Restos do “Tabu” Ancestral

Lima Barreto

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O comandante Baratier, que deve ser hoje general, foi encarregado por Marchand de abrir a sua marcha através das origens ocidentais do Nilo, em demanda de Fáchoda, no Sudão egípcio.

Ainda é da memória de todos a repercussão que, no mundo inteiro, teve a ocupação desse lugarejo desconhecido, pelas tropas francesas. A guerra quase estalou entre a França e a Inglaterra; e o povo francês quis mostrar a sua reprovação ao ato do seu governo, fazendo desocupar aquele lugarejo do alto Nilo, com uma ovação, um verdadeiro triunfo ao comandante Marchand, quando chegou a Paris. Elevado assim na estima popular, o obscuro soldado colonial convenceu-se de seu excepcional heroísmo e desandou em delirar de orgulho.

Tantas fez, que acabou pedindo demissão do Exército francês, para ir servir no russo, a convite, dizia ele, do próprio Czar, embora não fosse.

Baratier, retomando o meu primitivo propósito, empreendeu a viagem com vinte e cinco atiradores senegaleses, dez auxiliares de outra proveniência e um intérprete árabe. A sua viagem é muito interessante e dela ele próprio publicou uma viva narração.

Emaranhado numa teia espessa de ervas aquáticas o “umsuf” (ounun-souf), a sua parada teve um retardamento imprevisto e os viveres se esgotaram.

Com fome, certa vez, navegando em águas quase livres, avistou uma porção de grandes “marabuts” empoleirados nos galhos de uma árvore, a crescer numa ilhota.

Assim ele descreve a emoção de tão auspicioso encontro: “A leur vue tous les regards se sont allumés: ces fleurs sont vivants, ces feurs sont de la viande”. Baratier ia apontar a carabina para abatê-los; mas logo os seus guias locais, “Djingues”, se assustaram e ele viu bem que, fazendo tal coisa, os perderia irremediavelmente e toda a nação “Djingue” declarar-lhe-ia guerra sem tréguas. Após um instante de reflexão, segue o conselho do seu sargento, Moribah:

— Ne tire pas”.

O “marabut” era tabu, por ser totem da tribo “Djingue”, que habitava aquelas paragens.

Essa aventura não é das mais eloqüentes, para demonstrar a força e o poder dessa crença do totem sobre as almas infantis desses povos retardados, ainda na infância da civilização. Há um outro mais estranho.

A fome continua e eles acabam abatendo um hipopótamo. O gigantesco paquiderme jaz no chão meio decepado. O fogo crepita. Os homens impacientes de fome apanham os bocados de carne apenas sapecado e, às dentadas, os devoram caninamente. Não só os negros; ele e o intérprete, que são brancos, também.

Naquele banquete repugnante em que há fome de feras, só poucos da expedição, entre os quais Moribah, não tomam parte nele. São seis atiradores senegaleses da tribo Keita, a qual tem o hipopótamo por totem.

Se a religião católica tivesse esse poder sobre as almas, ela, a religião do amor ao próximo, da pobreza e da humildade, não permitiria haver entre nós, ocidentais, essa raça atroz do capitalista moderno onde, de quando em quando, ela vai buscar seus condes. Convém dizer, apesar de me parecer inútil, que tabu quer dizer que certa coisa é de tal forma sagrada que ninguém pode tocá-la sem chamar a maldição dos Deuses sobre si e sua tribo; e totem diz-se do animal que é tido como parente, avoengo da tribo, por isso fica tabu.

Os leitores de Jules Verne, como eu o fui apaixonado em menino, devem lembrar-se de que forma o encantador romancista da infância tirou partido dessa curiosa superstição, no último volume de Os filhos do Capitão Grant.

Ainda estou a ver o meu amigo Paganel, embrulhado até ao pescoço, no seu manto de linho néo-zelandês, dizer para os seus companheiros que vão encontrá-lo numa altura em que estava sepultado um chefe “maori”, referindo-se aos selvagens que os perseguiam na sua fuga.

— Não tenham medo! Subam! Eles não virão até aqui… Isto aqui é tabu!

E não vieram, e todos encontravam na morte seguro asilo.

Reinach, num dos seus interessantes livros de vulgarizaçao, contesta que o horror que os judeus e muçulmanos tem à carne do porco, oriunda de uma prescrição da Bíblia, tenha por causa um motivo qualquer higiênico. O legislador mosaico não podia ter cogitações dessa natureza. Acredita o sábio francês que esse ódio de Mafoma ao toucinho provém paradoxalmente de um totem que se obliterou em ódio, em horror, com o correr dos anos.

Sem procurar os outros vestígios do antigo totemismo nos costumes atuais, com o urso de Berna, podemos na nossa vida vulgar aventurar que certas usanças se enraízam naquela crendice do totem.

Um caso muito corriqueiro que deve ter chamado a atenção dos observadores para ele, é o do urubu. Por que não se o mata? É um pássaro repugnante, mas entretanto o povo não o persegue, a ponto de viver entre a criação, nos quintais de certas pequenas cidades do interior.

Ave assim sagrada, ela o é no dizer do povo, porque limpa os arredores das casas, as ruas, as estradas das carniças putrefatas.

Os eruditos, porém, dizem que o urubu é protegido dessa maneira, devido a obsoletas posturas municipais.

Quem conhece, como todos nós, a impotência das leis, não leva muito a sério a última explicação; e quem leu, sobre o porco, a opinião de Reinach, pergunta de si para si, como eu que não tenho nenhuma competência, se o urubu não foi totem para os nossos afastadíssimos avós, ficando, por isso, tabu até hoje.

Aventurando em mar ignoto, eu faço essa consideração porque entre nós, muito ao contrário do que se dá com o porco entre os judeus e muçulmanos, o urubu não é odiado. Há frases – urubu malandro; – há cantigas e várias peças de folclore em que o urubu entra com relativa simpatia.

Todos conhecem esta canção que as crianças entoam por aí:

Urubu veio de cima
Com parte de dançador.
Ora! Dança urubu!
— Não sei dançar!
Urubu veio de cima
Com parte de homem sério.
Chegando no palácio,
Organizou ministério.

Não sei toda a cantiga; mas não ressuma dela, estou certo, nenhuma antipatia contra a ave carniceira, que é aí mais troçada amigavelmente do que mesmo debochada com azedume.

Entre os pescadores, há uma crença semelhante a esta do urubu, com o bôto.

É muito conhecido esse peixe que vive à flor d’água, girando como se fosse uma roda, dois terços mergulhados. Todos que viajam na nossa baía conhecem-no, apesar de quase nunca se lhe ver a cauda e a cabeça. Vemos só o seu dorso azulado a revolver-se nas águas azuis ou verdes do mar e é dos grandes prazeres das crianças que tomam a barca de Niterói.

Os pescadores não os matam porque, tendo eles por ofício limpar a superfície do mar, socorrem os náufragos, empurrando-os para a praia, como fazem com tudo que bóia nas suas águas sem medida.

O urubu é absolutamente inútil para qualquer fim alimentício ou outro por ser repugnante e nauseabundo; mas, assim mesmo, os senegaleses de Baratier esfomeados preferiram alimentar-se com a carne imunda de aves semelhantes a servirem-se do seu hipopótamo totêmico.

Com o bôto, porém, não se dá o mesmo. Se não se presta para alimento, prestar-se-ia, por ser gorduroso, à extração de azeite que poderia aliviar um pouco, na verba iluminação, os orçamentos praieiros.

Entretanto, nenhum deles se lembra disso e o bôto vive na segurança sob um tabu imemorial. Há outras aves, a cambaxirra, por exemplo, que não são perseguidas, como também certos insetos, como esse quase doméstico – o meirinho – que suga moscas.

Este é naturalmente por ser útil, mas aquela é por ser uma ave azarenta que nenhuma criança quer ver no seu alçapão.

A extensão que os nossos atuais estudos médicos têm levado ao exame de certas moléstias, cuja transmissibilidade é atribuida, as mais das vezes, a insetos parasitas, tem levado os sábios a amaldiçoar certos animais e a abençoar outros.

O urubu tão sagrado pelo povo, é maldito para os sábios, pois propaga a epizoetia, nefasta ao gado; o sapo, tido corno diabólico, auxiliar de bruxas e bruxedos, perseguido pelas crianças, é bendito pelos higienistas, por devorar as larvas dos mosquitos, que inoculam no nosso organismo não sei quantas doenças.

É mais um conflito entre a religião e a ciência…

Atualidade, 10-8-1919

 

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