depois do almoço, veio para o quarto estender-se na causeuse
com o seu Diário de Notícias. Mas não podia ler. As recordações
da véspera redemoinhava~n.l1ie na alma a cada momento, como as folhas
que um vento de Outono levanta a espaços de um chão tranqüilo;
cenas palavras dele, certos ímpetos, toda a sua maneira de amar…
E ficava imóvel, o olhar afogado num fluido, sentindo aquelas reminiscências
vibrarem-lhe muito tempo, docemente, nos nervos da memória. Todavia
a lembrança de Jorge não a deixava; tivera-a sempre no espírito,
desde a véspera; não a assustava, nem a torturava; estava ali,
imóvel mas presente, sem lhe fazer medo, nem lhe trazer remorso; era
como se ele tivesse morrido, ou estivesse tão longe que não
pudesse voltar, ou a tivesse abandonado! Ela mesma se espantava de se sentir
tão tranqüila. E todavia impacientava-a ter constantemente aquela
idéia no espírito, impassível, com uma obstinação
espectral; punha-se instintivamente a acumular as justificações:
Não fora culpa sua. Não abrira os braços a Basílio
voluntariamente!… Tinha sido uma fatalidade; fora o calor da hora, o crepúsculo,
uma pontinha de vinho talvez… Estava doida, decerto. E repetia consigo as
atenuações tradicionais: não era a primeira que enganara
seu marido; e muitas era apenas por vício; ela ora por paixão…
Quantas mulheres viviam num amor ilegítimo e eram ilustres, admiradas!
Rainhas mesmo tinham amantes. E ele amava-a tanto!… Seria tão fiel,
tão discreto! As suas palavras eram tão cativantes, os seus
beijos tão estonteadores! E enfim que lhe havia de fazer agora? Já
agora!…
E resolveu ir responder-he Foi ao escritório, Logo ao entrar o seu
olhar deu com a fotografia de Jorge — a cabeça de tamanho natural,
— no seu caixilho envernizado de preto. Uma comoção comprimiu-lhe
o coração; ficou como tolhida — como uma pessoa encalmada
de ter corrido, que entra na frieza de um subterrâneo; e examinava o
seu cabelo frisado, a barba negra, a gravata de pontas, as duas espadas encruzadas
que reluziam por cima. Se ele soubesse matava-a!… Fez-se muito pálida.
Olhava vagamente em redor o casaco de veludo de trabalho dependurado num prego;
a manta em que ele embrulhava os pés dobrada a um lado; as grandes
folhas de papel de desenho na outra mesa ao fundo, e o potezinho do tabaco,
e a caixa das pistolas!… Matava-a decerto!
Aquele quarto estava tão penetrado da personalidade de Jorge, que lhe
parecia que ele ia voltar, entrar dai a bocado… Se ele viesse de repente!…
Havia três dias que não recebia carta — e quando ela estivesse
ali a escrever ao seu amante, num momento o outro podia aparecer e apanhá-la!
Mas eram tolices, pensou. O vapor do Barreiro só chegava às
cinco horas; e depois ele dizia na última carta que ainda se demorava
um mês, talvez mais…
Sentou-se, escolheu uma folha de papel, começou a escrever, na sua
letra um pouco gorda:

Meu adorado Basílio.

Mas um terror importuno tolhia-a; sentia como um palpite de que ele vinha,
ia entrar… Era melhor não se pôr a escrever, talvez!… Ergueu-se,
foi à sala devagar, sentou-se no divã; e, como se o contacto
daquele largo sofá e o ardor das recordações que ele
lhe trazia da véspera lhe tivesse dado a coragem das ações
amorosas e culpadas, voltou muito decidida ao escritório, escreveu
rapidamente:

Não imaginas com que alegria recebi esta manhã a tua carta…

A pena velha escrevia mal; molhou-a mais, e ao sacudi-la, como lhe tremia
um pouco a mão, um borrão negro caiu no papel. Ficou toda contrariada;
pareceu-lhe aquilo um mau agouro. Hesitou um momento — e coçando
a cabeça, com os cotovelos sobre a mesa, sentia Juliana varrer fora
o patamar, cantarolando a Carta adorada. Enfim, impaciente, rasgou a folha
muitas vezes em pedacinhos miúdos — e atirou-os para um caixão
de pau envernizado com duas argolas de metal, que estava ao canto junto à
mesa, onde Jorge deitava os rascunhos velhos e os papéis inúteis;
chamavam-lhe o sarcófago; Juliana, decerto, descuidara-se de o esvaziar
no lixo, porque transbordava de papelada.
Escolheu outra folha, recomeçou:

Meu adorado Basílio.
Não imaginas como fiquei quando recebi a tua carta, esta manhã,
ao acordar. Cobri-a de beijos…

Mas o reposteiro franziu-se numa prega mole, a voz de Juliana disse discretamente:
— Está ali a costureira, minha senhora.
Luísa, sobressaltada, tinha tapado a folha de papel com a mão.
— Que espere.
E continuou:

…Que tristeza que fosse a carta e que não fosses tu que ali estivesses!
Estou pasmada de mim mesma, como em tão pouco tempo te apossaste do
meu coração, mas a verdade é que nunca deixei de te amar.
Não me julgues por isto leviana, nem penses mal de mim, porque eu desejo
a tua estima, mas é que nunca deixei de te amar e ao tornar a ver-te,
depois daquela estúpida viagem para tão longe, não fui
superior ao sentimento que me impelia para ti meu adorado Basílio.
Era mais forte que eu, meu Basílio. Ontem, quando aquela maldita criada
me veio dizer que tu te vinhas despedir, Basílio, fiquei como morta;
mas quando vi que não, nem eu sei, adorei-te! E se tu me tivesses pedido
a vida dava-ia, porque te amo, que eu mesma, me estranho. Mas para que foi
aquela mentira, e para que vieste tu? Mau! tinha vontade de te dizer adeus
para sempre, mas não posso, meu adorado Basílio! É superior
a mim. Sempre te amei e agora que sou tua, que te pertenço corpo e
alma, parece-me que te amo mais, se é possível…

— Onde está ela? Onde está ela? — disse uma voz
na sala.
Luísa ergueu-se, com um salto, lívida. Era Jorge! Amarrotou
convulsivamente a cana, quis escondê-la no bolso, — o roupão
não tinha bolso! E desvairada, sem reflexão, arremessou-a para
o sarcófago. Ficou de pé, esperando, as duas mãos apoiadas
à mesa, a vida suspensa.
O reposteiro ergueu-se, — e reconheceu logo o chapéu de veludo
azul de D. Felicidade.
— Aqui metida, sua brejeira! Que estavas tu aqui a fazer? Que tens tu,
filha, estás como a cal…
Luísa deixou-se cair no fauteuil, branca e fria; disse com um sorriso
cansado:
— Estava a escrever, deu-me uma tontura…
— Ai! Tonturas, eu! — acudiu logo D. Felicidade. — É
uma desgraça, a cada momento a agarrar-me aos móveis; até
tenho medo de andar só. Falta de purgas!
— Vamos para o quarto! — disse logo Luísa. — Estamos
melhor no quarto.
Ao erguer-se, as pernas tremiam-lhe.
Atravessaram a sala; Juliana começava a arrumar. Luísa ao passar,
viu na pedra da consola, debaixo do espelho oval, uma pouca de cinza; era
da véspera, do charuto dele! Sacudiu-a — e ao erguer os olhos,
ficou pasmada de se ver tão pálida.
A costureira vestida de preto, com um chapéu de fitas roxas, esperava
sentada à beira da causeuse, com um olhar infeliz e o seu embrulho
nos joelhos; vinha provar o corpete de um vestido composto; assentou, pregou,
alinhavou, falando baixo, com uma humildade triste e uma tossinha seca; e
apenas ela saiu, de leve, com o seu andar de sombra, o xale tinto muito cingido
às omoplatas magras, — D. Felicidade começou logo a falar
dele, do Conselheiro. Tinha-o encontrado no Moinho de Vento. Pois, senhores,
nem lhe viera falar! Fizera-lhe uma cortesia muito seca, por demais, e tique-tique
por ali fora, que se diria que ia fugido! Que te parece? Ai! Aquelas indiferenças
matavam-na. E não as compreendia, não; realmente não
as compreendia…
— Porque enfim — exclamava — eu bem me conheço, não
sou nenhuma criança, mas também não sou nenhum caco!
Pois não é verdade?
— Certamente — disse Luísa distraída. Lembrava-lhe
a carta.
— Olha que aqui onde me vês com os meus quarenta, decotada, ainda
valho! O que são ombros e colo é do melhor!
Luísa ia erguer-se. Mas D. Felicidade repetiu:
— Do melhor! Tomaram-no muitas novas!
— Creio bem — concordou Luísa, sorrindo vagamente.
— E ele também não é nenhum rapazinho novo…
— Não…
— Mas muito bem conservado! — E os olhos luziam-lhe. — Para
fazer ainda uma mulher muito feliz!
— Muito…
— Um homem de apetecer! — suspirou D. Felicidade.
E Luísa então:
— Tu esperas um instantinho? Vou lá dentro e volto já.
— Vai, filha, vai.
Luísa correu ao escritório, direita ao sarcófago. Estava
vazio! E a carta dela, Santo Deus?
Chamou logo Juliana, aterrada.
— Você despejou o caixão dos papéis?
— Despejei, sim, minha senhora — respondeu muito tranqüilamente.
E com interesse:
— Por quê, perdeu-se algum papel?
Luísa fazia-se pálida.
— Foi um papel que eu atirei para o caixão. Onde o despejou você?
— No barril do lixo, como é costume, minha senhora; imaginei
que nada servia…
— Ah! deixe ver!
Subiu rapidamente à cozinha.
Juliana, atrás, ia dizendo:
— Ora esta! Pois ainda não há cinco minutos! O caixão
estava mais cheio… Andei a dar uma arrumadela no escritório… Valha-me
Deus, se a senhora tem dito…
Mas o barril do lixo estava vazio. Joana tinha-o ido despejar abaixo naquele
instantinho; e vendo a inquietação de Luísa:
—Por quê, perdeu-se alguma coisa?
— Um papel — disse Luísa, que olhava em redor, pelo chão,
muito branca.
— Iam uns poucos de papéis, minha senhora — disse a rapariga
— eu deitei tudo ao despejo.
— Podia ter ficado algum caído por fora, Srª. Joana —
lembrou tinhidamente Juliana.
— Vá ver, vá ver, Joana -— acudiu Luísa com
uma esperança.
Juliana parecia aflita:
— Jesus, senhor! Eu podia lá adivinhar! Mas para que não
disse a senhora?…
— Bem, bem, a culpa não é sua, mulher…
— Credo, que até se me está a embrulhar o estômago…
E é coisa de importância, minha senhora?
— Não, é uma conta…
— Valha-me Deus!…
Joana voltou, sacudindo um papel enxovalhado. Luísa agarrou-o, leu:
— “…o diâmetro do primeiro poço de exploração…”
— Não, não é isto! — exclamou toda contrariada.
— Então foi pra baixo pra o cano, minha senhora; não está
mais nada.
— Viu bem?
— Esquadrinhei tudo…
E Juliana continuava, desolada:
— Antes queria perder dez tostões! Uma assim! Eu, minha senhora,
podia lá adivinhar…
— Bem, bem! — murmurou Luísa descendo.
Mas estava assustada; sentia mesmo uma suspeita indefinida… Lembrou-lhe
o bilhete que escrevera na véspera a Basílio, e que metera,
todo amarrotado, no bolso do vestido… Entrou no quarto, agitada.
D. Felicidade tirara o chapéu, acomodara-se na causeuse.
— Tu desculpas, hein? — fez Luísa.
— Anda, filha, anda! Que é?
— Perdi uma conta — respondeu.
Foi ao guarda-vestidos; achou logo o bilhete na algibeira… Aquilo serenou-a.
A carta tinha ido para o lixo, decerto. Mas que imprudência!
— Bem, acabou-se! — disse, sentando-se resignada.
E D. Felicidade imediatamente, baixando a voz muito confidencialmente:
— Ora; eu vinha-te falar numa coisa. Mas vê lá! Olha que
é segredo.
Luísa ficou logo sobressaltada.
— Tu sabes — continuou D. Felicidade, devagar, com pausas —
que a minha criada, a Josefa, está para casar com o galego… O homem
é de ao pé de Tuí, e diz que na terra dele há
uma mulher que tem uma virtude para fazer casamentos que é uma coisa
milagrosa… Diz que é o mais que há… Em deitando a sorte
a um homem, — o homem entra-lhe uma tal paixão que se arranja
logo o casamento, e é a maior felicidade.
Luísa tranqüilizada, sorriu.
— Escuta — acudiu D. Felicidade — não te ponhas já
com as tuas coisas…
No seu tom grave havia um respeito supersticioso.
— Diz que tem feito milagres. Homens que tinham desamparado raparigas,
outros que não faziam caso delas, maridos que tinham amigas; enfim
toda a sorte de ingratidão… Em a mulher deitando o encanto, os homens
começavam a esmorecer, a arrepender-se, a apaixonar-se, e estão
pelo beiço… A rapariga contou-me isto. Eu lembrei-me logo…
— De deitar uma sorte ao Conselheiro! — exclamou Luísa.
— Que te parece?
Luísa deu uma risada sonora. Mas D. Felicidade quase se escandalizou.
Contou outros casos: um fidalgo que desonrara uma lavadeira; um homem que
abandonou a mulher e os filhos, fugira com uma bêbeda… Em todos a
sorte operara de um modo fulminante, produzindo um amor súbito e fogoso
pela pessoa desprezada. Apareciam logo rendidos, se estavam perto; se estavam
longe, voltavam, ávidos, a pé, a cavalo, na malaposta, apressando-se,
ardendo… E entregavam-se, mansos e humildes como escravos acorrentados…
— Mas o galego — continuava ela muito excitada — diz que
para ir à terra, falar à mulher, levar o retrato do Conselheiro,
é necessário o retrato dele, o meu; é necessário
o meu; ir falar, voltar — quer sete moedas!…
— Oh dona Felicidade! — fez Luísa repreensivamente.
— Não me digas, não venhas com as tuas! Olha que eu sei
de casos…
E erguendo-se:
— Mas são sete moedas! Sete moedas! — exclamou, arregalando
os olhos.
Juliana apareceu à porta, e muito baixinho, com um sorriso:
— A senhora faz favor?
Chamou-a para o corredor, em segredo:
— Esta carta. Que vem do hotel.
Luísa fez-se escarlate.
— Credo, mulher! Não é necessário fazer mistérios!
Mas não entrou no quarto, abriu-a logo no corredor; era a lápis,
escrita à pressa:
“Meu amor — dizia Basílio — por um feliz acaso descobri
o que precisávamos: um ninho discreto para nos vermos…” E indicava
a rua, o número, os sinais, o caminho mais perto. “… Quando
vens, meu amor? Vem amanhã. Batizei a casa com o nome de Paraíso;
para mim, minha adorada, é com efeito o paraíso. Eu espero-te
lá desde o meio-dia; logo que te aviste, desço.”
Aquela precipitação amorosa em arranjar o ninho — provando
uma paixão impaciente, toda ocupada dela — produziu-lhe uma dilatação
doce do orgulho; ao mesmo tempo que aquele paraíso secreto, como num
romance, lhe dava a esperança de felicidades excepcionais; e todas
as suas inquietações os sustos da carta perdida se dissiparam
de repente sob uma sensação cálida, como flocos de névoa
sob o sol que se levanta.
Voltou ao quarto, com o olhar risonho.
— Que te parece, hein? — perguntou logo D. Felicidade, a quem
a sua idéia ocupava tiranicamente
— O quê?
— Achas que mande o homem a Tuí?
Luísa encolheu os ombros; veio-lhe um tédio de tais enredos
de bruxaria, misturados a amores caturras. Na vaidade da sua intriga romântica
achava repugnante aquele sentimentalismo senil.
— Tolices! — disse com muito desdém.
— Oh filha! Não me digas, não me digas! — acudiu
desolada D. Felicidade.
— Bem, então manda, manda! — fez Luísa, já
impaciente
— Mas são sete moedas! — exclamou D. Felicidade, quase
chorosa.
Luísa pôs-se a rir.
— Por um marido? Acho barato…
— E se a sorte falha?
— Então é caro!
D. Felicidade deu um grande ai! Estava muito infeliz, naquela hesitação
entre os impulsos da concupiscência e as prudências da economia.
Luísa teve pena dela, e, tirando um vestido do guarda-roupa:
— Deixa lá, filha! Não hão de ser necessárias
bruxarias!…
D. Felicidade ergueu os olhos ao céu.
— Vais sair? — perguntou melancolicamente
— Não.
D. Felicidade propôs-lhe então que viesse com ela à Encarnação.
Visitavam a Silveira, coitada, que tinha um furúnculo! E viam a armação
da igreja para a festa; estreava-se o frontal novo, um primor!
— E estou também com vontade de ir rezar unia estaçãozinha
para aliviar cá por dentro — ajuntou, suspirando.
Luísa aceitou. Apetecia-lhe ir ver altares alumiados ouvir o ciciar
de rezas no coro, Como se os requintes devotos dissessem bem com as suas disposições
sentimentais Começou a vestir-se depressa.
— Como tu estás gorda, filha! — exclamou D. Felicidade
admirada vendo-0lhe os ombros, o colo.
Luísa diante do espelho olhava-se, sorria com o seu sorriso quente,
contente das suas linhas, acariciando devagarinho voluptuosamente a pele branca
e fina.
— Redondinha — disse, namorando-se.
— Redondinha? Vais-te a fazer uma bola!
E acrescentou, tristemente:
— Também com a tua vida; um marido Como o teu, regaladinha, sem
filhos, sem cuidados…
— Vamos lá, minha rica — disse Luísa — que
as tristezas não te têm feito emagrecer…
— Pois sim, pois sim! Mas… — e parecia desolada, como curvada
sob as suas próprias ruínas — cá por dentro é
uma desgraça, estômago, fígado…
— Se a mulher de Tuí faz o milagre, põe tudo isso como
novo!
D. Felicidade sorriu, com uma dúvida desconsolada.
— Sabes que tenho um chapéu lindo? — exclamou de repente
Luísa.
— Não viste? Lindo!
Foi logo buscá-lo ao guarda-vestidos. Era de palha fina, guarnecido
de miosótis.
— Que te parece?
— E um primor!
Luísa mirava-o dando pancadinhas com as pontas dos dedos nas florzinhas
azuis.
— Dá frescura — fez D. Felicidade.
— Não é verdade?
Pô-lo com muito cuidado, toda séria. Ficava-lhe bem! Basílio
se a visse havia de gostar, pensou. Era bem possível que o encontrassem…
Veio-lhe, sem motivo, uma felicidade exuberante; achava tão delicioso
viver, sair, ir à Encarnação, pensar no seu amante!…
E toda no ar, procurava pelo quarto as chavinhas do toucador.
Onde tinha deixado as chaves? Na sala de jantar, talvez! Ia ver! Saiu correndo,
tontinha, cantarolando:

Amici, la notte é bella…
La ra la la…

Quase topou com Juliana, que varria o corredor.
— Não deixe de engomar a saia bordada para amanhã, Juliana!
— Sim, minha senhora. Está em goma!
E seguindo-a com um olhar feroz:
— Canta, piorrinha; canta, cabrazinha; canta, bebedazinha!
E ela mesma, tomada subitamente de um júbilo agudo, atirou vassouradas
rápidas, soltando na sua voz rachada:

Além d’amanhã termina a campanha,
P-o-o-or aqui se diz…
Se tal for verdade, se não for patranha…

E com um espremido enfático:

Se-e-rei bem feliz!

Ao outro dia, pelas duas horas da tarde, Sebastião e Julião
passeavam em S. Pedro de Alcântara.
Sebastião estivera contando a sua “cena” com Luísa,
e como desde então a sua estima por ela crescera. Ao princípio
escabreara-se, sim…
— Mas teve razão! Assim de surpresa, ouvir uma daquelas! E eu
levei a coisa mal, fui muito à bruta…
Depois, coitadinha, concordara logo; mostrara-se muito desgostosa, toda zelosa
do seu pudor, pedira-lhe conselhos… Até tinha as lágrimas
nos olhos.
— Eu disse-lhe logo que o melhor era falar ao primo, dizer o que se
passava… Que te parece?
— Sim — disse vagamente Julião.
Tinha-o escutado distraído, chupando a ponta do cigarro. O seu rosto
térreo cavava-se, com uma cor mais biliosa.
— Então achas que fiz bem, hein?
E depois de uma pausa:
— Que ela é uma senhora de bem às direitas! Às
direitas, Julião!
Continuaram calados, O dia estava encoberto e abafado, com um ar de trovoada;
grossas nuvens pesadas e pardas iam-se acumulando enegrecendo para o lado
da Graça por trás das colinas; um vento rasteiro passava por
vezes, pondo um arrepio nas folhas das árvores.
— De maneira que agora estou descansado — resumiu Sebastião.
– Não te parece?
Julião encolheu os ombros com um sorriso triste:
— Quem me dera os teus cuidados, homem! — disse.
E falou então com amargura nas suas preocupações —
Havia uma semana que se abrira concurso para uma cadeira de substituto na
Escola, preparava-se para ele. Era a sua tábua de salvação,
dizia; se apanhasse a cadeira, ganhava logo nome, a clientela podia vir, e
a fortuna… E, que diabo, sempre era estar de dentro!… Mas a certeza da
sua superioridade não o tranqüilizava — porque enfim em
Portugal, não é verdade? Nestas questões a ciência,
o estudo, o talento são uma história; o principal são
os padrinhos! Ele não os tinha — e o seu concorrente, um sensaborão,
era sobrinho de um diretor-geral, tinha parentes na Câmara; era um colosso!
Por isso ele trabalhava a valer, mas parecia-lhe indispensável meter
também as suas cunhas! Mas quem?
— Tu não conheces ninguém, Sebastião?.
Sebastião lembrava-se de um primo seu, deputado pelo Alentejo, um gordo,
da maioria, um pouco fanhoso. Se Julião queria, falava-lhe… Mas sempre
ouvira dizer que a Escola não era gente de empenhos e de intriga…
De resto tinham o Conselheiro Acácio…
— Uma besta! — fez Julião. — Um parlapatão!
Quem faz lá caso daquilo? O teu primo, hein! O teu primo parece-me
bom! É necessário alguém que fale, que trabalhe… —
Porque acreditava muito nas influências dos empenhos, no domínio
dos “personagens”, nas docilidades da fortuna quando dirigida
pelas habilidades da intriga. E com um orgulho raiado de ameaça: —
Que eu hei de lhe mostrar o que é saber as coisas, Sebastião!
Ia explicar-lhe o assunto da tese, mas Sebastião interrompeu-o:
— Ela aí vem.
— Quem?
— A Luísa.
Passava com efeito, por fora do Passeio, toda vestida de preto, só.
— Respondeu à cortesia dos dois homens com um sorriso, adeusinhos
da mão, um pouco corada.
E Sebastião imóvel, seguindo-a devotamente com os olhos:
— Se aquilo não respira mesmo honestidade! Vai às lojas…
Santa rapariga!
Ia encontrar Basílio no Paraíso pela primeira vez. E estava
muito nervosa; não pudera dominar, desde pela manhã, um medo
indefinido que lhe fizera pôr um véu muito espesso, e bater o
coração ao encontrar Sebastião. Mas ao mesmo tempo uma
curiosidade intensa, múltipla, impelia-a, com um estremecimentozinho
de prazer. — Ia, enfim, ter ela própria aquela aventura que lera
tantas vezes nos romances amorosos! Era uma forma nova do amor que ia experimentar,
sensações excepcionais! Havia tudo — a casinha misteriosa,
o segredo ilegítimo, todas as palpitações do perigo!
Porque o aparato impressionava-a mais que o sentimento; e a casa em si interessava-a,
atraía-a mais que Basílio! Como seria? Era para os lados de
Arroios, adiante do Largo de Santa Bárbara; lembrava-se vagamente que
havia ali urna correnteza de casas velhas… Desejaria antes que fosse no
campo, numa quinta, com arvoredos murmurosos e relvas fofas; passeariam então,
com as mãos enlaçadas, num silêncio poético; e
depois o som da água que cai nas bacias de pedra daria um ritmo lânguido
aos sonos amorosos… Mas era num terceiro andar, — quem sabe como seria
dentro? Lembrava-lhe um romance de Paulo Féval em que o herói,
poeta e duque, forra de cetins e tapeçarias o interior de uma choça;
encontra ali a sua amante; os que passam, vendo aquele casebre arruinado,
dão um pensamento compassivo à miséria que decerto o
habita — enquanto dentro, muito secretamente, as flores se esfolham
nos vasos de Sèvres e os pés nus pisam Gobelins veneráveis!
Conhecia o gosto de Basílio, — e o Paraíso decerto era
como no romance de Paulo Féval.
Mas no Largo de Camões reparou que o sujeito de pêra comprida,
o do Passeio, a vinha seguindo, com uma obstinação de galo;
tomou logo um coupé. E ao descer o Chiado, sentia uma sensação
deliciosa em ser assim levada rapidamente para o seu amante, e mesmo olhava
com certo desdém os que passavam, no movimento da vida trivial —
enquanto ela ia para uma hora tão romanesca da vida amorosa! Todavia
à maneira que se aproximava vinha-lhe uma timidez, uma contração
de acanhamento, como um plebeu que tem de subir, entre alabardeiros solenes,
a escadaria de um palácio. Imaginava Basílio esperando-a estendido
num divã de seda; e quase receava que a sua Simplicidade burguesa,
pouco experiente, não achasse palavras bastante finas ou carícias
bastante exaltadas. Ele devia ter conhecido mulheres tão belas, tão
ricas, tão educadas no amor! Desejava chegar num coupé seu,
com rendas de centos de mil-réis, e ditos tão espirituosos como
um livro…
A carruagem parou ao pé de uma casa amarelada, com uma portinha pequena.
Logo à entrada um cheiro mole e salobro enojou-a. A escada, de degraus
gastos, subia íngrememente apertada entre paredes onde a cal caía,
e a umidade fizera nódoas. No patamar da sobreloja, uma janela com
um gradeadozinho de arame, parda do pó acumulado, coberta de teias
de aranha, coava a luz suja do saguão. E por trás de uma portinha,
ao lado, sentia-se o ranger de um berço, o chorar doloroso de uma criança.
Mas Basílio desceu logo, com o charuto na boca, dizendo baixo.
— Tão tarde! Sobe! Pensei que não vinhas. O que foi?
A escada era tão esguia, que não podiam subir juntos. E Basílio,
caminhando adiante, de esguelha:
— Estou aqui desde a uma hora, filha! Imaginei que te tinhas esquecido
da rua…
Empurrou uma cancela, fê-la entrar num quarto pequeno, forrado de papel
às listras azuis e brancas.
Luísa viu logo, ao fundo, uma cama de ferro com uma colcha amarelada,
feita de remendos juntos de chitas diferentes; e os lençóis
grossos, de um branco encardido e mal lavado, estavam impudicamente entreabertos…
Fez-se escarlate; sentou-se calada, embaraçada. E os seus olhos, muito
abertos, iam-se fixando — nos riscos ignóbeis da cabeça
dos fósforos, ao pé da cama; na esteira esfiada, comida, com
uma nódoa de tinta entornada; nas bambinelas da janela, de uma fazenda
vermelha, onde se viam passagens; numa litografia, onde uma figura, coberta
de uma túnica azul flutuante, espalhava flores voando… Sobretudo
uma larga fotografia, por cima do velho canapé de palhinha, fascinava-a:
era um indivíduo atarracado, de aspecto hílare e alvar, com
a barba em colar, o feitio de uni piloto ao domingo; sentado, de calças
brancas, com as pernas muito afastadas, pousava uma das mãos sobre
um joelho, e a outra muito estendida assentava sobre uma coluna truncada;
e por baixo do caixilho, como sobre a pedra de um túmulo, pendia de
um prego de cabeça amarela, uma coroa de perpétuas!
— Foi o que se pôde arranjar — disse-lhe Basílio.
— E foi um acaso; é muito retirado, é muito discreto…
Não é muito luxuoso…
— Não — fez ela, baixo. — Levantou-se, foi à
janela, ergueu uma porta da cortininha de cassa fixada à vidraça:
defronte eram casas pobres; um sapateiro grisalho batia a sola a uma porta;
à entrada de uma lojita balouçava-se um ramo de carqueja ao
pé de um maço de cigarros pendentes de um barbante; e, a uma
janela, uma rapariga esguedelhada embalava tristemente no colo urna criança
doente que tinha crostas grossas de chagas na sua cabecinha cor de melão.
Luísa mordia os beiços; sentia-se entristecer. Então
nós de dedos bateram discretamente à porta. Ela assustou-se,
desceu rapidamente o véu. Basílio foi abrir. Uma voz adocicada,
cheia de ss melífluos, ciciou baixo. Luísa ouviu vagamente:
Sossegadinhos; suas chavezinhas…
— Bem, bem! — disse Basílio apressado, batendo com a porta.
— Quem é?
— É a patroa.
O céu pusera-se a enegrecer; já a espaços grossas gotas
de chuva se esmagavam nas pedras da rua; e um tom crepuscular fazia o quarto
mais melancólico.
— Como descobriste tu isto? — perguntou Luísa, triste.
— Inculcaram-mo.
Outra gente, então, tinha vindo ali, “amado” ali? —
pensou ela. E a cama pareceu-lhe repugnante.
— Tira o chapéu —- disse Basílio, quase impaciente
— estás-me a fazer aflição com esse chapéu
na cabeça.
Ela soltou devagar o elástico que o prendia, foi pô-lo no canapé
de palhinha, desconsoladamente.
Basílio tomou-lhe as mãos, e atraindo-a, sentando-se na cama:
— Estás tão linda! — Beijou-lhe o pescoço,
encostou a cabeça ao peito dela. E com a vista muito quebrada:
— O que eu sonhei contigo esta noite!
Mas, de repente, uma forte pancada de chuva fustigou os vidros. E imediatamente
bateram à porta, com pressa.
— Que é? — bradou Basílio furioso.
A voz cheia de sr explicou que esquecera um cobertor na varanda que estava
a secar. Se se encharcasse, que perdição!…
— Eu lhe pagarei o cobertor, deixe-me! — berrou Basílio.
— Dá-lhe o cobertor…
— Que a leve o diabo!
E Luísa, sentindo um arrepio de frio nos seus ombros nus, abandonava-se
com uma vaga resignação, entre os joelhos de Basílio
— vendo constantemente voltada para si a face alvar do piloto.
Assim um iate que aparelhou nobremente para uma viagem romanesca vai encalhar,
ao partir, nos lodaçais do rio baixo; e o mestre aventureiro, que sonhava
com os incensos e os almíscares das florestas aromáticas, imóvel
sobre o seu tombadilho, tapa o nariz aos cheiros dos esgotos.
Apenas Luísa começou a sair todos os dias, Juliana pensou logo:
Bem, vai ter com o gajo!
E a sua atitude tomou-se ainda mais servil. Era com um sorriso de baixeza
que corria a abrir a porta, alvoroçada, quando Luísa voltava
às cinco horas. E que zelo! Que exatidões! Um botão que
faltasse, uma fita que se extraviava, e eram “mil perdões, minha
senhora”, “desculpe por esta vez”, muitas lamentações
humildes. interessava-se com devoção pela saúde dela,
pela sua roupa, pelo que tinha para jantar…
Todavia, desde as idas ao Paraíso, o seu trabalho aumentara: todos
os dias agora tinha de engomar; muitas vezes era preciso ensaboar à
noite colares, rendinhas, punhos, numa bacia de latão, até às
onze horas. Às seis da manhã, mais cedo, já estava com
o “ferro às voltas”. E não se queixava; até
dizia a Joana:
— Ai! É um regalo ver assim uma senhora asseada!,.. Que as há!
credo! Não, não é por dizer, mas até me dá
gosto. Depois, graças a Deus, agora tenho saúde; o trabalho
não me assusta!
Não tornara a resmungar da “patroa”. Afirmava mesmo à
Joana repetidamente:
— A senhora! ai, é uma santa! Muito boa de aturar… Não
a há melhor!
O seu rosto perdera alguma coisa do tom bilioso, da contração
amarga. As vezes, ao jantar ou à noite, costurando calada ao pé
de Joana, à luz do petróleo, vinham-lhe sorrisos súbitos,
o olhar clareava-se-lhe numa dilatação jovial.
— A Srª Juliana tem o ar de quem está a pensar em coisas
boas…
— A malucar cá por dentro, Sr. a Joana! — respondia com
satisfação. Parecia perder a inveja; ouviu mesmo falar com tranqüilidade
do vestido de seda que estreou num dia de festa, em setembro, a Gertrudes
do doutor. Disse apenas:
— Também um dia hei de estrear vestidos, e dos bons! Dos da modista!
Já outras vezes revelara por palavras vagas a idéia de uma abundância
próxima, Joana até lhe dissera:
— A Srª Juliana espera alguma herança?
— Talvez! — respondeu secamente.
E cada dia detestava mais Luísa. Quando pela manhã a via arrebicar-se,
perfumar-se com água-de-colônia, mirar-se ao toucador cantarolando,
saía do quarto porque lhe vinham venetas de ódio, tinha medo
de estourar! Odiava-a pelas toilettes, pelo ar alegre, pela roupa-branca,
pelo homem que ia ver, por todos os seus regalos de senhora. “A cabra!”
Quando ela saía ia espreitar, vê-la subir a rua, e fechando a
vidraça com um risinho rancoroso:
— Diverte-te, piorrinha, diverte-te, que o meu dia há de chegar!
Oh se há de!
Luísa com efeito divertia-se. Saía todos os dias às duas
horas. Na rua já se dizia que “a do Engenheiro tinha o seu S.
Miguel”.
Apenas ela dobrava a esquina o conciliábulo juntava-se logo a cochichar.
Tinham a certeza que se ia encontrar com o “peralta”. Onde seria?
— era a grande curiosidade da carvoeira.
— No hotel — murmurava o Paula. — Que nos hotéis
é escândalo bravio. Ou talvez — acrescentava com tédio
— nalguma dessas pocilgas da Baixa!
A estanqueira lamentava-a: uma senhora que era tão apropositada!
— Vaca solta lambe-se toda, Srª Helena! — rosnava o Paula.
— São todas o mesmo!
— Menos isso! — protestava a estanqueira. — Que eu sempre
fui uma mulher honesta!
— E ela? — reclamava a carvoeira — ninguém tinha
que lhe dizer!
— Falo da alta sociedade, das fidalgas, das que arrastani sedas! E uma
cambada. Eu é que o sei! — E acrescentava gravemente: —
No povo há mais moralidade. O povo é outra raça! —
E com as mãos enterradas nos bolsos, as pernas muito abertas, ficava
absorto, com a cabeça baixa, o olhar cravado no chão. —
Se ~ — murmurava. — Se é! — Como se estivesse positivamente
achando as pedrinhas da calçada menos numerosas que as virtudes do
povo!
Sebastião, que tinha estado na quinta de Almada quase duas semanas,
ficou aterrado quando, ao voltai, a Joana lhe deu as grandes “novidades”:
que a Luisinha agora saía todos os dias às duas horas; que o
primo não voltara; a Gertrudes é que lho dissera; não
se falava na rua noutra coisa…
— Então a pobre senhora nem sequer pode ir às lojas, aos
seus arranjos! — exclamou Sebastião. — A Gertrudes é
uma desavergonhada, e nem sei como a tia Joana consente que ela ponha aqui
os pés. Vir com esses mexericos!…
— Cruzes! Olha o destempero! — replicou muito escandalizada a
tia Joana. — Oh menino, realmente… A pobre mulher disse o que ouviu
na rua! Que ela até a defende; até ela é que a defende!
Até se esteve a queixar que se fala! Que se fala! Boa! — E a
tia Joana saiu, resmungando:
— Olha o destempero, credo!
Sebastião chamou-a, aplacou-a:
— Mas quem fala, tia Joana?
— Quem? — E muito enfaticamente: — Toda a rua! Toda a rua!
Toda a rua!
Sebastião ficou aniquilado. Toda a rua! Pudera! Se ela agora se punha
a sair todos os dias; uma senhora, que quando estava Jorge não saía
do buraco! A vizinhança que murmurava das visitas do outro, naturalmente
começava a comentar as saídas dela! Estava-se a desacreditar!
E ele não podia fazer nada! Ir adverti-la? Ter outra “cena”?
Não podia.
Procurou-a. Não lhe queria decerto tocar em nada; ia só vê-la.
Não estava. Voltou daí a dois dias. Juliana veio-lhe dizer à
cancela, com o seu sorriso amarelado: “Foi-se agora mesmo, há
um instantinho. Ainda a apanha à Patriarcal”. Enfim, um dia encontrou-a
ao princípio da Rua de S. Roque. Luísa pareceu muito contente
em o ver: — Por que se tinha demorado tanto em Almada? Que deserção!
Trazia carpinteiros; era necessário vigiar as obras. E ela?
— Bem. Um bocado aborrecida. O Jorge diz que ainda se demora. Tenho
estado muito só. Nem Julião, nem Conselheiro; ninguém.
A D. Felicidade é que tem aparecido às vezes de fugida. Está
agora sempre metida na Encarnação… Isto gente devota! —
E riu.
Então onde ia?
A umas comprazitas; à modista depois… — E apareça agora,
Sebastião, hein?
– Hei de aparecer.
À noite. Estou tão só! Tenho tocado muito; e o que me
vale é o piano!
Nessa mesma tarde Sebastião recebeu uma carta de Jorge. “Tens
visto a Lu&iaiacute;sa? Estive quase com cuidado, porque estive mais de cinco
dias sem carta dela. De resto está preguiçosa como uma freira;
quando escreve são quatro linhas porque está o correio a partir.
Vai dizer ao correio que espere, que diabo! Queixa-se de se aborrecer, de
estar só, que todos a abandonaram; que tem vivido como num deserto.
Vê se lhe vais fazer companhia, coitada, etc.”
No dia seguinte ao anoitecer foi à casa dela. Apareceu-lhe muito vermelha,
com os olhos estremunhados, de roupão branco. Tinha chegado muito cansada
de fora; tinha-lhe dado o sono depois de jantar; adormecera sobre a causeuse…
Que havia de novo? E bocejava.
Falaram das obras de Almada, do Conselheiro, de Julião; e ficaram dados.
Havia uni constrangimento. Luísa então acendeu as velas no piano,
mostrou-lhe a nova música estudava, a Medjé de Gounod; mas havia
uma passagem em que se guiava sempre; pediu a Sebastião que a tocasse,
e junto do piano, batendo o compasso com o pé, acompanhava baixo a
melodia, a que a execução de Sebastião dava um encanto
penetrante. Quis tentar depois, mas enganou-se, zangou-se; atirou a música
para o lado, veio sentar-se no sofá, dizendo:
— Quase nunca toco! Estão-se-me a enferrujar os dedos!…
Sebastião não se atrevia a perguntar pelo primo Basílio,
Luísa não lhe pronunciou sequer o nome. E Sebastião,
vendo naquela reserva uma diminuição de confiança ou
um resto persistente de despeito, disse que tinha de ir à Associação
Geral da Agricultura; e saiu muito desconsolado.
Cada dia que se seguiu trouxe-lhe a sua inquietação diferente.
Às vezes era a tia Joana que lhe dizia à tarde: “A Luisinha
lá saiu hoje outra vez! Por este calor, até pode apanhar alguma!
Credo!” Outras, era o conciliábulo dos vizinhos, que avistava
de longe, e que decerto “estavam a cortar na pele da pobre senhora!”
Parecia-lhe tudo aquilo exatamente a Ária da calúnia no Barbeiro
de Sevilha: a calúnia ao princípio leve como o frêmito
das asas de um pássaro, subindo num crescendo aterrador até
estalar como um trovão!
Dava agora voltas para não passar na rua, diante do Paula e da estanqueira;
tinha vergonha deles! Encontrara o Teixeira Azevedo, que lhe perguntara:
— Então o Jorge quando vem? Que diabo! O rapaz fica por lá!
E aquela observação trivial aterrou-o.
Enfim, um dia, mais apoquentado, foi procurar Julião: Encontrou-o no
quarto andar, em mangas de camisa e em chinelas, enxovalhado e esguedelhado,
rodeado de papelada, com uma chocolateirinha de café ao pé,
trabalhando. O soalho negro estava cheio de pontas de cigarros; ao canto estava
embrulhada roupa suja; sobre a cama desfeita havia livros abertos; e um cheiro
relentado saía do desmazelo das coisas. A janela de peitoril dava para
o saguão, de onde vinha o cantar estridente de uma criada, e o ruído
arcado do esfregar de tachos.
Julião, apenas ele entrou, ergueu-se, espreguiçou-se, enrolou
um cigarro, e declarou que estava a trabalhar desde às sete!… Hein?
Era bonito! Para que soubesse o Sr. Sebastião!
— De resto chegaste a propósito. Estava para mandar à
tua casa…
Devia receber aí um dinheiro e não veio. Dá cá
uma libra.
E imediatamente começou a falar da tese. A coisa saía!
Leu-lhe parágrafos do prólogo com uma deleitação
paternal, e, muito satisfeito, na abundância de confiança que
dá a excitação do trabalho, com grandes passadas pelo
quarto:
— Hei de lhes mostrar que ainda há portugueses em Portugal, Sebastião!Hei
de os deixar de boca aberta! Tu verás!
Sentou-se; pôs-se a numerar as folhas escritas, assobiando. Sebastião,
então, com timidez, quase vexado de perturbar com as suas preocupações
domésticas aqueles interesses científicos, disse baixo:
– Pois eu vim-te falar por causa lá da nossa gente…
Mas a porta abriu-se com força, e um rapaz de barba desleixada, e olhar
um pouco doido, entrou; era um estudante da Escola, amigo de Julião;
e quase imediatamente os dois recomeçaram uma discussão que
tinham travado de manhã, e que fora interrompida às onze horas,
quando o rapaz de olhar doido descera a almoçar à Aurea.
— Não, menino! — exclamava o estudante, exaltado. —
Estou na minha! A medicina é uma meia ciência; a fisiologia é
outra meia ciência! São ciências conjeturais, porque nos
escapa a base, conhecer o princípio da vida!
E cruzando os braços diante de Sebastião, bradou-lhe:
— Que sabemos nós do princípio da vida?
Sebastião, humilhado, baixou os olhos.
Mas Julião indignava-se:
— Estás desmoralizado pela doutrina vitalista, miserável!
Trovejou contra o Vitalismo, que declarou “contrário ao espírito
científico”. Uma teoria que pretende que as leis que governam
os corpos brutos não são as mesmas que governam os corpos vivos
— é uma heresia grotesca! — exclamava. — E Bichat
que a proclama é uma besta!
O estudante, fora de si, bradou — que chamar a Bichat uma besta era
simplesmente de um alarve.
Mas Julião desprezou a injúria, e continuou, exaltado nas suas
idéias:
— Que nos importa a nós o principio da vida? Importa-me tanto
como a primeira camisa que vesti! O princípio da vida é como
outro qualquer princípio: um segredo! Havemos de ignorá-lo eternamente!
Não podemos saber nenhum princípio. A vida, a morte, as origens,
os fins, mistérios! São causas primárias com que não
temos nada a fazer, nada! Ppodemos batalhar séculos, que não
avançamos uma polegada. O fisiologista, o químico, não
têm nada com os princípios das coisas; o que lhes importa são
os fenômenos! Ora os fenómenos e as suas causas imediatas, meu
caro amigo, podem ser determinadas com tanto rigor nos corpos brutos, como
nos corpos vivos — numa pedra, como num desembargador! E a fisiologia
e a medicina são ciências tão exatas como a química!
Isto já vem de Descartes!
– Travaram então um berteiro sobre Descartes. E imediatamente, sem
que Sebastião atônito tivesse descoberto a transição,
encarniçaram-se sobre a idéia de Deus.
O estudante parecia necessitar Deus para explicar o Universo. Mas Julião
atacava Deus com cólera; chamava-lhe “uma hipótese safada”,
“unia velha caturrice do partido miguelista”! E começaram
a assaltar-se sobre a questão social, como dois galos inimigos.
O estudante, com os olhos esgazeados, sustentava, dando punhadas sobre a mesa,
o princípio da autoridade! Julião berrava pela “anarquia
individual”! E depois de citarem com fúria Proudhon, Bastiat,
Jouffroy romperam em personalidades. Julião, que dominava pela estridência
da voz, censurou violentamente ao estudante — as suas inscrições
a seis por cento, o ridículo de ser filho de um corretor de fundos,
e o bife de proprietário que vinha de comer na Áurea!
Olharam-se, então, com rancor.
Mas daí a momentos o estudante deixou cair com desdém algumas
palavras sobre Claude Bernard, e a questão recomeçou, furiosa.
Sebastião tomou o chapéu.
— Adeus — disse baixo.
Adeus, Sebastião, adeus — disse prontamente Juliào.
Acompanhou-o ao patamar.
— E quando quiseres que eu fale a meu primo… — murmurou Sebastião.
— Pois sim, veremos, eu pensarei — disse Julião com indiferença,
como se o orgulho do trabalho lhe tivesse dissipado o tenor da injustiça.
Sebastião foi descendo as escadas, pensando: Não se lhe pode
falar em nada, agora!
De repente veio-lhe uma idéia: se fosse ter com D. Felicidade, abrir-se
com ela! D. Felicidade era espalhafatona, um pouco tonta, mas era uma mulher
de idade, intima dc Luísa; tinha mais autoridade, mais habilidade mesmo…
Decidiu-se logo; tomou um trem, foi à Rua de S. Bento.
A criada de D. Felicidade apareceu-lhe, desolada e lacrimosa:
— Pois não sabe?
– Não.
– Ai! Até admira!
— Mas o quê?
— A senhora! Uma desgraça assim! Torceu um pé na Encarnação,
deu uma queda. Tem estado muito mal, muito mal.
— Aqui?
— Na Encarnação. Nem pode sair. Está com a senhora
D. Ana Silveira. Uma desgraça assim! E está num frenesi!
— Mas quando foi?
— Anteontem à noite.
Sebastião saltou para o trem, mandou “bater” para casa
de Luísa.
A D. Felicidade, doente, na Encarnação! Mas então Luísa
podia bem sair todos os dias! la vê-la, fazer-lhe companhia, tratar
dela!…
A vizinhança não tinha que rosnar! la ver a pobre doente!…
Eram duas horas quando a parelha estacou à porta de Luísa. Encontrou-a,
que descia a escada, vestida de preto, de luva gás pene com um véu
negro.
— Ah! suba, Sebastião, suba! Quer subir?
Parara nos degraus, com uma corzinha no rosto, um pouco embaraçada.

— Não, obrigado. Vinha dizer-lhe… Não sabe? A D. Felicidade…
— O quê?
— Torceu um pé. Está mal.
— Que me diz?
Sebastião deu os pormenores.
– Vou já lá.
— Deve ir. Eu não posso ir, não entram homens. Coitada!
Diz que está mal. — Acompanhou-a até à esquina
da rua, ofereceu-lhe mesmo a tipóia: — E muitos recados, que
tenho pena de a não ver!… Pobre senhora!
E diz que está num frenesi!
Viu-a afastar-se para a Patriarcal, e, admirando a graça da sua figura,
esfregava as mãos satisfeito.
Estavam justificadas, santificadas mesmo aquelas passeatas todos os dias!
Ia ser a enfermeira da pobre D. Felicidade! Era necessário que todos
soubessem: o Paula, a estanqueira, a Gertrudes, as Azevedos, todos, de modo
que quando a vissem de manhã, subir a rua, dissessem: Lá vai
fazer companhia à doente! Santa senhora!
O Paula estava à porta da loja — e Sebastião com uma idéia
súbita, entrou. Estava-se estimando de se sentir tão fecundo
em expedientes, tão hábil.
Deitou um pouco o chapéu para a nuca, e mostrando com o guarda-sol
o painel que representava D. João VI:
— Quanto quer vossemecê por isto, ó Sr. Paula?
O Paula ficou surpreendido:
— O Sr. Sebastião está a brincar?
Sebastião exclamou:
— A brincar? — Falava muito sério! Queria uns quadros para
a sala de entrada, em Alnada; mas velhos, sem caixilho, para dizerem bem sobre
um papel escuro. — Como isto! Estou a brincar! Ora essa, homem!
— Desculpe, Sr. Sebastião… Pois nesse caso há por aí
alguns painéis a calhar.
— Este D. João VI agrada-me. Quanto custa isto?
O Paula disse, sem hesitar:
— Sete mil e duzentos. Mas é obra de mestre.
Era uma tela desbotada de tom defumado, onde uns restos de face avermelhada,
com uma cabeleira em cachos, sobressaíam vagamente sobre um fundo sombrio.
Um vermelhão baço indicava o veludo de uma casaca de corte:
a pança saliente e ostentosa enchia um colete esverdeado. E a parte
mais conservada da tela era, ao lado sobre um coxim, a coroa real, que o artista
trabalhara com uma minuciosidade entusiasta, ou por preocupação
de idiota, ou por adulação de cortesão.
Sebastião achava caro; mas o Paula mostrou-lhe o preço escrito
por trás, numa tirinha de papel; espanejou a tela com amor; indicou
as belezas, falou na sua honestidade; deprirniu outros vendedores de móveis,
“que tinham a consciência nas palmilhas”; jurou que o retrato
pertencera ao Paço de Queluz, e ia atacar as questões públicas
— quando Sebastião disse resumindo:
— Bem, pois mande-mo logo; fico com ele. E mande a conta.
— Leva uma rica obra!
Sebastião agora olhava em redor. Queria falar do “pé torcido
de D. Felicidade”, e procurava uma transição. Examinou
umas jarras da Índia, um tremó; e avistando uma poltrona de
doente:
— Aquilo é que era bom para a O. Felicidade! — exclamou
logo — aquela cadeira! Boa cadeira!
O Paula arregalou os olhos.
— Para a D. Felicidade Noronha — repetiu Sebastião. —
Para estar deitada… Pois não sabia, homem? Partiu um pé; tem
estado muito mal.
— A D. Felicidade, a amiga de cá? — e indicou com o polegar
a casa do Engenheiro.
— Sim, homem! Quebrou um pé na Encarnação. Até
lá ficou. A D. Luísa vai para lá fazer-lhe companhia
todos os dias. Agora ia ela para lá…
— Ah! — fez o Paula lentamente. E depois de uma pausa: —
Mas eu ainda a vi entrar para cá há de haver oito dias.
— Foi anteontem. — Tossiu e acrescentou, voltando o rosto, olhando
muito umas gravuras: — De resto a D. Luísa já ia todos
os dias à Encarnação, mas era para ver a Silveira, a
D. Ana Silveira, que esteve mal, Coitada, há três semanas que
tem passado uma vida de enfermeira. Não sai da Encarnação!
E agora é a O. Felicidade. Não é má maçada!
— Pois não sabia, não sabia — murmurava o Paula,
com as mãos enterradas nos bolsos.
— Mande-me o D. João VI, hein?
— Às ordens, Sr. Sebastião.
Sebastião foi para casa. Subiu á sala; e atirando o chapéu
para o sofá: “Bem, pensou, agora ao menos estão salvas
as aparências!” — Passeou algum tempo com a cabeça
baixa; sentia-se triste; porque o ter conseguido, por um acaso, justificar
aqueles passeios para com a vizinhança, fazia-lhe parecer mais cruel
a idéia de que, os não podia justificar para consigo. Os comentários
dos vizinhos iam findar por algum tempo, mas os seus?… Queria achá-los
falsos, pueris, injustos; e, contra sua vontade, o seu bom-senso e a sua retidão
estavam sempre a revolvê-los baixo. Enfim, tinha feito o que devia!
E com um gesto triste, falando só, no silêncio da sala:
— O resto e com a sua consciência!
Nessa tarde, na rua, sabia-se já que a D. Felicidade Noronha torcera
um pé na Encarnação, (outros diziam quebrara uma perna),
e que a D. Luísa não lhe safa da cabeceira… O Paula declarara
com autoridade:
— É de boa rapariga, é de muito boa rapariga!
A Gertrudes do doutor foi logo, à noitinha, perguntar à tia
Joana, se era verdade da perna quebrada”. A tia Joana corrigiu: era
o pé, torcera o pé! E a Gertrudes veio dizer ao doutor, ao chá,
que a D. Felicidade dera uma queda, que ficara em pedaços. —
Foi na Encarnação, acrescentou. Diz que anda tudo lá
numa roda-viva. A Luisinha até lá tem dormido…
— Pieguices de beatas! — rosnou com tédio o doutor.
Mas na rua todos a elogiavam. Mesmo, daí a dias, o Teixeira Azevedo
(que apenas cumprimentava Luísa), tendo-a encontrado na Rua de S. Roque,
parou, e com uma cortesia profunda:
— Desculpe vossência. Como vai a sua doente?
— Melhor, agradecida.
— Pois, minha senhora, tem sido de muita caridade, ir todos os dias
até calor à Encarnação…
Luísa corou.
— Coitada! Não lhe falta companhia, mas…
— É de muita caridade, minha senhora — exclamou com ênfase.
– Tenho-o dito por toda a parte. E de muita caridade. Um criado de meia!
E afastou-se comovido.
Luísa fora logo, com efeito, ver D. Felicidade. Tinha uma luxação
simples; e deitada nos quartos da Silveira, com o pé em compressas
de arnica, cheia de terror de “perder a perna”, passava o dia
rodeada de amigas, chorando-se, saboreando os mexericos do Recolhimento, e
debicando petiscos.
Apenas alguém entrava para a ver, redobrava de exclamações
e de queixas; vinha logo a história miúda, incidentada, prolixa
da “desgraça”; ia a descer, a pôr o pé no
degrau; escorregara; sentiu que ia a cair; ainda se sustentou, e pôde
dizer: Ai Nossa Senhora da Saúde! Ao princípio a dor não
foi grande; mas podia ter morrido; tinha sido um milagre!
Todas as senhoras concordavam “que era realmente um milagre”.
Olhavam-na compungidas, e iam ao coro alternadamente prostrar-se, e pedir
aos santos especiais o alivio da Noronha!
A primeira visita de Luísa foi para O. Felicidade uma consolaçao;
“deu-lhe melhoras”; porque se ralava de estar ali de cama, sem
saber notícias dele, sem poder falar dele!
E nos dias seguintes, apenas ficava só no quarto com Luísa,
chamava-a logo para a cabeceira, e num murmúrio misterioso. Tinha-o
visto? Sabia dele? — A sua aflição era que o Conselheiro
não soubesse que ela estava doente, e não lhe pudesse dar aqueles
pensamentos compassivos – a que o seu pé tinha direito, e que seriam
um conforto para o seu coração! Mas Luísa não
o vira — e D. Felicidade, remexendo a charada, exalava suspiros agudos.
Às duas horas Luísa saia da Encarnação e ia tomar
um trem ao Rocio; para não parar à porta do Paraíso com
espalhafato de tipóia, apeava-se ao Largo de Santa Bárbara;
e fazendo-se pequenina, cosida com a sombra das casas, apressava-se com os
olhos baixos, e um vago sorriso de prazer.
Basílio esperava-a deitado na cama, em mangas de camisa; para não
se enfastiar, só, tinha trazido para o Paraíso uma garrafa de
cognac, açúcar, limões — e com a porta entreaberta
fumava, fazendo grogues frios. O tempo arrastava-se; via a todo momento as
horas, e sem querer ia escutando, notando os ruídos intimos da familia
da proprietária que vivia nos quartos interiores: a rabugem de uma
criança, uma voz acatarroada que ralhava, e de repente uma cadelinha
que começava a ladrar furiosa. Basílio achava aquilo burguês
e reles; impacientava-se. Mas um frou-frou de vestido roçava a escada
e os tédios dele, bem como os receios dela, dissipavam-se logo no calor
dos primeiros beijos. Luísa vinha sempre com pressa; queria estar em
casa às cinco horas, “e era um estirão depois!”
Entrava um pouco suada, e Basílio gostava da transpiraçãozinha
tépida que havia nos seus ombros nus.
— E teu marido? — perguntava ele. — Quando vem?
— Não fala em nada. — Ou então: — Não
recebi cana, não sei nada.
Parecia ser aquela a preocupação de Basílio, na alegria
egoísta da posse recente. Tinha então carícias muito
extáticas; ajoelhava-se aos pés dela; fazia voz de criança:
— Lili não ama Bibi…
Ela ria, meio despida, com um riso cantado e libertino.
— Lili adora Bibi!… É doida por Bibi!
E queria saber se pensava nela; o que tinha feito na véspera. Fora
ao Grêmio; jogara uns robbers; viera para casa cedo; sonhara com ela…
— Vivo para ti, meu amor, acredita!
E deixava-lhe cair a cabeça no regaço, como sob uma felicidade
excessiva.
Outras vezes, mais sério, dava-lhe certos conselhos de gosto, de toilette:
pedira-lhe que não trouxesse postiços no cabelo, que não
usasse botinas de elástico.
Luísa admirava muito a sua experiência do luxo; obedecia-lhe,
amoldava-se às suas idéias: — até afetar, sem o
sentir, um desdém pela gente virtuosa, para imitar as suas opiniões
libertinas.
E lentamente vendo aquela docilidade, Basílio não se dava ao
incômodo de se constranger; usava dela, como se a pagasse! Acontecera
uma manhã escrever-lhe duas palavras a lápis que “não
podia ir ao Paraíso”, sem outras explicações! Uma
ocasião mesmo não foi, sem a avisar e Luísa achou a porta
fechada. Bateu timidamente, olhou pela fechadura, esperou palpitante —
e voltou muito desconsolada, quebrada do calor, com a poeirada nos olhos,
e vontade de chorar.
Não aceitava o menor incômodo, nem para lhe causar um contentamento.
Luísa tinha-lhe pedido que fosse de vez em quando aos domingos à
sua casa, passar a noite; viriam Sebastião, o Conselheiro, D. Felicidade
quando estivesse melhor; era uma alegria para ela, e depois dava às
suas relações uni ar mais parente, mais legítimo.
Mas Basílio pulou:
— O quê! Ir cabecear de sono com quatro caturras… Ah! não!…
— Mas conversa-se, faz-se música…
— Merci! Conheço-a, a música das soirées de Lisboa!
A valsa do Beijo e o Trovador. Safa!
Depois duas ou três vezes falara de Jorge com desdém. Aquilo
ofendera-a.
Ultimamente mesmo, quando ela entrava no Paraíso, já não
tinha a delicadeza amorosa de se levantar alvoroçado; sentava-se apenas
na cama, e tirando preguiçosamente o charuto da boca:
— Ora viva a minha flor! — dizia.
E um ar de superioridade quando lhe falava! Um modo de encolher os ombros,
de exclamar: — Tu não percebes nada disso! Chegava a ter palavras
cruas, gestos brutais. E Luísa começou a desconfiar que Basílio
não a estimava, apenas a desejava!
Ao princípio chorou. Resolveu explicar-se com ele, romper se fosse
necessário. Mas adiou, não se atrevia: a figura de Basílio,
a sua voz, o seu olhar dominavam-na; e acendendo-lhe a paixão tiravam-lhe
a coragem de a perturbar com queixas. Porque estava convencida então
que o adorava; o que lhe dava tanta exaltação no desejo, se
não era a grandeza do sentimento?… Gozava tanto, é porque
o amava muito!… E a sua honestidade natural, os seus pudores refugiavam-se
neste raciocínio sutil.
Ele tinha às vezes uma secura áspera de maneiras, era verdade;
certos tons de indiferença, era certo… Mas noutros momentos, quantas
denguices, que tremuras na voz, que frenesi nas carícias!… Amava-a
também, não havia dúvida. Aquela certeza era a sua justificação.
E como era o Amor que os produzia, não se envergonhava dos alvoroços
voluptuosos com que ia todas as manhãs ao Paraíso!
Duas ou três vezes, ao voltar, tinha encontrado Juliana que subia também
apressada o Moinho de Vento.
— De onde vinha você? — perguntara-lhe em casa.
— Do médico, minha senhora, fui ao médico.
Queixava-se de pontadas, palpitações, faltas de ar.
— Flatos! Flatos!
Com efeito, Juliana agora faria todos os arranjos pela manhã; depois
apenas Luísa, pela uma hora, dobrava a esquina, ia-se vestir, e muito
espartilhada no seu vestido de merino, de chapéu e sombrinha, vinha
dizer a Joana:
— Até logo, vou ao médico.
— Até logo, Srª Juliana — dizia a cozinheira radiante.
E ia logo fazer sinal ao carpinteiro.
Juliana descia por S. Pedro de Alcântara, e tomando para o Largo do
Carmo ia à ruazita, defronte do quartel. Ali morava num terceiro andar
a sua intima amiga, a tia Vitória.
Era uma velha que fora inculcadeira. Ainda tinha mesmo na cancela, numa placa
de metal, com letras negras: “VITÓRIA SOARES, INCULCADEIRA”.
Mas nos últimos anos a sua indústria tornou-se mais complicada,
muito tortuosa.
Exercia-a numa saleta esteirada, com mosquiteiros de papel pendentes do teto
encardido, alumiada por duas tristes janelas-de-peito. Um vasto sofá
ocupava quase a parede do fundo; fora decerto de repes verde, mas o estofo
coçado, comido, remendado, tinha agora, sob largas nódoas, uma
vaga cor parda; as molas partidas rangiam com estalidos melancólicos;
a um dos cantos, numa cova que o uso cavara, dormia todo o dia um gato; e
um dos lados da madeira queimada revelava que fora salvo de um incêndio.
Sobre o sofá pendia a litografia do Sr. D. Pedro IV. Entre as duas
janelas havia uma cômoda alta; e em cima, entre um Santo Antônio
e um cofre feito de búzios, um macaquinho empalhado, com olhos de vidro,
equilibrava-se sobre um galho de árvore. Ao entrar via-se logo, junto
da janela fronteira à porta, a uma mesa coberta de oleado, um dorso
magro e curvado, e um barretinho de seda com uma borla arrebitada. Era o Sr.
Gouveia, o escriturário!
O ar abafado tinha um cheiro complexo, indefinido — em que se sentia
a cavalariça, a graxa e o refogado. Havia sempre gente: grossas matronas
de capote e lenço, face gordalhufa e buço; cocheiros com o cabelo
acamado, muito lustroso de óleo, e blusa de riscadinho; pesados galegos
cor de greda, de passadas retumbantes e formas lorpas; criadinhas de dentro,
amareladas, de olheiras, sombrinha de cabo de osso, e as luvas de pelica com
passagens nas pontas dos dedos.
Defronte da sala abria-se um quarto que deitava para o saguão, por
cuja portinha verde se viam às vezes desaparecer dorsos respeitáveis
de proprietários, ou caudas espalhafatosas de vestidos suspeitos.
Em certas ocasiões, aos sábados, juntavam-se cinco, seis pessoas;
velhas falavam baixo, com gestos misteriosos; uma altercação
mal abafada roncava no patamar; rapariguitas de repente desatavam a chorar;
e, impassível, o Sr. Gouveia escrevinhava os seus registros, arremessando
para o lado jatos melancólicos de saliva.
A tia Vitória, no entanto, com a sua touca de renda negra, um vestido
roxo — ia, vinha, cochichava, gesticulava, fazia tilintar dinheiro,
tirando a cada momento da algibeira rebuçados de avenca para o catarro.
A tia Vitória era uma grande utilidade; tornara-se um centro! A criadagem
reles, mesmo a criadagem fina, tinha ali para tudo o seu despacho. Emprestava
dinheiro aos desempregados; guardava as economias dos poupados; fazia escrever
pelo Sr. Gouveia as correspondências amorosas ou domésticas dos
que não tinham ido à escola; vendia vestidos em segunda mão;
alugava casaca; aconselhava colocações, recebia confidências,
dirigia intrigas, entendia de panos. Nenhum criado era inculcado por ela;
mas, arranjados ou despedidos nunca deixavam de subir, descer as escadas da
tia Vitória. Tinha além disso muitas relações,
infinitas condescendências; celibatários maduros iam entender-se
com ela, para o confortozinho de uma sopeira gordita e nova; era ela quem
inculcava as serventes às mulheres policiadas; sabia de certos agiotas
discretos. E dizia-se: a tia Vitória tem mais manhas que cabelos!
Mas, ultimamente, apesar dos seus “afazeres”, apenas Juliana entrava,
levava-a para o quarto nas traseiras, fechava a porta, e “havia para
meia hora”!
E Juliana saía sempre vermelha, os olhos acesos, feliz! Voltava depressa
para casa; e mal entrava:
— A senhora ainda não voltou, Srª Joana?
— Ainda não.
— Está na Encarnação. Coitada! Não tem má
cruz, ir aturar a velha!
E depois naturalmente vai dar o seu passeio! Faz ela muito bem! Espairecer!
Joana era decerto espessa e obtusa; além disso a paixão animal
pelo rapazola emparvecia-a. Todavia, percebera que a Srª Juliana andava
‘‘muito derretida pela senhora’’; disse—lho
mesmo um dia:
— Vossemecê agora, Srª Juliana, parece mais na bola da senhora!
— Na bola?
— Sim, quero dizer, mais aquela, mais…
— Mais apegada à senhora?
— Mais apegada.
— Sempre o estive. Mas então! Ás vezes a gente tem os
seus repentes… Que olhe, Srª Joana, não se acha melhor que aqui.
Senhora de muito bom gênio, nada de esquisitices, nenhumas prisões…
Ai, é dar louvores ao céu de estarmos neste descanso.
— E é!
A casa com efeito tinha um aspecto jovial de felicidade tranqüila: Luísa
saía todos os dias e achava tudo bom; nunca se impacientava; a sua
antipatia por Juliana parecia dissipada; considerava-a uma pobre de Cristo!
Juliana tomava os seus caldinhos, dava os seus passeios, ruminava. Joana,
muito livre, muito só em casa, regalava-se com o carpinteiro. Não
vinham visitas. D. Felicidade, na Encarnação, inundava-se de
arnica. Sebastião fora para Almada vigiar as obras. O Conselheiro partira
para Sintra, “dar umas férias ao espírito, tinha ele dito
a Luísa, e deliciar-se nas maravilhas daquele Éden”. O
Sr. Julião, “o doutor”, como dizia a Joana, trabalhava
a sua tese. As horas eram muito regulares; havia sempre um silêncio
pacato. Juliana, um dia, na cozinha, impressionada por aquele recolhimento
satisfeito de toda a casa, exclamou para Joana:
— Não se pode estar melhor! A barca vai num mar de rosas!
E acrescentou, com uma risadinha:
— E eu ao leme!

CAPÍTULO 7

Por esse tempo, uma manhã que Luísa ia para o Paraíso,
viu de repente sair de um portal, um pouco adiante do Largo de Santa Bárbara,
a figura azafamada de Ernestinho.
— Por aqui, prima Luísa! — exclamou ele logo muito surpreendido.
— Por estes bairros! Que faz por aqui? Grande milagre!
Vinha vermelho; trazia as bandas do casaco de alpaca todas deitadas para trás,
e agitava com excitação um rolo grosso de papéis.
Luísa ficou um pouco embaraçada; disse que viera fazer uma visita
a uma amiga. — Oh! ele não conhecia; tinha chegado do Porto…
— Ah, bem! bem! E que é feito, como tem passado? Quando vem o
Jorge? — Desculpou-se logo de a não ter ido ver; mas é
que não tinha uma migalha livre! De manhã a alfândega;
à noite os ensaios…
— Então sempre vai? — perguntou Luísa.
—Vai.
E entusiasmado:
— E como vai! Um primor! Mas que trabalhão, que trabalhão!
— Agora vinha ele de casa do ator Pinto, que fazia o papel de amante,
de Conde de Monte Redondo; tinha-o ouvido dizer as palavras finais do terceiro
ato: Maldição, a sorte funesta esmaga-me! Pois bem arcarei braço
a braço com a sorte! À luta! Era uma maravilha! Vinha também
de lhe dar parte que alterara o monólogo do segundo ato. O empresário
achava-o longo…
— Então continua a implicar, o empresário?
Ernestinho fez uma visagem de hesitação.
— Implica um bocado… — E com um rosto radioso: — Mas está
delirante! Estão todos delirantes! Ontem me dizia ele: “Lesminha”…
É o nome que me dão por pândega. Tem graça, não
é verdade? Dizia-me ele “Lesminha, na primeira representação
cai aí Lisboa em peso! Você enterra-os a todos!” É
bom homem! E agora vou-me a casa do Bastas, o folhetinista da Verdade. Não
conhece?
Luísa não se lembrava bem.
— O Bastos, o da Verdade! — insistia ele.
E vendo que Luísa parecia alheia ao nome, ao indivíduo:
—Ora não conhece outra coisa! — Ia descrever-lhe as feições,
citar-lhe as obras…
Mas Luísa, impaciente, para findar:
— Ah! sim, lembro-me agora. Perfeitamente… Bem sei!
— Pois é verdade, vou à casa dele. — Tomou um tom
compenetrado: — Somos muito amigos, é muito bom rapar; e tem
um pequerrucho lindo!… — E apertando-lhe muito a mão: —
Adeusinho, prima Luísa, que não posso perder um momento. Quer
que a vá acompanhar?
— Não, é aqui perto.
— Adeus, recados ao Jorge!
Ia a afastar-se, atarefado, mas voltando-se rapidamente, correu atrás
dela.
– Ah! esquecia-me dizer-lhe, sabe que lhe perdoei?
Luísa abriu muito os olhos.
— A condessa, à heroína! — exclamou Ernestinho.
– Ah!
— Sim, o marido perdoa-lhe, obtém uma embaixada, e vão
viver no estrangeiro. É mais natural…
— Decerto! — disse vagamente Luísa.
— E a peça acaba, dizendo o amante, o Conde de Monte Redondo:
E eu irei para a solidão morrer desta paixão funesta! E de muito
efeito!
— Esteve um momento a olhá-la, e bruscamente: — Adeus,
prima Luísa, recadinhos ao Jorge!
E abalou.
Luísa entrou no Paraíso muito contrariada. Contou o encontro
a Basílio. Ernestinho era tão tolo! Podia mais tarde falar naquilo,
citar a hora, perguntarem-lhe quem era a amiga do Porto…
E tirando o véu, o chapéu:
— Não; realmente é imprudente vir assim tantas vezes.
Era melhor não vir tanto. Pode-se saber…
Basílio encolheu os ombros, contrariado:
— Se queres não venhas.
Luísa olhou-o um momento, e curvando-se profundamente:
— Obrigada!
Ia a pôr o chapéu, mas ele veio prender-lhe as mãos; abraçou-a,
murmurando:
— Pois tu falas em não vir! E eu, então? Eu que estou
em Lisboa por tua causa…
— Não, realmente dizes às vezes coisas… tens certos
modos…
Basílio abafou-lhe as palavras com beijos.
— Ta, ta, ta! Nada de questões! Perdoa. Estás tão
linda…
Luísa, ao voltar para casa, veio a refletir naquela “cena”.
Não — pensava — já não era a primeira vez
que ele mostrava um desprendimento muito seco por ela, pela sua reputação,
pela sua saúde! Queria-a ali todos os dias, egoistamente. Que as más-línguas
falassem; que as soalheiras a matassem, que lhe importava? E para quê?…
Porque enfim, saltava aos olhos, ele amava-a menos… As suas palavras, os
seus beijos arrefeciam cada dia, mais e mais!… Já não tinha
aqueles arrebatamentos do desejo em que a envolvia toda numa carícia
palpitante, nem aquela abundância de sensação que o faria
cair de joelhos com as mãos trêmulas como as de um velho!…
Já se não arremessava para ela, mal ela aparecia à porta,
como sobre uma presa estremecida!… Já não havia aquelas conversas
pueris, cheias de risos, divagadas e tontas, em que se abandonavam, se esqueciam,
depois da hora ardente e física, quando ela ficava numa lassitude doce,
com o sangue fresco, a cabeça deitada sobre os braços nus! —
Agora! trocado o último beijo, acendia o charuto, como num restaurante
ao fim do jantar! E ia logo a um espelho pequeno que havia sobre o lavatório
dar uma penteadela no cabelo com um pentezinho de algibeira. (O que ela odiava
o pentezinho!) Às vezes até olhava o relógio! … E enquanto
ela se arranjava não vinha, como nos primeiros tempos, ajudá-la,
pôr-lhe o colarinho, picar-se nos seus alfinetes, rir em volta dela,
despedir-se com beijos apressados da nudez dos seus ombros antes que o vestido
se apertasse. Ia rufar nos vidros, — ou sentado, com um ar macambúzio,
bamboleava a perna!
E depois positivamente não a respeitava, não a considerava…
Tratava-a por cima do ombro, como uma burguesinha, pouco educada e estreita,
que apenas conhece o seu bairro. E um modo de passear, fumando, com a cabeça
alta, falando no “espírito de madame de tal”, nas toilettes
da “condessa de tal”! Como se ela fosse estúpida, e os
seus vestidos fossem trapos! Ah, era secante! E parecia, Deus me perdoe, parecia
que lhe fazia uma honra, uma grande honra em a possuir… Imediatamente lembrava-lhe
Jorge, Jorge que a amava com tanto respeito! Jorge, para quem ela era decerto
a mais linda, a mais elegante, a mais inteligente, a mais cativante!… E
já pensava um pouco que sacrificara a sua tranqüilidade tão
feliz a um amor bem incerto!
Enfim, um dia que o viu distraído, mais frio, explicou-se abertamente
com ele. Direita, sentada no canapé de palhinha, falou com bom-senso,
devagar, com um ar digno e preparado: “Que percebia bem que ele se aborrecia;
que o seu grande amor tinha passado; que era portanto humilhante para ela
verem-se nessas condições, e que julgava mais digno acabarem…
Basílio olhava-a, surpreendido da sua solenidade; sentia um estudo,
uma afetação naquelas frases; disse muito tranqüilamente,
sorrindo:
— Trazias isso decorado!
Luísa ergueu-se bruscamente; encarou-o, teve um movimento desdenhoso
dos lábios.
— Tu estás doida, Luísa?
— Estou farta! Faço todos os sacrifícios por ti; venho
aqui todos os dias; comprometo-me, e para quê? Para te ver muito indiferente,
muito secado…
— Mas meu amor…
Ela teve um sorriso de escárnio.
— Meu amor! Oh! são ridículos esses fingimentos!
Basílio impacientou-se.
— Já isso cá me faltava, essa cena! — exclamou impetuosamente.
E cruzando os braços diante dela: — Mas que queres tu? Queres
que te ame como no teatro, em S. Carlos? Todas sois assim! Quando um pobre
diabo ama naturalmente, como todo o mundo, com o seu coração,
mas não tem gestos de tenor, aqui del-rei que é frio, que se
aborrece, é ingrato… Mas que queres tu? Queres que me atire de joelhos,
que declame, que revire os olhos, que faça juras, outras tolices?…
— São tolices que tu fazias…
— Ao princípio! — respondeu ele brutalmente. — Já
nos conhecemos muito para isso, minha rica.
E havia apenas cinco semanas!
— Adeus! — disse Luísa.
— Bem. Vais zangada?
Ela respondeu, com os olhos baixos, calçando nervosamente as luvas:
— Não.
Basílio pôs-se diante da porta, e estendendo os braços:
— Mas sê razoável, minha querida. Uma ligação
como a nossa não é o dueto do Fausto. Eu amo-te; tu, creio,
gostas de mim; fazemos os sacrifícios necessários; encontramo-nos,
somos felizes… Que diabo queres tu mais? Por que te queixas?
Ela respondeu com um sorriso irônico e triste:
— Não me queixo. Tens razão.
— Mas não vás zangada, então.
— Não…
— Palavrinha?
— Sim…
Basílio tomou-lhe as mãos.
— Dê então um beijinho em Bibi…
Luísa beijou-o de leve na face.
— Na boquinha, na boquinha! — E ameaçando-a com o dedo,
fitando-a muito: — Ah geniozinho! Tens bem o sangue do Sr. Antônio
de Brito, nosso extremoso tio, que arrepelava as criadas pelos cabelos! —
E sacudindo-lhe o queixo: — E vens amanhã?
Luísa hesitou um momento:
— Venho.
Entrou em casa exasperada, humilhada. Eram seis horas. Juliana veio logo dizer-lhe,
muito quizilada: que a Joana tinha saído às quatro horas; não
tinha voltado; o jantar estava por acabar…
— Onde foi?
Juliana encolheu os ombros com um sorrisinho.
Luísa percebeu. Tinha ido a algum amante, a algum amor… Teve um gesto
de piedade desdenhosa.
— Há de lucrar muito com isso. Boa tola! — disse.
Juliana olhou-a espantada.
— Está bêbeda! — pensou.
— Bem, que se lhe há de fazer? — exclamou Luísa.
— Esperarei…
E passeando pelo quarto, excitada, revolvendo o seu despeito:
— Que egoísta, que grosseiro, que infame! E é por um homem
assim que uma mulher se perde! E estúpido!
Como ele suplicava, se fazia pequenino, humilde ao principio! O que são
os amores dos homens! Como têm a fadiga fácil!
E imediatamente lhe veio a idéia de Jorge! Esse não! Vivia com
ela havia três anos — e o seu amor era sempre o mesmo, vivo, meigo,
dedicado. Mas o outro! Que indigno! Já a conhecia há muito!
Ah! estava bem certa agora, nunca a amara, ele! Quisera-a por vaidade, por
capricho, por distração, para ter uma mulher em Lisboa! E o
que era! Mas amor? Qual!
E ela mesma, por fim? Amava-o, ela? Concentrou-se, interrogou-se… Imaginou
casos, circunstâncias; se ele a quisesse levar para longe, para França,
iria? Não! Se por um acaso, por uma desgraça enviuvasse, antevia
alguma felicidade casando com ele? Não!
Mas então!… E como uma pessoa que destapa um frasco muito guardado,
e se admira vendo o perfume evaporado, ficou toda pasmada de encontrar o seu
coração vazio. O que a levara então para ele?… Nem
ela sabia; não ter nada que fazer; a curiosidade romanesca e mórbida
de ter um amante; mil vaidadezinhas inflamadas, um certo desejo físico…
E sentira-a, porventura, essa felicidade, que dão os amores ilegítimos,
de que tanto se fala nos romances e nas óperas; que faz esquecer tudo
na vida, afrontar a morte, quase fazê-la amar? Nunca! Todo o prazer
que sentira ao princípio, que lhe parecera ser o amor — vinha
da novidade, do saborzinho delicioso de comer a maçã proibida,
das condições do mistério do Paraíso, de outras
circunstâncias talvez, que nem queria confessar a si mesma, que a faziam
corar por dentro!
Mas que sentia de extraordinário agora? Bom Deus, começava a
estar menos comovida ao pé do seu amante, do que ao pé do seu
marido! Um beijo de Jorge perturbava-a mais, e viviam juntos havia três
anos! Nunca se secara ao pé de Jorge, nunca! E secava-se positivamente
ao pé de Basílio! Basílio, no fim, o que se tornara para
ela? Era como um marido pouco amado, que ia amar fora de casa! Mas então,
valia a pena?…
Onde estava o defeito? No amor mesmo talvez! Porque enfim, ela e Basílio
estavam nas condições melhores para obterem uma felicidade excepcional:
eram novos, cercava-os o mistério, excitava-os a dificuldade… Por
que era então que quase bocejavam? E que o amor é essencialnente
perecível, e na hora em que nasce começa a morrer. Só
os começos são bons. Há então um delírio,
um entusiasmo, um bocadinho do céu. Mas depois!… Seria pois necessário
estar sempre a começar, para poder sempre sentir?… Era o que fazia
Leopoldina. E aparecia-lhe então nitidamente a explicação
daquela existência de Leopoldina, inconstante, tomando um amante, conservando-o
uma semana, abandonando-o como um limão espremido, e renovando assim
constantemente a flor da sensação! — E, pela lógica
tortuosa dos amores ilegítimos, o seu primeiro amante fazia-a vagamente
pensar no segundo!
Logo no dia seguinte pôs-se a dizer consigo que era bem longe o Paraíso!
Que maçada, por aquele calor, vestir-se, sair! Mandou saber de D. Felicidade
por Juliana, e ficou em casa, de roupão branco, preguiçosa,
saboreando a sua preguiça.
Nessa tarde recebeu uma carta de Jorge: “que ainda se demorava, mas
que a sua viuvez começava a pesar-lhe. Quando se veria enfim na sua
casinha, na sua alcovinha?…”
Ficou muito comovida. Um sentimento de vergonha, de remorso, uma compaixão
terna por Jorge, tão bom, coitado! um indefinido desejo de o ver e
de o beijar, a recordação de felicidades passadas perturbaram-na
até às profundidades do seu ser. Foi logo responder-lhe, jurando-lhe
“que também já estava farta de estar só, que viesse,
que era estúpida semelhante separação…” E era
sincera naquele momento.
Tinha fechado o envelope, quando Juliana lhe veio trazer “uma carta
do hotel”. Basílio mostrava-se desesperado: “…Como não
vieste, vejo que estás zangada; mas é decerto o teu orgulho,
não o teu amor que te domina; não imaginas o que senti quando
vi que não vinhas hoje. Esperei até às cinco horas; que
suplício! Fui talvez seco, mas tu também estavas implicativa.
Devemos perdoar-nos ambos, ajoelharmos um diante do outro, e esquecer todo
o despeito no mesmo amor,.. Vem amanhã. Adoro-te tanto! Que outra prova
queres, que esta que te dou de abandonar os meus interesses, as minhas relações,
os meus gostos, e enterrar-me aqui em Lisboa, etc.”.
Ficou muito nervosa, sem saber o que havia de fazer, o que havia de querer.
Aquilo era verdade. Por que estava ele em Lisboa? Por ela. Mas se reconhecia
agora, — que o não amava, ou tão pouco! E depois era vil
trair assim Jorge, tão bom, tão amoroso, vivendo todo para ela.
Mas se Basílio realmente estivesse tão apaixonado!… As suas
idéias redemoinhavam, como folhas de Outono, violentadas por ventos
contraditórios. Desejava estar tranqüila, “que a não
perseguissem”. Para que voltara aquele homem? Jesus! que havia de fazer?
Tinha os seus pensamentos, os seus sentimentos numa dolorosa trapalhada.
E na manhã seguinte estava na mesma hesitação. Iria,
não iria? O calor fora, a poeirada da rua faziam-lhe apetecer mais
a casa! Mas que desapontamento, o do pobre rapaz também! Atirou ao
ar uma moeda de cinco tostões. Era cunho, devia ir. Vestiu-se sem vontade,
secada, — tendo todavia um certo desejo dos refinamentos de prazer que
dão as expansões da reconciliação…
Mas que surpresa! esperava encontrá-lo humilde e de joelhos; achou-o
com a testa franzida e muito áspero.
— Luísa, parece incrível; por que não vieste ontem?
Na véspera, Basílio, quando viu que ela faltava, teve um grande
despeito e um medo maior; a sua concupiscência receou perder aquele
lindo corpo de rapariga, e o seu orgulho escandalizou-se de ver libertar-se
aquela escravazinha dócil. Resolveu portanto, a todo o custo, “chamá-la
ao rego”. Escreveu-lhe; e mostrando-se submisso para a atrair, decidiu
ser severo para a castigar. — E acrescentou:
— E uma criancice ridícula. Por que não vieste?
Aquele modo enraiveceu-a:
— Porque não quis.
Mas emendou logo:
— Não pude.
— Ah! É essa a maneira por que respondes à minha carta,
Luísa?
— E tu, é esse o modo com que me recebes?
Olharam-se um momento, detestando-se.
— Bem; queres uma questão? És como as outras.
— Que outras?
E toda escandalizada:
— Ah! É demais! Adeus!
Ia sair.
— Vais-te, Luísa?
— Vou. É melhor acabarmos por uma vez…
Ele segurou o fecho da porta rapidamente.
— Falas sério, Luísa?
— Decerto. Estou farta!
— Bem. Adeus.
Abriu a porta para a deixar passar, curvou-se silenciosamente.
Ela deu um passo, e Basílio com a voz um pouco trêmula:
— Então, é para sempre? Nunca mais?
Luísa parou, branca. Aquela triste palavra nunca mais deu-lhe uma saudade,
uma comoção. Rompeu a chorar.
As lágrimas tornavam-na sempre mais linda. Parecia tão dolorida,
tão frágil, tão desamparada!…
Basílio caiu-lhe aos pés; tinha também os olhos úmidos.
— Se tu me deixares, morro!
Os seus lábios uniram-se num beijo profundo, longo, penetrante. A excitação
dos nervos deu-lhes momentaneamente a sinceridade da paixão; e foi
uma manhã deliciosa.
Ela prendia-o nos braços nus, pálida como cera, balbuciava:
— Não me deixes nunca, não?
— Juro-to! Nunca, meu amor!
Mas fazia-se tarde; era necessário ir-se! E a mesma idéia decerto
acudiu-lhes — porque se olharam avidamente, e Basílio murmurou:
— Se pudesses aqui passar a noite!
Ela disse aterrada, quase suplicante:
— Oh! Não me tentes, não me tentes…
Basílio suspirou, disse:
— Não, é uma tolice. Vai.
Luísa começou a arranjar-se, à pressa. E de repente,
parando, com um sorriso:
— Sabes tu uma coisa?
— O quê, meu amor?
— Estou a cair com fome! Não almocei nada, estou a cair!
Ele ficou desolado:
— Coitadinha, minha pobre filha! Se eu soubesse…
— Que horas são, filho?
Basílio viu o relógio; disse quase envergonhado:
— Sete!
— Ai, Santo Deus!
Punha o chapéu, o véu, atrapalhadamente:
— Que tarde! Jesus! Que tarde!
— E amanhã, quando?
— A uma.
— Com certeza?
— Com certeza.
Ao outro dia foi muito pontual. Basílio veio esperá-la ao fundo
da escada; e apenas entraram no quarto, devorando-a de beijos:
— Que me fizeste tu? Desde ontem que estou doido!
Mas Luísa estava muito intrigada com um cesto que via em cima da cama.
— Que é aquilo?
Ele sorriu, levou-a pela mão junto da barra de ferro, e destapando
o cesto, com uma cortesia grave:
— Provisões, festins, bacanais! Não dirás depois
que tens fome!
Era um lanche. Havia sanduíches, um pâté de foie gras,
fruta, uma garrafa de champagne, e, envolto em flanela, gelo,
— É brilhante! — disse ela, com um sorriso quente, rubra
de prazer.
— Foi o que se pôde arranjar, minha querida prima! Já vê
que pensei em si!
Pôs o cesto no chão, e vindo para ela com os braços abertos:
— E tu pensaste em mim, meu amor?
Os olhos dela responderam — e a pressão apaixonada dos seus braços.
As três horas lancharam. Foi delicioso; tinham estendido um guardanapo
sobre a cama; a louça tinha a marca do Hotel Central; aquilo parecia
a Luísa muito estróina, adorável — e ria de sensualidade,
fazendo tilintar os pedacinhos de gelo contra o vidro do copo, cheio de champagne.
Sentia uma felicidade exuberante que transbordava em gritinhos, em beijos,
em toda a sorte de gestos buliçosos. Comia com gula; e eram adoráveis
os seus braços nus movendo-se por cima dos pratos.
Nunca achara Basílio tão bonito; o quarto mesmo parecia-lhe
muito conchegado para aquelas intimidades da paixão; quase julgava
possível viver ali, naquele cacifo, anos, feliz com ele, num amor permanente,
e lanches às três horas… Tinham as pieguices clássicas;
metiam-se bocadinhos na boca; ela ria com os seus dentinhos brancos; bebiam
pelo mesmo copo, devoravam-se de beijos, — e ele quis-lhe ensinar então
a verdadeira maneira de beber champagne. Talvez ela não soubesse!
— Como é? — perguntou Luísa erguendo o copo.
— Não é com o copo! Horror! Ninguém que se preza
bebe champagne por um copo. O copo é bom para o Colares…
Tomou um gole de champagne e num beijo passou-o para a boca dela. Luísa
riu muito, achou “divino”; quis beber mais assim. Ia-se fazendo
vermelha, o olhar luzia-lhe.
Tinham tirado os pratos da cama; e sentada à beira do leito, os seus
pezinhos calçados numa meia cor-de-rosa pendiam, agitavam-se, enquanto
um pouco dobrada sobre si, os cotovelos sobre o regaço, a cabecinha
de lado, tinha em toda a sua pessoa a graça lânguida de uma pomba
fatigada.
Basílio achava-a irresistível; quem diria que uma burguesinha
podia ter tanto chic, tanta queda? Ajoelhou-se, tomou-lhe os pezinhos entre
as mãos, beijou-lhos; depois, dizendo muito mal das ligas “tão
feias, com fechos de metal”, beijou-lhe respeitosamente os joelhos;
e então fez-lhe baixinho um pedido. Ela corou, sorriu, dizia: não!
não! — E quando saiu do seu delírio tapou o rosto com
as mãos, toda escarlate; murmurou repreensivamente:
— Oh Basílio!
Ele torcia o bigode, muito satisfeito. Ensinara-lhe uma sensação
nova; tinha—a na mão!
Só às seis horas se desprendeu dos seus braços. Luísa
fez-lhe jurar que havia de pensar nela toda a noite: — Não queria
que ele saísse; tinha ciúme do Grêmio, do ar, de tudo!
E já no patamar voltava, beijava-o, louca, repetia:
— E amanhã mais cedo, sim? Para estarmos todo o dia.
— Não vais ver a D. Felicidade?
— Que me importa a D. Felicidade! Não me importa ninguém!
Quero-te a ti! só a ti!
— Ao meio-dia?
— Ao meio-dia!
Quanto lhe pesou à noite a solidão do seu quarto! Tinha uma
impaciência que a impelia a prolongar a excitação da tarde,
agitar-se. Ainda quis ler, mas bem depressa arremessou o livro; as duas velas
acesas sobre o toucador pareciam-lhe lúgubres; foi ver a noite; estava
tépida e serena.
Chamou Juliana:
— Vá pôr um xale, vamos à casa da Srª D. Leopoldina.
Quando chegaram foi a Justina que veio abrir, depois de uma grande demora,
esguedelhada, em chambre branco. Pareceu muito espantada:
— A senhora foi pra o Porto!
— Pra o Porto!
Sim. Demorava-se quinze dias.
Luísa ficou muito desconsolada. Mas não queria voltar; o seu
quarto solitário aterrava-a.
— Vamos um bocado até ali abaixo, Juliana. A noite está
tão bonita!
— Rica; minha senhora!
Foram pela Rua de S. Roque. E como guiadas pelas duas linhas de pontos de
gás, que desciam a Rua do Alecrim, o seu pensamento, o seu desejo foram
logo para o Hotel Central.
Estaria em casa? Pensaria nela? Se pudesse ir surpreendê-lo de repente,
atirar-se-lhe aos braços, ver as suas malas… Aquela idéia
fazia-a arfar. Entraram na Praça de Camões. Gente passeava devagar;
sobre a sombra mais escura que faziam as árvores cochichava-se pelos
bancos; bebia-se água fresca; claridades cruas de vidraças,
de portas de lojas destacavam em redor no tom escuro da noite; e no rumor
lento das ruas em redor, sobressaíam as vozes agudas dos vendedores
de jornais.
Então um sujeito com um chapéu de palha passou tão rente
dela, tão intencionalmente que Luísa teve medo. — Era
melhor voltarem — disse.
Mas ao meio da Rua de S. Roque o chapéu de palha reapareceu, roçou
quase o ombro de Luísa; dois olhos repolhudos dardejaram sobre ela.
Luísa ia desesperada; o tique-taque das suas botinas batia vivamente
a laje do passeio; de repente, ao pé de 5. Pedro de Alcântara,
de sob o chapéu de palha saiu uma voz adocicada e brasileira, dizendo-lhe
junto ao pescoço:
— Aonde mora, ó menina?
Agarrou aterrada o braço de Juliana.
A voz repetiu:
— Não se agaste, menina, onde mora?
— Seu malcriado! — rugiu Juliana.
O chapéu de palha imediatamente desapareceu entre as árvores.

— E quando apareces tu, Leopoldina? — perguntou Luísa.
Logo que pudesse. Para a semana estava com idéias de ir ao Porto ver
a da Figueiredo, passar quinze dias na Foz…
A porta abriu-se.
— Quando a senhora quiser… — disse Juliana.
Fizeram grandes adeuses, beijaram-se muito. Luísa disse rindo ao ouvido
de Leopoldina: — Sê feliz!
Ficou só. Fechou as janelas, acendeu as velas, começou a passear
pela sala, esfregando devagar as mãos. E, sem querer, não podia
desprender a idéia de Leopoldina que ia ver o seu amante! O seu amante!…
Seguia-a mentalmente: caminhava depressa decerto falando com Juliana; chegava;
subia a escada, nervosa; atirava com a porta — e que delicioso, que
ávido, que profundo o primeiro beijo! Suspirou. Também ela amava
— e um mais belo, mais fascinante. Por que não tinha vindo?
Sentou-se ao piano preguiçosamente; pôs-se a cantar baixo, triste,
o fado de Leopoldina:

E por mais longe que esteja
Vejo-o sempre ao pé de mim!…

Mas um sentimento de solidão, de abandono, veio impacienta-la. Que
seca, estar ali tão sozinha! Aquela noite cálida, bela e doce,
atraía-a, chamava-a para fora, para passeios sentimentais, ou para
contemplações do céu, num banco de jardim, com as mãos
entrelaçadas. Que vida estúpida, a dela! Oh! aquele Jorge! Que
idéia ir para o Alentejo!
As Conversas de Leopoldina e a lembrança das suas felicidades voltavam-lhe
a cada momento; uma pontinha de champagne agitava-se-lhe no sangue. O relógio
do quarto começou lentamente a dar nove horas — e de repente
a campainha retiniu.
Teve um sobressalto; não podia ser ainda Juliana! Pôs-se a escutar,
assustada. Vozes falavam à cancela.
— Minha senhora — veio dizer Joana baixo — é o primo
da senhora que diz que se vem despedir…
Abafou um grito, balbuciou:
— Que entre!
Os seus olhos dilatados cravaram-se febrilmente na porta. O reposteiro franziu-se;
Basílio entrou, pálido, com um sorriso fixo.
— Tu partes! — exclamou ela surdamente, precipitando-se para ele.
— Não! — E prendeu-a nos braços. — Não!
Imaginei que me não recebias a esta hora, e tomei este pretexto.
Apertou-a contra si, beijou-a; ela deixava, toda abandonada; os seus lábios
prendiam-se aos dele. Basílio deitou um olhar rápido, em redor,
pela sala, e foi-a levando abraçado, murmurando: Meu amor! Minha filha!
Mesmo tropeçou na pele de tigre, estendida ao pé do divã.
— Adoro-te!
— Que susto que tive! — suspirou Luísa.
— Tiveste?
Ela não respondeu; ia perdendo a percepção nítida
das coisas; sentia-se como adormecer; balbuciou: Jesus! Não! Não!
Os seus olhos cerraram.
Quando a campainha retiniu fortemente às dez horas, Luísa, havia
momentos, sentara-se à beira do divã. Mal teve força
de dizer a Basílio:
— Há de ser a Juliana, tinha ido fora…
Basílio cofiou o bigode, deu duas voltas na sala, foi acender um charuto.
Para quebrar o silêncio sentou-se ao piano, tocou alguns compassos ao
acaso, e, erguendo um pouco a voz, começou a cantarolar a ária
do 3°ato do Fausto:

Al pallido chiarore
Dei astri d’oro…

Luísa, através das últimas vibrações dos
seus nervos, ia entrando na realidade; os seus joelhos tremiam. E então,
ouvindo aquela melodia, uma recordação foi-se formando no seu
espírito, ainda estremunhado: era uma noite, havia anos, em S. Carlos,
num camarote com Jorge; uma luz elétrica dava ao jardim, no palco,
um tom lívido de luar legendário; e numa atitude extática
e suspirante o tenor invocava as estrelas; Jorge tinha-se voltado, dissera-lhe:
Que lindo! E o seu olhar devorava-a. Era no segundo mês do seu casamento.
Ela estava com um vestido azul-escuro. E à volta, na carruagem, Jorge,
passando-lhe a mão pela cinta, repetia:

Al pallido chiarore
Dei astri d’oro…

E apertava-a contra si…
Ficara imóvel à beira do divã, quase a escorregar, os
braços frouxos, o olhar fixo, a face envelhecida, o cabelo desmanchado.
Basílio então veio sentar-se devagarinho junto dela. —
Em que estava a pensar?
— Nada.
Ele passou-lhe o braço pela cinta, começou a dizer que havia
de procurar uma casinha para se verem melhor, estarem mais à vontade;
não era mesmo prudente ali em casa dela…
E falando, voltava a cada momento o rosto, soprava para o lado o fumo do charuto.
— Não te parece que vir eu aqui, todos os dias, pode ser reparado?
Luísa ergueu-se bruscamente; lembrara-lhe Sebastião!… E com
uma voz um pouco desvairada:
— Já é tão tarde! — disse.
— Tens razão.
Foi buscar o chapéu em bicos de pés, veio beijá-la muito,
saiu.
Luísa sentiu-o acender um fósforo, fechar devagarinho a cancela.
Estava só; pôs-se a olhar em roda, como idiota. O silêncio
da sala parecia-lhe enorme. As velas tinham uma chama avermelhada. Piscava
os olhos, tinha a boca seca. Uma das almofadas do divã estava caída;
apanhou-a.
E com um ar sonâmbulo entrou no quarto. Juliana veio trazer o rol.
E já vinha com a lamparina, estava a arranjá-la…
Tinha tirado a cuja; subiu à cozinha quase a correr. A Joana, que estivera
dormitando, espreguiçava-se~ com bocejos enormes.
Juliana pôs-se a arranjar a torcida da lamparina; os dedos tremiam-lhe;
tinha no olhar um brilho agudo; e depois de tossir, devagarinho, com um sorriso
para Joana:
— E então a que horas veio o primo da senhora?
— Veio logo que vossemecê saiu; estavam a dar as nove.
— Ah!
Desceu com a lamparina; e sentindo Luísa na alcova despir-se:
— A senhora não quer chá? — perguntou, com muito
interesse.
— Não.
Foi à sala, fechou o piano. Havia uni forte cheiro de charuto. Pôs-se
a olhar em redor, devagar, andando com um passo sutil… De repente agachou-se,
ansiosamente: ao pé do divã uma coisa reluzia. Era uma travessa
de Luísa, de tartaruga, com o aro dourado. Tornou a entrar no quarto
em pontas de pés, Pousou-a no toucador, entre os rolos de cabelo.
— Quem anda aí? — perguntou da alcova a voz sonolenta de
Luísa.
— Sou eu, minha senhora, sou eu: estive a fechar a sala. Muito boas
noites, minha senhora!
Àquela hora Basílio entrava no Grêmio. Procurou pelas
salas. Estavam quase desertas. Dois sujeitos, com os rostos entre os punhos,
curvados em atitudes lúgubres, ruminavam os jornais; aqui, além,
junto a mesinhas redondas, pessoas de calça branca mastigavam torradas
com uma satisfação plácida; as janelas estavam fechadas,
a noite quente, e o calor mole do gás abafava. Ia descer quando de
uma saleta de jogo, de repente, saiu o ruído irritado de uma altercação;
trocavam-se injúrias, gritava-se:
— Mente! O asno é você!
Basílio estacou, escutando. Mas subitamente, fez-se um grande silêncio;
uma das vozes disse com brandura:
— Paus!
A outra respondeu com benevolência:
— E o que devia ter feito há pouco.
E imediatamente a questão rebentou de novo, estridente. Praguejavam,
diziam obscenidades.
Basílio foi ao bilhar. O Visconde Reinaldo, de pé, apoiado ao
taco, seguia com uma imobilidade grave o jogo do seu parceiro; mas apenas
viu Basílio, veio para ele rapidamente, e muito interessado:
— Então?
— Agora mesmo — disse Basílio mordendo o charuto.
— Enfim, hein? — exclamou Reinaldo, arregalando os olhos, com
uma grande alegria.
— Enfim!
— Ainda bem, menino! Ainda bem!
Batia-lhe no ombro, comovido.
Mas chamaram-no para jogar; e todo estirado sobre o bilhar, com uma perna
no ar, para dar com mais segurança o efeito, dizia com a voz constrangida
pela atitude:
— Estimo, estimo, porque essa coisa começava a arrastar…
Taque! Falhou a carambola.
— Não dou meia! — murmurou com rancor,
E chegando-se a Basílio, a dar giz no taco:
— Ouve cá…
Falou-lhe ao ouvido.
— Como um anjo, menino! — suspirou Basílio

Juliana que na manhã seguinte veio acordar Luísa, dizendo à
porta da alcova com a voz abafada, em confidência:
— Minha senhora! Minha senhora! É um criado com esta carta; diz
que vem do hotel.
Foi abrir uma das janelas, em bicos de pés; e voltando à alcova
com uma cautela misteriosa:
— E está à espera da resposta, está à porta.
Luísa, estremunhada, abriu o largo envelope azul com um monograma —dois
BB, um púrpura, outro ouro, sob uma coroa de conde.
— Bem, não tem resposta.
— Não tem resposta — foi dizer Juliana ao criado, que esperava
encostado ao corrimão, fumando um grande charuto, e cofiando as suíças
pretas.
— Não tem resposta? Bem, muito bom dia. — Levou o dedo
secamente à aba do “coco”, e desceu, gingando.
Perfeito homem, foi pensando Juliana, pela escada da cozinha.
— Quem bateu, Srª Juliana? — perguntou-lhe logo a cozinheira.
Juliana resmungou:
— Ninguém; um recado da modista.
Desde pela manhã a Joana achava-lhe o “ar esquisito”. Sentira-a
desde às sete horas varrer, espanejar, sacudir, lavar as vidraças
da sala de jantar, arrumar as louças no aparador. E com uma azáfama!
Ouvira-a cantar a Carta adorada, ao mesmo tempo que os canários, nas
varandas abertas, chilreavam estridentemente ao sol. Quando veio tomar o seu
café à cozinha não palestrou como de costume; parecia
preocupada e ausente.
Joana até lhe perguntou:
— Sente-se pior, Sr. a Juliana?
— Eu? Graças a Deus, nunca me senti tão bem.
— Como a vejo tão calada…
— A malucar cá por dentro… A gente nem sempre está para
grulhar.
Apesar de serem nove horas não quisera acordar a senhora. Deixa-a descansar,
coitada! — disse. Foi em pontas de pés encher devagarinho a bacia
grande do banho, no quarto; para não fazer ruído, sacudiu no
corredor as saias, o vestido da véspera; e os seus olhos brilharam
avidamente quando sentiu na algibeirinha um papel amarrotado! Era o bilhete
que Luísa escrevera a Basílio: “Por que não vens?…
Se soubesses o que me fazes sofrer!…” Teve-o um momento na mão,
mordendo o beiço, o olhar fixo num cálculo agudo; por flui tornou
a metê-lo na algibeira de Luísa, dobrou o vestido, foi estendê-lo
com muito cuidado na causeuse.
Enfim, mais tarde, sentindo o cuco dar horas, decidiu-se a ir dizer a Luísa,
com uma voz meiga:
— São dez e meia, minha senhora!
Luísa, na cama, tinha lido, relido o bilhete de Basílio: “Não
pudera – escrevia ele — estar mais tempo sem lhe dizer que a adorava.
Mal dormira! Erguera-se de manhã muito cedo para lhe jurar que estava
louco, e que punha a sua vida aos pés dela”. Compusera aquela
prosa na véspera, no Grêmio, às três horas, depois
de alguns robbers de whist, um bife, dois copos de cerveja e uma leitura preguiçosa
da Ilustração. E terminava, exclamando: — “Que outros
desejem a fortuna, a glória, as honras, eu desejo-te a ti! Só
a ti, minha pomba, porque tu és o único laço que me prende
à vida, e se amanhã perdesse o teu amor, juro-te que punha um
termo, com uma boa bala, a esta existência inútil!” —
Pedira mais cerveja, e levara a carta para a fechar em casa, num envelope
com o seu monograma, porque sempre fazia mais efeito”.
E Luísa tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira
vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se
ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira
num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma,
e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante,
onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase,
e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!
Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar
os transparentes da janela… Que linda manhã! Era um daqueles dias
do fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no
calor e na luz, uma certa tranqüilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente,
mas pousa de leve; o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito
alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já
se não vê na gente que passa o abatimento mole da calma enfraquecedora.
Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono
são, contínuo, e todas as agitações, as impaciências
dos dias passados pareciam ter-se dissipado naquele repouso. Foi-se ver ao
espelho; achou a pele mais clara, mais fresca, e um enternecimento úmido
no olhar; seria verdade então o que dizia Leopoldina, que “não
havia como uma maldadezinba para fazer a gente bonita?” Tinha um amante,
ela!
E imóvel no meio do quarto, os braços cruzados, o olhar fixo,
repetia: Tenho um amante! Recordava a sala na véspera, a chama aguçada
das velas, e certos silêncios extraordinários em que lhe parecia
que a vida parara, enquanto os olhos do retrato da mãe de Jorge, negros
na face amarela, lhe estendiam da parede o seu olhar fixo de pintura. Mas
Juliana entrou com um tabuleiro de roupa passada. Eram horas de se vestir…
Que requintes teve nessa manhã! Perfumou a água com um cheiro
de Lubin, escolheu a camisinha que tinha melhores rendas. E suspirava por
ser rica! Queria as bretanhas e as holandas mais caras, as mobílias
mais aparatosas, grossas jóias inglesas, um coupé forrado de
cetim… Porque nos temperamentos sensíveis as alegrias do coração
tendem a completar-se com as sensualidades do luxo; o primeiro erro que se
instala numa alma até aí defendida, facilita logo aos outros
entradas tortuosas; assim, um ladrão que se introduz numa casa vai
abrindo sutilmente as portas à sua quadrilha esfomeada.
Subiu para o almoço, muito fresca, com o cabelo em duas tranças,
em roupão branco. Juliana precipitou-se logo a fechar as janelas, “porque
apesar de não estar calor, as portadas cerradas sempre davam mais frescura!”
E, vendo que lhe esquecera o lenço, correu a buscar-lhe um, que perfumou
com água-de-colônia. Servia-a com ternura. Viu-a comer muitos
figos:
— Não lhe vão fazer mal, minha senhora! — exclamou
quase lacrimosamente.
Andava em redor dela com um sorriso servil, sem ruído; ou defronte
da mesa, com os braços cruzados, parecia admirá-la com orgulho,
como um ser precioso e querido, todo seu, a sua ama! O seu olhar esbugalhado
apossava-se dela.
E dizia consigo:
— Grande cabra! Grande bêbeda!
Luísa, depois do almoço, veio para o quarto estender-se na causeuse
com o seu Diário de Notícias. Mas não podia ler. As recordações
da véspera redemoinhava~n.l1ie na alma a cada momento, como as folhas
que um vento de Outono levanta a espaços de um chão tranqüilo;
cenas palavras dele, certos ímpetos, toda a sua maneira de amar…
E ficava imóvel, o olhar afogado num fluido, sentindo aquelas reminiscências
vibrarem-lhe muito tempo, docemente, nos nervos da memória. Todavia
a lembrança de Jorge não a deixava; tivera-a sempre no espírito,
desde a véspera; não a assustava, nem a torturava; estava ali,
imóvel mas presente, sem lhe fazer medo, nem lhe trazer remorso; era
como se ele tivesse morrido, ou estivesse tão longe que não
pudesse voltar, ou a tivesse abandonado! Ela mesma se espantava de se sentir
tão tranqüila. E todavia impacientava-a ter constantemente aquela
idéia no espírito, impassível, com uma obstinação
espectral; punha-se instintivamente a acumular as justificações:
Não fora culpa sua. Não abrira os braços a Basílio
voluntariamente!… Tinha sido uma fatalidade; fora o calor da hora, o crepúsculo,
uma pontinha de vinho talvez… Estava doida, decerto. E repetia consigo as
atenuações tradicionais: não era a primeira que enganara
seu marido; e muitas era apenas por vício; ela ora por paixão…
Quantas mulheres viviam num amor ilegítimo e eram ilustres, admiradas!
Rainhas mesmo tinham amantes. E ele amava-a tanto!… Seria tão fiel,
tão discreto! As suas palavras eram tão cativantes, os seus
beijos tão estonteadores! E enfim que lhe havia de fazer agora? Já
agora!…
E resolveu ir responder-he Foi ao escritório, Logo ao entrar o seu
olhar deu com a fotografia de Jorge — a cabeça de tamanho natural,
— no seu caixilho envernizado de preto. Uma comoção comprimiu-lhe
o coração; ficou como tolhida — como uma pessoa encalmada
de ter corrido, que entra na frieza de um subterrâneo; e examinava o
seu cabelo frisado, a barba negra, a gravata de pontas, as duas espadas encruzadas
que reluziam por cima. Se ele soubesse matava-a!… Fez-se muito pálida.
Olhava vagamente em redor o casaco de veludo de trabalho dependurado num prego;
a manta em que ele embrulhava os pés dobrada a um lado; as grandes
folhas de papel de desenho na outra mesa ao fundo, e o potezinho do tabaco,
e a caixa das pistolas!… Matava-a decerto!
Aquele quarto estava tão penetrado da personalidade de Jorge, que lhe
parecia que ele ia voltar, entrar dai a bocado… Se ele viesse de repente!…
Havia três dias que não recebia carta — e quando ela estivesse
ali a escrever ao seu amante, num momento o outro podia aparecer e apanhá-la!
Mas eram tolices, pensou. O vapor do Barreiro só chegava às
cinco horas; e depois ele dizia na última carta que ainda se demorava
um mês, talvez mais…
Sentou-se, escolheu uma folha de papel, começou a escrever, na sua
letra um pouco gorda:

Meu adorado Basílio.

Mas um terror importuno tolhia-a; sentia como um palpite de que ele vinha,
ia entrar… Era melhor não se pôr a escrever, talvez!… Ergueu-se,
foi à sala devagar, sentou-se no divã; e, como se o contacto
daquele largo sofá e o ardor das recordações que ele
lhe trazia da véspera lhe tivesse dado a coragem das ações
amorosas e culpadas, voltou muito decidida ao escritório, escreveu
rapidamente:

Não imaginas com que alegria recebi esta manhã a tua carta…

A pena velha escrevia mal; molhou-a mais, e ao sacudi-la, como lhe tremia
um pouco a mão, um borrão negro caiu no papel. Ficou toda contrariada;
pareceu-lhe aquilo um mau agouro. Hesitou um momento — e coçando
a cabeça, com os cotovelos sobre a mesa, sentia Juliana varrer fora
o patamar, cantarolando a Carta adorada. Enfim, impaciente, rasgou a folha
muitas vezes em pedacinhos miúdos — e atirou-os para um caixão
de pau envernizado com duas argolas de metal, que estava ao canto junto à
mesa, onde Jorge deitava os rascunhos velhos e os papéis inúteis;
chamavam-lhe o sarcófago; Juliana, decerto, descuidara-se de o esvaziar
no lixo, porque transbordava de papelada.
Escolheu outra folha, recomeçou:

Meu adorado Basílio.
Não imaginas como fiquei quando recebi a tua carta, esta manhã,
ao acordar. Cobri-a de beijos…

Mas o reposteiro franziu-se numa prega mole, a voz de Juliana disse discretamente:
— Está ali a costureira, minha senhora.
Luísa, sobressaltada, tinha tapado a folha de papel com a mão.
— Que espere.
E continuou:

…Que tristeza que fosse a carta e que não fosses tu que ali estivesses!
Estou pasmada de mim mesma, como em tão pouco tempo te apossaste do
meu coração, mas a verdade é que nunca deixei de te amar.
Não me julgues por isto leviana, nem penses mal de mim, porque eu desejo
a tua estima, mas é que nunca deixei de te amar e ao tornar a ver-te,
depois daquela estúpida viagem para tão longe, não fui
superior ao sentimento que me impelia para ti meu adorado Basílio.
Era mais forte que eu, meu Basílio. Ontem, quando aquela maldita criada
me veio dizer que tu te vinhas despedir, Basílio, fiquei como morta;
mas quando vi que não, nem eu sei, adorei-te! E se tu me tivesses pedido
a vida dava-ia, porque te amo, que eu mesma, me estranho. Mas para que foi
aquela mentira, e para que vieste tu? Mau! tinha vontade de te dizer adeus
para sempre, mas não posso, meu adorado Basílio! É superior
a mim. Sempre te amei e agora que sou tua, que te pertenço corpo e
alma, parece-me que te amo mais, se é possível…

— Onde está ela? Onde está ela? — disse uma voz
na sala.
Luísa ergueu-se, com um salto, lívida. Era Jorge! Amarrotou
convulsivamente a cana, quis escondê-la no bolso, — o roupão
não tinha bolso! E desvairada, sem reflexão, arremessou-a para
o sarcófago. Ficou de pé, esperando, as duas mãos apoiadas
à mesa, a vida suspensa.
O reposteiro ergueu-se, — e reconheceu logo o chapéu de veludo
azul de D. Felicidade.
— Aqui metida, sua brejeira! Que estavas tu aqui a fazer? Que tens tu,
filha, estás como a cal…
Luísa deixou-se cair no fauteuil, branca e fria; disse com um sorriso
cansado:
— Estava a escrever, deu-me uma tontura…
— Ai! Tonturas, eu! — acudiu logo D. Felicidade. — É
uma desgraça, a cada momento a agarrar-me aos móveis; até
tenho medo de andar só. Falta de purgas!
— Vamos para o quarto! — disse logo Luísa. — Estamos
melhor no quarto.
Ao erguer-se, as pernas tremiam-lhe.
Atravessaram a sala; Juliana começava a arrumar. Luísa ao passar,
viu na pedra da consola, debaixo do espelho oval, uma pouca de cinza; era
da véspera, do charuto dele! Sacudiu-a — e ao erguer os olhos,
ficou pasmada de se ver tão pálida.
A costureira vestida de preto, com um chapéu de fitas roxas, esperava
sentada à beira da causeuse, com um olhar infeliz e o seu embrulho
nos joelhos; vinha provar o corpete de um vestido composto; assentou, pregou,
alinhavou, falando baixo, com uma humildade triste e uma tossinha seca; e
apenas ela saiu, de leve, com o seu andar de sombra, o xale tinto muito cingido
às omoplatas magras, — D. Felicidade começou logo a falar
dele, do Conselheiro. Tinha-o encontrado no Moinho de Vento. Pois, senhores,
nem lhe viera falar! Fizera-lhe uma cortesia muito seca, por demais, e tique-tique
por ali fora, que se diria que ia fugido! Que te parece? Ai! Aquelas indiferenças
matavam-na. E não as compreendia, não; realmente não
as compreendia…
— Porque enfim — exclamava — eu bem me conheço, não
sou nenhuma criança, mas também não sou nenhum caco!
Pois não é verdade?
— Certamente — disse Luísa distraída. Lembrava-lhe
a carta.
— Olha que aqui onde me vês com os meus quarenta, decotada, ainda
valho! O que são ombros e colo é do melhor!
Luísa ia erguer-se. Mas D. Felicidade repetiu:
— Do melhor! Tomaram-no muitas novas!
— Creio bem — concordou Luísa, sorrindo vagamente.
— E ele também não é nenhum rapazinho novo…
— Não…
— Mas muito bem conservado! — E os olhos luziam-lhe. — Para
fazer ainda uma mulher muito feliz!
— Muito…
— Um homem de apetecer! — suspirou D. Felicidade.
E Luísa então:
— Tu esperas um instantinho? Vou lá dentro e volto já.
— Vai, filha, vai.
Luísa correu ao escritório, direita ao sarcófago. Estava
vazio! E a carta dela, Santo Deus?
Chamou logo Juliana, aterrada.
— Você despejou o caixão dos papéis?
— Despejei, sim, minha senhora — respondeu muito tranqüilamente.
E com interesse:
— Por quê, perdeu-se algum papel?
Luísa fazia-se pálida.
— Foi um papel que eu atirei para o caixão. Onde o despejou você?
— No barril do lixo, como é costume, minha senhora; imaginei
que nada servia…
— Ah! deixe ver!
Subiu rapidamente à cozinha.
Juliana, atrás, ia dizendo:
— Ora esta! Pois ainda não há cinco minutos! O caixão
estava mais cheio… Andei a dar uma arrumadela no escritório… Valha-me
Deus, se a senhora tem dito…
Mas o barril do lixo estava vazio. Joana tinha-o ido despejar abaixo naquele
instantinho; e vendo a inquietação de Luísa:
—Por quê, perdeu-se alguma coisa?
— Um papel — disse Luísa, que olhava em redor, pelo chão,
muito branca.
— Iam uns poucos de papéis, minha senhora — disse a rapariga
— eu deitei tudo ao despejo.
— Podia ter ficado algum caído por fora, Srª. Joana —
lembrou tinhidamente Juliana.
— Vá ver, vá ver, Joana -— acudiu Luísa com
uma esperança.
Juliana parecia aflita:
— Jesus, senhor! Eu podia lá adivinhar! Mas para que não
disse a senhora?…
— Bem, bem, a culpa não é sua, mulher…
— Credo, que até se me está a embrulhar o estômago…
E é coisa de importância, minha senhora?
— Não, é uma conta…
— Valha-me Deus!…
Joana voltou, sacudindo um papel enxovalhado. Luísa agarrou-o, leu:
— “…o diâmetro do primeiro poço de exploração…”
— Não, não é isto! — exclamou toda contrariada.
— Então foi pra baixo pra o cano, minha senhora; não está
mais nada.
— Viu bem?
— Esquadrinhei tudo…
E Juliana continuava, desolada:
— Antes queria perder dez tostões! Uma assim! Eu, minha senhora,
podia lá adivinhar…
— Bem, bem! — murmurou Luísa descendo.
Mas estava assustada; sentia mesmo uma suspeita indefinida… Lembrou-lhe
o bilhete que escrevera na véspera a Basílio, e que metera,
todo amarrotado, no bolso do vestido… Entrou no quarto, agitada.
D. Felicidade tirara o chapéu, acomodara-se na causeuse.
— Tu desculpas, hein? — fez Luísa.
— Anda, filha, anda! Que é?
— Perdi uma conta — respondeu.
Foi ao guarda-vestidos; achou logo o bilhete na algibeira… Aquilo serenou-a.
A carta tinha ido para o lixo, decerto. Mas que imprudência!
— Bem, acabou-se! — disse, sentando-se resignada.
E D. Felicidade imediatamente, baixando a voz muito confidencialmente:
— Ora; eu vinha-te falar numa coisa. Mas vê lá! Olha que
é segredo.
Luísa ficou logo sobressaltada.
— Tu sabes — continuou D. Felicidade, devagar, com pausas —
que a minha criada, a Josefa, está para casar com o galego… O homem
é de ao pé de Tuí, e diz que na terra dele há
uma mulher que tem uma virtude para fazer casamentos que é uma coisa
milagrosa… Diz que é o mais que há… Em deitando a sorte
a um homem, — o homem entra-lhe uma tal paixão que se arranja
logo o casamento, e é a maior felicidade.
Luísa tranqüilizada, sorriu.
— Escuta — acudiu D. Felicidade — não te ponhas já
com as tuas coisas…
No seu tom grave havia um respeito supersticioso.
— Diz que tem feito milagres. Homens que tinham desamparado raparigas,
outros que não faziam caso delas, maridos que tinham amigas; enfim
toda a sorte de ingratidão… Em a mulher deitando o encanto, os homens
começavam a esmorecer, a arrepender-se, a apaixonar-se, e estão
pelo beiço… A rapariga contou-me isto. Eu lembrei-me logo…
— De deitar uma sorte ao Conselheiro! — exclamou Luísa.
— Que te parece?
Luísa deu uma risada sonora. Mas D. Felicidade quase se escandalizou.
Contou outros casos: um fidalgo que desonrara uma lavadeira; um homem que
abandonou a mulher e os filhos, fugira com uma bêbeda… Em todos a
sorte operara de um modo fulminante, produzindo um amor súbito e fogoso
pela pessoa desprezada. Apareciam logo rendidos, se estavam perto; se estavam
longe, voltavam, ávidos, a pé, a cavalo, na malaposta, apressando-se,
ardendo… E entregavam-se, mansos e humildes como escravos acorrentados…
— Mas o galego — continuava ela muito excitada — diz que
para ir à terra, falar à mulher, levar o retrato do Conselheiro,
é necessário o retrato dele, o meu; é necessário
o meu; ir falar, voltar — quer sete moedas!…
— Oh dona Felicidade! — fez Luísa repreensivamente.
— Não me digas, não venhas com as tuas! Olha que eu sei
de casos…
E erguendo-se:
— Mas são sete moedas! Sete moedas! — exclamou, arregalando
os olhos.
Juliana apareceu à porta, e muito baixinho, com um sorriso:
— A senhora faz favor?
Chamou-a para o corredor, em segredo:
— Esta carta. Que vem do hotel.
Luísa fez-se escarlate.
— Credo, mulher! Não é necessário fazer mistérios!
Mas não entrou no quarto, abriu-a logo no corredor; era a lápis,
escrita à pressa:
“Meu amor — dizia Basílio — por um feliz acaso descobri
o que precisávamos: um ninho discreto para nos vermos…” E indicava
a rua, o número, os sinais, o caminho mais perto. “… Quando
vens, meu amor? Vem amanhã. Batizei a casa com o nome de Paraíso;
para mim, minha adorada, é com efeito o paraíso. Eu espero-te
lá desde o meio-dia; logo que te aviste, desço.”
Aquela precipitação amorosa em arranjar o ninho — provando
uma paixão impaciente, toda ocupada dela — produziu-lhe uma dilatação
doce do orgulho; ao mesmo tempo que aquele paraíso secreto, como num
romance, lhe dava a esperança de felicidades excepcionais; e todas
as suas inquietações os sustos da carta perdida se dissiparam
de repente sob uma sensação cálida, como flocos de névoa
sob o sol que se levanta.
Voltou ao quarto, com o olhar risonho.
— Que te parece, hein? — perguntou logo D. Felicidade, a quem
a sua idéia ocupava tiranicamente
— O quê?
— Achas que mande o homem a Tuí?
Luísa encolheu os ombros; veio-lhe um tédio de tais enredos
de bruxaria, misturados a amores caturras. Na vaidade da sua intriga romântica
achava repugnante aquele sentimentalismo senil.
— Tolices! — disse com muito desdém.
— Oh filha! Não me digas, não me digas! — acudiu
desolada D. Felicidade.
— Bem, então manda, manda! — fez Luísa, já
impaciente
— Mas são sete moedas! — exclamou D. Felicidade, quase
chorosa.
Luísa pôs-se a rir.
— Por um marido? Acho barato…
— E se a sorte falha?
— Então é caro!
D. Felicidade deu um grande ai! Estava muito infeliz, naquela hesitação
entre os impulsos da concupiscência e as prudências da economia.
Luísa teve pena dela, e, tirando um vestido do guarda-roupa:
— Deixa lá, filha! Não hão de ser necessárias
bruxarias!…
D. Felicidade ergueu os olhos ao céu.
— Vais sair? — perguntou melancolicamente
— Não.
D. Felicidade propôs-lhe então que viesse com ela à Encarnação.
Visitavam a Silveira, coitada, que tinha um furúnculo! E viam a armação
da igreja para a festa; estreava-se o frontal novo, um primor!
— E estou também com vontade de ir rezar unia estaçãozinha
para aliviar cá por dentro — ajuntou, suspirando.
Luísa aceitou. Apetecia-lhe ir ver altares alumiados ouvir o ciciar
de rezas no coro, Como se os requintes devotos dissessem bem com as suas disposições
sentimentais Começou a vestir-se depressa.
— Como tu estás gorda, filha! — exclamou D. Felicidade
admirada vendo-0lhe os ombros, o colo.
Luísa diante do espelho olhava-se, sorria com o seu sorriso quente,
contente das suas linhas, acariciando devagarinho voluptuosamente a pele branca
e fina.
— Redondinha — disse, namorando-se.
— Redondinha? Vais-te a fazer uma bola!
E acrescentou, tristemente:
— Também com a tua vida; um marido Como o teu, regaladinha, sem
filhos, sem cuidados…
— Vamos lá, minha rica — disse Luísa — que
as tristezas não te têm feito emagrecer…
— Pois sim, pois sim! Mas… — e parecia desolada, como curvada
sob as suas próprias ruínas — cá por dentro é
uma desgraça, estômago, fígado…
— Se a mulher de Tuí faz o milagre, põe tudo isso como
novo!
D. Felicidade sorriu, com uma dúvida desconsolada.
— Sabes que tenho um chapéu lindo? — exclamou de repente
Luísa.
— Não viste? Lindo!
Foi logo buscá-lo ao guarda-vestidos. Era de palha fina, guarnecido
de miosótis.
— Que te parece?
— E um primor!
Luísa mirava-o dando pancadinhas com as pontas dos dedos nas florzinhas
azuis.
— Dá frescura — fez D. Felicidade.
— Não é verdade?
Pô-lo com muito cuidado, toda séria. Ficava-lhe bem! Basílio
se a visse havia de gostar, pensou. Era bem possível que o encontrassem…
Veio-lhe, sem motivo, uma felicidade exuberante; achava tão delicioso
viver, sair, ir à Encarnação, pensar no seu amante!…
E toda no ar, procurava pelo quarto as chavinhas do toucador.
Onde tinha deixado as chaves? Na sala de jantar, talvez! Ia ver! Saiu correndo,
tontinha, cantarolando:

Amici, la notte é bella…
La ra la la…

Quase topou com Juliana, que varria o corredor.
— Não deixe de engomar a saia bordada para amanhã, Juliana!
— Sim, minha senhora. Está em goma!
E seguindo-a com um olhar feroz:
— Canta, piorrinha; canta, cabrazinha; canta, bebedazinha!
E ela mesma, tomada subitamente de um júbilo agudo, atirou vassouradas
rápidas, soltando na sua voz rachada:

Além d’amanhã termina a campanha,
P-o-o-or aqui se diz…
Se tal for verdade, se não for patranha…

E com um espremido enfático:

Se-e-rei bem feliz!

Ao outro dia, pelas duas horas da tarde, Sebastião e Julião
passeavam em S. Pedro de Alcântara.
Sebastião estivera contando a sua “cena” com Luísa,
e como desde então a sua estima por ela crescera. Ao princípio
escabreara-se, sim…
— Mas teve razão! Assim de surpresa, ouvir uma daquelas! E eu
levei a coisa mal, fui muito à bruta…
Depois, coitadinha, concordara logo; mostrara-se muito desgostosa, toda zelosa
do seu pudor, pedira-lhe conselhos… Até tinha as lágrimas
nos olhos.
— Eu disse-lhe logo que o melhor era falar ao primo, dizer o que se
passava… Que te parece?
— Sim — disse vagamente Julião.
Tinha-o escutado distraído, chupando a ponta do cigarro. O seu rosto
térreo cavava-se, com uma cor mais biliosa.
— Então achas que fiz bem, hein?
E depois de uma pausa:
— Que ela é uma senhora de bem às direitas! Às
direitas, Julião!
Continuaram calados, O dia estava encoberto e abafado, com um ar de trovoada;
grossas nuvens pesadas e pardas iam-se acumulando enegrecendo para o lado
da Graça por trás das colinas; um vento rasteiro passava por
vezes, pondo um arrepio nas folhas das árvores.
— De maneira que agora estou descansado — resumiu Sebastião.
– Não te parece?
Julião encolheu os ombros com um sorriso triste:
— Quem me dera os teus cuidados, homem! — disse.
E falou então com amargura nas suas preocupações —
Havia uma semana que se abrira concurso para uma cadeira de substituto na
Escola, preparava-se para ele. Era a sua tábua de salvação,
dizia; se apanhasse a cadeira, ganhava logo nome, a clientela podia vir, e
a fortuna… E, que diabo, sempre era estar de dentro!… Mas a certeza da
sua superioridade não o tranqüilizava — porque enfim em
Portugal, não é verdade? Nestas questões a ciência,
o estudo, o talento são uma história; o principal são
os padrinhos! Ele não os tinha — e o seu concorrente, um sensaborão,
era sobrinho de um diretor-geral, tinha parentes na Câmara; era um colosso!
Por isso ele trabalhava a valer, mas parecia-lhe indispensável meter
também as suas cunhas! Mas quem?
— Tu não conheces ninguém, Sebastião?.
Sebastião lembrava-se de um primo seu, deputado pelo Alentejo, um gordo,
da maioria, um pouco fanhoso. Se Julião queria, falava-lhe… Mas sempre
ouvira dizer que a Escola não era gente de empenhos e de intriga…
De resto tinham o Conselheiro Acácio…
— Uma besta! — fez Julião. — Um parlapatão!
Quem faz lá caso daquilo? O teu primo, hein! O teu primo parece-me
bom! É necessário alguém que fale, que trabalhe… —
Porque acreditava muito nas influências dos empenhos, no domínio
dos “personagens”, nas docilidades da fortuna quando dirigida
pelas habilidades da intriga. E com um orgulho raiado de ameaça: —
Que eu hei de lhe mostrar o que é saber as coisas, Sebastião!
Ia explicar-lhe o assunto da tese, mas Sebastião interrompeu-o:
— Ela aí vem.
— Quem?
— A Luísa.
Passava com efeito, por fora do Passeio, toda vestida de preto, só.
— Respondeu à cortesia dos dois homens com um sorriso, adeusinhos
da mão, um pouco corada.
E Sebastião imóvel, seguindo-a devotamente com os olhos:
— Se aquilo não respira mesmo honestidade! Vai às lojas…
Santa rapariga!
Ia encontrar Basílio no Paraíso pela primeira vez. E estava
muito nervosa; não pudera dominar, desde pela manhã, um medo
indefinido que lhe fizera pôr um véu muito espesso, e bater o
coração ao encontrar Sebastião. Mas ao mesmo tempo uma
curiosidade intensa, múltipla, impelia-a, com um estremecimentozinho
de prazer. — Ia, enfim, ter ela própria aquela aventura que lera
tantas vezes nos romances amorosos! Era uma forma nova do amor que ia experimentar,
sensações excepcionais! Havia tudo — a casinha misteriosa,
o segredo ilegítimo, todas as palpitações do perigo!
Porque o aparato impressionava-a mais que o sentimento; e a casa em si interessava-a,
atraía-a mais que Basílio! Como seria? Era para os lados de
Arroios, adiante do Largo de Santa Bárbara; lembrava-se vagamente que
havia ali urna correnteza de casas velhas… Desejaria antes que fosse no
campo, numa quinta, com arvoredos murmurosos e relvas fofas; passeariam então,
com as mãos enlaçadas, num silêncio poético; e
depois o som da água que cai nas bacias de pedra daria um ritmo lânguido
aos sonos amorosos… Mas era num terceiro andar, — quem sabe como seria
dentro? Lembrava-lhe um romance de Paulo Féval em que o herói,
poeta e duque, forra de cetins e tapeçarias o interior de uma choça;
encontra ali a sua amante; os que passam, vendo aquele casebre arruinado,
dão um pensamento compassivo à miséria que decerto o
habita — enquanto dentro, muito secretamente, as flores se esfolham
nos vasos de Sèvres e os pés nus pisam Gobelins veneráveis!
Conhecia o gosto de Basílio, — e o Paraíso decerto era
como no romance de Paulo Féval.
Mas no Largo de Camões reparou que o sujeito de pêra comprida,
o do Passeio, a vinha seguindo, com uma obstinação de galo;
tomou logo um coupé. E ao descer o Chiado, sentia uma sensação
deliciosa em ser assim levada rapidamente para o seu amante, e mesmo olhava
com certo desdém os que passavam, no movimento da vida trivial —
enquanto ela ia para uma hora tão romanesca da vida amorosa! Todavia
à maneira que se aproximava vinha-lhe uma timidez, uma contração
de acanhamento, como um plebeu que tem de subir, entre alabardeiros solenes,
a escadaria de um palácio. Imaginava Basílio esperando-a estendido
num divã de seda; e quase receava que a sua Simplicidade burguesa,
pouco experiente, não achasse palavras bastante finas ou carícias
bastante exaltadas. Ele devia ter conhecido mulheres tão belas, tão
ricas, tão educadas no amor! Desejava chegar num coupé seu,
com rendas de centos de mil-réis, e ditos tão espirituosos como
um livro…
A carruagem parou ao pé de uma casa amarelada, com uma portinha pequena.
Logo à entrada um cheiro mole e salobro enojou-a. A escada, de degraus
gastos, subia íngrememente apertada entre paredes onde a cal caía,
e a umidade fizera nódoas. No patamar da sobreloja, uma janela com
um gradeadozinho de arame, parda do pó acumulado, coberta de teias
de aranha, coava a luz suja do saguão. E por trás de uma portinha,
ao lado, sentia-se o ranger de um berço, o chorar doloroso de uma criança.
Mas Basílio desceu logo, com o charuto na boca, dizendo baixo.
— Tão tarde! Sobe! Pensei que não vinhas. O que foi?
A escada era tão esguia, que não podiam subir juntos. E Basílio,
caminhando adiante, de esguelha:
— Estou aqui desde a uma hora, filha! Imaginei que te tinhas esquecido
da rua…
Empurrou uma cancela, fê-la entrar num quarto pequeno, forrado de papel
às listras azuis e brancas.
Luísa viu logo, ao fundo, uma cama de ferro com uma colcha amarelada,
feita de remendos juntos de chitas diferentes; e os lençóis
grossos, de um branco encardido e mal lavado, estavam impudicamente entreabertos…
Fez-se escarlate; sentou-se calada, embaraçada. E os seus olhos, muito
abertos, iam-se fixando — nos riscos ignóbeis da cabeça
dos fósforos, ao pé da cama; na esteira esfiada, comida, com
uma nódoa de tinta entornada; nas bambinelas da janela, de uma fazenda
vermelha, onde se viam passagens; numa litografia, onde uma figura, coberta
de uma túnica azul flutuante, espalhava flores voando… Sobretudo
uma larga fotografia, por cima do velho canapé de palhinha, fascinava-a:
era um indivíduo atarracado, de aspecto hílare e alvar, com
a barba em colar, o feitio de uni piloto ao domingo; sentado, de calças
brancas, com as pernas muito afastadas, pousava uma das mãos sobre
um joelho, e a outra muito estendida assentava sobre uma coluna truncada;
e por baixo do caixilho, como sobre a pedra de um túmulo, pendia de
um prego de cabeça amarela, uma coroa de perpétuas!
— Foi o que se pôde arranjar — disse-lhe Basílio.
— E foi um acaso; é muito retirado, é muito discreto…
Não é muito luxuoso…
— Não — fez ela, baixo. — Levantou-se, foi à
janela, ergueu uma porta da cortininha de cassa fixada à vidraça:
defronte eram casas pobres; um sapateiro grisalho batia a sola a uma porta;
à entrada de uma lojita balouçava-se um ramo de carqueja ao
pé de um maço de cigarros pendentes de um barbante; e, a uma
janela, uma rapariga esguedelhada embalava tristemente no colo urna criança
doente que tinha crostas grossas de chagas na sua cabecinha cor de melão.
Luísa mordia os beiços; sentia-se entristecer. Então
nós de dedos bateram discretamente à porta. Ela assustou-se,
desceu rapidamente o véu. Basílio foi abrir. Uma voz adocicada,
cheia de ss melífluos, ciciou baixo. Luísa ouviu vagamente:
Sossegadinhos; suas chavezinhas…
— Bem, bem! — disse Basílio apressado, batendo com a porta.
— Quem é?
— É a patroa.
O céu pusera-se a enegrecer; já a espaços grossas gotas
de chuva se esmagavam nas pedras da rua; e um tom crepuscular fazia o quarto
mais melancólico.
— Como descobriste tu isto? — perguntou Luísa, triste.
— Inculcaram-mo.
Outra gente, então, tinha vindo ali, “amado” ali? —
pensou ela. E a cama pareceu-lhe repugnante.
— Tira o chapéu —- disse Basílio, quase impaciente
— estás-me a fazer aflição com esse chapéu
na cabeça.
Ela soltou devagar o elástico que o prendia, foi pô-lo no canapé
de palhinha, desconsoladamente.
Basílio tomou-lhe as mãos, e atraindo-a, sentando-se na cama:
— Estás tão linda! — Beijou-lhe o pescoço,
encostou a cabeça ao peito dela. E com a vista muito quebrada:
— O que eu sonhei contigo esta noite!
Mas, de repente, uma forte pancada de chuva fustigou os vidros. E imediatamente
bateram à porta, com pressa.
— Que é? — bradou Basílio furioso.
A voz cheia de sr explicou que esquecera um cobertor na varanda que estava
a secar. Se se encharcasse, que perdição!…
— Eu lhe pagarei o cobertor, deixe-me! — berrou Basílio.
— Dá-lhe o cobertor…
— Que a leve o diabo!
E Luísa, sentindo um arrepio de frio nos seus ombros nus, abandonava-se
com uma vaga resignação, entre os joelhos de Basílio
— vendo constantemente voltada para si a face alvar do piloto.
Assim um iate que aparelhou nobremente para uma viagem romanesca vai encalhar,
ao partir, nos lodaçais do rio baixo; e o mestre aventureiro, que sonhava
com os incensos e os almíscares das florestas aromáticas, imóvel
sobre o seu tombadilho, tapa o nariz aos cheiros dos esgotos.
Apenas Luísa começou a sair todos os dias, Juliana pensou logo:
Bem, vai ter com o gajo!

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