Poesias – Júlio Dinis

Júlio Dinis

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…quelle singuliére et triste impression
Produit un manuscritl Tout á l’heure, á ma table
Tout ce que j’écrivais me semblait admirable.
Maintenant, je ne sais — je n’ose y regarder .
Au moment du travail chaque nerf, chaque fibre
Tressaille comme un luth que Ton vient d’accorder
On n’écrit pas un mot qu e tout T’étre ne vibre.
(Soit dit sans vanité, c’est ce que Ton ressent) On ne travaille pas — on ecoute — on attend.
C’est comme un inconnu qui vous parle á voix basse. On rest quelque fois une nuit sur la place.
Sans faire un mouvement et sans se retourner.
On est comme un enfant dans sea habits de féte,
Qui criant de se salir et de se profanar.
Et puis et puis — enfin! — On a mal á la tete,
Quel étrange réveil ! Comme on se sent boiteux!
Comme on voit que Vulcain vient de tomber des éteux.

(Alfred de Musset — Premieres poésies)

Rien, à mon avis, de si insupportable que la lecture suivie d’un recueil de vers ; ils ne peuvent se lire que fort à batons rompus; cepen- dant en les reprenant et les quittant souvent, on les lit tout entiers et quelque foi on y trouve de très jolies choses.

Essais dans le goüt de ceux de Montagne, on les loisirs
d’un ministre d’État (pág. 388).

Nota do Autor. — Havia muito tempo que eu pensava isto mesmo em relação aos volumes de poesías.

PRIMEIRA PARTE

A MEU IRMÃO
(JOSÉ JOAQUIM GOMES COELHO)

Também tu, meu irmão, inda aos vinte anos, Dizes ao mundo teu extremo adeus!
Deixas-me só e partes! os arcanos
Vais da vida sondar aos pés de Deus?

Inda há bem pouco aspirações ridentes, Despertadas ao sol da juventude,
Te apontavam futuros resplendentes
De mil glórias, de amor e de virtude.

Há pouco em devaneios tão risonhos, Cantavas em sentida poesia
As meigas ilusões, dourados sonhos
Que te adejavam sempre à fantasia.

Há pouco tu julgavas do horizonte
Ver dum belo porvir sorrir-te a aurora,
Bem como a áurea luz c’roando o monte,
Do Sol preced e a chama animadora.

Tudo isso era ilusão, simples quimera, Que aos vinte anos sonhamos acordados; Curta página a sorte te escrevera
No grande livro incógnito dos fados

E enquanto descuidado te entregavas
Aos sonhos da exaltada fantasia,
Sob a florea vereda que trilhavas
A morte, a fria morte, se escondia!

Tu viste uma por uma emurchecerem
As mais viçosas flores da tua vida;
E as esperanças seu verdor perderem
Com a aridez da existência desflorida.

E a vida te pareceu áspero deserto, Assim desguarnecida de ilusões,
De laços materiais cedo liberto
Remontaste às celestes regiões.

Não te lamento, irmão; a tua sorte, Ao que padece, inveja só produz;
Porque às trevas finais da hora da morte
Seguem-se anos sem fim de imensa luz.

Eras justo, no Céu gozas a palma,
Que ao mundo, aqui debalde pedirias,
E os anjos acolheram a tua alma
Num coro de suaves harmonias.

Mas eu, que te amei, pra quem tu eras
Mais que irmão, mais que pai, mais que amigo,
Eu, a quem desde infante ofereceras,
Pra suprir o de mãe fraterno abrigo.

Mais infeliz fui eu ; junto a meu lado Vago está o lugar que abandonaste. Vivo só, com as saudades do passado, Do tempo que de encantos povoaste.

Nesta acerba aridez do meu presente
Recordo-me da vida que passou,
E bem vejo que a sorte fatalmente
Na vida do infortúnio me lançou.

Como a do nauta desditosa sorte,
Que o mar arrosta em tormentosa viagem,
E viu nas ondas que enfurece a morte
Sucumbir todo o resto da equipagem;

Tal o destino meu; entrei no mundo
E saudei-o com hinos de alegria;
Nos êxtases dum júbilo profundo,
O dom da vida a Deus agradecia.

Em ambiente de amor desabrocharam
Na infância as flores da existência minha.
Amor de pai, de mãe, de irmãos, douraram
A amena senda, que ante mim eu tinha.

E depois… ai, irmão! que acerbas dores Juntos sofremos! Murchas, ressequidas, Desfolharam-se as mais viçosas flores, Ceifou a dura morte aquelas vidas.

O belo céu, que nos sorriu na infância, Em brev e se mostrou turbado e triste; A terna mãe pedira a outra estância
A paz, que neste mundo não existe.

E ai daquele, que no alvor da vida Perdeu pra sempre maternais afagos, Ai, que bem cedo a vê ser consumida Por mil anelos, mil desejos vagos.

Ai, bem cedo o sentimos! Separados
Do sol que a infância em luz nos envolvia,
Quais estioladas plantas, assombrados,
A fronte inda infantil, já nos pendia.

E assim viveste! e quando a idade ardente
De mil aspirações te enchia o peito,
Olhaste, e vendo a isolação somente,
Cansado, te deitaste em frio leito.

E eu, em vão no ataúde me curvava, Em vão hei procurado a tua campa;
A morte de mistérios te falava,
Mas nos lábios do morto o dedo estampa.

Em vão te perguntei: Nessa morada
Outros fúlgidos sonhos imaginas?
Ao sair da vida deparaste o nada?
Ou acordaste em regiões divinas?

Mudo ficaste. Os ventos perpassaram, Soltando queixas no volver das folhas, E teus lábios imóveis não falaram,
Nem sequer o irmão saudoso olhas.

Meu Deus! permite que através da lousa
Possa ele ouvir a minha voz ainda,
E desse leito, onde afinal repousa,
Me diga: A vida neste pó não finda;

Me diga: A crença que na leda infância
Aprendemos da mãe é verdadeira;
Há outra vida, há uma outra estância,
Tão feliz, quanto esta é passageira;

Que se encontram os entes mais queridos,
E em eterno amplexo a Deus se humilham;
Oue os prazeres em sonhos concebidos
Só há no espaço onde as estrelas brilham.

E então, ó Senhor, com a fé mais pura
Eu ansiarei pelo supremo instante
Em que, livre da humana desventura,
Demandar tua estância radiante.

Deixa que o amigo ao amigo só revele Os segredos que a morte lhe confia, Esta incerteza… em vão a fé repele,
A dúvida cruel continuo a cria.

Porque negas, Senhor, ao peregrino
Que vai cumprindo só esta romagem ,
Um raio ao menos do saber divino,
Que lhe brade na dúvida: Coragem !?

Porque não ha-de a lousa funerária Erguer-se à voz saudosa da amizade, Para falar à alma solitária
Que anela por saber toda a verdade ?

Porquê?… Mas, Deus, perdoa! eu creio! eu creio! No seu leito de morte o conheci:
Sim, nesse instante de tormentos cheio, No peito a voz da crença bem ouvi!

E por isso prostrei-me de joelhos, E os lábios murmuravam a oração,
E cri então no Deus dos Evangelhos, E a dúvida deixou-me o coração.

Repousa, irmão, à sombra do cipreste; Não repousar na terra é desventura. Dorme no mundo e acorda à luz celeste, Cruzando o limiar da sepultura.

Dezembro de 1859.

Nota do Autor. – Duvidar da verdade desta poesia, era duvidar dos meus senti.
mentos mais puros, dos meus mais queridos afectos e nesse caso, não sei de palavras
que me pudessem justificar.

A MORTE DO POETA
(A memória de A. A. Soares de Passos)

Calou-se a lira! E a criação nos coros
De menos uma voz aos céus revoa!
Na imensa harpa, em que o universo entoa
Seus cânticos, de menos uma corda!
Que foi? que nota falta às harmonias?
Que foi? que mão deixou quebrar a lira?
O poeta morreu, o canto expira,
Cessam seus hinos do sepulcro à borda !

Morreu o teu cantor, ó Armamento! Teu sacerdote ardente, ó poesia!
Ó Deus, ó Pátria, a última agonia
Gelou a voz que hosanas vos sagrara!
Crente inspirado, os brados do entusiasmo
Não lhe esfriou dos homens a indiferença,
E a venenosa taça da descrença
Dos generosos lábios arrojara!

O poeta morreu! E o Sol e os astros Que ele cantou, e a abóbada celeste De lutuosas trevas se não veste;
E tu, ó Pátria, que ele amava tanto, Tu dormes inda esse gelado sono ?! Não te acorda o seu último gemido? Sente-lhe a morte, se não hás sentido De animação e glória o eterno canto

Mas não; os homens vêem pasmar o féretro, Vêem do sepulcro alevantar-se a lousa,
E, olhando a nobre fronte que repousa,
— Quem é ? perguntam com cruel frieza.
— É um poeta, lhes respondem poucos. Um poeta! palavra incompreensível!
Por ele a multidão passa insensível,
E a campa desampara com presteza.

E um poeta morreu! listas palavras
Nada vos dizem, povos, que as ouvistes?
Não as há mais solenes nem mais tristes.
Oh! nelas reflecti um só momento!
Não sabeis o que diz a morte do homem
Que se encaminha à campa que lhe ergueram
Seguido apenas dos que ainda veneram
O culto da poesia e pensamento?

Não ouvis esse dobre, que o lamenta? É como a voz do século, que brada :
— «Chorai, ó multidões, que na cruzada
Da civilização vos alistastes,
Chorai, um dos soldados que hà caído,
Deus lhe dera a bandeira que vos guia,
O estandarte da idéia, a poesia;
Mas vós na heróica empresa o abandonastes !

«Lamenta, ó liberdade, o teu apóstolo! Amor, o coração que te entendia!
Tu, Pátria, o filho que melhor podia
Entre as nações da terra engrandecer-te!
Religião, ai! chora o sacerdote,
Que, entoando no templo os sacros hinos,
Chamara os povos aos altares divinos
E cultos sem iguais pudera erguer-te!»

E tu, 0 mundo, o vês quase indiferente! Curva a cabeça ante essa campa aberta, Ajoelha-te, e a fronte descoberta,
Venera as cinzas que deixou na Terra; Os restos são da mais violenta chama, Que o fogo do Céu no mundo ateia;
A chama ardente de inspirada idéia, Fogo que a mente do poeta encerra I

Verte, oh! verte uma lágrima na tumba; Uma lágrima só. Outros desejam
Soberbos mausoléus onde se vejam Fulgir os nomes seus em letras d’ouro; Ele não. Flores e lágrimas, eis tudo!
Eis o diadema a que o poeta aspira; Porque lho negas? Que paixão te inspirar Delas fizeste, ó mundo, o teu tesouro?

Ai, não ; umas e outras as desprezas: As flores procuram as campinas,
Porque a turba, ao passar, calca as boninas, E o sopro das cidades as murchava.
As lágrimas, as flores do sentimento, Não as diviso já nos olhos do homem, Ou das paixões as lavas as consomem,
Ou morto é o sentimento que as gerava.

Fazes bem em passar, mundo, se ignoras
Desta cena a solene majestade,
Impassível ficar era impiedade.
Parte, vai; a indiferença era um insulto.
Oh! mil vezes mais grato o isolamento…
Mas não, o isolamento não existe:
Junto da campa se reúne triste
Longo cortejo de lutuoso vulto.

Ei-los; do vasto templo se avizinham, Trazem no rosto a dor, que os consome. Esses veneram do poeta o nome,
Do féretro ao passar, curvam a fronte, Respeitai esse pranto, que é sentido; Longe, indiferentes, que o lugar é santo! Os que entenderam seu sublime canto, Saúdam-no ao sumir-se no horizonte I

Silêncio! A Pátria do seu sono acorda! Sono talvez, que precursor da morte, Do filho só lamenta a triste sorte,
3eme saudosa com magoado acento! Ai, nos seus dias de passada glória,
De mãe o desespero a voz lhe erguera, E, em seu clamor, às praias estendera
Das nações mais longínquas o alto alento.

Mas hoje, já de forças exaurida,
É fraca a sua voz ante essa tumba;
Do peito vem, porém já não retumba
Nos ecos das nações mais poderosas.
Apenas sua irmã, a mais vizinha,
Que quase a mesma linguagem fala,
Compassiva parece lamentá-la,
Ouvindo suas queixas dolorosas.

Poeta, dorme pois: a tua campa
Não ficará sem lágrimas nem flores,
As liras soltam fúnebres clamores
E os ventos reproduzem suas queixas.
Dorme, dorme, poeta, que teu sono
A turba inquietaria com seus passos;
Mas qual o infante nos maternos braços,
Dorme ao som dessas lânguidas endeixas.

Dorme, dorme em sossego… mas, silêncio! Para que solto a voz? Cala-te ó lira!
Se o gênio da poesia não te inspira, Para que o seu cultor lamentas triste? Diante da mudez deste sepulcro
Teus ais de dor, ó coração, suspende;
Vê em silêncio o Sol, que ao ocaso pende
Como em silêncio no zénite o viste.


Março de 1860.

Nota do Autor. – Obedeci a um impulso irresistível escrevendo esta poesia.
Admirei Soares de Passos durante a vida, como poeta, no seu livro; como homem, nas
sempre lembradas noites em que, entre poucos mas escolhidos amigos, víamos em sua
casa correrem as horas como instantes e passarem as longas noites de Inverno como um
sonho delicioso e aprazível. Foi então que pudemos apreciar a pureza daquele caracter,
aquela rigidez de princípios, que nesta época de indiferentismo e egoísta especulação,
causava assombro a quantos o ouviam. Por isso, quando morreu, senti-o. como todos que
prezavam as letras pátrias e como todos que respeitam os caracteres elevados; mas senti-o
também, como ninguém, pela dor que a sua morte deixava no coração de seu irmão, o mais sincero, desinteressado e generoso amigo que nunca hei encontrado. Tudo isto me levou a lamentar a sua morte, temerária empresa de onde me não podia sair bem.

UMA RECORDAÇÃ O

Lembra-me ver-te inda infante, Quando nos campos corrias
Em folguedos palpitantes; Eras bela! e então sorrias.

Depois, na infância, eras inda, Junto ao cadáver rezavas
De tua mãe, com dor infinda; Eras bela! e então choravas.

Num baile vi-te valsando
Da juventude nos dias,
Todos de amor fascinando;
Eras bela! e então sorrias.

Dias depois encontrei-te; Nos céus os olhos fitavas;
Sem me veres contemplei-te; Eras bela! e então choravas.

Quando ao templo caminhando
Entre flores e alegrias,
De esposa a vida encetando,
Eras bela! e então sorrias.

Quando na campa do esposo
Com teu filho ajoelhavas,
Grupo inocente e saudoso!
Eras bela! e então choravas.

Num ataúde deitada
Eu te vi em breves dias,
Mimosa flor desfolhada!
Eras bela! e então sorrias.

Sorrindo, na vida entraste, Sorrindo deixaste a vida; Alguma flor que encontraste A espinhos a viste unida.

Sim, às vezes tu sorrias, E os sorrisos o que são?
Quase sempre profecias
Das penas do coração.

1857.

Nota do Autor. – Sorrisos e lágrimas andam muitas vezes acompanhados, uns
por os outros, na vida. Olhada por este lado. esta poesia é verdadeira. Alguma coisa me
podiam dizer as minhas recordações, para o provar, mas não seria absolutamente o que
escrevi. Neste ponto é ela mentirosa. É pecado de que me confesso arrependido.

ÉS BELA

Es bela, sim, quando, corando, foges
Dum beijo perseguida;
Ou quando cedes com mais pejo ainda,
Mas na luta vencida.

És bela, sim, quando, banhada em lágrimas, Soltas mimosas queixas;
Ou quando, comovida por maus prantos, Já ameigar-te deixas.

És bela, sim, à luz do Sol nascente
Regando tuas flores,
Ou com os olhos no ocaso e o pensamento
No país dos amores.

És bela sempre, e o mesmo fogo acendes
No coração do poeta;
És bela sempre, ó linda flor do prado,
Ó mimosa violeta,

Março de 1882.

Quem te disse o segred o destas lágrimas,
Pra assim me consolares?
Quem te disse que a dor que me angustiava
Cedia aos teus olhares?

Criança, onde aprendeste essa ciência, Ignorada de tantos?
Algum anjo do Céu é quem te inspira
Do conforto os encantos?

Oh! vem, vem junto a mim com teus sorrisos
Livrar-me destas trevas,
Rir-te do meu ar lúgubre, falar-me,
Vem, que só tu me enlevas.

Protegido por ti em círculo mágico, Desafio a tristeza,
Que onde a infância se mostra tudo folga,
Homens e natureza;

Pra ti, pra tua idade descuidosa
Semeou Deus as flores,
Deu-te o cantar das aves por cortejo, Deu-te o Céu por amores.

Vem, pois, os teus cabelos d’ouro puro
A pousar-me na fronte,
Como os raios do Sol cingindo as serras
Ao surgir no horizonte.

Vem, que junto de ti nem compreendo
Estes falsos tormentos;
Mensageira celeste, sê bem-vinda,
Longe meus pensamentos!

Quando, baixando a fronte, os olhos pousam
Em sorrisos de infantes,
Esquece-se o infortúnio, os risos voltam
E erguemo-nos radiantes.

Assim como nos rimos de teus ogos, Tu ris das nossas penas ;
Ambos somos crianças, variando
Nosso brinquedo apenas.

Tu criaste uma vida imaginária
Que cede à fantasia.
Nós co’a vida real também brincamos,
Porém sem alegria.

3 de Junho de 1862.

SAUDADE E ESPERANÇA

Ai não foi sonho, não. Era na infância, Duas visões queridas
Ao lado do meu berço me sorriam
De uma amorosa auréola cingidas;

Eu sorria também. Vendo-as tão belas, Por anjos as tomava,
E acordando dum sonho de inocência, Inda a mais gratos sonhos me entregava.

E repetindo as orações ferventes, Que à voz da mãe ouvia,
Olhava-as, e julgava que era a elas
Que tão sentidas preces dirigia.

Quando as via, tão jovens e já tristes, Olhar a mãe chorando,
Eu cismava, e o infortúnio pressentia, Vago ainda, os meus dias ameaçando.

E o infortúnio chegou. Era uma noite, E eu ainda infante
Despertei aos gemidos dolorosos
Das órfãs junto à mãe agonizante!

Transportaram-me ao leito aonde a triste
Lutara na .agonia,
Era tarde! A primeira vez na vida,
Ao beijá-la, suas bênçãos não colhia I

E as lágrimas, tao fluentes na infância
Meus olhos não banhavam!
Então senti que os dias de ventura
Com ela para sempre me deixavam.

Depois os mesmos anjos, que na infância
No berço me sorriam,
Em vez das vestes cândidas d’outrora,
Agora negras túnicas cingiam.

Nunca mais como a flor na Primavera
Eu as vi radiantes;
Mas sim como no Outono ela se ostenta,
Pendendo as alvas pétalas fragrantes.

Pobres flores! tão cedo sem abrigo, Dia a dia enlanguescem
Como as que adornam virginais capelas, E ao fim dum baile pelo chão fenecem.

Como cândidas pombas surpreendidas
Por furiosa tormenta,
Voam amedrontadas a acolher-se
Junto à mãe que no seio as acalenta,

Assim elas também amedrontadas
Das tormentas da vida
Voam pro Céu, e no materno seio
Procuram contra elas fiel guarida.

Um dia eu vi-me só! junto ao meu berço
Os anjos não sorriam,
Nem sequer suas lágrimas saudosas
Uma a uma nas faces me caíam.

Passaram tempos, e da infância aos dias
Seguiu-se uma outra idade ;
Mas nem o tempo, nem paixões mais vivas
Me extinguiram a imagem da saudade.

Ainda as vejo a ambas, quando às vezes
Em sonhadas delicias,
Recordo o tempo da passada infância,
Recordo seu amor, suas carícias.

Outras vezes, mais vago o pensamento, Num só anjo as confunde;
E então adoro essa visão querida,
Que n’aima ignotas sensações me infunde.

Se a imagem delas é como o crepúsculo
Dum dia já passado,
A nova imagem será ainda aurora
Dum dia ardentemente desejado?

Meu Deus! a flor dos campos também murcha
Vive um momento apenas;
Mas depois nova quadra veste os prados
De outro manto de rosas e açucenas.

Também as flores de infantil idade
Eu vi cair sem vida:
Deixa que a nova quadra dos vinte anos
Se adorne de uma túnica florida.

VISÃO

Não és real. Para o seres Não foras, ó flor, tão bela; Se à mente Deus te revela, Não te cria o mundo, não.
Vegetas no peito do homem, Mas não há viçoso prado
Onde te beije embriagado
O sopro da viração.

MORENA

Morena, morena
Dos olhos castanhos,
Quem te deu morena,
Encantos tamanhos?

Encantos tamanhos Não vi nunca assim. Morena, morena
Tem pena de mim.

Morena, morena
Dos olhos rasgados,
Teus olhos, morena,
São os meus pecados.

São os meus pecados Uns olhos assim. Morena, morena
Tem pena de mim.

Morena, morena Dos olhos galantes, Teus olhos morena
São dois diamantes.

São dois diamantes Olhando-me assim. Morena, morena Tem pena de mim.

Morena, morena
Dos olhos morenos,
O olhar desses olhos
Concede-me ao menos.

Concede-me ao menos Não sejas assim. Morena, morena
Tem pena de mim.


De As Pupilas do Sr. Reitor.

MOMENTO DECISIVO

O Sol descia ao poente,
E florente estava o prado ;
Ouviam-se auras suaves
E das aves o trinado.

Tu sentada ao pé da fonte O horizonte contemplavas Vias o Sol declinando
E, corando, suspiravas.

E depois… seria acaso?
Do ocaso a vista ergueste,
E, ao olhar-me, mais coraste,
Suspiraste e emudeceste.

Foi bem rápido o momento Dum alento repentino; Porém nesse olhar de fogo Eu li logo o meu destino.

Nesse olhar, no rubor vivo, No furtivo respirar…
Diz, tu mesma nessas letras
Não soletras já: amar?

1860.

Nota do Autor. – Não é muito fácil esta espécie de leitura, o sentido das letras
é diferente, conforme os desejos do que as pretende decifrar e daí mil decepções e amar
gos desenganos.
Eu não sei se li bem ou mal; mas é certo que depois disso, o livro parece fechado…
nao descubro caracteres novos.

CULTO SECRETO

Ouve, lânguida virgem das cidades, A paixão que me inspiraste.
Curvada, como a flor em vaso d’ouro, Tu, bela, me encantaste.

Eu vi-te assim pendida; a estrela d’alva
Ao surgir do oriente
Não nos envia mais saudosos raios
Do seu leito fulgente.

A viração da tarde, mais amena
No bosque, não murmura;
A alva açucena, que o vergel enfeita,
Não tem a cor mais pura.

Eu vi-te, e desde então sempre em meus sonhos
Surges, e magoada
Pareces ver as vagas desta vida
Na margem debruçada

Vejo-te então ainda, e pensativa, Os lábios entreabertos,
Murmurando em sentida linguagem
Pensamentos incertos.

Vejo-te ainda, as lágrimas ferventes
Dos olhos rebentando,
E, ao correrem nas faces, indiscretas,
Segredos revelando.

Que segredo é o teu, lãnguida virgem, Ideal dos meus amores?
Que imaginas nos sonhos dessas noites
Tão cheias de fulgores?

Que mistério procuras no ocidente
Ao desmaiar do dia?
Ou que visão esperas, quando a aurora
Com rosas se anuncia?

Que oculto sentimento reprimido
Te faz ansiar o seio?
Que íntima dor, que pensamento acerbo?
Que indefinido enleio?

Olha, se o coração te ped e amores, Virgem, não chores, canta,
Para ti é que são as flores da vida
E a luz que nos encanta.

Tu, sim, podes amar; nas sacras aras
Dessa chama inquieta,
Ateia o sacro fogo com que inflamas
O coração do poeta.

Tu sim, podes amar; mas eu… se ao ver-te
Interrogo o futuro,
Uma voz me murmura: «Adora, mártir,
Adora, e morre obscuro».

ENFIM !

Enfim! enfim! encontrei-te. Luz há tanto suspirada! Raiaste, aurora fadada
Dum longo dia de amor! Resplandece, Sol brilhante Da primavera da vida!
Surge, surge, estrela querida, Que tão grato é teu fulgorl

Se soubesses como ansioso Aguardava este momento, Que há tanto no pensamento Me aprazia em conceber!
Se soubesses, minha esp’rança, Que anelar ardente e incerto Na aridez deste deserto
Me fazia esperar e crer !

Ai, bem-vinda, mensageira
Duma indizível ventura!
A uma vida de amargura,
Ridente imagem, põe fim!
Para longe esta tristeza,
Vejo enfim formosos dias!
Oh! dá-me, dá-me alegrias,
Oue me cansa a vida assim!

Qual a terra desflorida
Pelas mãos do Inverno agreste,
Que de gelos a reveste,
E lhe afrouxa a luz do Sol;
Cinge as vestes de verdura,
Toda de amor palpitante,
Qual virgem junto do amante
Da Primavera ao arrebol;

Tal minh’alma envolta em trevas
Dum passado de incerteza,
Rasga o seu véu de tristeza,
Ao ver-te surgir, amor !
E num hino de alegria
Saúda a risonha aurora,
Que deslumbrante a namora
Com fatídico fulgor,

Bela flor, fragrante rosa
Nos agros campos da vida,
Entre as outras escondida,
Como pudeste florir!
Como os vendavais furiosos
Das tempestades humanas,
Em suas fúrias insanas
Te não puderam ferir?

Foi condão do Céu por certo, Foi talvez aura celeste
Que, ao nasceres, recebeste
E em ti se difundiu;
E, forte, desceste ao mundo,
Brilhando de luz divina;
Essa luz que me fascina,
Que nas trevas me sorriu I

Também, tu, bela, aspiravas A um futuro vago ainda? Também uma dita infinda
Te pedia o coração?
Ai, conta-me os teus segredos,
Os teus sonhos, teus anelos,
Conta-me, quero sabê-los:
Teus sentimentos meus são.

Em que te vi meiga e bela, Quando tu, formosa estrela, Te elevaste no meu céu, Uma voz misteriosa,
Prendendo-te em doce enleio, Segredar-te ao ouvido veio:
«Ama! teu dia nasceu!»

Diz-me, se ao viver inquieto Por não sei que oculta chama Não sucede, quando se ama, Uma existência de paz?
Se no horizonte sombrio, Novo astro fulgurando,
Longínquas praias mostrando, Venturas ver-te não faz?

Conta-me a vida passada Antes do mágico instante Em que te vi radiante Meiga visão a sorrir.
Diz-me os teus jogos da infância
As lágrimas que verteste,
As penas que padeceste,
Sem eu as poder sentir.

Tu choravas! quando longe
Eu de ti, talvez sorria!
Tu choravas! e eu podia
Tão indiferente viver!
Oh! não! mística influência,
Que dois entes num só liga,
Embora longe, os obriga
Um com outro a padecer.

E é esse, esse o segredo
Da tristeza indefinida,
Que em certas horas da vida
Nos oprime o coração;
Esse o segredo das lágrimas, Que de olhos virgíneos correm,
E dos suspiros que morrem
Nas asas da viração

Mas deixemos o passado, Suas penas, suas dores, Deixemos auras melhores
Nos manda o porvir de além, Qual no meio do oceano,
Após longínqua viagem,
Ao nauta fragrante aragem
Da Pátria falar-lhe vem.

Em que mago encantamento Esta dita a alma me embebe ! Só quem o sente o concebe; Não se exprime este prazer! Bem hajas, cândida virgem! Bem hajas tu, que no seio
De aspirações todo cheio,
O amor fizeste nascer!
*
Adeus pois, passado triste, Longas horas de amargura; Adeus, paz da sepultura, Sem encantos para mim; Adeus sofrimentos vagos, Adeus, febris pensamentos;
Esperam-me outros momentos, Que o amor surgiu enfim.

Acorda pois, ó minh’alma, Chegou enfim tua festa;
E qual se adorna a floresta Da manhã ao grato alvor, Veste também tuas galas,
O teu mais florido manto E leva um sentido canto Ao sol da vida, ao amor

Julho de 1859.

Nota do Autor. —Em vez de —enfim — antes lhe devera chamar — rebate falso. A ser mais de que um sonho, não passou de um desejo. Não se deve portanto tirar ilações arrojadas porque seriam falsas.

METAMORFOSE

Repara: — a imóvel crisálida
Já se agitou inquieta,
Cedo, rasgando a mortalha,
Ressurgirá borboleta.

Que misteriosa influência
A metamorfose opera!
Um raio de Sol, um sopro
Ao passar, a vida gera.

Assim minh’alma, inda ontem
Crisálida entorpecida,
Já hoje treme, e amanhã
Voará cheia de vida.

Tu olhaste — e do letargo Mago influxo me desperta; Surjo ao amor, surjo à vida,
À luz de uma aurora incerta.


1 de Maio de 1860.

Onde vai teu pensamento
Quando, os olhos elevando,
Segues das aves ligeiras
Esse harmonioso bando?

Que te dizem os gorjeios Dessas pobres foragidas, Que vão procurar ao longe
Outras selvas mais floridas?

Acaso temes, como elas,
As nuvens negras, pesadas,
E os ventos que descem rápidos
Das altas serras nevadas?

Acaso invejas as asas
Desses plumosos viajantes?
Acaso aspiras à vida
Noutros climas mais distantes?

Não, querida, não receies
Do Inverno os duros rigores;
Quando do Sol falta a chama
Brilha a chama dos amores

Não são para nós mais lúcidas
As noites que o próprio dia?
Que onde a luz do céu falece,
A paixão é que alumia.

E o gelo, que as pobres aves Na relva prostra sem vida, Fundir-se-á ao fogo ardente
Da nossa paixão, querida.


18 de Outubro de 1862.

A CABREIRA

Andava a pobre cabreira O seu rebanho a guardar Desde que rompia o dia Até a noite fechar.

De pequenina nos montes Não tivera outro brincar. Nas canseiras do trabalho Seus dias vira passar.

Sentada no alto da serra
Pôs-se a cabreira a chorar.
Porque chorava a cabreira
Ides agora escutar:

«Ai! que triste a sina minha, Ai! que triste o meu penar, Que não sei d e pai nem mãe Nem de irmãos a quem amar,

«De pequenina nos montes Nunca tive outro brincar. Nas canseiras do trabalho Meus dias vejo passar.»

Mas, ao desviar seus olhos Viu coisa que a fez pasmar: Uma cabra toda branca
Se lhe fora aos pés deitar I

Branca toda, como a neve, Que nem se deixa fitar, Coberta de finas sedas
Que era coisa singular!

Nunca a tinha visto ante3
No seu rebanho a pastar,
E foi a fazer-lhe festa…
E foi para a afagar…

Eis vai a cabra fugindo Pelos vales sem parar ; Ia a cabreira atrás dela
Mas não a pôde alcançar.

E andaram assim três dias
E três noites, sempre a andar!
Até que às portas de uns paços
Afinal foram parar.

Chorava o’ rei e a rainha Há dez anos, sem cessar, Que lhe roubaram a filha Numa noite de luar.

E dez anos são passados
Sem mais dela ouvir falar;
Eis chega a cabreira à porta
A porta se foi sentar.

«Ai que bonita cabreira
Que lá em baixo vejo estar!
E uma cabra toda branca
Que nem se deixa fitar.

«Meus criados e escudeiros, Ide a cabreira buscar.»
Isto dizia a rainha,
Este foi o seu mandar.

Foram buscar a cabreira
E a cabra de a acompanhar
Até às salas do paço
Onde o rei a viu chegar.

«Pela minha c’roa de ouro Eu quero agora apostar, Que é esta a filha roubada Numa noite de luar.»

Milagre! quem tal diria! Quem tal pudera contar! A cabrinha toda branca Ali se pôs a falar:

«Esta é a filha roubada
Numa noite de luar,
Andou dez anos no monte
Quem nasceu para reinar!»

Que alegrias vão nos paços! E que festas sem cessar!
A filha há tanto perdida
No trono os pais vão sentar.

E vêm damas pra vesti-la
E vêm damas pra calçar;
E as mais prendadas de todas
Para as trancas lhe enfeitar.

Vão procurar a cabrinha… Ninguém a pôde encontrar; Mas um anjo de asas brancas Viram aos Céus a voar.

De As Pupilas do Sr Reitor.

NUVENS

Vês as nuvens no azul do firmamento
De brancuras ofuscantes,
Como impelidas por tufão violento
Se formam em legiões extravagantes?

Olha; acolá, reunidas uma a uma, Um trono simbolizam;
Ali, rasgam-se em flocos, como a espuma
Das vagas crespas que em areais deslizam.

Mais longe, vês? as massas vaporosas
Informe monstro imitam,
E além, tingidas pela cor das rosas,
Paços que ocultas mágicas habitam.

Agora, vastos pórticos, ogivas, E um longo peristilo,
Colunas, capiteis, arcadas vivas,
Arquitecturas de ignorado estilo.

Logo por esses plainos dispersadas
Pelo sopro do vento,
Como níveos cordeiros às manadas
Sucedem-se velozes cento a cento:

Ora parecem gigantescas serras
Com seus eternos gelos;
Ora planícies de nevadas terras,
E das águas boreais os caramelos:

Ali nos representam funda gruta
E rochas diamantinas;
Acolá, mil exércitos em luta;
Mais além, mil cidades em ruinas.

E sabes tu no que essas formas vagas
Perto de nós se tornam!
Dize, quando no prado a sós divagas,
Tens visto as gotas que o vergel adornam?

Pois são esses os tronos deslumbrantes, A ogiva preciosa,
Os fustes das colunas de diamantes, E encantados palácios cor-de-rosa.

Esse vasto espectáculo dos ares, Essas mágicas cenas,
A que presos estão nossos olhares,
Vê-los ao perto? são orvalho apenas.

Bem assim os projectos, áureos sonhos
Que na vida sonhamos;
Belos fantasmas, fúlgidos, risonhos,
Que nos céus do futuro divisamos.

Pois que junto de nós, essas imagens, Essa visão querida,
Desvanecem-se, pérfidas miragens, Fundem-se como a neve derretida;

Esp’rança no porvir, nuvens formosas, Em que assim te deleitas,
Com esse orvalho que humedece as rosas
Hás-de vê-las em lágrimas desfeitas.

4 de Setembro de 1862

LAVA OCULTA

Não me entendes? não suspeitas
Que esta frieza é fingida?
Não vês, .cega, que envolvida Está nela ardente paixão?
Quando teus olhares evito, Quando julgas que medito,
Não compreendes que me agito
Em profunda inquietação?

E julgas isto frieza?
Julgas que o meu peito é gelo? Se o que sinto não revelo,
Julgas que isso é não sentir? Ai, louca, que assim te iludes;
Um momento que me estudes, Verás que tortnentas rudes
Me estão no peito a brarnir.

Se a mão te cinjo à partida, Não a sentes vacilante?
Diz, não vês como inconstante Busco e evito o teu olhar? Chamas
a isto indiferença? Não é, não, repara, pensa;
E o amor que se condensa
Para mais me devorar.

E tu não sentes… nem podes ; Pra que os olhos vejam tanto, E, sob
indiferente manto, Descubram violento amor,
Não, não basta olhar somente; O que o peito não pressente,
Só quando fora rebente
Pode aos olhos ter valor…

E o teu coração… outrora Esperei que me entendesse; Julguei
que nunca esquecesse O que na infância nasceu,
E com os olhos no futuro Caminhei firme e seguro, E nunca este culto puro
No peito me adormeceu-

Mas tu… Essa flor singela
Da afeição que nos unia
Se definhava e morria
Desde que outra flor surgiu; Cenas da infância, folguedos, Seus sorrisos,
seus segredos, Passam, como nos olmedos,
A folha que ao chão caiu.

E por isso as esqueceste;
Eu não; que então já no seio
Ocultava com receio
Mais do que infantil amor. Quando, só, em ti pensava, E só contigo
me achava, Não te lembras? já corava, Nem pra mais tinha valor.

Cresci, e esta idéia sempre
Afagava na lembrança;
Sempre, sempre esta esperança, Sempre, sempre esta ilusão!
Ilusão, sim, era apenas; Todas as passadas cenas E recordações
amenas Riscou-tas nova paixão.

Foi uma noite. Esta idéia Inda a conservo bem viva, Cada dia mais
se aviva
Pra mais me fazer sentir; Desde então já não me iludo,
Foi uma noite; vi tudo,
E fiquei gelado, mudo,
Sem esperanças, sem porvir I

Um outro estranho, que importa? Te falava com meiguice
E às palavras que te disse
Tu sorriste e ele sorriu, E, desumana, não vias
Que o amigo de outros dias, De cada vez que sorrias, Cruéis angústias
sentiu!

Ai, noite de insónia aquela! Tu caiçaras o passado,
Nem talvez nunca pensado
Havias nele como eu ;
Quis esquecer-te, vingar-me, A outro amor entregar-me, Mas só consegui
cansar-me; Este amor permaneceu.

Até quando? Só Deus sabe. Comprimido ele floresce, Mas vive,
mas não fenece,
Que já da infância ele vem;
Tu não vês, que uma outra chama
Há muito teu seio inflama, E quando deveras se ama,
Vê-se o amante e mais ninguém?

Bom é pois que não suspeites
Que esta frieza é mentida, Que não vejas que envolvida Oculta
ardente paixão.
Quando teus olhares evito, Quando julgas que medito, Nunca saibas que me agito
Em profunda inquietação.

Abril de 1860.

Nota do Autor. – Esta poesia é um enigma, que eu não decifrarei. Isto quase
eqüi. vale a dizei que ficará sendo um enigma para todos e para sempre talvez.
Foi escrita o ano passado e esquecida. Encontrei-a, fiz-lhe algumas modificações
. inclui-a nesta colecção. É em grande parte imaginária.

PRESSÁGIO

Era em florente Junho; A Lua se ostentava Serena em seu brilhar; A brisa
na alameda Saudosa suspirava
Nas folhas ao passar.

Contigo, eu só no bosque
Ouvia-te, tao triste,
Soltar, mais triste, a voz;
Falavas magoada
Da paz que só existe
Da fria morte após.

E os olhos lacrimosos
Fitavas nos espaços
Da mais amena cor,
Como se desejasses
Romper terrenos laços
E o azul do céu transpor.

Calado eu te fitava,
Porém ao ver-te o pranto
Banhar-te a face assim,
Não sei que dor pungente,
Não sei que mago encanto,
Me fez falar-te enfim.

E disse-te: «Não chores, Na Terra é tudo flores, No Céu
é tudo luz.
Escuta os sons do bosque, Respira os seus odores,
O aroma que seduz.»

Olhaste-me e sorriste; E quanto não diziam Então os olhos
teus! Quão íntima tristeza,
Que dor não reflectiam
Quando os erguestes aos céus!

E eu ficava mudo, Olhando-te inquieto,
Sem bem te compreender; E um ramo de cipreste,
O arbusto teu dilecto, Vieste-me oferecer.

«Bem vês, da campa à beira Também a flor rebenta»,
Disseste-me a sorrir,
«Também no chão da morte De seiva se alimenta, Também
a vês florir.

«Quem vir esta campina
Virente e matizada
Viçar à luz do Sol,
Dirá, que neste manto
Se envolve a fria ossada
Do morto em seu lençol!»

De novo emudeceste,
E eu, triste, contemplei-te:
Mas não, não te entendi,
Parecia que na mágoa
Achavas um deleite,
Qual nunca igual senti!

Mas cedo teus perfumes
Da Terra aos Céus subiram,
E soube tudo então!
Era uma voz profética
Das que o poeta inspiram,
Falando ao coração.

No meio dos festejos Da estiva natureza, Sentias só a dor,
Vias a campa aberta
E em sua profundeza
Sumir-se a esp’rança em flor.

E hoje, sim, compreendo Tua conversa triste, Quando comigo a sós…
E porque a entende agora? Não sei. Talvez existe
Em mim a mesma voz.

Oh! sim, ele me mostre
No meio destas galas,
Que vejo em torno de mim,
A terra húmida e fria,
Do cemitério as valas
E o esquecimento enfim.

Abril de 1860

Nota do Autor. – Esta é filha de um momento de spleen. Pareceu-me verdadeira
então, hoje não. Estes pensamentos lúgubres acometem-me de quando em quando,
mas passam. Estando dominado por eles, acho nesta produção um valor que. depois,
debalde lhe procuro. Não é decerto no primeiro caso que melhor a avalio no
que ela vale. Não há ninguém que não tenha os seus momentos de hipocondria,
muitos com menos razões do que eu. Desculpem-me portanto os efeitos de um
desses momentos.

JUNT O A UMA CAMPA

Que seria de ti, se desfolhada
Não fosses, linda flor, no chão da morte?
Quem pode ler na página cerrada
Do livro do futuro a ignota sorte?

Ninguém; e quantas vezes iludidos
Choramos o que é núncio de ventura?
Quantas, na esperança de prazeres mentidos,
Vemos luz onde tudo é noite escura?

Que seria de ti? Não sei. Se escuto
A voz do coração, fala de amores.
Mas quem me diz que a dor com que hoje luto
Não findará com o aroma doutras flores?

Que me diz que minh’alma, que palpita
Ao recordar-te, ó virgem desditosa,
Não viria inda um dia a ser precita
Ao fogo da paixão mais poderosa?

Quem sane ? Tudo muda: o peito do homem
Como a ondulante face do oceano;
A um volvem as paixões que nos consomem,
A outro as fúrias do vento vário e insano

Tudo muda! E meu seio não se exime Da eterna lei que reg e este universo:
Bênção ou maldição. Ela se exprime
Sem cessar na existência desde o berço.

E então se no porvir o ardente culto Que eu te votava, ó sombra
idolatrada, Tivesse de findar, antes sepulto
Seja todo este amor na urna gelada.

Foste feliz talvez, talvez na vida
Tivesses de provar amarga taça,
E hoje à sombra da campa, adormecida
Colhes a prec e e o pranto de quem passa.

Vivias para amar, morreste amando, Morreste rodeada do perfume
Da divindade, e virgem, não ansiando
No pungir aflitivo do ciúme.

Morreste amando e amada. Sobre o leito
Onde tombaste inânime, sentiste
A sacra chama que me enchia o peito
E na extrema agonia inda sorriste.

Não devo lamentar-te, não. Podias
Sentir na vida dores que ignoraste;
E eu mesmo, a quem do túmulo sorrias,
Talvez te desse a coroa, que enjeitaste;

A coroa do martírio, que a não colhe Quem verga, como tu,
tão cedo à terra; Mas sim quem vive e ao túmulo se colhe
Depois de transes de porfiada guerra.

Eu li na descrição de antigas viagens
O destino de um náufrago, que os ventos
Sobre parcéis e incógnitas voragens
De longe arremessaram violentos.

Ia a desfalecer, no húmido abismo Buscando o último leito e
o eterno olvido, Mas no esforço do extremo paroxismo
Firmou-se às rochas de um penhasco erguido.

E salvou-se! prostrado sobre as
Ao Eterno com júbilo agradece ;
E, olhando ao longe as furiosas vagas,
Do destino dos mais se compadece.

Mas bem cedo na estéril penedia Colheu o triste amargo desengano,
Vendo seguir-se um dia após um dia, E tudo só na vastidão
do oceano.

Era a mudez da campa! Em passos lentos
Se aproximava a descarnada fome;
Longos dias de horríficos tormentos
A preceder-lhe um túmulo sem nome!

Até que enfim o pobre, quase louco, Pra fugir à tortura que
o devora,
Nas próprias ondas, que evitara há pouco, Busca o refúgio,
o passamento, agora!

Nos naufrágios da vida, quantas vezes Nós, pobres nautas,
o furor das vagas Vencemos, pra mais ríspidos reveses Irmos sofrer
em solitárias plagas!

Feliz o que sucumbe na tormenta;
Um instante de angústia… e o eterno sono
O livra do martírio que experimenta
O que sofre na Terra o abandono.

Feliz pois tu, que cedo desfolhada Caíste, ó bela flor, no
chão da morte; Quem sabe o que na página cerrada Do livro seu
te reservava a sorte?

20 de Dezembro de 1861

A ESPERANÇA

No passado, uma saudade, No presente, uma amargura, E no futuro, uma esp’rança
De imaginária ventura;

Eis no que consiste a vida Imposta por Deus ao homem. Nisto se consomem
dias!
Nisto anos se consomem!

Saudade é flor sem perfumes
Quando ainda verdejante,
Mas à medida que murcha,
Ai, que aroma inebriante!

A amargura é duro espinho Que nas carnes penetrando, Faz desesperar
da vida,
Suas flores definhando.

A esperança é frouxa luz
Que nas trevas nos fulgura;
Vendo-a, ousados caminhamos:
Mas, ai, que bem pouco dura;

Quantos mais passos andados Na agra senda desta vida, Mais amargo é
o presente,
E a saudade mais sentida.

Mas a esperança não; os anos Fazem-lhe perde r o brilho; Caem-lhe
uma a uma as folhas Da existência pelo trilho.

A velhice nada espera,
Nada da esperança lhe dura…
Mas não, cansada da vida,
Tem a paz da sepultura.

Tem a morada fulgente
Da inteligência divina;
Tem as regiões sagradas,
Que eterno sol ilumina.

Bendito sejas, meu Deus! Que nos dás na vida inteira
A filha dos céus, a esperança, Por suave companheira.

Ela nos enxuga o pranto
O pranto alegre e amargoso;
Não a acusemos de pérfida,
Esperar já é um gozo.

A mente, esperando, concebe, Concepção sempre iludida, Prazeres
talvez entrevistos
Nas cenas duma outra vida.

Esperemos, pois, companheiros
Desta fadigosa viagem!
Se a esp’rança é a imagem do gozo,
Adoremos essa imagem.

E cruzando este oceano Com os olhos no porvir. Esqueçamos no presente
Seu horroroso bramir.

E quando enfim, já cansados, Reclinarmos nossa fronte.
Que a esperança nos revele
Mais dilatado horizonte.

Agosto de 1859.

ILUDAMO-NOS

Desenganos do passado, Não servireis ao porvir? Sempre a perde r
ilusões Sempre ilusões a sentir!

Não mais, não mais; nesta vida
Ainda esperar é loucura.
Sofrer: eis nosso destino!
Sonhar: eis toda a ventura!

Soframos pois… Não, sonhemos, Criando mundos ideais,
E com mentidos prazeres
Curemos penas reais.

Ilusões, sede bem-vindas, Povoai-me o pensamento: Convosco, sim,
a ventura Se goza per um momento.

O ANJO DA GUARDA DA INFÂNCIA

Desci dor celestes coros, Por Deus mandada escutar
Da infância as queixas e os choros, Para lhos ir confiar.

Desci. Na terra, nos mares
Tanta miséria encontrei,
Que os meus magoados olhares
De terra e mar desviei.

Desci. E tantos gemidos, Tão dolorosos ouvil
Que, turbados os sentidos, Quis recuar… mas desci.

Nesta colheita de dores Pelo mundo todo andei, No pranto dos pecadores As
minhas vestes molhei.

Vagueando dias e dias
Chegara à Judeia enfim,
Quando um clamor de agonias
Veio de longe até mim.

O Sol, o Sol inflamado Destas terras orientais Tinha no disco afogueado
Não sei que estranhos sinais.

Soavam menos distantes
Sinistros brados de dor
Choros de mães e de infantes
Cantos de morte e terror.

Vi anjos de asas nevadas
Em bandos subir ao Céu,
Quais pombas amedrontadas
Fugindo à voz de escarcéu.

«Onde ides? Quem vos persegue ? A que tormentos fugis?»
Um que triste o bando segue, Estas palavras me diz:

Somos as almas de infantes Mortos em guerra feroz; Inda das mães
delirantes Nos chama a sentida voz.

« Só a materna saudade
Nossa carreira detém,
Embora no Céu, quem há-de
Esquecer o amor de mãe?»

Disse e o semblante formoso
Com as asas encobriu,
E ao bando silencioso
Silencioso se uniu.

Eu segui. Na ampla cidade
Aterrada penetrei…
Ai, da fera humanidade
Os meus olhos desviei!

Que cena! Corre nas praças
Sanguinária multidão
Como nuvem de desgraças
Semeando a desolação.

Caem por terra, sem vida, Tenras crianças às mil,
E uma turba enfurecida
Corre à matança, febril.

As mães pálidas, chorosas, Suplicam, pedem em vão!
Nessas feras sanguinosas Não palpita um coração.

Outros tentam, em delírio, Os seus filhos disputar
E com eles no martírio
Gostosas se vão juntar.

Sobre a terra ensangüentada
Eu soluçando, ajoelhei,
E de intensa dor magoada,
A Deus piedade implorei.

Findava a prece, e uma estrela
No horizonte despontou,
Pura, cintilante, ela
O caminho me traçou.

À humilde e escondida estância
Da venturosa Belém
Cheguei; vi um Deus na infância
Nos ternos braços da mãe.

Minha colheita de dores
Naquele berço depus,
Da humanidade aos rigores
Pedi remédio a Jesus.

No olhar do divino infante
Raiou luz e fulgor,
Foi a aurora radiante
Que anuncia um redentor

Publicados no romance A Morgadinha dos Canaviais,

HINO DA AMIZADE
(A meu primo e amigo José Joaquim Pinto
Coelho)

Amigo, concede que as notas da lira
Te sagre num dia a que tantos sorri;
Se a triste, saudosa, de mágoas suspira,
Soará d’esperanças agora por ti.

Escuta-a; se as vozes são fracas, afeita
Que ela é desde muito com os cantos da dor,
Seu débil tributo, seus hinos aceita
Qual tênue perfume de lânguida flor.

Os anos são marcos na senda da vida, Nos quais o viajante costuma
parar,
E os olhos volvendo na estrada corrida, As cenas passadas lhe apraz recordar.

Suspende um momento teus passos, suspende, Na santa romagem que cumpres
al,
E além, ao passado teus olhos estende, Além, ao passado, contempla-o
daqui.

Oh! pára, paremos, que as cenas doutrora, Tão ricas de encantos,
são minhas também; Pois juntos nos vimos da vida na aurora,
E juntos passamos os anos além.

Além,- ao mais longe que avistam teus olhos, Estende-os amigo; repara,
que vês?
Formosa campina de flores, sem abrolhos, Mais bela a distância, que
ao perto talvez.

Ai — não te lembras ? R#8212; correu-nos a vida, Qual linfa
tranqüila no prado em Abril,
De dia em folguedos a mente esquecida, De noite enlevada por sonhos aos mil.

Ai tempos de encantos, ai fúlgidas cenas
Volvidas com os anos chorados em vão;
Ai, quanto mais gratas não são tuas penas,
Que a própria ventura que as outras nos dão!

Paremos, amigo, paremos ainda
A olhar esta quadra tão longe de nós;
Que a luz que a ilumina bem cedo se finda,
Que os entes que a adornam deixaram-nos sós.

Tão “gratos nos eram da aurora os fulgores, Como o último
raio do dia a findar,
Que se uns ainda ao peito nos falam d’amores, Os outros saudades nos vem despertar.

Após esta parte da nossa jornada,
Tão bela e tão curta, lá se ergue uma cruz,
E eu, órfão mesquinho, na campa ignorada
Não pude ajoelhar-me, nem flores depus.

E as cinzas queridas… mas não, adiante, Perdoa, perdoa, se esqueço
o meu fim;
Ó lira, teus crepes arroja distante; Ó alma, tuas dores divulgas
assim?

Mas nesses instantes em que eu na orfandade
Aos ecos tão tristes falava da mãe,
Os laços ligando da nossa amizade,
As vestes de luto cingias também.

Porém nova quadra se segue. A corrente Da vida mais turva pra nós
se mostrou; Pequenos martírios que sofre o inocente De que hoje nos
rimos, o peito provou.

No meio de estranhos eu vi-me sozinho, E assim na carreira das letras entrei.
A mão que meus passos guiou com carinho
A morte roubou-ma, eu só caminhei.

Mas ainda então mesmo na vida de criança
A nossa amizade não pôde esfriar;
Nas horas votadas à grata folgança
De júbilo cheio te vinha encontrar.

Mais tarde a nós ambos na senda da vida Guiou-nos os passos benévola
mão. Recordas-te dele ? Da imagem querida,
Da imagem saudosa do amigo, do irmão?

Que tempo, que cenas passámos unidos! ” Prazeres, trabalhos,
leituras comuns!
Ai, quantas saudades dos tempos volvidos
Me restam no peito, remorsos nenhuns!

Aquela nobre alma, já perto da morte, Que negra adejava de si ao
redor,
Mais nobre por isso, mais bela, mais forte, Pra as lutas da vida nos dava
calor.

O Sol à florinha que adorna a colina, Já perto do ocaso não
nega o luzir; Sem ele os rigores da brisa ferina Faziam-lhe o sopro da vida
exaurir.

A estrada apontou-nos que afouto seguira, E onde tão firme marchar
sempre o vi,
Em nós verte o alento que a ele o inspira, E pára ao dizer-nos:
«Eu fico — parti!»

E a sombra seguindo do irmão, que lhe aponta, Fugenta de esperanças
a estrada do Céu,
A terra abandona, no empíreo desponta, E cedo para sempre de nós
se perdeu.

Ao ver-me sem ele sozinho na vida, Faltaram-me as forças, tentei
recuar,
Que a luz que me guiava, na campa sumida, Em trevas profundas deixou-me ficar.

Mas ainda de novo pra mim sua imagem, Surgindo da campa, me veio sorrir,
Alento infundir-me, bradar-me: «Coragem !» E eu, forte, sua obra
não quis destruir.

Por outro caminho seguiste, contudo
De espaços a espaços cingimos as mãos:
Nas lides da vida, nas lides do estudo,
Jamais esquecemos o nome de irmãos.

Mil vezes à sombra do denso arvoredo
Falávamos ambos do nosso porvir,
Dos tempos passados, do ignoto segredo
Que dentro do peito tentava florir.

Ao fim da carreira, que ansiado trilhava, Após mil fadigas enfim
te encontrei;
Mas antes, de novo a dor nos magoava: De um túmulo à beira contigo
chorei.

Aos mares da vida teu barco lançaste: Na margem parado, meu barco
sustei. É tempo! Partamos. Tu, forte, cruzaste
As ondas, e «Ao largo!» bradar escutei.

Mas lá que me espera ? nas vagas furiosas Veria afundar-se meu pobre
baixei; Vogando tão longe de praias formosas
Irá destruir-se num outro parcel?

Calai-vos, inquietos anelos dum peito, Que muito receia, por muito querer
;
Calai-vos, esp’ranças com que eu me deleito
Nas horas mais gratas dum triste viver.

Oh! deixa, deixemos tão longo horizonte, Que vago e obscuro para
todos ele é: Deixemo-lo, amigo, ‘té quando desponte, Esperemo-lo
fortes de esperança e de fé.

E a vista lancemos mais perto: no espaço
Bem curto em distância, de afectos maior,
Que vemos? Os entes, que um cândido laço
Reúne em família com santo fervor.

Nos rostos que anima fulgente alegria, Amor e ventura bem fácil se
lê;
E a idéia que é hoje de encantos um dia, O seio lhes enche de
júbilo. Vê.

Louvemos o Eterno, que assim te permite Provar duma taça tao pura
e sem fel; Saudemos o dia que aos rostos transmite Os gozos, que verte no
peito fiel.

Desviemos o rosto das nuvens passadas, Fechemos os olhos às trevas
por vir,
E as horas presentes, à paz consagradas, Gozemos; gozemos tão
belo existir.

E agora perdoa se as notas da lira
Num dia como este, que a tantos sorri,
As vezes, saudosa de mágoas, suspira,
Em vez de esperanças soar só por ti.

20 de Outubro de 1861

VOZ DE SIMPATIA

Ao despontares da amena juventude, De galas e de flores ornaste o seio. E
de mil sonhos de prazer no meio,
Com que o peito se ilude, Aguardaste o alvor do Sol fulgente,
Que a luz e vida ao coração dispensa, De amores ideais, na dita
imensa,
Deleitava a mente.

Ele surgiu! esse astro rutilante! Não;efêmera luz, que instantes
brilha, Porém cujo fulgor cedo se humilha,
Nasce e morre inconstante.
Surgiu! não como a chama das estrelas, Que em multidão infinda
o céu povoam, E pálidas o véu da noite coroam,
Quais lúcidas capelas;

Mas único brilhante, duradouro, Como o astro do dia, que surgindo, E
luminosas vagas difundindo
Raios de fulgente ouro, Dispersa na amplidão a imensa turba
Dos outros astros que no espaço giram, Enquanto eles no céu sua
luz admiram,
E nenhum o perturba.

Volveram anos, risos e fulgores
Da idade juvenil se desvanecem,
Mas não morre a afeição, mas não fenecem
Teus cândidos amores;
Não fenecem, não morrem; crescem antes, O sentimento e a razão
os gera,
Sentimento e a razão, que Deus vertera
No teu ser, abundantes.

Volveram anos… e afinal? Gozaste Essa ventura, esp’rança de teus
dias? Ai, não; em vez do cálix de alegrias,
O do travor provaste.
Traíram-te! e um frio esquecimento
O prêmio foi de teu amor constante I E a luz que te guiava fulgurante
Sumiu-se num momento.

E a dúvida não veio na tua alma
Negar dum Deus supremo a existência, Descrer dessa irrisória
providência,
Que aos maus concede a palma? Oh! não; curvaste a fronte angustiada,
Escondeste tuas lágrimas ardentes,
E mostraste-te aos olhos indiferentes
Vitima resignada.

Eles vêem em teus lábios o sorriso,
E julgam que provém do esquecimento 1
Cegos! vissem-te à luz do sentimento
Como eu te diviso.
Saberiam que angústia ele escondera, Que pungente amargura nele oculta!
Saberiam que a dor que mais avulta
Não é a mais sincera.

Que mundo! Àquele que sua fé trairá, Os prazeres, os
gozos, a riqueza;
A ti saudade, isolação, tristeza!
E não é Deus mentira ?!
E o crime folga, e é vitima a inocência!… Não folga;
o Céu é justo, e o mau condena, Dá-lhe o remorso por
amarga pena,
E a ti a consciência.

35 de Abri] de 1860

Nota do Autor. – Se chegar aos olhos da pessoa a quem é dirigida, ela com.
preenderá.

O DESTINO DA LIRA

Cantar o amor é destino Quando o seio pulsa ardente, Quando no nosso
horizonte Surge a imagem resplendente Dum sol que a aridez da vida Transforma
em jardim florente.

Mas quando a chama se extingue, Que no peito nos ardia,
A lira não canta amores, Nem os sonha a fantasia; Então natureza
e pátria
Só nos inspiram poesia.

Depois, os anos declinam
Como o Sol no azul dos céus ;
E quando a noite da vida
Já nos estende seus véus,
Todos os cantos da lira
São consagrados a Deus!

12 de Agosto de 1860

À luz do Sol nascente Resplendem pelas selvas Mil pérolas nas
relvas, Nos ares mil rubis; .
No azul do céu nevoado Não brilham as estrelas, Mas são
imagens delas As flores do tapiz.

As aves perpassando
Agitam a ramagem,
E a perfumada aragem
Nos bosques se introduz;
Aí mil vozes falam
Ao céu sereno e mudo;
No bosque é sombra tudo,
No céu é tudo luz.

Ridente madrugada,
Hora em que do oriente
Com o gládio refulgente
O arcanjo da luz vem;
E as trevas se dissipam,
Com as trevas a tristeza,
Que em toda a natureza
A noite eivado tem.

Oh! vinde, vinde ao prado
Que o orvalho inda humedece;
Ali tudo parece
À vida ressurgir.
Em vórtices contínuos,
Em doudejantes ,valsas
Elevam-se das balsas
Insectos a zumbir.

Subi do prado ao vértice
Da florida colina,
Então pela campina,
Os olhos prolongai
Ao longe, ao longe as vagas,
Lutando nos fraguedos;
Mais perto os arvoredos
Que o arroio banhar vai.

A tudo anima a esp’rança No monte e vale e praia; No céu Vésper
desmaia Ao matutino alvor.
O cântico das aves, Das flores o aroma
Nos diz: — O dia assoma I Hosana ao Criador!

1 de Julho de 1862

NOVA VÉNUS

Solta aos ventos as trancas douradas, Meiga filha das bordas do mar,
E no meio das vagas iradas
Solta aos ventos o alegre cantar.

Não, não temas as nuvens sombrias. Que uma a uma se elevam
d’além, Que rodeado d’amor e alegrias,
O teu céu dessas nuvens não tem.

Canta sempre ; de noite às estrelas, De manhã ao luzir do
arrebol,
Ao passarem no mar as procelas, Ao sorrir aos outeiros do sol.

Canta sempre, ó alcíone destas vagas, Nova filha da espuma
do mar,
Canta sempre, e eu sentado nas fragas, Voltarei para ouvir-te cantar.

28 de Fevereiro de 1863

Hoje, quando te vi, estavas cismando; Em que cismavas tu, virgem formosa,
Desmaiadas as faces cor-de-rosa,
E o seio, o gentil seio, inquieto arfando?

Em que cismavas tu? De quando em quando
Elevavas ao céu, triste, saudosa,
A vista amortecida, lacrimosa,
Para a baixar depois em gesto brando.

No chão jaziam murchas, desfolhadas,
As rosas, que ainda há pouco te toucavam,
Agora já por ti abandonadas.

Os últimos clarões do Sol douravam
As tuas belas tranças desatadas;
Diz, que íntimos anelos te turbavam?

DESESPERANÇA

Meu Deus, que destino!… viver isolado,
Sem ter quem no mundo me possa entender!
Não era esta a vida que tinha sonhado
Nos sonhos passados dum outro viver!

As feras, as aves, as flores, quanto existe, Se abrasam num terno, dulcíssimo
ardor! Só eu, solitário, viver sempre triste!
Viver ? — Não: que é vida, faltando-lhe o amor ?

É ermo entre gelos, é hórrida noite, Onde um só
astro, sequer, nem reluz!
Como hei-de, sem crenças onde a alma se açoite, Do Gólgota
ao cimo levar minha cruz ?!

O anseio, este fogo que lento me inflama
Não hei-de apagá-lo num gozo real?
E os vagos transportes que sente quem ama
Terá de abafá-los paixão mundanal?

Não ter seio amigo no qual eu repouse
A fronte cansada de ardente pensar,
Uma alma conforme com a minha, a quem ouse
Dizer quanto sinto no peito a pesar I

Ai! triste, que sorte! viver entre gelo, Sentindo atear-se cá dentro
um vulcão! Nutrir tanto afecto no peito, e perdê-lo!… Desejos
que abrasam, mantê-los em vão!

Meu Deus! Es injusto!… mas oh! se blasfemo, Perdoa, que a mente mal pensa
o que diz! Perdoa, perdoa-me, ó Ente supremo,
Concede-me ainda que eu seja feliz!

Oh! dá-me a ventura que em sonhos já tivel… Uma alma que
esfalma soubesse entender!
Um ente, se acaso na Terra ele vive,
Que possa este vácuo de amor preencher.

Que imenso tesouro d’afectos lhe dera ! Sorria-lhe a vida num éden
gentil!
Entre outros segredos então lhe dissera
Tais falas, cortadas por beijos aos mil!

Ai! foge, deixemos da vida mundana Seus vãos devaneios, seu fogo
falaz! Busquemos sozinhos deserta cabana, Aonde não turve ninguém
nossa paz!

Que imensos prazeres que lá nos esperam I Que ledo futuro que então
nos sorri!
Ali não há mágoas, que o peito laceram, Dos homens o
bafo não chega até ‘li!

Que vida, essa vida que então lá teremos
Tão rica d’afectos, de gozo sem fim!
Que ternos enlevos, que doces extremos,
Que belos os dias, passados assim!

D’esp’ranças e flores no quadro tão lindo No cimo do monte,
da aurora ao nascer, Iremos saudá-la, dizer-lhe: — Bem-vinda
Tu sejas, que à Terra dás luz e prazer!

Depois, vendo as aves com doce harmonia
Soltarem seus cantos no bosque além,
Na língua dos anjos, na maga poesia,
Aos Céus nossos hinos se elevam também;

Oremos ao Eterno, sagremos-lhe os cantos, Que d’alma espontâneos prorrompem
então! Depois resolvamos provar dos encantos
Da vida inefável que anima a solidão.

Da tarde ao crepúsc’lo, nos breves instantes
Dessa hora em que se unem as sombras e a luz,
Também nossas almas unidas e amantes
Anelem delícias que a noite conduz!

Ali, o murmúrio da rápida brisa
Banhada em perfumes, roubados à flor,
A linfa, que mansa no prado desliza,
Virão segredar-nos mil falas d’amor!

— Amor — repercutam os ecos da serra!
— Amor — lá das aves se escute na voz!
E as nuvens, as fontes, os bosques, a terra,
— Amor — só respirem em torno de nós!

— Amor — alta noite veremos escrito
Com letras douradas no livro de Deus!…
Presságio divino do gozo infinito,
Que um dia teremos unidos nos Céus.

E um dia lá corre, d’amor bafejado, Ao outro que surge prazeres iguais!
E sempre esta vida!… Mas, ai! desgraçado!… Que assim me enlevava
d’esp’ranças banais!

Debalde iludir-me procuro num sonho! Cruel desengano, cruel que ele é!
Ele aponta o futuro, sombrio e tristonho,
Sem crenças, sem glória, sem vida, sem fé!

A mim só me resta viver isolado!
Sem ter quem no mundo me possa entender!
Ai! sonhos tão Belos que outrora hei sonhado I
Delícias passadas dum outro viver.

SIMILIA SIMILIBUS

Nova seita proclamaram
De Esculápio os descendentes;
Dão vivas os boticários,
Estremecem os doentes.

Mas que achado! Os velhos médicos
Vêem o passado com mágoa;
Estes, de novo sistema,
Aquecem água com água.

O fogo apagam com fogo,
Dão vista aos cegos, cegando,
E até pra coroar a obra,
Curam da morte… matando.

HISTÓRIA DE UNS BEIJOS

Ouvia gabar os beijos, Dizer deles tanto bem,
Que me nasceram desejos
De provar alguns também.

Esta fruta não é rara,
Mas nem toda tem valor,
A melhor é muito cara
E a barata é sem sabor.

Colhi-os dos mais mimosos, Provei três ; mas, por meu mal, Ao princípio
saborosos, Amargaram-me afinal.

Um colhi eu de uma bela Que era Rosa, sem ser flor, Se tinha espinhos como
ela, Dela também tinha a cor.

Vi-a a dormir e furtei-lhe
Um beijo, que a acordou,
Eu gostei, porém causei-lhe
Tal susto que desmaiou.

Logo que a v: sem sentidos
Fugi sem outro lhe dar,
Pois beijos sem ser pedidos
Não são coisas pra brincar.

Porém deste beijo ainda
Pouco tive que dizer,
Pois a tal rosa… era linda
E tornou a reviver.

Outra vez, duma morena, Olhos azuis, cor do céu, Corpo ‘sbelto, mão
pequena, Um beijo me apeteceu.

Pedi-lho, e então por bom modos, Pedi-lho do coração.
Zombou dos meus rogos todos
E respondeu-me: que nao.

Zombei, como ela zombava
E um beijo, à força lhe dei;
Mas… bem dado ainda não estava
E c’um bofetão o paguei.

Custou-me caro o desejo, Que mui caro ela o vendeu.
Pagar por tal preço um beijo! Assim não os quero eu.

Este mais do que o primeiro, Me deixou fraca impressão; Quis provar
inda um terceiro, Para não jurar em vão.

Mas não quis fruta roubada, Que mal com ela me dei ; Uma dama delicada
Ofereceu-ma… eu aceitei.

Ai que boa fruta era ! Estava mesmo a cobiçar. Passar a vida quisera,
Tal fruta a saborear.

Mas no meio da colheita… Da fruta o dono apareceu; Zelosos olhos me deita:
Se zelava o que era seu!

Vendo o caso mal seguro Eu logo ali lhe jurei Restituir até com juro
A fruta que lhe tirei.

E acaso não discordasse, Não me parecia mal
Que a ele os juros pagasse, E à senhora… o capital,

Esta sensata proposta Em fúrias o arrebatou, E, por única
resposta, Pra luta se preparou…

1859.

Oiço ainda gabar os beijos,
Dizer deles muito bem,
Mas findaram-me os desejos,
Já sei o sabor que têm.

Nota do Autor. – Desde já afirmo que não fui eu o protagonista da história.
Ainda não tive uma indigestão deste gênero de fruta, e nem sei, para falar
francamente, se mesmo quando a tivesse, a ficaria abominando para sempre.
O caso, enquanto a mim, não foi de natureza que justificasse semelhante aversão;
mas enfim há susceptibilidades tais… Não afirmamos, contudo, que a dieta
tenha sido escrupulosamente observada. Nesta espécie de fruta, parece-me que,
ao contrário do que se diz para as outras, é a qualidade e não a quantidade
que faz o mal.

SEGUNDA PARTE

A J. , ,

Acredita que os anjos também sofrem
Nesta mansão de dores,
E não olhes o mundo lacrimosa,
Quando o vires despido de fulgores.

Mal sabe, a rosa, ao vicejar lasciva
Em plena Primavera,
Que é passageira a quadra; que após ela
Se despovoa o prado e a morte a espera.

O terreno que pisas nesta vida
Oculta um precipício
O caminho, onde ao fim vemos a glória,
Quantas vezes termina no suplício!

Eu já vi, sobre um túmulo isolado, Um grupo de crianças
Dando as mãos, e travando em chão de morte,
Com risos infantis, alegres danças.

Vi-as também sorrindo descuidadas, Se piedoso viandante
Parava pensativo e, murmurando,
Uma humilde oração, passava adiante.

Assim também sorris, se melancólico
Eu penso no futuro,
Quando uma sombra vem turbar-me a fronte.
Com elas, ris do meu semblante escuro.

Mas olha, vais saber a história triste
Desses três inocentes,
Que sobre as cinzas frias duma campa
Se entregavam a jogos complacentes.

À noite a mãe, beijando-os, estranhou-lhes
Das faces a brancura;
E um presságio sentiu; ao alvor do dia
Levava-os todos os três à sepultura.

É que os ares do túmulo dão morte
Em afago homicida;
Nesse ar infecto em que se extingue a chama,
Também arqueja e expira a luz da vida.

Teme pois também tu, cândida virgem, O ar que aqui respiras;
E não perguntes mais ao viandante
Que pensamentos d’amargor lhe inspiras.

Nota do Autor. – Esta poesia foi enviada ao redactor da Grínalda, João Marques
Nogueira Lima, assinada com o pseudônimo Júlio Dinis, em 9 de Março de 1861
e publicada no 3.° número daquele jornal. No dia 18 de Março, à noite, o Passos
elogiou-a, sem saber quem ara o autor.

A NOIVA

(NO ÁLBUM DA EX.maSR.a D. ISABEL M. FIGUEIREDO DE CARVALHO)

Mal as regiões do oriente
A luz da manhã tingia,
Já ao cristalino espelho
A linda noiva sorria,
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

A noite passara à vela
E que noiva a dormiria?
E ao desmaiar das estrelas,
Alvoroçada se erguia.
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Depois, ligeira, impaciente, Chegava-se à gelosia
A ver se o sol já dourava
Os cimos da serrania,
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

De quando em quando chorava… E o que chorar a fazia?
Saudades do que passara? Terrores do que viria?
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Mas são lágrimas de noiva, Um só beijo as secaria,
São como gotas de orvalho
Quando o Sol as alumia;
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Que longo porvir d’amores, Que futuro de poesia,
Que palácios encantados
Lhe pintava a fantasia,
Quando a flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia!

E ao casto leito de virgem
Dentro da alcova sombria,
A noiva, de quando em quando,
Inquieta os olhos volvia;
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Por entre o rosai florido, Que o balcão lhe entretecia As avezinhas
cantavam
Com festiva melodia.
E ela a flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Alto ia o Sol, resplendente
Na manhã daquele dia,
Cuja noite… Esta lembrança
Da noiva as faces tingia;
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia

A mãe, vendo-a tão formosa, Julgava um sonho o que via, Que
o vestido de noivado
As graças lhe encarecia,
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

Vêm as irmãs, que a contemplam
Com inveja, eu juraria: Ela baixa os olhos, cora,
O que mais bela a fazia,
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

Junto delas, perturbada, Quase nem falar podia;
So as mães bem compreendem O que a noiva então sentia, Quando
a flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

As horas passam tão lentas! E o coração lhe batia,
A mãe chorava, coitada, Com saudades o fazia;
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

A sala já estava cheia; A noiva achava-a vazia,
Que entre tantos convidados
Ainda o noivo se não via;
E a alva flor da laranjeira
Há muito do véu pendia!

Passa a manhã, e não chega! Não chega, e é já
meio-dia! Nas varandas, nos eirados,
Se dispersa a companhia; E a alva flor da laranjeira Há tanto do véu
pendia!

O rosto da bela noiva
Cada vez mais se anuvia,
Não sei que voz misteriosa
Desgraças lhe pressagia;
E a alva flor da laranjeira
Inda do véu pendia.

Fenece a tarde. Eis a noite, Hora de melancolia.
No rosto dos convidados
Desassossego se lia,
E a alva flor da laranjeira
No véu da noiva tremia.

Tudo é silêncio. A coitada
Uma estátua parecia…
Tão pálida como mármore,
Como ele imóvel, fria;
Só a flor da laranjeira
No véu da noiva tremia.

Abrem-se as portas. «É ele!» Disse toda a companhia:
Porém ilusória esperança! Um pajem só aparecia:
E a alva flor da laranjeira
Do véu da noiva caía.

Tristes novas traz o pajem, Que triste o rosto trazia;
Fêz-se um silêncio profundo
Entanto que ele as dizia,
E a alva flor da laranjeira
Inda por terra jazia.

Dispam-se as galas da festa, Calem-se os sons da alegria, Que morto em cruel
combate O noivo… Um grito se ouvia, Junto à flor da laranjeira,
A noiva no chão caía..

Cercam-na todos… debalde, O seio já não batia;
Aquela mimosa planta
Sem alentos sucumbia,
Como a flor da laranjeira,
Derrubada ali jazia.

Mal sabia a pobre noiva Pra que bodas se vestia! Mal sonhava a desposada
Que a morte esposar devia! Quando a flor da laranjeira Ao véu da neve
prendia.

Com as vestes do noivado Para o sepulcro ela se ia; Em vez do rubor da noiva
A palidez da agonia
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

Tantos sonhos que sonhara!… Tanta esp’rança que nutria!… Por
esposo tinha a morte,
Por tálamo, a lousa fria, E a flor da laranjeira
Com ela à campa descia.

O DESPERTAR DA VIRGEM

Que é isto? que sentimento
Me faz palpitar o seio?
Meu Deus, meu Deus, porque anseio?
A que aspira o coração?
Que me revela este fogo,
Esta vaga inquietação?

Da vida a clara corrente Porque é que se perturba? Porque, fugindo
da turba,
Eu só folgo ao ver-me a sós, Escutando ignotas falas
De não sei que estranha voz?

Inda há pouco me apraziam
Da alegre infância os folguedos;
Hoje não sei que segredos
O coração me prediz.
Enfadam-me as alegrias
Desses tempos infantis.

Às horas do fim do dia, Quando o Sol no mar declina E d’áurea
luz ilumina
Todo o horizonte ao redor, Porque me sinto enleada Num indizível langor?

De manhã, quando nas selvas
O dia desperta as aves,
E mil aromas suaves
Sobem dos campos ao céu,
Porque sinto ante meus olhos
Estender-se húmido véu?

E esta imagem resplendente, Que sorrir-me em sonhos vejo, Ai, tão
bela que desejo
Sempre mais tempo sonhar!
Quem é que em tão mago enleio
Me faz, sem querer, sonhar?

Este ansiar incessante,
Esta esp’rança inda tão ‘vaga
De gozos, que a mente alaga,
Mal lhe sabendo o valor,
Este ignoto sentimento…
Deus do Céu, será o amor?

Amor! que palavra é esta, Que ela só me sobressalta E mil
sensações exalta Desconhecidas pra mim…
Que poder mágico encerra
Para me agitar assim?

É o amor o sentimento Que me faz arfar o seio? Este gozo por que
anseio
E a que aspira o coração? É pois amor este fogo,
Esta vaga inquietação?

Nota do Autor. – Não sou por certo eu o melhor juiz da verdade desta poesia,
crevi-a de palpite. Julgue-a quem pode .

QUINZE ANOS

(NO ÁLBUM DO MEU AMIGO J. M. NOGUEIRA LIMA)

Que são quinze anos, quando a virgem cora? Quando, já triste,
na solidão vagueia?
Que são quinze anos, se ao surgir da aurora, A embala em sonhos embriagante
idéia?

Se ao fim da tarde, em languidez caída, Do peito sente o palpitar
inquieto,
E aspira, ansiosa, mas ardente vida,
Vida de amores, de paixões, de afecto?

Que são quinze anos, quando um sangue ardente
No peito infunde abrasadora lava?
Quando aos assomos da paixão nascente,
A alma da virgem se submete escrava?

Ai, quantas vezes nesses jovens seios
Se esvai bem prestes a infantil bonança?
Quantas se ocultam juvenis enleios,
Nas aparências de pudor, criança?

Vês a palmeira, que no nosso clima Arbusto humilde, um vendaval derruba,
Como nas plagas, que o calor anima, Eleva altiva a majestosa juba?

A mesma vida, que recebe a planta
Nessas paragens onde o Sol dardeja,
O amor, o astro que a existência encanta,
A mesma vida ao coração bafeja.

E tu, que deixas os pueris folguedos, Como a grinalda que esfolhada viste,
E erras em choro por jardins e olmedos, Ai, virgem, virgem, já o amor
sentiste.

Já o aspiraste, percorrendo a relva, Entre perfumes de violeta e
rosas; Falou-te dele o rouxinol na selva,
E a estrela em noites de Verão formosas.

Falou-te dele a matutina brisa,
Por entre as folhas sussurrando meiga;
No prado a linfa, que a correr desliza,
E a borboleta nos rosais da veiga.

Falou-te dele esta gentil paisagem, O azul dos céus, a secular floresta.
Esse o mistério que em subtil linguagem
Às virgens conta a natureza em festa.

Ouvindo, pois, as namoradas falas, Que eu delirante te falei, donzela,
O que receias? porque assim te calas, Rubra de pejo, que te faz mais bela?

Esconde a fronte no meu peito, esconde, Mas não hesites ao dizer-me
que amas.
Que são quinze anos, linda flor? responde, Quando o teu seio se devora
em chamas?

O BOM REITOR

Sabem a história triste
Do bom reitor?
Mísero, toda a vida
Levou com dor.

Fez quanto bem podia, Mas… afinal
Morre, e na pobre campa
Nem um sinal.

Nem uma cruz ao menos
Se ergue no chão!
Geme-lhe só no túmulo
A viração.

Vedes, além, na relva
Junto ao rosai,
Flores que há desfolhado
O vendaval?

Cobrem-lhe a lousa humilde; A criação
Paga-lhe assim a dívida
De compaixão.

Pobres, que amava tanto, Nunca, ao passar,
Choram, curvando a fronte
Para rezar.

Nunca, ao romper do dia, O lavrador
Pára e lamenta a sorte
Do bom reitor.

As criancinhas nuas
Que estremeceu,
Já nem sequer se lembram
Do nome seu.

No salgueiral vizinho, Ao pôr do Sol,
Vai carpir-lhe saudades
O rouxinol.

Lágrimas… pobre campal
Ai, não as tem;
Só da manhã o orvalho
Rociá-la vem.

Da solitária Lua
A triste luz
Grava-lhe em vagas sombras,
Estranha cruz.

E ele repousa, dorme, Vive no Céu.
Dorme, esquecido e humilde, Como viveu.

Há nesta vida amarga
Sortes assim:
Vive-se num martírio,
Morre-se enfim.

Sem que memória fique
Para contar
Às gerações que passam,
Nosso penar.

Quem me escutar, se um dia
Ao prado for,
Ore pelo descanso
Do bom reitor.

Julho de 1864.

Publicada no «Jornal do Porto» Faz parle
do folhetim—«Impressões do campo»
— A Cecília — assinado Diana de Aveleda

INICIAÇÃO

Além, naquela avenida, De plátanos e salgueiros,
Foi que em teus beijos primeiros
Bebi a primeira vida.

Sob os copados verdores
Daquela frondosa rua,
Mal vistos da própria Lua,
Falávamos nós d’amores.

Todos em nossa procura, Nós a rirmos escondidos.
Oh! que instantes decorridos! Oh! que rápida ventura!

«Vai», cusseste-me ao partires, Que estes beijos te dêem
vida. Adeus, a infância é volvida! Luta, e… se não sucumbires…»

E a voz faltava-te em meio;
E eu disse com modo brando :
«Se não sucumbir?…» Chorando
Apertaste-me ao teu seio

«Volta; e a sentida promessa,
Que em meus beijos entendeste,
Cumprida será». Disseste:
«Adeus. A luta começa.»

E começava! Ai, por vezes Me tomou o desalento; Porém aquele
momento Lembrava-me nos reveses.

Lutei. E ao voltar agora
Com as lembranças do passado,
Dize-me, anjo, se me é dado
Recordar-te ainda essa hora?

1885.

A JOVEM MAE

Vistes a jovem mãe junto do berço
Do filho adormecido?
Que lhe importava o resto do universo?
Tudo o que a mão de Deus nele há disperso
Via ali resumido.

A guerra vai acesa, o sangue corre
Pelas nações da Terra;
Mas todo esse rumor no berço morre :
A aumentar o silêncio até concorre
Que o gineceu encerra.

Um dia, ao pôr do Sol, ela embalava
O berço do inocente.
E, com os olhos nele, se entregava
A sonhos de ventura e olvidava
No porvir o presente.

Por um momento a olhou ele e sorria: Mas que sorriso aquele!
A mãe, que todos os gestos lhe entendia, Estranhou-lhe o sorrir, que
de alegria
Ai, não, não era ele.

O seio a palpitar-lhe, e mansamente
Nos lábios o beijava.
Mas no amoroso ósculo. somente
Recebeu o espírito inocente,
Que a Terra abandonava,

Tendes já visto o mar tranqüilo e unido
Nas praias deslizando,
E depois levantar-se embravecido
Qual o leão, do caçador ferido,
As crinas eriçando?

Tendes já visto o vento pela serra
Gemendo brandamente,
Para depois, em tumultuosa guerra,
Descer aos vales, devastar a terra
Assolador, fremente?

Assim a pobre mãe se ergueu, os ares
Enchendo com seus gritos!
Como a fera a rugir entre os palmares,
Corre a pobre sem tino, os seus olhares
Volvendo ao Céu aflitos.

Ao vê-la, di-la-eis impelida
Por sobre-humana força.
Nem mais veloz, no bosque foragida.
Através das devesas perseguida,
Corre a tímida corça.

De repente parou, como escutando
Uma vaga harmonia.
E um estranho fulgor de quando em quando
Vinha animar-lhe as faces, revelando
Insólita alegria.

Volta ao berço do filho inanimado. Pára, olha-o, medita.
Depois cingindo-o ao seio angustiado,
Corre à praia do mar, que o vento irado
Então revolve e agita.

«Filho, filho, não partas só da vida, Espera, eu vou
contigo.»
Disse, e nas penhas húmidas erguida, Com o inocente, na vaga enfurecida
Busca o final jazigo.

Viste a jovem mãe na campa fria
Unido o filho ao peito?
Que lhe importava o mundo, onde o não via?
Como outrora, embalando-o, adormecia,
Mas no funéreo leito.

1862

A VIDA

A alvorada foi risonha; Ergueste-te como o dia, Eu fiz, naquela alvorada,
Uma alegre profecia.

Inda radiava fulgente Vénus, a saudosa estrela, Ja tu ornavas as trancas
E cantavas à janela.

E dos laranjais vizinhos
Os rouxinóis acordados
Respondiam-te com trino s
Da tua voz namorados.

Dos virentes jasmineiros, Que a Primavera enflorava, Vinha cheio de perfumes
O vento que te beijava.

Quem dissera então ao ver-te
Nessa risonha alvorada,
Que a noite, estrela cadente,
Serias inanimada?

Escrito em um álbum a pedido de
F. M. de Sousa Viterbo em 1870.

TRIGUEIRA

Trigueira! que tem? Mais feia Com essa cor te imaginas? Feia! tu, que assim
fascinas Com um só olhar dos teus! Que ciúmes tens da alvura
Desses semelhantes de neve ! Ai, pobre cabeça, leve!
Que te nao castigue Deus.

Trigueira! se tu soubesses
O que é ser assim trigueira!
Dessa ardilosa maneira
Porque tu o sabes ser ;
Não virias lamentar-te,
Toda sentida e chorosa,
Tendo inveja à cor da rosa,
Sem motivos para a ter.

Trigueira! Porque és trigueira É que eu assim te quis tanto.
Daí provém todo o encanto
Em que me traz este amor. E suspiras e murmuras;
Que mais desejavas inda? Pois serias tu mais linda, Se tivesses outra cor?

Trigueira! onde mais realça
O brilhar duns olhos pretos,
Sempre húmidos, sempre inquietos,
Do que numa cor assim?
Onde o correr duma lágrima
Mais encantos apresenta?
E um sorriso, um só, nos tenta,
Como me tentou a mim?

Trigueira! E choras por isso! Choras, quando outras te invejam Essa cor,
e em vão forcejam
Por, como tu, fascinar?
Ó louca, nunca mais digas,
Nunca mais, que és desditosa.
Invejar a cor da rosa,
Em ti, é quase pecar.

Trigueira! Vamos, esconde-me
Esse choro de criança.
Ai, que falta de confiança!
Que graciosa timidez!
Enxuga os bonitos olhos,
Então, não chores trigueira,
E nunca dessa maneira
Te lamentes outra vez.

Abril de 1864

Escrita no álbum da Ex.mn Sr.” D. M. Veloso
e aproveitada para o romance — As Pupilas
do Sr. Reitor — publicada no jornal do Porto
em 1866 e em volume em 1867.

A INTERCESSÂO DA VIRGEM
(H. HE1NE)

I

Jazia o filho no leito,
A mãe olhava o balcão.
— «Não te levantas, meu filho,
Para ver a procissão?»

— «Ai, mãe! se estou tão doente, Que não
posso ouvir nem ver ! Penso nela… a pobre morta… Como não hei-de
eu sofrer!»

— «Ergue-te, filho, e à romagem
Iremos juntos a orar,
Que aos corações doloridos
Sabe a Virgem consolar.»

Já se ouvem os sacros hinos, Da cruz flutua o pendão;
Em Colônia sobre o Reno
Vai passando a procissão.

Il

Como a Senhora está linda
Com o seu mais rico vestir!
Correm-lhe em chusma os doentes
Muito tem ela que ouvir!

Todos lhe trazem promessas Com ferventes devoções: Membros,
pés e mãos de cera, Jazem no altar aos montões;

Quem lhe der um pé de cera, Logo do pé sarará;
Quem mãos de cera lhe ofereça, A mão curada verá.

Mancos, que à romagem foram, Vêem-se na corda saltar;
Outros de mãos aleijadas, Destros agora a tocar.

Da alva cera duma vela
Fez a mãe um coração.
— «Leva isto à Virgem Maria,
Que te cure essa paixão.»

Gemendo, o filho a recebe, Gemendo a vai ofertar;
Dos olhos lhe brota o pranto
Do coração este orar;

— «Ó Maria gloriosa!
Serva pura e mãe de Deus:
Virgem, dos Céus Soberana,
Escuta os lamentos meus i

«Em Colônia, onde as igrejas
Se podem contar às cem,
Os meus dias descuidado
Passava com minha mãe.

«E junto de nós vivia Margarida… a que morreu… Dou-te um
coração de cera, Cura as feridas do meu!

«Cura minh’alma dorida, Que eu com devoto fervor Direi de dia e de
noite:
—«Glória a ti. Mãe do Senhor!»

III

Alta noite, adormecidos
Jaziam o filho e a mãe,
E a Virgem mui de mansinho
Entrando no quarto vem.

Pendida sobre o doente
No peito a mão lhe pousou,
E com gesto suavíssimo
Sorrindo se retirou.

Como se através dum sonho, Tudo isto a mãe percebeu
E acordando alvoroçada, Junto do filho correu

Estendido sobre o leito, Morto, a triste o foi achar; Andava-lhe a luz
da aurora Pelas faces a brincar.

Vendo-o assim, a mãe piedosa
Juntou as mãos com fervor
E em voz baixa disse, orando:
— « Glória a ti, Mãe do Senhor I»

Abril de 1864

METEORO

Não a viram passar? Era no Outono; Quando languesce a flor, quando
na selva Se cala o rouxinol e ao abandono
Jazem as folhas na crestada relva.

Não a viram passar? As altas neves
Revestiam das serras as cumeadas,
E em vez das brisas perpassando leves,
Assopravam violentas as rajadas.

No meio da tristeza destas cenas, Ela só, muda e pálida, sorria,
O seio a anuviar-se-lhe de penas, O rosto a iluminar-se de alegria.

Não a viram? Passou. A natureza
É outra vez de galas revestida,
Mas minh’alma é coberta de tristeza
Como naquele instante da partida.

Setembro de 1860.
Escrita em um álbum

A DESPEDIDA DA AMA
(A meu primo e amigo J. ]. Pinto
Coelho)

Adeus filho do meu peito, Que do meu peito nutri… Parto.
Vou deixar-te, filho, Ai, que farei eu sem ti? !

Adeus! Já quando acordares
Chorando não me verás;
As noites a acalentar-te
Outra voz escutarás.

Que amor te ganhei, meu filho I Que triste amor este meu!
Se assim tinha de deixar-te, Pra que tanto te quis eu ?

Os teus primeiros gemidos
Tua mãe não quis ouvir;
E a mim, que os calei com beijos,
Mandam-me agora partir!

Pus à volta do teu berço
Todo o amor que um seio tem,
E arrancam-te de meus braços,
Porque eu não sou tua mãe!

Os teus vagidos de infante Fui eu quem os sosseguei; Carinhos que semeava,
Para a outra os semeei !

Parto. Dentro em pouco, filho, Nem tu me hás-de conhecer;
E assim de pequenino
Te ensinam já a esquecer.

Adeus! Nesta despedida
A alma toda se me vai.
E, sem querer, o meu pranto
Sobre a tua fronte cai,

Que desse sono inocente
Te não vá ele acordar;
Que as forças me faltariam
Então, para te deixar.

Vamos, pobre mulher, vamos
Está finda a criação,
Deste vida a este menino,
Não lhe dês o coração.

O coração? Quem to pede ? Pedem-te o leite, não mais.
Vamos, pobre mulher, vamos, Que o acordas com teus ais!

Adeus filho da minha alma, Teus carinhos não são meus, O choro
corta-me a fala,
Mal posso dizer-te… adeus.

Março de 1865.

NO ALTAR DA PÁTRIA
(Ao meu amigo João Marques Nogueira
Uma)

1

Tinge do oriente as serras
O matutino alvor;
E do clarim das guerras
Se ouve o mortal clangor.

— «Ai, grata paz dos lares, Adeus, força é partir.
Ó sombra dos pomares! Ó rosas a florir!

«As hostes reunidas Chamam-me a combater, Ai, longas avenidas, Tornar-vos-ei
a ver ?

«Adeus, loucos amores! Adeus, beijos febris, Adeus, mudos verdores,
Que em sombras os encobris.»
— «Ô mãe, dá-me uma espada
Oiço da Pátria a voz!»
— «Ei-la. É imaculada, Era a de teus avós!»

— «Pura a trarei, voltando… Se não morrer ali.»
— «Vai! disse a mãe, chorando, Eu rezarei por ti.»

— «Filho, meu filho, espera! Não me ouve já. Partiu!»
E o ardor que a sustivera
De todo se extinguiu.

No campo já se escuta Das alas o marchar. Que agigantada luta Além
se vai travar?

Dá-se o sinal! Furiosas Partem as legiões; Encontram-se raivosas
Bramem como os leões.

Ai, que tinir de espadas! Que estrépito fatal!
Que vozes angustiadas
Se escutam no arraial!

O sangue rutilante Inunda e tinge o chão; Aos ais do agonizante
Responde a imprecação.

 

Em pé, os combatentes, Perdidos os corcéis, Cingem-se quais
serpentes Em pérfidos anéis.

A luta é braço a braço, A golpes de punhais;
Se caem de cansaço, Não se levantam mais.

A luta é peito a peito, Terrível e cruel!
Às cãs não há respeito, À dor não
há quartel

Findou! Tranqüilo é tudo… Já tudo emudeceu.
O campo é triste e mudo; É triste e escuro o céu!

A custa de mil vidas Salvou-se a Pátria enfim! Mas porque são
sentidas As vozes do clarim?

As hostes vitoriosas Porque tão tristes vêm? Ai, que ânsias
dolorosas Sentia a pobre mãe!

Passa a primeira fila… Mísera, que o não vês!… Outra,
outra mais. Vacila… Cresce-lhe a palidez!

Olha-as uma por uma, E a última passou;
E delas em nenhuma
Inquieta o filho achou!

E o céu mais se escurece ; O campo é envolto em pó
; E a triste permanece Absorta, muda e só I

Que solidão de morte! Que erma a planície jaz! Dorme no campo
o forte, Sono de glória e paz.

Dorme a valente raça
De intrépidos heróis!
Cegos, ao sol que passa
Saúdam novos sóis.

Que sepulcral figura
Se adianta além subtil;
Tão cheio de amargura
O gesto e o olhar febril!

À ensangüentada arena Os passos seus conduz; Raiou sobre esta
cena Da Lua a tarda luz.

Súbito em desvario
Solta um sentido ai,
Junto a um cadáver frio
Desfeita em pranto cai

«És tu! és tu? ai, filho! Ai, como te encontrei!
Como estão já sem brilho
Os olhos que eu beijei!

«Vai, sombra idolatrada, À tua Pátria, aos Céus!»
Cinge-lhe ao peito a espada; Morre ao dizer-lhe: < Adeus!»

HINO AO TABACO

No centro dos círculos De nuvens de fumo, Um deus me presumo,
Um deus sobre o altar! Nem doutros turíbulos
Me apraz tanto o incenso Como o deste imenso Cachimbo exemplar!

Em divas esplêndidos, Cruzadas as pernas, Fuma, horas eternas.
O ardente sultão Subindo-lhe ao cérebro O mágico aroma,
Esquece Mafoma,
Houris e Alcorão.

Longe, oh! longe o ópio, Que os sonhos deleita
Da mísera seita
Dos Theriakis!
Horror ao narcótico
Que vem das papoulas!
E ao que arde em caçoulas
No altar de Caciz!

Que a raça gentílica Das zonas ardentes Consuma as sementes
Do arábio café.
Despejem-se as chávenas
Da atroz beberagem
Da cor do selvagem
Da adusta Guiné.

E a tal folha exótica, Delícias da China, Por nossa má
sina Trazida de lá,
Servida em família
Num morno hidro-infuso?… Anátema ao uso
Das folhas do chá!

Nem tu, ó alcoólico Humor dos lagares, Terás meus cantares,
Meus hinos terás, Embora das ânforas, Vazado nas taças,
Aos outros tu faças, A língua loquaz.

Cerveja britânica, De furor espuma? De coisa nenhuma Me podes servir.
Quando oiço do lúpulo
Gabarem proezas
Às boas inglesas,
Desato-me a rir.

Nem venha da cânfora
Pregar maravilhas
O das cigarrilhas
Famoso inventor.
Raspail é cismático
E eu sou ortodoxo
O seu paradoxo
Não me há-de ele impor.

Meu canto é da América, País do tabaco,
Perante o qual Baco
Seu ceptro partiu.
A Europa, Ásia e África
E a Terra hoje toda
Este herói da moda
De fumo cobriu.

Até na Lapónia
Da gente pequena,
Se fuma; e no Sena,
No Tibre e no Pó,
No Volga e no Vístula,
No Tejo e no Douro;
Que imenso tesouro
Se deve a Nicot!

Meus áridos lábios
Mais fumo inda aspirem;
Que os parvos suspirem
Por beijos aos mil.
Não quero outros ósculos,
Não quero outra amante..
Qual mais doudejante
Que o fumo subtil?

Tornadas Vesúvios, As bocas fumegam
De nuvens que cegam Vomitam montões. Fumar! Oh delícias! Prazer
de nababo!
E leve o Diabo
Do mundo as paixões.

TERESA
(A minha sobrinha Ana C. Gomes Coelho)

Era uma criança loura
Quando a conheci pequena;
Mais branca do que a açucena
E pronta sempre a chorar.
Havia naqueles olhos
De um certo azul esvaído,
Não sei que oculto sentido
Que me fazia cismar.

Quantas vezes, ao pé dela, Correndo-lhe a mão nas trancas,
Eu lhe disse : «Tu não danças, Como vês dançar
as mais?»
Ela olhava-me e sorria, Sorria, mas suspirava,
E inda mais triste ficava, Como nem imaginais.

Meu Deus, que criança aquela! Que tão precoce tristeza!
Dizem-lhe um dia: «Teresa Sabes? tua mãe morreu.» Fêz-se
pálida de morte…
E, levando as mãos ao seio, Ia a falar, mas, no meio, Reprimiu-se e
emudeceu

E desde então nunca a viram Mais com as suas companheiras; Ficava-se
horas inteiras
À sombra do laranjal. Surpreendiam-na sozinha
Com os olhos fitos no espaço
E esfolhando no regaço
As rosas do seu rosai.

As brisas, gemendo tristes Por entre a verd e folhagem, Segredavam-lhe a
linguagem Sonora da solidão.
Essas mil vozes do campo, Todas ela compreendia, Que fadado pra poesia
Fora aquele coração.

Ai, que infância tão de gelo! Que madrugada da vida!
Ai, pobr e alma estremecida Pelas saudades da mãe! Quantas vezes, alta
noite,
A triste julgava vê-la
Em cada fúlgida estrela
Que o firmamento contém!

Um dia, ao cair da tarde,
E de uma tarde de Outono,
Acordou de um brando sono
E pôs-se a rir para mim.
«Já sorris? És salva, filha,
Enfim!» E a beijei contente.
Olhando-me ternamente
Ela repetiu: «Enfim!»

Enfim!… mas que triste acento
Nessa palavra vertera!
Foi como que se dissera
A vida um último adeus.
Era como um grito d’alma,
Rompendo a prisão que a encerra,
E partindo-se da Terra
Pra fundir-se nos Céus

Iluminavam-lhe as faces
Os raios de estranho fogo.
Ao vê-la compreendi logo
Tudo o que se ia passar.
«Teresa, que tens? Responde.»
Disse, cingindo-a a meu peito;
E ao levantá-la do leito
Assustou-me aquele olhar.

As faces são-lhe de neve Na frialdade e na alvura. O sorrir que a
transfigura
Dá-lhe um todo divinal.
Por sobre as cândidas roupas
Caem-lhe as trancas douradas,
E nas pálpebras cerradas
Se extingue o alento vital.

Nos lábios já descorados
Que meiga expressão escrita!
O seio já não palpita…
Lânguida a fronte lhe cai…
Uma lágrima saudosa
Pelas faces lhe resvala,
E a vida inteira se exala
Num sumido e extremo ai.

Era uma criança loura Quando a vi na sepultura, Da açucena
tinha a alvura, Teve seu curto durar. Daqueles olhos serenos
De um certo azul esvaído, Ai, fatal era o sentido
Que me fazia cismar

NUM ÁLBUM

Se exigirem perfumes às flores
Pra tecerem com elas grinaldas,
Não procurem do monte nas fraldas
A modesta e inodora cecém.
Se igualmente desejas, amigo,
Para aqui mais que versos, poesia,
Antes deixes a folha vazia,
Pois meus versos poesia não têm

SONHO
(DE H. HEINE)

Sonhando, chorei. Sonhava Que morta te estava a ver. Acordei: ardentes lágrimas
Senti nas faces correr.

Sonhando, chorei. Sonhada Que tu me querias deixar. Acordei: amargamente Fiquei
depois a chorar.

Sonhando, chorei, Sonhava
Que esse amor ainda era meu.
Acordei: corre o meu pranto
Como ainda assim não correu,

Abril da 1864.

A NOVIÇA
(NO ÁLBUM DA EX.MA SR.ª D. JÚLIA ALVES PASSOS)

«Oh! vem, querida irmã, do santuário do templo, Já
desce a receber-te o celestial Esposo.
Vem ser da nossa fé sublime o vivo exemplo; Vem, deixa sem pesar do
mundo o falso gozo.

«Vem; dos círios à luz, ao som de alegres hinos, Cinge o
hábito escuro, emblema da humildade,
E, abrasada no ardor dos teus estos divinos,
Despe, ao entrar no claustro, as galas da vaidade,

«Esposa do Senhor, virgem cândida e pura, Do teu noviciado expiram
hoje os dias.
Não tremas ao fitar as portas da clausura; Também na estreita
cela há brandas alegrias.»

Assim das monjas soa o religioso canto: Juntas, em procissão pelas extensas
naves,
Espalham-se na igreja as vozes do hino santo, Melancólica voz de aprisionadas
aves.

Caído o longo véu por sobre a fronte airosa
Caminha lentamente a pálida noviça;
Nos olhos lhe fulgura uma aura misteriosa,
Um como cintilar de lâmpada mortiça.

Sobre os degraus do altar humilde se ajoelha
E ao culto fervorosa as trancas sacrifica.
«Recolhe-te ao redil, imaculada ovelha,
Teus tesouros d’amor nas aras santifica.»

E o coro ergue outra vez o ritual hosana,
Entre nuvens de incenso, à voz do órgão sagrado; Responde-lhe
o rezar da multidão profana,
Que transpôs curiosa o pórtico elevado.

A cerimônia é finda; a monja de joelhos
Permanece, inclinada a face sobre a terra;
Era no ocaso o Sol; e seus clarões vermelhos
Vinham tingir o altar, tingindo ao longe a serra.

Longo tempo ali esteve, as pálpebras descidas. Imóvel, silenciosa,
em êxtase absorta.
Ergueram-na afinal as monjas comovidas: Doloroso mistério… a pobre
estava morta!

Julho de 1865.

O CASTIGO DE DEUS

Terminara a peleja. Ensangüentado Jaz o campo da atroz carnificina: Um
sinistro clarão avermelhado
Do exército ao longe a marcha ensina.

O incêndio, a ruina e a feroz matança
São as relíquias da já finda guerra.
Ai dos vencidos! Gritos de vingança,
Perseguem os fugidos pela serra.

Ai dos vencidos! A furiosa plebe
Erra nos campos com medonha grita;
Não dá quartel, piedade não concebe;
Um cruento furor a move e agita.

Corre em tropel, corre ébria de vitória, Arrastando os cadáveres
despidos. Maculando os lauréis da sua glória
Na lama, envolta em sangue dos vencidos

Num vale retirado, umbroso, oculto, Estorcia-se um velho agonizante.
Ouve em delírio, um hórrido tumulto, Qual de demônios
infernal descante.

Com o rosto alterado, o olhar extinto, Pálida a fronte, sem vigor, já
fria.
«Ai, que sede cruel esta que sinto!
Água, dai-me água!» diz. Ninguém o ouvia.

«Água, dai-me água!» brada com voz rouca, Que se lhe
prende na árida garganta.
Ao longe, a turba, numa orgia louca, Hinos blasfemos, implacável, canta.

No delírio violento, que alucina,
Julga-se às vezes de um regato à borda ;
Bem-diz, chorando, protecção divina,
Mas ai, que cedo deste sonho acorda.

Acorda, e vê-se à beira de um abismo; Queimam-lhe os lábios
qual ardente frágua, E a custo, em terrível paroxismo,
Sufocado repete : «Água, dai-me água!»

Como se Deus escutasse
O grito do agonizante,
Surge do velho diante
Uma angélica visão;
Com as lágrimas em fio
Pelas faces cor de neve
Caminha com passo leve
Para o prostrado ancião.

Na brandura do semblante,
No olhar magoado e aflito
Lê-se um poema inteiro escrito
De caridade e de amor.
Corre ansiada e pressurosa
E toda cheia de graça
Em socorro da desgraça
Com piedoso fervor.

Junto do velho ajoelhada Ergue-o com meigo desvelo; E as trancas do seu cabelo
Às cãs se vão misturar. Aproxima-lhe dos lábios
A água que ele pedia;
E ao vê-lo bebe r sorria… Sorria… mas a chorar.

E uma lágrima fervente, Gentil pérola preciosa, Caiu na fronte
rugosa
Do velho, que estremeceu.
E só então, como em sonhos,
Foi que o triste moribundo
Fitou um olhar profundo
Neste enviado do Céu.

Ela sorrindo-lhe meiga, Ao vê-lo assim admirado
Lhe disse : «Velho soldado, Bebei, coitado, bebei.
Há dez anos, nestes sítios, Como vós, velho, ferido,
O meu pai estremecido, Após a guerra encontrei.

«Como o vi, meu Deus! Já frio, Já co’a vista embaciada,
A fronte roxa, gelada,
Os lábios em fogo, a arder.
«— Água! — bradava convulso;
— Água! — que de sede morro I »
A fonte vizinha corro…
Cheguei… para o ver morrer.

«Era então criança ainda; Mas esta cena de morte Impressionou-me
de sorte Que nunca mais a esqueci.
Sempre, sempre aquela imagem
Muda, pálida, cruenta,
Nos meus sonhos se apresenta;
Vejo-a ainda como a vi.

«Curvei-me sobre o cadáver
A aquecê-lo com meus beijos;
Ai, baldados meus desejos!
Que esse frio era mortal.
Jurei então, pela Virgem,
No fervor da minha mágoa,
De correr sempre com água
Pelas tendas do arraial.

«Quantas vezes à blasfêmia,
Que o delírio ao peito arranca,
Esta água, que a sede estanca,
Bendita por Deus, pôs fim!…
Quantos nobres cavaleiros,
Quantos moços, quantos velhos,
Eu vi cair de joelhos,
Soluçando ao pé de mim!

«A cada sede que estanco, A cada dor que mitigo, Pareca-me que consigo
Matar a sede a meu pai, Àquele velho soldado
Que há dez anos, nesta selva, Sobre uma cama de relva Exalou o extremo
ai.»

O velho, ouvindo-a, estremece.
«Nestes sítios ! Há dez anos!
Impenetráveis arcanos!
Dedo invisível de Deus!
E és tu quem me socorres ?!
Luz fatal se me revela.
Vingaste teu pai, donzela,
Cumpriste as ordens do Céu!»

E a fronte lívida, exausta Por extremado cansaço, Deixou pender
no regaço
Da pobre órfã que a sustem. Um supremo olhar de angústia
Nela por momentos fita;
Nela, que o encara aflita
Como carinhosa mãe,

«Morre em paz, velho soldado, Por mim meu pai te perdoa,
Se a hora extrema já te soa, Podes alegre partir.
Que seja esta gota d’água
A que te lave do crime;
Possa esta dor, que te oprime
As tuas culpas remir I»

E ao longe a turba infrene tripudiava Sobre o cruento campo da matança;
Dos homens a vingança ali reinava. Reinava aqui de Deus só a
vingança.

NO BAILE

Ia o baile a findar. Nas vastas salas, Que o fulgor de mil cirios ilumina,
Soarn da orquestra as notas harmoniosas
A convidar a derradeira valsa.
O seio a arfar, as trancas em desordem,
Os ombros nus, o gesto requebrado. Como estrelas cadentes, as valsistas
Em veloz turbilhão girando, passam. Nos dourados espelhos se reflecte
Todo o encanto da cena. Novos mundos
Luminosos, ílorentes, dali surgem
Longe e ao longe se estendem sem que possa
Encontrar-lhes limite a vista errante.
Tudo se move e agita, aqui e em torno.
Confunde-se a ilusão com a realidade;
Cingem-se ao peito virgens palpitantes, E vêem-se fugir, fugir, sorrindo,
No fantástico mundo dos espelhos; Outras se lhe sucedem. Que segredos
! Que segredos d’amor nesses olhares Lânguidos, desvairados, expressivos!
Que segredos traídos na imprudência
De um aperto de mão involuntário! Que mudas confidencias eloqüentes!
Que indiscretos suspiros! um momento
Traiu as longas, tímidas reservas
De castas namoradas. No delírio
Em que a valsa lasciva as arrebata,
Já nem sabem fingir, dissimulando, Em frias aparências, os ardentes
Estos do coração, rendidos a amores. Soltam-se-lhes as flores
do cabelo.
E esfolhadas no pó, são esquecidas.
Ai, descuidosas virgens, que não vedes
No destino da flor vosso destino!
Esquecidas as tristes! Já sem viço,
Sem cs encantos já do aroma e cores,
Quem se lembrará delas? Quem, sensível, As erguerá do
chão, murchas, calcadas,
Se vós as desprezais assim? Mas ide, Ide, voai, ligeiras borboletas!
Ide, voai nas asas da harmonia!
Embriagadas d’amor, correi… mais tarde, Como essas flores que por vós…
Mas longe,
Longe uma idéia negra, no momento
Em que o prazer vos foge. À valsa! à valsa!
Mais rápida! mais rápida! Nas salas
Já desmerece o refulgir das luzes.
Mais rápida! Convulsos, enlevados
Giram os pares em redor. Que febre!
Que febre de volúpia os alucina! Mais rápida! A vertigem se
apodera
Dos sentidos. Estreitam-se os braços, E os lábios inflamados,
quase, quase Em êxtase d’amor se tocam. Vede-a! A alvoroçada
turba de formosas, Louras, morenas, cândidas, lascivas, Quais rosas
soltas de variadas cores.
Em vórtice fatal arrebatadas
De profunda voragem, assim passam!
Que mágico poder as enlouquece?
Em que órbita de luz volvem sem tino? Que vista as seguirá,
que fascinada
Não vacile também? Inda mais rápida! Mais e mais ‘té
que exaustas de cansaço Caiam, talvez sem vida, as imprudentes

TERÇA-FEIRA

I

Rompera a manhã sombria,
Destas que fazem tristeza;
Em perfeita calmaria
Repousava a natureza.

Repousava. As ondas mansas Vinham quebrar-se na areia. Que mar tanto de esperanças!
Que enganadora sereia!

O arrais, correndo os palheiros,
«Ao mar!» grita. «ao mar, aos remos !»
«Para as lanchas, companheiros;
Grande safra hoje teremos.»

E a pobre gente da costa, Essa raça destemida,
Que a morte sem medo arrosta, Num momento é toda erguida.

Ei-los na praia. Cantando
Se dão à tarefa santa,
Que nesse arrojado bando
Quem mais trabalha, mais canta.

Sao todos? Todos não. Falta Da companha o mais valente! Esta nova sobressalta
O peito daquela gente.

«Partir sem ele ! Por Cristo, Que a primeira vez seria.
Em qualquer lance imprevisto
Quem tanto nos valeria?»

Tudo pára, tudo hesita,
Mãos nos remos, mão no leme;
Que o seio a muitos palpita,
Que a muitos a mão já treme

II

Ora, no pobre palheiro
Do pescador que tardava,
Eis que ao alvor primeiro
Desta manhã se passava:

Ele acordara, e na esposa, Que ao lado dorme tranqüila, Repousa a vista
amorosa,
E ao despertá-la, vacila.

Vacila — se é tão suave Aquele dormir ! tão brando!
Mas não sei que idéia grave Lhe está na mente pesando.

Ternamente ao seio a aperta, E lhe diz com gesto ameno:
— «Mulher, teu filho desperta, Acorda-me esse pequeno.»

A jovem mãe estremece
— «Que acorde meu filho, dizes !
Deixa-o dormir. Deus lhe desse
Sempre assim sonos felizes.»

— «Acorda teu filho, acorda, Tal dormir não é para
ele ;
Tempo é que da lancha à borda
Como os outros também vele.»

—«As lanchas! ao mar!… pois queres?… » E a mãe
empalidecia.
— «Nesta vida de mulheres
Não é que um homem se cria.»

— «Mas tão novo!…» — «Inda mais novo
Meu pai me levou consigo.»
— «Mas… —já se fala entre o povo
«Do rapaz». — Mas ouve, amigo…»

E a voz trêmula e chorosa Quase em pranto se afogava. Curvara-se ao mar
a esposa, Mas a mãe, essa, hesitava.

Hesitava, que se lhe ia
A alma toda, dando aos mares
O filho, a sua alegria,
O lume dos seus olhares.

— «Ouve», murmura, chorando
«Por Deus te vou pedir isto!»
E depois, em tom mais brando,
•<Em nome de Jesus Cristo!

«Deixa-mo ficar, marido,
Hoje só, ai! hoje ao menos!…
Fraco auxílio o recebido
Dos braços desses pequenos!

«Bem sabes que tudo os cansa… Sempre sois tão desumanos!
E depois… essa criança
Inda não fez os dez anos.»

— «Agoura-me bem o dia
Para lhe abrir a carreira.»
— «Porém, ó Virgem Maria,
E hoje então que é terça-feira!»

— «Mulher, deixa essas idéias, Iguais são todos os
dias;
Em maus agouros não creias, Se é que no Senhor confias.

«Apronta teu filho, apronta,
Que hoje há-de entrar na partilha,
E olha que o Sol já desponta;
Anda, acorda-o, minha filha.»

III

— «Filho, filho, ergue-te, acorda… Para quê, só
Deus o sabe…»
E em lágrimas lhe trasborda
A dor que n’alma nao cabe.

— «Sonhavas talvez brinquedos, Pois que sorrias dormindo; Verás
brincar nos rochedos
Esse mar que está bramindo.

«Vai inda quente do berço, Inda quente dos meus beijos, Para
um mundo bem diverso Do sonhado em meus desejos.

«Vai, tu que sempre dormiste Ao som de minhas cantigas, Dormitar à
canção triste
Dessas ondas inimigas.

«E sorris, anjo querido,
Ao passo que eu choro tanto,
Pois não sabes o sentido
Deste doloroso pranto?

«Não sabes que se me parte
O meu coração no peito
Ao vir assim acordar-te
Do teu sossegado leito?

«Não sabes que minha vida, Pobre filho, vai contigo,
E que nesta despedida
Trocas pra sempre este abrigo.

«Este abrigo de meu seio, Por perigos e cansaços?! Não sei,
não sei que receio Ao tirar-te de meus braços.

«Choras, filho? Ai, não, não chores, Que me tiras todo o
alento;
Já me bastam minhas dores, Basta-me o meu pensamento.

«Deus é bom. Nem sempre os mares
Se alevantam com tormentas.
Não chores, que se chorares,
O meu pesar acrescentas.

«Sossega. Esta cruz benzida
Leva contigo, e descansa,
Pois quem é tão bom na vida,
Deve em Deus ter confiança.

«Vai, que eu à nossa Senhora, Àquela Virgem das Dores,
Que é a tua protectora, Rezarei logo que fores.

«Limpa essas lágrimas, vamos, Que teu pai tas não conheça.
E a oração que te ensinamos, Ai, vê lá! nunca te
esqueça.»

IV

E viu-os partir. E o pranto
Lhe inunda as faces. Desmaia.
Dos pescadores o canto
Se escuta ao longe na praia.

Oh! que tristeza tamanha! Que pressentimento amargo,
Quando as lanchas da companha
Se fazem, remando, ao largo!

Junto à imagem de Maria Esta outra mãe dolorosa De joelhos todo
o dia
Lhe ergue preces, fervorosa.

«Ó Mãe de Deus, luz divina, Que alumias nossas almas!
Ó estrela matutina,
Que as tempestades acalmas!

«Baixa à Terra esses olhares, Nossa única esperança,
E, voltando-os sobre os mares, Protege aquela criança.

«Compadece-te, Senhora, Destas lágrimas sentidas; Estende a mão
protectora Sobre aquelas pobres vidas.

«Vê que me andam sobre as águas
Todos quantos estremeço.
Mãe, que entendes minhas mágoas,
Diz se essas vidas têm preço !

«Pela angústia que sentiste
Junto da cruz, ó Maria,
Vale-me nesta hora triste,
Vale-me nesta agonia.»

No meio de ardente prec e Ergue-se inquieta, palpita, Fitando o céu,
que escurece, Ouvindo o mar, que se agita.

V

Era ao tempo das Trindades: As aves, que pressagiam
O chegar das tempestades, Amedrontadas gemiam.

A mãe segue na carreira
Uma vaga e outra vaga.
« Terça-feira! terça-feira!»
Lhe diz uma voz pressaga.

Já treme. Os olhos velados, Onde a angústia se revela, Pelos
mares agitados
Não descobrem uma vela.

E as nuvens correm velozes, E o vento revolve a areia.
Já se ouvem confusas vozes
Na praia de gente cheia.

Velhos, mães, tristes esposas, Crianças nuas, em choro,
Altas vozes, lastimosas, Erguem num sinistro coro.

Que cena! e redobra o vento, E condensa-se a neblina,
E o mar rebrame violento, E a noite a cena domina.

E à luz de algumas fogueiras
Escassa, tênue, funesta,
Movem-se sombras ligeiras
Como se em diabólica festa.

E ela, a mãe em desatino, Corre, pára, escuta, chora, Maldiz o
poder divino… Depois seu perdão implora.

Os olhos na sombra fitos, Dessa noite escura, escura, Eleva-os ao Céu
aflitos,
E em vão um astro procura.

E o raio, que as trevas densas
De quando em quando devassa,
Mostra-lhes vagas imensas,
Negros abismos, e passa

VI

Só à luz da madrugada
Se acalma a brava tormenta.
Que noite em ânsias passada,
Tão pavorosa! tão lenta!

O céu reflecte nas águas
A cor azul de bonança.
E vai sanando as mágoas
A branda luz da esperança,

— «Barcas ao longe! nao vedes ! Oh! que alegria tamanha!
Deus abençoou as redes,
São as lanchas da companha.»

Crianças, mulheres, velhos, Ao ouvirem este grito, Todos, todos de joelhos
Cantam piedoso Bendito.

Ei-las vêm! Braços valentes Afeitos àquela guerra, Cortando
os mares frementes As impelem para a terra.

Na turba dos pescadores
A mãe com turbado aspecto,
Inda escuro de terrores,
Procura o filho dilecto.

Tudo exulta de alegria;
Cada qual os seus conhece…
E ela só, muda, sombria,
Sobre a praia permanece.

Ei-los enfim! Que transportes, Que lágrimas os esperam! Vêem-se
chorar os mais fortes
Dos que no mar não tremeram.

Por entre os grupos vagueia
A mãe, trêmula, calada,
De negros agouros cheia,
De vago pavor tomada.

Quase em delírio vê tudo, Como se através dum sonho; De
repente um grito agudo Soa na praia medonho.

É que pálido, abatido,
Junto ao mar o esposo vira;
E que terrível sentido
Naquela dor descobrira.

— «Que negro presságio é este
Que leio nos teus olhares?
Do meu filho o que fizeste?»
— «Pergunta-o a esses mares.»

No grito que a triste solta
Vai-lhe a razão, mais que a vida!
Depois para o mar se volta,
Turba, pálida, perdida…

— «Não! não hás-de assim roubar-me
O filho destas entranhas,
Não podem intimidar-me
As tuas iras tamanhas.

«Não vês que tenho no seio Este amor? Espera, espera, Ruge
! não tenho receio; Ruge, amaldiçoada fera!

«Ruge!» e sem tino, movida Da alucinação que a
agita, Rompendo em veloz corrida, Nas ondas se precipita.

Em vão lhe açodem, que forte
O filho às vagas disputa.
Era um combate de morte!
Era uma tremenda luta!

E na manhã do outro dia Viu-se na praia arrojada A mãe, que,
morta, sorria
Do filho ao corpo abraçada.

1865

MELANCOLIA

Em paz, deixai-me em paz, meus pensamentos, Não me faleis nos tempos
que lá vão.
De que serve pensar nesses momentos? Volvidos para sempre eles não
estão?

Oh! deixai-me esquecer o curto instante
Em que mãe e irmãos no mundo vi!
Não achais triste e amarga ainda bastante,
A amarga solidão que passo aqui?

Que pretendeis falando do passado?
Que quereis? que exigis ainda de mim?
Lágrimas? Não vos bastam as que hei chorado?
Pra que as saudades me avivais assim?

Eu vejo os outros anelar ansiosos
Prazer, orgias, festas sem cessar;
Eu não, que invejo mais suaves gozos,
Gozos que a morte me impediu de gozar

E assim me corre a vida! só comigo, E a memória do tempo que
passou,
E sem um coração, um peito amigo
Que a sorte, a sofrer só, me condenou.

O homem primeiro, do Éden desterrado, Triste, rojava a fronte pelo
pó ;
Mas ele tinha ao menos a seu lado
Um ente que o amava e eu… estou só !

Que a solidão não é erma de gente,
‘Té no meio da turba a pode haver.
Pois que nos vale a turba, quando um ente
Não vemos, que nos saiba compreender ?

Quase tudo que amava, emurchecido
Pelo sopro da morte cair vi.
Como entre ruínas, mausoléu erguido,
À destruição dos meus sobrevivi.

E para quê, Senhor? Qual é meu norte? Que missão nesta
vida hei-de cumprir? Oh! antes, antes me levara a morte,
Pois que assim, é tormento o existir.

Sombra da campa! que te tema aquele, A quem ventura, ou um amor sem fim Da
vida ao seio e do amor impele.
Teu frio leito não me assusta a mim.

Foi-me o passado instante de ventura, É-me o presente um século
de dor ;
E o porvir, envolvido em noite escura, Que me reservará? Morte ou amor?

Se o anjo que em meus sonhos imagino, Eu tenho de encontrar, quero viver.
Mas… se não… corre, apressa-te, destino! Abre-me a campa; tarda-me
morrer.

Em paz, deixai-me em paz, meus pensamentos, Não me faleis nos tempos
que lá vão.
On! deixai-me esquecer esses momentos, Já que volvidos para sempre
estão.

1859

NAO POSSO

Pedes-me um canto, anjo? Ai não, não sei cantar-te, Hinos para
elevar-te
Não sabe a minha voz. Os grandes sentimentos As majestosas cenas Sentimo-las
apenas;
Que mais podemos nós?

Qual é a linguagem,
Que as sensações exprime
Dessa hora tão sublime
Das confissões de amor?
Se um ente amado expira…
Junto ao lutuoso leito,
Do que nos vai no peito
Quem pode ser cantor?

Nas praias do oceano
Ao som dos seus bramidos
Enlevam-se os sentidos,
Escuta o coração.
E as horas passam rápidas,
Delícias sonha a mente…
Mas, o que então se sente
Cantar se tenta em vão.

Sob as arcadas tristes De templo sacrossanto Sobe, com fervor santo, O pensamento
a Deus. Da fé íntima e pura
A alma aí se inspira… Porém pode a lira Cantar nos hinos seus!

Ai não me peças cantos! O sentimento é mudo, Diga o
silêncio tudo Quanto eu não sei cantar
Mas, se amas… se no peito
Íntima voz te fala,
Tudo o que a lira cala
Lerás num meu olhar

Novembro de 1859

Se esta poesia tem um leve fumo de verdade, ele é tão fraco e desvanecido,
que não me atrevo a alistá-la entre as verdadeiras, em quanto ao facto; pois
em quanto aos sentimentos, sustento qu e o é; e julgo não ser o único nesta
crença. Estes versos talvez me justifiquem de arguições futuras. É uma poesia
de preven. ção. Olhem-na como tal.

AURORA DE ARREPENDIMENTO

Fugi, fantasmas lividos! Fugi, lúgubres sonhos! Espectros tão
medonhos Deixai-me em paz! parti! Não vedes como fúlgida
A Lua do Sol já surge? Deixai-me; o tempo urge, Nas trevas vos sumi!

Há muito que a ave lúgubre
Calou seus tristes hinos;
E, ao longe, a voz dos sinos
Vos diz — eis a manhã!
E vós, negros espíritos,
Travando estranha dança,
Me murmurais: Vingança!
Vingança?… Sombra vã!

Esperais que ao som horrífico De vossos mil clamores, Pungindo de
terrores
Me roje pelo chão?
Que ao ver as minhas vítimas
Surgir da sepultura
Cedendo a atroz tortura
Eu clame por perdão?

Sob as arcadas tristes De templo sacrossanto Sobe, com fervor santo, O pensamento
a Deus. Da fé íntima e pura
A alma aí se inspira… Porém pode a lira Cantar nos hinos seus!

Ai nao me peças cantos! O sentimento é mudo, Diga o silêncio
tudo Quanto eu não sei cantar.
Mas, se amas… se no peito íntima voz te fala,
Tudo o que a lira cala
Lerás num meu olhar.

Novembro de 1889

AURORA DE ARREPENDIMENTO

Fugi, fantasmas lívidos! Fugi, lúgubres sonhos! Espectros tão
medonhos Deixai-me em paz! parti! Não vedes como fúlgida
A Lua do Sol já surge ? Deixai-me; o tempo urge, Nas trevas vos sumi!

Há muito que a ave lúgubre
Calou seus tristes hinos;
E, ao longe, a voz dos sinos
Vos diz — eis a manhã!
E vós, negros espíritos,
Travando estranha dança,
Me murmurais: Vingança!
Vingança?… Sombra vã!

Esperais que ao som horrífico De vossos mil clamores, Pungindo de
terrores
Me roje pelo chão?
Que ao ver as minhas vítimas
Surgir da sepultura
Cedendo a atroz tortura
Eu clame por perdão ?

Cingi o vosso sudário, Voltai ao frio leito,
Que dentro do meu peito Não despertais horror. Dormi o sono gélido
Que a morte vos prepara Deixai pr a turba ignara Imagens de terror!

Eis o sombrio préstito Das vítimas sangrentas! As faces macilentas,
Tintas de sangue e pó ! Rojando as alvas túnicas No sepulcral
lajedo
Caminham, como a medo… Infundem pasmo e dó.

Entoando um canto fúnebre, Qual último gemido,
Dos ossos ao ruído, Acercam-se de mim!
Formam-se em vasto círculo, E erguendo-se horrível grito,
Bradam-me: Sê maldito, Qual já o foi Caim!

E de medonha abóbada Os ecos despertando, Seu grito continuando,
Repetem-me: Caim!
Oh! que mortal angústia
Este suplício eterno!
E nem no próprio Inferno
Se penará assim!

Mas não… não tremo .. rio-me
Dos vãos terrores da turba;
Só ela se perturba
Com tétricas visões.
Eu não, que desde a infância
Travei ardentes lutas,
E, qual as rochas brutas,
Sorri aos furacões.

E, se me vedes trêmulo, Perante vós curvar-me
E a fronte rociar-me
Um frígido suor…
Embora! a alma intrépida
E forte permanece,
O corpo é que parece
Ceder a um frio horror!

Sob o lençol funéreo
Que os membros vos recobre
O meu olhar descobre
Os traços de um punhal.
E o sentimento do ódio
Que o vosso aspecto exprime
Traz-me à memória um crime…
Um estertor mortal!

E eu vos fito impávido! A ti, ancião primeiro; No instante
derradeiro Louvavas o teu Deus,
Tentaste opor-te às fúrias Da minha ardente coorte Foi negra
a tua sorte! Caíste aos golpes meus!

Do templo no vestíbulo
Severo te elevavas
E anátemas lançavas
Tremendos contra nós ;
Ao grito de sacrílegos
O bando estremecera,
Sem mim talvez cedera
Em breve à tua voz.

E tu, mancebo? Adiantas-te
Com pálido semblante?
Pra libertar a amante
Voaste a combater;
Cego! que no teu ímpeto
Tolheste-me a carreira!
Exangue na poeira
Cedo te fiz volver.

Menos do que tu, misero, O incauto viandante
Se se encontrou diante Do carro que ágil vem; No seu giro mais rápido
Que o próprio pensamento
Esmaga-o num momento
E livre, passa além.

E tu que me olhas túrbida
Qual rábida leoa
Que o bosque que o ar atroa
Chamando os filhos seus;
Num maternal delírio
Ao veres-me, furiosa,
Ergueste-te raivosa
A defender os teus.

Mas qual a onda tümida De encontro à rija fraga, Mas qual a
fina adaga
De encontro ao forte arnês, Dobrou teu corpo lânguido Ao encontrar
meu peito, Caindo em pó desfeito… Nem vacilar me fez!

E tu que ergues, pálida, Coroada de alvas flores? Na quadra dos amores
Pendeste, flor, pra o chão.
Crestou-te as lindas pétalas, De embriagador perfume.
O fogo do ciúme, A lava da paixão 1

Enquanto nos meus êxtases
Contigo eu só sonhava,
Teu seio se agitava
Pensando noutro amor;
Então… em minha cólera
Perdida toda a esperança.
Jurei cruel vingança;
Cumpri-a com rigor.

Volvei aos frios cárceres, Ao sepulcral jazigo,
Onde buscais abrigo Quando desponta o Sol. E os rostos cadavéricos
Aos matutinos raios, Espectros, ocultai-os
No funeral lençol.

Mas outro se ergue súbito!… Que vago horror me infunde! Que estranha
luz difunde
Se eleva o seu olhar! Descobre o rosto, fita-me… Que vejo! é ele,
o infante Que num fatal instante
Na campa fiz rolar.

No teu suspiro último Que triste melodia ! Na hora da agonia Sorriste
para mim!
Esta lembrança punge-me,
É dor que não se exprime.
Ai! nunca a voz do crime
Me fez sofrer assim.

Ai! foge, foge, poupa-me O horror da tua vista. Que força há
resista
A um tormento igual?…
Oh! que vergonha! Lágrimas!
O lúgubre cortejo
Sorrir-se ufano vejo
Com júbilo infernal.

Embora! Espectros, ride-vos, Sou fraco, anseio tremo.
Nem no momento extremo
Se pode sofrer mais!
Fogem-me as forças, cansa-me
A luta, caio exausto;
Ó meu destino infausto
Que dores me guardais?!

De mim ei-los já próximos E os descarnados braços Agitam
nos espaços Soltando imprecações,
E ao som dos seus anátemas
Mil sombras pavorosas
Me arrastam às tenebrosas
Sombrias regiões.

À chama dos relâmpagos Já treme a própria terra
; E qual enorme serra
O mar se eleva aos céus, Eis a mansão dos réprobos E
os fogos infinitos
Onde ardem os proscritos
Da habitação de Deus.

Oh! longe este espectáculo! A morte, antes a morte! Talvez então
a sorte
Conceda ao morto paz.
Talvez transportando os pórticos
Da sepulcral morada
Não reste do homem nada
Além do pó que jaz.

Então, qual som da Pátria Soa o proscrito ouvido, Meu último
gemido
Me soará também;
Mas… quem me diz que as ânsias
Deste cruel tormento
Têm fim no pensamento
Não vão da campa além?

A vida é me um martírio; Minha alma outrora forte Ao sopro
de agra sorte Vergou, pendeu pr ó chão;
Nem mesmo a paz do túmulo
Me resta! No seu seio
Penar inda receio
Pra sempre ! Deus perdão I

Mas… que suave bálsamo
O peito me serena?
Que luz tão grata e amena
Nas trevas me luziu?
Qual desesp’rado náufrago
Em tão negra procela
Nos céus um’alva estrela
Longínqua me sorriu!

Acaso é dado ao ímpio Erguer as mãos manchadas Ainda
ensangüentadas
A celestial mansão ?!
Pode ainda a sua súplica
Chegar aos pé s do Eterno?!
Da beira já do Inferno
Clamar inda perdão ?!

Supremo Deus! atende-me I Na Terra o meu castigo! Porém, quando o
jazigo
Se abrir ao pecador, Quando em gelado féretro A fronte já cansada,
Pousar extenuada, Perdoa-lhe, Senhor.

Novembro de 1859

Escusado é dizer que nao sou eu quem fala neste canto de remorsos. Conquanto
pecador, como todos os filhos de Adão, ainda não está tão cheio o meu cabaz
de culpas. Aqui usei da liberdade, que nos dá a lira, boa ou má, de exprimir,
não só os nossos senti. mentos, mas também os dos outros. Se bem ou mal o
fiz, desta vez, não o sei, e espero ter juizes que o possam saber melhor do
que eu.

AS MULHERES
(RECORDAÇÕES DE UM VELHO)

Tenho oitenta anos contados Dos meus cabelos nevados Bem poucos me restam
já;
Tem-me ido até agora a vida
D’amor pr’amor impelida,
Até quando… Deus dirá.

Tinha dez anos apenas, E já nas tardes serenas,
Ao declinar do calor,
Me agitava o pensamento
Como agita as flores o vento
Uma idéia só — amor.

Na aldeia em que eu residia
Defronte de mim vivia
Quem tal amor me inspirou.
Uma criança era ainda,
Porém nunca flor tão linda
Os olmedos enfeitou.

Uma manhã, como a visse
Junto de mim, eu lhe disse
Coisas que me lembram mal;
Ela, ao passo que me ouvia,
Baixava os olhos, sorria…
E deu-me um beijo, afinal

E desde então por diante
Fiquei sendo seu amante
E fui amado também.
À sombra dos arvoredos, Dizíamos mil segredos,
Que nunca entendemos bem.

Tempos assim decorreram, Felizes tempos que eram!
‘Té que pra cidade eu vim. Chorámos na despedida
Mas supondo-se esquecida, Ela esqueceu-se de mim.

Outra vida, outros amores
Da cidade entre os fulgores,
Tinha quinze anos, amei.
Era uma virgem trigueira
Olhos negros, prazenteira,
Doido por ela fiquei.

Os livros abandonava, Horas e horas passava Com ela, sem o sentir; Meu tio
franzia a testa, Porém, à hora da sesta, Costumava ele dormir.

Ia então pra junto dela, Chamava-lhe meiga, bela,
E o que é costume chamar. Ela ouvia-me, corava,
Na costura continuava
E deixava-me falar.

Duma vez, pedi-lhe um beijo, Ela mostrou algum pejo,
Mas enfim… sempre mo deu ; Atrás deste, outros vieram
E o bem que me eles souberam
Nunca depois me esqueceu.

Mas numa noite de festa, Para mim noite funesta,
Todo este amor se extinguiu; Toda esta nossa ternura,
Que eu julguei de tanta dura, A um capricho sucumbiu.

Todos no baile dançavam, E às valsas se entregavam Com furor;
faltava eu só. Como dançar não sabia, Para um canto me
metia, Triste que fazia dó ;

Ora, é coisa bem sabida, Que a dança cá nesta vida,
Não se dispensa a um rapaz; Adeus amores, se não dança…
Neste mundo mais alcança Quem mais cabriolas faz.

Por não dançar, fui deposto E, como após um Sol-posto,
Se levanta um novo Sol.
O que pr a par a tirara
Logo ali me arremessara
Dos esquecidos para o rol.

Fiquei livre; mas em brev e
A minha cabeça leve
Me envolveu noutra prisão.
Estava escrito em meu destino
Que havia de errar sem tino
De afeição em afeição.

Tinha vinte anos. Um dia Pra ver se me distraía Num teatro me meti;
Mal no palco os olhos prego Que perdi o meu sossego Desde logo conheci.

Estremeci de surpresa
Ao contemplar a beleza
Com que brilhava uma actriz!
Perdido fiquei a vê-la!
Nunca vi mulher tão bela!
Nem uns olhos tão gentis!

Cai o pano, as palmas soam
E por toda a parte ecoam
De poetas mil canções.
Tudo isso me revela
Que a muitos os olhos dela
Incendiaram os corações.

Abandono a sala, corro, Quero vê-la, senão morro, Quero ver
os olhos seus, Quero dizer-lhe que a adoro
E que em chamas me devoro, Contar-lhe os tormentos meus.

Entro no palco, perdido, Doido de todo… varrido, Vejo-a, lanço-me
a seus pés.
Disse amá-la como um louco, E, como achasse isto pouco, Repeti-lho
muita vez.

Ela olhou-me com um sorriso, Como nem no paraíso
Um sorriso assim se vê ;
— «Se tem um amor como o pinta,
Que o futuro o não desminta.» Me disse ela. — E tenha fe.

Voltei para casa exaltado Quase meio embriagado, Coisas que o amor produz.
Mas dormir debalde tento, Impede-me o pensamento, Toda a noite olho não
pus.

Já quarenta anos eu tinha Quando, por desgraça minha, Tornei
no engodo a cair;
Foi uma rica matrona
Que me meteu nesta fona
Donde me custou a sair.

Viúva de três maridos, Tinha intentos decididos
De ainda mais outro matar.
Se a pensar nisto me ponho,
Um destino tão medonho
Me faz hoje arrepiar!

Mas enfim o amor é cego
E amava-a, não o nego,
A razão não a sei eu.
Por isso talvez influísse
Pra cair nesta doidice
O que ela tinha de seu.

Fiz-lhe um dia três sonetos, Falei-lhe nos meus afectos, Ela ao lê-los
me sorriu.
E, respondendo-me em presa, Prometeu ser minha esposa
E um beijo me permitiu.

Com ela as tardes passava, Em sua casa merendava
Chá com leite e pão-de-ló. Jogava-se à noite o
quino
E aturava-lhe o menino
Com paciência de Job.

Nada mais apetecendo, Assim íamos vivendo
Um com outro em santa paz; Já se marcava o momento Para o nosso casamento…
Quando tudo se desfez.

Foi o caso que num dia
Chegou, vindo da Baía, E lhe lançou o anzol,
Um ricaço brasileiro,
Que cheirando-lhe a dinheiro,
Casou ele e pôs-me ao sol.

Causou-me um vivo desgosto
Ver-me assim, sem mais, deposto
Por este sensaborão…
Mas então? Tinha dinheiro,
Em brev e o vi Conselheiro
E pouco depois Barão.

Abandonar os amores
Que se pra os mais só tem flores
Eu por mim poucas lhe vi.
Jurei, mas quis meu fadário,
Que a cruz levasse ao Calvário,
Que remédio obedeci.

Já no inverno das idades Eu entrava, e as verdades, Que então
a vida nos diz,
Pra mim não se revelavam, Os cabelos me nevavam Quando eu outra asneira
fiz.

E desta vez o objecto Do meu sensível afecto E das minhas afeições
Era uma velha provecta E que já inha uma neta
Capaz de inspirar paixões.

Chamei-lhe rola, gazela, Comparei os olhos dela Com as estrelas dos céus.
Ela, como bem-criada,
Não só não ficou calada
Mas disse o mesmo dos meus

Uma noite, à luz da Lua Eu… beijei-lhe a face sua A sua enrugada
tez.
E ela a modo que gostava, Mostrou que não estranhava, Pois nem corada
se fez.

Tinha, sim, ela um defeito? Mas no mundo, amor perfeito Só em flor,
é que se vê.
É que, por mais que eu teimava,
Nunca ela se deixava
De me tratar por você!

Era destas formosuras
Que é melhor ver às escuras
Que na presença de luz.
Quantas mais trevas a cobrem
Mais dotes se lhe descobrem
E mais amor nos seduz.

Já o Verão principiava
E com ele começava
O tempo dos arraiais;
Quis que a uma acompanhasse
E como tal recusasse
Deixou-me pra nunca mais.

Se há caprichos nesta idade, Como é que havê-los não
há-de Na estação juvenil?
A mulher é caprichosa
Como é fragrante a rosa
E florido o mês de Abril.

Livre, fiquei com a rosa Livre, como a mariposa Como a rã pelos pauis;
Fiquei livre como os ventos
Que espalham nuvens aos centos
Pelos espaços azuis.

Já do que tendes ouvido. Podeis ver como Cupido Se fez comigo taful.
E, com um gênio assim feito, Para viver tinha jeito
Num serralho de Istambul.

E pr a que tudo vos conte Dir-vos-ei que aqui defronte Descobri esta manhã
Uma velhinha sem dentes
Muito rica e sem parentes 1
Vou requestá-la amanhã.

Porém eu cá já estou certo
Que, apesar dos cem bem perto,
Caprichos ela há-de ter.
Mas, embora, paciência,
Da mulher é essa a essência…
O que se lhe há-de fazer?

E mal pr a eles iria
Se lhes desse na mama
Seus caprichos desterrar.
Crede, meus alvos cabelos
Um dos seus dotes mais belos
É mesmo esse caprichar.

Julho de 18S9

Desta poesia eu sou apenas uma espécie de editor, mas não responsável. £
um velho que fala, e eu não afirmo, pela minha parte, qu e penso exactamente
como ele neste assunto. O sexo feminino me perdo e portanto estas sextilhas.
Estou pronto a contradizer a ilação que delas se pretendeu tirar. Debaixo
do ponto de vista em que o nosso octogenário encara as mulheres, eu devo confessar
que não tenho motivos para lhes quere r mal nenhum. Ele julgou-as severa.
mente, mas é certo qu e também não valia mais do que elas. As feridas do coração
cicatri. zavam-lhe com uma rapidez espantosa e. em quanto a mim, estes corações
são no amor uma calamidade e não merecem sorte melhor que a que ele teve.
Já vêem qu e sou imparcial.

EXALTAÇÃO

Vida! quero viver! quero em prazeres
Sequioso saciar-me!
Deste frio letargo em que hei vivido,
Quero, enfim, libertar-me!
Pra longe o manto da indiferença! Aos gozos!
Eia! aos festins da vida!
Os mais convivas se sentaram há muito.
Dai-me a parte devida.
Pra longe pensamentos de tristeza,
Gelado desalento!
Vou embriagar-me nas ardentes taças
Beber nelas o alento.
Mundo, dá-me o prazer que aos mais concedes!
Da isolação estou farto. Adeus, ó solidão, adeus
repouso.
Adeus… pra sempre eu partoI
Os rumores da turba escuto ao longe
No seio dos folgares;
E só eu, frio, cruzarei os braços,
Não buscarei seus lares?
Oh! não; é tempo, as alegrias chamam-me.
Antes de exausta a taça
Corramos a bebe r nela, que o gozo
Co’a juventude passa. Amigos, esperai, eu já vos sigo.
Louco do que se isola?
Nem se torna melhor, nem suas penas
Na solidão consola.
Vamos ao menos no rumor das festas
Sufocar este grito
Que nos brada : — Padece, que de lágrimas
Foi teu destino escrito.
Vamos… ao menos no fulgor dos bailes
Fascinemos a vista.
Talvez aí se encontre o esquecimento,
Talvez o gozo exista. Quebremos esta lápide marmórea
Que nos cingia em vida. Ressuscitemos! Eia, ó alma acorda
Desta feral jazida.
Vamos!… às festas, ao prazer, aos cantos,
Às flores e harmonias.
Taças a trasbordar, luzes fulgentes,
Delirantes orgias!
E, então, no meio do delírio férvido,
Perdido, embriagado,
Talvez encontre a paz que em balde tenho
Na solidão buscado,

Abril de 1860

Esta exaltação, como quase todas, terminou em nada. Não cheguei a incomodar
os convivas dos festins da vida para me darem lugar, e espero que nunca os
incomodarei. Meu caminho é outro. Divirtam-se em paz

UMA CONSULTA

— Dá licença? — Entre quem é.
— Muitos bons dias. — Olé,
Por aqui, minha senhora?
Desculpe vossa excelência
Se a não conhecia agora.
— Sem mais… À sua ciência
Recorrer venho.—Deveras ?
(Senhor me dê paciência!
Nunca tu cá me vieras).
Então que temos ? — Padeço.
— Sim? porém de que doença?
— Essa é boa! acaso pensa
Que eu porventura a conheço?
— Ah! não conhece ? — Quem dera ! Então não
o consultava.
— (E eu que muito estimava).
Mas diga, então? — Eu lhe conto…
Oiça bem. Não perca um ponto.
— Nem um ponto hei-de perder.
— Ai, doutor, doutor, meu peito…
— É do peito que padece ? Quem havia de o dizer!
— E Jesus, doutor, parece Que me quer interromper?! Não era a
isso sujeito.
— Nem o tornarei a ser… Vamos lá. —Or a eu começo…
Atenção é o que lhe peço ;

Diga-me: que lhe pareço ? Não me acha muito abatida?
— Assim, assim; mas às vezes
A vista pode enganar.
— Não, não. Pode acreditar
Que há já um bom par de meses
É um tormento esta vida.
— Então que é o que sente ?
— O que sinto? Ora eu lhe digo :
O doutor é meu amigo?
— Oh ! senhora… — E é prudente ? Oiça, pois: Eu
dantes era
Fera e rija, que era um gosto! Ou em Dezembro ou Agosto Correr o mundo pudera,
Sem no fim me achar cansada.
— E hoje? — Não lhe digo nada, Nem comigo posso já.
— Mau é! — Quer saber, doutor ? Só para vir até
cá,
Que tormentos não passei!
— Diga-me, se faz favor.
Que idade tem? — Eu nem sei… Eu sou mais nova três anos
Que o reitor da freguesia.
— (É grande consolação!)
— Tenho ainda outros dois manos Que mais velhos do que eu são,
Porém, como eu lhe dizia, Doutor…—Qu e mais sente então?
— A vista sinto estragada, Até já me custa a ler,
De mais a mais sou nervosa. Isso não lhe digo nada!
Olhe, estou sempre a tremer.
— Faço idéia. — Andava ansiosa
Por consultar o doutor;
Eu tenho em si muita fé.
— Lisonjeia-me. — Outra queixa… Que eu sofro também…
Qual é?
— É dum forte mal de dentes. Todos me caem. — Bem, bem.
— E os que restam, mal assentes, Qualquer dia vão também.
— É provável. — Ai, doutor! Que cruel enfermidade!

Não acha? — Acho e o pior…
— Há-de curar-me, nao há-de?
— E então nao sente mais nada ?
— Nada… ai, sim, tem-me parecido, Porém, talvez me iludisse…
•— Diga. — A semana passada, Como ao espelho me visse…
Pareceu-me ter percebido…
— O quê ? — Que a pele não era
Como dantes, tão macia.
—• E então ? — Quem visse dissera
Que eram rugas. — (Eu dizia)
E é isso o que padece ?
— Ainda pouco lhe parece, Doutor? — Por certo que não.
— Então que doença tenho ‘
— Em sabê-lo muito empenho Sempre tem ? — Eu ? Pois então
? Para isso o procurei.
— Bem, então sempre lho digo
Mas julgo não ficarei
Por isto, seu inimigo.
— O meu doutor! — O seu mal
É, senhora, de algum perigo.
— Ai Jesus! — E muita gente Dele morre. —Oh santo Deus!
Por quem é não diga tal!
E… morre-se de repente?
— Conforme. — Pecados meus? E então é isso o que
pensa! Porém ainda me não disse
O nome dessa doença
E eu sempre o quero saber…
— O nome?—Sim.—É . . velhice!

— E o remédio? — Morrer.

Janeiro de 1860

A lembrança não é minha absolutamente. Foi-me sugerida de um caso semelhante
que me contaram

PROFISSÃO DE FÉ

Se vires a lira entoar alegrias, Prazeres e orgias, das festas à luz,
Não creias as vozes que solta; mentida
É toda essa vida, que nela transluz.

Se a vires cantando felizes amores, Perfumes de flores parecendo aspirar,
Não creias; minh’alma surgir não viu ainda
A aurora bem-vinda de grato raiar.

Se vendo no mundo somente ímpias cenas, Pérfidas apenas, funestas
paixões,
De escárnio e desprezo soltar os seus cantos, São falsos; que
em prantos lhe vão ilusões.

Porém, quando triste, falar da saudade, Em grata ansiedade fitar
o porvir
Em sonhos de esperanças, talvez que mentidas,
Soltar seus gemidos, temor exprimir;

Se a ouvires falando de chamas ocultas Que n’alma sepultas encobrem seus
véus, Quais fogos acesos ao ar elevados, Ardendo ateados, numa ara
sem Deus

Se a vire s nos cantos falar magoada, Da lut a travada no meu coração,
Qu e muit o deseja, que tanto empreende
E em vã o se defende da ignota prisão.

Ouvindo- a em segredo, soltar suas queixas
E e m triste s endeixas sentida gemer,
Chora r o passado, odiar o presente
E a o long e somente fulgores entrever.

Entã o cr ê os hinos que ouvires à lira,
O peit o os inspira, do peito eles vem,
A m ã o indiferente suas cordas não pulsa
Febri l e convulsa se agita também.

22 de Abri l de 1860

UM PARECER

As minhas flores dilectas
Não se encontram nos jardins
Por entre estátuas erectas
De mármore e labirintos,
Das estufas nos recintos,
E avenidas de alecrins.

Não ornam os toucadores
De feminis gabinetes,
Não perdem as suas cores
Brilhando à noite entre sedas
De manhã às horas ledas
Desmaiando nos tapetes.

Nas jarras não se acumulam Dos vastos salões de festa; Em grinaldas
não emulam
No fulgor a pedraria,
A luz que o baile alumia
Não é a luz que as cresta.

Não; as minhas, as que eu amo
Não as procurem por aí
Pois que eu prefiro ao ramo
Das flores mais presumidas
As singelas margaridas!
Que nas campinas colhi.

As camélia: peónias
Que o jardim ostenta ufano,
E outras destes hierarquias, Prefiro a rara violeta,
E a ros a que vegeta
Pelos campos todo o ano.

E, como as flores , as donzelas São iguais nos agostos meus, Pois
par a mim as mai s belas
E aos olhos mais aceites,
Não sã o as p em mais enfeites
Encobrem os dotes seus .

Nao são . Eu quero a belez a
Sem tão presumida arte ;
O qu e vem da natureza
Tais atavios dispensa.
Mulher, atede-me e pens a
No conselho que vou dar-te :

Feia ou bela para long e Desterra tanto : aparato. Não faz o habito
o mong e Sem el e a bela se enfeita E nada à feia aproveit a Esse tão
caiado ornato.

Que pedra s mas preciosas , Que enfeites de mais valor E que flores mais
mimosas Do qu e uns olhos radiante s Umas tranças abundadantes,
Uns lábios dizendo amor ?

E vós, feias se a belez a Vos nego u seu galardão, Não
fujais da singeleza,
Não busques e extremo oposto. Deixai de adoçar o rosto ,
E adornai o coração

Maio de 1860

Vox clamantis in deserto.

APARÊNCIAS

Sempre o riso em teus lábios! Na alva fronte
Nem uma sombra apenas!
Nem uma nuvem só no horizonte
A ameaçar-te com futuras penas!

É possível haver inda no mundo
Quem viva e nao padeça ?!
Num vale de agonias tão profundo.
Quem haverá que em júbilos se esqueça!

Se hoje os dias teus correm amenos, Olha para o passado.
Ele saudades te dará ao menos
Dos que à beira do túmulo hás deixado.

E nem um só instante de tristeza
Te dão essas memórias?
Teu passado é estéril? Não te pesa
Uma só dessas cenas transitórias?

Pois bem; encara as trevas do futuro
E dize se as não receias?
Fitando esse horizonte ignoto e escuro
São ainda de prazer tuas idéias?

Dizem que a taça do praze.- na vida
Contém sempre o absinto,
Mas tu, só de alegrias envolvida
Não sabes o amargor… Que digo? Minto!

Tudo isso é aparência. Se eu puder
Ler-te no pensamento
Quem sabe se até mesmo estremecera
Ao deparar co’um íntimo tormento?!

Quem sabe quantas vezes é mentida
Dos lábios a alegria!
Quantas vezes no peito comprimida
Nos devora latente uma agonia!

E morto o coração inda persiste
Um sorriso aparente,
Simulando um prazer que não existe,
Fingindo uma ilusão que a alma não sente.

Este vislumbre de mentido gozo
Que nos lábios se estampa
É como as flores do vergel viçoso
Que nos encobrem a hediondez da campa.

8 de Julho de 1860.

DESALENTO

É força descrer. Na vida
Sucumbe toda a ilusão
Como a flor da haste pendida
Murcha ao sopro do tufão.

Fantasias vãs da infância Deixai-me; sois mentirosas. Pintáveis-me
a vida estância Coberta de mirto e rosas.

E, ao perto, o mirto e as rosas
Em espinhos se tornaram.
Essas horas venturosas
Bem amargas se mostraram.

Descrer é fatal destino
Que espera o homem na vida.
E não há poder divino
Que lhes sirva de guarida.

Descrer ? descrer! muito custa Quando o peito é de vinte anos, Quando
a alma inda se assusta
Ao clarão dos desenganos

Pobre alma! pobre seio! Ai que martírio sofreste.
Inda ontem de ilusões cheio
E hoje já quantas perdeste!

E agora que mais me resta? Qual, ó alma a tua sorte!
Já que a vida é tão funesta
Aspira somente à morte.

6 de Agosto de 1860

DESESPERO

O dia fenece. Co’a luz purpurina
Que tinge o ocidente, que aromas não vem!
O Sol vacilante no oceano declina,
Eleva-se a Lua nos montes d’além.

Por entre a ramagem de densa espessura
Semeada de aljôfar’s por lânguida luz
Mil aves modulam com meiga ternura
Seus hinos que a aragem aos montes conduz.

Que mágicas cenas! que aromas na brisa! Que sons! que harmonias se
elevam daqui ! Ditosa a existência que mansa desliza
E a quem esta cena de graças sorri.

Mas; ai, de que valem belezas de selva, Das aves os hinos, perfumes de flor?
Que importa o arroio gemendo na relva
E a Lua surgindo com grato palor?

Que importa o silêncio que vai na campina A quem dentro d’alma rebrame
a paixão? Que importa a folhagem que adorna a colina
Se dentro palpita medonho vulcão?

Oh! antes mil vezes ouvir agitadas
As vagas lutando com as nuvens do céu.
Olhar as florestas brilhando incendiadas
E o raio rasgando das noites o véu.

Em vez do murmúrio das brisas suaves, O vento com raiva no bosque
a bramir Em vez do mavioso descante das aves, Das feras o torvo, medonho rugir!

Então, nos horrores de tanta tormenta Talvez meus martírios
eu visse extinguir, Então, como o infante que a mãe acalenta,
Ao som das rajadas pudera dormir.

Mas não; ainda mesmo que todo o universo
Desabe em ruínas em torno de mim
No caos informe, que fora seu berço,
Achando o seu leito de morte por fim.

A rude tormenta que o seio me agita Inda há-de mais alto suas fúrias
erguer, Que vagas ardentes de lava maldita
Eu sinto violentas no peito ferver.

E os risos do campo, de escárnio parecem, Os sons das florestas, insultos
à dor.
Mal hajam as galas que o prado guarnecem, Mal haja esta noite de paz e de
amor!

Que importa o silêncio que vai na campina A quem dentro d’alma rebrame
a paixão? Que importa a folhagem que adorna a colina
Se dentro palpita medonho vulcão?

Oh! antes mil vezes ouvir agitadas
As vagas lutando com as nuvens do céu.
Olhar as florestas brilhando incendiadas
E o raio rasgando das noites o véu.

Em vez do murmúrio das brisas suaves, O vento com raiva no bosque
a bramir Em vez do mavioso descante das aves, Das feras o torvo, medonho rugir!

Então, nos horrores de tanta tormenta Talvez meus martírios
eu visse extinguir, Então, como o infante que a mãe acalenta,
Ao som das rajadas pudera dormir.

Mas não; ainda mesmo que todo o universo
Desabe em ruínas em torno de mim
No caos informe, que fora seu berço,
Achando o seu leito de morte por fim.

A rude tormenta que o seio me agita Inda há-de mais alto suas fúrias
erguer, Que vagas ardentes de lava maldita
Eu sinto violentas no peito ferver.

E os risos do campo, de escárnio parecem, Os sons das florestas, insultos
à dor.
Mal hajam as galas que o prado guarnecem, Mal haja esta noite de paz e de
amor!

13 de Agosto de 1860.

O DESTINO DAS FLORES

Um dia em que ambos nós, sobre a mesa do estudo
Numa noite hibernai, da lâmpada ao clarão,
Ele curvado a ler, eu a escutá-lo mudo,
Seguíamos com pausa, atentos, a lição.

Inda me lembro bem ! Falávamos das plantas, De sua curta vida e sua amena
cor,
Tantas pelos vergéis e pelos montes tantas, Que vivem, fenecendo após
aberta a flor!

— «Triste destino o seu», disse ele com voz lenta, Pousando
com tristeza a fronte sobre a mão,
— «Deus as manda florir, de seiva as alimenta, Mas cedo com as flor’s
caem murchas no chão.»

Triste destino o teu, ao delas semelhante, Pobre alma de poeta! On! que destino
o teul Deus te mandou cantar e o canto vacilante
Na Terra principiado acabaste-o no Céu.

28 da junho de 1882.

FALSOS AMIGOS

Como a sombra, amigos temos, Que nos segue em claro dia; Mas que da vista
perdemos Assim que o Sol se anuvia.

Outra versão:

Vós sois a minha sombra
Se o Sol me luz brilhante..
Atrás, ao lado, adiante,
Encontro-a junto a mim !
Porém se nuvem negra
A luz do Sol me tira,
A sombra se retira…
Vós sois também assim

ORAÇÃO DO REITOR

A noite era de Inverno, húmida, escura e fria. Soprava nos pinhais
furiosa a ventania,
Imitando o bramir dum tormentoso mar. Os sinos do mosteiro ouviam-se vibrar.
E, contudo, ninguém subira ao campanário.
A alameda do adro e o morro do Calvário,
Onde se ergue imponente o sacro emblema — a Cruz —
Rasgando o negro véu, enchiam-se de luz
Quando do céu pesado o raio fuzilava:
Luz sinistra, fatal, como de ardente lava. A aldeia repousava em plácido
dormir;
Sono que não perturba esta ânsia do porvir
Que à vida nos consome, aos filhos das cidades;
Este sonhar sem fim, estas vagas saudades
Sempre, sempre a fugir dum fantasiado bem
Que à nossa cabeceira acalentar-nos vem.
A aldeia repousava. As cinzas da lareira
Onde há pouco inda ardia a paternal fogueira
Cujo grato calor as horas do serão
Ajudara a passar, frias, extintas são.
Porém na residência um homem inda vela,
Pois que uma frouxa luz, através da janela, Parece estar dizendo ao
povo que adormece :
— «Dorme, que o teu pastor de velar não se esquece !»

O pároco velava. As venerandas cãs Pendentes sobre um livro. Em
orações cristãs Iam-se, muita vez, assim, noites inteiras…
As contas do rosário eram-lhe companheiras.

Julgava-se ele então, o bondoso reitor,
Mais próximo do Céu, mais junto do Senhor !
E, Moisés do seu povo, ouvindo mais de perto
A palavra da lei que, no árido deserto,
O devia guiar por grandes provações,
Sentia então mais fé nas suas orações !
A estância humilde e nua do velho cenobita
Parece recebe r misteriosa visita
Sempre que, como agora, embevecido e só, Lê, de David, um salmo,
um lamento de Job. Páginas imortais dos Santos Evangelhos !
Pois houve quem o viu, caindo de joelhos, Erguer, cheio de ardor, os olhos
para o Céu, Como se, descerrando o impenetrável véu,
Que, aos olhos dos mortais, cobre o mistério augusto,
Lho deixasse encarar sem turbação nem custo. Vivera a fazer
bem. Envelhecera assim.
Eram-lhe distracções as flores do jardim,
O ensino da infância, a esmola aos indigentes
E o salutar conselho aos jovens e imprudentes.
Logo pela manhã, mal sentia o arrebol,
Ia-se para o monte, a ver nascer o Sol,
E voltava a almoçar mais leve do que fora,
Que a esmola o acompanhava e é grande gastadora.
Não sabia, o bom velho, há muito resistir… Cedia-lhe sorrindo…
Abençoado sorrir !
Sempre sóbrio e frugal. o santo sacerdote, Quisera, muita vez, entesourar
um dote
Para as filhas de Deus, órfãs de pai e mãe ! Socorria
a chorar! Pois chorava também,
Sempre que chorar via, ou de prazer ou pena. Em tudo reflectia aquela alma
serena,
Como lago tranqüilo, ao tombar do escarcéu,
As nuvens reproduz que perpassam no céu…
Com que amor acolhia alguma alma perdida
Que o vinha procurar, um dia, arrependida I
Com que sentida fé lhe falava da Cruz,
Prometendo o perdão em nome de Jesus !

Quando à missa do dia, ao povo que o escutava, Com voz trêmula
já, da religião falava,
Na prática singela havia tal unção
Que vinham gravar-se fundas, no coração,
As palavras de amor, de paz, de tolerância.
E o povo procurava ouvi-lo com instância.

ORAÇÃO DO REITOR

A noite era de Inverno, húmida, escura e fria. Soprava nos pinhais
furiosa a ventania,
Imitando o bramir dum tormentoso mar. Os sinos do mosteiro ouviam-se vibrar.
E, contudo, ninguém subira ao campanário.
A alameda do adro e o morro do Calvário,
Onde se ergue imponente o sacro emblema — a Cruz —
Rasgando o negro véu, enchiam-se de luz
Quando do céu pesado o raio fuzilava:
Luz sinistra, fatal, como de ardente lava. A aldeia repousava em plácido
dormir;
Sono que não perturba esta ânsia do porvir
Que à vida nos consome, aos filhos das cidades;
Este sonhar sem fim, estas vagas saudades
Sempre, sempre a fugir dum fantasiado bem
Que à nossa cabeceira acalentar-nos vem.
A aldeia repousava. As cinzas da lareira
Onde há pouco inda ardia a paternal fogueira
Cujo grato calor as horas do serão
Ajudara a passar, frias, extintas são.
Porém na residência um homem inda vela,
Pois que uma frouxa luz, através da janela, Parece estar dizendo ao
povo que adormece :
— «Dorme, que o teu pastor de velar não se esquece !»

O pároco velava. As venerandas cãs Pendentes sobre um livro. Em
orações cristãs Iam-se, muita vez, assim, noites inteiras…
As contas do rosário eram-lhe companheiras.

Julgava-se ele então, o bondoso reitor,
Mais próximo do Céu, mais junto do Senhor !
E, Moisés do seu povo, ouvindo mais de perto
A palavra da lei que, no árido deserto,
O devia guiar por grandes provações,
Sentia então mais fé nas suas orações !
A estância humilde e nua do velho cenobita
Parece recebe r misteriosa visita
Sempre que, como agora, embevecido e só, Lê, de David, um salmo,
um lamento de Job. Páginas imortais dos Santos Evangelhos !
Pois houve quem o viu, caindo de joelhos, Erguer, cheio de ardor, os olhos
para o Céu, Como se, descerrando o impenetrável véu,
Que, aos olhos dos mortais, cobre o mistério augusto,
Lho deixasse encarar sem turbação nem custo. Vivera a fazer
bem. Envelhecera assim.
Eram-lhe distracções as flores do jardim,
O ensino da infância, a esmola aos indigentes
E o salutar conselho aos jovens e imprudentes.
Logo pela manhã, mal sentia o arrebol,
Ia-se para o monte, a ver nascer o Sol,
E voltava a almoçar mais leve do que fora,
Que a esmola o acompanhava e é grande gastadora.
Não sabia, o bom velho, há muito resistir… Cedia-lhe sorrindo…
Abençoado sorrir !
Sempre sóbrio e frugal. o santo sacerdote, Quisera, muita vez, entesourar
um dote
Para as filhas de Deus, órfãs de pai e mãe ! Socorria
a chorar! Pois chorava também,
Sempre que chorar via, ou de prazer ou pena. Em tudo reflectia aquela alma
serena,
Como lago tranqüilo, ao tombar do escarcéu,
As nuvens reproduz que perpassam no céu…
Com que amor acolhia alguma alma perdida
Que o vinha procurar, um dia, arrependida I
Com que sentida fé lhe falava da Cruz,
Prometendo o perdão em nome de Jesus !

Quando à missa do dia, ao povo que o escutava, Com voz trêmula
já, da religião falava,
Na prática singela havia tal unção
Que vinham gravar-se fundas, no coração,
As palavras de amor, de paz, de tolerância.
E o povo procurava ouvi-lo com instância.

Ora naquela noite, que parecia sem fim,
Com fé ardente e pura, o velho orava assim:

«Senhor! Que, generoso, Todas as aves nutres,
Os pérfidos abutres
E os brandos rouxinóis ! Que juntas nos espaços, Às nuvens
das procelas, Os raios das estrelas,
A luz de imensos sóis I

«Que à borda dos abismos
Fazes brotar a planta;
Da flor que nos encanta
A áspide fatal;
E a plácida corrente
Tornas, num simples gesto, Em vórtice fremente,
E a brisa em vendaval!

«Senhor! quem pode, ousado, Sondar os teus mistérios? Sombras
dos cemitérios,
Acaso o podereis ?
Mas nós, cegos ainda,
Na sombra intensa, espessa, Curvemos a cabeça
A tuas santas leis !

«Por isso, se no mundo, Olharmos, surpreendidos, Os bons aos maus unidos,
Unido o mal ao bem…
Que os lábios se não manchem
Na imprecação maldita ! É lei que está escrita
Em letras de ouro, além…

«Além, por essa abóbada, Alta, sublime, imensa,
Onde a alma do que pensa Se perde a meditar… Abramos, pois, os braços
A todos igualmente.
A Deus, a Deus somente, Compete esse extremar.»

uma canção que o interrompe:

«Pobre flor que, nos campos nascida, Entre moitas de humildes violetas,
Tão saudosa no campo vegetas, Sem um raio de fúlgido sol! Pobre
flor, solitária, ignorada,
Só a estrela do céu te namora, Só te beija o rocio da
aurora
E te fala o subtil rouxinol !

«Ai, se um dia escutares, atenta, Essa voz, ó violeta da aldeia,
Essa voz que embriaga, que enleia, Qual suave harmonia do Céu,
Nova luz se fará na tua alma”…
E, chamando-te à vida os sentidos
Te abrirá os países floridos
Que inda envolve um tenuíssimo véu.»

A canção cessou e o velho reitor segue com a prece

«Senhor ! Bendito sejas
Na tua majestade !
Por toda a imensidade Teu nome escrito jaz !… E tu, soberba humana,
Lembra-te que és poeira… E, na hora derradeira,
A sê-lo voltarás…»

EXCERTOS

Epístola a meu primo José Joaquim
Pinto Júnior no dia dos seus anos,
20 de Outubro de 1859.

Dos orientais jardins da bela aurora Foge, a lançar-se no cerúleo
espaço, Um grato sol d’Outono. Poucas flores
Lhe oferece a terra já, mas pendem frutos
Das árvores, vergadas sob o peso
Tão grato ao lavrador, que mil riquezas
Ufano estende nas patentes eiras,
Ou em fartos celeiros acumula
Para as guardar do Inverno. Os atavios,
Com que se adorna a quadra, mais semelhain
Modestas galas de gentil esposa,
Que, junto ao berço de seus ternos filhos,
Despiu as louçainhas de solteira,
Os seus trajes garridos de donzela, Pra quem a vida é só jardim
florido,
Belo e viçoso, mas sem frutos inda. Outono! Fértil quadra —
tão querida Do povo agricultor! se eu possuísse…

Onde iria Mendigar expressões pr a celebrar-vos, Loiras searas, agradáveis
ceifas,
Serões risonhos a que amor preside, Onde se trocam abraços mil,
mil beijos, A cada milho-rei? Não sei cantar-vos, Verdes relvas, de
orvalho rociadas, Sussurrantes arroios das campinas, Copados, odoríferos
pomares…

Tudo isto eu escrevia há pouco tempo, Após ter aspirado os mil
perfumes
Do ar do campo, às horas matutinas. Que alegria na aldeia !… Que fervores
Nos trabalhos agrícolas!… Mas hoje…

Que importa à mole que o vapor impele, O fim pra que trabalha? Reconhece
Uma força maior, e indiferente
Segue o impulso. Sejamos como…

O nosso pátrio Douro que sombrio, Em torturado leito se revolve,
Nem sempre ao levantar a húmida fronte, Depara montes íngremes
e aspérrimos Que o fazem suspirar, de angustiado.
Aqui e ali, a natureza amena
Com ele se mostrou. Risonhos vales, Gratas colinas, sinceirais formosos,
Verdes campinas que interceptam veias
De límpido cristal, lhe ornam as margens…
Aí, um brando enleio voluptuoso
Vence o soberbo rio, namorado
Dos verdores que o circundam. Brandamente
Se deixa adormecer, acalentado
Pelas canções que entoa a leve brisa, Ao som das folhas dos
virentes olmos,
Então, ferventes beijos deposita
Nas enfloradas margens, que perfumes
Lhe dão em troca. A fronte majestosa
Desenruga, olvidando seus pesares, Lascivo, espraia as suas frescas ondas
Em mais ameno leito. Já não geme, Não brame enfurecido,
maldizendo
As enormes montanhas que o oprimem
Em apertado espaço. Canções ternas,
Canções de amor, que só quem ama entende, Enlevado murmura
em brandas notas.

Amo-te sempre, ó Douro, quer em fúrias Invistas contra as rochas,
quer sereno Deslizes, retratando em tuas ondas
Os alamos das margens. Ou turvado
Te rojes em lodoso, áspero leito,
Ou em praias extensas desenroles

Tuas ondas mais límpidas, és sempre
O Douro, cuja voz me acalentava
Nos áureos sonos da passada infância.

Mas de novo me acorre o pensamento Atrás de idéias tristes.
E a tal ponto Que me custa trazê-lo a bom caminho.
Ante o Sol se interpôs uma outra nuvem E desta vez bem negra. Mas desculpa
Se, quase a meu pesar, eu fui levado
Na torrente de idéias tão sombrias…
Deixa o país fantástico que habitas
Pra fazer excursões impetuosas
Armado de palavras. Tão difícil
É repressar-lhe as fúrias, como peias
Tentar opor às convulsões tremendas
De furioso vulcão. A minha idéia,
A predilecta, a que na mente afago,
Que, quando só, vem povoar de imagens
A minha solidão, é a da família.
Prefiro-a à glória, a prazer’s, a honras !
Peço a Deus, com fervor, nas minhas preces,
Mil vezes, no seu templo, ajoelhado:
— «Senhor, lhe digo, por piedade, ouvi-me !
Povoai-me esta aridez da minha vida,
Como na infância a vi; pelo passado
Conformai meu futuro; já que o homem
Retrogradar não pode em seu caminho.»
A súplica é sincera e Deus piedoso.
Escutada será ? Não sei que esp’rança,
Não sei que frouxa luz, bem frouxa ainda,
Parece divisar no horizonte…
Talvez não creias que, sincero falo
Nestas aspirações do meu futuro?
Ah ! Sinceras são elas, podes crer-me.
Assim reais as vira ! Os mil prazer’s
Que a juventude sequiosa anseia,
De boamente, em holocausto, os dera
A santa paz da vida de família.
Talvez; mas seja embora um sonho apenas, O sonhar e um bem, se o sonho é
grato.
É milagroso bálsamo que sara
As feridas mais cruéis da realidade.

Os frades já lá vão. Esses ao menos
Souberam amenizar a agreste vida,

Estéril de afeições, do homem solteiro, Desfrutando
as delícias da preguiça, Nas confortáveis celas dos conventos,
Templos só consagrados à mandriice. Onde nada teria que notasse
O mais importante dos vassalos
Da rainha Vitória. E mais é gente
Que, no que diz respeito à boa vida
E em muita coisa mais, a custo cedem
A qualquer outra, o grau de preferência.

Se entre os teus me não vires, acredita Que por lá me esvoaça
o pensamento Assistindo ao ‘spectáculo bendito
Dos prazer’s de família. E, quando os, brindes
Se elevarem em glória deste dia,
Se nao com os do corpo, com os da alma,
Misteriosos sentidos, ouvir podes, Associar-se ao coro das mais vozes,
Uma voz a saudar-te; é essa a minha ! E disse. Cai o pano. E finda
a epístola.

Da segunda carta de Júlio Dinis a seu
primo José Joaquim Pinto Coelho

Eis a idade dos vinte anos, Tão celebrada em poesia, Em que a ardente
fantasia, Cria mil visões de amor !
Voa a alma atrás dos sonhos, No seu seio se embriaga, Como a abelha
que divaga Poisando de flor em flor.

Saudemos pois esta hora
Se ela é hora de esperança !
O isolamento cansa,
Não amar, é não viver !
Na floresta as aves cantam,
Quando alveja a madrugada,
Se a aurora d’alma é chegada,
Cantemos-lhe o amanhecer

Mas a própria natureza Quis saudar-te neste dia, E num sorriso te
envia Sua grata saudação.
Ela fenece, declina,
Já se despe de verdores ;
Tu na quadra dos amores
Colhe as flores da estação.

«Colhe-as, viçosas se mostram No teu extenso horizonte. Exulta
pois, ergue a fronte,
Que a tua hora enfim chegou i»

1860

Cartas a meu primo José Joaquim
Pinto Coelho.

«Venho uma vez ainda, movido de ansiedade
Dos teus, às alegrias, meus júbilos unir;
Queimar débil incenso nas aras da amizade,
Lembrar-me do passado, falar-te do porvir.

«Lembrar-me do passado, desviando a escura tela Que as cenas dessas
eras aos olhos nos cerrou… Falar-te do futuro, mostrando-te essa estrela
Que para a juventude sempre nos céus radiou…

«Parar, onde a planície se espraia, vasta, imensa? E a perspectiva
se orna de flores e de luz?
Parar, pendida a fronte, sem ânimo, sem crença, Vergado sob o
peso de imaginária cruz?

«Isto nos nossos anos, isto na nossa idade, Tão cheia de futuro,
de alento e de fé !
Oh, não ! Pra nós a esp’rança; deixemos a saudade !
Deixemos a flor murcha que outra em botão já ó «Saudemos
o futuro, como a risonha aurora
Que tinge o alto dos montes de purpurina cor !
Saudemos o futuro à voz consoladora,
Que nos fale, em segredo, duma época melhor !

«Da lira pelas cordas correndo as mãos nevadas
Tira sentidas notas duma imortal canção…
Nem das harpas eólias, nos olmos pendurados,
As extrai tão sonoras, da noite, a viração…

«Não são da Terra as notas da música maviosa Que
escuto, não; são ecos de música no Céu… Co’a
citara dos anjos, em nuvens cor-de rosa, Esta visão celeste junto de
nós desceu.

«Cantando, pouco a pouco, seu rosto se ilumina… Nos lábios
tudo é risos; é tudo vida o olhar… Como, na madrugada, se
despe de nebrina
A risonha paisagem que o sol vem animar.

«Falou na paz dos justos, falou na recompensa
Que espera os virtuosos na celestial mansão…
Para os Céus apontando, disse inspirada:—Crença ! —
Abandonando a Terra, disse saudosa: — Irmão ! —

1862

«Sim, às vezes, não sei fugir ao desalento
Que baixa sobre mim, qual nuvem tempestuosa;
Nem posso desviar o curso ao pensamento,
Que desce sem parar, em senda tenebrosa.

«Então, se olho o porvir, vejo-o sombrio e escuro, Como quando
no céu se forma a tempestade,
E em torno do baixei, que voga mal seguro, Uma neblina densa o espaço
todo invade.

«Ontem inda sentia esta tristeza vaga
Que pesa sobre nós, mais cio que um férreo jugo;
Sinistra cerração que nos sufoca e esmaga
Como o laço fatal de invisível verdugo !

«Vem, surge, ó Sol luminoso, Doura os cumes da alta serra, Inunda
de luz a Terra,
Vem reflectir-te no mar.., Acorda as aves no bosque, Chama os insectos às
balsas, Onde em doudejantes valsas Vão as flores namorar…

1863

«Penetra nas espessuras,
Nesses retiros aonde
A flor silvestre se esconde
Para sozinha florir.
Dá-lhe o calor dos teus raios,
Desperta-a do fatal sono
Em que as nebrinas do Outono
Já a faziam dormir…»

«Dai-me do campo as mais festivas flores,
Não as quero saudosas;
Quero-as alegres, de risonhas cores,
Como os cravos e as rosas.

«Deixemos a violeta, essa morena
Habitante das relvas.
A delicada, a pálida açucena,
Deixemo-la nas selvas.

«Uma é negra, traz vestes de tristeza, Vem de luto trajada;
Outra, lembra nas cores da pureza, Virgem inanimada.

«Não as quero, que podem essas flores
Renovar na memória,
As mal curadas, as pungentes dores,
Duma recente história.

«O caminho da existência
É então grato e florido.
Ai ! Bem fácil é o olvido
De tudo o que a alma sofreu !
Como à roseira da várzea
Que todo o ano floresce,
A cada flor que fenece
Uma outra flor sucedeu.

«Uma outra flor, e mais bela
E cada vez mais viçosa.
Uma outra flor, outra rosa,
Ou antes, outra ilusão.
Nunca, nunca o desalento
Extingue o fogo sagrado
Que arde no altar consagrado
Que se chama o coração.»

«A saudade, a irmã bem-vinda, À noite, às horas
quietas,
Em que amantes e poetas Livre curso à mente dão ; A virgem pálida
e triste, De branda melancolia,
Que as penas nos alivia, Que nos mitiga a paixão!

«Tens ao teu lado a saudade Falando-te em voz dolente. Duma memória
recente,
Duma luz que se apagou… Luz que tomaste por guia Para termo da viagem;
Mas que o sopro duma aragem, Brandas, apenas, apagou.»

«Veste-se a planta de flores Quando a Primavera assoma; E a espessura
de verdores
• Perfuma com seu aroma.

«Mas nem sempre a mesma vida
Transluz nas flores abertas;
Uma seiva empobrecida
Só lhes dá cores incertas.

«Todos os anos floresce, Ao despertar este dia,
A planta que, ignota, cresce, Da minha pobre poesia.

«Porém, desta vez, roçada Do mal, pela mão funesta,
Uma flor só, desmaiada, Abriu para a tua festa.

«Mas seja o tributo pago, Embora com pobre oferta; Essa mesma aí
a trago, Desbotada e mal aberta.» 1

1866.

1 Última carta em verso que Júlio Dinis dirigiu a José
Joaquim Pinto Coelho. Era desta maneira que festejava os aniversários
de seu primo,

Fonte: www.dominiopublico.gov.br

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