Um Domingo de Páscoa

Lima Barreto

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Na Guerra dos Mundos, de Wells, quando os marcianos já estão de posse de quase toda Londres, em uma das praças da cidade, eles topam com um estranho espetáculo que os faz parar de admiração, em cima de suas máquinas que a nossa mecânica não saberia nem conceber. É que encontram no largo, creio que fazendo roda, um troço de vagabundos, de falidos sociais de toda espécie, que cantam, folgam e riem, despreocupadamente, enquanto todos fogem diante dos habitantes de Marte, com o seu terrível raio de calor, as suas máquinas de guerra e o seu asfixiante fumo negro…

De noite, pelas primeiras horas de treva, quando me recolho à casa e subo a ladeira que é a rua em que ela está, se encontro crianças, brincando de roda, eu me lembro dessa passagem do extraordinário Wells. Durante as cinco ou seis horas que passei no centro da cidade, tudo o que conversei, tudo o que ouvi, tudo o que percebi nas fisionomias estranhas, foram graves preocupações. Não são já as de dinheiro, não é tanto o maximalismo que amedronta os pobretões, não é também a fórmula Rui-Epitácio que abala o povo e faz cansar os lindos lábios das mulheres. Meu pensamento vem pejado de questões importantes, algumas para mim unicamente, e outras para os meus descendentes, que não terei.

Subo a ladeira e logo dou com uma roda de crianças a cantar:

Ciranda, cirandinha!

Vamos todos cirandar!

Vamos dar a meia-volta,

Volta e meia vamos dar!

Para ouvi-las, paro um pouco, e, continuando a voltear, as meninas e infantes emendam:

O anel que tu me deste

Era vidro e se quebrou;

O amor que tu me tinhas

Era pouco e se acabou!

Parado ainda, considero aquela dúzia de crianças de várias origens e diversa pigmentação, pondo-me a pensar na importância de tanta coisa fútil que me encheu o dia, para as quais devia ter o transcendente desprezo e a superior despreocupação que aquela meninada tem e manifesta com seu brinquedo pueril e inocente.

Se faz lua, então eu me lembro de ver o céu, o que raras vezes faço e fiz. Quando andei fingindo que estudava astronomia, nunca quis observar estrelas pela luneta do teodolito. Preferi sempre encarregar-me do cronômetro que repousava no chão.

Hoje mesmo, não está em moda olhar o céu. No século XVIII, segundo Fontenelle, parece que era “chic”, até as marquesas faziam-no; e houve uma mesmo, a du Chatelet, que traduziu Newton e ensinou Física e Astronomia a Voltaire.

Não é toa, portanto, que uns versos postos em baixo da gravura de um seu retrato, dizem que ela “s’élève dans les airs et le but de ses travaux est d’éclairer les hommes”.

Atualmente, porém, não há muito amor às coisas do céu e todos estão preocupados com as terrenas. A cantoria das crianças, entretanto, faz-me sempre olhá-lo e é então que me aborreço de não saber o nome das estrelas e das constelações. Já houve tempo, que isto fazia parte do manual do namorado elegante. Era poético mostrar à amada o Cão, Arturo, Lira, a Vega, esta sobretudo, nas varandas ou sentado o casal nos bancos do jardim. Flammarion andava em moda e todo “almofadinha” daquele tempo sabia essa carta de nomes celestes; hoje, porém, as boas maneiras de um perfeito namorado não pedem tanto e as ingenuidades são mais apreciadas.

No último domingo de Páscoa, passei eu o dia com um amigo, cuja casa fica em uma das estações dos subúrbios mais consideradas pela posição social dos seus habitantes e muito conhecida pelos namoradores. A residência do meu amigo fica longe da estação, dá fundos para uma montanha que cai quase abruptamente e deixa adivinhar o granito de que é formada, pelas grandes massas dessa rocha que salpicam a sua vegetação escassa e rala. Quando há luar e ele dá de chapa nesse costão, aquela paisagem pobre de horizonte fica magnífica, imponente e grande. Domingo de Páscoa, porém, não houve luar; entretanto, no céu, as estrelas palpitavam de amor pela terra distante. A falta de luar, para poetizar o quadro, foi suprida pela presença de um bando de crianças, que, ao lado da habitação, entoavam as suas canções que devemos chamar infantis, acompanhadas de gestos e meneios adequados. Estive a ouvi-las; e todas elas me pareceram muito modernas, pois nenhuma era dos meus tempos de menino.

Não é de hoje que essas canções infantis são mais ou menos amorosas e tratam de casamentos e namorados. Acontecia isso nas antigas, e podia observá-lo nas modernas que agora ouvia naquele domingo.

A roda era de seis ou oito crianças e o chefe era um menino, Walter Borba Pinto, com nove anos de idade. Era carioca, mas os seus outros irmãos e irmãs, que estavam na roda, tinham nascido em vários pontos do Brasil, por onde seu pai andara cumprindo deveres de sua profissão militar. Guardei diversas cantigas e me pareceu interessante dar alguns exemplos aqui. Se todas fosse eu transcrever, talvez não chegasse um volume razoável; deixo, portanto, de parte muitas.

Eis uma delas, que me parece chamar-se “O Marinheiro”:

Não me namore meus olhos
Nem meus brincos das orelhas;
Só me namore meus olhos
Debaixo das sobrancelhas.

A seguir, há um estribilho que as crianças cantam, dançando aos pares alguns passos da valsa chamada – à americana – com balouço característico que o título da canção lembra:

Sou marinheiro!
Sou rei! Sou rei!
Adorador! Adorador!
Hei de amar! Amar!
És meu amor! Amor! Amor!

Ninguém me peça a significação disso tudo, porque nada percebo aí; mas ouçam cantada e dançada por crianças, que hão de ficar embevecidos e encantados como eu fiquei com essa canção. Tive curiosidade de perguntar onde o Walter a tinha aprendido a cantar, e disse-me ele, em resposta, que fora em Lorena. Como toda a gente sabe é uma cidadezinha que fica a meio caminho daqui para São Paulo, pela estrada de ferro; nas proximidades do Paraíba.

Com toda certeza esse “marinheiro” da canção, que é rei, deve sê-lo desse rio inspirador de poetas, cujo nome tupi quer dizer “rio mau”.

Não é de hoje que muitas canções populares não querem exprimir nada. A famosa “relíquia” – Tinherabos, non tinherabos – um monumento da língua de priscas eras, tem desafiado a sagacidade dos eruditos para traduzi-la: e houve um, o Sr. Cônego Dr. Fernandes Pinheiro, que a interpretou assim: “tinhas rabos, não tinhas rabos” etc…

Sílvio Romero citou essa interpretação, em plena sessão pública da Academia de Letras, e ela toda riu-se muito à custa do sábio cônego e doutor.

Na própria “Ciranda”, que é tão comum, para conhecer-lhe o sentido e significação, precisamos ir ao dicionário e saber que “Ciranda” é uma peneira de junco, usada na Europa para joeirar cereais.

No domingo de Páscoa, na sessão que as crianças me deram de seus brincos peculiares, há uma cantiga que é própria para desafiar a paciência de um sábio investigador, a fim de explicar-nos o seu sentido e objeto. Trata-se do “Sambalelê”, cujo texto é assim:

Sambalelê está doente,
Está com a cabeça quebrada;
Sambalelê precisava
Uma dúzia de palmada.

O estribilho, que é acompanhado de palmas e sapateados, diz assim:

bis / Pisa! Pisa! Pisa! Ó mulato!
\ Pisa na barra da saia! Ó mulato!

Depois continua a cantiga:

Ô mulata bonita!
Onde é que você mora?
Moro na Praia Formosa,
Logo mais vou-me embora.

Segue-se o estribilho e por fim esta última quadra:

Minha mulata bonita!
Como é que se namora?
Bota o lencinho no bôlso,
E a pontinha de fora.

É inútil lembrar que muitas outras canções de roda ouvi nesse domingo da Ressurreição; e vendo aquelas crianças cantar tais coisas, com sua voz fanhosa e indecisa, recordei-me que tinha cantado na minha infância canções semelhantes, com outros meninos e meninas…

Onde estão eles? Onde estão elas?

Não sei… Pesei a minha vida passada, olhei o céu que não me pareceu vazio, ao tempo que a voz fraca de um menino entoava:

Todos me chamam de feio,
De nariz de pimentão,
Quanto mais se vocês vissem
O nariz de meu irmão.

E a cantoria continuava sem eco algum na “quebrada” próxima

Hoje, 21-4-1919

 

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