O Que é Então?

Lima Barreto

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Conheço de nome, o senhor Múcio da Paixão, há muitos anos. Não há revista de teatro, daqui e dos Estados, onde não se encontre sempre alguma coisa dele…

Habituei-me a estimá-lo por esse profundo e constante amor as coisas da ribalta. Gosto dos homens de uma única paixão. Não é pois, de estranhar que tivesse lido, há dias na Gazeta do Povo,de Campos, com todo o interesse um artigo seu sobre uma troupe sertaneja que andou por aqui, estando na ocasião naquela cidade. Li-o com tanto interesse quanto a leitura de um outro jornal da rainha da Paraíba me havia deixado uma desagradável impressão. É o caso que A Notícia de lá anunciava o furto de 1:500$000 feito a uma quitandeira espanhola, com o título – “Um grande roubo”. Imaginei logo a bela cidade do açúcar dos ministeriais Meireles Zamiths & Cia, muito pobre a ponto de classificar tão pomposamente um modestíssimo ataque a propriedade alheia. Abandonando a A Noticia,e encontrando no então jornal cam­pista, o artigo do senhor Múcio, apressei-me em lê-lo para esquecer o julgamento desfavorável que fizera antes.

O senhor Múcio gabara muito a troupe,tinha palavras carinhosas para os sertanejos de todas as partes do Brasil, mesmo para aqueles da turma em espetáculos na cidade, que tocavam nas violas a Cavalaria Rusticana e a Carmen. Só ao tratar da cidade do Rio de Janeiro, é que o senhor Múcio foi áspero. Classificou-a de – a menos brasileira das nossas cidades. Eu quisera bem que o escritor campista me dissesse as razões de tal julgamento. Será pela população? Creio que não…

O último recenseamento desta cidade, feita pelo Prefeito Passos, em 1890, acusava para ela a população total de 811.443 habitantes, dos quais 600.928 eram brasileiros e os restantes 210.515, estrangeiros. Não se pode, creio eu, dizer que uma cidade não é brasileira quando mais de dois terços de sua população o são. Convém ainda reparar que, no número dos estrangeiros, estão incluídos 133.393 portugueses, mais da metade do total de forasteiros, fato de notar, pois os lusitanos muito pouco influem para a modificação dos costumes e da língua.

Se não é na população que o senhor Múcio foi buscar base para a sua asserção, onde foi então? Nos costumes? Mas que costumes queria o senhor Múcio que o Rio de Ja­neiro tivesse? Os de Campos? Os da Bahia? Os de São Ga­briel?

Julgo que o confrade das margens do Paraíba tem bastante bom senso para ver que o Rio de Janeiro só pode ter os costumes do Rio de Janeiro.

E sou levado a pensar assim porque, nesse mesmo artigo seu, o ilustre colega afirma que cada terra cria a sua poesia popular, etc, etc.

O meu Rio a tem também e, se o estimado publicista lembrar-se dos trabalhos dos estudiosos dessas coisas de folclore,como os senhores João Ribeiro e Sílvio Romero, por exemplo, verão que eles têm registrado muitos cantos, muitas quadras populares próprias ao Rio de Janeiro.

Poucas informações tenho do esforçado escritor campista, mas imagino que ele conhece muito mal o Rio de Janeiro. Quando vem por aqui adivinho, anda pela Rua do Ouvidor, Avenida, Praia de Botafogo, por todos esses lugares que as grandes cidades possuem para gáudio dos seus visitantes; mas o que constitui a alma, a substância da cidade, o senhor Múcio não conhece e dá provas disso em sua afirmação.

O Rio de Janeiro é brasileiro a seu modo, como Campos é, como São Paulo é, como Manaus é, etc. Nesta região, preponderaram tais elementos; naquela, houve uma influência predominante, naquela outra, apagaram-se certas tradições e avivaram-se outras; e assim por diante. Mas, um brasileiro de condição média quando vai daqui para ali, compreende perfeitamente tais usanças locais, sejam as do Rio Grande do Sul para as do Pará ou vice-versa. O nosso fundo comum é milagrosamente inalterável e basta para nos entendermos uns aos outros.

Se o Brasil não é o Rio de Janeiro, meu caro senhor Múcio da Paixão, o Rio de Janeiro também não é a Rua do Ouvidor. Não se deve, portanto, julgá-lo pela sua tradicional via pública.

E, se quiser ver, como isto é verdade, venha no mês que vem, assistir o carnaval. Não só o senhor verá que o Rio tem muita coisa de seu, má ou boa como também espontaneamente soube resumir as tradições e cantares plebeus do Brasil todo – o que se vê durante os dias consagrados a Momo.

Um observador como o senhor é, não há de admitir que só sejam brasileiros a sua “mana-chica”, e o seu “carabas” de Campos e não seja o “cateretê” de São Paulo, se é esse o nome que ali é dado aos saraus de sua gente pobre e rús­tica.

O Rio de Janeiro é cidade bem brasileira, senão, o que é então? Diga-me, o senhor Múcio da Paixão.

Lanterna, Rio, 22-1-1918

 

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