O Touro Branco

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Voltaire

Apresentação

Não se conhece muito bem a intenção de Voltaire ao
escrever “O Touro Branco”. Há hipóteses: plausíveis,
lógicas, mas hipóteses. Uma delas sugere que tenha se inspirado
em lendas orientais a respeito da metamorfose animal.

A mais provável, já que Voltaire sempre se interessou por
religiões e mitos, é de que ele teria coletado, dentre os
mitos religiosos orientais, aqueles em que os homens entrassem em contato
com aos animais, mesclando-os com outros. Reuniu, assim, numa comédia
animal, a serpente do paraíso, o asno de Balaão, a baleia
de Jonas com as divindades do Egito, igualmente relacionadas a animais,
especialmente o touro-rei.

Mas é o mesmo e inconfundível Voltaire, com seu conhecimento
da alma humana, a filosofia profunda e a ironia impecável. Não
é tão irreverente como em outras obras, mas parece não
ter resisitido a sê-lo em algumas oportunidades:

A serpente do paraíso, contestando a sua condenação,
retruca:

“Nada disso: dei-lhe o melhor conselho do mundo. Ela honrava-me
com a sua confiança. Eu era de parecer que ela e seu marido deviam
provar do fruto da árvore da ciência. Acreditava agradar assim
ao senhor das coisas. Uma árvore tão necessária ao
gênero humano não me parecia plantada para ficar inútil.
Desejaria o Senhor ser servido por ignorantes e idiotas? Não é
feito o espírito para esclarecer-se e aperfeiçoar-se? Não
se deve conhecer o bem e o mal para praticar o primeiro e evitar o segundo?
Por certo só me deviam agradecimentos.”

A observação sobre os usuais equívocos da corte lembram,
ligeiramente, nossa Capital Federal:

“Todos os ministros de Estado concluíram que o touro branco
era um feiticeiro. Dava-se exatamente o contrário: ele estava enfeitiçado;
mas na corte sempre se enganam nesses delicados assuntos.”

Sobre as fábulas, essas historietas que nos são tão
queridas de infância, Voltaire, pela voz de Amaside, decreta:

“Essas histórias me aborrecem – respondeu a bela Amaside,
que tinha inteligência e bom gosto. – Só servem para
ser comentadas entre os irlandeses, por esse louco do Abbadie, ou entre
os velches por esse frasista do Houteville As histórias que podiam
contar à tataravó da tataravó da minha avó já
não servem para mim, que fui educada pelo sábio Mambrés
e que li o Entendimento Humano do filósofo egípcio chamado
Locke e a Matrona de Éfeso. Quero uma história que seja fundada
na verossimilhança e que não se assemelhe sempre a um sonho.
Desejo que não tenha nada de trivial nem de extravagante. Desejaria
sobretudo que, sob o véu da fábula, deixasse transparecer
aos olhos exercitados alguma fina verdade que escapa ao vulgo. Estou cansada
do sol e da lua de que uma velha dispõe a seu bel-prazer, das montanhas
que dançam, dos rios que remontam à sua fonte, e dos mortos
que ressuscitam; mas, quando essas tolices são escritas em estilo
empolado e ininteligível, ai sim, que me desgostam horrivelmente.”

Ironia sobre divindades, não faltou, é sugestiva:

“Mais além, surgiam, na mesma pompa, a ovelha de Tebas, o
cão de Bubasta, o gato de Febe, o crocodilo de Arsinoe, o bode de
Mendés, e todos os deuses inferiores do Egito, que vinham render
homenagem ao grande boi, ao grande deus Apis, tão poderoso quanto
Isis, Osiris e Hórus juntos.

No meio de todos esses semideuses, quarenta sacerdotes carregavam um enorme
cesto cheio de cebolas sagradas, que não eram deuses, mas que muito
se lhes assemelhavam.”

E o que me parece genial: a princesa Amaside fora proibida pelo pai de
pronunciar o nome de seu amado, sob pena de decapitação. Ela
tentou dizer: Na… e foi advertida pelo sábio Mambrés do
risco que começava a correr. Com mais ousadia pronunciou Nabu…,
logo depois Nabuco… e, finalmente, Nabucodonosor. Nesse momento alcançou
a liberdade, enfrentou o pai e casou-se com o seu amado: “o grande
rei que não era mais boi!”. É para se meditar.

Nélson Jahr Garcia

CAPÍTULO PRIMEIRO

De como a princesa Amaside encontra um boi.

A jovem princesa Amaside, filha de Amásis, rei de Tânis,
no Egito, passeava pela estrada de Pelusa com as damas do seu séquito.
Estava mergulhada em profunda tristeza; as lágrimas corriam de seus
belos olhos. Sabe-se qual o motivo do seu sofrimento e como temia ela desagradar
ao rei seu pai com esse mesmo sofrimento. Achava-se em sua companhia o velho
Mambrés, antigo mago e eunuco dos faraós, e que não
a deixava quase nunca. Vira-a nascer, educara-a, ensinara-lhe tudo o que
a uma bela princesa é permitido saber das ciências do Egito.
O espírito de Amaside igualava-se à sua bondade; ela era tão
sensível, tão terna como encantadora; e era essa sensibilidade
que lhe custava tantas lágrimas.

A princesa tinha vinte e quatro anos de idade; o mago Mambrés tinha
cerca de mil e trezentos anos. Fora ele, como é sabido, quem sustentara
com o grande Moisés aquela famosa disputa na qual a vitória
esteve por longo tempo pendente entre os dois profundos filósofos.
Se Mambrés sucumbiu, foi unicamente devido à visível
intervenção das potências celestes, que favoreceram
o seu rival; só mesmo deuses, para vencer Mambrés.

Amásis o nomeara superintendente da casa de sua filha, e ele se
desincumbia dessas funções com a sua ordinária sabedoria.
A bela Amaside enternecia-o com seus suspiros.

— O meu amor! meu jovem e querido amor! – exclamava ela às
vezes, – tu, o maior dos vencedores, o mais perfeito, o mais belo
dos homens! como! há mais de sete anos que desapareceste da face
da terra! Que deus te arrebatou à tua terna Amaside? Não estás
morto, assim o dizem os sábios profetas do Egito; mas para mim estás
morto, acho-me sozinha na terra, ela é deserta. Por que estranho
prodígio abandonaste o teu trono e a tua amada? o teu trono! era
o primeiro do mundo, e é pouco; mas eu, que te adoro, ó meu
querido Na…

— Tremei de pronunciar esse nome fatal – disse-lhe o sábio
Mambrés, antigo eunuco e mago dos faraós. – Seríeis
talvez traída por alguma das vossas damas. Elas vos são todas
fiéis, e todas as belas damas timbram em servir as nobres paixões
das belas princesas; mas, enfim, pode-se encontrar uma indiscreta entre
elas, e até mesmo uma pérfida. Bem sabeis que o rei vosso
pai, que aliás vos ama, jurou mandar cortar-vos o pescoço,
se pronunciásseis esse nome terrível, continuamente prestes
a vos escapar dos lábios. Chorai, mas calai-vos. Essa lei é
dura, mas não fostes educada na sabedoria egípcia para que
não soubésseis dominar a língua. Considerai que Harpócrates,
um dos nossos maiores deuses, tem sempre um dedo sobre o lábio.

A bela Amaside chorou e não falou mais.

Como se dirigisse em silêncio para as margens do Nilo, avistou de
longe, junto a um bosque banhado pelo rio, uma velha coberta de farrapos,
sentada sobre um cômoro. Tinha junto a si uma jumenta, um cão
e um bode. A frente dela estava uma serpente que não era como as
serpentes ordinárias, pois seus olhos eram tão ternos como
animados; sua fisionomia era tão nobre como atraente; sua pele brilhava
com as mais vivas e agradáveis cores. Um enorme peixe, mergulhado
a meio no rio, não era a menos admirável pessoa da companhia.
Havia sobre um ramo um corvo e uma pomba. Todas essas criaturas pareciam
empenhadas em animada conversação.

— Ai! – suspirou baixinho a princesa, – toda essa gente
fala decerto de seus amores, e a mim não me é permitido pronunciar
o nome daquele a quem amo!

A velha segurava uma leve corrente de aço, de umas cem braças
de comprimento, à qual se achava atado um touro que pastava no campo.
Esse touro era branco, bem torneado, elegante de linhas, leve até,
o que é bastante raro. Seus cornos eram de marfim. Era o que de mais
belo já se vira na sua espécie. O de Pasifaé, e aquele
cuja figura tomou Júpiter para raptar Europa, não se aproximavam
sequer do soberbo animal. Apenas a encantadora novilha em que fora transformada
Isis seria, quando muito, digna dele.

Mal viu a princesa, correu para ela com a rapidez de um cavalo árabe
que franqueia as vastas planícies e os rios do antigo Saara para
se aproximar da brilhante égua que reina no seu coração
e que o faz erguer as orelhas. A velha fazia esforços por detê-lo,
a serpente parecia querer espantá-lo com seus silvos; o cão
o seguia, mordendo-lhe as belas pernas; a jumenta atravessava-se-lhe no
caminho e dava-lhe coices para o fazer voltar. O grande peixe remontava
o Nilo, e, lançando-se fora d’água, ameaçava
devorá-lo; o corvo adejava em torno da cabeça do touro, como
se quisesse vazar-lhe os olhos. Só a pomba o acompanhava por curiosidade
e aplaudia-o com um suave murmúrio.

Tão extraordinário espetáculo remergulhou Mambrés
em profundas cogitações. O touro branco, arrastando a corrente
e a velha, já havia no entanto alcançado a princesa, que era
toda espanto e medo. Ei-lo que se lança aos pés de Amaside,
beija-os, derrama lágrimas, contempla-a com um olhar onde se lia
uma inaudita mistura de dor e alegria. Não ousava mugir, por medo
de assustá-la. Ele não podia falar. Era-lhe vedado esse modesto
uso da voz concedido pelo Céu a alguns animais; mas todas as suas
ações eram eloqüentes. A princesa se agradou muito dele.
Sentiu que uma pequena diversão poderia surpreender por alguns momentos
as mais dolorosas penas.

— Eis aqui – dizia ela – um amável animal; desejaria
tê-lo no meu estábulo.

A estas palavras, o touro dobrou os quatro joelhos.

— Ele me compreende! – exclamou a princesa. – Diz-me,
à sua maneira, que quer pertencer-me. Ah! divino mago, divino eunuco!
dá-me essa consolação, compra esse belo querubim (1);
propõe um preço à velha, à qual decerto ele
pertence. Quero que este animal seja meu; não me recuses esse inocente
consolo.

Todas as damas do palácio juntaram suas instâncias aos rogos
da princesa. Mambrés deixou-se comover, e foi falar com a velha.

CAPÍTULO SEGUNDO

De como o sábio Mambrés, antigo feiticeiro do Faraó
reconheceu uma velha, como foi por ela reconhecido.

— Senhora – disse-lhe ele, – bem sabeis que as moças,
e principalmente as princesas, têm necessidade de divertir-se. A filha
do rei está louca pelo vosso touro; vendei-nos, por favor, esse animal,
que sereis paga em dinheiro à vista.

— Senhor – respondeu a velha, – esse precioso animal
não me pertence. Estou encarregada, eu e todos os animais que vistes,
de observar todos os seus passas e dar conta de tudo. Deus me livre de pensar
algum dia em vender esse animal sem preço!

Ouvindo isto, sentiu-se Mambrés tocado de alguns raios de confusa
luz, que ainda não distinguia nitidamente. Observou a velha com mais
atenção.

— Respeitável dama – disse ele, – ou muito me
engano, ou já vos vi outrora.

— Pois eu bem me lembro, senhor, que já vos encontrei há
setecentos anos, em uma viagem que fiz da Síria ao Egito, alguns
meses após a destruição de Tróia, quando Hiram
reinava em Tiro, e Nephel-Kerés no antigo Egito.

— Ah! senhora – exclamou o velho, – sois a augusta pitonisa
de Endor.

— E vós, senhor – disse a pitonisa, abraçando-o,
– sois o grande Mambrés do Egito.

— Ó imprevisto encontro! ó memorável dia! ó
decretos eternos! – exclamou Mambrés. – Não é,
por certo, sem ordem expressa da providência universal que nós
nos encontramos neste prado à margem do Nilo, perto da soberba cidade
de Tânis. Com que então sois mesmo vós, senhora, tão
famosa às margens do Jordão, vós, a mais hábil
pessoa do mundo para evocar as sombras !

— E sois vós, senhor, tão famoso por mudardes os bastões
em serpentes, o dia em trevas, e os rios em sangue!

— Sim, minha senhora; mas a minha avançada idade enfraquece
parte de minhas luzes e de meus poderes. Ignoro de onde vos vem esse belo
touro branco, e que animais são esses que vos auxiliam a vigiá-lo.

A velha recolheu-se um momento, ergueu os olhos ao céu, depois
respondeu nos seguintes termos:

— Meu caro Mambrés, somos do mesmo ofício, mas é-me
expressamente proibido dizer-vos que touro é esse. Posso satisfazer-vos
no tocante aos outros animais. Vós os reconhecereis facilmente pelos
sinais que os caracterizam. A serpente é aquela que persuadiu Eva
a comer uma maçã, e a fazer que o marido a comesse. A jumenta
é a que falou num caminho a Balaão, contemporâneo vosso.
O peixe que conserva sempre a cabeça fora d’água é
aquele que engoliu Jonas há alguns anos. Esse cão é
aquele que seguiu o anjo Rafael e o, jovem Tobias durante a viagem que fizeram
a Ragés, na Média, no tempo do grande Salmanasar. Esse bode
é aquele que expia todos os pecados de uma nação. Esse
corvo e essa pomba são os que estavam na arca de Noé: grande
acontecimento, catástrofe universal, que quase toda a terra ainda
ignora. Estais, pois, informado. – Mas, quanto ao touro, nada sabereis.

Mambrés escutava com respeito. Depois disse:

— O Eterno revela o que quer, e a quem quer, ilustre pitonisa. Todos
esses animais, encarregados convosco da guarda do touro branco, só
são conhecidos na vossa generosa e aprazível nação,
a qual, por sua vez, é desconhecida de quase todo o mundo. As maravilhas
que vós e os vossos, e eu e os meus operamos, serão um dia
objeto de dúvida e escândalo entre os falsos sábios.
Felizmente encontrarão crédito entre os verdadeiros sábios,
que se submeterão aos videntes, numa pequena parte do mundo, e é
o que basta.

Enquanto pronunciava estas últimas palavras, a princesa puxou-lhe
a manga, indagando:

— Mambrés, e o meu touro? Será que não vais
comprá-lo?

O mago, mergulhado em profunda cisma, nada respondeu, e Amaside pôs-se
a chorar.

Dirigiu-se então à pitonisa, dizendo-lhe:

— Minha boa velha, conjuro-te por tudo o que tens de mais caro no
mundo, por teu pai, por tua mãe, por tua ama, que sem dúvida
ainda vivem, que me vendas não só o teu touro, mas também
a tua pomba, que lhe parece tão afeiçoada. Quanto aos teus
outros animais, não os quero; mas sou bem capaz de adoecer de vapores,
se não me venderes esse encantador touro branco, que constituirá
toda a doçura da minha vida.

A velha beijou-lhe respeitosamente a fímbria do vestido de gaze
e disse-lhe:

— Princesa, o meu touro não está à venda, e
o vosso ilustre mago já o sabe. O mais que eu posso fazer por vós
é levá-lo a pastar todos os dias nas proximidades de vosso
palácio; podereis acariciá-lo, dar-lhe biscoitos, fazê-lo
dançar à vontade. Mas é preciso que ele esteja continuamente
sob as vistas de todos os animais que me acompanham e que estão encarregados
da sua guarda. Se não procurar escapar-se, não lhe farão
mal algum; mas ai dele! se tentar romper de novo a corrente, como fez logo
que vos avistou. Não responderei então por sua vida. Esse
grande peixe que vedes infalivelmente o engoliria, guardando-o por mais
de três dias na barriga; ou então essa serpente, que vos pareceu
talvez tão branda e amável, poderia dar-lhe uma picada mortal.

O touro branco, que entendia às maravilhas tudo quanto dizia a
velha, mas que não podia falar, aceitou todas as suas propostas,
com um ar submisso. Deitou-se a seus pés, mugiu docemente; e, contemplando
Amaside com ternura, parecia dizer-lhe:

— Vinde ver-me algumas vezes no prado. A serpente tomou então
a palavra, e disse-lhe:

— Princesa, aconselho-vos a seguirdes cegamente tudo quanto vos
diz a senhorita de Endor.

A jumenta também deu sua opinião, que era a mesma da serpente.
Amaside afligiu-se com o fato de que aquela serpente e aquela jumenta falassem
tão bem, e que um belo touro, que tinha tão nobres e ternos
sentimentos, não pudesse exprimi-los.

— Ah! nada é tão comum na Corte – dizia ela
baixinho. – Todos os dias se vêem ali belos senhores que não
sabem conversar e feiarrões que falam com segurança.

—.Essa serpente não é pouca coisa – disse Mambrés.
– Não vos enganeis. É talvez a pessoa de maior consideração.
Caía o crepúsculo; a princesa viu-se obrigada a voltar para
casa, mas prometeu que retornaria no dia seguinte ao mesmo local. As damas
do palácio estavam maravilhadas e nada compreendiam do que tinham
visto e ouvido. Mambrés fazia as suas reflexões. A princesa,
considerando que a serpente havia chamado a velha de senhorita, concluiu
ao acaso que esta era virgem, e sentiu alguma aflição de ainda
o ser: aflição respeitável, que ela ocultava com tanto
escrúpulo quanto o nome de seu bem-amado.

CAPÍTULO TERCEIRO

De como a bela Amaside teve uma entrevista secreta com uma bela serpente.

A bela princesa recomendou segredo às suas damas, sobre o que haviam
presenciado. Todas elas o prometeram e, com efeito, guardaram-no um dia
inteiro. Pode-se crer que Amaside pouco dormiu naquela noite. Um encantamento
inexplicável lhe trazia a todo instante a imagem de seu belo touro.
Logo que se viu a sós com o seu sábio Mambrés, disse-lhe
ela.

— Ó sábio! esse animal me vira a cabeça.

— E ocupa bastante a minha – disse Mambrés. –
Vejo claramente que esse querubim está muito acima da sua espécie.
Há aqui um grande mistério, mas temo um acontecimento funesto.
O vosso pai Amásis é violento e desconfiado; toda essa história
exige que vos porteis com a maior prudência.

— Ah! – suspirou a princesa, – sinto-me por demais curiosa
para ser prudente; é esta a única paixão que pode unir-se,
em meu peito, àquela que me devora pelo bem-amado que perdi. Não
poderei então saber o que é esse touro branco que provoca
em mim tamanha perturbação?!

— Senhora – respondeu Mambrés, – já vos
confessei que minha ciência declina à medida que minha idade
avança; mas, ou me engano muito, ou a serpente está a par
do que tanto desejais saber. Tem espírito, exprime-se com discrição,
e há muito que está acostumada a meter-se nos negócios
das damas.

— Ah! sem dúvida – disse Amaside – é essa
bela serpente do Egito, que, com a cauda metida na boca, é o símbolo
da eternidade, e que alumia o mundo quando abre os olhos e o obscurece quando
os fecha.

— Não, minha senhora.

— É então a serpente de Esculápio?

— Ainda menos.

— É então Júpiter sob a forma de serpente?

— Qual!

— Ah! já sei: é aquele teu bastão que outrora
transformaste em serpente.

— Garanto-lhe que não, senhora; mas todas essas serpentes
são da mesma família. Esta de que falamos tem grande reputação
no seu país, onde passa pela mais hábil serpente que jamais
se viu. Ide falar com ela. Advirto-vos, contudo, de que é um passo
muito perigoso. Eu, se estivesse em vosso lugar, deixaria o touro, a jumenta,
a cobra, o peixe, o cão, o bode, o corvo e a pomba. Mas a paixão
vos arrebata; o mais que posso é apiedar-me e tremer.

A princesa conjurou-o a conseguir-lhe uma entrevista com a serpente. Mambrés,
que era bom, consentiu, e, sempre a refletir profundamente, foi procurar
a sua pitonisa. E tão insinuantemente lhe expôs o capricho
da sua princesa, que afinal a persuadiu.

Disse-lhe então a velha que Amaside era a senhora e dona; que a
serpente sabia muito bem como haver-se nesta vida; que costumava ser muito
amável com as damas; que não queria outra coisa senão
lhes prestar favores, e que não faltaria à entrevista.

O velho mago voltou à princesa com essa boa notícia; mas
temia ainda alguma desgraça, e continuava com as suas ponderações.

— Quereis falar com a serpente, senhora; será quando aprouver
à Vossa Alteza. Lembrai-vos, no entanto, que é preciso saber
lisonjeá-la; pois todo animal é cheio de amor próprio,
e sobretudo a serpente. Dizem que ela foi outrora expulsa de um belo lugar
por causa de seu excessivo orgulho.

— Nunca ouvi falar nisso.

— Acredito-o.

Contou-lhe então o velho todos os rumores que haviam corrido acerca
daquela famosa serpente.

— Mas, seja como for, Alteza, não lhe podereis arrancar o
segredo senão lisonjeando-a. Ela passa, num país vizinho,
por haver pregado uma terrível peça às mulheres; é
justo que, por sua vez, uma mulher a seduza.

— Farei o possível – disse a princesa.

Partiu pois com as suas damas palacianas e o bom mago eunuco. A velha
fazia o touro pastar bastante longe. Mambrés deixou Amaside em liberdade
e foi conversar com a sua pitonisa. A dama de honra pôs-se a conversar
com a jumenta; as damas de companhia entretiveram-se com o bode, o cão,
o corvo e a pomba; quanto ao grande peixe, que metia medo a todo o mundo,
mergulhou no Nilo por ordem da velha.

A serpente foi em seguida ao encontro da bela Amaside, no bosque; e mantiveram
ambas a seguinte conversação:

A Serpente: – Não imaginais, Senhora, o quanto me lisonjeia
a honra que Vossa Alteza se digna conceder-me.

A Princesa: – A vossa grande reputação, a inteligência
de vossa fisionomia e o brilho de vossos olhos logo me decidiram a solicitar
esta entrevista. Sei, pela voz pública (se ela não é
enganadora que fostes uma grande personagem no céu empíreo.

A Serpente: – É verdade, Senhora, que eu ocupava lá
uma posição assaz distinta. Dizem que sou um favorito desgraciado:
é um rumor que correu a princípio na Índia (2) Os brâmanes
foram os primeiros que apresentaram uma longa história das minhas
aventuras. Não duvido que os poetas do Norte façam um dia
com esse material um poema épico assaz estranho; pois, na verdade,
é só o que se pode fazer. Não estou, porém,
tão decaído que ainda não desfrute neste globo um considerável
domínio. Quase me atreveria a dizer que toda a terra me pertence.

A Princesa: – Acredito-o, pois dizem que tendes o talento da persuasão;
e agradar, é reinar.

A Serpente: – Sinto, Senhora, enquanto vos vejo e vos escuto, que
tendes sobre mim esse império que me atribuem sobre tantas outras
almas.

A Princesa: – Sabeis vencer amavelmente. Dizem que subjugastes muitas
damas, e que começastes por nossa mãe comum, cujo nome esqueci.

A Serpente: – Nada disso: dei-lhe o melhor conselho do mundo. Ela
honrava-me com a sua confiança. Eu era de parecer que ela e seu marido
deviam provar do fruto da árvore da ciência. Acreditava agradar
assim ao senhor das coisas. Uma árvore tão necessária
ao gênero humano não me parecia plantada para ficar inútil
Desejaria o Senhor ser servido por ignorantes e idiotas? Não é
feito o espírito para esclarecer-se e aperfeiçoar-se? Não
se deve conhecer o bem e o mal para praticar o primeiro e evitar o segundo?
Por certo só me deviam agradecimentos.

A Princesa: – Dizem no entanto que vos saístes mal. Parece
que é desde essa época que tantos ministros foram punidos
por terem dado bons conselhos, e tantos verdadeiros sábios e grandes
gênios foram perseguidos por terem escrito coisas úteis ao
gênero humano.

A Serpente: – Decerto foram inimigos meus que vos contaram essas
histórias. Andam a assoalhar que estou mal na Corte. Mas uma prova
de que ainda tenho grande crédito por lá é que eles
próprios confessam que eu entrei no conselho quando se tratou de
pôr Job à prova; e que também fui chamado quando se
tomou a resolução de enganar a certo reisote por nome Achab
(3) ; fui eu o único encarregado dessa nobre missão.

A Princesa: – Ah! Não creio que vosso espírito seja
afeiçoado aos enganos. Mas, já que continuais no ministério,
posso fazer-vos um pedido? Espero que uma autoridade tão amável
não me há. de repelir…

A Serpente: – Senhora, os vossos pedidos são leis. Que ordenais?

A Princesa: – Conjuro-vos a dizer-me o que vem a ser esse belo touro
branco que me inspira sentimentos incompreensíveis que me enternecem
e amedrontam. Disseram-me que teríeis a condescendência de
esclarecer-me.

A Serpente: – Senhora, a curiosidade é necessária
à natureza humana, e principalmente a vosso amável sexo; sem
ela, ficar-se-ia vegetando na mais vergonhosa ignorância. Sempre satisfiz,
o mais que pude, a curiosidade das damas Acusam-me de não ter tido
essa complacência senão para fazer birra ao senhor das coisas.
Juro que o meu único objetivo é ser-vos agradável;
mas a velha já vos deve ter avisado de que há algum perigo
para vós na revelação desse segredo.

A Princesa: – Ah! é isso que me torna ainda mais curiosa.

A Serpente: – Reconheço nessa atitude todas as belas damas
a quem prestei serviço.

A Princesa: – Se tendes sensibilidade, se todos os seres se devem
mútuo auxilio, se sentis compaixão por uma desgraçada,
não me recuseis esse favor.

A Serpente: Vós me partis o coração; tenho de satisfazer-vos;
mas nada de interrupções.

A Princesa: – Prometo-o.

A Serpente: – Havia um jovem rei, belo que nem uma pintura, apaixonado,
amado…

A Princesa: – Um jovem rei! belo que nem uma pintura ,apaixonado,
amado! e por quem? de quem? e quem era esse rei? e que idade tinha? que
foi feito dele? onde está ele? onde é o seu reino? qual é
o seu nome?

A Serpente: – Pois não é que já me interrompeis,
quando mal começo a falar?! Cuidado: se não tiverdes mais
poder sobre vós mesma, estais perdida.

A Princesa: – Oh! perdão. Não mais serei indiscreta;
continuai, por favor.

A Serpente: – Esse grande rei, o mais amável e o mais corajoso
dos homens, vitorioso por toda parte aonde houvesse levado as suas armas,
costumava sonhar seguidamente. E, quando esquecia os sonhos, queria que
os magos se lembrassem deles, e lhe contassem direitinho tudo o que havia
sonhado, sem o que, mandava-os enforcar a todos, pois nada era mais justo.
Ora, há cerca de sete anos, teve ele um belo sonho, de que perdeu
memória ao despertar; e depois que um jovem judeu, cheio de experiência,
lhe explicou o sonho, esse amável rei foi de súbito transformado
em boi (4): pois…

A Princesa: – Ah! é o meu querido Nabu…

Não pôde terminar: caiu desfalecida. Mambrés, que
escutava de longe, viu-a tombar, e julgou-a morta

CAPÍTULO QUARTO

De como quiseram sacrificar o boi e exorcismar a princesa.

Mambrés corre a ela, chorando. A serpente comove-se; não
pode chorar, mas silva num tom lúgubre; e grita: “Ela está
morta!” A jumenta repete: “Ela está morta!” O corvo
o rediz; todos os outros animais parecem transidos de dor, exceto o peixe
de Jonas, que sempre foi impiedoso. A dama de honra, as damas do palácio
aproximam-se e arrancam os cabelos. O touro branco, que pastava ao longe
e ouve os seus clamores, corre para o bosque, arrastando a velha e soltando
mugidos cujos ecos reboam. Em vão todas as damas derramavam sobre
Amaside expirante os seus frascos de água de rosas, de cravo, de
mirto, de benjoim, de bálsamo de Meca, de canela, de amônio,
de noz-moscada, de âmbar cinzento. A princesa não dava nenhum
sinal de vida. Quando, porém, sentiu o belo touro branco a seu lado,
voltou a si mais fresca, mais bela, mais animada do que nunca. Deu mil beijos
naquele animal encantador, que inclinava languidamente a bela cabeça
sobre o seu seio de alabastro. Ela o chama: “Meu senhor, meu rei,
meu coração, minha vida”. Envolve com seus braços
de marfim aquele pescoço mais branco do que a neve. Menos fortemente
se liga a leve palha ao âmbar, a vinha ao olmo, a hera ao carvalho.
Ouvia-se o suave murmúrio de seus suspiros; viam-se-lhe os olhos
ora fulgurantes de amorosa flama, ora empanados com essas preciosas lágrimas
que o amor faz derramar.

Imagine-se em que surpresa não estariam mergulhadas a dama de honra
e as damas de companhia! Logo que chegaram no palácio, contaram toda
essa estranha aventura a seus res pectivos namorados, e cada uma com circunstâncias
diferentes que lhe aumentavam a singularidade e contribuíam para
a variedade de todas as versões.

Logo que Amásis, rei de Tânis, foi informado do caso, seu
coração real encheu-se de justa cólera. Tal foi a indignação
de Minos quando soube que sua filha Pasifaé prodigava seus ternos
favores ao pai do Minotauro. Assim estremeceu Juno quando viu o seu esposo
Júpiter acariciar a bela vaca Io, filha do rio Ínaco. Amásis
mandou encerrar a bela Amaside em seu quarto e pôs-lhe à porta
uma guarda de eunucos negros; depois convocou o conselho secreto.

Presidia-o o grande mágico Mambrés, mas já não
tinha o mesmo crédito de outrora. Todos os ministros de Estado concluíram
que o touro branco era um feiticeiro. Dava-se exatamente o contrário:
ele estava enfeitiçado; mas na corte sempre se enganam nesses delicados
assuntos.

Foi votado por unanimidade que se devia exorcismar a princesa e sacrificar
o touro branco e a velha.

O sábio Mambrés não queria impugnar a decisão
do rei e do conselho. Era a ele que competia fazer os exorcismos; podia
diferi-los sob um pretexto bastante plausível. Acabava de morrer
em Mênfis o deus Ápis. Pois um deus boi morre como qualquer
boi. E no Egito não era permitido exorcismar ninguém até
que se encontrasse um outro boi para substituir o defunto.

O conselho resolveu esperar, pois, pela nomeação do novo
Deus em Mênfis.

O bom velho Mambrés sentia a que perigo se achava exposta a sua
querida princesa: sabia quem era o seu apaixonado. As sílabas Nabu,
que ela deixara escapar, lhe haviam revelado todo o mistério.

A dinastia (5) de Mênfis pertencia então aos babilônios;
conservavam eles esse resto das suas passadas conquistas, que haviam feito
sob o maior rei do mundo, de que Amásis era inimigo mortal. Mambrés
tinha necessidade de toda a sua sabedoria para bem se conduzir entre tantas
dificuldades. Se o rei Amásis descobrisse quem era o enamorado da
princesa, ela estaria morta, jurara ele. O grande, o jovem, o belo rei por
quem ela se apaixonara, tinha destronado o seu pai, que só recuperara
o reino de Tânis desde que se ignorava, fazia agora uns sete anos,
o paradeiro do adorável monarca, o vencedor e ídolo das nações,
o terno e generoso apaixonado da encantadora Amaside. Mas, sacrificando
o touro, infalivelmente a fariam morrer de dor.

Que poderia fazer Mambrés em tão espinhosas circunstâncias?
Vai procurar a princesa, ao sair do conselho, e diz-lhe:

— Eu vos servirei, minha bela princesa; mas vos cortarão
o pescoço, repito-vos, se pronunciardes o nome de vosso amado.

Ah! que me importa o meu pescoço – retruca a bela Amaside
– se não posso enlaçar o de Nabuco…? Meu pai é
um homem muito mau! Não só recusou dar-me ao belo príncipe
que idolatro, mas declarou-lhe guerra; e, quando foi vencido pelo meu amado,
descobriu o segredo de o transformar em boi. Já se viu mais tremenda
malícia? Se meu pai não fosse meu pai, eu não sei o
que lhe faria.

— Não foi vosso pai quem lhe pregou essa cruel partida –
disse o sábio Mambrés. – Foi um palestino, um de nossos
antigos inimigos, um habitante de um pequeno país compreendido na
multidão dos Estados que o vosso augusto pretendente dominou para
os civilizar. Essas metamorfoses não vos devem surpreender; bem sabeis
que eu as fazia outrora muito mais belas: nada era mais comum então
do que essas mudanças que espantam hoje os sábios. A história
verdadeira que lemos juntos nos ensinou que Licaonte, rei da Arcádia,
foi transformado em lobo. A bela Calisto, sua filha, foi transformada em
ursa; Io, filha de Ínaco, a nossa venerável Isis em vaca;
Dafne, em loureiro; Sirinx, em flauta. A bela Edith. mulher de Loth, o melhor,
o mais carinhoso pai que já se viu, não se mudou, em nossas
vizinhanças, numa grande estátua de sal muito bela e picante,
que conservou todas as características do seu sexo e que tem mensalmente
as suas regras (6), como o atestam os grandes homens que a viram? Fui testemunha
dessa transformação, em minha juventude. Vi cinco poderosas
cidades, no local mais seco e árido do mundo, mudadas de súbito
em um belo lago. Ah! quando eu era moço, só se andava sobre
metamorfoses. Enfim, Senhora, se os exemplos podem abrandar as vossas penas,
lembrai-vos de que Vênus transformou os Cerastes em bois.

— Eu sei – murmurou a infeliz princesa. – mas quem disse
que os exemplos consolam? Se o meu amado estivesse morto, acaso me consolaria
a idéia de que todos os homens morrem?

— A vossa pena pode findar – disse o sábio, –
e já que o vosso amado se transformou em boi, bem compreendeis que,
de boi, poderá transformar-se em homem. Quanto a mim, deveria ser
transformado em tigre ou em crocodilo, se não empregasse o pouco
de poder que me resta a serviço de uma princesa digna das adorações
da terra, a bela Amaside, a quem criei sobre os meus joelhos, e cujo fatal
destino a submete a tão cruéis provações.

CAPÍTULO QUINTO

De como o sábio Mambrés sabiamente se conduziu.

Tendo dito à princesa tudo o que deveria dizer-lhe para a consolar,
sem que aliás o conseguisse, o divino Mambrés foi imediatamente
falar com a velha.

— Minha camarada – começou ele, – belo é
o nosso ofício, mas assaz perigoso: correis o risco de ser enforcada,
e o vosso boi de ser queimado, ou afogado ou comido. Não sei o que
farão dos outros animais, pois, embora profeta, de poucas coisas
sou sabedor. Mas ocultai com todo o cuidado a serpente e o peixe; que um
não ponha a cabeça fora d’água, e o outro não
saia do seu buraco. Alojarei o boi em um dos meus estábulos no campo;
ali ficareis com ele, pois afirmais que não vos é permitido
abandoná-lo. O bode emissário poderá oportunamente
servir de bode expiatório; nós o enviaremos para o deserto,
carregado dos pecados da tropa: está acostumado a essa cerimônia,
que não lhe faz mal nenhum; e é sabido que tudo se expia com
um bode que passeia. Peço-vos apenas que me empresteis desde já
o cão de Tobias, que é um lebrel muito ágil, a jumenta
de Balaão, que corre mais que um dromedário; o corvo e a pomba
da arca, que voam rapidamente. Quero enviá-los em embaixada a Mênfis,
para um assunto da máxima importância.

— Senhor – respondeu a velha ao mago, – podeis dispor
à vontade do cão de Tobias, da jumenta de Balaão, do
corvo e da pomba da arca, e do bode emissário; mas o meu boi não
pode dormir num estábulo, Está escrito que deve ficar preso
a uma corrente de aço, estar sempre molhado de orvalho e pastar a
relva sobre a terra (7) e que a sua porção será com
os animais selvagens. Ele me foi confiado, e eu devo obedecer. Que pensariam
de mim Daniel, Ezequiel e Jeremias, se eu entregasse o meu boi a outras
pessoas? Vejo que conheceis o segredo desse estranho animal. Não
tenho que censurar-me dessa revelação. Vou levá-lo
para longe, desta terra impura, para o lago de Sirbon, longe das crueldades
do rei de Tânis, O meu peixe e a minha serpente me defenderão;
não temo a ninguém quando sirvo a meu senhor.O sábio
Mambrés assim lhe retrucou:

— Faça-se a vontade do Senhor! Contanto que eu encontre o
nosso touro branco, não me importa nem o lago de Sirbon, nem o lago
de Moeris, nem o lago de Sodoma; só quero fazer-lhe bem, e a vós
igualmente. Mas por que me falastes de Daniel, de Ezequiel e de Jeremias?

— Ah! senhor – tornou a velha, – sabeis tão bem
quanto eu o interesse que eles têm neste grave assunto. Mas não
tenho tempo a perder; não quero ser enforcada; não quero que
o meu touro seja queimado, ou afogado, ou comido. Vou para o lago de Sirbon,
por Canope, com a minha serpente e o meu peixe. Adeus.

O touro a seguiu pensativo, depois de haver testemunhado ao bom Mambrés
o reconhecimento que lhe devia.

O sábio Mambrés achava-se numa cruel inquietação.
Bem sabia que Amásis, rei de Tânis, desesperado com a louca
paixão da sua filha pelo animal, e julgando-a enfeitiçada,
mandaria perseguir por toda parte o infeliz touro, e que este seria infalivelmente
queimado, como feiticeiro, na praça pública de Tânis,
ou entregue ao peixe de Jonas, ou queimado, ou servido à mesa. Queria,
por qualquer preço, poupar esse desgosto à princesa.

Escreveu uma carta ao grão-sacerdote de Mênfis, seu amigo,
em caracteres sagrados, e em papel do Egito, que ainda não estava
em uso. Eis, textualmente, o que dizia a carta:

Luz do mundo, lugar-tenente de Isis, de Osiris e de Hórus, chefe
dos circuncisos, ó vos cujo altar se eleva, como é de justiça,
acima de todos os tronos, acabo de saber que é morto vosso deus,
o boi Ápis. Tenho outro a vosso dispor. Vinde depressa, com os vossos
sacerdotes, reconhecê-lo, adorá-lo, e conduzi-lo ao estábulo
de vosso templo. Que Isis, Osiris e Hórus vos tenham na sua santa
e digna guarda; e a vós senhores sacerdotes de Mênfis, na sua
santa guarda!

Vosso afeiçoado amigo

MAMBRÉS

Fez quatro duplicatas dessa carta, por medo de algum acidente, e encerrou-os
em estojos do mais rijo ébano. Chamando depois os quatro portadores
que destinava para essa mensagem (eram a jumenta, o cão, o corvo
e a pomba), disse à jumenta:

— Sei com que fidelidade serviste a meu confrade Balaão;
serve-me agora da mesma forma. Não há onocrótalo que
te iguale na corrida; vai, minha amiga, entrega a minha carta em mão
própria e regressa logo.

— Como servi a Balaão – respondeu a jumenta, –
servirei a monsenhor: vou e volto.

O sábio lhe pôs o estojo de ébano na boca e ela partiu
como um raio.

Mandou depois chamar o cão de Tobias e disse-lhe: – Cão
fiel, e mais veloz na corrida do que Aquiles dos pés rápidos,
eu sei o que fizeste por Tobias, filho de Tobias, quando tu e o anjo Rafael
o acompanhaste a de Nínive a Ragés, na Média, e de
Ragés a Nínive, e quando ele trouxe a seu pai dez talentos
(8) que o escravo Tobias pai emprestara ao escravo Gabelus; pois aqueles
escravos eram muito ricos.

Entrega a seu destinatário esta carta minha, que é mais
preciosa do que dez talentos de prata.

— Senhor – respondeu-lhe o cão, – se eu segui
outrora o mensageiro Rafael, posso igualmente desincumbir-me de vosso recado.
Mambrés lhe pôs a carta na boca. E falou da mesma forma à
pomba. Esta lhe respondeu:

Senhor, se eu trouxe um ramo para a arca, igualmente trarei resposta à
vossa carta.

Tomou a carta no bico. E os três, num instante, perderam-se de vista.
Depois disse ele ao corvo:

— Sei que alimentaste o grande profeta Elias (9), quando ele estava
oculto junto ao Cárites, tão famoso em toda a terra. Todos
os dias tu lhe levavas bom pão e galinhas gordas; só te peço
que leves esta carta a Mênfis.

O corvo respondeu-lhe nos seguintes termos:

— É verdade, senhor, que eu levava diariamente comida ao
grande profeta Elias, o tesbita, a quem vi subir na atmosfera sobre um carro
de fogo puxado por quatro cavalos de fogo, embora não seja esse o
costume; mas eu sempre ficava cm metade do almoço para mim. Estou
disposto a levar vossa carta, contanto que me assegureis duas boas refeições
por dia e que meu serviço seja pago à vista, adiantadamente.

Mambrés, fulo de raiva, disse ao animal:

— Que glutão e velhaco me saíste! Não me admira
que Apolo, de branco que eras como um cisne, te haja tornado negro como
uma toupeira, quando, nas planícies de Tessália, traíste
a bela Corônis, infeliz mãe de Esculápio. Dize-me uma
coisa: comias diariamente lombo de vaca e frangos, durante os dez meses
em que estiveste na arca?

— Senhor, nós ali passávamos muito bem – retrucou
o corvo. – Serviam assado duas vezes por dia a todos os voláteis
da minha espécie, que só vivem de caça, como abutres,
milhafres, águias, bútios, duques, gaviões, falcões,
corujas, e à inumerável multidão das aves de rapina.
Com muito maior profusão guarneciam a mesa dos leões, dos
leopardos, dos tigres, das panteras, das onças, das hienas, dos lobos,
doa ursos, das raposas, das fuinhas, e de todos os quadrúpedes carnívoros.
Havia na arca oito pessoas importantes, e as únicas que então
existiam no mundo, incessantemente ocupadas com a nossa mesa e a limpeza
das nossas privadas, a saber: Noé e sua mulher, que não tinham
mais de seiscentos anos, e seus três filhos com as respectivas esposas.
Era um gosto ver com que cuidado, com que asseio, os nossos oito criados
atendiam a mais de quatro mil comensais do mais voraz apetite, sem contar
o prodigioso trabalho que exigiam outras dez a doze mil criaturas, desde
o elefante e a girafa aos bichos de seda e às moscas. O que me espanta
é que o nosso despenseiro Noé seja desconhecido de todas as
nações de que ele é o tronco; mas isso pouco me importa.
Já estive em festa semelhante (10) com o rei Xisutra da Trácia.
Essas coisas acontecem de tempos em tempos para edificação
dos corvos. Numa palavra, quero passar bem e ser muito bem pago, em dinheiro
à vista.

O sábio Mambrés desistiu de entregar sua carta a um animal
tão difícil de contentar e tão tagarela. – Separaram-se
muito descontentes um com o outro.

Era preciso no entanto saber o que era feito do belo touro e não
perder a pista da velha e da serpente. Mambrés ordenou a criados
inteligentes e fiéis que os seguissem; quanto a ele, avançou
de liteira para as margens do Nilo, sempre absorto em suas reflexões.

Como pode ser (dizia consigo) que essa serpente domine quase toda a terra,
como ela própria alardeia e tantos eruditos confessam, e no entanto
obedeça a uma velha? Como se explica que seja às vezes convocada
para o conselho das alturas, quando vive a rastejar na terra? Por que, por
sua única virtude, entra diariamente no corpo das pessoas, de onde
tantos sábios procuram desalojá-la com palavras. Enfim, como
passa, entre um pequeno povo da vizinhança, por haver perdido o gênero
humano, e como é que o gênero humano nada sabe a esse respeito?
Estou muito velho, estudei durante a vida inteira, e vejo nisso uma porção
de incompatibilidades que não posso conciliar. Não saberia
explicar o que aconteceu a mim mesmo, nem as grandes coisas que fiz outrora,
nem aquelas de que fui testemunha. Pensando bem, começo a suspeitar
que este mundo subsiste à custa de contradições: Rerum
concordia discors, como outrora dizia na sua língua o meu velho mestre
Zoroastro.

Enquanto se achava mergulhado nessa metafísica obscura, como o
é toda metafísica, um barqueiro, cantando uma canção
de taberna, fez atracar à margem um pequeno barco. Dele saíram
três graves personagens, semivestidos de trapos sujos, mas que conservavam,
sob aquela indumentária de miséria, o ar mais augusto e majestoso
do mundo. Eram Daniel, Ezequiel e Jeremias.

CAPÍTULO SEXTO

De como Mambrés encontrou três profetas e lhes ofereceu
um bom almoço.

Esses três grandes homens, que tinham na face a luz profética,
reconheceram o sábio Mambrés como um de seus confrades, pelos
poucos raios dessa mesma luz que ainda lhe restavam, e prosternaram-se diante
do seu palanquim. Mambrés também os reconheceu como profetas,
mais pela sua indumentária do que pelos raios que partiam daquelas
augustas cabeças. Desconfiou que vinham saber notícias do
touro branco; e, usando da sua prudência ordinária, desceu
da viatura e avançou alguns passos ao encontro deles, com um misto
de polidez e dignidade. Fê-los erguerem-se, mandou armar tendas e
preparar um almoço, de que julgava muito necessitados os três
profetas.

Mandou convidar a velha, que se achava a uns quinhentos passos. Ela compareceu,
sempre trazendo a cabresto o touro branco.

Serviram duas sopas, uma de caranguejo, outra à la reine; as entradas
consistiram de uma torta de língua de carpa, de fígados de
lota e sôlha de frangos com pistache, de pombinhos com trufas e azeitonas,
de dois perus com molho de lagosta, cogumelos e morchelas e uma chipolata.
Os assados eram constituídos de faisões, perdizes, gelinotas,
codornizes e hortulanas, com quatro saladas. No meio havia um centro-de-mesa
do melhor gosto. Nada foi mais delicado que o entremets; nada mais magnífico,
mais brilhante e engenhoso que a sobremesa.

De resto, o discreto Mambrés tivera o máximo cuidado de
que não houvesse naquela refeição, nem cozidos, nem
lombo, nem língua, nem palato de boi, nem ubres de vaca, de medo
que o infortunado monarca, assistindo de longe ao almoço fosse pensar
que o insultavam.

Esse grande e infeliz príncipe pastava perto da tenda. Nunca sentiu
tão cruelmente a fatal revolução que por sete anos
inteiros o tinha privado do trono.

— Ai! – suspirava ele, – esse Daniel, que me transformou
em touro, e essa feiticeira, que me guarda, gozam o melhor passadio do mundo;
e eu, o soberano da Ásia, vejo-me reduzido a comer capim e a beber
água!

Beberam; à farta, vinho de Engaddi, de Tadmor e de Chiraz. Quando
ficaram um pouco tocados, os profetas e a pitonisa puseram-se a falar com
mais franqueza do que durante os primeiros pratos.

— Confesso – disse Daniel – que não passava tão
bem quando me achava na cova dos leões.

— Como! Puseram-vos na cova dos leões?! – exclamou
Mambrés. – E como não fostes devorado?

— Senhor – respondeu Daniel, – bem sabeis que os leões
nunca devoram profetas.

— Quanto a mim – disse Jeremias, – passei toda a vida
a morrer de fome; nunca fiz uma boa refeição, a não
ser hoje. Se tivesse de renascer, e pudesse escolher a minha condição,
confesso que estimaria mil vezes mais ser inspetor geral, ou bispo em Babilônia,
que profeta em Jerusalém.

— Pois a mim – confessou Ezequiel, – ordenaram-me uma
vez que dormisse trezentos e noventa dias seguido sobre o lado esquerdo,
e que, durante todo esse tempo, comesse pão de cevada, de milho,
de ervilhaça, de fava e de trigo, coberto com… (11) nem ouso dizê-lo.
O mais que pude obter foi o privilégio de o cobrir apenas com bosta
de vaca. Confesso que a cozinha do senhor Mambrés é mais delicada.
Contudo, o ofício de profeta tem o seu lado bom: e a prova disso
é que há tanta gente que se mete a profeta.

— A propósito – disse Mambrés, – explicai-me
o que entendeis pelo vosso Oolla e o vosso Ooliba, que tanto se preocupavam
com cavalos e burros.

— Ah! – respondeu Ezequiel, – são flores de retórica.

Após essas expansões, Mambrés falou de negócios.
Perguntou aos três peregrinos por que tinham vindo aos Estados do
rei de Tânis. Daniel tomou a palavra: disse que o reino de Babilônia
ficara em polvorosa após o desaparecimento de Nabucodonosor; que
haviam perseguido todos os profetas, segundo o costume da Corte; que eles,
profetas, passavam a existência ora vendo reis a seus pés,
ora recebendo açoites; que enfim tinham sido obrigados a refugiar-se
no Egito, para não ser lapidados. Ezequiel e Jeremias também
falaram, longamente, num belíssimo estilo, que mal se podia compreender.
Quanto à pitonisa, trazia sempre o seu animal de olho. O peixe de
Jonas mantinha-se no Nilo, defronte à tenda, e a serpente espairecia
sobre a relva. Depois do café, foram passear à margem do Nilo.
Então o touro branco, avistando os profetas seus inimigos, soltou
terríveis mugidos; lançou-se impetuosamente sobre eles, com
os cornos em riste; e, como os profetas nunca tiveram mais que pele e osso,
fatalmente os teria atravessado de um lado a outro, tirando-lhes a vida;
mas o Senhor das coisas, que vê tudo e a tudo remedeia, transformou-os
imediatamente em gralhas, e eles continuaram a falar como dantes.

A mesma coisa aconteceu depois às Piérides, de tal modo
a fábula imita a história.

Esse, novo incidente provocava novas reflexões no espírito
do sábio Mambrés.

Eis, pois, (dizia ele consigo) três grandes profetas transformados
em gralhas; isto nos deve ensinar a não falar demais e a guardar
sempre uma conveniente discrição.

Concluía que a sabedoria vale mais que a eloqüência
e meditava profundamente, segundo o seu costume, quando um grande e terrível
espetáculo lhe ofuscou os olhos.

CAPÍTULO SÉTIMO

Chega o rei de Tânis. Sua filha e o touro vão ser sacrificados.

Turbilhões de poeira erguiam-se de sul a norte. Ouvia-se o ruído
dos tambores, das trombetas, dos pífanos, dos saltérios, das
citaras, dos sambucos; vários esquadrões com vários
batalhões avançavam, e Amásis, rei de Tânis,
vinha à sua frente, num cavalo coberto de um xairel escarlate recamado
a ouro; e os arautos gritavam:

— “Que apanhem o touro branco, que o amarrem, que o lancem
ao Nilo, e que o dêem de comer ao peixe de Jonas: pois o rei meu senhor,
que é justo, quer vingar-se do touro branco, que enfeitiçou
a sua filha.”

O bom velho Mambrés fez mais reflexões do que nunca. Compreendeu
que o perverso corvo fora contar tudo ao rei e que a princesa corria o risco
de lhe cortarem o pescoço. Disse então à serpente:

— Corre a consolar a bela Amaside; dize-lhe que não tema
coisa alguma, haja o que houver, e conta-lhe histórias distrair suas
penas, pois as histórias sempre divertem as moças, e é
com histórias que a gente vence na vida .

Depois prosternou-se diante de Amásis, rei de Tânis, e disse-lhe:

— Ó rei! que vivas para sempre. O touro branco deve ser sacrificado,
pois Vossa Majestade tem sempre razão, mas o Senhor das coisas disse:
Esse touro só deve ser comido pelo peixe de Jonas depois que Mênfis
houver encontrado um deus para colocar no lugar do seu deus que é
morto. Então sereis vingado, e vossa filha exorcismada, pois ela
está possessa. Tendes bastante religião para não obedecer
às ordens do Senhor das coisas.

Amásis, rei de Tânis, ficou pensativo; depois disse:

— É morto o boi Ápis; que Deus lhe tenha a alma! Quando
acreditais que se possa achar outro boi para reinar sobre fecundo Egito?

— Sire – disse Mambrés, – não vos peço
mais que oito dias.

O rei, que era muito devoto, disse:

— Concedo-os, e quero permanecer aqui esses oito dias; após
o que, sacrificarei o sedutor de minha filha.

E mandou vir suas tendas, seus cozinheiros, seus músicos, e permaneceu
oito dias naquele local, como está escrito em Manethon.

A velha desesperava-se por ver que o touro a que guardava não tinha
mais que oito dias de vida. Todas as noites, fazia ela aparecerem fantasmas
ao rei, para o desviar de seu cruel desígnio. Mas o rei, pela manhã,
não se lembrava mais dos fantasmas que vira à noite, da mesma
forma que Nabucodonosor esquecera os seus sonhos.

CAPÍTULO OITAVO

De como a serpente contou histórias à princesa, para
a consolar.

E a serpente contava histórias à bela Amaside, para acalmar
seus sofrimentos. Dizia-lhe como curara outrora um povo inteiro da mordedura
de certas pequenas cobras, apenas mostrando-se na extremidade de um bastão.
Narrava-lhe as conquistas do herói que fez tão belo contraste
com Anfião, arquiteto de Tebas, na Beócia. Esse Anfião
fazia amontoarem-se as pedras de cantaria ao som do violino: bastava-lhe
um rigodão ou um minuete para construir uma cidade; mas o outro as
destruía ao som de uma corneta de chifre; mandou enforcar trinta
e um poderosos reis num cantão de dezesseis léguas quadradas;
fez chover grandes pedras do céu sobre um batalhão de inimigos
que lhe fugiam; e, tendo-os assim exterminado, fez parar o sol e a lua em
pleno meio-dia para os exterminar de novo entre Gabaon e Aialon, no caminho
de Bethhoron, a exemplo de Baco que, na sua viagem às Índias,
mandara parar o sob e a lua. A prudência que deve ter toda serpente
não lhe permitiu falar à bela Amaside do poderoso bastardo
Jefté, que cortou o pescoço à filha porque havia vencido
uma batalha; teria enchido de terror o coração da bela princesa;
mas contou-lhe as aventuras do grande Sansão, que matava mil filisteus
com uma queixada de burro, que atava trezentas raposas pela cauda, e que
tombou nos laços de uma rapariga menos bela, menos terna e menos
fiel que a encantadora Amaside.

Contava-lhe os desgraçados amores de Siquem e da amável
Dina, que tinha seis anos de idade, e os amores mais felizes de Booz e de
Ruth, os de Judá com a sua nora Tamar, os de Loth com as suas duas
filhas que não queriam que o mundo acabasse, os de Abraão
e de Jacob com suas criadas, os de Rubem com sua mãe, os de David
e Betsabé, os do grande rei Salomão, em suma, tudo quanto
pudesse dissipar as penas de uma bela princesa.

CAPÍTULO NONO

De como a serpente não a consolou.

Essas histórias me aborrecem – respondeu a bela Amaside,
que tinha inteligência e bom gosto. – Só servem para
ser comentadas entre os irlandeses por esse louco do Abbadie, ou entre os
velches por esse frasista do Houteville As histórias que podiam contar
à tataravó da tataravó da minha avó já
não servem para mim, que fui educada pelo sábio Mambrés
e que li o Entendimento Humano do filósofo egípcio chamado
Locke e a Matrona de Éfeso. Quero uma história que seja fundada
na verossimilhança e que não se assemelhe sempre a um sonho.
Desejo que não tenha nada de trivial nem de extravagante. Desejaria
sobretudo que, sob o véu da fábula, deixasse transparecer
aos olhos exercitados alguma fina verdade que escapa ao vulgo. Estou cansada
do sol e da lua de que uma velha dispõe a seu bel-prazer, das montanhas
que dançam, dos rios que remontam à sua fonte, e dos mortos
que ressuscitam; mas, quando essas tolices são escritas em estilo
empolado e ininteligível, ai sim, que me desgostam horrivelmente.
Bem compreendeis que uma pobre moça que receia ver seu amado engolido
por um grande peixe e ser ela própria decapitada pelo próprio
pai, tem muita necessidade de que a divirtam; mas tratai de divertir-me
conforme o meu gosto.

— Difícil coisa me ordenais – respondeu a serpente.
– Antigamente poderia eu fazer-vos passar alguns quartos de hora bastante
agradáveis; mas perdi há algum tempo a imaginação
e a memória. Ai! onde estão os tempos em que eu divertia as
moças? Vejamos no entanto se poderei lembrar-me de algum conto moral,
para vos ser agradável.

Há vinte e cinco mil anos, o rei Gnaof e a rainha Patra ocupavam
o trono da Tebas das cem portas. O rei Gnaof era muito belo, e a rainha
Patra ainda mais bela; mas não podiam ter filhos. O rei Gnaof instituiu
um prêmio para quem indicasse o melhor método de perpetuar
a raça real.

A Faculdade de Medicina e a Academia de Cirurgia fizeram excelentes tratados
sobre essa importante questão: nenhum vingou. Mandaram a rainha a
banhos; ela rezou novenas; deu muito dinheiro ao templo de Júpiter
Amon, de onde vem o sal amoníaco: tudo inútil. Afinal apresentou-se
ao rei um jovem sacerdote de vinte e cinco anos, que lhe disse: –
Sire, creio que sei fazer o exorcismo necessário para o que Vossa
Majestade deseja com tanto ardor. É preciso que eu fale em segredo
ao ouvido da senhora vossa esposa; e, se ela não se tornar fecunda,
consinto em ser enforcado. – Aceito a vossa proposta – disse
o rei Gnaof.

A rainha e o sacerdote ficaram juntos apenas durante um quarto de hora.
A rainha ficou grávida, e o rei quis mandar enforcar o sacerdote.

— Meu Deus! – exclamou a princesa, — sei no que dão
essas coisas: essa é uma história muito comum; direi até
que escandaliza o meu pudor. Contai-me qualquer fábula bem verdadeira,
bem averiguada e bem moral, de que nunca me tenham falado, para que eu termine
de me formar o espírito e o coração, como diz o professor
egípcio Linro.

— Eis aqui uma, Senhora – disse a bela serpente – e
que é das mais autênticas.

Havia três profetas, todos eles igualmente ambiciosos e aborrecidos
da sua condição. Sua loucura consistia em quererem ser reis;
pois de profeta a monarca não há mais que um passo, e o homem
aspira sempre a subir todos os degraus da escada da fortuna. Aliás,
os seus gostos e prazeres eram absolutamente diversos. O primeiro pregava
admiravelmente ante seus irmãos reunidos, que lhe batiam palmas;
o segundo era louco por música; e o terceiro amava apaixonadamente
as mulheres. O anjo Ituriel apresentou-se a eles, num dia em que estavam
à mesa e falavam sobre as doçuras do trono.

— O Senhor das coisas (disse-lhe o anjo) me envia para recompensar
vossa virtude. Não só haveis de reinar, mas satisfareis continuamente
as vossas paixões dominantes. A ti, primeiro profeta, faço-te
rei do Egito, e terás sempre reunido o conselho, que aplaudirá
tua eloqüência e tua sabedoria. Tu, segundo profeta, ocuparás
o trono da Pérsia, e ouvirás continuamente uma música
divina. E a ti, terceiro profeta, entrego o trono da Índia e uma
encantadora amante que jamais te abandonará.

O que teve em partilha o Egito começou por reunir seu conselho
privado, que era composto de duzentos sábios, apenas. Fez-lhes, segundo
a etiqueta, um longo discurso que foi muito aplaudido, e o monarca experimentou
a doce satisfação de embriagar-se de louvores que não
eram corrompidos pela lisonja.

Ao conselho privado sucedeu-se o conselho dos negócios estrangeiros.
Foi muito mais numeroso, e um novo discurso recebeu maiores louvores. O
mesmo aconteceu nos outros conselhos. Nada interrompia o prazer e a glória
do profeta rei do Egito. A fama da sua eloqüência encheu toda
a terra.

O profeta rei da Pérsia começou por mandar representar uma
ópera italiana, cujos coros eram cantados por mil e quinhentos eunucos.
Suas vozes lhe comoviam a alma até a medula dos ossos, onde ela reside.
A essa ópera sucedia uma outra, e a essa segunda uma terceira, sem
interrupção.

O rei da Índia encerrou-se com a sua amante, com quem desfrutou
uma volúpia perfeita. Considerava soberana ventura a necessidade
de a acariciar sempre, e lamentava a triste sorte de seus dois confrades,
um reduzido a estar sempre em conselho, e o outro sempre a ouvir ópera.

Cada qual, dias depois, ouviu pela janela uns lenhadores que saiam de
uma taverna para ir ao mato cortar lenha, e que enlaçavam as suas
doces amigas, que eles podiam mudar à vontade. Os nossos reis pediram
a Ituriel para interceder por eles junto ao Senhor das coisas, e que os
fizesse lenhadores.

— Não sei – respondeu a terna Amaside, – se o
Senhor das coisas lhes satisfez o pedido, e pouco me importa; mas o que
eu sei é que não pediria nada a ninguém se estivesse
encerrada a sós com o meu bem-amado, o meu querido Nabucodonosor.

As abóbadas do palácio ecoaram esse grande nome. No princípio
Amaside só pronunciara Na, em seguida Nabu, depois Nabuco, mas afinal
a paixão arrebatou-a, e ela pronunciou por inteiro o nome fatal apesar
do juramento que fizera ao rei seu pai. Todas as damas do palácio
repetiram Nabucodonosor e o vilão do corvo não deixou de ir
avisar ao rei. O rosto de Amásis, rei de Tânis, perturbou-se,
porque seu peito estava cheio de perturbação. E eis como a
serpente, o mais prudente e sutil dos animais, sempre fazia mal às
mulheres, supondo auxiliá-las.

Amásis, irado, mandou doze de seus alguazis lhe trazerem a filha,
os quais estão sempre prontos a executar todas as barbaridades que
o rei ordena, e que dão como motivo: “Nós somos pagos
para isso”.

CAPÍTULO DÉCIMO

De como quiseram cortar o pescoço à princesa, e de como
lho não cortaram.

Logo que a princesa chegou toda trêmula ao acampamento do rei seu
pai, disse-lhe este:

— Minha filha, bem sabeis que as princesas que desobedecem aos reis
seus pais são condenadas à morte, sem o que não poderia
um reino ser bem governado. Eu te proibira que proferisses o nome de teu
apaixonado Nabucodonosor, meu inimigo mortal, que me destronou há
quase sete anos, e que desapareceu da face da terra. Escolheste em seu lugar
um touro branco, e gritaste: “Nabucodonosor!” É justo
que eu te corte o pescoço.

— Que seja feita a vossa vontade, meu pai – respondeu a princesa.
– Mas concedei-me tempo para chorar a minha virgindade.

— É justo – disse o rei Amásis. – Essa
é uma lei assentada entre todos os príncipes esclarecidos
e prudentes. Concedo-te o dia inteiro para chorares a tua virgindade, pois
dizes que a tens. Amanhã, que é o oitavo dia do meu acampamento,
providenciarei para que o touro branco seja devorado pelo peixe e te cortarei
o pescoço às nove horas.

A bela Amaside foi pois chorar, ao longo do Nilo, com as suas damas palacianas,
tudo o que lhe restava da virgindade. O sábio Mambrés refletia
a seu lado, e contava as horas e os instantes.

— Como! meu caro Mambrés – disse-lhe ela, – mudaste
as águas do Nilo em sangue, segundo o costume, e não podes
mudar o coração de Amásis, meu pai, rei de Tânis!
Suportarás que ele me corte o pescoço amanhã de manhã
às nove horas? — Isso depende – respondeu o cogitabundo
Mambrés – da presteza de meus mensageiros.

No dia seguinte, logo que a sombra dos obeliscos e das pirâmides
marcaram sobre a terra a nona hora do dia, amarraram o touro branco para
jogá-lo ao peixe de Jonas e levaram ao rei o seu grande sabre.

— Ai! – gemia Nabucodonosor no fundo do seu coração,
– eu, o rei, sou boi há quase sete anos e, mal encontro a minha
bem-amada, sou devorado por um peixe!

Jamais o sábio Mambrés fizera tão profundas reflexões.

Estava engolfado nos seus tristes pensamentos quando avistou ao longe
tudo o que esperava. Vinha-se aproximando inumerável multidão.
As três imagens de Isis, de Osiris e de Hórus avançavam
juntas, sobre um andor de ouro e pedrarias carregadas por cem senadores
de Mênfis, e precedidas por cem raparigas tocando o sistro sagrado.
Quatro mil sacerdotes, com a cabeça raspada e coroada de flores,
vinham montados cada um num hipopótamo. Mais além, surgiam,
na mesma pompa, a ovelha de Tebas, o cão de Bubasta, o gato de Febe,
o crocodilo de Arsinoe, o bode de Mendés, e todos os deuses inferiores
do Egito, que vinham render homenagem ao grande boi, ao grande deus Apis,
tão poderoso quanto Isis, Osiris e Hórus juntos.

No meio de todos esses semideuses, quarenta sacerdotes carregavam um enorme
cesto cheio de cebolas sagradas, que não eram deuses, mas que muito
se lhes assemelhavam.

Nos dois flancos dessa fila de deuses seguidos de numerosa multidão,
marchavam quarenta mil guerreiros, de capacete, cimitarra à cinta,
carcaz a tiracolo e arco em punho.

Todos os sacerdotes cantavam em coro, com uma harmonia que elevava a alma
e a enternecia:

O nosso boi, nós o perdemos,

Outro mais belo ganharemos.

E, a cada pausa, ouviam-se ressoar os sistros, as castanholas, os pandeiros,
os saltérios, as cornamusas, as harpas e os sambucos.

CAPÍTULO UNDÉCIMO

De como a princesa desposou o seu boi.

Amásis, rei de Tânis, surpreso com aquele espetáculo,
não cortou o pescoço à filha: recolocou a cimitarra
na bainha. E Mambrés lhe disse:

— Grande rei! a ordem das coisas está mudada; é preciso
que Vossa Majestade dê o exemplo. Ó rei! desamarrai vós
mesmo sem tardança o touro branco, e sede o primeiro a adorá-lo.

Amásis obedeceu e prosternou-se com todo o seu povo. O grão-sacerdote
de Mênfis apresentou ao novo boi Ápis a primeira mancheia de
feno. A princesa Amaside prendia-lhe aos belos cornos festões de
rosas, de anêmonas, de rainúnculos, de tulipas, de cravos e
de jacintos. Tomava a liberdade de o beijar, mas com profundo respeito.
Os sacerdotes juncavam de palmas e flores o caminho por onde o conduziam
a Mênfis. E o sábio Mambrés, sempre a fazer reflexões,
dizia baixinho à sua amiga serpente:

— Daniel transformou esse homem em boi, e eu transformei esse boi
em Deus.

Regressavam a Mênfis na mesma ordem. O rei de Tânis, confuso,
seguia o cortejo. Ia a seu lado Mambrés, com o ar sereno e recolhido.
A velha marchava atônita e maravilhada; acompanhavam-na a serpente,
o cão, a jumenta, o corvo, a pomba e o bode emissário. O grande
peixe remontava o Nilo. Daniel, Ezequiel e Jeremias, transformados em gralhas,
fechavam o cortejo. Quando chegaram às fronteiras do reino, que não
eram muito distantes, o rei Amásis despediu-se do boi Ápis
e disse à filha:

— Minha filha, voltemos para nossos Estados, a fim de que eu te
corte o pescoço, tal como ficou resolvido em meu coração
real, porque pronunciaste o nome de Nabucodonosor, meu inimigo, que me destronou
há uns sete anos. Depois que um pai jura que há de cortar
o pescoço à filha, tem de cumprir o juramento, sem o que será
precipitado para sempre nos infernos, e eu não quero danar-me por
amor de ti.

A bela princesa respondeu nos seguintes termos ao rei Amásis:

— Ide cortar o pescoço de quem quiserdes, meu querido pai,
mas não o meu. Acho-me nas terras de Isis, de Osiris, de Hórus
e de Apis; não deixarei o meu belo touro branco; beijá-lo-ei
durante todo o caminho, até que tenha visto a sua apoteose no grande
estábulo da santa cidade de Mênfis: fraqueza perdoável
a uma jovem bem nascida.

Mal pronunciara ela tais palavras, quando o boi Apis exclamou:

— Querida Amaside, eu te amarei durante toda a minha vida. Desde
os quarenta mil anos que o vinham adorando, era a primeira vez que se ouvia
no Egito o boi Pis falar. “Os sete anos estão cumpridos!”
exclamaram a serpente e a jumenta, e as três gralhas repetiram: “Os
sete anos estão cumpridos!” Todos os sacerdotes do Egito ergueram
as mãos ao céu. Viu-se de súbito o rei perder as pernas
traseiras; as dianteiras transformaram-se em duas pernas humanas; dois belos
braços, carnudos, musculosos e brancos lhe brotaram dos ombros; seu
focinho de touro cedeu lugar ao rosto de um herói encantador; ele
tornou-se de novo o mais belo homem da terra, e disse:

— Prefiro ser esposo de Amaside a ser um deus. Eu sou Nabucodonosor,
rei dos reis.

Essa nova metamorfose espantou a todo o mundo, com exceção
do meditativo Mambrés. Mas o que a ninguém surpreendeu foi
Nabucodonosor desposar imediatamente a bela Amaside, em presença
daquela grande assembléia. Conservou o sogro no reino de Tânis
e instituiu belas subvenções para a jumenta, a serpente, o
cão, a pomba, e até para o corvo, as três gralhas e
o grande peixe, mostrando assim a todo o universo que tanto sabia perdoar
como triunfar. A velha obteve uma considerável pensão. O bode
emissário foi enviado, por um dia, para o deserto, a fim de que fossem
expiados todos os pecados antigos; depois disso lhe deram doze cabras, para
que se consolasse. O sábio Mambrés voltou a seu palácio
para entregar-se a reflexões. Nabucodonosor, depois de o ter abraçado,
começou a governar tranqüilamente o reino de Mênfis, o
de Babilônia, de Damasco, de Balbec, de Tiro, a Síria, a Ásia
Menor, a Cítia, as regiões de Chiraz, de Mosok, de Tubal,
de Madai, de Gog, de Magog, de Javan, a Sogdiana, a Bactriana, as Índias
e as ilhas.

Os povos dessa vasta monarquia gritavam todas as manhãs:

— Viva o grande rei Nabucodonosor, rei dos reis, que não
é mais boi!

— E desde então, todas as vezes em que o soberano (tendo
sido grosseiramente enganado pelos seus sátrapas, ou pelos seus magos,
ou pelos seus tesoureiros, ou pelas suas mulheres) reconhecia enfim o engano
e modificava o seu proceder, todos os babilônios costumavam ir gritar
à sua porta:

— Viva o nosso grande rei, que não é mais boi.

NOTAS

(1) – Querub, em caldeu e siríaco, significa “boi”.

(2) – Os brâmanes foram, com efeito, os primeiros que imaginaram
uma revolta no céu, e essa fábula serviu, muito tempo depois,
como esquema à história da guerra dos gigantes contra os deuses,
e a algumas outras histórias.

(3) – Primeiro livro dos Reis, cap. XXII, v. 21 e 22.

(4) – Toda a antigüidade empregava indiferentemente os termos
de boi e touro.

(5) – Dinastia significa propriamente poder. Neste sentido se pode
empregar tal palavra, apesar das cavilações de Larcher. Dinastia
vem do fenício dunast, e Larcher é um ignorante que não
sabe nem fenício, nem siríaco, nem copta.

(6) – Diz Tertuliano, no seu poema de Sodoma:

Dicitur et vivens alio sub corpore sexus

Munificos solito dispungere sanguine menses.

E Santo Irineu, liv. IV:

Per naturalia ea quae sunt consuetudinis feminae ostendens.

(7) – Daniel cap.V.

(8) – Vinte mil escudos de prata francesa, pelo câmbio atual
(1773).

(9) – Terceiro livro dos Reis, cap. XVII

(10) – Berósio, autor caldeu, refere com efeito ter acontecido
a mesma aventura ao rei Xisutra da Trácia: foi ainda mais maravilhosa,
pois a sua arca tinha cinco estádios de comprimento por dois de largura.
Travou-se grande discussão entre os sábios para destrinçar
qual dos dois era o mais antigo, se Xisutra ou Noé.

(11) – Ezequiel, cap. IV.

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